o que aprendi com samarone
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O QUE APRENDI COM SAMARONE?
“Se queres exercer influência sobre outros
seres humanos, tu tens de ser um ser humano
que atue efetivamente sobre os outros de
modo estimulante e encorajador”.
Marx
(Manuscritos econômico-filosóficos)
Nesse pouco mais de 01 ano e 4 meses que moro em São Paulo devido à pós-
graduação em Geografia Humana na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
(FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) conheci, certamente, intelectuais respeitáveis e
admiráveis como é o caso do maranhense Samarone Carvalho Marinho.
Não me recordo bem quando conheci Samarone. Mas como um bom geógrafo, lembro
bem o espaço em que se deu a nossa primeira conversa: na saída do prédio de Ciências
Sociais em direção à Biblioteca da FFLCH, a Florestan Fernandes.
Na primeira conversa nada demais. Apenas trocamos figurinhas sobre o que
estudamos. Eu reportei-lhe que meu estudo na pós-graduação dizia respeito à Geografia
Agrária. Quando foi a minha vez de perguntar-lhe o que estudava ele apenas disse-me que
havia superado as dicotomias entre campo e cidade e que esta disputa repousava mais no
âmbito da forma do que no conteúdo social das relações travadas pelas pessoas.
Apesar de o encontro ter sido rápido pude perceber que não estava diante de um
intelectual qualquer. Esta minha percepção iria se mostrar empiricamente correta quanto mais
nos encontrávamos para dialogar, seja por obra do acaso ou por necessidade minha de suas
iluminações ontológicas.
A segunda vez deu-se em uma das salas de estudo da pós-graduação em Geografia.
Samarone apresentou-me um artigo, que havia acabado de ser aceito para publicação na
revista GEOUSP, intitulado: DA CIDADE DO MODO TER DE EXISTÊNCIA À CIDADE DO
MODO SER DE EXISTÊNCIA: preâmbulo a um debate geográfico-filosófico sobre a Cidade.
Fiquei absolutamente assustado. Bastou uma lida rápida, para eu ter certeza de que
Samarone havia fornecido à geografia uma contribuição absolutamente original. Manuseando
com maestria Milton Santos, Karl Marx, Jean-Paul Sartre e, claro, György Lukács, Samarone
ofertou-me outro modo de compreender o espaço: um modo, diria eu, ontológico. Isso porque
através da sua leitura geográfica pensa o espaço de modo objetivo, realista, não o reduzindo
às puras representações subjetivistas como faz a geografia humanística.
Depois dessa vez os encontros tornar-se-iam cada vez mais frequentes no apartamento
109, Bloco G do Conjunto Residencial da USP (CRUSP), sempre regado a cafezinhos e, por
vezes, com a presença do também geógrafo Erivaldo. De fato este era o espaço de realização
da nossa socialidade, desse nosso estar-junto.
Em um desses cafezinhos geográficos-filosóficos aconteceu um momento marcante e
ao mesmo tempo engraçado. Depois de conversarmos, ou melhor, depois de ter tido
verdadeiras aulas, e já me preparando para ir embora, Samarone entrou no seu quarto e,
voltando-se para sala, onde eu me encontrava, carregava em suas mãos um livro. Como de
súbito, ou algo meticulosamente planejado (não posso afirmar com certeza), começou a bater
na capa do livro até então por mim não identificado bradando: “É esse cara aqui Arnaldo! é
esse cara aqui”. O “cara”, a quem Samarone referia-se gestualmente, era, ninguém mais,
ninguém menos, que o filósofo marxista György Lukács.
Percebia a partir das conversações com Samarone que sua mensagem era para que eu
me aproximasse da ontologia, especialmente da ontologia lukacsiana. Todavia, ainda não
compreendia porque Lukács era tão fundamental para ele. Afinal, mesmo tendo lido parte de
História e Consciência de Classe, Lukács ainda pecava pelo seu alto hegelianismo presente
naquela que é considerada sua magnum opus. Em todo caso, a partir deste dia eu comecei a
me aproximar gradativamente e crescentemente da obra lukacsiana. E, devo confessar, que
quando terminei de ler o artigo de Lukács intitulado “Concepção aristocrática e concepção
democrática do mundo” tornei-me um lukacsiano ou, no mínimo, um aprendiz de lukacsiano.
Sim! Esta foi a maior contribuição, até o momento, de Samarone Carvalho Marinho para o
autor destas linhas: pensar a Geografia no nível ontológico. Samarone foi a minha ponte entre
a Geografia e Lukács.
A partir de então nossos debates foram sendo cada vez mais intensos porque
mergulhei, e continuo mergulhando profundamente na obra daquele de quem chamamos
admiravelmente de mestre húngaro. Passei a ler também lukacsianos renomados
nacionalmente como José Paulo Netto, Carlos Nelson Coutinho, Sérgio Lessa e Leandro
Konder.
Mas nem só de Lukács ou de lukacsianos vivem as conversações e o aprendizado com
Samarone. No campo da Geografia, particularmente a Geografia Humana, temos travados
intensos debates sobre o rumo que esta ciência tem tomado, especialmente no plano
ontológico. Em nossas conversas, discordamos, por exemplo, profundamente da transposição
filosófica que o geógrafo e professor doutor Elvio Martins faz do filósofo alemão Martin
Heidegger para a Geografia. Somos verdadeiros entusiastas do professor Antonio Carlos
Robert Moraes, conhecido como “Tonico”, e de seu tratamento histórico/onto-epistemológico
da Geografia. Em Milton Santos temos um importante aliado e referencial ontológico para a
Geografia que decorre, claramente, das apropriações que Milton fez da filosofia da existência
de Jean-Paul Sartre. E por fim, mas não menos importante, avaliamos positivamente o
estabelecimento da dialética que Armando Corrêa da Silva promove entre lugar social e
grupo social.
Mas nem tudo são flores. “Sama”, como amigavelmente o nomeio, e eu também temos
nossas divergências. Tenho minhas ressalvas para com ele especialmente no que tange a
apropriação que faz da fenomenologia de Husserl e Merleau-Ponty. Já Sama questiona por
vezes os meus “excessos” no que tange à Marx, Lukács, David Harvey e Ariovaldo Umbelino
de Oliveira, o meu quadrado mágico.
Contudo, concordamos em muitas coisas, mais do que discordamos. Em sua tese de
doutorado, UM HOMEM, UM LUGAR: Geografia da vida e Perspectiva ontológica,
Samarone, partindo de uma crítica marxista simultaneamente lukacsiana e sartreana, joga por
terra a tese da Geografia Cultural/Humanística de que o espaço é representação. Tendo como
universo de compreensão a estética do poeta maranhense de Ferreira Gullar, Samarone
demonstra/comprova como o espaço geográfico é condição de existência, socialidade e
objetivação/exteriorização da vida humana e não uma representação schopenhauriana
subjetivista que procura em caracteres/elementos do espaço (rios, lagos, florestas, ou qualquer
coisa do tipo), na tessitura artística, uma “geografia”.
Samarone é também, permita-me, uma metamorfose ambulante. Geógrafo apaixonado,
poeta político, humanista incansável, por vezes se qualifica como um “anarquista metafísico”
e diz que os anarquistas não entenderam e vulgarizaram a mensagem de Max Stirner; também
já se qualificou como um “lukacsiano existencialista” argumentando que Sartre deu o “toque
cor-de-rosa ao marxismo”; “anarco-marxista” e “anarco-comunista” estão também entre suas
alcunhas.
Porém, a meu ver, Samarone é só um homem (lato senso) que entendeu a mensagem
lukacsiana da arte como objetivação da vida humana. Sua poesia (tal qual em seu livro Atrás
da vidraça) e sua análise estética (como no ensaio COM PRÓSPERO, PARA ALÉM DE
PRÓSPERO: notas para uma investigação acerca dos desígnios de uma visão de mundo)
revelam muito bem isso. Para ele “o homem não se emancipa no trabalho, mas pelo trabalho”,
como gosta de me dizer. E Sama, fazendo coro à Lukács (seu grande mestre na filosofia
marxista) entende bem que a função social da arte é provocar-nos a catarse estética.
Samarone também é um apaixonado defensor do filósofo da existência francês Jean-
Paul Sartre. Por vezes demonstrou sua ira para comigo quando coloco sobre o mesmo
parêntesis o francês e Heidegger. É uma disputa sadia que nós temos dentro do campo do
marxismo. Sama defende fielmente a contribuição de Sartre ao marxismo, especialmente
àquela oriunda da Crítica da razão dialética e Questão de método. De minha parte, questiono,
a partir da crítica lukacsiana, o “Sartre heideggeriano/heideggerianizado”, ou seja, o Sartre
que atesta a vida como uma paixão inútil, ou ainda o Sartre que pensa a esfera da arte como
superior ao domínio da vida .
Esta é uma “pequena” diferença que Sama e eu teremos que ajustar. Especialmente
agora que estamos esboçando uma parceria intelectual para no mínimo 12 anos de trabalho a
começar no próximo ano (2013). Trata-se de uma leitura ontológica da geografia que tem em
Lukács seu fulcro. E, nesse sentido, nos diferenciamos da leitura ontológica de Milton Santos
que tem em Sartre sua razão fundante. Para tanto, objetivamos retirar Lukács do exílio
(terminologia de José Paulo Netto) dentro da Ciência Geografia, nosso campo acadêmico. Em
seu lugar os geógrafos têm bebido em matrizes onto-epistemológicas que avaliamos
prejudiciais para o desenvolvimento deste campo disciplinar. Trata-se, “dando nome aos
bois”, da incorporação geográfica da filosofia de Martin Heidegger, de Michel Foucault e da
sociologia de Boaventura de Sousa Santos. Julgamos, ainda no campo das hipóteses, que a
transposição metafísica destas epistemologias tem contribuído para uma compreensão
equivocada do espaço geográfico, sobretudo em três pontos fulcrais: uma ontologia cindida do
espacial com ênfase no temporal da realidade objetiva (Heidegger); percepções
representativas/metafóricas/discursivas/subjetivistas do espaço geográfico (Foucault); e
construção de uma geografia pós-moderna (Boaventura).
De fato, como se vê, é um projeto ambicioso. Entretanto, ponderamos que possuímos
interlocutores à altura de nossa ambição. Esses interlocutores dividem-se em dois grupos. Um
primeiro de cunho filosófico/sociológico. O segundo dentro do campo da Geografia Humana.
No primeiro caso destaca-se István Meszáros, Leandro Konder, Carlos Nelson Coutinho, José
Paulo Netto e Sergio Lessa. No segundo caso sobressaem-se Armando Corrêa da Silva,
Milton Santos, Antonio Carlos Robert Moraes e Ruy Moreira.
Resta saber se conseguiremos, Samarone e eu, objetivar/exteriorizar nossos
aprendizados oriundos da socialidade que travamos nos espaços que dividimos ou se não
passarão de elucubrações metafísicas. Só o tempo dirá... Ou será o espaço?