o que a ciência é incapaz de ler

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  • 7/29/2019 O que a cincia incapaz de ler

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    O que a cincia incapaz de ler

    Por Patrcia Veras 1

    Disponvel em: Lacan Cotidiano N 253

    O livro Autisme: chacun son genome de Franois Ansermet e Ariane Giacobino um convite reflexo e ao debate, aos cientistas de uma maneira geral, mas, sobretudo, queles quedesenvolvem pesquisa, na atualidade, utilizando ferramentas que denominamos em larga escalaou micas.

    At o sculo passado, diante de um desafio para identificar as causas que regem determinadofenmeno, cientistas utilizavam ferramentas que levavam a respostas fragmentadas e

    reducionistas. Mais recentemente, as ferramentas chamadas de estudos em larga escala oumicas passaram a ser utilizadas. Essas ferramentas propem analisar de forma ampla osmecanismos que governam um dado fenmeno, pois permitem de forma sincronizada aidentificao do conjunto completo ou parcial dos genes, dos genes expressos, da porocodificadora dos genes, das protenas e dos metablitos, fornecendo informaes,respectivamente, do genoma, do transcriptoma, do exoma, do proteoma, do metabolomapresentes em clulas, ou conjunto de clulas, ou mesmo em organismos mais complexos. Dessaforma, estudos utilizando essas ferramentas micas se propem a abrir novos horizontes, poisa partir deles novas hipteses podem ser estabelecidas, novos caminhos podem ser abertos parasoluo de questes cientficas antigas. Alm do mais, o conjunto volumoso de informaesgerado utilizando essas ferramentas, vem permitindo elevar o conhecimento cientfico a um outropatamar de complexidade. A partir da identificao dos elementos, sejam eles, genes, protenas,metablitos, vem sendo possvel estabelecer hipteses sobre a interao entre eles, formando vias

    e redes antes desconhecidas, no contexto daquele fenmeno.

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    Para lidar com esses conjuntos deinformaes e comprovar os resultados obtidosnos estudos de micas, novas ferramentas e

    tecnologias cada vez mais caras e poderosas passaram a ser utilizadas. Assim, as anlises micasnecessitam de um suporte cada vez mais avanado e oneroso, para compreenso da interaoentre os elementos identificados (genes, protenas, metablitos, etc). Uma das estratgiasutilizadas amplamente, consiste nos programas computacionais que, a partir de algortmicoscomplexos baseados em probabilidade, permitem a organizao dos elementos em vias e redes.Para lidar com o todo complexo, passa a ser necessrio a multidisciplinaridade. Cientistas dediferentes reas, como bilogos, matemticos e fsicos passaram a trabalhar em conjunto. Dessaforma, entramos na era da biologia dos sistemas que permite a identificao, no apenas de viasbioqumicas de mo nica, mas redes de elementos que se entrelaam. O verdadeiro significadodas redes geradas, utilizando esses programas, ainda precisa ser melhor esclarecido. No momentoatual, no temos nem maturidade, nem massa crtica suficientes para avaliar se, com essesconjuntos imensos de informaes, estamos gerando conhecimentos verdadeiros, teis, ougastando milhes de dlares, euros e reais em tecnologia, para obter pouca ou nenhumainformao. certo, porm, que o pensamento cientfico da biologia de sistemas, cujos elementosse organizam em redes, passou a fazer parte da realidade, acompanhando o que vem acontecendoem outros nveis da sociedade. Estamos reaprendendo a depurar, analisar e criticar essa forma deconhecimento, mas a largada para uma nova era do saber cientfico foi dada e no acredito quetenha retorno. Uma nova era do conhecimento cientfico comeou e a comunidade cientfica estainda dividida entre estes dois paradigmas.

    Como pesquisadora na rea de biologia celular da interao parasito-hospedeiro, utilizeiferramentas em larga escala para responder a questes que relato brevemente. H vrios anos,juntamente com a equipe que coordeno, desenvolvemos um modelo de estudo que consiste emavaliar a resposta de clulas de defesa de organismos, macrfagos, infeco por um tipo depatgeno, Leishmania. Os macrfagos presentes na pele de indivduos so responsveis porinteragir e internalizar esse patgeno. No interior dos macrfagos, o parasita se multiplicapodendo causar leses na pele do hospedeiro humano. Para compreender os mecanismos quedeterminam a resposta dos macrfagos infeco por Leishmania, utilizamos ferramentas emlarga escala, respectivamente a anlise do transcriptoma e proteoma das clulas infectadas.Interessantemente, nesses estudos, observamos que a resposta fenotpica dos macrfagos infeco por Leishmaniafoi similar. No entanto, a cada experimento, foi identificado um conjuntodistinto de genes e protenas. Uma explicao para esse achado que, apesar da resposta

    fenotpica ser semelhante, em nvel molecular, os macrfagos podem ativar vias compostas degenes ou protenas distintas, porm envolvidas na mesma funo, com o mesmo desfecho final.Imagino que, em estudos envolvendo organismos inteiros, visando entender mecanismos

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    envolvidos no desencadeamento de doenas complexas como o autismo, pouco provvel quesejam identificados genes ou conjunto de genes que estejam envolvidos na determinao dosdiferentes tipos de manifestaes clnicas relacionadas a essa doena. Nesse sentido, estouinteiramente de acordo com os questionamentos dos autores de Autisme chacun son genome.

    Assim, em resumo, a complexidade dos sistemas biolgicos, mesmo quando se estuda sistemassimples, como uma clula interagindo com um patgeno, parece-me difcil de ser desvendado deforma completa. Existem fatores que nos escapam e mesmo conhecendo os elementos que oscompem, montar o quebra-cabea do funcionamento do conjunto desses elementos parece-mealm das ferramentas que dispomos atualmente.

    Os resultados obtidos em estudos utilizando micas, em um primeiro momento, nos aguam acuriosidade e nos fascinam. Em um segundo momento, nos fazem refletir e criticar os pontospositivos e negativos da grande quantidade de dados obtidos com esses estudos. Assim, quando

    se utiliza uma ferramenta em larga escala, ou mesmo mais de uma ao mesmo tempo, com oobjetivo de desvendar o que no sabemos sobre um fenmeno, geramos um conjunto imenso deinformaes, que necessita ser depurado, analisado e validado sabendo-se que toda tentativa dese conhecer o todo destinada ao fracasso e no faz parte de uma cincia digna de seu nome.Ademais, isso nos permite constatar que o conhecimento do todo est longe de ser alcanado.

    Finalizo com questionamentos que se impem: Quando utilizamos modelos de estudosimplificados como este da interao Leishmania macrfago, mostramos que muito maisimportante do que identificar elementos, representados por genes e protenas, analisar oconjunto dos dados, ou seja, o fentipo, as vias e redes. Assim, questiono como seria possvel que,em estudos utilizando indivduos humanos, seramos capazes de identificar um gene ou conjunto

    de genes comuns para explicar o desencadeamento do autismo? Porque buscar uma causa bsicacomum, que seja apenas gentica, quando o que importa o individuo na sua complexidade?

    A biologia moderna prope tratamentos individualizados inclusive para doenas como cncer.Porque ento, na neuropsiquiatria os cientistas esto se fechando em busca de elementos nicosque expliquem o todo e todos os indivduos acometidos? Quando partimos para estudar doenashumanas, devemos estar atentos para evitar tomar a parte pelo todo, sobretudo quando o todono possvel de ser alcanado. Essa afirmao se impe, ainda mais quando sabemos que cadaser humano est sujeito, em permanncia, a mudanas e contingncias, que o saber cientficoainda no se encontra em condies de mensurar.

    1 Patrcia S T Veras trabalha no Laboratrio de Patologia e Biointerveno de Salvador Bahia, Brasil. A partir do encontro organizado pela ACF-Normandie na la Sala de Honra daPrefeitura de Evreux, ela faz alguns comentrios inspirados pela sua leitura do livro Autisme: chacun son gnome de Franois Ansermet e Ariane

    Giacobino (Navarin / Le Champ freudien, 2012).

    Esta obra foi fixada como "Livro da semana" pela revistaLe Cercle Psy

    http://le-cercle-psy.scienceshumaines.com/autisme-a-chacun-son-genome_sh_29856http://le-cercle-psy.scienceshumaines.com/autisme-a-chacun-son-genome_sh_29856http://le-cercle-psy.scienceshumaines.com/autisme-a-chacun-son-genome_sh_29856http://le-cercle-psy.scienceshumaines.com/autisme-a-chacun-son-genome_sh_29856