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O Progresso e Correio do Estado na construção do imaginário político-social sobre a criação de Mato Grosso do Sul. VERA LUCIA FURLANETTO 1 MARCELO DA SILVA PEREIRA 2 INTRODUÇÃO O estado de Mato Grosso do Sul foi criado no ano de 1977, por meio da Lei Complementar nº 31 de 11 de outubro, a partir da divisão do então estado de Mato Grosso. Nesse período o Brasil passava por um regime de exceção sob o controle da Ditadura Militar implantada por meio de um golpe no ano de 1964. Diante de uma conjuntura em que a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido político governista, perdia espaço no Senado e na Câmara dos Deputados para a oposição, representada pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro), o então presidente da República e general Ernesto Geisel (1974-1977) direcionava as eleições indiretas para governadores a fim de favorecer a ARENA. Sob esse contexto, Geisel e suas “manobras golpistas permitiram que a ARENA continuasse no comando do Congresso e do Senado com ampla maioria” (AMARILHA, 2006). Uma das estratégias de Geisel e da ARENA foi o aumento do número de senadores nas regiões onde a sigla tinha maioria partidária e a redução do campo de atuação da oposição. Ernesto Geisel promoveu a união do estado da Guanabara ao Rio de Janeiro e criou o estado de Mato Grosso do Sul. Assim garantira um número suficiente de deputados federais e senadores, de modo a fortalecer a ARENA. Amarilha (2006) e Bittar (1999) afirmam que o processo de criação de Mato Grosso do Sul deu-se a partir de uma ação do governo federal, por meio do Presidente Geisel, sem participação da população regional. Para abonar essa ação unilateral Geisel proferiu um discurso, em Brasília, para enaltecer Mato Grosso do Sul, no dia onze de outubro de 1977, quando da assinatura da lei que deu existência ao novo estado. O presidente respaldou-se na política de desenvolvimento geoestratégico do Brasil e que era um anseio da população da região. Como decorrência, era necessário viabilizá-lo, pois 1 Mestranda do curso de História na Universidade Federal da Grande Dourados. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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O Progresso e Correio do Estado na construção do imaginário político-social sobre

a criação de Mato Grosso do Sul.

VERA LUCIA FURLANETTO1

MARCELO DA SILVA PEREIRA2

INTRODUÇÃO

O estado de Mato Grosso do Sul foi criado no ano de 1977, por meio da Lei

Complementar nº 31 de 11 de outubro, a partir da divisão do então estado de Mato Grosso.

Nesse período o Brasil passava por um regime de exceção sob o controle da Ditadura Militar

implantada por meio de um golpe no ano de 1964.

Diante de uma conjuntura em que a ARENA (Aliança Renovadora Nacional), partido

político governista, perdia espaço no Senado e na Câmara dos Deputados para a oposição,

representada pelo MDB (Movimento Democrático Brasileiro), o então presidente da

República e general Ernesto Geisel (1974-1977) direcionava as eleições indiretas para

governadores a fim de favorecer a ARENA. Sob esse contexto, Geisel e suas “manobras

golpistas permitiram que a ARENA continuasse no comando do Congresso e do Senado com

ampla maioria” (AMARILHA, 2006).

Uma das estratégias de Geisel e da ARENA foi o aumento do número de senadores

nas regiões onde a sigla tinha maioria partidária e a redução do campo de atuação da

oposição. Ernesto Geisel promoveu a união do estado da Guanabara ao Rio de Janeiro e criou

o estado de Mato Grosso do Sul. Assim garantira um número suficiente de deputados federais

e senadores, de modo a fortalecer a ARENA.

Amarilha (2006) e Bittar (1999) afirmam que o processo de criação de Mato Grosso

do Sul deu-se a partir de uma ação do governo federal, por meio do Presidente Geisel, sem

participação da população regional. Para abonar essa ação unilateral Geisel proferiu um

discurso, em Brasília, para enaltecer Mato Grosso do Sul, no dia onze de outubro de 1977,

quando da assinatura da lei que deu existência ao novo estado.

O presidente respaldou-se na política de desenvolvimento geoestratégico do Brasil e

que era um anseio da população da região. Como decorrência, era necessário viabilizá-lo, pois

1 Mestranda do curso de História na Universidade Federal da Grande Dourados. 2 Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

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“[...] a partir de hoje teremos que iniciar uma longa tarefa, para, com base nesse dispositivo

legal, dar efetiva existência ao novo Estado” (CORREIO DO ESTADO, 12.out.1977).

Segundo Geisel, a tarefa era de desenvolver tanto Mato Grosso do Sul como Mato

Grosso. Para tal, seria necessário associar suas riquezas e potencialidades com o trabalho e a

capacidade da população. Assim, o povo e os governos federal e estaduais deveriam estar

unidos para a região atingir pleno desenvolvimento. Refere-se Geisel: “Vamos construir

praticamente dois estados: Mato Grosso do Sul [...] e Mato Grosso do Norte [...] um desafio,

um estímulo para que lutemos [...] Nessa luta estaremos todos juntos [...] usando as

potencialidades do território e a capacidade da população” (CORREIO DO ESTADO,

12.out.1977).

Apesar de evocar a luta conjunta do povo e à sua capacidade de transformação na

construção do novo estado, verifica-se que o ato legal de divisão surpreendeu até mesmo os

políticos envolvidos no processo divisionista.

Com a criação do Estado de Mato Grosso do Sul, historiadores como Queiroz (2006) e

Bittar (2009) destacam em seus escritos, as tensões políticas ocorridas entre as regiões norte e

sul do antigo Estado de Mato Grosso, relacionadas ao divisionismo e às disputas econômicas,

identitárias e de poder.

Dessa maneira, é primordial compreender as vozes políticas enunciadas nas matérias

jornalísticas dos dois jornais, tendo em vista que apesar dos princípios de imparcialidade e

objetividade serem discursos preconizados pelo jornalismo, o que aparece nas notícias é a

concepção de sociedade que atende à linha editorial do jornal e aos vínculos políticos e

institucionais dos proprietários.

A mídia impõe-se como porta-voz de uma fala autorizada, obedecendo à ordem do

discurso e, portanto, é preciso atentar para a falsa ideia de pretensa neutralidade da imprensa e

explanar as ideologias que tais discursos portam. Os meios de comunicação devem ser

compreendidos como difusores de ideologias a serviço dos interesses do grupo ao qual

pertencem (LUCA, 2005).

A escolha dos jornais obedeceu ao critério da época da fundação, ocorrida antes da

divisão do estado, em um período que a imprensa diária em Mato Grosso representava as

ideologias de partidos políticos e eram por eles financiados (SCWHENGBER, 2005).

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Avaliar essa relação entre políticos e imprensa possibilita esmiuçar as estratégias de

produção de poder simbólico e da representação com o intuito de construir o imaginário

político-social sobre a criação de Mato Grosso do Sul e da identidade sul- mato-grossense. As

vozes difundidas pelos jornais produzem estratégias e condutas sociais, que [...] “tendem a

impor uma autoridade à custa de outras, por elas menosprezadas, a legitimar um projeto

reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos as suas escolhas ou condutas”

(CHARTIER, 1988, p. 17).

Com a investigação averiguou-se a tentativa desses discursos em criar laços de

identificação coletivos ao forjar mentes e corações sul-mato-grossenses. Tendo em vista que

uma cultura nacional/regional é um discurso – um modo de construir sentidos que influencia e

organiza tanto nossas ações, quanto a concepção que temos de nós mesmos e ao produzir

sentidos sobre a região, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem identidades

(HALL, 1992, p.50-51).

Após a divisão era necessário criar uma nova comunidade imaginada, um

companheirismo entre a população do novo estado. Ou seja, transformar os mato-grossenses

em sul-mato-grossenses, pois a identidade se constitui a partir da existência de um “outro” ou

da alteridade. Tecer uma essência comum, onde todos se identificam, possibilitava aglutinar

os interesses individuais e as divergências políticas em princípios coletivos e gerais e forjar

sentimentos patrióticos de responsabilidade política para com os demais membros da

comunidade regional (ANDERSON, 1989).

Assim, ao historiador do regional cabe questionar as estruturas e os discursos que

constroem as identidades regionais.

1. O estímulo a um novo olhar sobre a divisão do Estado de Mato Grosso.

Nas leituras iniciais para realização da pesquisa desenvolvida na Iniciação Científica,

sob o título: “Os Discursos sobre a Criação de Mato Grosso do Sul e Eventos

Comemorativos”, sob orientação do professor Jérri Roberto Marin durante o período de julho

de 2014 a julho de 2015, deparei-me com o artigo do professor Paulo Roberto Cimó Queiroz,

apresentado sob a epígrafe “Mato Grosso/Mato Grosso do Sul: Divisionismo e identidades

(Um breve ensaio)”, publicado na revista Diálogos da UEM, datado de 2006.

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Queiroz delineia uma cronologia temporal ao narrar como as elites de Mato Grosso,

desde o início do século XX, forjaram uma identidade3 regional, utilizando da exaltação e

exploração da “memória local” com ajuda do Instituto Histórico de Mato Grosso, datado de

1919. Pautada nas “qualidades” do “homem” mato-grossense e nas “peculiaridades”

geográficas da região, essa elite com intuito de manter o poder e o controle político do Estado

se fortalecia ao reverter o estigma da barbárie (QUEIRÓZ, 2006).

O professor apresenta também que no mesmo espaço temporal do século XX, na

região4 sul do Estado de Mato Grosso a força das elites campo-grandenses se tornou evidente,

no campo político e econômico, conflitante com os interesses das oligarquias da capital

Cuiabá, o centro de decisões governamentais. Esses conflitos acentuaram-se nos anos de 1930

e 1932 em razão da Revolução de 30 e a Revolução Constitucional de 1932, respectivamente.

Foram dois anos de intensa e conturbada rivalidade política, no qual pela primeira vez a elite

intelectual do sul de Mato Grosso, em sua maioria campo-grandense, manifestou

publicamente e por escrito a vontade pela separação entre o sul e o norte do estado, por meio

de um movimento chamado Liga Sul-mato-grossense.

O autor demonstra ainda os contornos do esboço de uma identidade tomada como

oficial, da população do sul de Mato Grosso. O enfoque desta identidade era a opressão

sofrida pelo sul por parte do norte e, como diretriz rechaçavam-se e depreciavam-se as

características do norte e exaltavam e supervalorizavam as qualidades do sul e do povo do sul.

Na criação identitária as elites nesse momento envolveram elementos geo-históricos e

apelaram por uma tradição inventada, de maneira a opor-se o norte bárbaro ao sul civilizado.

Intuíam justificar, assim, o seu posicionamento político e sua busca pela participação no poder

3 Noção de pertencimento do indivíduo que por ser subjetivado reflete em suas ações, nos sonhos, na maneira de

entender e viver o mundo (ALBUQUERQUE JR, 1999). E também como essa mesma identidade é fluída, está

em constante mudança, não sendo fixa, nem estável, pois os indivíduos a negociam a todo o momento de acordo

com as diferentes situações (HALL, 1992). 4 Construções, mediadas por lutas simbólicas entre os sujeitos de um dado espaço, que configuram atos, práticas

e objetivos (BOURDIEU, 2011). Construções discursivas e não discursivas que objetivam a região, criam

fronteiras por mais infundadas e perversas que elas sejam e estabelecem divisões. Uma série de elementos que

estabelecem a subjetivação individual ou coletiva, que permeiam e induzem a emoções, sentimentos, sentidos,

conduzidos pelo poder-saber daqueles que em lugar de destaque a cria e dita as regras (ALBUQUERQUE JR,

1999). O regionalismo, ao inventar as regiões, forja subjetividades, fabrica a região e produz as diferenças,

trazendo-a a existência como uma região conhecida e reconhecida (ALBUQUERQUE JR, 2008).

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instituído. Contudo, os textos escritos pela Liga explicitavam a “formulação original dos

intelectuais cuiabanos” em relação à criação e divulgação de sua identidade.

Todavia, se houvera qualquer negatividade sulista, atribuía-se a culpa ao governo do

norte e seu abandono, desinteresse e hostilidade às causas e às necessidades político-

administrativas do sul, pois, a estes ficara o encargo sobre a responsabilidade de construir os

beneficiamentos locais com investimento de particulares.

A opressão do norte em relação ao sul aparece como o maior símbolo justificador da

articulação do movimento divisionista e sua luta por uma equidade que só poderia ser

verdadeira com a devida proporcionalidade entre poder político e poder econômico, conforme

defendia a Liga, sendo que, o primeiro pertencia a Cuiabá e, o segundo a Campo Grande, este

difundido como sendo o sustentáculo econômico estadual.

O professor Queiroz discute o arrefecimento e a perda de força do movimento

divisionista com o passar das décadas, desconstruindo a linha histórica que sugeria uma

continuidade entre as reivindicações da Liga sul-mato-grossense e a divisão do Estado de

Mato Grosso ocorrida em 1977, ou seja, discute o pré-determinismo naturalizado, e promove

a ruptura entre a formação de um ideário divisionista e a sua realização (op. cit.).

Pois, com a ascensão dos políticos do sul a partir de 1945 ao centro do poder

concentrado em Cuiabá, as disputas tomam outra direção, o viés partidário eleitoral, ainda que

com os mesmos agentes e os mesmos fins. Mas as elites campo-grandenses já não utilizavam

do confronto regional como estratégia política, embora esta ainda existisse.

Assim, em face da amenização dos conflitos as diferenças que opunham a população

“nortista” à população “sulista” foram minimizadas e, a homogeneidade novamente

suplantada ideariamente ao ponto de marginalizar o intento divisionista. No entanto, em 1977,

quando de fato a divisão do Estado ocorreu, foram necessários “esforços pela criação de uma

identidade sul mato-grossense, aspectos essencialmente retóricos, destinados, sobretudo a

adornar vazios discursivos de autocelebração, das elites locais, velhas e novas” (op. cit.,

p.180).

O artigo em questão enfoca também a participação da mídia imprensa, mais

precisamente o jornal Correio do Estado, como partícipe e contributo divulgador e partidário

da divisão em nome de uma pequena elite do sul.

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Admitindo que por interesses em adquirir bens simbólicos, as elites utilizam de vozes

autorizadas para manterem-se no exercício do poder, apropriam e adaptam elementos

identitários, diferenciando-os dos outros, seus opositores e, utilizando-os em momentos

estratégicos em meio a conflitos, surgiu o interesse, após a leitura do artigo acima citado de

desvendar como a divisão do Estado afetou o campo5 político na região sul de Mato Grosso.

2. Primeiros aspectos observados.

Com a pesquisa iniciada pode se afirmar que as publicações jornalísticas

manifestavam-se partidariamente em relação à divisão do estado por meio de suas matérias e

enfocavam a visão política das elites de suas regiões.

O jornal Correio do Estado, desde sua fundação, em 7 de fevereiro de 1954, tendia a

uma linha editorial que priorizava a política. Sua fundação deu-se por um grupo do sul de

Mato Grosso ligado à UDN (União Democrática Nacional) com o objetivo de difundir e

apregoar as ideias do partido e servia como instrumento de ação (SCWHENGBER, 2005).

Representou, portanto, grande força política para a UDN (União Democrática Nacional)

estadual, que tinha muitos partidários em Campo Grande. Apresentou abertamente suas

finalidades e anunciou-se como produto e esforço das contribuições espontâneas de políticos e

de militantes do partido.

O jornal obedeceu à tendência da imprensa na época do golpe de 1964, foi favorável à

instalação do regime militar autoritário. Manteve boas relações com os militares e, em 1976,

lhe foi concedido à criação da Rede Centro-Oeste de Rádio e Televisão, quando o Correio do

Estado deixou de ser apenas um jornal e passou a ser um grupo.

O Progresso, por sua vez, sediado em Dourados, é o mais antigo de Mato Grosso do

Sul em circulação ininterrupta, começou em 1920 dirigido por José dos Passos Rangel Torres,

em Ponta Porã e teve poucas edições. Por questões políticas, deixou de circular, mas, em 21

5 Lugar não necessariamente físico de lutas e conflitos com suas regras e acordos próprios nem sempre

explícitos, no qual agentes com interesses similares exercem uma função social formando um grupo que disputa

entre si, seus pares, a aquisição de bens simbólicos, de capital social e, pratica as leis específicas desse grupo e

intervém cada um a seu modo no jogo das forças publicas (BOURDIEU, 2011). A criação desses grupos ocorre

não em razão de uma ausência, mas de ocupar um lugar particular numa redistribuição do espaço social

(CERTEAU, 2002).

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de abril de 1951, por iniciativa do vereador Weimar Gonçalves Torres, voltou a ser editado

(op.cit.).

Weimar era um ativo militante político do Partido Social Democrático (PSD) sigla

partidária que representou nos cargos de vereador em Dourados e de deputado estadual e

federal. O Progresso surgiu exatamente no início de seu primeiro cargo eletivo, seguindo a

tendência da defesa política e eleitoral.

No sul de Mato Grosso, nesse período, as representações partidárias seguiam

determinada configuração: O Progresso defendia o PSD (Partido Social Democrático) e o

Correio do Estado defendia a UDN (União Democrática Nacional). Depois que Weimar

faleceu, em 1969, assumiu a direção do jornal o seu sogro Vlademiro do Amaral. Durante a

ditadura militar adequou-se à censura, ao restringir o conteúdo noticioso da imprensa e a

valorizar a economia local (op.cit.).

Algumas matérias jornalísticas de 1977, nos jornais das cidades acima citados, são

verdadeiras propagandas sobre os atos do então Presidente da Republica Ernesto Geisel,

totalmente condizentes com o período do regime militar, essas matérias representavam

também o interesse da elite política e econômica local.

Em razão de uma estratégia de Estado que tinha por objetivo tornar a divisão territorial

aceitável por toda a sociedade, as linguagens utilizadas pelos jornais e pelas autoridades

políticas, por vezes, faziam exaltações ao território a economia e a população.

Já as comemorações pela divisão territorial ficaram restritas à cidade de Campo

Grande por ter sido instituída a nova capital, um novo lugar discursivo que utilizou das

comemorações como lugares de memória, definido como “toda a unidade significativa, de

ordem material ou ideal, da qual a vontade dos homens ou o trabalho do tempo fez um

elemento simbólico do patrimônio da memória de uma comunidade qualquer” (NORA, 1993,

p.20).

Foram publicadas notícias de enaltecimento de potencialidades locais, como o

discurso de Maurício Rangel Reis. Quando em 1977, anunciou a criação do estado e previu

um futuro glorioso à nova unidade federativa: “Surge nesse dia o Estado de Mato Grosso do

Sul, forte e pujante” (CORREIO DO ESTADO, 12.out.1977).

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Esses discursos “produzem estratégias e práticas sociais, que [...] tendem a impor uma

autoridade à custa de outras, por elas menosprezadas, a legitimar um projeto reformador ou a

justificar, para os próprios indivíduos as suas escolhas ou condutas” (CHARTIER, 1988,

p.17).

As reportagens reforçam quão assertiva fora até o momento a campanha do jornal pelo

divisionismo ao elencar as potencialidades da região sul e promover ao futuro Estado de

Campo Grande e seu poder de participar e solucionar questões de ordem nacional. A fala

utilizada pelo periódico era compatível com os discursos presidenciais de pujança e de

desenvolvimento do capital típicos do período ditatorial.

3. O momento mais acirrado do conflito.

No mês de maio de setenta e sete, não havia ainda uma ação definitiva sobre a divisão

de Mato Grosso, pois a criação seria instituída por lei, assim como os demais assuntos a ele

relacionados. Dois meses após, no dia quatorze de julho as edições demonstravam

impaciência e expectativa, quando anunciou na capa “Divisão: duas horas de debates nada

decide” [...] o assessor de imprensa do Planalto do Palácio, coronel Toledo de Camargo, após

o encontro, disse que nada se decidiu (CORREIO DO ESTADO, 14 jul. 1977).

Vale dizer que as notícias atuam como o principal produto da imprensa e assumem o

sentido de comunicar e não, necessariamente, o de informar. Ou seja, carregam tendências

direcionadas, partidárias, superficiais e tendenciosas, a produção de sentidos a qual se propõe

esse diário de imprensa buscara sim impor suas posições políticas independentemente da

realidade nacional e das decisões presidenciais.

O Progresso por sua vez, fez campanha contra o nome do novo estado. Das

reportagens publicadas entre 5 e 27 de maio daquele ano a maioria mostrava o

descontentamento e os pedidos de políticos de Dourados via telegrama ao presidente da

república para reconsiderá-lo:

O diário de notícias tratou de maneira combativa a questão do nome da nova entidade

federativa, pois, não admitia de maneira alguma que se chamasse Estado de Campo Grande,

em face da forte representação simbólica que promoveria somente uma cidade da região sul.

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No dia 5 de maio, primeiro dia após a declaração presidencial sobre o nome de Campo

Grande para o novo estado O Progresso dedicou a sua primeira página para protestar. Foram

onze chamadas contrárias à designação da nova entidade federativa:

No espaço reservado, aos “Vereadores se manifestam a favor da divisão, mas não

aceitam o nome do novo estado”, foi dada a voz a quatro Vereadores: “Sultan Protesta Contra

Denominação de Estado de Campo Grande”, “Djalma Barros sugere o Plebiscito”, Celso

Amaral quer apoio das Lideranças” e “Juarez exige: Estado De Mato Grosso Do Sul”. Ao

final da coluna os dizeres aparecem com letras em negrito e maiores que as demais do texto

enfatizando a posição do jornal: “Mato Grosso do Sul e Mato Grosso do Norte é o que o povo

quer!Jamais Estado de Campo Grande”, nesse momento, falou em nome da população,

homogeneizou o conflito como sendo de entendimento geral e consenso mútuo, contudo, há

somente a fala dos políticos e do próprio periódico nessas publicações (O PROGRESSO, 5

maio, 1977).

Anis Faker, líder da Arena em Dourados, também demonstrou sua indignação;

pronunciou-se em nome de toda a região sul, conclamando para si o clamor dessas pessoas,

legitimou-se como o defensor de todas elas em razão da descendência e tradição

matogrossense, bem como das riquezas particulares da região de Dourados usurpada sempre

por Campo Grande “Estado de Campo Grande – Capital Campo Grande”.

A imprensa explorou amplamente tanto as disputas entre região sul e região norte,

assim como entre as duas cidades, Dourados e Campo Grande, em torno de quem sediaria a

nova capital, bem como qual nome a representaria simbolicamente.

Todos os telegramas e solicitações enviadas a Geisel para reconsiderar o nome do

novo estado foram reportados pelo jornal. Alguns telegramas de deputados e vereadores, do

prefeito José Elias Moreira, do vice - prefeito José Cerveira, de Lauro Machado de Souza.

Os apelos foram cheios de ódio à Campo Grande e a seus políticos, em uma contenda

contínua na tentativa de deslegitimar a nova capital e seus representantes, fiavam-se em

motivos históricos, identitários e coletivos para perpetuarem seus interesses e manterem seus

status. Nas edições seguintes, foram veiculados no dia 11 de maio mais dois telegramas, do

deputado Walter Benedito Carneiro, presidente do diretório municipal da ARENA em

Dourados.

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Caso o governo federal atendesse ao pedido de mudança de nome significaria para os

governantes vinculados a Dourados a possibilidade de legitimarem-se como verdadeiros

representantes da vontade popular, defensores da memória e da tradição, das riquezas e das

potencialidades da gente do sul e, configurarem-se apaziguadores de conflitos e reguladores

da paz. Símbolo de poder que justificava sua posição social, política e econômica como

válidas e adequadas.

Nessa intenção de reafirmação e validação política, o jornal no dia 17 de maio nomeou

os possíveis futuros representantes, do novo estado com a matéria: “Nos Bastidores Políticos

Com a divisão do Estado”.

Todavia, no primeiro semestre e, no início do segundo semestre do ano de 1977, não

houveram, dados seguros sobre a divisão de Mato Grosso divulgados por parte do governo

federal. Assim a especulação e as informações desencontradas corriam às soltas nos

periódicos. Quanto mais se aproximava a possibilidade real da divisão e da assinatura da lei

pelo presidente da república, mais intensas se apresentavam as disputas entre os diferentes

grupos jornalísticos.

O Correio do Estado desde o dia 28 de setembro publicou eventos relacionados à

concretização da divisão de Mato Grosso e criação de Mato Grosso do Sul que acorrera no dia

11 de outubro de 1977, por meio da assinatura da Lei Complementar nº 35 pelo presidente

Ernesto Geisel.

A primeira notícia sobre a real efetividade do divisionismo publicada no periódico

relatou a transformação da data de criação do novo estado em feriado municipal, por meio de

lei aprovada pelos vereadores.

A ansiedade por uma data comemorativa vai de encontro aos entendimentos de Pierre

Nora, que por sua vez, ao refletir sobre as comemorações constatou que existia uma obsessão

comemorativa que se manifestava na transformação de todas as datas históricas em eventos

comemorativos. As sociedades contemporâneas, em sua dinâmica, estão em constante ruptura

com o passado, daí a busca pela memória tornou-se uma necessidade compulsiva (NORA,

1993, p.13).

As comemorações são transformadas em eventos de grandes potenciais simbólicos

quando o Estado, as instituições e a sociedade civil repensaram o passado e o presente e

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elaboraram projetos para o futuro. Assim, os festejos cívicos tiveram pretensões

comemorativas e pedagógicas, pois criaria o sul-mato-grossense que sentiria orgulho de

nascer e pertencer ao Estado. Por assim dizer, era necessário transformar os mato-grossenses

em sul-mato-grossenses, pois a identidade se constitui a partir da existência de um “outro” ou

da alteridade.

Verifica-se que as comemorações em torno do fato da divisão\criação teve início

nessas falas do jornal, mesmo que a data elencada para a comemoração oficial fosse

provisória. Pelas matérias publicadas pode-se afirmar que a preocupação fundamental do

periódico foi a fixação da simbologia comemorativa. Estendeu-a Brasília e a considerou como

“o sonho” realizado, “Amanhã, em Campo Grande e Brasília, a grande festa da sonhada

divisão” (CORREIO DO ESTADO, 10 out. 1977) e promoveu a criação ao nascimento,

acontecimento cultural que normalmente passa pelo rito comemorativo, “Nasceu Mato Grosso

Do Sul” (CORREIO DO ESTADO, 12 out.. 1977).

O Progresso noticiou sem exaltações a assinatura da lei de criação, contudo ressaltou

o recorte temporal que criara uma nova região, apesar do sul do estado já existir a muito

tempo.

4. Considerações Finais

A divisão do estado de Mato Grosso ocorreu de maneira arbitrária, antidemocrática,

sem participação e organização de partidos políticos ou da população, no entanto, após a

divisão dois aspectos muito importantes eram necessários para convalidar e legitimar a

instituição de um novo estado - a criação de uma história e o forjar de uma identidade, que

fossem próprias, ao agora Mato Grosso do Sul.

Para tanto alguns discursos oficiais foram proferidos e divulgados por meio da mídia

jornalística impressa Correio de Estado e O Progresso, partidários da divisão do estado de

Mato Grosso, do regime militar e das políticas de Geisel, com interesse de estarem no centro

da futura capital de um novo estado, e reforçarem seu status e poder político, social e

econômico.

Tais discursos com locais de enunciação específicos tornam-se absolutamente

legítimos quando parte de partidos políticos, de governos, ministros, governadores ou o

presidente da República. São discursos de poder, pois, ambicionam impor verdades. Com

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teor ufanista e regionalista pretendiam justificar e legitimar as práticas ditatoriais do governo

da República, cooptando as elites e a população a sentimentos e responsabilidades identitários

ao Mato Grosso do Sul de maneira que os reais motivos políticos ficaram escamoteados.

Discursos, símbolos e ícones, são estratégias de poder utilizados com intuito de forjar

uma identidade regional sul-mato-grossense, criar uma comunidade imaginada, um

companheirismo entre a população do novo estado. Tecer uma essência comum, onde todos se

viam como homogêneos, possibilitava aglutinar os interesses individuais e as divergências

políticas em princípios coletivos e gerais, forjar sentimentos patrióticos de responsabilidade

política para com os demais membros da comunidade regional.

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