o professor nas polÍticas educativas contemporÂneas

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O PROFESSOR NAS POLÍTICAS EDUCATIVAS CONTEMPORÂNEAS Raquel Goulart Barreto (UERJ – [email protected] ) Bruna Sola da Silva Ramos (UERJ-UFSJ – [email protected] ) Resumo Este texto discute o alegado protagonismo do professor nas políticas educativas contemporâneas, buscando a aproximação das suas características definidoras no contexto latino- americano, em geral, e no brasileiro, em particular. Para tanto, empreende a análise crítica de discurso como alternativa teórico-metodológica, assumindo como corpus pronunciamentos de autoridades constituídas e exemplares de linguagem em circulação na mídia. Aborda questões relativas às recontextualizações das políticas educativas, focalizando o cruzamento de dois discursos associados à falta: os professores que faltam e o que falta aos professores, de modo a dimensionar as propostas de preenchimento nelas contidas, com destaque para os modos de incorporação das tecnologias de informação e comunicação (TIC). Analisa a perspectiva da “valorização” docente que, sem encontrar respaldo nas condições objetivas de trabalho e remuneração, fornece subsídios para a compreensão da imagem do professor montada pelo avesso: pelo que ele não tem. Na articulação das faltas apontadas, busca pistas para a concepção do “bom professor”, em um enredo marcado por reconfigurações sustentadas pelas TIC recontextualizadas como estratégias de substituição tecnológica, total e/ou parcial, nas políticas educativas em curso.

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O PROFESSOR NAS POLÍTICAS EDUCATIVAS CONTEMPORÂNEAS

Raquel Goulart Barreto (UERJ – [email protected])

Bruna Sola da Silva Ramos (UERJ-UFSJ – [email protected])

Resumo

Este texto discute o alegado protagonismo do professor nas políticas educativas

contemporâneas, buscando a aproximação das suas características definidoras no

contexto latino-americano, em geral, e no brasileiro, em particular. Para tanto,

empreende a análise crítica de discurso como alternativa teórico-metodológica,

assumindo como corpus pronunciamentos de autoridades constituídas e exemplares de

linguagem em circulação na mídia. Aborda questões relativas às recontextualizações das

políticas educativas, focalizando o cruzamento de dois discursos associados à falta: os

professores que faltam e o que falta aos professores, de modo a dimensionar as

propostas de preenchimento nelas contidas, com destaque para os modos de

incorporação das tecnologias de informação e comunicação (TIC). Analisa a

perspectiva da “valorização” docente que, sem encontrar respaldo nas condições

objetivas de trabalho e remuneração, fornece subsídios para a compreensão da imagem

do professor montada pelo avesso: pelo que ele não tem. Na articulação das faltas

apontadas, busca pistas para a concepção do “bom professor”, em um enredo marcado

por reconfigurações sustentadas pelas TIC recontextualizadas como estratégias de

substituição tecnológica, total e/ou parcial, nas políticas educativas em curso.

Palavras-chave: professor; tecnologias de informação e comunicação; substituição

tecnológica.

Introduzindo a proposta de aproximação

Este artigo retoma duas pesquisas: “A recontextualização das tecnologias de

informação e comunicação nas políticas de formação de professores em curso no

Brasil”1; e “O que signifixa isso?” Dos slogans às ressignificações do discurso

pedagógico contemporâneo 2. Na primeira, está em questão o conjunto das políticas de

formação de professores, com ênfase nas propostas desenvolvidas a partir de 2007. Na

1 Financiada pelo CNPq e desenvolvida no ProPEd-UERJ.2 Tese de doutoramento de Bruna Sola da Silva Ramos, orientada por Raquel Goulart Barreto.

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segunda, é focalizada a Conferência Nacional de Educação (CONAE), definida como

“um espaço democrático aberto pelo Poder Público para que todos possam participar do

desenvolvimento da Educação Nacional”3, realizada em Brasília, em março-abril de

2010. Assim, este texto está inscrito entre o contexto das políticas em geral e o

específico da CONAE, em que professores tiveram assento como delegados.

É do Documento Final da CONAE (p.77) que este texto parte para a

aproximação da centralidade atribuída aos professores:

No contexto de um sistema nacional de educação e no campo das políticas educacionais, a formação, o desenvolvimento profissional e a valorização dos/das trabalhadores/as da educação sempre estiveram de alguma forma presentes na agenda de discussão. Mas, possivelmente, em nenhum outro momento histórico tenham merecido tamanha ênfase, por parte de diferentes agentes públicos e privados, instituições, organismos nacionais, internacionais e multilaterais, como nas últimas décadas, reconhecendo o protagonismo dos/das profissionais da educação no sistema educacional. (Destaques no original).

A uma presença modalizada (“sempre” [mas] “de alguma forma”), é contraposta

(“possivelmente”, “em nenhum outro momento histórico”) a ênfase atual (situada “nas

últimas décadas”), promovida pelos mais “diferentes agentes”, abrangendo as esferas

pública e privada, em escalas diversas (“instituições, organismos nacionais,

internacionais e multilaterais”). É esta unanimidade que constitui o “protagonismo” ora

proclamado.

Afinadas com esta tendência estão, também, as declarações do recém-empossado

Ministro da Educação, Aloizio Mercadante 4. Referindo-se ao “projeto de R$ 180 mi

que levará tablets a escolas públicas”, Mercadante afirmou a uma revista de circulação

nacional 5: “vamos começar pelo professor”, prometendo “dar dispositivo somente a

escolas e professores preparados”, de modo a “evitar erros do projeto Um Computador

por Aluno”. Acrescentou que:

3 Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12422:conae-apresentacao&catid=325:conae-conferencia-nacional-de-educacao. Acesso em: 24 fev. 2012.4 Substituto de Fernando Haddad, que se afastou do cargo para concorrer à Prefeitura de São Paulo.5 Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/vamos-comecar-pelo-professor-diz-mercadante-sobre-projeto-de-r-180-milhoes-que-levara-tablets-a-escolas-publicas. Acesso em: 16 fev. 2012.

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Estamos disponibilizando nos tablets o Portal do Professor, onde há uma série de elementos para preparar as aulas – já temos disponibilizadas 15.000 aulas. Além disso, vamos oferecer a partir de abril, através de um convênio com a fundação Lemann, todas as aulas de matemática, física, biologia e química do professor Khan. Esse material será traduzido para o português: tanto os exercícios quanto as aulas, que são reconhecidas como conteúdos de excelência, vão subsidiar o processo de preparação pedagógica.

Em outras palavras, a preparação dos professores para a utilização dos tablets

tem, como núcleo, não a abertura de diferentes modos de acesso às informações

disponíveis, mas a tradução de aulas (“reconhecidas como conteúdos de excelência”);

não os processos, mas os produtos. Nas palavras de Evangelista e Shiroma (2007), em

artigo que discute o professor como “protagonista e obstáculo da reforma”, a

perspectiva adotada na política de profissionalização não se caracteriza “por seu

potencial de elevar a qualificação dos professores, mas pela possibilidade objetiva de

instituir novas formas de controle sobre os docentes” (p. 533).

Assim, para introduzir a análise das relações acima, o lugar atribuído aos

professores é aqui representado pela escolha lexical “protagonista”, entre aspas, como

alternativa para remeter às duas faces dos discursos que a ele se referem: de um lado,

como os “responsáveis” pelas reformas pretendidas e, portanto, aqueles a quem imputar

a culpa em caso de fracasso; e, de outro, aqueles a quem fornecer instruções precisas

para evitar que o fracasso ocorra.

O “protagonista” no enredo: questões de recontextualização

Abordar o alardeado protagonismo docente implica considerar o contexto mais

amplo da sua inscrição: a configuração atual do modo de produção capitalista, no

enredo do que está posto como “sociedade global da informação” (MATTELART,

2005). No esforço de síntese aqui empreendido, entre as características definidoras deste

contexto, merece destaque a compressão tempo-espaço (HARVEY, 1993), com as suas

implicações variadas no que tange à elaboração dos atuais discursos sobre o professor e

sobre o trabalho docente.

Visando a caracterizar os aspectos constitutivos do novo contexto, na condição

de enredo em que se move o protagonista, recorremos a Fairclough (2003):

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O espaço global é representado como uma entidade […] o presente simples se torna “indeterminado”, representando passado e futuro apenas como datas pré e pós [...] A modalidade das representações acerca dos processos e relações no tempo-espaço global é epistêmica e categoricamente assertiva: afirmações sem qualquer modalização representam os processos como sendo reais, acontecendo [...] Os atores nos processos materiais são não-humanos, inanimados (“novas tecnologias”, “novos mercados”) ou nominalizados (“mudança”), e o ator no processo verbal é “este novo mundo”. O espaço-tempo global é representado como processos sem agenciamento humano (p.6-7).

Nos termos das tendências verificadas na cena discursiva global, a questão

básica a ser enfrentada envolve um paradoxo: ser protagonista nos processos acima

caracterizados, nos quais a perspectiva hegemônica concebe deslocamentos radicais na

posição de agente. Por outro lado, é inconcebível o traçado de uma simples reta para

ligar as tendências globais aos diversos contextos locais, apagando as condições

concretas em que o protagonista está inscrito. Para uma aproximação das últimas,

propomos a abordagem de uma cadeia de recontextualizações, no sentido que lhes é

atribuído por Fairclough (2006), abrangendo as dimensões de estrutura e escala.

Em analisando as novas condições de produção do trabalho docente, a

intervenção dos atores “não-humanos, inanimados” é indissociável da incorporação

educacional das tecnologias de informação e comunicação (TIC), a partir de um modo

específico de pensá-las e utilizá-las. Sublinhando que a sua própria designação aponta

para o seu pertencimento a áreas não educacionais, a recontextualização das TIC, em

termos de estrutura, tem sustentado simplificações diversas. Ainda que elas sejam

objeto de análise na próxima seção, é fundamental antecipar que, no embate entre

concepções antagônicas, tem prevalecido a de que as TIC constituem uma espécie de

fórmula mágica para resolver os mais diversos problemas educacionais.

Do ponto de vista de escala, as TIC têm integrado o conjunto das

condicionalidades impostas pelos organismos internacionais aos países “em

desenvolvimento”. A partir do argumento em favor de diminuir os custos da educação,

têm sido alocadas prioritariamente na educação fundamental e de formação de

professores, alterando substantivamente as condições do trabalho docente.

Entretanto, também é uma simplificação supor que a recontextualização das TIC

seja idêntica nos países em desenvolvimento. Ainda que as condicionalidades sejam

determinantes da sua incorporação, o mesmo não pode ser dito em relação aos

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diferentes aspectos que a constituem. Retomando a formulação do conceito em jogo, é

preciso considerar a advertência do seu autor, no sentido de pensar a recontextualização

como “um fenômeno complexo, envolvendo, para além de uma simples colonização,

um processo de apropriação cujas características e resultados dependem das

circunstâncias concretas dos diversos contextos” (FAIRCLOUGH, 2006, p.101).

Assim, até mesmo as condicionalidades são “traduzidas e adaptadas” no enredo

das formulações locais, compreendendo a dimensão material e a simbólica das disputas

por hegemonia. Concretamente, captar este movimento “requer a consideração histórica

do bloco de poder, da correlação de forças entre as classes e do lugar do Estado na

garantia dos imperativos capitalistas” (BARRETO; LEHER, 2008, p.423). Logo, é

possível detectar aproximações e distanciamentos nos contextos latino-americanos.

Entre as aproximações, este texto destaca a precarização do trabalho docente,

nas suas relações com a aplicação da lógica do mercado: “quanto maior a presença da

tecnologia, menor a necessidade do trabalho humano, bem como maior a subordinação

real do trabalho ao capital e aos que se valem das tecnologias para ampliar as formas de

controle do trabalho e dos seus produtos” (BARRETO, 2010, p. 1315). Neste

movimento, é fortalecida a racionalidade instrumental, que resulta na perda da

perspectiva da totalidade do trabalho docente, com o privilégio dos meios, em

detrimento das mediações.

A mesma lógica tem presidido o que Saviani (2007, p.1253) denominou

“pedagogia de resultados”, promovendo o apagamento dos processos, uma vez que toda

a atenção tem sido deslocada para os produtos. É a recontextualização das TIC na

cultura do desempenho, baseada em competências e centrada na avaliação dos

resultados, cujo horizonte tem sido identificado a padrões de qualidade. Considerando a

importância de destacar a fragmentação presente nas publicações mais recentes dos

organismos internacionais, vale citar como exemplo o escopo da produção da UNESCO

(2009), intitulada “Padrões de competências em TIC para professores: marco político”.

Entre os muitos pressupostos detectáveis na construção, merece destaque o de

que existam clareza e consenso acerca do que já foi designado como trabalho docente,

expressão que, contemporaneamente, tem tido a sua parte substantiva relexicalizada

como “atividade”, “tarefa” etc. (BARRETO, 2004). Em outras palavras, há uma série de

simplificações de raiz neste esvaziamento, caracterizado pela hipertrofia da dimensão

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técnica, ora sustentando a imagem reconfigurada do dito “bom professor”. É como se

houvesse uma fórmula mágica que independesse das condições objetivas dos contextos

de atuação, podendo ser aplicada a todos eles e tendo sua eficácia atestada por produtos

específicos.

Entre os professores que faltam e o que falta aos professores

No Brasil, tem sido constante a referência ao professor no que pode ser

caracterizado como “discurso da falta”. De um lado, diz respeito aos professores que

faltam. De outro, ao que falta aos professores (BARRETO, 2009). Na articulação dos

dois, esta seção pretende abordar as propostas de preenchimento das faltas detectadas,

tendo como denominador comum alternativas de substituição tecnológica.

No que tange à escassez de profissionais na área 6 (os professores que faltam),

duas frentes têm sido assumidas. Uma equivale à tentativa de tornar a profissão mais

atraente. Com este objetivo, foram desenvolvidas, em 2010, “campanhas de

valorização” veiculadas na mídia em geral e até em horário nobre da TV aberta,

promovidas pelo Programa de Desenvolvimento da Educação (PDE) que, incorporando

as metas da organização de empresários Todos pela Educação7 (TPE), remete ao plano

do Compromisso de Todos pela Educação, constituindo “um grande guarda-chuva que

abriga praticamente todos os programas em desenvolvimento pelo MEC” (SAVIANI,

2007, p.1233).

Em comum, as aludidas campanhas de valorização do professor têm uma

exortação final: “Seja um professor!” Para chegar a esta culminância, variam as

6 "Sem um número suficiente de professores capacitados e profissionalmente motivados, corremos o risco de ficar aquém da promessa feita há dez anos no Fórum Mundial de Educação para as crianças e a juventude: educação para todos até 2015. Isto porque os professores são o coração do sistema de ensino", declararam os chefes de agências [da ONU]. Disponível em: http://noticias.terra.com.br/educacao/noticias/0,,OI4719853-EI8266,00-Escassez+de+professores+ameaca+metas+mundiais+para+educacao.html. Veiculado em: 06 out. 2010.7 “O Todos Pela Educação é um movimento financiado exclusivamente pela iniciativa privada, que congrega sociedade civil organizada, educadores e gestores públicos que tem como objetivo contribuir para que o Brasil garanta a todas as crianças e jovens o direito à Educação Básica de qualidade.” Disponível em: http://www.todospelaeducacao.org.br/institucional/quem-somos/. Acesso em: 02 fev. 2012.

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focalizações e os argumentos, podendo estar inscritos no cenário internacional ou no

contexto escolar, como nas duas peças publicitárias a seguir.

A primeira, com pouco mais de um minuto, traz uma sequência de imagens de

sete diferentes países: Inglaterra, Finlândia, Alemanha, Coréia do Sul, Espanha,

Holanda e França. À medida que elas são apresentadas, a voz do locutor anuncia:

“Alguns países mostraram uma grande capacidade de se desenvolver social e

economicamente nos últimos 30 anos. Nós perguntamos a pessoas desses países: “Qual

é, na sua opinião, o profissional responsável pelo desenvolvimento?” Sete pessoas,

representando aqueles países, respondem em suas respectivas línguas: “O professor”.

A segunda, em trinta segundos, mostra alunos sorridentes e muito motivados em

experimentos laboratoriais, em atividades coletivas no computador e em atitudes

participativas na sala de aula. A voz ao fundo interroga: “Onde você trabalha as pessoas

sempre te dão as opiniões mais honestas? Fazem perguntas que ninguém pensaria fazer?

Você consegue debater com gente que realmente quer formar sua própria opinião?

“Trabalhe com as pessoas mais interessantes do mundo”.

Entre a metonímia na interlocução simulada da primeira peça e a romantização

da segunda, palavras e imagens convergem, reforçam-se mutuamente, no sentido de

uma imagem absolutamente positiva da profissão, sob os mais diversos pontos de vista.

O mesmo não caberia na fala do então Ministro Fernando Haddad, na sessão de

encerramento da CONAE:

(...) imagina um jovem de dezoito anos, ele está naquela velha encruzilhada que nós conhecemos: o que é que eu vou ser? Às vezes esse jovem tem a vocação para o magistério, às vezes ele quer ser professor. Aí ele vê as condições de trabalho, de vida, de alguém que está na carreira e diz: “poxa, eu gostaria tanto de ser professor, mas eu vou optar por outra profissão porque eu vou ter filho para sustentar, vou ter família. Isso não pode estar certo! (...) Nós só vamos atrair a juventude para a carreira se nós sinalizarmos que essa é a carreira mais importante do país”. (Destaque nossos).

Da exortação à restrição, o movimento é marcado pela inevitável consideração

das condições concretas do exercício da profissão, exigindo melhorar o status da

docência e a posição competitiva da carreira no mercado de trabalho. Em ambos os

casos, está em xeque o piso salarial que, objeto de uma longa história de luta, teve, em

fevereiro último, o que se pode chamar de aumento real, sendo 22,22% maior do que o

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de 2011. Entretanto, dois aspectos precisam ser levados em conta. O primeiro é o fato

de que este piso continua sendo o mais baixo entre os profissionais de nível superior:

são R$ 1.451 para uma carga horária de 40 horas semanais. O segundo é a alegação da

impossibilidade de arcar com este aumento, feita por vários governadores e prefeitos.

Em outras palavras, se o aumento pode ser considerado real na medida em que não

repõe apenas a inflação, pode ser apenas virtual, submetido a batalhas jurídicas para a

sua efetivação. Como é possível verificar, esta primeira dimensão da tentativa de

equacionamento da escassez de profissionais (professores que faltam) ainda não conta

com resultados muito significativos.

A outra frente de ação política tem correspondido à multiplicação e à

flexibilização dos cursos de formação oferecidos, através da sua oferta na modalidade à

distância (EAD). Esta estratégia, analisada no artigo intitulado “A formação de

professores a distância como estratégia de expansão do ensino superior” (BARRETO,

2010), é aqui retomada em termos de concepção e consequências. Neste sentido, é

importante sublinhar que o Plano Nacional de Educação (PNE) da última década (Lei

10.172/2001) dedicou todo um capítulo a uma relação invertida: “Educação a distância

e tecnologias educacionais”, em consonância com a Secretaria de Educação a Distância

(SEED), criada como agente de inovação tecnológica nos processos de ensino e

aprendizagem, fomentando a incorporação das TIC e das técnicas de educação a

distância aos métodos didático-pedagógicos.

Também é relevante demarcar que, ao mesmo tempo em que o PNE restringiu a

recontextualização das TIC, limitando-as à condição de suportes para a veiculação de

materiais ditos autoinstrucionais, não deixou de remeter à sua concepção como

estratégia de “universalização e democratização do ensino”, chegando a mencionar a

“construção de um novo paradigma da educação a distância” (p.42). A partir do

pressuposto de que “quanto mais meios disponíveis, menos mediações são necessárias”,

previu, ainda, entre os “Objetivos e Metas”: “Iniciar, logo após a aprovação do Plano, a

oferta de cursos a distância, em nível superior, especialmente na área de formação de

professores para a educação básica” (p.44).

Assim, a EAD viveu um verdadeiro boom no início do século XXI. “Centenas de

novos cursos a distância são criados em ritmo meteórico, em uma desenfreada corrida

por novas oportunidades de negócios” (BARRETO; LEHER, 2008, p.433). A ênfase foi

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deslocada para a multiplicação dos polos de formação de professores: uma produção em

série pensada como resultado do acesso às TIC, considerando os materiais de ensino

veiculados através delas, com a eliminação de mediações pedagógicas historicamente

constitutivas do processo de formação (BARRETO, 2008, p.930). Quanto ao argumento

central para a sua legitimação, a “democratização” do acesso ao ensino superior foi

posta como expressão de valor incontestável, em um discurso circunscrito à

racionalidade instrumental.

Em consequência desta incorporação das TIC para a EAD, como estratégia de

expansão do ensino superior, o Censo de Educação Superior de 2009 8 demonstra que a

graduação em Pedagogia nesta modalidade já conta com mais alunos do que a

presencial. Mesmo sem pretender, neste espaço, discutir os diversos aspectos da EAD, é

relevante pontuar que a estratégia não foi desenvolvida, em caráter excepcional, para

profissionais da educação em exercício em áreas em que inexistem cursos presenciais,

ou “sob rígida regulamentação, acompanhamento e avaliação”, como propugnou a

CONAE (2010, p.83).

Nos termos em que concebida, a EAD operou uma substituição tecnológica total,

com a retirada dos sujeitos do centro da cena para o centramento das TIC. Desde o seu

início, a posição de sujeito da formulação foi atribuída a “um sistema tecnológico”

(BARRETO, 2008). A radicalização, expressa sintaticamente, não teve apenas

consequências mensuráveis através de análises quantitativas. Uma cadeia de

simplificações resultou em uma proposta de preenchimento da falta detectada pela

aposta na distância.

Há, ainda, o discurso do que falta aos professores, que tende a ser “formulado a

partir de um viés abstracionista, concebendo escolas e professores em geral e em termos

negativos, deixando de considerá-los nas inter-relações concretas que constituem as

práticas pedagógicas desenvolvidas cotidianamente” (BARRETO, 2009, p.179). Assim,

em vez de se aproximar de um diagnóstico das condições de produção do trabalho

docente, nas suas múltiplas dimensões, assume perspectiva reducionista, retomando

velhas máximas da racionalidade técnica que, articuladas à sofisticação tecnológica

presente, configura uma forma de neotecnicismo. Em outras palavras, para suprir o que

falta aos professores, as propostas de preenchimento passam pela utilização intensiva

8 Resumo Técnico disponível em: http://www.anaceu.org.br/conteudo/noticias/resumo_tecnico2009.pdf. Acesso em: 12 mar. 2012.

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das TIC em um conjunto multiplicável de novidades postas como necessariamente

positivas.

Como na entrevista de Mercadante acerca dos tablets, citada na primeira seção, a

incorporação das TIC não tende aproximar as atividades de professores e alunos das

socialmente desenvolvidas, agregando valor ao trabalho docente pelo salto qualitativo

representado pelas possibilidades de acesso a diferentes fontes e a diversos modos de

lidar com elas. Mesmo os mais modernos dispositivos podem ser postos como materiais

didáticos mais robustos, em função apenas e tão somente da sua capacidade de

armazenar mais conteúdos. Neste sentido, trata-se de uma forma de manter os sujeitos

na cena discursiva da sala de aula, mas como receptores da tradução de aulas de

excelência. Trata-se, portanto, de substituição tecnológica parcial como proposta de

preenchimento do que falta aos professores, envolvendo o fornecimento de kits

tecnológicos acompanhados de manuais de uso.

Neste ponto, é importante pontuar a substituição tecnológica como projeção

apresentada por Schaff (1995, p.72-3), prevendo “uma revolução total no sistema de

ensino”, através da didática propiciada pelos “professores autômatos”, como “produto

secundário de algo que é muito mais importante neste campo: a tecnologia informática”.

Ou seja, no limite, trata-se de um modo de pensar e usar as TIC como forma de ruptura

com a educação historicamente conhecida, a partir da hipertrofia da dimensão técnica.

São as TIC concebidas como tendo origem em uma revolução e remetendo a outras,

como se pudessem ser objetivadas fora das relações que são engendradas, como

determinantes de processos em que também estão enredadas.

Em síntese, no que se refere ao professor, entre “protagonista” e “autômato”, o

cruzamento dos discursos acerca dos “professores que faltam” e do que “falta aos

professores” tem legitimado a substituição tecnológica e sugerido, como horizonte, uma

imagem cada vez mais frequente, construída a partir da sua adjetivação: o “bom

professor”.

O “protagonista” que não fala: é falado

A menção ao professor adjetivado como “bom” coloca em cena o “mau”: o que

não se desejaria formar ou ter atuando. O “bom professor”, que no tecnicismo dos anos

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1970 foi tema de livros e propostas de ensino, retorna revigorado, em versão

multimidiática. É um slogan repetido quase à exaustão em campanha publicitária do

Movimento Todos pela Educação, veiculada em rede nacional, em que uma melodia

simples embala uma série de imagens desenhadas a giz em um quadro-negro, simulando

movimentos de descoberta, conquista e criação:

A base de toda conquista é o professor/A fonte de sabedoria, o professor/Em cada descoberta, cada invenção/Todo bom começo tem um bom professor/No trilho de uma ferrovia (um bom professor)/No bisturi da cirurgia (um bom professor)/No tijolo, na olaria, no arranque do motor/Tudo que se cria tem um bom professor/No sonho que se realiza (um bom professor)/Cada nova ideia tem um professor/O que se aprende, o que se ensina (um professor)/Uma lição de vida, uma lição de amor/Na nota de uma partitura, no projeto de arquitetura/Em toda teoria, tudo que se inicia/Todo bom começo tem um bom professor/Tem um bom professor.

Com a aspiração de um “bom começo” para esta análise e um “bom final” para

este texto, a pretensão aqui é sistematizar algumas pistas para a concepção do “bom

professor”. Entre elas, merecem destaque os termos de uma lógica aparentemente

simples: para a educação seja “de qualidade”, outro slogan reiterado, o professor tem

que ser “bom”. Como este raciocínio corre o risco da circularidade, o enredo da

reconfiguração das práticas pedagógicas pela recontextualização das TIC é um lugar

privilegiado para pensar este “bom professor” como “protagonista”.

No enredo aqui caracterizado, o “protagonista” tem sido pensado a partir do

avesso: pelo que ele não tem em relação ao “bom professor” imaginado. Apesar da

polissemia da expressão, é razoável supor que esta imagem seja produzida com base nos

princípios neotecnicistas ora hegemônicos, podendo ser sintetizados na sua inscrição

“competente” na cadeia formada por: currículo centralizado (parâmetros e diretrizes

curriculares), uso intensivo de tecnologias (programas específicos como “tradução”) e

avaliação unificada (BARRETO, 2004). O “bom professor” é o que produz bons

resultados nesta última, a despeito de quaisquer condições e circunstâncias

desfavoráveis.

Neste enredo, ao professor, com ou sem adjetivação, é atribuído um lugar

contraditório. Ele é o “protagonista” que não fala. É falado. Programas e pacotes são

endereçados a ele, sem que ele sequer seja ouvido, sem que possa se manifestar de

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forma sistemática acerca do seu processo de trabalho: como finalidade, matéria a ser

trabalhada e instrumental/meios para tanto.

São muitas as falas sobre o “protagonista”. São muito escassas as suas

possibilidades de socializar reflexões. Mesmo nos fóruns chamados “democráticos”, o

argumento numérico e a sua condição de “não-especialista” restringem a sua fala.

Mesmo com delegação para falar por seus pares, seu espaço é diminuto, tanto no que

diz respeito ao tempo de fala quanto no que se refere à possibilidade de, em sendo

ouvido, interferir de fato nos encaminhamentos.

Voltando à CONAE como cena discursiva, recuperamos a fala da moderadora

do Colóquio que discutia o eixo Formação dos Profissionais da Educação e Educação a

Distância:

[Moderadora do colóquio]: O que nós podemos acomodar para não descumprir o regimento, não sermos antipáticos (...) é um minuto para fazer uma pergunta e não sei se alguém já notou no plenário, eu sou absolutamente rigorosa, um minuto eu vou ficar aqui dizendo “tempo, tempo, tempo, tempo” e deu dez e meia nós vamos embora e o que pode acontecer é nós ficarmos no prejuízo de não ouvirmos as considerações finais, que eu acho importantíssimo pra continuar fundamentando nosso debate na plenária. Um minuto para essas pessoas que já estão aqui e ponto. Pode ser assim? Mas é um minuto, um minuto. Eu só quero deixar claro, companheiras e companheiros, é que, se ultrapassou um minuto, nós vamos pedir a essa pessoa o direito da fala.

Um minuto foi o tempo regulamentado para que os professores e demais

representantes da sociedade civil pudessem fazer perguntas aos convidados. Mais ainda,

como o Documento Final produzido foi muito semelhante ao que lhe serviu de

Referência, fica a questão de até onde a participação dos delegados ultrapassou a

legitimação do que já estava posto.

Se o professor é o protagonista que não fala no enredo oficial, é preciso

considerar o que ele fala em situações menos assimétricas, como as redes sociais. No

Facebook, por exemplo, circulam reivindicações como: “Professor não quer tablet,

bônus, apito ou espelhinho! Professor quer salário digno!” À paródia da marchinha de

carnaval de autoria de Haroldo Lobo, é acrescentado o grito do que o estranho

“protagonista” sente falta. Outros gritos há. No seu conjunto, é possível ler pedidos de

respeito que talvez nem parecessem tão necessários a meros coadjuvantes.

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Referências Bibliográficas

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