o processo de globalização e a sua influência no direito interno - frank larrúbia shih [artigo]

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1 O PROCESSO DE GLOBALIZAÇÃO E A SUA INFLUÊNCIA NO DIREITO INTERNO FRANK LARRÚBIA SHIH Procurador Federal Procurador-Chefe da Seção de Consultoria/Petrópolis/RJ Ex-Professor da Faculdade Moraes Júnior/RJ Professor na Pós-Graduação da Universidade Estácio de Sá/RJ Professor na Pós-Graduação da Universidade Gama Filho/RJ Membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pública Especialista em Direito do Estado e Administrativo “...uma realidade cruel que, espero, venha a ser modificada pelas novas gerações, para conseguirmos dirigir nossos destinos com total independência, pois só dessa forma poderemos alcançar um futuro mais digno para nossos descendentes.” BARBOSA LIMA SOBRINHO ( Do artigo “O Encanto das Serpentes”, publicada no Jornal do Brasil em 26/09/1999) Sumário : 1 - Introdução; 2- Conceito, origens e evolução da globalização; 3 -Neoliberalismo e as transformações nos Estados Nacionais; 4 - Os Blocos Regionais; 5 - A Globalização e Seu Impacto no Direito Interno; 6 –Conclusão . 1 - INTRODUÇÃO Globalização é palavra insistente que permeia nosso cotidiano, dando à alguns a falsa impressão de que seja um fenômeno com origem na atualidade. Sempre associada à evolução da informática e a nova dimensão do capitalismo, o processo globalizante é assunto mergulhado em profunda controvérsia, pois se afigura poderoso instrumento de modificações nas sociedades, em escala planetária, sendo alvo, por isso mesmo, das mais apocalípticas críticas. Sem a pretensão de esgotar a matéria, até porque inconclusos os debates sobre globalização, nosso âmbito de apreciação está em demonstrar como esse fenômeno afeta o direito interno, em especial na sua produção normativa, pelo que propomos à comunidade jurídica uma classificação para os níveis de influência e uma reflexão acerca da função ordenadora do direito, que atualmente está redefinida para uma nova dimensão, ou seja, a função ordenadora expletiva do direito.

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    O PROCESSO DE GLOBALIZAO E A SUA INFLUNCIA NO DIREITO INTERNO

    FRANK LARRBIA SHIH

    Procurador Federal Procurador-Chefe da Seo de Consultoria/Petrpolis/RJ

    Ex-Professor da Faculdade Moraes Jnior/RJ Professor na Ps-Graduao da Universidade Estcio de S/RJ Professor na Ps-Graduao da Universidade Gama Filho/RJ

    Membro do Instituto Brasileiro de Advocacia Pblica Especialista em Direito do Estado e Administrativo

    ...uma realidade cruel que, espero, venha a ser modificada pelas novas geraes, para conseguirmos dirigir nossos destinos com total independncia, pois s dessa forma poderemos alcanar um futuro mais digno para nossos descendentes. BARBOSA LIMA SOBRINHO ( Do artigo O Encanto das Serpentes, publicada no Jornal do Brasil em 26/09/1999)

    Sumrio: 1 - Introduo; 2- Conceito, origens e evoluo da globalizao; 3 -Neoliberalismo e as transformaes nos Estados Nacionais; 4 - Os Blocos Regionais; 5 - A Globalizao e Seu Impacto no Direito Interno; 6 Concluso.

    1 - INTRODUO

    Globalizao palavra insistente que permeia nosso cotidiano, dando alguns a falsa impresso de que seja um fenmeno com origem na atualidade. Sempre associada evoluo da informtica e a nova dimenso do capitalismo, o processo globalizante assunto mergulhado em profunda controvrsia, pois se afigura poderoso instrumento de modificaes nas sociedades, em escala planetria, sendo alvo, por isso mesmo, das mais apocalpticas crticas.

    Sem a pretenso de esgotar a matria, at porque inconclusos

    os debates sobre globalizao, nosso mbito de apreciao est em demonstrar como esse fenmeno afeta o direito interno, em especial na sua produo normativa, pelo que propomos comunidade jurdica uma classificao para os nveis de influncia e uma reflexo acerca da funo ordenadora do direito, que atualmente est redefinida para uma nova dimenso, ou seja, a funo ordenadora expletiva do direito.

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    2 - CONCEITO, ORIGEM E EVOLUO DA GLOBALIZAO

    Na rdua tarefa de conceituar globalizao, percebe-se que sua definio est contaminada por vrios fatores de ordem histrica, poltica, econmica e social, o que impede uma conceituao unnime.

    Contudo, um ncleo comum desaponta globalizao como um

    processo de integrao mundial, em que o espao planetrio adquire unidade , traduzida numa unificao nos diversos setores, especialmente da economia, mas que imprevisveis as suas consequncias na sua plenitude.

    Muito divergente quanto ao exato momento em que o mundo

    comeou a ficar globalizado, mas certo que o processo de globalizao no to recente como geralmente se pensa.

    Para MAGNOLI1, o referido processo foi deflagrado com o

    advento das grandes navegaes europias dos sculos XV e XVI, decorrente de um prisma de objetivos econmicos, onde a doutrina mercantilista j preconizava a interferncia governamental na economia, proliferao de monoplios comerciais, acmulo de riquezas (metais e pedras preciosas), e um primitivo, porm incipiente relacionamento integrado entre o Estado e a economia.

    No curso natural da histria, a poltica mercantilista logo cedeu

    ao liberalismo econmico, na escola clssica de Adam Smith, triunfada pela publicao imortal de A Riqueza das Naes (1776), passando consagrao princpios como a anlise de valores, diviso de trabalho, dos lucros, dos preos, renda da terra e teoria sobre crescimento econmico e aplicao de capitais.

    A Revoluo Industrial que inseminou o capitalismo industrial e

    financeiro intensificou com mais profundidade e alcance a integrao da economia internacional, sendo digno de nota o perodo fordista.

    Todavia, a Grande Depresso de 1929 resultou numa sria

    advertncia de que os pilares do capitalismo no eram imunes catstrofes financeiras, abrindo espao ao amadurecimento de vrias idias revolucionrias (Marx) e a criao do denominado Welfare State (Estado do bem-estar), como proteo social para superar a difcil conjuntura da poca.

    A reestruturao econmica dos pases aps a Segunda guerra

    mundial e a criao do sistema Bretton Woods2, assim como a instituio de instrumentos de polticas monetrias dos pases ricos FMI e BIRD3 -

    1 MAGNOLI, Demtrio. Globalizao, Estado Nacional e Espao Mundial. So Paulo, Moderna,1997. 2 A Conferncia de Bretton Woods (1944) institucionalizou um sistema internacional de cmbio baseado no dlar. Estava formada a ordem internacional de padres monetrios. 3 O Fundo Monetrio Internacional (FMI) e o Banco Internacional de Reconstruo e Desenvolvimento (BIRD) so instrumentos de polticas monetrias de atuao tcnica, com objetivo voltado para acompanhamento dos investimentos e suas aplicaes em vrias partes do mundo, mas que atrelou o desenvolvimento dos pases do terceiro mundo uma dependncia financeira crescente.

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    consolidou a rpida expanso da evoluo e estabilidade do intercmbio mundial de mercadorias e fluxos de investimentos, sendo que as polticas de cmbio passaram dominao dos setes maiores pases industrializados, o G 7 (EUA, Japo, Alemanha, Gr-Bretanha, Frana,Itlia e Canad).

    Atualmente, a globalizao um fenmeno resultante de trs

    foras poderosas: a) revoluo tecnolgica (informtica); b) formao de blocos regionais; c) conglomerados financeiros mundiais, cuja atuao conjunta inaugurou mais essa nova etapa no processo de globalizao, denominada Terceira Revoluo Industrial ou Revoluo Tcnico-Cientfica.

    3 - NEOLIBERALISMO E SUAS TRANSFORMAES NOS ESTADOS SOCIAIS.

    O neoliberalismo surgiu como corrente de pensamento

    contraposta ao intervencionismo estatal de inspirao keynesiana e ganhou flego a partir da dcada de 1980, liderada pelo economista americano Milton Friedman, que preconiza as seguintes mudanas de base:

    - desregulamentao da economia - privatizao do setor empresarial do Estado - liberao de mercados - reduo do dficit pblico - controle da inflao - corte nas despesas sociais

    A queda do Muro de Berlim (1989) e o colapso da Unio Sovitica sinalizaram como signos de confirmao da respeitabilidade corrente neoliberal para as decises-chave da economia de um Estado, sendo histrica a observao de Margareth Thatcher4, que assim anunciou:

    O novo trabalhismo britnico compreende o que foi o socialismo e

    porque no funcionou. Compreende que, de alguma forma, preciso criar riquezas antes de distribu-las.

    A imposio crescente do neoliberalismo e a sua austeridade

    econmica conferiu um novo perfil na transformao dos Estados Nacionais, pois a noo de soberania e nao sofreram forte reviso desde ento, em que as polticas sociais dos Estados ficaram rigidamente vinculadas sorte da estabilidade da economia, agora capitaneada pelo poder do mercado financeiro, dinmico e especulativo, aos perigos do capital voltil.5

    A ordem constitucional remodelada para o desempenho do seu

    novo papel, ou seja, a legitimao da hegemonia do capital, dando origem a

    4 Citado por Octvio Ianni, In A Era do Globalismo, 3 ed., Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1997. 5 Predomina, atualmente, um dinmico fluxo de investimentos em que o dinheiro aplicado a curto prazo com juros altos e riscos menores em favor do investidor estrangeiro. O sistema internacional de informtica e de comunicao 24h possibilita a retirada de montanhas extraordinrias de investimentos em questo de segundos, passando esse capital voltil ou capital motel a ser um problema global na economia dos pases.

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    chamada constituio progressista, com foros de dinamismo, veiculada no somente manuteno da ordem capitalista, mas tambm garantir a plena operacionalidade do poder detido pelas classes dominantes.6

    No magistrio autorizado de EROS ROBERTO GRAU, as normas

    programticas da constituio acabam por encerrar um mito, na medida em que a ideologia constitucional fica comprometida pelas foras econmicas de atuao junto ao legislador ordinrio, enfatizando que

    Ademais anotei em outra ocasio o modo de produo social globalizado dominante, alm de conduzir no apenas perda de importncia dos conceitos de pas e nao, mas tambm ao comprometimento da noo de Estado, nos coloca diante do desafio, enunciado por Darhrendorf, da quadratura do crculo entre crescimento econmico (criao de riqueza), sociedade civil (coeso social) e liberdade poltica: como harmonizar esses valores no clima do mercado global?7

    Portanto, a despeito da dimenso positiva que se possa extrair

    favorvel ao processo de globalizao, parece indene de dvida que o Estado do bem-estar, Welfare State , est sendo triturado pela engrenagem da mquina econmica, com movimento nefasto na transformao dos estados nacionais contemporneos.

    Um dos exemplos mais recentes que podemos citar a crise na

    Argentina. No Jornal O Globo de 19/05/20018, vislumbra-se exatamente o confronto globalizao versus poltica social:

    Aps reduzir o temor do mercado financeiro com o anncio de uma reestruturao de parte de sua dvida externa, o governo argentino volta a enfrentar as consequncias de uma profunda crise social e poltica, que poderia afetar a incipiente recuperao da confiana nos mercados. Ontem, enquanto a taxa de risco do pas recuava para 960 pontos (9,6%) depois de alcanar nveis de at 13% h dez dias a Argentina foi cenrio de vrios protestos, organizados por grupos de desempregados e aposentados, que exigem a liberao de novos subsdios do Estado e a renncia do presidente De La Ra.

    A afetao no se restringe a situaes pontuais. Outra face de

    difcil resoluo tem sido o confronto desenvolvimento versus proteo ambiental, valores de base constitucional, porm contrapostos. A nossa atual constituio no autoriza o Direito de Entorno9 na concepo de VALENZUELA,

    6 Ver, por exemplo, as Emendas Constitucionais n. 07/95, 20/98 e 30/2000. A primeira permite a navegao de cabotagem s empresas estrangeiras em guas nacionais; a segunda fez ampla reforma na previdncia social , em processo de adequao poltica econmica do Estado e a ltima, em que foram mudadas as regras para o pagamento dos precatrios, conferindo indiscutvel vantagem ao devedor, ou seja, o Governo. 7 A Ordem Econmica na Constituio de 1988. 6 ed., Malheiros, So Paulo, 2001, p.40. 8 Figueiredo, J. O outro lado do risco Argentina. Jornal o Globo. Rio de Janeiro, 19 de maio de 2001. Economia, p.21. 9 O jurista chileno Rafael Valenzuela props a denominao Derecho del Entorno, como conjunto de normas jurdicas capazes de produzir efeitos vantajosos ou prejudiciais ao meio ambiente. Seria, em sntese, uma autorizao normativa para, em certos casos, haver ofensa velada ao meio ambiente. Tal posio desautorizada no direito ptrio, ao teor do art. 225, da Lex Magna.

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    mas a realidade vivente demonstra o poderio do poder econmico (desenvolvimento) reinante sobre os valores de interesse pblico. Exemplo recente tem sido a questo denominada A maldio do amianto, em que vrios empregados e toda uma regio de moradores prximos s fbricas esto padecendo de asbestose ou cncer no pulmo, tendo o amianto sido proibido por diversos pases. As multinacionais, por outro lado, faturaram a cifra de US$ 27 bilhes no ano 2000, e fomentam intensa publicidade e defesa jurdica em favor da produo do amianto (Revista poca. Semanal. Rio de Janeiro, ed. Globo, n 152, 16 abr. 2001, p.84-91.)

    Todo esse cenrio atual conducente certeza que de que a

    estabilidade das instituies sociais e governamentais e as suas transformaes esto profundamente vinculadas ao processo globalizante, em todas as suas dimenses e efeitos.

    4 - OS BLOCOS REGIONAIS

    A formao de blocos regionais constitui um fator expressivo de influncia no direito interno dos pases participantes. Embora alguns autores tenham na regionalizao uma tendncia oposta da globalizao10, parece mais correta consider-los como processos distintos que, na verdade se complementam na evoluo econmica atual.

    Seja como for, a investigao dos pontos de influncia passa

    necessariamente pela compreenso das espcies de tratados econmicos, porque a magnitude da influncia depende do alcance das disposies comuns que os pases participantes ajustarem.

    Observe-se, por exemplo, a zona de livre comrcio (ou zona

    franca). Em regra, est circunscrita apenas ao mbito comercial e no impede que os pases participantes tenham intercmbio com outros pases no-participantes. Seu propsito a reduo ou eliminao de taxas alfandegrias que incidem sobre as mercadorias dentro do bloco11. Se houver a existncia de Tarifa Externa Comunitria (TEC), ento o caso de Unio Aduaneira12, mais protetiva contra a concorrncia de empresas externas ao bloco.

    O fator de influncia no ordenamento jurdico interno mais

    sensvel nas reas comercial e tributria, nas hipteses de zona de livre comrcio e unio aduaneira. Digo, ento, que o fator de influncia mnimo.

    10 Vale dizer, a formao de blocos teria uma tendncia oposta a de expanso e unificao da economia mundial. 11 o caso do North American Free Trade Agreement NAFTA. Mais recente, est a participao do Brasil na Associao de Livre Comrcio das Amricas ALCA (ou FTAA). Trata-se de um processo mais amplo de integrao das Amricas (Norte, Central e Sul), visando a hegemonia e fortalecimento do bloco (em especial os EUA), frente ao crescimento da integrao europia. 12 A Unio Aduaneira tambm restrita rea comercial, mas seu propsito afigura-se mais audacioso porque pressupe a eliminao das restries alfandegrias e a fixao de uma taxa externa comum que imposta s mercadorias provenientes de pases fora do bloco.

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    J no Mercado Comum , temos uma extenso do tratado de unio aduaneira, sendo assegurada com mais intensidade a livre circulao de pessoas, servios, mercadorias e capitais, havendo integrao nas reas de legislao comercial, cvel, ambiental, processual, financeira e at educacional. Aqui o fator de influncia mdio.

    Exemplo o Decreto 2.626 de 15 de junho de de 1998, que promulgou o Protocolo de Medidas Cautelares, concludo em Ouro Preto em 16.12.1994. Em anexo ao decreto que promulgou o protocolo, observa-se o seguinte: ..Considerando que o Tratado de Assuno, firmado em 26 de maro de 1991 estabelece o compromisso dos Estados Partes de harmonizar suas legislaes nas reas pertinentes; Reafirmando a vontade dos Estados Partes de acordar solues jurdicas comuns para o fortalecimento do processo de integrao; Convencidos da importncia e da necessidade de oferecer ao setor privado dos Estados Partes, um quadro de segurana jurdica que garanta solues justas s controvrsias privadas e torne vivel a cooperao cautelar entre os Estados Partes do Tratado Assuno, acordam..13

    Finalmente, em nvel mais elevado est a Unio Econmica e

    Monetria, tratado econmico cujo nico exemplo atual a Unio Europia (UE), derivada do Tratado de Maastricht (1992). Neste caso, a integrao muito intensa, pois preconiza integridade econmica, unificao poltica (parlamento nico), unidade de poltica monetria, taxa de cmbio, de moeda (euro), banco central nico (Banco Central Europeu BCE), com slida integrao tambm da poltica comercial externa, de legislao interna e de oramentos comuns. Nesta hiptese, o fator de influncia no direito interno se faz muito intenso, em repercusses mais amplas que a do mercado comum ou da unio aduaneira, sujeitando o peculiar modo de ser do Estado14 s feies de um bloco unificado. Portanto, o fator de influncia mximo.

    No incluo nesta minha classificao as chamadas reas de

    integrao por investimento , porque so reas formadas por laos de interesses econmicos sem, contudo, haver a formalizao de tratados formao de blocos entre os pases integrantes. o caso da Bacia do Pacfico , onde esto sediados os Tigres Asiticos15.

    A formao de blocos regionais, portanto, integram o prprio

    processo de globalizao econmica, porque no outra coisa seno uma

    13 Figuram, ainda, como exemplos: Protocolo para solues de controvrsias; Protocolo Braslia; Protocolo de cooperao jurisdicional em matria civil, comercial, trabalhista e administrativa; Protocolo de Las Lenas; Protocolo sobre jurisdio internacional em matria contratual; Protocolo sobre Responsabilidade Civil Emergente de acidentes de trnsito entre os Estados partes do Mercosul e outros. 14 Trata-se de verdadeira engenharia constitucional, no dizer de Giovanni Sartori. 15 O surgimento das reas de integrao por investimento tem sua explicao na cultura dos povos asiticos, movidos pelo hbito de trabalho intenso, com aspecto de militarizao, intensa explorao da fora de trabalho e legislao trabalhista franciscana, aliados a uma agressiva poltica d e diminuio de impostos e favorecimentos s multinacionais. Atualmente, integram os tigres asiticos a Coria do Sul, Hong Kong, Taiwan, Singapura, Indonsia, Malsia e Tailndia, sendo que a sua maior concorrente a China. Por esta razo, a Bacia do Pacfico recebeu ajuda macia dos Estados Unidos para o seu desenvolvimento, para que ficasse afastada a possibilidade de influncia da China Comunista na rea de interesse americano.

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    estrutura orgnica dentro da economia mundial, com capacidade de influncia no direito interno de cada pas, cujo grau e intensidade de influncia est diretamente associado ao modelo de regionalizao adotado.

    por esta razo, inclusive, que no estudo de Direito

    Internacional Econmico se aborda atualmente a expresso supraconstitucionalidade do mercado econmico, em referncia situao em que os pases participantes dos blocos econmicos declinam gradativamente de sua soberania (competncia e jurisdio) em favor de uma constitucionalidade maior, disciplinadora dos movimentos de mercado, econmico e de investimento.

    5 - A GLOBALIZAO E SEUS IMPACTOS NO DIREITO INTERNO.

    O fenmeno globalizante uma fora dinmica que atua em mltiplas direes e sem pedir licena invade e modifica os aspectos polticos, econmicos, sociais e culturais dos pases.

    No item anterior, particularizei os graus de influncia que os

    blocos regionais inserem no direito interno de cada pas integrante. Trata-se de uma situao que permite perfeita visualizao da correspondncia causal entre globalizao e a mudana no direito domstico.

    Porm, nem sempre assim. A complexidade do processo de

    globalizao produz implicaes capilares a ponto do despercebimento. O desemprego, por exemplo, o impacto econmico e social mais gritante da globalizao, estando diretamente relacionados entre si. Isto porque o desemprego provocado pela exigncia de reduzir custos e potencializar a produtividade, imposta pela competividade acirrada do novo mercado global, ou seja, as empresas precisam cortar custos, aumentar seus ndices de automao, o que provoca sem dvida o desaparecimento dos postos de trabalho, sem que os novos empregos da inteligncia intensiva16 revertam essa situao.

    O novo mercado de trabalho tende a no absorver os excludos, as camadas menos favorecidas, portadoras de baixa instruo escolar e pouca qualificao, uma vez que os empregos emergentes exigem alto grau de qualificao: nada pode garantir o emprego, a no ser a competncia do empregado (Cf. CLEUCILIZ MAGALHES SANTANA, In A Globalizao. Ed. Valer, Manaus, 1999, p.79).

    A questo que ora se impe saber se esse impacto econmico

    e social seria hbil, de alguma forma, a produzir mudanas de ordem legislativa no direito interno, hiptese em que teramos um processo indireto de mutao legislativa, decorrente do fenmeno da globalizao.

    16 Diz-se inteligncia intensiva a qualificao exigida nos novos postos de trabalho gerados pelo setor de informtica

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    Neste ponto de exame, cabe aferio do seguinte exemplo: desde 1994 o Brasil vem apresentando acentuada taxa de desemprego17, justamente no perodo em que se intensificou a desregulamentao da economia, privatizaes e adeso ao processo de globalizao financeira internacional, sendo peculiar a arguta observao do professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, IVO LESBAUPIN, no sentido de que

    ..Quatro anos depois, o Brasil um pas imerso numa grave crise econmica, em pleno processo recessivo, submetido diretamente ao controle do Fundo Monetrio Internacional (FMI), tendo privatizado quase todas as suas empresas estatais, inclusive a Vale do Rio Doce, tendo perdido grande parte de suas reservas cambiais, com nvel de desemprego alarmante e crescente, com uma evidente queda de renda salarial mdia, e com acentuada deteriorao dos servios pblicos de sade, educao, de assistncia, de previdncia, de moradia..18

    Paralelo a esses acontecimentos, veio a edio da Lei n

    8.900/94, que dispe sobre o benefcio do seguro-desemprego , alterando a Lei n 7.998/90, de modo a lhe dar redao mais flexvel diante do crescente desemprego decorrente da influncia da globalizao. Observa-se, na lei alteradora, o aumento do perodo de benefcio (de 4 para 5 meses), assim como o perodo aquisitivo deixou de ser rgido (16 meses) para ser flexvel, a critrio do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador CODEFAT.

    Essas modificaes so indcios inelidveis de que o direito ptrio

    sofreu mudana por fora do processo de globalizao, ainda que de forma sutil e indireta.

    A noo de fonte material do direito dada por NORBERTO

    BOBBIO 19 redefinida pela grandeza e especialidade da fonte, no mais ficando a produo normativa ao livre desgnio do legislador, nas suas apreciaes valorativas e sociais. ele, agora, refm de fatos intransponveis no meio social, sempre na retaguarda dos acontecimentos, sendo que sua produo normativa serve precipuamente para preencher ou adequar o ordenamento jurdico, em um processo de conformao, legitimao e hegemonia das foras do capital, o que denomino de funo ordenadora expletiva do direito20.

    No ramo do direito administrativo, por exemplo, verifica-se

    muito intensa a funo ordenadora expletiva do direito. A recente Lei de Responsabilidade Fiscal e o novo regramento da Administrao Pblica Consensual, as agncias reguladoras e executivas, organizaes sociais de colaborao administrativa, audincias pblicas e a arbitragem nos contratos 17 De 1989 a 1994 a Taxa de Desemprego aberto subiu de 3.4 para 5.1, segundo Fonte do IBGE e IPEA 18 In O Desmonte da Nao. 2 ed., Ed. Vozes, Petrpolis, 1999, p.07. 19 v. Teoria do Ordenamento Jurdico. 10 o ed. Unb, Braslia, 1997, P.45 20 Laborei essa denominao funo ordenadora expletiva do direito como meio didtico e distintivo do critrio material de produo da norma jurdica, tendo em vista a especialidade da fonte material e a extrema vinculao do legislador aos fatos, em um processo predominante de conformao, hegemonia e legitimao do direito s foras econmicas.

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    administrativos encontram seus paralelos nas premissas neoliberais de reduo do dficit pblico, desregulamentao da economia e das privatizaes dos setores empresariais do Estado, em uma demonstrao cristalina de como o processo de globalizao provoca mutaes no direito interno. Nesta seara, DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO refere-se ao polgono de mobilidades21 a que se sujeitam as transformaes atuais na sociedade:

    A administrao Pblica deve mudar porque o Estado est se transformando, por sua vez, pressionado pelas mudanas na sociedade. Isso ocorre no Brasil e no mundo; o fenmeno global embora com intensidade e ritmos diferentes, conforme insero de cada pas no fluxo da civilizao ocidental. Da ser inevitvel a necessidade de conhecer as tendncias em curso para a boa escolha de alternativas de adaptao, em busca de respostas eficientes.22

    de clareza solar a contnua influncia do processo de

    globalizao econmica direta ou indiretamente no direito interno. Todavia, preciso ter em conta que o prisma da funo do direito na sociedade, vale dizer, a sua funo pacificadora (controle social)23 fica seriamente comprometida quando exerce a sua funo ordenadora expletiva.

    Isto porque o direito passa cumplicidade e servio de

    interesses que recrudescem a diviso social sob a forma da carncia social e da elevao dos privilgios dos dominantes.

    No caso do Brasil, o neoliberalismo significa levar ao extremo nossa forma social, isto , a polarizao da sociedade entre a carncia e o privilgio, a excluso econmica e sociopoltica das camadas populares e, sob os efeitos do desemprego, a desorganizao e a despolitizao da sociedade anteriormente organizada em movimentos sociais e populares, aumentando o bloqueio construo da cidadania como criao e garantia de direitos...Percebe-se, portanto, que a incluso econmica e a incluso poltica de toda a populao afastada porque julgada impossvel para a governabilidade. O significado desse fatalismo econmico e poltico bvio: a igualdade econmica (ou a justia social) e a liberdade poltica (ou a cidadania democrtica) esto descartadas. O que poderia ser mais adequado a uma sociedade como a nossa? Como se v, no h o que comemorar.24

    Para PHILIPPE PARAIRE, autor do livro Le village monde et son

    chteau, essai contre le FMI, l`OMC et la Banque Mondiale, Le Temps des

    21 Seria a mobilidade da informao, de produo, financeira e social. 22 Cf. Diogo de Figueiredo Moreira Neto, In Mutaes de Direito Administrativo. 2 ed., Renovar, So Paulo, 2001, p. 37. 23 Cf. Ada Pellegrini Grinover, et alii. In Teoria Geral do Processo. 17 ed., Malheiros, So Paulo, 2001, p.19. 24 CHAUI, Marilena. In Brasil: mito fundador e sociedade autoritria. Ed. Fundao Perseu Abramo, So Paulo, 2000, p.94-95. A notvel professora da USP anota ainda que a atual racionalidade do mercado capitalista substituiu o Estado do bem-estar pela sociedade do bem-estar, desobrigando o Estado de lidar com o problema da excluso e da incluso dos ricos e pobres, pois a excluso de ambos desestabiliza os governos e a incluso de ambos impossvel.

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    Cerises (1995), o capitalismo ultraliberal no cria seus coveiros. Cava ele mesmo a sua sepultura.25

    Conjugando esse entendimento, o processo de globalizao afeta

    o direito interno de forma induvidosa, mas a produo normativa que se deriva dessa influncia no significa em nenhum momento na pacificao social, podendo atuar at mesmo como propulsora de conflitos no meio social26

    6 - CONCLUSO

    O processo de globalizao no um fenmeno recente, mas teve sua intensificao na atualidade por fora da revoluo tecnolgica, pela formao dos blocos regionais e os conglomerados financeiros mundiais, inaugurando a Terceira Revoluo Industrial.

    O neoliberalismo provocou profundas mudanas nos Estados

    Nacionais, passando ao centro das preocupaes como conciliar os efeitos das foras econmicas com as necessidades das polticas sociais dos Estados.

    A formao dos blocos regionais tem uma atuao direta na

    transformao do direito interno (Tratados e Protocolos), sendo que o grau dessas mudanas esto associados espcie de tratado econmico adotado, no que se denota fatores de influncia de nvel mnimo, mdio e mximo, correspondente zona de livre comrcio (ou unio aduaneira), Mercado Comum e Unio Econmica e Monetria, respectivamente.

    A globalizao tem ainda efeitos indiretos na produo do direito

    interno, atravs da funo ordenadora expletiva, que conforma, legitima e hegemoniza os valores do capitalismo, sem que esta funo exera o tradicional instrumento de controle e pacificao social que normalmente se esperava do direito de outrora. (*** Artigo publicado na Revista do Instituto Brasileiro de Advocacia Pblica IBAP, Ano VII, Ed. 15 set/2001.) 25 Em seu artigo Os Mortos-Vivos da Globalizao, Philippe Paraire anota ainda que este processo, que neste final do sculo XX corresponde a uma vitria estratgica do capitalismo em terreno socialista e no alinhado, baseia-se numa utopia assasina, a globalizao, cujas primeiras aplicaes tm um balano negativo, em todos os campos, para o futuro do planeta ( O LIVRO NEGRO DO CAPITALISMO. Ed. Record, So Paulo, 1999, p.465) 26 RICHARD SENNETT alerta que o neoliberalismo afetou profundamente a tica nas relaes de trabalho, pois valores tradicionais como carter, lealdade e compromisso no so praticveis em uma sociedade com objet ivos a curto prazo. O homem da atualidade est encurralado na pura e simples afirmao de valores (In A CORROSO DO CARTER: consequncias pessoais do trabalho no novo capitalismo. 2 tiragem, .Ed. Record, So Paulo, 1999). O Desembargador Federal NEY MOREIRA DA FONSECA, em excelente artigo intitulado Moralidade Pblica, mas nem tanto, publicada no Jornal o Globo de 08/11/1999, p. 07, detalha essa mesma deteriorao de carter na administrao pblica: .. O servidor que quiser ter acesso a um DAS tem que ser necessariamente a indicao de um poltico com mandato de um dos partidos que apiam o governo. A administrao pblica fatiada como se fosse um pernil ou mortadela a ser servida no varejo do interesse menor do clientelismo... Sabemos que de um modo geral todos tm duas ordens morais: uma da gravata para trs e outra da gravata para a frente. Na primeira, benevolente quando se julga e aos seus iguais; na segunda exigente e aplicador da lei. Os rigores da lei s na casa do inimigo, diz um velho e triste adgio popular. Curiosamente, no setor privado tem se verificado um aumento na contratao de seguro fidelidade .Este seguro tem por objetivo garantir o empregador por prejuzos que venha sofrer em consequncia de atos cometidos por seus empregados, com vnculo empregatcio. Destacam-se entre estes atos: roubo, furto, apropriao indbita ou quaisquer outros atos que provoquem danos a seu patrimnio, previstos no Cdigo Penal Brasileiro.

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    B I B L I O G R A F I A

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