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O PROBLEMA NA ˜ O É MEU Pessoas com deficiência que lidam com as incapacidades da Educação Superior Talita Nascimento

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Um livro-reportagem sobre pessoas com deficiência que lidam com as incapacidades da Educação Superior. O trabalho foi desenvolvido sob a orientação da Profª Draª Mônica Rodrigues Nunes como Projeto Experimental do curso de Jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP)

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O PROBLEMA NAO É MEU

O PROBLEMA NAO É MEU

Pessoas com defi ciência que lidam com as incapacidades da Educação Superior

Talita Nascimento

Talita Nascimento

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O PROBLEMA NA~O É MEUPessoas com deficiência que lidam com as incapacidades da Educação Superior

Talita Nascimento

UNIVERSIDADE DE SA~O PAULOESCOLA DE COMUNICAÇO~ES E ARTES

Projeto experimental em JornalismoOrientação: Profª Drª Mônica Rodrigues Nunes

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“Conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos. E é como sujeito e somente enquanto sujeito,

que o homem pode realmente conhecer.”

Paulo Freire

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Agradecimentos

VER AS PESSOAS incríveis que me acompanharam até aqui e tantas outras que cruzaram meu caminho e me ajudaram de alguma forma nessa etapa da graduação, não há como não olhar para os céus e agra-decer a Deus pelo dom da vida, pela minha família e pela oportunidade de estudar no lugar que sempre quis, com gente que me inspira tanto.

Sou grata aos meus pais que em todo tempo estiveram ao meu lado, mesmo quando meus problemas não passavam do medo do ves-tibular. Agradeço a todos os familiares que me ajudaram ao dar su-gestões para o título do livro e ao ofertar um cantinho da casa para a pobre jornalista nômade escrever. Além desses, não poderia deixar de falar do namorado que me cedeu suas habilidades com planilhas e gráficos, bem como todo o seu apoio.

Minha imensa gratidão também à minha orientadora, que com paciência e bom humor me guiou por essas páginas que se seguem de maneira leve e eficaz. Para terminar, agradeço àqueles sem os quais não haveria nada para contar. Lucas, Abigail, Brenno e todos aqueles que se dispuseram a conversar comigo e gentilmente me contar suas histórias, vocês são incríveis.

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Sumário

Introdução 81. Lucas, o cientista político 122. Breno, o mestre 283. Abigail, em obras 42

Histórico e dados 60Reflexões finais 75Bibliografia 78

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Descrição da imagem: cadeirante com mochila nas costas olha para

pista de pousos e decolagens de aviões no aeroporto de Frankfurt

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Antes de tudo, pessoas

É MELHOR SE ACOSTUMAR com a expressão “pessoas com defi-ciência”, afinal se é assim que elas desejam ser chamadas, assim o faremos quantas vezes for preciso. O advento da palavra “pessoas” quando nos referimos a esses indivíduos representa o que eles bus-cam e têm conquistado.

Dizer: “os deficientes”, ou os “portadores de necessidades espe-ciais” não satisfaz. É preciso que eles sejam identificados antes de tudo como humanos, cidadãos e protagonistas. Sim, protagonistas e não heróis ou vítimas de suas deficiências. Aliás, se for para tratá-los como vítimas que não seja em virtude de suas condições físicas, mas das incapacidades da infraestrutura do país, do estado, da cidade e, em especial nesse trabalho, das universidades.

É com esse intuito que se contam aqui as histórias de Lucas, Bren-no e Abigail e suas trajetórias na Educação com ênfase na etapa da Educação Superior. Vê-los vencendo obstáculos que não deveriam es-tar ali e que, por vezes, atrasam seus planos pelo não cumprimento do que a lei já lhes garante é uma forma de enxergar realidades diferentes e identificar pontos a corrigir em nossa mentalidade e cultura.

A intenção não é escrever histórias que tirem lágrimas dos olhos, mas que incomodem ao mesmo tempo que gerem esperança. Que incomodem por revelar que ainda há muito a se fazer no campo da acessibilidade, mas que gerem esperança à medida que se enxerguem soluções e pequenas conquistas.

Falar sobre essa minoria no ambiente universitário mostra que a luta pela inclusão no Ensino Regular não acaba no Ensino

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Fundamental ou no Ensino Médio. A reivindicação é que todos luga-res e instituições tenham suas deficiências sanadas para receber esses estudantes da maneira prevista na lei. Afinal, eles podem ser o que quiserem e frequentar o lugar que desejarem.

Além disso, ao final dos três perfis, o leitor contará com um pa-norama de dados e reflexões sobre “deficiência e educação”. Nesse último capítulo, é possível pensar sobre a questão de maneira mais ampla. Depois de ter o olhar sensibilizado pela individualidade dos personagens, talvez os dados se tornem menos frios e mais palatáveis.

Sair de casa, assumir as contas e descobrir-se são coisas comuns a alunos universitários, mas e quando esses estudantes têm limitações físicas que lhes dificultam tarefas cotidianas? Será possível experi-mentar tudo isso? Que tal passear pelas páginas que se seguem e des-cobrir as respostas para essas perguntas?

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Descrição da imagem: Lucas, de óculos escuros, sorri com celular à mão e paisagem com lago e vegetação ao fundo

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Lucas de Abreu Maia

UM RAPAZ ALTO, sorridente e de opiniões políticas contundentes. Essa é a primeira impressão que se pode ter em uma passada rápida pela pá-gina de Lucas de Abreu Maia em uma rede social. Um olhar mais aten-to nota que o brasileiro mora atualmente em San Diego, na Califórnia, Estados Unidos, e que lá faz seu doutorado na University of California.

Seus posts são de ponderações quanto à crise política que se vive no Brasil, questões da causa LGBT, opiniões sobre música e conside-rações sobre a mídia brasileira. Formado em Jornalismo pela Pontifí-cia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro, com mestrado em Ciências Políticas na Universidade de Chicago, ele diz que só apren-deu a estudar quando se mudou para o exterior. Antes de se apro-fundar na vida acadêmica, ele garante que entendia os conteúdos e realizava as avaliações com facilidade, mas sem grande dedicação. Na foto de perfil nota-se óculos escuros e o que parece ser um cão guia. Lucas tem 30 anos e é cego.

A propósito o cão da foto é, na verdade, uma cadela: Jackie, de cinco anos. Segunda guia do estudante, ela veio para substituir Annie, que agora com 13 anos está aposentada e mora com o pai de nos-so personagem. As cachorras pouco aparecem na história, mas estão presentes em todos os momentos. Ele diz até mesmo que a relação com as duas chega a ser mais intensa que um casamento qualquer: “o cão dedica sua vida a atender o cego e não há gratidão no mundo que pague isso. Ele ama o dono independentemente das injustiças que esse cometer, do mau humor, da má vontade, das irritações diárias, independentemente de qualquer coisa”, afirma Lucas.

Ao ver o quadro atual de homem bem-sucedido em que o estu-dante se encontra, pairam perguntas sobre o caminho trilhado até ali.

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Uma infância difícil? Uma vida confortável? Escolas adaptadas? Ce-gueira de nascença? Afinal, o que se esconde por trás das redes sociais ou o que ficou para fora da moldura do presente?

Uma criança de classe média alta, nascida na cidade de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, em 1986. Ele era um aluno da me-lhor escola da cidade que passava por avaliações, provas e fins de ci-clo com facilidade nos estudos. Se estudava em casa? Como já deve ter ficado subentendido: não. Era tudo bem fácil, na verdade. Em vez de revisar os conteúdos aprendidos nas aulas, o garoto preferia gastar seu tempo lendo.

Contando assim, parece um pequeno detalhe na vida de Lucas o fato do garoto ter perdido completamente a visão aos 8 anos de idade, por conta de uma doença degenerativa. Aliás, ele pouco se lembra de enxergar. Mesmo quando ainda não era completamente cego, sua visão era bem baixa (cerca de 10% do que uma pessoa que vê normalmente), de maneira que sua alfabetização se deu em casa, com a mãe usando folhas brancas e hidrocor preto para desenhar o alfabeto para o filho. É nesse formato que Lucas se lembra das letras.

As células da retina do menino não faziam mitose, processo de divisão celular que permite que elas se multipliquem e, consequen-temente, mantenham o indivíduo com a capacidade de ver. Sem esse recurso, a retina de Lucas foi aos poucos perdendo sua função, até que o garoto parou de enxergar.

O garoto não quis aprender braille enquanto ainda tinha um pou-co da visão e quando a cegueira o tomou por completo, a família aca-bou não insistindo para que ele se dedicasse à linguagem. A opção foi garantir que ele tivesse acesso ao mundo da literatura por meio de uma “ledora”.

Como tinham condições financeiras confortáveis, os pais de Lu-cas pagavam uma funcionária para ler para o menino todas as tardes, das 14h às 18h. O combinado era que juntos eles lessem principalmen-te as disciplinas escolares. Na prática, porém, o que acontecia era ou-tra coisa. Ele queria livros aleatórios, romances, aventuras, histórias que lhe estimulassem a imaginação. Na escola, já era bom aluno, tinha boas notas e desempenho exemplar. Por isso, lia através dos olhos de outra pessoa aquilo que lhe agradava.

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Cerca de seis profissionais assumiram esse posto na vida de Lucas e ele se tornava bem próximo de todas. Eram relações de afeto que excediam um contrato de prestação de serviços. A última das ledoras, Jouse, tornou-se sua amiga e ambos ainda mantêm contato mesmo com a distância. Ela leu para o garoto por três anos, deixando seu tra-balho em 2003, quando ele terminou o Ensino Médio.

Conteúdos na escolaSem braille e sem adaptações, Lucas estudava no Centro Edu-

cacional Nossa Senhora Auxiliadora, mais conhecida em sua cidade como CENSA. Essa era considerada a melhor escola da região e tam-bém a mais cara. A princípio, Rita, sua mãe, nem gostaria que o filho fosse matriculado ali, já que aquela era uma instituição de elite e ca-tólica. Acontece que o menino não se adaptou ao Ensino Infantil de outro colégio e a família, mais especificamente a mãe, cedeu.

Sem poder tomar notas e copiar da lousa, Lucas desenvolveu uma memória invejável. Aliás, ele atribui parte dessa habilidade ao fato de não ter aprendido braille: “Acho que as pessoas cegas que não sabem braile, são melhores em pensamento abstrato, porque não têm a con-cretude da letra, do papel. Tudo que eu faço na minha cabeça, tudo que eu estudei na vida até a faculdade, quando eu comecei a usar mais o computador, foi de memória”, diz.

A escola não disponibilizava nenhum tipo de recurso como to-madores de notas ou gravações de áudio das aulas. Os computadores então, tão comuns hoje em dia, nem passavam pelos planos da insti-tuição. Eram muito caros e, por isso, inviáveis.

Para disciplinas como História, Geografia, Biologia e Artes, a me-mória e o pensamento abstrato realmente eram satisfatórios, os pro-blemas apareciam quando se tratava de ortografia e números.

O braille tem importância no processo de alfabetização, pois pos-sibilita que o cego toque as palavras escritas. Dessa maneira, pode--se saber quando determinado termo se escreve com “ss” ou “ç”, por

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exemplo. Lucas tinha memória visual das letras, mas a ortografia teve de aprender por tentativas e erros. As horas diárias de leitura lhe de-ram complexidade de raciocínio e vocabulário, mas foi errando que ele aprendeu a escrever melhor.

Nesse ponto, anos mais tarde a tecnologia foi de grande valor, pois com o corretor ortográfico dos editores de texto, ficava mais fá-cil identificar grafias equivocadas. Hoje, tendo trabalhado muito anos como jornalista, Lucas acredita não ter falhas graves na escrita, se não fosse assim, teria enfrentado problemas no mercado de trabalho.

Quando se fala em números, no entanto, a questão é ainda mais complexa. Não visualizar as contas e as resoluções dos problemas de Matemática ou de Física dificulta muito a compreensão dos assun-tos. Há maneiras de adaptar os conteúdos e fazê-los mais acessíveis, possibilitando ao cego um entendimento mais claro. No entanto, nos anos de 1990, sem a lei de acessibilidade e quando a questão da in-clusão ainda era uma discussão distante, essas técnicas não estavam presentes nas escolas, nem nas mais caras.

Lucas conta que os professores de Física, Química e Matemáti-ca lhe explicavam apenas o raciocínio das matérias, sem exigir dele que as contas fossem resolvidas, pois “isso seria muito difícil”. Em um problema matemático, por exemplo, era exigido do aluno que ele des-crevesse como se resolveria a questão, mas não que se chegasse aos resultados de fato.

O estudante não culpa os professores por não terem buscado ou-tras formas de ensiná-lo, pois vê que na época isso era o melhor que os profissionais podiam fazer. Não se tratava de desinteresse por parte do corpo docente e sim de desinformação.

“Eu acho que fui colocado muito na caixinha, sabe? ‘Ah, você é cego, você nunca vai conseguir fazer matemática de cabeça mesmo, então basta você saber o raciocínio’. Eu sabia o raciocínio, ia bem nas provas e tudo certo”, conta Lucas que admite ter cultivado lacunas em seu aprendizado em virtude dessa metodologia.

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Poucos desafios, poucas dificuldades“Tem uma coisa: a escola é muito fácil se você é bom aluno, sabe?”,

a frase de Lucas deixa claro o que essa fase representou para o garoto. Sem precisar estudar em casa por ter uma boa memória e sem grandes desafios da área de matemática por falta de conhecimento dos pro-fessores, ele venceu as barreiras desta etapa sem grandes problemas.

Em um período mais rebelde, no início do Ensino Médio, o rapaz quis mudar de ares e estudar em uma instituição pública. A mãe, que desde o início não aceitava bem a ideia de uma escola tão cara, dava apoio à tentativa, mas o pai foi terminantemente contra. Lucas até mu-dou de colégio, mas para outro particular. A fase passou rapidamente e no mesmo ano, por saudade dos amigos, ele voltou ao CENSA onde estudou da Educação Infantil até o terceiro ano do Ensino Médio.

O fato de aprender nas mesmas condições que pessoas que en-xergavam, não garantiu ao estudante igualdade de oportunidades. Na época, no entanto, ele não percebia isso com nitidez, muito provavel-mente pela criação que havia recebido. Sem nunca ter sido apresenta-do a uma educação que se adaptasse às suas necessidades, o estudan-te não tinha como avaliar a forma como lhe ensinavam.

Lucas acredita que a mãe fez escolhas muito corretas para sua educação, pois em momento algum ele se sentia diferente dos demais. Hoje, com pensamento crítico e consciência política, ele entende que as condições financeiras da família lhe preservaram de enfrentar si-tuações de preconceito explícito e que isso também lhe proporcio-nou uma autoestima melhor construída, bem como a ausência de um complexo de inferioridade.

“Eu não fui criado me sentindo diferente. Isso faz com que você enfrente o mundo. A minha postura em relação aos outros é uma pos-tura diferente da maioria dos cegos. Eu nunca deixei de fazer uma coisa que eu queria fazer por ser cego”, conclui.

Essa profunda aceitação por parte da família e dos amigos na in-fância e na adolescência não deixaria de ser questionada tempos de-pois. Nesse período da vida, ele rompia barreiras, ocupava espaços da sociedade historicamente “não reservados” às pessoas com

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deficiência, mas o fazia sem entender a dimensão que essas atitudes tinham em seu contexto social. Era algo natural e instintivo, fruto não de uma reflexão profunda, mas de uma criação privilegiada.

Chegando ao fim do Ensino Médio, era hora de decidir o curso universitário. Muito jovem para tomar uma decisão “para o resto da vida”, o estudante mirou em direções diversas, esperando que alguma das flechas atingisse um alvo desejável. Na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), ele prestou Psicologia; na Pontíficia Universi-dade Católica (PUC), Relações Internacionais; e na Universidade Fe-deral do Rio de Janeiro (UFRJ), Filosofia. Aprovado nas três faculda-des, Lucas escolheu a Filosofia.

VestibularAs aprovações, no entanto, não foram suficientes para que Lucas

se sentisse contemplado pelas universidades às quais se candidatou. “Péssimo” é a palavra que usa para descrever um dos processos de vestibular pelo qual passou.

Em todas as provas ele pôde contar com uma pessoa destinada a ler as questões e escrever suas respostas, mas a qualidade desse serviço foi o que incomodou o vestibulando. Para ler as perguntas, é necessá-rio que haja preparo. Símbolos matemáticos precisam ser transmitidos com precisão aos cegos, pois se for usada a nomenclatura equivocada, toda a resolução fica prejudicada. Na PUC e na UFRJ, as experiências foram relativamente tranquilas. O maior problema aconteceu na prova da UERJ, na qual o ledor não reconhecia sinais básicos da disciplina.

A dificuldade nessa sessão da prova, não impediu que o candidato fosse aprovado, mas ficou marcada como um episódio de injustiça, pois sua deficiência ali, pela falta de acessibilidade, representou desi-gualdade para com os demais concorrentes às vagas.

Dentre os acontecimentos dos vestibulares, Lucas teve uma expe-riência que considera interessante. Como já dito, ele não havia apren-dido a resolver muitos cálculos na Educação Básica. Nos testes de

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múltipla escolha, porém, era mais fácil deduzir os resultados. Acon-tece que na UFRJ, a prova era dissertativa. Foi aí que algo diferente aconteceu. Ele recebeu exatamente metade da nota da parte de ma-temática. Como não concluiu nenhuma questão, seria impossível ti-rar a nota máxima, mas todos os raciocínios descritos pelo candidato foram considerados corretos pelos examinadores.

UFRJAo tornar-se universitário, Lucas se mudou para a capital do Rio

de Janeiro, onde já moravam seus dois irmãos. A independência não veio com a mudança, pelo contrário, levou anos para amadurecer. Uma das coisas que só foi vencida com o tempo, por exemplo, foi o medo de andar sozinho e de transporte público. No início da gra-duação, ele usava muitos táxis por conta desse receio. Mesmo sem conseguir deixar essa prática no início, o que lhe gerava incômodo, o período não ficou marcado em sua memória como uma fase difícil, mas de adaptação.

Se no âmbito da independência as coisas foram aos poucos me-lhorando, no curso de Filosofia, a dinâmica foi outra. O estudante se arrependeu da escolha. O programa exigia bastante maturidade dos alunos, já que a grade horária era montada por eles próprios. Tamanha liberdade seria incrível para Lucas nos dias de hoje, mas aos 19 anos ele se sentiu perdido.

Acontece que o excesso de opções não foi a única razão do desâ-nimo do rapaz. Como na maioria das universidades públicas, a bu-rocracia para tudo o que se queira fazer ou reivindicar, era um em-pecilho. O sentimento era de que a instituição não estava preparada para receber pessoas com deficiência e também não investia dinheiro e atenção a essa causa.

Para o estudante, um recurso imprescindível para cegos na uni-versidade, por exemplo, é a disponibilidade de textos convertidos para o formato PDF. Com essa extensão, é possível que, através de

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um software, o computador leia os documentos para os alunos. Esse processo aparentemente fácil é uma questão importante de luta para pessoas com deficiência visual.

A dificuldade de obter textos convertidos na UFRJ não passava necessariamente por limitações técnicas, mas pela estrutura da insti-tuição. Lucas comenta que não conseguia identificar a pessoa a quem deveria fazer os pedidos ou reclamações.

“Isso foi em 2004, as universidades públicas estavam muito suca-teadas. Os funcionários faltavam muito, não havia nenhuma forma de controle. Na secretaria, se você precisasse resolver qualquer coisa, não tinha com quem falar, não se sabia quem era o responsável”, conta.

Pela falta de preparo e interesse da UFRJ, além da falta de identifi-cação do aluno com o próprio curso escolhido, ele resolveu abandonar os estudos de Filosofia. Em resumo, ele define a experiência vivida ali como: “Rigorosamente, ninguém estava nem aí para mim”.

Estudar em universidade pública tornou-se uma espécie de trau-ma para o rapaz. A próxima decisão, portanto, foi prestar jornalismo na PUC do Rio de Janeiro. E ali, mesmo com a vida financeira confor-tável da família, foi fundamental a conquista de uma bolsa de estudos, já que a independência era um ponto inegociável para o estudante.

A GraduaçãoEm tom descontraído, a fase da universidade é narrada como

um período de pouco esforço intelectual. Lucas diz ter passado sem dificuldades e nem muito estudo pelas etapas do curso. É verdade que vez ou outra ele lia textos interessantes indicados pelos profes-sores, mas no geral, ele brinca e ri: “Eu era muito bom aluno sem fazer nada”.

Em relação à acessibilidade estrutural e didática, a nova faculdade não era tão diferente da UFRJ. O acesso a textos convertidos para PDF, por exemplo, simplesmente não acontecia e a falta de adaptações no prédio causou ao nosso personagem um belo curativo no nariz.

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Quanto ao ferimento, tudo aconteceu por causa de uma passagem irregular. Para acessar determinado local era necessário abaixar-se ao passar pela entrada e não havia ali sinalizações do perigo que o lugar representava para cegos. Foi então que o cão-guia passou sem dificul-dades pelo obstáculo, já que era bem mais baixo que o dono, e Lucas deu de cara com a parede.

O machucado foi leve, mas a preocupação da PUC não. Em pouco tempo a falha arquitetônica, que bem podia ser definida como uma “gambiarra” estava devidamente resolvida, como sempre deveria ter sido. Essa foi, portanto, uma das situações que mostrou a vontade da instituição em aprender a lidar com as deficiências de seus prédios.

O que se via de diferente ali era a disposição em corrigir os erros e atender melhor o estudante. Apesar de não saber muito bem como proceder diante das barreiras, a universidade demonstrava o desejo de aprender.

Em relação às leituras e aos textos fora do formato PDF, o estu-dante lia o que lhe interessava pelos olhos de sua irmã, Thaís, como aconteceu durante a sua infância com as ledoras, quando não havia a possibilidade de usar a tecnologia de um computador. Nem é preciso pensar muito para perceber que isso afetava sua autonomia, ainda que a boa vontade da irmã evitasse qualquer tipo de constrangimento.

IncômodoA percepção do que estava errado, de seus direitos e a possibilida-

de de reivindicá-los nem sempre acompanharam nosso personagem. Durante a graduação, assim como no colégio, ele se adaptou aos de-feitos das instituições nas quais decidiu continuar estudando. Mas não foi assim pelo resto de sua vida acadêmica.

Lucas comenta que boa parte das falhas acadêmicas do cur-so continuaram existindo simplesmente porque ele não sabia da importância de suas correções. Por ter estudado a vida inteira sem determinados recursos, ele não sabia identificar o quanto poderiam

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fazer falta. Foi mais tarde, com mais informações e reflexões sobre a própria cegueira que ele pôde entender tudo isso.

No oitavo período de Jornalismo, o estudante fez um intercâmbio de 6 meses na University of California, em Berkeley, nos Estados Uni-dos. Foi neste lugar que Lucas descobriu um novo mundo. A novidade não tinha nada a ver com a distância geográfica daquele país para sua terra natal, mas com a possibilidade de condições diferentes e melho-res. Se antes não havia comparação, agora haveria.

A primeira coisa observada foi a existência de um departamen-to especializado em atender pessoas com deficiência e intermediar o diálogo delas com a universidade. Naquele lugar concentravam-se reclamações, dúvidas e material didático adaptado. Dessa forma, o problema de não saber para quem apelar estava resolvido.

Ter passado um semestre com textos convertidos para PDF e com a possibilidade de concentrar suas queixas em um órgão especializa-do, fez com que Lucas voltasse ao Brasil com exigências e expectati-vas muito maiores. Após o intercâmbio, Lucas retornou à sua facul-dade no Rio e, junto com alguns amigos criou um órgão parecido com o que havia conhecido no exterior para atender pessoas com defici-ência. A tentativa foi feita, mas o estudante logo se formou e acabou abandonando os assuntos ligados ao projeto.

Hoje, a PUC possui o Núcleo de Apoio e Inclusão da Pessoa com Deficiência que cumpre o papel que Lucas e seus amigos tentaram desempenhar, inspirados na universidade do exterior.

Vida ProfissionalDurante a graduação, Lucas estagiou na própria faculdade. O pe-

ríodo é definido pelo rapaz como uma época muito feliz. Após passar um ano atuando no jornal impresso, ele se arriscou em algo que nun-ca havia pensado em fazer: trabalhou na televisão da PUC.

Apesar de aparentemente serem coisas incompatíveis, a ceguei-ra e o vídeo conversaram muito bem naquele ano. Ele foi repórter e

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produtor e se lembra de sua chefe como “uma pessoa ótima, uma ges-tora maravilhosa”. Lucas comenta que não se lembra bem do porquê, mas que se sentia muito motivado no trabalho.

Depois dessa fase de aprendizado e desenvolvimento, o então repórter foi para São Paulo trabalhar no jornal “O Estado de S. Pau-lo” como trainee, onde pôde desenvolver novas habilidades, além de testar, descobrir e desafiar os limites que a cegueira lhe impunha. As dificuldades em locais com grande fluxo de pessoas e a confiança para andar sozinho pela cidade aos poucos foram vencidas.

“Acho que eu enfrentava dificuldades que tinham a ver com as minhas ignorâncias sobre meus limites. Tinha muita coisa que eu acreditava que não podia fazer por ser cego, sem ter tentado fazer”, diz Lucas sobre as experiências que viveu no jornal.

Ele conta que tinha liberdade de conversar com sua editora sobre seus receios na hora de escolher quais pautas fazer e como desen-volvê-las. A seu ver, na época era impossível estar presente em uma coletiva de imprensa que ocorresse na presidência da República, por exemplo.

Para ele, na multidão de pessoas seu cão-guia ficaria confuso e então ambos se perderiam sem conseguir achar nada. Atualmente, o repórter pensa que encararia uma situação dessas de maneira tran-quila, sem grandes sustos.

Carreira acadêmicaApós passar três anos trabalhando no Estadão, Lucas se sentia

desmotivado e cansado da rotina e do trabalho. Como namorava um rapaz brasileiro que morava nos Estados Unidos, começou a buscar possibilidades para estudar ali. O país de destino só oferecia bolsas para os cursos de doutorado, no entanto, ele conseguiu recursos para fazer o mestrado na Universidade de Chicago.

O Instituto Ling, que tem como premissa possibilitar estudo e cultura para jovens brasileiros no exterior, deu a ele uma bolsa para

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se tornar mestre em Opinião Pública na cidade americana. Havia, porém, uma condição. Ao fim do curso, que duraria um ano, ele deve-ria voltar para o Brasil por 12 meses.

Ao chegar nos Estados Unidos, porém, ele não imaginava que o que lhe esperava ali era muito mais que um título acadêmico. Sua vida estava prestes a se deparar com reviravoltas que mudariam sua maneira de se enxergar e se posicionar.

Rita, a mãe de Lucas, que enfrentava um câncer há 5 anos, faleceu pouco tempo depois que o filho chegou à América do Norte.

O estudante perdia naquele momento seus próprios olhos, aque-les que lhe guiaram durante a infância e enxergavam quando suas retinas já não funcionavam.

“A pessoa que me entendia melhor e enxergava o mundo para mim, não está mais aqui, então eu tenho que fazer tudo sozinho”, é o que Lucas diz ter pensado naqueles dias de profundo luto.

No mesmo período, seu relacionamento, que durava cinco anos e havia sido uma das razões da mudança de país, chegou ao fim. O estu-dante estava só, sem poder contar com o apoio da tão amada mãe, em um país novo e em um curso que lhe exigia habilidades não desenvol-vidas na escola, ou na universidade.

“Um cego, passando por um momento emocional muito difícil, num projeto acadêmico super complicado. E eu consegui sobreviver. E ir bem!”, conta. Esse período de superação pessoal fortaleceu o es-tudante em seus sentimentos, e aumentou sua autoconfiança. Além dessas duas ocasiões, no entanto, um terceiro ponto lhe ajudou a or-ganizar todas essas ideias em forma de militância.

Em uma das optativas eletivas do programa de mestrado chama-da “Movimentos Sociais”, o mestrando pôde refletir sobre a fase que vivia, sua deficiência e as limitações que esta lhe causava, bem como as formas de enfrentá-las.

A disciplina funcionou para esquematizar tudo o que passava por sua cabeça enquanto o cego elaborava seus lutos e lutas. A partir dali, ele passou a ocupar seus espaços e exigir seus direitos com consciência do que fazia. A falta de adaptações e recursos que equiparassem suas oportunidades com os demais começaram a ser questionadas e exigidas.

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Lutas e conquistasSobre a compreensão e as descobertas de sua deficiência, é bom

que o próprio Lucas fale: “Eu acho que foi uma questão que foi sur-gindo em mim, porque eu cresci achando que ser cego não fazia a menor diferença. E com a maturidade você vai descobrindo que faz muita diferença. Então eu passei por essa fase de insegurança, em que estava pensando o que eu podia fazer com a minha cegueira. O mestrado foi um período muito revelador, por que eu comecei a pensar: ‘Minha cegueira faz muita diferença’, mas rolou uma questão de ativismo”.

E pelo que ele passou a lutar? Bem, as dificuldades pelas quais um cego passa na Educação Básica persistem na Educação Superior, mesmo em um país desenvolvido. Em Chicago, havia um escritório para atender pessoas com deficiência, mas os serviços não eram de qualidade. Logo, os alunos criaram um grupo de militância para “fazer barulho e valer seus direitos”.

Dessa maneira, a velocidade na qual os textos da bibliografia eram convertidos melhorou de tal forma, que no fim do último período do estudante, todos eles estavam disponíveis no formato PDF antes do início das aulas.

Além disso, foi possível melhorar o diálogo com os professores para que as aulas de matemática fossem mais acessíveis. E, sim, hoje Lucas estuda matemática. Mesmo com todo o déficit acumulado na escola regular, ele não desistiu de buscar formas para compreender os cálculos matemáticos e suas implicações para acompanhar a discipli-na de estatística que fazia parte de seu programa no mestrado.

A melhor notícia nesse ponto da história, portanto, é que existem meios para que quem não enxerga aprenda ciências exatas. Basta que a instituição de ensino se comprometa.

É necessário que haja grupos de estudo para auxiliar as pessoas com deficiência visual. E não basta ser um grupo de amigos que se juntam para revisar os conteúdos. Uma relação oficial deve ser exigi-da: alguém que tome notas das aulas para os cegos e depois dedique tempo a repassar todo o conteúdo ministrado em aula.

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Também é essencial que se estabeleça um tempo de avaliação jus-to para todos. Nos Estados Unidos, eles têm o dobro do tempo de pro-va que os demais, justamente porque precisam ditar para outra pessoa tudo o que querem escrever durante o exame.

Por último, e talvez mais complexo, é preciso incentivar uma mu-dança de cultura dos professores. Eles devem educar sua linguagem para não dizer coisas como: “Você pega isso e divide por isso”. Nas au-las eles devem descrever todo o processo de resolução dos problemas: “Vamos pegar a equação ‘x’ e dividir pela equação ‘y’”, por exemplo.

É dessa maneira que Lucas tem superado as dificuldades com os números.

Conquistas recentesQuando terminou o mestrado, ele estava apaixonado pela vida

acadêmica, mas teve de voltar ao Brasil por um ano, como parte das exigências da bolsa que havia recebido. Nesse período, ele trabalhou novamente no Estadão, mas dessa vez, resolveu vencer mais uma barreira. Por ideia própria, foi sozinho ao Acre para fazer uma repor-tagem. Apenas ele e seu cão-guia.

Ele propôs a pauta em janeiro de 2004, ano de eleições. A inten-ção era falar sobre as cidades brasileiras onde a desigualdade social havia crescido, segundo o Censo do IBGE. O jornalista diz que a ex-periência foi tranquila. A dificuldade, no entanto, foi chegar no local da reportagem, pois a cidade em questão, Santa Rosa do Purus, não tem acesso por terra.

É possível alcançar o lugar de barco, viagem que toma ao menos duas semanas saindo de Rio Branco, ou por meio de um avião mo-nomotor, um “teco-teco”. Eles foram de “teco-teco” e tudo deu certo. Lucas diz ainda que todos na cidade agiram com naturalidade diante de sua cegueira.

No mesmo ano, ele trabalhou na revista Exame, da editora Abril até que, passado o tempo de permanência no Brasil combinado com

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o Instituto Ling, pôde se inscrever no Doutorado em San Diego, na University of California, onde estuda até hoje.

No novo local, que segundo o aluno, não tem transporte público acessível o bastante, ele continua exigindo seus direitos e aprofun-dando seus conhecimentos. É verdade que ele decidiu que há certas coisas pelas quais não vale a pena gastar energia, como textos mal convertidos para PDF. Nesses casos, ele diz que prefere ler algo que não esteja tão claro do que reclamar para que arrumem.

Não se pode esquecer, no entanto, que com todas as falhas, a uni-versidade tem atendido às expectativas em relação aos estudos de matemática, disponibilizando até gráficos em alto relevo para quem não enxerga.

Vale terminar com as palavras do próprio personagem:

“Eu abracei a cegueira como uma causa de orgulho. Nunca apren-di matemática na vida, mas estou aqui, estou aprendendo e indo bem no curso. Tenho que ter orgulho disso, tenho que empurrar os limites da minha cegueira. Eu sempre empurrei, mas antes não sabia o que estava fazendo.

Eu não tinha essa consciência, essa era a grande diferença. Supe-rava os limites porque minha família me dava apoio, porque eu vinha de um contexto de classe média alta, estudei em uma escola boa…. ‘O universo empurrava as coisas para mim’.

Aí comecei a pensar: ‘Eu sou cego, estou passando dificuldade nessa situação e vou enfrentar isso’. Estou me mudando para um ou-tro lugar [San Diego], que não tem transporte de qualidade, mas vou conseguir andar por toda essa cidade com o meu cachorro! E pronto!”

E ele vai!

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Descrição da imagem: Brenno sorri com camisa jeans e

paisagem de Nova York ao fundo, do alto do Empire State Building

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pes

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Brenno Douettes

QUANDO SE PENSA em uma entrevista jornalística, muitas imagens podem vir à cabeça. Uma coletiva com vários repórteres se amon-toando por uma ou duas respostas, alguém com uma câmera e um microfone fazendo perguntas rápidas aos transeuntes, ou mesmo um lugar tranquilo em que duas pessoas conversam, enquanto uma delas toma notas.

O que se passou aqui, no entanto, foi bem diferente disso tudo. Havia apenas um entrevistado e uma jornalista, mas não eram só duas pessoas na conversa. Para deixar a situação ainda mais inusi-tada, uma das três pessoas nem estava de fato no local. A cena afinal era essa: uma repórter e uma intérprete na zona leste de São Paulo, e um entrevistado em Curitiba. O que unia as pontas dessa conversa era um programa de computador que permite conversas por vídeo em tempo real.

A língua requerida para aquele diálogo não era a inglesa, espa-nhola, ou qualquer outra na qual a audição e a fala são essenciais. O entrevistado falaria na LIBRAS, língua oficial no Brasil desde 24 de abril de 2012, e a jornalista da vez mal sabia soletrar o próprio nome no idioma.

Estabelecer uma comunicação eficaz por meio de uma intérprete foi um desafio maior que o que cada entrevista já representa. O medo de não se fazer entender pelos interlocutores levava as perguntas a um ritmo quase infantil de tão cadenciado. “Pode ir falando”, dizia a intérprete. E inconscientemente a repórter segurava a velocidade da fala observando atentamente as mãos e as expressões dos que se comunicavam pela tela do computador, procurando alguma conexão entre os gestos e as ideias.

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As informações, caracterizando a tradução da LIBRAS, vinham em uma ordem diferente do que se está acostumado a ouvir em Português. Vez ou outra, intérprete e entrevistado passavam a conversar entre si, situação estranha a quem não conseguia compreender os sinais troca-dos. Por alguns momentos a repórter pôde ter a leve impressão de como é estar em um “mundo que fala” quando não se é capaz de escutar.

A muito custo a entrevista seguiu seu rumo e aos poucos os três foram conseguindo se entender. Compreender uma história de 35 anos com tantos ruídos como naquela noite chuvosa é quase uma tentativa inútil. Várias perguntas tiveram que ser repetidas meses de-pois e muitas informações que ficaram desencontradas precisaram ser checadas. Aquela noite chuvosa, no entanto, foi no mínimo diver-tida e desafiadora.

* * *

Primeiro e único menino de sua família, Brenno Douettes nasceu na cidade de Campina Grande, no interior da Paraíba, em 1981. Sua mãe, Lúcia Barros, conta que, a princípio, foi muito difícil saber o que o garoto tinha de diferente das outras crianças. Ele balbuciava sons como: “mamã”, “papa”, o que, para os pais, demonstrava que a criança podia ouvir. Além disso, ele respondia a barulhos fortes.

Foi em uma viagem ao Rio de Janeiro para visitar familiares que uma das tias de Brenno, que à época tinha um ano e meio, disse a Lúcia que havia algo de estranho com seu filho e que ela e o marido, Jorge Douettes, deveriam levá-lo ao médico.

“Eu estava de passeio, não dei muita atenção...”, conta Lúcia que manteve essa despreocupação por pouco tempo. Ao voltarem para casa, os pais passaram a investigar a saúde da criança. A busca pelo diagnóstico começou em um otorrinolaringologista, que os encami-nhou a uma fonoaudióloga.

Vale lembrar aqui que os recursos disponíveis no interior do Nor-deste nos anos de 1980 não eram o que se chama de fartura. Mesmo sendo a maior cidade do estado, Campina Grande contava apenas com duas fonoaudiólogas vindas do Rio Grande do Sul, o que resulta-va em uma grande procura por parte dos cidadãos, para uma baixíssi-ma oferta de atendimento.

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A investigação concluiu que Brenno tinha um ”resto auditivo”, mas não identificou a profundidade de sua surdez. O conselho foi que a criança, ainda com 2 anos, passasse a frequentar uma escola de ma-neira a desenvolver habilidades e receber estímulos, no entanto os médicos ainda não sabiam dizer ao certo as causas e consequências de sua deficiência.

Nesse período incerto, Lúcia foi aconselhada a ter outro filho. Para algumas professoras, o garoto passava muito tempo sozinho, pois a mãe trabalhava fora. Dessa maneira, um irmão ou irmã poderia gerar mais interação e, como consequência, ensiná-lo a falar. Os pais resolveram atender ao conselho. Tiveram uma filha. Surda.

Enquanto Brenno só teve sua deficiência completamente definida quase aos três anos, quando a família foi a São Paulo e realizou o exa-me de cóclea (parte anterior do labirinto que serve à audição), Luiza teve um diagnóstico bem mais rápido. Não havia resto auditivo, ela nasceu com surdez profunda. “Aí, com dois, a gente teve que correr”, diz Lúcia que passou a se dedicar integralmente aos filhos, deixando sua profissão de consultora de beleza.

O resto auditivo de Brenno não lhe ajudava a compreender me-lhor o mundo. Os profissionais de São Paulo identificaram que seu ouvido externo podia escutar, mas que o nervo auditivo, responsá-vel por transmitir os estímulos ao cérebro, era paralisado. No en-tanto, nem mesmo um diagnóstico tão preciso foi capaz de definir a causa exata desse problema. Os médicos não souberam dizer se a deficiência era hereditária ou congênita, quando nasce com o indi-víduo sem explicação.

Assim sendo, a mãe tomou a responsabilidade de, não apenas ou-vir o mundo por suas crianças, mas também prepará-las para escutá--lo e se fazerem ouvir. Não havia escolas especiais para surdos na re-gião em que a família vivia, logo os dois sempre estudaram em escolas de ouvintes, o que exigia muito deles e de Lúcia: “O que acontecia? Eles iam para a escola, traziam conteúdos e eu desenvolvia. Pegava o texto, explicava palavra por palavra. Palavras que não tinham alguma coisa visual, eu tinha que inventar, escrever, desenhar…”, conta a mãe.

Brenno conta que em nenhum dos anos do Ensino Fundamental e Médio teve um intérprete para o ajudar. Aliás, à época, nem o próprio

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garoto dominava LIBRAS. Ele acompanhava as matérias e instruções dadas pelos professores apenas pela leitura labial. Por isso já é possível imaginar que o menino apresentou muitas dificuldades na alfabetização.

Os primeiros desafios da escola“Ela era muito atenciosa e carinhosa”, diz o surdo sobre a profes-

sora que o ensinou a ler e escrever. Ele passou dois anos estudando na mesma série para poder aprimorar suas habilidades e na segunda ten-tativa encontrou a educadora que lhe traz boas lembranças até hoje. Ele conta que além das aulas também frequentava a casa dela para reforços escolares. A insistência para que Brenno repetisse aquele ano veio da própria mãe que não admitiu que o filho fosse aprovado sem estar alfabetizado.

A dificuldade que o aluno enfrentava, não acontecia por acaso. Aprender a ler e escrever envolve relacionar os sons que se escuta e produz com símbolos gráficos: as letras do alfabeto. Para o surdo, portanto, esse processo é muito mais complexo. Ele deve identificar pelo movimento dos lábios de quem fala a diferença entre uma letra e outra. Além disso, símbolos com movimentos labiais parecidos só podem, a princípio, ser diferenciados através do tato.

Por exemplo, o “P” e o “B” podem ser confundidos até por ouvin-tes em uma conversa rápida. Uma criança surda só entende a diferen-ça dos dois fonemas aproximando a mão da boca de quem a ensina. Assim ela percebe que para pronunciar o “P” é necessário que saia ar dos lábios, enquanto o “B” é falado sem esse recurso.

É importante dizer que aprender a ler e a escrever, bem como ler lábios e, em certos casos, falar faz dos surdos bilíngues. Antes de aprender o português, todos eles se comunicam com suas famílias de alguma maneira, o que é chamado de linguagem materna. O portu-guês vem, então, como segunda língua, uma habilidade a mais.

Desde a alfabetização até mais ou menos a antiga sétima série (hoje, oitavo ano do Ensino Fundamental), todas as tardes depois do

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colégio eram marcadas pela ajuda da mãe que pacientemente expli-cava ao Brenno e à irmã todos os conteúdos. “Mas Brenno era bem mais dedicado, mais aplicado, mais interessado. A gente sentia que ele queria aprender”, comenta Lúcia.

A falta de conhecimento da LIBRAS marcou a época da escola como tempo de superação para o garoto. Ele explica que no início não conseguia aprender como as outras crianças e não entendia nada do que se passava em sala de aula. Foi com muito esforço e dedicação que conseguiu romper a barreira da leitura, da escrita e demais conteúdos.

Mudanças e desafiosNa segunda série, a família Douettes resolveu mudar para a ca-

pital: João Pessoa. A escola na qual as crianças passaram a estudar desenvolvia um método extremamente tradicional de ensino. Os dois não se adaptaram ao estilo e Brenno repetiu de ano mais uma vez. Nem mesmo Lúcia conseguia acompanhar as disciplinas.

Foi então que a família decidiu por um colégio de método Mon-tessoriano, que trabalha, tanto com surdos como com ouvintes, de maneira mais prática, material e visual. Desde então, nosso perso-nagem seguiu os estudos sem repetir. As dificuldades não desapa-receram, mas o método de ensino caiu como uma luva para o aluno tão aplicado.

Além disso, a nova cidade trouxe mais uma ocupação para os ir-mãos. Eles passaram a frequentar o SUVAG (Sistema Universal Ver-botonal de Audição Guberina). Nesse centro de reabilitação, os surdos aprimoravam suas habilidades de oralização, que é a capacidade de ler lábios e falar.

Sim, Brenno fala. “Razoável”, como ele mesmo diz. Ao contrário do que se pode pensar, os surdos têm voz e podem aprender a utili-zá-la. Aliás, até hoje, tanto Brenno como a irmã se comunicam com a família ouvinte por meio da Língua Portuguesa: lendo os lábios e

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falando. A mãe se gaba de conversar com o filho, por meio do Skype como se comunica com qualquer outra pessoa.

Mesmo com essa habilidade que surpreende os ouvintes, Brenno garante que hoje se sente melhor ao se expressar através da LIBRAS. A língua que foi aprendida depois do Português é agora considerada seu primeiro idioma.

Uma língua para chamar de suaJá com 16 anos, por meio de um amigo surdo e uma ouvinte, Bren-

no passou a aprender a se comunicar com as mãos. A dupla dominava a Língua Brasileira de Sinais, a qual o garoto passou a aprender pela convivência. Mal sabia ele à época que essa nova habilidade lhe abri-ria caminhos para a vida.

O encontro do rapaz com essa nova linguagem pode se compa-rar com uma daquelas amizades que duram a vida toda e só ficam melhores com o tempo. A diferença foi tanta que, hoje em dia, ele já não gostaria nem de namorar alguém que não soubesse se expres-sar pelos sinais, pois isso dificultaria muito sua comunicação com a parceira. A Língua Portuguesa passou, de fato, a ficar em segundo plano.

O estudante nunca frequentou um curso para aprender o novo idioma, desenvolveu-se apenas praticando com amigos. No início, com os dois que lhe ensinaram as primeiras expressões e, depois, com os que conheceu na igreja que passou a frequentar.

Aliás, a igreja em que ele e a irmã aprimoraram suas habilidades nos sinais foi encontrada em mais um momento de mudanças da fa-mília. Por conta do emprego do pai, eles passaram a morar na cida-de do Recife, em Pernambuco. Os dois irmãos, agora adolescentes, não gostavam do novo lugar e reclamavam de tudo. Na tentativa de amenizar o desconforto dos filhos com a nova cidade, a mãe resolveu buscar a instituição religiosa, uma vez que a família já frequentava um lugar como aquele em João Pessoa.

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O local, além de desenvolver um trabalho específico com sur-dos, tinha como membros alunos da mesma escola em que Brenno passou a estudar, o que lhe garantiu ajudas preciosas na hora de aprender os conteúdos do Ensino Médio. A mãe já não acompanha-va mais as matérias, portanto, o auxílio dos amigos foi de grande importância.

Na mesma cidade, o rapaz teve seu primeiro emprego. Com 19 anos, em 2000, se tornou instrutor de Libras, ensinando a língua de sinais para ouvintes. Aos 20 anos, ele concluiu o Ensino Médio, sem nunca ter tido uma aula traduzida para LIBRAS.

Essa experiência só aconteceria bem longe dali, em Canoas, no Rio Grande do Sul, para onde Brenno mudou-se sozinho em busca de oportunidades de estudo.

A primeira tentativa na universidadeBrenno havia enfrentado dificuldades nas disciplinas de Mate-

mática e Física durante o Educação Básica, mesmo assim não fugiu desses assuntos quando escolheu seu primeiro curso universitário. O estudante decidiu estudar Arquitetura na cidade gaúcha justamente para, mais uma vez, superar seus limites.

Foi na Universidade Luterana do Brasil (Ulbra) que ele cursou o primeiro ano, mas desistiu da carreira. A verdade é que as experiên-cias com as disciplinas e os conteúdos não foram das mais animado-ras. Acontece que mais coisas estão envolvidas na graduação do que as matérias a serem aprendidas.

Foi na Ulbra que ele pôde contar com um intérprete de Libras em sala de aula pela primeira vez. Por esse motivo, ele descreve o período como “uma ótima experiência”, e elogia as habilidades deste profissio-nal que o acompanhava com fluência na língua de sinais.

Além da falta de identificação com as matérias, a parte financei-ra foi determinante na hora de decidir seguir ou parar a faculdade. Como seus estudos eram financiados por seu pai, que não tinha um

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orçamento tão farto, Brenno pôde se matricular apenas em três ou quatro disciplinas por semestre, já que as mensalidades eram relativas à quantidade de aulas em que se estava inscrito.

O alto preço de se cursar mais disciplinas e o longo tempo para concluir a grade curricular de maneira que os custos coubessem no bolso fizeram o estudante suspender o sonho universitário.

De São Paulo para mundoO trancamento do curso, porém, não o fez desistir do sonho uni-

versitário, apenas adiá-lo. De 2004 a 2005 o estudante morou em São Paulo, onde trabalhou como office boy e operário. Ele veio para a ci-dade a fim de buscar alguma faculdade particular, mas não teve con-dições econômicas de pagar as mensalidades.

Mesmo sem conseguir cumprir o objetivo que lhe fez mudar mais uma vez de cidade, o tempo que passou na metrópole não ficou marcado em sua memória como um período ruim ou de dificuldades. Ele garante que se relacionava muito bem com os colegas de trabalho ouvintes, com os quais se comunicava em Língua Portuguesa. Lembra ainda com cari-nho de um amigo surdo com quem podia conversar em LIBRAS.

Em São Paulo, Brenno se sentiu melhor e mais acolhido que em Porto Alegre. Fez muitas amizades que tornaram sua vida mais diver-tida e se envolveu em uma nova igreja, o que contribuiu para sua inte-ração social. O que o surdo destemido não sabia é que uma oportuni-dade das boas bateria em sua porta, abrindo-lhe caminhos preciosos.

* * *

À essa altura da vida, Brenno já havia se envolvido com uma rede chamada “Door”. De origem religiosa, a instituição prepara surdos para comunicarem a mensagem do Evangelho e textos da Bíblia para outras pessoas com deficiência auditiva. O objetivo da Door é fazer a mensagem do livro sagrado ser compreendida por todos os surdos em suas respectivas línguas, já que cada região do mundo possui um

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conjunto de sinais diferente e que a maior parte das pessoas com essa deficiência não domina a leitura completamente.

Após participar de inúmeros congressos pelo Brasil, Brenno foi chamado para o seminário dessa rede. O curso era de 7 meses na Costa Rica, para os quais ele partiu sozinho. Lá o estudante aprendeu a LESCO (Língua de Sinais da Costa Rica), além de estudar “32 histórias bíblicas de evangelismo e 77 de discipulado em ordem cronológica”, como ele próprio gosta de enfatizar. O seminário envolvia ainda aulas sobre lide-rança, filmagem e edição, teatro e canções na língua de sinais do país.

Todos os professores eram surdos costarriquenses e, segundo o então aluno: “ensinavam muito bem”. A bagagem teológica pretendi-da, portanto, não foi a única levada de volta para casa. Lá ele conhe-ceu 20 estudantes de diversos países como Trinidade e Tobago, Gua-temala, El Salvador, Estados Unidos e Brasil. A LESCO foi a língua que os uniu nesse período de tempo.

De volta ao sonho universitárioBrenno ainda sonhava em ingressar na Educação Superior, mes-

mo com todo o aprendizado no exterior. A mãe o incentivava a buscar um curso chamado Letras-Libras, que estuda a Língua Brasileira de Sinais, e capacita os alunos tanto para seguirem na carreira acadêmi-ca no campo da Linguagem, como para serem instrutores do idioma. Mas como é próprio dos filhos, Brenno não dava atenção à ideia e dizia que nunca seria professor.

Depois de voltar para a agitação paulistana, no entanto, o eterno estudante resolveu dar uma chance ao que a mãe dizia. Mesmo sem muita vontade, prestou o vestibular na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Sim, mais uma mudança de cidade estava por vir. Ele confessa que fez a prova sem ter a menor esperança de ser apro-vado na instituição. Suas expectativas, tanto em relação ao ingresso na faculdade quanto ao curso eram muito baixas. Ambas, no entanto, foram superadas em grande estilo.

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Já era o ano de 2008 e o conceito de inclusão parecia ter chegado a Curitiba. Todo o sistema de seleção era adaptado para surdos. Parte da prova de múltipla escolha era em Língua Portuguesa e a outra através de um vídeo em Libras. Nessa segunda seção, um intérprete sinaliza-va as questões e as opções de resposta na tela para que os candidatos marcassem na folha de respostas as alternativas que julgassem corretas.

Não bastasse ser aprovado, Brenno ficou em terceiro lugar de to-dos os candidatos. E, quanto ao curso, a verdade é que os relatos do aluno nos levam a imaginar aquela época como um tempo de pro-funda satisfação, descobertas e sensação de pertencimento. A falta de intérprete estava suprida de uma vez por todas e sem que fosse necessário pagar nem um centavo por isso.

Todos os professores dominavam a língua de sinais e ministravam as aulas em Libras e Português, simultaneamente, já que na classe também havia ouvintes. Perto de todos os problemas enfrentados no decorrer da vida escolar, não é exagero dizer que na graduação, o es-tudante não enfrentou dificuldades em razão de sua deficiência. Di-ferentemente de outros cursos, o de Letras-Libras era perfeitamente adaptado às condições do aluno. Mas, porque não deixar as palavras dele falarem por si só?

“Depois que entrei na primeira aula do curso, amei muito... As disciplinas me ajudaram muito com o conhecimento da estrutura de Libras para meu trabalho. Foi uma experiência maravilhosa e perfei-ta. Eu não perdi tempo em estudar Letras Libras. Deus sabia o plano perfeito para a minha carreira”, afirma o estudante.

Vida ProfissionalFoi a partir da rede Door que a vida profissional de Brenno pas-

sou a ganhar forma. Meses depois de ter feito o seminário na Costa Rica, ele foi chamado trabalhar na área de tradução bíblica, na qual permanece até hoje. Ele traduz para Libras os complexos textos do livro sagrado. A tarefa exige muito estudo e cautela, mas é de grande

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importância para que os surdos tenham acesso de maneira indepen-dente aos textos religiosos.

Trabalhando com isso, além de dar aulas de sinais para ouvin-tes, o rapaz direcionou sua carreira acadêmica para o mesmo obje-tivo. Em 2015, ele concluiu seu mestrado em Estudos da Tradução com a dissertação: “A tradução na criação de sinais-termos religio-sos em Libras e uma proposta para organização de glossário termi-nológico semibilingue”.

Há quem não compreenda a importância da tradução de um texto escrito em português para vídeos em LIBRAS, já que textos não de-pendem da audição ou da fala para serem compreendidos. É funda-mental, portanto, ressaltar que a LIBRAS e a Língua Portuguesa são idiomas ligados um ao outro, porém diferentes. Além disso, como já foi dito, todo surdo que lê e escreve em português é bilíngue.

Outro ponto importante é que, como o próprio Brenno lembra, nem todos os surdos conseguem vencer a barreira da alfabetização como ele conseguiu. Apesar de fazerem parte da mesma cultura, os dois idiomas brasileiros têm estruturas extremamente diferentes. Grupos de palavras como pronomes, preposições e artigos são estra-nhos à LIBRAS, bem como a ordem direta da Língua Portuguesa.

Conhecendo todas essas diferenças, fica claro porque tantos sur-dos, mesmo os alfabetizados, sentem-se mais confortáveis em “ler” determinado texto, ou livro através da língua de sinais. Daí a impor-tância da área de estudo e atuação de nosso personagem.

No mestrado, mais que um texto acadêmico, Brenno desenvolveu um glossário em vídeo de termos religiosos. Sua pesquisa consistiu em estudar a fundo três dicionários do tema: o “OATES” (1969), glos-sário católico; “TJ” (1992), glossário da religião dos Testemunhas de Jeová; e “O Clamor no Silêncio” (1991), da igreja evangélica Batista.

As três peças traziam os sinais e sua palavra correspondente em por-tuguês. O que Brenno fez depois de ler diversos autores dos campos de Linguagem, Tradução e Libras, foi categorizar todos os termos dos três materiais escolhidos, compará-los, apontar semelhanças e diferenças, além de observar como cada uma das religiões influenciava os símbolos.

Em seguida, o pós-graduando passou a gravar vídeos em Libras que obedeciam quatro etapas:

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1 - o sinal de cada termo2 - a descrição do conceito3 - um exemplo relacionado4 - as possíveis variações desse sinal

Com esses passos, todos feitos em sinais, sem ter nem mesmo legen-da para o português, surdos que não dominam a leitura podem entender palavras relacionadas à religião cristã de maneira bem mais completa e eficiente que nos antigos glossários. Brenno destaca que esse tipo de tra-balho reforça a importância e legitimidade da LIBRAS como uma língua de fato, que não é inferior, nem menor, que qualquer outra.

Para deixar o trabalho ainda mais claro, ele fez questão de usar co-res de camiseta diferentes para gravar cada etapa do glossário. Quan-do sinalizava os termos, usava a cor azul; para descrever o conceito, a preta. Na hora de dar um exemplo, a marrom; e para citar variações do sinal que representava o termo, a vermelha.

O trabalho, que foi desenvolvido sob a orientação de Ronice Mul-ler de Quadros e coorientação de Sandra Patrícia de Faria do Nasci-mento, parece trazer grande satisfação ao agora mestre em tradução Brenno Douettes, que já é convidado a dar palestras e entrevistas so-bre sua pesquisa e trabalho.

Mais habilidades e sonhos realizadosDesde a adolescência, nosso protagonista tinha o desejo de estu-

dar nos Estados Unidos. Do interior da Paraíba, porém, esse sonho parecia muito distante. Ele planejava ir para a Gallaudet University, em Washington DC, mas financeiramente isso era inviável.

A mãe, Lúcia, que por um tempo pensou estar criando filhos extre-mamente dependentes, via o desejo do menino e pensava que aquilo seria impossível. Ela podia até pensar assim, mas ao filho dizia que, se aquele era seu sonho, ele deveria dedicar seu empenho para realizá-lo.

Mais uma vez, os conselhos maternos foram eficazes. Quem acompanha as redes sociais do tradutor internacional de Libras, hoje

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em dia, vê que este desejo foi alcançado. São inúmeras as fotos em cartões postais das Américas. Aliás, seu recente aniversário de 36 anos, foi comemorado em plena Times Square, em Nova York. Suas viagens, além de vários estados brasileiros, incluem 11 países: Costa Rica, Argentina, Chile, Paraguai, Colômbia, Panamá, Estados Unidos, França, Espanha, Gana e Quênia.

E mais, para garantir que as viagens aos Estados Unidos sejam apro-veitadas ao máximo, Brenno não só domina a ASL (Lingua Americana de Sinais), como também lê em inglês. Sua habilidade em aprender novos idiomas lhe permitiu conseguir a fluência nos sinais e a compreensão nos textos escritos sem nunca ter feito cursos. Com o pouco da gramática inglesa que estudou na escola regular, ele desenvolveu o restante de ma-neira autodidata e pela convivência com os amigos americanos surdos que fez em tantos passeios e compromissos no exterior. Ele ainda conhe-ce, sem ser fluente, as línguas de sinais de Honduras, Chile, Paraguai e Colômbia, estudou um pouco de francês e possui Espanhol Básico.

Além da dissertação do mestrado, o estudante ainda contribuiu para outros trabalhos científicos na área de educação de surdos. E até mesmo em Campina Grande, sua cidade natal, já voltou, não apenas como “o fillho de dona Lúcia”, mas como preletor de uma conferência.

Tamanha era a inquietude e o desejo pelo saber de Brenno. A fa-mília via que sua sede de aprender e compreender o mundo era muito maior que o normal. “Ele não se conformava com a vida de surdo da-qui”, diz Lúcia. O garoto, que se fazia ouvir pela necessidade de assi-milar o que o cercava e conhecer o que ignorava, passou a alçar voos altos. E a mãe que achava tê-lo criado para viver consigo, descobriu tê-lo preparado para, com total independência, enfrentar as dificulda-des e se fazer compreendido aonde quer que vá.

Sobre suas lutas, ele diz: “Queremos ter igualdade social e inde-pendência financeira, como os ouvintes têm seus direitos. Queremos educação bilíngue para surdos (Libras e Português), e Libras em todos os lugares: hospitais, Justiça, Governo e aeroportos. Queremos TV e jornal com intérpretes, mercado de trabalho e concursos federais e estaduais para todas as profissões aos surdos formados”

Já se sabe que determinação para alcançar todos esses objetivos ele tem..

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Descrição da imagem: Abigail segura na madeira de uma ponte e sorri para a foto

com uma blusa vermelha e um cachecol xadrez

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Abigail Miranda

À minha grande amiga e companheira de todas as horas. Que todos os caminhos desta cidade e do mundo possam lhe pertencer como lhe per-tencem os sonhos, a esperança e a coragem que cresce em você a cada dia.

Sobre o porquê de escrever a respeito de acessibilidadeÉRAMOS POUCO MAIS DE DEZ crianças na faixa dos doze anos de idade. Estudávamos no segundo andar de um prédio sem elevador e o piso da nossa sala tinha recebido resina havia pouco tempo.

A classe, por incrível que pareça, concordou em não arrastar mais as cadeiras para que o chão ficasse bonito por um tempo maior. A de-cisão foi tomada na aula de português da professora Eli, a mesma que nos deixava sair da sala para ver o sol se pôr na janela do corredor à frente de nossa porta.

Alguém gritava: “Professora, o sol!” e todos saiam para olhar por alguns minutos a estrela se esconder atrás dos prédios mais baixos. Eram assim alguns fins de tarde no Colégio da Comunidade, na zona leste de São Paulo.

A escola particular, funcionava no prédio da igreja evangélica Co-munidade da Graça, daí o nome que tinha. Em três andares mais o térreo, acomodavam-se turmas do maternal à antiga oitava série (atual nono ano) do Ensino Fundamental nos períodos da tarde e da manhã.

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Nossa classe era pequena e considerada por nós mesmos muito mais legal do que a quinta-série (hoje, sexto ano) da manhã. Fosse pelo número de alunos ou pela nossa simpatia, fomos escolhidos para receber alguém diferente naquele ano.

Mudaram-nos de sala de repente e fomos parar no primeiro an-dar. O piso fosco e riscado não receberia resina tão cedo e a janela do pôr do sol estava bem longe. Chegou a coordenadora pedagógica, pela qual não tínhamos tanta simpatia como pela professora de português, e logo deu-nos a notícia dizendo algo assim:

“Vocês vão receber uma pessoa especial a partir de hoje! Ela usa cadeira de rodas e é uma graça. Falei que vocês são muito legais e que ela fará amigos facilmente. Conto com vocês para receberem bem essa nova amiga”

As perguntas que se seguiram foram próprias de crianças de 12 anos. Queríamos saber se ela era “normal”. E o que tínhamos por normalidade era o fato dela entender as coisas como nós, conversar e fazer as lições. A coordenadora respondeu a todos os nossos questionamentos dizendo que a deficiência da nova aluna era física e não intelectual.

Nossas perguntas à época demonstravam uma profunda ignorância e “desinformação” a respeito de pessoas com deficiência, fossem estas deficiências físicas ou intelectuais. Mostravam, além disso, como uma educação inclusiva faz falta para todos, inclusive para os ditos normais.

Ao fim de nosso interrogatório, a porta se abriu e entrou a visita esperada, a Abigail. Em um misto de curiosidade e estranhamento, amontoamo-nos ao redor da cadeira de rodas fazendo mil perguntas e nos apresentando. Mal sabia eu, que, naquele momento, ganhava uma amiga para vida, uma companheira de aventuras e uma causa para perseguir.

EstruturaAos poucos vimos que ter a Abigail na sala não fazia nossa ro-

tina tão diferente. A única coisa que tínhamos de fazer, além de ter

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mudado de sala, era chamar o Robson para carregá-la pelas escadas toda vez que íamos ou voltávamos do intervalo, aulas de informática, laboratório de Ciências ou qualquer volta pelo pátio que a professora de Português resolvia fazer conosco.

O colégio não tinha a menor acessibilidade estrutural. Escadas para todos os lados, degraus inúteis de dois centímetros por toda par-te e nenhuma rampa. A fim de resolver o problema, designaram um funcionário para ser o motor de Abigail. A classe toda já sabia que para onde quer que fôssemos: “Chama o Robson”. Até mesmo na Educação Física ela nos acompanhava, ainda que para isso, fosse preciso subir uma escada de ferro que chegava a balançar com nosso peso.

Lembro com nitidez de minha amiga na quadra apitando a brinca-deira da queimada a mando da professora Carol que tentou algumas vezes ensiná-la a bater a bola de basquete, mas Bibi (como carinhosa-mente passei a chamá-la) não tinha muita força com os braços.

É verdade que as falhas estruturais do Colégio impossibilitavam a autonomia de Abigail, além de fazê-la chegar atrasada em parte das atividades, uma vez que nem sempre Robson conseguia chegar ins-tantaneamente aos lugares em que era chamado para transportá-la.

A segurança também é um ponto importante de discussão. Estu-dávamos no primeiro andar, um acima do térreo, e além do risco diá-rio de ser levada pelas escadas ao menos quatro vezes ao dia (chegada, ida e volta do intervalo e saída), no caso de alguma emergência não havia forma de removê-la com rapidez.

O que mais me chama a atenção, no entanto, era a intenção do colégio e dos professores de que Bibi fizesse tudo conosco. Sim, mu-danças físicas seriam o ideal. Estávamos em 2004 e a Lei Federal de Acessibilidade acabava de ser regulamentada, dessa forma o prédio ainda estava dentro do prazo para tornar-se acessível. A falta dessas adaptações, no entanto, não impediu nosso convívio, bem como a in-clusão de nossa amiga à turma. Com todas as imperfeições, apren-demos que o diferente não era ruim e que podíamos fazer tudo na companhia de Abigail.

A preocupação de incluir a Bibi virou uma preocupação coletiva e até mesmo quando pulávamos corda do recreio ela estava conosco. Ela obviamente não pulava, mas batia a corda para nós. Creio que

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foram esses detalhes de convivência que me fizeram sonhar certa vez que minha amiga andava como nós, sem que isso fosse uma surpresa, mas sim um fato corriqueiro.

Afinal, o que ela tinha?Peço aqui licença ao leitor para tomar distância dos acontecimen-

tos que se seguem, já que não se tratam mais das minhas memórias e sim das de Abigail e sua família, ainda que eu tenha acompanhado parte delas como amiga íntima.

Durante o tempo em que Graça, mãe de nossa personagem, estava grávida, não havia suspeitas sobre a saúde do bebê que estava por vir. Aconteceu, porém, que no parto, providencialmente uma cesárea, os médicos se surpreenderam com uma fratura sem motivo aparente na recém-nascida. A suspeita de “osteogênese imperfeita”, conhecida po-pularmente como “ossos de vidro”, seria em breve confirmada e o que viria a seguir seria permeado de desafios e fortes emoções.

Segundo o médico que deu o primeiro diagnóstico, Abigail não passaria dos sete anos de vida e a verdade é que pelo menos nos pri-meiros cinco ela sofreu inúmeras fraturas. Sua tia Tel, a qual mora com a sobrinha até hoje, conta que a garota chegou a ficar comple-tamente engessada: braços, pernas, pés, tudo imobilizado. Tantos traumas assim acabaram por roubar a firmeza das pernas da menina, impedindo-a de andar. A partir dos cinco anos de idade ela passou a usar a cadeira de rodas e desde então não a deixou.

A vida da famíliaAs diversas fraturas e consequentes cirurgias durante a infância

fizeram Abigail se atrasar um ano na escola. Acontece que além de lidar com essas eventuais quedas e recuperações a família tinha de

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providenciar sua ida e volta da escola com segurança. Na época, as condições financeiras eram boas e foi possível pagar um motorista para essa função.

Graça trabalhava em uma siderúrgica havia muitos anos e seu sa-lário garantia à família um apartamento quitado no bairro do Tatuapé, casas de aluguel e um sítio no qual Abílio, pai de Abigail, trabalhava para dar início a um negócio da família, uma plantação de cogumelos. A família era composta ainda por Gabriel, filho mais velho do casal e a já mencionada Tel, que era paga pela irmã, Graça, para cuidar da casa e dos sobrinhos.

Antes de chegarem ao Colégio da Comunidade, as crianças estu-daram no Colégio São Vicente de Paula, local em que não se sentiam bem, fosse pelo convívio com os demais alunos, ou pelo ensino tradi-cional. Mas foi depois de trocar de escola e terem vivido a experiência de estudar em um colégio menor e atento às necessidades de Abigail que a rotina e as condições da família mudaram.

Logo no primeiro ano do Ensino Médio, em junho de 2008, quando Abigail já havia deixado a escola da Vila Carrão para cursar o Ensino Médio em outra instituição, Graça descobriu um câncer de pulmão e não resistiu, vindo a falecer depois de um mês de inter-nação. Ela, que era um pilar tanto financeiro quanto emocional da casa, deixaria, além da saudade e do vazio, um desequilíbrio finan-ceiro importante.

Com o aluguel de alguns imóveis mais a pensão deixada à filha, foi possível continuar pagando a escola em que Abigail estudava e seu transporte até lá. E assim foi por todo o tempo em que a garota não decidiu sair dos limites da zona leste da cidade.

Após concluir o Ensino Médio, nossa personagem ingressou no curso técnico de Estilismo e Coordenação de Moda do Senac, na unidade da Penha. No tempo que passou ali, do segundo semestre de 2011 ao primeiro de 2012, ela experimentou a realização de estu-dar o que gostava. Quando conta sobre os trabalhos que executava, as aulas e os professores é possível ver brilho em seus olhos. Quan-to a ir e vir, os recursos deixados por Graça eram suficientes. Pela curta distância de seu apartamento ao Senac, ainda era possível pagar um motorista.

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Terminado o curso e passado um ano e meio com problemas emo-cionais, ainda em decorrência da perda da mãe, Abigail decidiu partir para mais um desafio: a faculdade. Certa de que o ramo da Moda era seu futuro, ela buscou, dentre as universidades mais bem avaliadas da área, a que melhor se encaixava em suas condições financeiras. A instituição escolhida foi o Centro Universitário das Faculdades Me-tropolitanas Unidas, a FMU da Vila Mariana.

Começam os desafiosEla conta que no fim de 2013, antes de efetuar sua matrícula, visi-

tou o campus para avisar que estudaria ali no ano seguinte. Ela e o pai, Sr. Abílio, resolveram fazer a visita, pois as matrículas para todos os campi da Universidade eram realizadas em uma central. Pelo receio de que algo desse errado e a faculdade não estivesse pronta para recebê--la, eles foram até lá conferir as instalações e dar o recado de sua che-gada pessoalmente. Nesse dia, a secretaria lhe garantiu que o prédio tinha elevador e que não haveria problemas. A estudante lembra de ver o equipamento e não desconfiar de que poderia existir algum problema.

Abigail ainda morava no mesmo lugar, na Avenida Celso Garcia, bairro do Tatuapé, zona Leste da cidade de São Paulo, e confessa que não pensou que a distância até a Vila Mariana, zona sul, seria um grande problema, talvez porque até aquele momento ela nunca se preocupara com algo do tipo.

Acontece que se durante sua vida escolar Abigail contou com um motorista para levá-la e trazê-la das aulas todos os dias, na Educação Superior isso não seria possível, pois o custo, dado o longo percurso, se tornaria inviável, caso se prolongasse por muito tempo. Para lidar com a distância ela foi instruída a solicitar o serviço “Atende”, da Prefeitura de São Paulo, que transporta pessoas com deficiência para seus compro-missos cotidianos em carros adaptados.

Dentro de si, ela cria que conseguiria o serviço com certa facilida-de, sem imaginar a burocracia envolvida. Foi assim que ainda em 2013

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ela entrou em contato com a central responsável pelos cadastros, por quem foi orientada a solicitar o atendimento 15 dias antes do início de suas aulas. Assim, chegada a data, fez sua inscrição e entrou para a fila de espera. O ano letivo começou e o carro da prefeitura simplesmente não apareceu. Sempre que a garota e o pai buscavam informações, a resposta era de que não havia veículos disponíveis.

Enquanto aguardava a liberação de seu transporte, a estudante e sua família tentaram se organizar de diferentes formas. A princípio, o irmão ficou responsável por levá-la e buscá-la todos os dias, mas essa rotina não funcionou bem. Contratar um ônibus fretado também foi cogitado, mas não havia nenhum em sua região. A estudante passou então a pagar um motorista para transportá-la até que o Atende pas-sasse a funcionar.

Por que a Moda?Pode não parecer, mas o sonho de estudar moda vinha de antes do

início do curso técnico. Desde muito pequena, quando se recuperava de uma fratura ou outra, a menina se distraía lendo gibis de Maurício de Sousa. De todos os personagens das histórias em quadrinhos, ela tinha uma favorita: Tina.

Na época, ela queria apenas reproduzir os traços e o estilo da per-sonagem que era mais velha que os demais e retratada com maior riqueza de detalhes, roupas e cabelos mais estilizados do que os inte-grantes tradicionais da “Turma da Mônica”.

O encantamento por Tina levou a garota a colocar seus dons de desenho e pintura em prática. Desde cedo, não havia dúvidas de que ela tinha um talento especial para artes visuais. Nos trabalhos de es-cola, se a jornalista que agora vos escreve já cumpria a função de cui-dar dos textos, as ilustrações ficavam a cargo da artista que andava sobre rodas.

Sendo assim, depois de ter alinhado suas expectativas profissio-nais no curso do Senac, Abigail ingressou na faculdade com bastante

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entusiasmo. Não raro, apesar das dificuldades que enfrentava, ela compartilhava com os amigos os projetos, lições e trabalhos que reali-zava no curso. Desenhos e mais desenhos enviados com orgulho pelo WhatsApp enchiam a memória dos celulares.

O sucesso nas avaliações devia vir da profunda identificação e ha-bilidade da estudante nos temas abordados, já que na Educação Básica seu desempenho não era tão brilhante. Até hoje ela fala com realiza-ção: “Na FMU, era só nove e dez! Chorei quando tirei oito uma vez…”.

As alegrias e correrias normais de um curso universitário, entre-tanto, eram sempre permeadas de frustrações e descasos ligados à estrutura da universidade, acolhimento e aperto financeiro. As men-sagens enviadas aos amigos não eram apenas das conquistas, mas também da tristeza de não conseguir ir à aula determinado dia, de não poder ficar depois do horário para fazer as atividades propostas e da revolta de não conseguir frequentar uma das aulas por conta do elevador que não funcionava.

Alguns desses percalços ocorriam pois, enquanto usava os servi-ços de um motorista, Abigail precisava ter horários bem definidos. Por isso, ficar depois do horário para usar os computadores do campus, que comportavam programas adequados para os projetos de Moda, nem sempre era possível. Se ela o fazia, muitas vezes tinha que voltar de táxi, o que tornava o curso ainda mais caro.

Ainda assim, ela conta com bom humor que encontrava diversas maneiras de fazer todos os trabalhos pedidos. Ia à universidade de uma amiga, localizada perto de sua casa, e usava os computadores de lá; periodicamente pedia ao primo, que tem uma gráfica, para que lhe cedesse os equipamentos; dava mil voltas, fazia piruetas em cima das rodas; encontrava saídas; cumpria os prazos.

Acessibilidade no campusA dificuldade de ir e voltar da FMU não era o único problema

que Abigail enfrentava. Apesar de ter ido ao campus em que estudaria

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para ter certeza de que a faculdade estaria pronta para recebê-la no início do ano, quando chegou para seu primeiro dia de aula, o cenário foi desanimador. A estudante se deparou com um elevador quebrado e uma coordenadora dizendo que se soubesse de sua chegada, teria preparado as coisas de maneira melhor.

A falta do equipamento impedia Abigail de frequentar as aulas obri-gatórias do software Corel Draw, que eram realizadas na sala de infor-mática, no andar de cima. Apesar dos protestos e perguntas frequentes da aluna, o elevador seguiu sem funcionar por um mês e meio.

Nesse período, a universidade determinou que enquanto sua tur-ma estivesse naquela sala, a aluna cadeirante teria de assistir, com estudantes de outro curso, à disciplina de Sociologia. Assim, quando sua classe estivesse estudando Sociologia, ela teria uma aula particu-lar com a professora de Corel Draw na secretaria da unidade.

A solução não agradou a Abigail. Ela sentia falta de estar com seus colegas e não estava à vontade com o grupo no qual era obri-gada a assistir uma aula na semana. As pessoas a recebiam bem, no entanto ali não havia um sentimento de pertencimento. Além disso, ela tinha que desenvolver as atividades extraclasses com um grupo da sua turma original, o que gerava certas incongruências de conteúdo. Ou uma sala estava mais adiantada que outra, ou mesmo os assuntos ministrados não eram exatamente iguais.

Além disso, também incomodava que a aula particular era feita às pressas, de forma resumida, diferente do ritmo normal de uma aula em grupo. É verdade que ali a atenção da professora era concentrada em uma única aluna, mas Abigail afirma que não era dessa atenção que ela necessitava, mas sim da vivência da aula em grupo.

Entenda-se aqui que o desagrado da estudante com a situação não se tratava de um capricho, mas de sentir-se injustiçada ao ter seus direitos descumpridos. Pela lei, o prédio deveria ser completamente acessível, ainda que ela não tivesse ido até lá e alertado a instituição sobre sua chegada. Porém, mesmo com todo esse esforço, o estabele-cimento não cumpriu com suas obrigações, o que afetou a rotina da estudante, fazendo-a sentir-se diferente dos demais.

Depois de aproximadamente 6 semanas fora de funcionamento, o elevador foi consertado. Alegria, sensação de ter transformado o local

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e realização foram as emoções que a aluna teve. A euforia, no entanto, durou bem pouco. Na primeira vez que subiu no equipamento, teve de ficar ali por mais tempo que o desejado. Sim, o elevador quebrou com Abigail dentro.

Quando conseguiu sair dali, a estudante estava furiosa. Girando suas rodas em velocidade bem maior que o comum, ou “correndo”, como prefere dizer. Ela subiu sozinha e sem dificuldades a rampa que dava acesso à secretaria. Eis aqui uma daquelas situações que só são possíveis quando se está alterado, pois até aquele momento ela tinha precisado da ajuda dos colegas, ou passado com muito esforço naque-la parte do trajeto.

Ao questionar a secretária sobre a segurança de pessoas com deficiência naquele lugar e sobre o que se faria se houvesse um in-cêndio, Abigail recebeu uma resposta que lhe deixou engasgada até hoje. A funcionária disse que ela poderia descer “rolando”. É verdade que a fala pode ter vindo de uma tentativa de tratar a situação com bom humor, mas naquele momento as palavras soaram como ofensa e desrespeito.

Mais 15 dias de espera até o concerto, mais 15 dias de aulas com uma turma diferente, mais 15 dias de desânimo. Para piorar, mesmo depois de pronto, frequentemente o elevador ficava interditado e todo o processo se repetia. Foi assim por todo o semestre.

Dessa forma, mesmo quando era possível estender seu período na universidade para concluir determinada atividade, se fosse necessá-rio o auxílio de programas específicos que os computadores dali pos-suíam, a falta do elevador por vezes a impedia de realizá-los.

É verdade que, como já foi dito, ela não deixava de cumprir os prazos por conta desses problemas. E nesse processo foi indispen-sável a presença de uma grande amiga chamada Monique, que es-tudava arquitetura na Universidade Cidade de São Paulo (Unicid). Monique levava Abigail para seu campus, onde os computadores tinham os programas necessários às atividades do curso moda. Tempos depois, ela pensaria em estudar ali, que a princípio não foi o lugar escolhido pois a avaliação da FMU em termos pedagógicos era melhor.

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Interrupção de um sonhoNem com todas as dificuldades estruturais enfrentadas na fa-

culdade Abigail pensava em desistir de estudar. Ela diz que queria transformar o prédio em um lugar acessível. Além disso, as aulas, os professores em geral e a grade curricular eram de qualidade. Em sua opinião, valia a pena lutar para estar ali. Portanto, o que a fez desistir foram fatores externos.

Pagar um motorista tornou-se insustentável quando um aluguel teve de ser acrescentado no orçamento. Desde o falecimento da mãe, ela e o irmão dividiam o apartamento da família, sendo que Tel, tia deles, passava a semana ali para ajudar a sobrinha.

Na partilha dos bens, no entanto, ficou combinado que nossa personagem receberia o valor mensal das casas da mãe que estavam alugadas e que Gabriel, seu irmão, seria o novo dono do apartamen-to onde moravam. O pai ficou com o sítio e continuou morando em Mogi das Cruzes mesmo depois que vendeu o imóvel por conta das lembranças que cultivava.

O problema é que justamente enquanto a estudante enfrentava problemas para bancar seu transporte, Gabriel, que há tempos queria ter seu “próprio cantinho”, pediu que a irmã alugasse outro aparta-mento com o dinheiro que recebia. Como o local de fato pertencia ao irmão, ela teve de arcar com mais esse gasto.

Abigail trancou sua matrícula e abandonou seu curso. Nas novas condições era inviável seguir pagando cerca de mil reais por mês de transporte. E o serviço da prefeitura não funcionou.

A solução que não deu certoPouco antes das férias de julho o carro do Atende foi buscá-la sem

aviso em um dia no qual ela não iria para a aula. Depois disso ficou sem aparecer até a primeira semana de recesso, quando chegou à sua casa novamente sem avisar.

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Nessa ocasião a garota foi orientada a comunicar a central sobre o mês em que não utilizaria o veículo solicitado. Ao fazê-lo, a aten-dente lhe disse que, por conta do cancelamento do pedido, seu nome voltaria para o fim da lista de espera. Ainda assim, Abigail relata que serviço bateu à sua porta algumas vezes durante as férias, quando já havia desistido da faculdade.

Em nota a SPTrans diz que: “o Serviço Atende foi disponibilizado à usuária Abigail Oliveira Miranda em junho de 2014, quando houve a disponibilidade de vagas. No entanto, nesse mesmo mês, a usuá-ria solicitou cancelamento do atendimento em virtude de férias, até 1º de agosto de 2014. No mês de agosto de 2014 os atendimentos re-tornaram, mas a usuária não os utilizou. O veículo comparecia à sua residência e ela não embarcava nele. Desta forma, de acordo com o regulamento do Atende, ela excedeu o limite de faltas permitidas e teve o serviço suspenso.”

A estudante e seu pai, que vinha de Mogi das Cruzes diversas ve-zes para ajudá-la nesses problemas, não confirmam a versão da em-presa de transportes.

Novas possibilidadesNão é nem um pouco animador vivermos no modo subjuntivo. “Se

eu soubesse”, “se tivesse tentado”, “E se determinada coisa não tives-se acontecido” são expressões que exemplificam o impossível. Apesar de parecerem possibilidades que tínhamos no passado para escolher, elas não o são. As escolhas e decisões são feitas e tomadas em contex-tos que não se repetem em nenhum outro momento da vida.

É possível e muito comum que tomemos caminhos errados no de-correr de nossa jornada, mas a verdade é que uma vez escolhidos, não se pode viver pensando em como tudo teria sido diferente, pois essa oportunidade de escolha que tínhamos em determinado momento já não nos pertence.

Gasta-se tempo com essa reflexão aqui para que nos parágrafos que se seguem leia-se apenas quais os novos caminhos a se tomar

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a partir do que já está posto, em vez de se perder tempo imaginando como tudo (dessa vez no futuro do pretérito, outro tempo igualmente inalcançável) poderia ter sido.

* * *

Depois de parar o curso universitário, Abigail e a amiga que agora vos escreve decidiram em uma conversa quase informal fazer uma viagem juntas para estudar inglês. A amiga já tinha esse sonho há tempos e em uma visita disse:

-Vou passar dois meses em Londres. Vamos? - e aqui o tom usado foi o de brincadeira

-Vamos. - respondeu Abigail-Vamos? Eu estou falando sério. - replicou a amiga-Eu também! - disse a moça da cadeira de rodas sem titubear.Depois desse dia que acabou em uma animação completa, seguida

do medo de ter as expectativas frustradas, as conversas foram ama-durecendo, bem como os planos. O destino principal da viagem pas-sou a ser Dublin, capital da República da Irlanda, pois os custos ali eram bem mais baratos.

Para se ter ideia de como o preço da faculdade, somado ao valor pago ao motorista era alto, deixando esses dois gastos de lado, foi pos-sível pagar um aluguel na zona leste de São Paulo e bancar uma via-gem de dois meses para a Europa, na qual visitou-se mais três países que, a princípio, não estavam no roteiro.

Essa foi a primeira vez que Abigail ficou tanto tempo fora de casa sem a presença de nenhum familiar. E foi ali que a garota conheceu inúmeras possibilidades. A dupla andava de ônibus todos os dias, o que antes não fazia parte da rotina da cadeirante. As ruas de Dublin são adaptadas e as calçadas devidamente planas em sua maioria. Um lugar diferente, uma língua nova, pessoas estranhas que passaram a ser que-ridas, uma família que não era dela, mas agora a pertencia, tudo aquilo era extraordinário e nem sempre bom, mas uma coisa antes não expe-rimentada fazia toda a diferença: a independência.

Quando deixou a universidade em São Paulo, Abigail chegou a ensaiar seus passos sozinha. Para ampliar o orçamento, tentou vender bijouterias artesanais com a amiga Monique e para tal, ambas foram

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via transporte público ao centro da cidade para comprar materiais e vender seus produtos algumas vezes, mas a viagem para o exterior veio de maneira a coroar a coragem que antes faltava para alçar seus próprios voos.

Em suas peripécias pelo continente europeu, a ex-estudante de moda e a aspirante a jornalista se arriscaram além da conta. Subiram uma montanha para chegar ao topo do “Cliffs of Möher” no condado de Clare (República da Irlanda) e quase furaram as rodas da cadeira em pedregulhos para chegar bem perto do mar.

As duas perderam-se em Londres e Paris sem bateria suficiente no celular para usar o GPS. Arrumaram quem levantasse a cadeira para subir a escadaria da Basílica de Sacré Cœur em Montmartre, e quem as levasse para cima e para baixo nos degraus cheios de sofri-mento dos prédios de Auschwitz, na Polônia.

Além das inúmeras histórias acompanhadas da amiga, Abigail pôde escrever seus próprios capítulos durante a viagem. Ela chegou a Dublin com um inglês muito limitado e estudou em uma classe sepa-rada da companheira. Foi ali, em meio a algumas coreanas e brasilei-ras, um mexicano, uma italiana e um professor irlandês que ela teve de aprender a se comunicar no novo idioma, ou em boas mímicas, caras e bocas.

No fim do intercâmbio, ela já conseguia inclusive contar ao pro-fessor sobre suas viagens do fim de semana, além de manter uma co-nexão um tanto telepática com as coreanas e a italiana. Quanto ao mexicano…. Bem, ele se tornou quase fluente na Língua Portuguesa.

Ao voltar para casa, depois de dois meses de intensas aventuras, saindo todos os dias da “zona de segurança” do lar, uma espécie de senso de independência foi despertada em Abigail. A família que sem-pre a protegeu de todos os perigos por sua deficiência, teve de deixá--la ir para longe e aprender com seu retorno que ela passaria a superar alguns desafios.

Depois do intercâmbio ela já não queria mais passar a maior parte dos dias em casa, dependendo das visitas do pai para sair de carro. Usar transporte público, que antes parecia impossível, passou a ser rotina. A cadeirante chegou nesse período a trabalhar no centro da cidade. Arrumou a cadeira motorizada, antes encostada, e aprendeu

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a ir para o ponto da avenida mais próxima. Ela pegava um ônibus, metrô na linha vermelha e mais uma integração na linha amarela para chegar à Livraria Cultura.

Nessa independência morava, porém, um remorso, algumas frases no modo subjuntivo e outras tantas no futuro do pretérito. Na época em que cursava Moda na FMU, ela morava na Avenida Celso Garcia e na calçada passava um ônibus que a deixaria na porta da Universida-de, mas naquele tempo achava impossível chegar lá sozinha.

Como dissemos no início dessa parte da história, ela se chama “novas possibilidades”, logo, ao invés de gastar tempo pensando em como toda a história poderia ter sido diferente, que se pense em como ela será a partir de agora e aqui a jornalista pede licença para voltar a falar como amiga e na primeira pessoa do singular.

* * *

O emprego de minha amiga na Livraria Cultura não durou mais que três meses. A pressão do horário somada aos ônibus sem acessibi-lidade da sua região, à super lotação do metrô de São Paulo e ao mo-mento emocional complicado que vivia fizeram com que ela deixasse o trabalho de telemarketing do qual, cá entre nós, Abigail já não era grande amante.

Hoje ela busca seu sonho ainda relacionado à moda de alguma forma. Fez um curso que a capacita tanto como maquiadora, como professora de auto-maquiagem e luta contra o preconceito de traba-lhar nesse ramo sendo uma pessoa com deficiência. Ela sonha em vol-tar à faculdade, mas dessa vez pretende planejar as coisas com mais calma: pensar nos trajetos, nas distâncias e em como vencê-las de maneira econômica e menos desgastante.

Ainda a vejo remoendo o fato de não ter ao menos tentado o trans-porte público na época da faculdade, mas a verdade é que a garota ca-deirante mais corajosa, independente e cheia de garra não existia em 2014 como existe em 2016. Todas as características estavam lá, mas ainda por serem despertadas.

É triste ver que ela não conta com uma cidade preparada para suas rodas. Dá um aperto no coração admitir que ela tem de se pro-gramar mais que uma pessoa “dita normal” para transitar sem grandes

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surpresas pela cidade. Seu direito de ir e vir é diariamente violentado por barreiras físicas e intelectuais completamente ilegais. Orgulha--me, no entanto, que ela não se deixe vencer. Ela não é uma grande heroína. Não venceu ainda suas maiores lutas, mas tem aprendido a lutar por seus direitos e a fazer todo o possível para, mesmo em con-dições que não são as ideais, realizar seus sonhos e superar barreiras a cada dia.

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Descrição da imagem: cadeirante de costas com asa de

borboleta presa à cadeira de rodas

Arq

uivo

pes

soal

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Histórico e dados

FALAR DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA na Educação Superior signi-fica retratar indivíduos que ocupam lugares historicamente não reserva-dos a eles na sociedade. Para se ter uma ideia, a primeira vez que o termo “pessoa” apareceu para identificá-los, foi quando, por pressão das orga-nizações que já militavam nessa área, a Organização das Nações Unidas (ONU) deu o nome de “Ano Internacional das Pessoas Deficientes” a 1981.

De acordo com artigo “Como chamar as pessoas que têm defici-ência?”, de Romeu Sassaki (2013), consultor na área de inclusão social, antes dessa ação das Nações Unidas, as expressões que os designa-vam não poderiam ser piores. Romances, leis e decretos que datam de antes do século XX no Brasil traziam a palavra “inválidos”. O vocábulo traz consigo o conceito de que esses indivíduos eram uma espécie de “peso morto” para a sociedade, que não tinham valor ou que “não serviam para nada”.

Como era de se esperar, com o passar do tempo e maior aces-so a informação, a forma de chamar as pessoas com deficiência foi sofrendo mudanças. Nada aconteceu de uma hora para outra, nem de maneira definitiva, mas novas possibilidades foram estudadas ao longo dos anos para possibilitar uma nomenclatura mais confortável e humana a quem tem necessidades diferentes dos demais.

Do início do século XX até os anos de 1960, o termo mais comum passou a ser “incapacitados” ou “incapazes”. Apesar de ainda carregar preconceitos e desinformação, a questão da “inutilidade” acreditava--se ser atenuada na nova expressão. A partir daí, até os anos 1980, quando os movimentos sociais tomariam força a ponto de conseguir a intervenção da ONU, termos como “os defeituosos”, “os deficientes” e “os excepcionais” circulavam para tentar descrever essas pessoas.

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Foi depois de 1981, ano dedicado ao tema da deficiência, que a palavra “pessoa” tornou-se quase obrigatória. No entendimento das organizações que discutem o assunto, esse termo é importante, pois humaniza a questão. Lembra que antes de tudo se está falando de seres humanos como quaisquer outros.

A mobilização dessa camada da população passou a ganhar força na década que se seguiu com o lema: “Nada sobre nós, sem nós”, que teve origem em artigo de William Rowland, sobre movimentos da área na África do Sul (1986). A frase revela a reivindicação desses cidadãos de participar da construção das decisões que lhes dissessem respeito, deixando de ser apenas agentes passivos nesse processo. De acordo com outro artigo de Sassaki (2011), pode-se traduzir essa expressão como: “Nenhum resultado a respeito das pessoas com deficiência sem a plena participação das próprias pessoas com deficiência”.

Estes indivíduos, antes reclusos, agora gritavam por cotas, garan-tias de trabalho e adequações dos espaços públicos às suas necessida-des, além de quererem fazer parte de tudo que lhes envolvesse de al-guma maneira. Eles já não queriam ser apenas citados, ou defendidos. Era preciso transformar a realidade por si próprios.

Em meio a todas as discussões, surgiram nomes como: pessoas portadoras de deficiência, pessoas com necessidades especiais, pes-soas especiais e portadores de direitos especiais. Até que se chegou ao consenso: “pessoas com deficiência”.

A nomenclatura apareceu pela primeira vez na Declaração de Sa-lamanca, documento elaborado na Conferência Mundial sobre Edu-cação Especial na Espanha, em 1994. Ela tinha o objetivo de fornecer diretrizes básicas para a formulação e reforma de políticas e sistemas educacionais de acordo com o movimento de inclusão social. Ain-da segundo Sassaki (2013), no Brasil, esse termo foi conclamado no “Encontrão” das organizações de pessoas com deficiência, realizado no Recife em 2000, pelo empoderamento que a expressão representa para esse público.

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Os nomes importam e a História tambémÉ comum dizer que discussões sobre como nomear minorias são

inúteis e que regras do tipo tornam o mundo “mais chato”. Mas ao olhar para a história e entender o que determinadas expressões repre-sentam para quem por elas é chamado, é possível enxergar a relevân-cia do uso dos termos hoje considerados corretos.

Fica claro também que se essas pessoas decidirem, por seus pró-prios motivos, serem nomeadas de outra forma, seu desejo deve ser respeitado. Como o chamamento atual deixa claro, falamos de pesso-as, indivíduos, cidadãos que, portanto, têm vontades, direitos e capa-cidade para exigi-los.

A consciência de tal empoderamento das pessoas com deficiência começa a ser observada a partir da nomenclatura, mas vai muito além disso. A questão dos lugares historicamente reservados a minorias vem de ideologias disseminadas no passado que tardam a desapare-cer da sociedade.

Nesse ponto, aliás, os meios de comunicação tem grande respon-sabilidade. Insistir nos termos de preferência das minorias, ainda que isso gere estranhamento a princípio, cria no imaginário popular uma resignificação dessas camadas da população.

Da mesma forma, escolher pautas que reflitam sobre diversidade contribui para a função social do jornalismo de, através da informa-ção, gerar mudanças concretas, ainda que pequenas inicialmente. Re-servar outro lugar às pessoas com deficiência, diferente da reclusão vivida antes dos anos 1980, passa por trazê-las para o debate público.

Dado o problema de representatividade que esses sujeitos encon-tram no cotidiano e na mídia, ler a respeito de suas lutas e reivindica-ções, bem como conhecer suas histórias, mostra-nos que há muito a ser conquistado e remodelado nas cidades e na Educação. De maneira que eles sejam, de fato, incluídos no meio social e deixem de habitar apenas suas margens.

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Do específico para o todoDepois de conhecer as histórias de Lucas, Brenno e Abigail é pos-

sível refletir com mais familiaridade sobre deficiência e educação. Existem muitas pessoas no Brasil que enfrentam as mesmas dificul-dades que nossos personagens. Além disso, muitos outros cegos, sur-dos e cadeirantes não chegam à Educação Superior.

Os problemas começam muito antes da escola, e a presença des-ses cidadãos na sala de aula só acontece com sua presença no espaço público em geral. Calçadas, transporte, prédios sem acessibilidade, falta de intérpretes de Libras e tantos outros obstáculos sem adapta-ções impedem o livre trânsito dessa categoria e seu acesso a outros direitos básicos como a saúde, por exemplo.

Assim, como é possível chegar a ocupar o ambiente universitário quando transitar livremente pelas ruas já é um desafio? Como alcan-çar a faculdade se, uma vez que os trajetos da cidade são vencidos, dificuldades pedagógicas desanimam e, porque não dizer, impossibi-litam a sequência dos estudos até a graduação?

Em quais dessas lutas já se obteve vitórias e quais delas ainda são discussões no meio jurídico e mesmo entre educadores? Ter ca-deirantes, cegos e surdos (como os personagens desse livro) e tan-tas outras pessoas que têm outros tipos de limitações vivenciando a universidade e todas as possibilidades que ela oferece envolve mu-danças em todo o sistema educacional, bem como uma nova forma de construir a cidade.

A primeira questão a ser pontuada, portanto, é a inclusão. Desde a constituição de 1988, a necessidade de trazer as pessoas com de-ficiência para a rede regular de ensino já era tratada no artigo 208. Com o passar do tempo, outros decretos e leis fortaleceram a ideia da presença desses estudantes em classes comuns e não separados dos demais. A recusa de matrícula desses alunos por conta de suas defi-ciências constitui-se crime de acordo com a Lei nº 7.853/89, seja em instituições públicas ou privadas.

Em 2010, aliás, o Plano Nacional da Educação (PNE) trouxe mais um desafio. O texto diz que as pessoas com deficiência deveriam ser

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matriculadas preferencialmente em escolas da rede pública de ensino. O que traz a responsabilidade de maneira mais forte para o governo.

Mesmo sendo uma questão antiga, a presença de alunos com alguma deficiência nas escolas regulares ainda gera estranhamento e continua sendo motivo de luta de instituições como o Todos Pela Educação, ONG que fiscaliza as metas do Plano Nacional da Educa-ção no Brasil, e o Instituto Rodrigo Mendes, que trabalha na área de Educação Inclusiva. Ambas as organizações reivindicam os direitos desses alunos estudarem juntamente com aqueles que são ditos nor-mais e sem nenhum acréscimo financeiro por isso.

Em entrevista a essa reportagem, Aline Santos, coordenadora de Comunicação do Instituto Rodrigo Mendes, disse que a militância da Instituição passa também pela divulgação de dados precisos e pela difusão de informações mais claras por parte do poder público.

Descobrindo o tamanho do problemaPara resolver qualquer questão, é necessário saber qual a sua di-

mensão e suas implicações. Sem a visão do todo, do contexto e da história de determinada situação, fica impossível encontrar uma re-solução adequada. Sendo assim, qual seria o tamanho do problema da educação para pessoas com deficiência, ou mais especificamente, dessas pessoas na Educação Superior?

Pensando nisso, fica claro que a obtenção de dados é um pon-to imprescindível dessa reflexão. No entanto, de acordo com o es-tudo de 2014 “Pessoas com deficiência nos censos populacionais e educação inclusiva”, da Câmara do Deputados, esses indivíduos só passaram a fazer parte do Censo do IBGE de forma mais precisa, no ano de 2000. Ou seja, até 2002, quando a pesquisa foi divulgada, simplesmente não era conhecido o número de pessoas com defici-ência presentes no país.

Na coleta de 1990, por conta de lei do ano de 1989, até foi incluído o tema da deficiência entre as questões da pesquisa, mas a imprecisão

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das perguntas e definições geraram um resultado equivocado. Foi apontado que apenas 1,5% dos brasileiros tinham algum tipo de defi-ciência, dado discrepante dos encontrados posteriormente.

Antes da divulgação dos números de 2002, imaginava-se, por con-ta de dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) à época, que a porcentagem de brasileiros com deficiência era de 10% da população. Descobriu-se, no entanto, que o Brasil tinha 14,5% dos seus habitantes nessa situação, o equivalente a 24,6 milhões de pessoas.

No Censo de 2010, esse número cresceu: 23,91% dos brasileiros de-clararam ter alguma deficiência, o que corresponde a 45,6 milhões de pessoas. Dessas, 6,7% (17,7 milhões) disseram tê-las em nível severo. O questionamento que se faz em relação a estes dados, porém, é o méto-do que o IBGE adota para coletá-los.

Baseado na “autodeclaração”, qualquer pessoa que alega ter algum tipo de deficiência é contabilizada pelo Censo como tal, de maneira que alguém com miopia pode ser classificado como pessoa com de-ficiência visual. É exatamente por isso que a porcentagem de 23% de pessoas com deficiência no país é tão diferente do que a OMS tem como padrão para os dias de hoje: 15% da população mundial.

Já quando se fala de educação, fica claro que o país ainda não tem cumprido seu papel de capacitar esses cidadãos. No censo de 2000, constatou-se que das pessoas sem instrução, ou com menos de três anos de estudo no país, 33% tinham algum tipo de deficiência, o que revelava a maior dificuldade de acesso desses brasileiros à escola.

Para complicar mais o cenário, ainda segundo esse Censo, dos cerca de três milhões de crianças e adolescentes com deficiência no país, apenas 80 mil estavam na escola. Com base nesses números, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) constatou um quadro grave para o Brasil.

Em relatório divulgado em 2004, ano em que foi regulamentada a Lei de Acessibilidade no país, o Fundo afirmou que uma pessoa com deficiência aqui tinha duas vezes mais chances que uma pessoa dita normal de não frequentar a escola e de não ser alfabetizada entre os 7 e os 14 anos. Na faixa etária de 12 a 17 anos, essa projeção era ainda mais preocupante. As chances de não aprender a ler e escrever su-biam para quatro vezes a mais que no restante da população.

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Dez anos depois, o IBGE (2010) não trouxe resultados muito ani-madores. Da população com deficiência de 15 anos para cima, 61% não tinham instrução, ou haviam cursado apenas o Ensino Fundamental incompleto. Esse percentual era de 38,2% para as pessoas da mesma faixa etária sem deficiências, o que representa uma diferença de 22,9 pontos percentuais.

De acordo com Aline Santos, do Instituto Rodrigo Mendes, porém, não é possível saber com precisão nos dias de hoje quantas pessoas com deficiência em idade escolar existem no Brasil. Os principais mo-tivos para isso são os dados do IBGE serem baseados na autodecla-ração e datados de 6 anos atrás. Por falta dessa informação, não se pode contabilizar quantas dessas crianças e adolescentes estão fora da escola. A única afirmação possível é que o número de matrícu-las de alunos nessas condições em escolas regulares cresceu mais de 400% nos últimos 12 anos no país, segundo o Ministério da Educação.

Foco na EducaçãoÉ possível, porém, descobrir mais coisas ao se debruçar apenas

sobre os dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira). Já é conhecido, por exemplo, que os números de matrículas de pessoas com deficiência diminuem de acordo com o grau de escolaridade. Ou seja, nas primeiras séries do Ensino Fundamental, elas têm maior número que nas últimas, no Ensino Médio, sofrem uma queda mais brusca, até que na Educação Superior representam uma porcentagem ainda menor dos estudantes.

Em números, a análise fica assim: no Ensino Fundamental as ma-trículas de pessoas com deficiência representam 2,87% do total nos anos iniciais e 2,02% nos anos finais. No Ensino Médio elas são 0,86% e na Educação Superior 0,39%, de acordo com dados do Censo Escolar de 2015 e do Censo da Educação Superior de 2014, os dois mais atua-lizados até a publicação desse livro. Tendo como meta a proporção da OMS de 15% da população com alguma deficiência, nota-se que nem

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nos primeiros anos escolares a porcentagem é a ideal, portanto, o ca-minho a se percorrer até a graduação ainda é longo.

Entretanto, quando se faz uma análise de 2011 para 2014, nota-se que mesmo estando longe do ideal, as pessoas com deficiência têm tido mais acesso à formação universitária. Em 2011, eles representa-vam 23.250 alunos, enquanto em 2014 subiram para 33.377, num cres-cimento total de 43,6%.

As tabelas do Censo da Educação Superior não mostram esses da-dos de anos anteriores a 2011, portanto não é possível saber o quanto as matrículas de pessoas com deficiência evoluíram antes disso.

Outra consideração possível é que apesar do Sudeste se manter na liderança em número de matrículas, o Nordeste saltou de terceiro colocado em 2011, para segundo em 2012. Além disso, os 4 mil alunos do ano em que começaram as medições, tornaram-se mais de 10 mil em 2014. A diferença para a região campeã tornou-se pequena.

2012 2013 20142011

NORTE SUDESTESULNORDESTE

ALUNOS MATRICULADOSPOR REGIA~O

CENTRO-OESTE

0

2.000

4.000

6.000

8.000

10.000

12.000

*Dad

os d

o In

ep

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Para Aline Santos, uma possível razão para a melhora do Nor-deste dessa questão é o investimento em educação que a região tem recebido, bem como a criação de novas universidades. Ela também destaca que a Universidade do Ceará tem se apresentado como polo de conhecimento quando se fala em educação para alunos com de-ficiência.

Por fim, nota-se que há um crescimento das matrículas de alunos com deficiência em universidades públicas, ainda que a quantidade de matriculados em instituições privadas seja maior. Ao se observar o gráfico abaixo, pode-se dizer que a curva tende a se inverter.

2012 2013 20142011

PRIVADAPÚBLICA

PESSOAS COM DEFICIÊNCIA NA EDUCAÇA~O SUPERIOR PÚBLICA E PRIVADA

0

5.000

10.000

15.000

20.00016.719

6.5318.201

9.406

13.723

18.942 19.628 19.654

25.000

*Dad

os d

o In

ep

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A presença deles faz a diferençaA presença desses indivíduos na Educação Superior está ligada ao

empoderamento dos mesmos. Nesse sentido, a vivência universitária tem muito a acrescentar em experiências, conscientização e luta por seus direitos. Além disso, a melhor maneira de se fazer ouvir na socie-dade é estando presente. Ainda que a legislação atual determine que os espaços universitários sejam devidamente acessíveis, eles dificil-mente o serão sem que quem necessita das adaptações esteja lá para exigi-las, utilizá-las e fiscalizá-las.

Aline completa esse raciocínio dizendo que “não há política pú-blica que dê conta da diversidade do ser humano”. Ela entende que é impossível que as instituições se preparem corretamente para aten-der as necessidades de estudantes que elas não conhecem. Além disso, segundo a coordenadora, todos ganham quando a individu-alidade é respeitada.

Um exemplo dessa afirmação é o Programa USP Legal, da Pró Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da Universidade de São Paulo. Dado o tamanho da instituição e o número de alunos, pode--se imaginar como é difícil atender com qualidade os ingressantes em geral. Logo, é fácil concluir que alunos com deficiência tenham difi-culdades por lá.

Para tentar facilitar o diálogo com estes estudantes, criou-se em outubro de 2001 uma Comissão Permanente com a missão de elabo-rar políticas internas para inserção das pessoas com deficiência no ambiente universitário. A iniciativa ganhou em 2011 o estatuto de um programa regular sob a responsabilidade da Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária.

Sua razão de existir está em articular ações conjuntas das diferen-tes áreas da Universidade (graduação, pós-graduação, pesquisa, cul-tura e extensão) para assegurar a inclusão de alunos e servidores com deficiência. Ele serve para romper barreiras atitudinais, arquitetôni-cas, pedagógicas e de comunicação, sendo uma espécie de repositório das experiências de inclusão e ponto de referência para as unidades e a comunidade da USP.

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A complicada missão conta com uma equipe de um funcionário técnico-administrativo, estagiários bolsistas, mais representantes de áreas relacionadas a acessibilidade como a Superintendência de Espaço Público, de Tecnologia da Informação e de Assistência Social. A equipe proporciona apoio ao programa e permite que suas reivindicações al-cancem os níveis administrativos corretos para resolver os problemas ali recebidos. As dificuldades, segundo integrantes da equipe, moram em três palavras: pró-atividade, burocracia e prioridade.

Pró-atividadeAtualmente, o USP Legal tem trabalhado em responder as peti-

ções de alunos que os procuram, relatando falhas arquitetônicas e di-ficuldades pedagógicas relacionadas a suas deficiências. Uma vez que esses alunos reportam aos funcionários seus problemas, a equipe se organiza para elaborar um estudo do caso e, junto à unidade respon-sável pelo problema, chegar à melhor solução possível.

Se o problema é de infraestrutura, por exemplo, os bolsistas mar-cam uma visita ao local durante a qual o aluno com deficiência realiza juntamente com eles todos os trajetos em que se encontram proble-mas. No percurso, são tiradas fotos, medidas e anotadas com precisão as larguras das portas e passagens, bem como a altura de degraus e outros obstáculos que passam despercebidos para a maioria do corpo discente e docente.

Tapetes, por exemplo, podem ser uma armadilha para pessoas com deficiência visual e não basta haver rampas para tornar um des-nível acessível a cadeirantes. Algumas dessas rampas, aliás, são qua-se como paredes levemente inclinadas, sendo impossível para quem está em uma cadeira de rodas subi-las sem o auxílio alheio.

Depois da visita e do relatório feito, a unidade responsável procu-ra solucionar os problemas, mas essa lógica não é a ideal. Todas essas medidas e detalhes estão devidamente explicados e descritos na ABNT NBR 9050, que ganhou valor de lei a partir do decreto 5.296/04, que

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regulamentou a Lei de Acessibilidade em 2004. Dessa data em dian-te, as universidades tiveram prazos que variaram de três a quatro anos para se adaptar em tudo que dizia respeito a sua estrutura, logo, o tra-balho de “conserto” que o programa da USP realiza hoje já está atrasado.

Pela lei, os estudantes deveriam encontrar outro tipo de espaço universitário, mas a realidade é bem diferente. Boa parte das reivin-dicações para reformas estruturais só são atendidas quando os alunos entram com ações judiciais contra a universidade.

O que se percebe, porém, são poucas ações de iniciativa da insti-tuição universitária para melhorar o acesso de todas as pessoas com deficiência. Elas acontecem em resposta a reivindicações individuais e pontuais apenas.

Destacam-se, no entanto, o projeto de reforma das calçadas do Campus da USP da capital, por iniciativa da prefeitura dessa unidade e o esforço do próprio programa USP Legal de buscar com a Fuvest dados das pessoas com deficiência aprovadas no vestibular para aten-dê-las melhor no processo de matrícula e recepção.

Segundo a professora Lúcia Filgueiras, coordenadora do USP Le-gal até outubro de 2015, o maior trabalho naquele momento era o de “apagar incêndios”. Dada a lentidão da instituição em se preparar para as mudanças da lei, toda reivindicação é urgente e a equipe trabalha para saná-las da melhor maneira possível.

BurocraciaNem com toda a boa vontade do grupo é possível fazer com que

os processos para compra de equipamentos, contratação de funcioná-rios como intérprete de Libras ou mudanças estruturais andem mais rápido. Coordenadora do programa à época da entrevista a essa re-portagem, Lúcia comentou que não costumava encontrar resistência das pessoas responsáveis em resolver os problemas, no entanto, os trâmites burocráticos da própria Universidade não deixavam que as adaptações chegassem aos estudantes com rapidez e eficácia.

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A professora defende que o correto a se buscar em todas as etapas da Educação é que as pessoas com deficiência encontrem equipara-ção de oportunidades. A universidade deve, portanto, em sua opinião, assistir esses alunos de maneira que possam competir com os demais de forma igual. Lembra-se aqui, mais uma vez, que a justiça não está em determinar uma linha de chegada, mas em certificar-se que todos saiam da mesma linha de partida.

Pensando assim, a demora burocrática para solucionar questões que dificultam o livre-trânsito, o aprendizado ou a autonomia de de-terminados alunos é privá-los de oportunidades iguais às dos demais membros do corpo discente.

PrioridadeOs recursos escassos em decorrência da crise financeira que a

USP ainda enfrenta também limitam a força de transformação do pro-grama. Por conta do pouco dinheiro, apenas situações urgentes são resolvidas. A falta de condições financeiras intimida os investimentos pró-ativos da instituição, o que reforça o sentido inverso do que seria legalmente adequado. Ao priorizar dificuldades agudas, deixa-se de pensar em mudanças a longo prazo e realmente estruturais.

O que se aprende com a experiência da USPAinda longe do ideal, as condições do USP Legal mostram que

a presença das pessoas com deficiência na Universidade é capaz de melhorar as condições deles próprios e dos demais. Ainda que pela lei o movimento devesse ser inverso.

Pessoas com mobilidade reduzida têm buscado transformar os ambientes inacessíveis de acordo com suas necessidades. Cegos ten-tam modificar a forma como os professores que lhes ministram aulas

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descrevem os procedimentos ensinados, além de exigir recursos que os ajudem a compreender os conteúdos. Surdos querem intérpretes de Libras e assim, cada estudante tem exigido as adaptações necessá-rias para seu aprendizado e locomoção.

Mesmo sem ser o ideal, o exemplo da USP mostra esses alunos pro-tagonizando as mudanças onde estão, escrevendo a própria história e demonstrando que as reais deficiências estão nos locais, nas estruturas, nas organizações, na administração e na cultura e não em si próprias.

Por outro lado, enquanto não se inverter o processo, fazendo com que as mudanças ocorram pelo cumprimento da legislação que ampa-ra essa minoria, muitos seguirão excluídos. O papel desses indivíduos de transformar a realidade continuará a ser de grande importância, mas enquanto isso não partir também das instituições, aqueles que ainda não conseguem exercer tal protagonismo não usufruirão dos benefícios de uma educação de qualidade.

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Reflexões Finais

As dificuldades enfrentadas por Lucas Abreu Maia, Brenno Dou-ettes e Abigail Miranda na Educação Superior são pequenos exem-plos perto do que se encontra ao analisar a situação de pessoas com deficiência na tentativa de fazer valer seus direitos. É por isso que a luta para que esses cidadãos tenham seu acesso à educação garantido é tão importante, pois não há como reivindicar aquilo que não se sabe que é possível ter. O fim da ignorância é, afinal, o primeiro passo para a insatisfação.

Seria impossível refletir sobre a presença de alunos com deficiên-cia na graduação e pós-graduação se os anos de reivindicações pela Educação Básica não tivessem garantido melhoras na inclusão desses estudantes. No entanto, ter obtido conquistas nessa etapa de ensino não satisfaz quem por ela luta. Eles querem mais.

Quanto mais o público de pessoas com deficiência tiver acesso à informação, quanto mais poder receberem por meio do conhecimen-to, mais prontos eles estarão para encarar seus próprios desafios e levantar suas bandeiras. O lema apresentado no ano de 1986, “Nada sobre nós sem nós”, precisa ser relembrado todos os dias, de maneira que todas as demandas lhes proporcionem mais autonomia e prota-gonismo em suas narrativas.

Essa foi a motivação desse trabalho: lembrar que, sendo donos de suas vidas, eles próprios (cegos, surdos, cadeirantes e tantos outros não representados nesse livro) devem contar suas histórias e decidir o que querem ser. Aliás, o que mais representa essa autonomia e auto-descoberta do que o momento em que se está na faculdade?

Não, as universidades não têm a devida estrutura e às vezes nem boa vontade, mas o primeiro passo é se fazer presente, ouvido

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e atendido. É preciso que fique claro: as deficiências que devem ser extinguidas da sociedade são as deficiências dos prédios sem eleva-dores, das escolas sem intérpretes de LIBRAS, das universidades que não convertem textos para PDF, entre outras.

As pessoas com deficiência gritam: “O problema não é meu!”, ao que se deve responder: “Vamos resolvê-lo juntos?”.

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O PROBLEMA NAO É MEU

O PROBLEMA NAO É MEU

Pessoas com defi ciência que lidam com as incapacidades da Educação Superior

Talita Nascimento

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