o problema do lixo radioativo

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H á pelo menos seis décadas a humanidade tem à sua frente o problema de um lixo nuclear crescente, que permanece sem solução definitiva. Desde que as primeiras experiências com a energia nuclear foram realizadas, os países detentores dessa tecnologia têm desenvolvido métodos para lidar com os rejeitos radioativos de alta atividade, que demorarão séculos, milênios ou até milhões de anos para deixarem de ser nocivos ao homem e à natureza. O Brasil também enfrenta esse problema desde que realizou as primeiras reações nucleares em 1982, na O PROBLEMA DO LIXO RADIOATIVO Brasil retoma a construção de Angra 3, enquanto o mundo debate os problemas da energia nuclear por Giovana Moraes Suzin Enviada a Viena

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Há pelo menos seis décadas a humanidade tem à sua frente o problema de um lixo nuclearcrescente, que permanece sem solução definitiva. Desde que as primeiras experiências com aenergia nuclear foram realizadas, os países detentores dessa tecnologia têm desenvolvido

métodos para lidar com os rejeitos radioativos de alta atividade, que demorarão séculos, milênios ou atémilhões de anos para deixarem de ser nocivos ao homem e à natureza.

O Brasil também enfrenta esse problema desde que realizou as primeiras reações nucleares em 1982, na

O PROBLEMA DO

LIXORADIOATIVO

Brasil retoma a construção de Angra 3, enquantoo mundo debate os problemas da energia nuclear

por Giovana Moraes SuzinEnviada a Viena

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usina de Angra 1. O lixo radioativo foi o tema dos debates da conferência de 2014 da Agência Internacionalde Energia Atômica (AIEA), braço da Organização das Nações Unidas (ONU) voltado para promover econtrolar o uso pacífico da energia nuclear no mundo, com sede em Viena, na Áustria.

Tudo começou quando dois sucateiros encontraram – sem saber o que era – uma cápsula de Césio-137abandonada nas antigas dependências do Instituto Goiano de Radioterapia. O material, transportado até acasa de um deles, foi parcialmente aberto. Dias depois, foi vendido ao dono de um ferro-velho, queterminou de violar a cápsula. Amigos e parentes do homem se impressionaram com o brilho azul dasubstância radioativa e o material foi manuseado por várias pessoas.

O material nuclear cresceu muito nos últimos anos. Se um país considera usar essa tecnologia, devepensar também o que fazer com o que resta dela desde o primeiro instante”, afirmou o diretor-geral daAIEA, Yukiya Amano, ao abrir o encontro anual da agência. Mas não são apenas rejeitos provenientes deusinas nucleares que representam perigo se não forem tratados e depositados adequadamente. O lixoresultante de outras aplicações da radiação nuclear, como o usado em equipamentos em hospitais, naindústria e na agricultura, também requerem cuidados. No Brasil, ocorreu um dos mais graves acidentes dahistória com lixo nuclear quando, em 1987, houve negligência no descarte de equipamentos com materialradioativo em um hospital, e os resíduos foram manipulados e espalhados por catadores de sucata. Emdecorrência, ao menos 621 pessoas foram contaminadas pela exposição ao Césio-137 em Goiânia, capitalde Goiás.

OS PERIGOS NUCLEARES

FOTO: AFP/ZUFAROV

1/4Em março de 2011, o Japão foi atingido por um

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Nos dias que se seguiram, os que tiveram contato com o pó começaram a apresentar sintomas decontaminação, e exames constataram a radioatividade. A região do ferro-velho foi então isolada pelaComissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen). A radiação atingiu um raio de 2.000 metros quadrados ematou quatro pessoas imediatamente. Somente em 1996 quatro médicos e um físico foram condenados aprestar serviços sociais como punição por terem deixado o material radioativo misturado no lixo comum.

Discute-se a segurança dos resíduos nucleares, assim como das usinas, desde a implantação dasprimeiras unidades, na década de 1950, nos Estados Unidos e na extinta União Soviética (1917-1991). Osriscos de acidente numa usina, mesmo que pequenos, podem trazer consequências extremamente sérias:o vazamento de radioatividade pode contaminar o solo e a água e trazer efeitos muito danosos não apenasaos ecossistemas, mas também à saúde dos animais e de seres humanos. Até hoje não existem sistemasde funcionamento de usinas nem de descarte ou reutilização dos resíduos radioativos produzidos por elasque sejam totalmente seguros.

As críticas aos programas de energia baseados na liberação de força a partir da ruptura dos átomos sãoreforçadas por eventos trágicos, como o grave acidente na usina nuclear de Fukushima, no Japão,provocado pelo terremoto e pelo tsunami de 11 de março de 2011. Foi o pior acidente do gênero desde aexplosão do reator da usina de Chernobyl, na Ucrânia – então parte da União Soviética –, em 1986. Depoisdo desastre no Japão, o governo da Alemanha anunciou a intenção de desligar, até 2022, os seus 17reatores nucleares, que fornecem quase 18% da energia elétrica do país, e substituí-los por outras fontes deenergia. Trata-se de uma mudança de rota, numa época em que construir mais reatores nucleares é umapossibilidade indicada, dentro das discussões do aquecimento global, como uma solução de energia limpapara países como Índia e China, que precisarão produzir muito mais energia no futuro do que agora.

Enquanto a Alemanha discute a desativação das usinas atômicas, o Brasil retoma a construção da usina deAngra 3. Será o terceiro grande empreendimento de geração de energia nuclear no país. Antes prevista paraentrar em funcionamento em 2015, a nova meta agora é 2018.

No mundo todo, existem mais de 430 usinas nucleares (duas delas noBrasil), e muitas outras estão em processo de construção. A energianuclear é atualmente responsável por 1,5% da energia produzida noBrasil, e representa 5,1% de toda a energia produzida no planeta.Porém, em alguns países da Europa e da Ásia, a fissão de átomos de

PRINCIPAIS RESERVASO Brasil possui uma das maioresreservas de urânio do planeta

RADIOATIVIDADE EMALTA

Em março de 2011, o Japão foi atingido por umterremoto e maremoto que danificou seriamente a central nuclear de Fukushima Daiichi, dando um alerta ao mundo.

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elementos radioativos, como urânio e plutônio, é a principal fonte degeração da eletricidade que mantém os lares iluminados, as máquinasfuncionando e os sistemas de transporte urbano em atividade. NaFrança, as usinas nucleares respondem por mais de 76% daeletricidade, e na Ucrânia, por 48%.

Nesses países, a opção pelo uso da energia nuclear tem ao menostrês razões. A primeira é que possuem poucas fontes de energia,como petróleo e usinas hidrelétricas. A segunda é a eficiência daenergia nuclear: um volume muito grande de energia é gerado por umapequena porção de material radioativo. Por fim, a terceira razão é ofato de essa ser considerada uma fonte limpa – ou seja, a produção eo uso de energia nuclear liberam poucos gases de efeito estufa. Comoo combate ao aquecimento global ganhou destaque nas últimas duasdécadas, a energia nuclear havia recuperado prestígio. Mas aqui valeum porém: organizações ambientalistas afirmam que essa fonte não étão limpa assim. De acordo com o Greenpeace, embora os reatoresnão emitam carbono, a construção das usinas, a extração do minério eo descarte do lixo radioativo produzem mais emissões do que outrasfontes.

*Reservas estimadas cuja extração custa até130 dólares por quilo. Fonte: Associação Nuclear Mundial; Dados de2014

COMO FUNCIONA UMA CENTRAL NUCLEAREla opera como uma usina termelétrica, na qual a energia liberada pela fissão do urânio serve como fonte de calor

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Mesmo que a segurança das instalações seja considerada satisfatória,resta o problema do lixo. Tecnicamente, o rejeito é todo materialresultante de atividade humana que contém elementos radioativoscom risco à saúde e ao meio ambiente e para o qual não serecomenda a reutilização. A AIEA exige que o lixo nuclear sejaembalado e armazenado de forma a ficar isolado até que não ofereçamais risco ao meio ambiente e à saúde humana, ou seja, até que deixede ser radioativo. O tempo para isso varia de elemento para elemento.

Há os rejeitos de baixa e média atividade – provenientes da áreamédica e de parte dos materiais usados em usinas nucleares – e os dealta atividade, que são basicamente os restos dos elementoscombustíveis das usinas. Os dois primeiros tipos são processados earmazenados em depósitos construídos especificamente para essefim. São recipientes especiais, confinados em um tipo de trincheirarevestida de concreto por todos os lados. Nesses locais, o lixo nucleardeve ficar isolado por períodos que variam de 50 a 300 anos.

Para os rejeitos de alta atividade, a preocupação é maior. O urânioenriquecido utilizado em reatores, por exemplo, mantém-se radioativopor milhões de anos. Não há, até hoje, uma resposta definitiva sobrecomo armazenar esse material sem oferecer riscos às populações eao entorno. No Brasil, rejeitos desse tipo são armazenados por horaem piscinas de resfriamento nas próprias usinas nucleares que osproduzem.

De modo geral, o destino final desses rejeitos mais perigosos sãodepósitos subterrâneos, nos quais o material fica em cápsulas demetal, enterrado a centenas de metros. Depois de cheias ecompletamente vedadas, essas cavernas devem isolar os rejeitos portempo indeterminado. Atualmente, os países produtores de rejeitos dealta atividade discutem qual a melhor solução definitiva para esse lixo.A efetividade ou não das suas decisões só deverá ser avaliada pelasgerações futuras.

MEIA-VIDA DO URÂNIOCom o tempo, o elemento reduzsua capacidade de emitirradiação

O LIXONUCLEAR

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O ENRIQUECIMENTOPara gerar energia, é precisoaumentar a concentração de U-235. É esse isótopo que permitea fissão nuclear em cadeia

USOQuanto mais enriquecido, maioro potencial energético do urânio

O URÂNIOEle tem o maior peso atômico entre todas as substâncias naturais

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As tentativas de regulamentar o setor remontam a uma época em que os arsenais nucleares estavam semultiplicando. Foi durante a Guerra Fria (período de confronto entre os Estados Unidos e a União Soviética,entre 1945 e 1991) que o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) foi assinado. Fechado em 1968 evigente desde 1970, considera as nações divididas em dois blocos: de um lado, os cinco países queexplodiram ao menos uma bomba atômica antes de 1º de janeiro de 1967 – Estados Unidos, UniãoSoviética (sucedida pela Rússia), China, Reino Unido e França; de outro, todas as demais nações, incluindoBrasil, que assinaram o TNP e se comprometeram a não tentar obter armas nucleares. Essa divisão temcomo base a situação geopolítica mundial ao término da II Guerra Mundial (1939-1945). Os cinco países doprimeiro bloco foram os vencedores da guerra e, não por acaso, são também os membros permanentes doConselho de Segurança (CS) da ONU, os únicos com poder de veto sobre qualquer decisão do organismo.

De acordo com o TNP, os cinco podem manter suas armas atômicas, mas não transferi-las, nem repassara tecnologia para a sua fabricação, a nenhuma outra nação. O tratado permite que os demais paísesdesenvolvam a tecnologia nuclear para a geração de energia elétrica e outros fins pacíficos, sujeitando-seàs inspeções da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA). No âmbito do TNP, as potênciasnucleares se comprometeram a avançar para o desarmamento nuclear. Além das cinco potênciasatômicas, há ainda quatro países com arsenais nucleares, que estão fora do tratado: Coreia do Norte, Índia,Paquistão e Israel.

A AIEA aprovou, em 1997, um Protocolo Adicional, que dá aos inspetores da agência poderes deinvestigação mais amplos. Enquanto o TNP estipula que as visitas de inspeção são negociadaspreviamente com cada país e há limites para as verificações, o Protocolo Adicional dá à AIEA o direito defiscalizar sem aviso prévio e sem restrições.

Os principais países atingidos pelas determinações do Protocolo Adicional são os que dominam oenriquecimento do urânio, como o Irã e o Brasil (com enriquecimento de até 5%, é possível gerar energiaem usinas atômicas; em torno de 20% ou mais, combustível para submarinos; e mais de 90%, armasatômicas). Muitos cientistas da área nuclear dizem que o protocolo trava de fato o avanço tecnológicodesses países, em proveito das nações que detêm o controle do processo nuclear, inclusive para finseconômicos, como a geração de energia e os usos medicinais. O Protocolo Adicional poderia afetar oprograma brasileiro, mas como é um instrumento voluntário, o Brasil optou por não aderir.

TRATADO DE NÃO PROLIFERAÇÃONUCLEAR

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O CLUBE ATÔMICOConheça os países que possuem usinas nucleares, ogivas atômicas e fábricas de enriquecimento de urânio

A repórter Giovana Moraes Suzin viajou a Viena a convite da Agência Internacional de Energia Atômica.