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O princípio do contexto em ‘Os fundamentos da aritmética’ de Frege Pablo Barbosa Santana da Silva Universidade Federal Fluminense Resumo Neste trabalho se observa o papel do princípio do contexto de Frege nos fundamentos da aritmética e o motivo pelo qual se apela nesta obra para este princípio. Como se verá, o princípio do contexto desempenha uma função crítica de se opor a uma interpretação psicológica da referência; além de evitar uma concepção física e psicológica dos números. O princípio também tem um papel construtivo no conhecimento de objetos como os números. Nos fundamentos da aritmética (Grundlagen der Arithmetik), Frege expõe pela primeira vez de maneira explícita o princípio do contexto. O princípio aparece quatro vezes nos Grundlagen, e sua principal ocorrência se encontra no §62: “Nur in Zusammenhange eines Satzes bedeuten die Wörter etwas.” (“Apenas no contexto de uma proposição as palavras significam algo.” 1 ). Nos Grundlagen, o princípio do contexto desempenha o papel de combater uma visão atomística ideacional de significado além do papel positivo de justificar definições contextuais. Embora no período dos Grundlagen Frege ainda não tinha desenvolvido de forma clara sua teoria do sentido e referência, de acordo com Dummett, Matthias Schirn e outros autores, é possível observar tal distinção. Palavras-chave: princípio do contexto, psicologismo, atomismo semântico, holismo, definição contextual. Abstract In this paper it to observe the role of Frege’s context principle in the fundamentals of arithmetics and the reason why this work appeals for this principle. As it will be seen, the context principle performs the critical function of opposing a psychological interpretation of reference, besides avoiding a physical and psychological conception of numbers. The principle also has a constructive role in the knowledge of objects as numbers. In the fundamentals of arithmetics ( Grundlagen der Arithmetik), for the first time Frege exposes explicitly the context principle. The principle appears for four times in the Grundlagen, and its main occurrence is encountered in §62: “Nur in Zusammenhange eines Satzesbedeuten die 1 Tradução brasileira: FREGE, Friedrich L. Gottlob. Os fundamentos da aritmética: uma investigação lógico-matemática sobre o conceito de número. In Peirce e Frege: Col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 256. 1

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Page 1: O princípio do contexto em ‘Os fundamentos da aritmética ... · Pablo Barbosa Santana da Silva ... conhecimento de objetos como os números. Nos fundamentos da aritmética

O princípio do contexto em ‘Os fundamentos da aritmética’ de Frege

Pablo Barbosa Santana da Silva

Universidade Federal Fluminense

Resumo

Neste trabalho se observa o papel do princípio do contexto de Frege nos fundamentos da aritmética e o

motivo pelo qual se apela nesta obra para este princípio. Como se verá, o princípio do contexto

desempenha uma função crítica de se opor a uma interpretação psicológica da referência; além de evitar

uma concepção física e psicológica dos números. O princípio também tem um papel construtivo no

conhecimento de objetos como os números. Nos fundamentos da aritmética (Grundlagen der Arithmetik),

Frege expõe pela primeira vez de maneira explícita o princípio do contexto. O princípio aparece quatro

vezes nos Grundlagen, e sua principal ocorrência se encontra no §62: “Nur in Zusammenhange eines

Satzes bedeuten die Wörter etwas.” (“Apenas no contexto de uma proposição as palavras significam

algo.” 1). Nos Grundlagen, o princípio do contexto desempenha o papel de combater uma visão

atomística ideacional de significado além do papel positivo de justificar definições contextuais. Embora

no período dos Grundlagen Frege ainda não tinha desenvolvido de forma clara sua teoria do sentido e

referência, de acordo com Dummett, Matthias Schirn e outros autores, é possível observar tal distinção.

Palavras-chave: princípio do contexto, psicologismo, atomismo semântico, holismo, definição

contextual.

Abstract

In this paper it to observe the role of Frege’s context principle in the fundamentals of arithmetics and the

reason why this work appeals for this principle. As it will be seen, the context principle performs the

critical function of opposing a psychological interpretation of reference, besides avoiding a physical and

psychological conception of numbers. The principle also has a constructive role in the knowledge of

objects as numbers. In the fundamentals of arithmetics (Grundlagen der Arithmetik), for the first time

Frege exposes explicitly the context principle. The principle appears for four times in the Grundlagen,

and its main occurrence is encountered in §62: “Nur in Zusammenhange eines Satzesbedeuten die

1� Tradução brasileira: FREGE, Friedrich L. Gottlob. Os fundamentos da aritmética: uma investigação lógico-matemática sobre o conceito de número. In Peirce e Frege: Col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 256.

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Wörteretwas.” (“Only in the context of a proposition has a name meaning”). In the Grundlagen, the

context principle performs the role of challenging an ideational atomistic view of meaning, besides the

positive role of justifying contextual definitions. In spite of the fact that during the period of the

Grundlagen Frege had not clearly developed his theory of meaning and reference, according to Dummett,

Mathias Schirn and other authors, it’s possible observe such distinction.

Keywords: context principle, psychologism, semantic atomism, holism, contextual definition.

1. Introdução

1.1. O projeto logicista de Frege

O período que compreende a publicação da Begriffsschrift (1879) e alguns

breves artigos relacionados a ela, anteriores aos Grundlagen, foi denominado por

Dummett2 como o primeiro estágio do desenvolvimento do pensamento de Frege. É

nessa época em que Frege desenvolve a lógica proposicional e sua lógica de predicados

de primeira e de segunda ordem. O objetivo básico do sistema lógico desenvolvido

nesses primeiros trabalhos de Frege era atingir um ideal de maior rigor para a

matemática, de modo que suas provas pudessem ser completamente formalizadas sem a

necessidade de apelo à intuição para avaliar a sua correção. O segundo período de Frege

se estende até a publicação de Os fundamentos da aritmética3 (1884), de acordo com

Dummett, é a partir daí que Frege pela primeira vez aparece não meramente como um

lógico, mas também como filósofo. Nele, Frege expõe sua conclusão de que todas as

noções da aritmética poderiam ser definidas por meio da lógica geral. A famosa tese de

que todas as leis aritméticas poderiam ser provadas por meio de princípios da lógica

geral, ou que a aritmética é analítica, foi denominada de logicismo.

2� Truth and oder enigmas. (sixth printing, 1996) Londres: Duckworth, 1978, pp.89-90.

3� A partir de agora Grundlagen.

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Nos Grundlagen, após uma fria recepção de sua Begriffsschrift, Frege faz uma

exposição informal de seu projeto logicista, sem utilizar o formalismo de sua linguagem

conceitual, antes de fazer uma exposição formal nas Grundgesetze der Arithmetik 4

(Leis básicas da aritmética). Na introdução dos Grundlagen Frege anuncia seu

programa e por meio de duas questões, a saber: o que são os números? e qual a natureza

das verdades da aritmética? Lança um ataque devastador às concepções de seus

predecessores e contemporâneos. Para ele as operações e os conceitos mais

fundamentais da aritmética não haviam sido bem compreendidos pelos filósofos e

matemáticos de seu tempo. Depois de sua crítica à essas concepções, Frege apresenta

seu método que tinha por escopo definir as noções da aritmética e provar suas leis

básicas por meio de princípios puramente lógicos. Deve-se observar, entretanto, que o

programa logicista não se estendia para toda a matemática; em relação à geometria,

Frege concordava com Kant de que as suas verdades eram sintéticas a priori, logo

dependentes de intuição. Por conta disso, diferentemente da aritmética, que seria

analítica a priori e não dependente de intuição, a geometria, sintética a priori e

dependente de intuições, não seria redutível à lógica.

No decorrer dos Grundlagen o princípio do contexto, que aparece pela primeira

na introdução junto com mais dois metodológicos, se mostra de suma importância no

empreendimento de Frege de redução da aritmética à lógica. O princípio do contexto se

mostra fundamental tanto na crítica às diferentes concepções de número, se opondo às

concepções psicologista e fisicalista, e em um sentido contrutivo auxiliando na

determinação dos números como entidades lógicas.

2. O princípio do contexto

2.1. Apresentação do princípio do contexto

Embora seja amplamente reconhecido como uma das grandes contribuições de

Frege para a filosofia, de um modo geral, e pode se dizer também para a filosofia da

4� A partir de agora Grundgesetze.

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linguagem, em particular, (enquanto interpretado como um princípio semântico) o

princípio que foi chamado pelos filósofos contemporâneos de o ‘princípio do contexto’

é um princípio controverso. E que já causou bastante discussão entre os comentadores

de Frege. Também há interpretações do princípio do contexto como um princípio mais

epistemológico5, como em Gregory Currie que não será visto aqui, e que se opõe à

interpretação de Dummett de que o princípio do contexto seja um princípio semântico e

pertencente à filosofia da linguagem.

Muito foi discutido sobre a função do princípio na obra de Frege. Em quais

textos do autor ele ocorre, e se há uma formulação do princípio depois dos Grundlagen.

Se Frege teria abandonado o princípio em seu período de maturidade, depois de ter

desenvolvido plenamente sua doutrina semântica e estabelecido a clássica distinção

entre sentido e referência (depois de 1890). Ou ainda se o princípio entra em conflito

com outro princípio fregeano (reconhecidamente importante) como o chamado princípio

de Frege ou princípio de composicionalidade. Isso só para colocar algumas das

dificuldades exegéticas que o princípio do contexto já suscitou.

Um ponto comum é que o princípio do contexto aparece de forma explícita

quatro vezes nos Grundlagen. Enquanto intérpretes de Frege como Angelelli6 e Resnik7

afirmaram o que o princípio tenha sido rejeitado em obras posteriores. Sluga afirmou ter

encontrado evidências de que Frege manteve o princípio em textos posteriores. Ao

passo que Dummett argumentou que Frege manteve o princípio nas Grundgesetze –

onde aparece de forma implícita e em uma versão ou um princípio do contexto

generalizado.

5� Cf. Gregory Currie: Frege on Thoughts, Mind. 89, (1980) p. 242.

6� Cf. CRITICAL REMARKS ON MICHAEL DUMMETT'S FREGE AND OTHER PHILOSOPHERS (Review of Michael Dummett, Frege and other philosophers, Oxford, Clarendon Press, 1991, pp. 387-400)

7� Cf. The Context Principle in Frege’s Philosophy. In: Philosophy and Phenomenological Research, Vol. 27, Nº 3 (Mar., 1967), pp. 256-365.

4

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As ocorrências explícitas do princípio do contexto nos Grundlagen são as

seguintes:

(1) “deve-se perguntar pelo significado das palavras no contexto da proposição, e

não isoladamente (...)”; 8

(2) “Deve-se porém atentar sempre a uma proposição completa. Apenas nela têm as

palavras propriamente significado (...)”; 9

(3) “Apenas no contexto de uma proposição as palavras significam algo.”; 10

(4) “(...) uma palavra não deve ser definida isoladamente, e sim no contexto de uma

proposição.” 11

O princípio é exposto como em (1), na introdução dos Grundlagen como o

segundo princípio de três princípios metodológicos fundamentais que deveriam nortear

toda a obra. Mais adiante, no capítulo IV, o princípio torna a aparecer no §60, em (2)

como observa Dummett “no fim da passagem crucial, §§ 55-61, em que Frege

argumenta pela necessidade de reconhecer números como objetos, e como uma

importante parte da justificação para considerá-los” 12. E no §62, em (3), quando Frege

tenta definir contextualmente números cardinais, o princípio do contexto é reiterado “no

8� Op. Cit. Os fundamentos da aritmética. p. 208.

9� Ibidem, p. 252.

10� Ibidem, p. 256.

11� Ibidem, p. 280.

12� Cf.: DUMMETT, M. (1981), p. 360. Tradução minha. No original: “(…) towards the end of the crucial passage, §§ 55-61, in which Frege argues for the necessity of regarding numbers as objects, and as an important part of the justification for so regarding them.”

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início de uma igualmente crucial passagem, §§ 62-69, em que Frege apresenta suas

razões para definir números cardinais do modo como o faz, a saber, como classes de

conceitos.” 13 Por fim, o princípio retorna no §106, em (4), quando Frege faz uma

revisão de seus princípios metodológicos.

O princípio do contexto em uma função negativa, ou crítica, se opõe a uma

visão psicologista e fisicalista de número e em um sentido positivo contribui na

determinação de termos numéricos e dos termos da linguagem. O princípio em sua

função metodológica é importante para evitar o psicologismo e o fisicalismo, Frege

objetiva mostrar que o significado (Bedeutung) de expressões da linguagem não é algo

subjetivo ou individual. E também tem um papel epistêmico importante no

conhecimento de objetos lógicos, ou abstratos, como os números. Aplicado em um

sentido metodológico ele combate uma visão ideacional e atomística do significado

tanto das palavras, em um sentido mais geral como de termos numéricos em específico.

Tal concepção, a partir da qual o significado dos termos é obtido por meio de ideias ou

imagens mentais, se oporia à própria objetividade da matemática.

2.2. O princípio do contexto e a refutação do psicologismo

A introdução dos Grundlagen começa com a investigação de Frege sobre a

teoria dos números e com sua crítica às concepções de número e da verdade matemática

de seus predecessores e contemporâneos. Nela também se encontra a primeira

ocorrência do princípio do contexto, quando Frege anuncia três princípios

fundamentais. O primeiro princípio é a rejeição ao psicologismo; o segundo o princípio

chamado pelos filósofos contemporâneos do princípio do contexto, e que tem, diz frege,

uma relação estreita com o primeiro princípio; e o terceiro princípio básico é a distinção

entre conceito e objeto. Esses três princípios aparecem nos Grundlagen da seguinte

forma:

13� Idem, p. 360. No original: “at the begnning of the qually crucial passage, §§ 62-69, in wich Frege sets out his reasons for defining cardinal numbers in the way he does, namely as classes of concepts”

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“deve-se separar precisamente o psicológico do lógico, o

subjetivo do objetivo;

deve-se perguntar pelo significado das palavras no contexto da

proposição, e não isoladamente;

não se deve perder de vista a distinção entre conceito e

objeto.”14

Ao longo da introdução dos Grundlagen Frege defende que os conceitos e

inferências fundamentais da aritmética são baseados em leis gerais da lógica e não na

psicologia como defendiam alguns filósofos que lhe eram contemporâneos. Para os

empiristas, que pretendiam fundamentar todo o conhecimento humano na experiência

sensível, os conteúdos da mente humana são formados por impressões sensoriais e

imagens mentais deixadas por essas impressões. Portanto, mesmo os conhecimentos

matemáticos seriam produto de impressões sensoriais e imagens mentais. Para Frege, no

entanto, havia a necessidade de eliminar a confusão dentro da filosofia entre os âmbitos

da psicologia e o âmbito da lógica e, subsequentemente, da matemática. Se convinha

distinguir a matemática da psicologia, por outro lado, a matemática tinha a relação mais

íntima com a lógica. Uma ciência tão certa como a matemática não poderia ser

fundamentada por uma ciência tão precária e instável como a psicologia: a

“instabilidade e indeterminação de todas estas configurações opõem-se firmemente à

determinação e estabilidade dos objetos e conceitos matemáticos” 15 Frege dedica uma

parte dos Grundlagen para refutar essa concepção e a concepção de número de John

Stuart Mill, o filósofo empirista mais famoso da época. Sensações e imagens mentais

não têm nada a ver com a aritmética e em nada contribuem para sua compreensão;

diferentes matemáticos formam diferentes imagens mentais de um mesmo número e as

condições dos processos mentais não contribuem de forma alguma para a verdade de

uma proposição aritmética.

14� Op. Cit. Os fundamentos da aritmética. p. 208.

15� Idem, p. 205.

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A sensação e imaginação humana, objetos da psicologia, são diferentes dos

conceitos que, por sua vez, são objetos da aritmética. Enquanto ideias, e a consciência

humana, estão em constante mudança e evolução, um conceito, embora tenha uma

história de descoberta e expressão dele, não evolui. O conceito, que é estudado pelo

matemático, e como defendeu Frege ao longo de toda a vida, é uma entidade objetiva, e

não subjetiva, e difere de uma imagem mental. Convém, portanto, separar a matemática,

que lida com conceitos objetivos e não ideias mentais, da psicologia. Não obstante,

“tanto mais deve pois a matemática recusar qualquer subsídio por parte da psicologia,

tanto menos pode renegar sua conexão íntima com a lógica.” 16 As definições e

conceitos mais básicos da aritmética têm seu fundamento na lógica. O primeiro

princípio fundamental apresentado por Frege, a necessidade de separar o lógico do

psicológico, é já discutido na introdução dos Grundlagen, ao passo que os outros dois

princípios, o princípio do contexto e a distinção entre conceito e objeto, aparecem de

repente. Ao longo do livro, conforme Frege define sua concepção de número, estes dois

princípios têm a sua função melhor esclarecida no texto.

O princípio do contexto é ligado por Frege ao primeiro princípio e tido como

fundamental para evitar que se tomem imagens mentais como o significado das

palavras. Ele é importante para que se evite explicar o significado das palavras, e termos

numéricos, a partir de um ponto de vista psicológico e subjetivista. O psicologismo,

como acusa Frege, comete o erro de perguntar pelo significado das palavras em isolado,

a despeito dos contextos sentenciais em que podem ocorrer, o que levaria a associar o

significado de um termo com uma imagem mental. Ao longo da história da filosofia,

como observa Dummett17, a concepção psicologista dos termos do atomismo semântico,

comum a Aristóteles e aos empiristas ingleses, sustentou que uma palavra representa

uma ideia e que uma frase ou sentença representa um complexo de ideias. Tal

16� Ibidem, p. 207.

17� Cf.: DUMMETT, Michael. Truth and oder enigmas. (sixth printing, 1996) Londres: Duckworth, 1978. p. 94.

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concepção, que viola o princípio do contexto de jamais perguntar pelo significado de

um termo em isolado, mas somente em um contexto sentencial, praticamente força a

associar o significado de uma palavra à uma imagem mental. Entretanto, se se observa o

princípio do contexto, o significado de um termo consiste na sua contribuição para o

significado da sentença em que ocorre. Imagens mentais que um termo pode despertar

em um falante ou ouvinte de forma alguma são relevantes para o seu significado; do

mesmo modo que não são relevantes para a determinação de termos numéricos e de

verdades aritméticas.

Os objetos da aritmética (Cf. §105 dos Grundlagen) são acessados

exclusivamente pela razão. Frege também argumenta que ao sensível não pertence

tamanha generalidade de poder se aplicar também ao não sensível. Eles são objetos

objetivos que existem independentemente da atividade humana. O princípio do contexto

aparece, nesse sentido, como condição essencial para o reconhecimento da objetividade

de objetos não atuais como termos números. Objetos não precisam ser atuais para serem

objetivos.

Se o princípio do contexto não é observado, como indica Frege, se cai no erro

empirista de considerar os números como objetos atuais com propriedades físicas ou do

psicologismo de que números são subjetivos e produtos de processos mentais. Como diz

Frege no § 106 dos Grundlagen em uma das ocorrências do princípio do contexto:

“Estabelecemos então o princípio de que uma palavra não deve ser definida

isoladamente, e sim no contexto de uma proposição, cuja obediência basta, creio eu,

para evitar a concepção física do número sem recair no psicologismo.” 18 Para Resnik19

essa ocorrência do princípio do contexto, bem como a do § 62, está ligada a uma

interpretação do princípio como que relacionado à referência e ao seu corolário “’nunca

perguntar a referência de uma palavra de forma isolada.’ Frege aparentemente pensa que

18� Grundlagen, §106, p. 280.

19�

9

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perguntar pela referência de uma palavra em isolado é pedir para ser suprido com algum

objeto físico ou imagem mental. Caso contrário, perguntar pelas referências de palavras

em isolado não precisa dirigir-nos para o psicologismo.” 20

2.3 As definições contextuais e o princípio do contexto

Em seu artigo ‘Frege’s Context Principle’, Bar-Elli dá a seguinte explicação

sobre o que é uma definição contextual: “Uma definição contextual é aquela em que a

referência de um termo é concebida unicamente em termos do significado de um

contexto no qual ele ocorre, onde o significado é atribuído a este contexto como um

todo em termos de outras expressões. Um exemplo clássico é a definição contextual

acima de direção oferecida por Frege (como um estágio preliminar) nos FA: direções

não são definidas diretamente ou explicitamente, mas o significado é conferido sobre

todo o contexto - a identidade entre as direções das linhas - em termos de linhas e

paralelismo.” 21

De acordo com Dummett uma das funções do princípio do contexto seria a de

justificar definições contextuais, como, por exemplo, na seguinte passagem de seu texto

Frege’s Philosophy:

Quando os Grundlagen é lido em seu sentido natural, sem a importação de pontos de vista expressos apenas em escritos posteriores de Frege, é claro que ele considerava o seu princípio que as palavras só têm sentido no contexto de sentenças como

20� Cf. Resnik, 1967. pp. 358-59. No original: Frege apparently thinks that asking for the reference of a word in isolation is to ask to be furnished with some physical object or mental image. Otherwise asking for the references of words in isolation (page 359) need not drive us to psychologism.

21� Cf. BAR-ELLI, Gillead. P. 118. No original: “A contextual definition is one in which the reference of a term is conceived solely in terms of the meaning of a context in which it occurs, where meaning is ascribed to this context as a whole in terms of other expressions. A classical example is the above contextual definition of direction offered by Frege (as a preliminary stage) in FA: Directions are not defined directly or explicitly, but a meaning is conferred on the whole context - the identity between directions of lines - in terms of lines and parallelism.”

10

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justificando definição contextual, e assumiu que isto é uma de suas consequências mais importantes. 22

Antes de discutir essa questão algumas observações devem ser feitas sobre os

Grundlagen. Em relação à sua concepção de número, Frege toma de Leibniz que o

conjunto infinito dos números naturais pode ser demonstrado a partir de algumas

fórmulas gerais e do um e o aumento de um (n, n+1...), sendo cada número definido a

partir do número que o precede. Algo que se pode observar de ambos é que as verdades

da aritmética pertencem ao domínio do necessário, são verdades que não dependem do

testemunho dos sentidos, posição que difere, por exemplo, da de John Stuart Mill e Kant

que consideravam os números derivados pressupostos empíricos. Tanto para Leibniz

como para Frege as leis aritméticas são analíticas a priori e mantêm a relação mais

estreita com a lógica. Os números são entidades gerais que se aplicam a todo tipo de

objeto, não só aos objetos reais ou intuíveis, mas também aos objetos incorpóreos e não

sensíveis, eles enumeram tudo o que pode ser pensado. E os números são entes de

razão. Por conta da característica dos números de enumerar tudo o que possa ser

pensável, de modo algum eles são entidades sensíveis.

No §38 dos Grundlagen, quando Frege fala do número um, ele diz que por

meio do artigo definido um único objeto do estudo científico é indicado. E no §45

observa que a palavra um deve ser distinguida do conceito de unidade, o um deve ser

entendido como um nome próprio que não admite plural. Este ponto é mais

desenvolvido por Frege em seu artigo de 1892, Sobre o conceito e o objeto, nele Frege

toma como critério que o artigo definido singular sempre indica um objeto.

22� In: Truth and Other Enigmas. p. 95. No original: “When Grundlagen is read in its natural sense, without the importation of views stated only in Frege's subsequent writings, it is plain that he regarded his principle that words have meaning only in the context of sentences as justifying contextual definition, and took this to be one of its most important consequences.”

11

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No §55 dos Grundlagen, Frege tenta uma definição contextual da série dos

números naturais ao definir contextualmente o número 0, o número 1 e sucessão

numérica. No capítulo três dos Fundamentos da aritmética (§46) se observou que uma

“indicação numérica contém um enunciado sobre um conceito”23 , e no §55 Frege dá as

seguintes definições contextuais:

O número 0 corresponde ao conceito F↔∀x (¬Fx)

O número 1 corresponde ao conceito F↔¬∀x(¬Fx) ∧ ∀x∀y((Fx∧Fy)→x=y)

O número n+1 corresponde ao conceito F↔∃x(x é F e n é o número que corresponde

ao conceito “que cai sob F, mas não é x”)

Essa definição contextual, não obstante, possui um problema singular. Ela não

possibilita dizer que dado um objeto qualquer se este é um número ou não. A definição

não exclui que um objeto arbitrário qualquer, como o famoso imperador romano Júlio

César, não seja um número. Este problema, que aparece pela primeira vez no §56 dos

Grundlagen, é o chamado problema de Júlio César. Pela definição acima, além de não

se saber se Júlio César é um número, não se tem também um critério de igualdade de

modo que se possa dizer que se a um conceito F convém o número a e ao mesmo

conceito convém o número b, então a=b. Portanto, tal definição contextual se mostra

insatisfatória.

No §57 Frege diz que expressões numéricas podem ter sempre a forma de uma

equação ou igualdade numérica e que podem ser reduzidas à sua forma substantiva.

Embora as expressões numéricas sejam correntemente empregadas na linguagem

cotidiana de forma atributiva, isso é enganoso, pois o uso do artigo definido em um

número individual indica que ele é um objeto independente. A distinção entre objetos e

suas propriedades repercute no plano linguístico. Uma vez que objetos são designados

por nomes próprios gramaticais, expressões definidas e, posteriormente, nas

Grundgesetze, também sentenças. E “há uma espécie de proposições que devem ter um

sentido para cada objeto, que são as proposições de reconhecimento, chamadas, no caso

23� Op. Cit. Os fundamentos da aritmética. p. 244.

12

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dos números, de equações.” 24 Um numeral ou um termo numérico nunca pode ocupar o

espaço lógico de um predicado. Toda proposição como, por exemplo, “Júpiter tem 4

luas”, onde o número 4 aparece em posição adjetiva, pode ser convertida na sua forma

substantiva “o número de luas de Júpiter é o 4” (onde o artigo definido singular em “o

4” indica que o numeral aparece como um objeto independente); e o “é” da sentença,

como propõe Frege, não é copulativo, mas indica uma igualdade (tem o sentido de “é

igual a”, “é o mesmo que”).

A sentença, portanto, pode ser escrita na forma de uma equação: “o número de

luas de Júpiter = 4” ou NxFx=4, onde F denota o conceito “luas de Júpiter”. Assim

como na sentença acima, onde o número 4 é igual ao número que corresponde ao

conceito F, de forma análoga se pode fazer o mesmo com todas as sentenças que contêm

termos numéricos. Mais adiante, no §63, por meio do princípio de Hume, Frege

estabelecerá ainda um critério de igualdade numérica com o escopo de se poder dizer

quando dois conceitos têm o mesmo número.

Frege assume, após o § 61, que tenha mostrado que números são objetos e

devem ser tratados como tais. E introduz, no § 62, a noção de critério de identidade que

é associada a todo nome próprio ou termo singular; para Dummett, 25 o parágrafo mais

fértil já escrito onde se encontra o primeiro exemplo, já encontrado, da virada

linguística na filosofia – e que transforma os Grundlagen de Frege na primeira obra de

filosofia analítica. Uma vez que números são objetos Frege toma como fundamental

responder à questão kantiana epistemológica de ‘como os números nos são dados?’. Na

doutrina kantiana objetos só são dados na intuição, posição que Frege rejeita, uma vez

que para ele números são objetos que não possuem características fisicamente

perceptíveis ou que possamos ter qualquer intuição.

24� Idem. § 106, p. 281.

25� DUMMETT, (1991b). p.111.

13

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Com o intento de determinar como, pois, apreendemos os números, uma vez

que não nos são dados empiricamente, Frege coloca a seguinte questão no § 62 dos

onde temos uma enunciação do princípio do contexto:

Como nos pode pois ser dado um número, se não podemos ter

dele nenhuma representação ou intuição? Apenas no contexto

de uma proposição as palavras significam algo. Importará

portanto definir o sentido de uma proposição onde ocorra um

numeral. 26

Para responder à questão epistemológica de como os números nos são dados,

Frege recorre ao princípio do contexto. O problema epistemológico se converte, então,

de acordo com Dummett, na questão de como os sentidos de sentenças que contêm

termos numéricos são fixados. E há a virada linguística, já que o princípio do contexto é

estabelecido como estritamente linguístico – um princípio acerca dos significados das

palavras e suas ocorrências em sentenças. Com isso, o problema epistemológico, com

implicações ontológicas, de como os números nos são dados é convertido em um sobre

o significado de sentenças.

Frege estabeleceu que números são objetos objetivos supra-sensíveis. No

entanto, cumpre ainda determinar quando a dois conceitos F e G convêm o mesmo

número. Há de se estabelecer um critério de igualdade numérica entre conceitos, definir

o sentido de uma sentença em que o “número que convém ao conceito F é o mesmo que

convém ao conceito G” 27. Para tanto, Frege recorre no §63 dos Grundlagen ao princípio

que ficou conhecido como princípio de Hume: “Quando dois números são combinados

de tal modo que um tenha sempre uma unidade correspondente a cada unidade do outro,

pronunciamo-los iguais.” 28 Esse princípio introduz o operador de cardinalidade. E

habilita tal definição contextual de número cardinal: NxFx=NxGx⇔F≈G, se estabelece

26� Ibidem, §62, p. 253-254.

27� Ibidem, p. 254.

14

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como critério de igualdade numérica entre dois conceitos F e G a correspondência

biunívoca, correspondência um-para-um, entre os objetos que caem sob os dois conceitos.

Dois conceitos F e G são equinuméricos (≈), têm o mesmo número ou cardinalidade, se

há uma relação de equivalência (uma relação reflexiva, transitiva e simétrica) entre eles.

Frege faz ainda mais tentativa de definição contextual, agora partindo de um

exemplo tirado da geometria. Aqui como critério de igualdade se recorre à Lei de

Leibniz, também conhecida como princípio da substituição salva veritate, de acordo com

esta lei: “São iguais as coisas que, salvo a verdade, podem ser substituídas uma pela outra

(Eadem sunt quorum unum potest substitui alteri salva veritate)” 29. A nova definição

contextual é obtida por meio de uma equação que expressa o paralelismo entre retas em

termos da identidade da direção entre retas. Da definição se tem que a reta a é paralela à

reta b (a//b), se e somente se a direção da reta a é igual à direção da reta b ou def.: dir.

(a)=dir.(b)↔a//b. Esta definição é também chamada de definição por abstração, ela

transforma uma relação de equivalência em uma identidade. De acordo com Frege, o

juízo que expressa o paralelismo entre retas contém uma prioridade epistêmica em

relação ao juízo que expressa a igualdade da direção entre retas. O conceito de reta é

mais primário que o de direção. Em sentenças que expressam o paralelismo entre retas,

o conceito de reta, diferentemente do conceito de direção, é dado na intuição e é condição

do conhecimento do conceito de direção. Para Frege, essa ordem epistêmica, ou ordem do

ser, deve ser respeitada.

Essa definição contextual, contudo, possui alguns problemas dentre os quais a

última objeção de Frege se mostra insalvável para esse tipo de definição. Ela não permite

28� Ibidem, p. 254.

29� Ibidem, p. 255, §65, Cf.: nota 91.

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dizer “se a Inglaterra é o mesmo que a direção do eixo da Terra” 30 (problema de Júlio

César). A partir do §68, Frege rejeita a definição contextual em favor de uma definição

explícita “o número que corresponde ao conceito F é a extensão do conceito

‘equinumérico ao conceito F’”, ou o NxFx=ext(X:X≈f). O operador de cardinalidade

não dá conta de alguns problemas como o problema de Júlio César, como observa

Dummett:

A tentativa de definição contextual do operador de cardinalidade

sugerida no § 63 não é rejeitada porque é uma definição

contextual; essa característica dela é justifica no § 65. Ela é

rejeitada, em vez disso, pelo facto de não resolver o problema

César Julius (...) 31

O princípio de Hume, falha em excluir da definição contextual objetos que não

sejam números. A definição se mostra insatisfatória e Frege recorre então a uma definição

explícita de número. A alegação de Dummett, então, de que a função do princípio do

contexto é justificar definições contextuais parece problemática, uma vez que Frege

rejeita suas definições contextuais e no § 69 dos Grundlagen dá uma definição explícita

de número cardinal. Também no § 106 o princípio do contexto reaparece como um

princípio metodológico fundamental, indicando que mesmo se uma das funções princípio

é a de justificar tais definições não é sua única função.

30� Ibidem, p. 256.

31� Op. Cit. DUMMETT (1991 b), p. 180. (...) The attempted contextual definition of the cardinality operator suggested in §63 is not rejected because it is a contextual definition; that feature of it is justified in §65. It is rejected, rather, because it fails to solve the Julius Caesar problem (…)

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2.4. O princípio do contexto, o princípio de prioridade e o princípio de

composicionalidade

Como observa, no entanto, Matthias Schirn contra Sluga e Currie32 é ilícito

confundir a tese da prioridade com o princípio do contexto, deve-se observar algumas

diferenças entre os dois princípios. Dummett também crítica Sluga por confundir o

princípio do contexto com o princípio de prioridade; tal confusão ou a assimilação entre o

princípio do contexto e a tese de prioridade levaria ainda Sluga a uma identificação

errada de conflito entre o princípio do contexto com o princípio de composicionalidade,

uma vez que o princípio de prioridade, diferente do princípio do contexto, entra em

conflito com o princípio de composicionalidade.

Enquanto o princípio do contexto diz que uma palavra só tem significado no

contexto de uma sentença, o princípio de composicionalidade diz que o sentido de uma

sentença é uma composição funcional de suas partes. O princípio do contexto, no entanto,

não entra em conflito com o princípio de composicionalidade, pois não diz que o

siginificado de uma palavra deriva de seu papel na sentença, mas sim que seu papel na

sentença determina qual, dos seus muitos significados possíveis, está sendo usado. Já a

tese da prioridade de Frege, como pontua Schirn, é uma tese a respeito da prioridade do

sentido das proposições em relação ao sentido de expressões conceituais e relações. Por

meio do princípio de prioridade um pensamento é decomposto em partes insaturadas,

conceitos e relações, e o sentido dessas palavras é obtido somente pela decomposição de

um pensamento por meio de um procedimento de formação de buracos. O princípio do

contexto, por sua vez, é um princípio sobre a referência e o sentido de palavras simples e

compostas de qualquer classe, ele nada diz sobre a formação e obtenção de partes

insaturadas de um pensamento. O princípio do contexto indica a primazia da referência e

do sentido das proposições em relação às palavras, o princípio diz que a referência e o

32� Cf.: Hans Sluga - Gottlob Frege. London 1980, pp. 94; e Gregory Currie - Frege an introduction to his philosophy. Brighton, 1982, pp. 19.

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sentido das palavras consiste em contribuir para determinar a referência e o sentido das

proposições em que elas aparecem.

Nos Grundlagen termos importantes como Inhalt (conteúdo), Sinn (sentido) e

Bedeutung (referência) ainda não têm uma distinção elaborada e nítida como na posterior

obra e doutrina semântica de Frege. Embora nesse período Frege ainda não tinha

desenvolvido estritamente sua teoria do sentido e referência, tanto Schirn como as

interpretações de Dummett e de Wright33 sobre o princípio do contexto repousam na

distinção entre sentido e referência. De acordo com Schirn há consideráveis evidências

que a preocupação principal de Frege seria aplicar o princípio do contexto à referencia

das palavras. O princípio do contexto aplicado à referência indica a condição para que

uma palavra qualquer, e termos numéricos, (termo singular ou predicado) possa ter

referência de qualquer modo. E há a primazia da referência de sentenças com relação a

referência de expresões sub-sentenciais, sua referência consiste em sua contribuição para

determinação da referência das sentenças em que pode ocorrer. Do mesmo modo, o

princípio quando aplicado ao sentido, seu sentido consiste em sua contribuição para

determinação do sentido de qualquer sentença em que pode ocorrer.

Dummett defendeu que o princípio do contexto se manteve como aplicado ao

sentido, embora tenha se tornado cético sobre sua aplicação à referência nas

Grundgesetze como um princípio do contexto generalizado; o princípio do contexto em

forma generalizada, aparece de acordo com Dummett, quando Frege estabelece um

critério para a identidade de extensões por meio de uma definição explícita de número.

33� Cf.: WRIGHT (1983), capítulo 1. p. 1-50.

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No entanto, em relação aos Grundlagen, como observa Peter Milne, 34 a posição

de Dummett e Wright a respeito da consideração do princípio do contexto como uma tese

sobre o sentido e a referência pode ser resumida como se segue. O princípio do contexto

quando aplicado ao sentido “diz respeito ao sentido de uma palavra para os sentidos de

(os pensamentos expressos por) todas as sentenças em que a palavra pode aparecer.” 35

Já o princípio do contexto quando aplicado à referência, ou grosso modo “sob a

forma de tese da prioridade sintática de Wright, diz que se um termo se comporta

sintaticamente como um termo singular ou nome próprio, em uma sentença assegurada de

sentido, então, se a sentença é verdadeira, o termo tem como referente um objeto.” 36

Sendo que Dummett omite “se a sentença é verdadeira”, 37 que embora a doutrina do

sentido e referência invoquem que a sentença tenha um valor de verdade, é provável que

os Grundlagen não exija isso. Essa seria a forma como Frege, de acordo com Dummett e

Wright, teria usado o princípio do contexto para derivar a existência dos números como

objetos abstratos, posição que Milne questiona como pouco evidente.

34� Cf.: MILNE 1986. p. 492.

35� Op. Cit. p. 492. Tradução minha.

36� Ibidem, p. 492.

37� Ibidem, cf.: nota 7.

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3. REFERÊNCIAS:

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BAR-ELLI, Gillead. FREGE'S CONTEXT PRINCIPLE. In: Philosophia. April 1997, Volume 25, pp 99-129.

DUMMETT, M. Frege. Philosophy of Language. Londres, Duckworth, 1973.

_____. Truth and oder enigmas. (sixth printing, 1996) Londres: Duckworth, 1978.

_____. The interpretation of Frege’s Philosophy. London: Duckworth, 1981.

_____. Frege and other Philosophers. New York: Oxford University Press, 1991a.

_____. Frege: Philosophy of Mathematics. London: Duckworth, 1991b.

FREGE, Friedrich L. Gottlob. Os fundamentos da aritmética: uma investigação lógico-matemática sobre o conceito de número. In Peirce e Frege: Col. Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1974.

GREEN, Karen. Dummett: Philosophy of language (key Contemporary Thinkers). Blackwell: Cambridge, 2001.

MILNE, Peter. Frege’s Context principle. In: Mind, New Series, Vol. 95, Nº 380 (Oct., 1986), pp. 491-495.

RESNIK, Michael David. The Context Principle in Frege’s Philosophy. In: Philosophy and Phenomenological Research, Vol. 27, Nº 3 (Mar., 1967), pp. 256-365.

SCHIRN, Matthias. Perspectives in Analytical Philosophy – Frege: Importance and Legacy. Berlin: Walter de Gruyter, 1996.

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_____. El metodo de descomposicion de pensamientos en Frege. In: Revista ANALISIS FILOSOFICO XII (1992) Nº1, pp. 31-41.

_____. Los numeros como objetos y el analisis de los enunciados numericos. In: Revista ANALISIS FILOSOFICO XII (1994) Nº1, pp. 21-40.

SLUGA, Hans. Gottlob Frege. London: Routledge and Kegan Paul, 1980.

WEINER, Joan. Frege explained (from Arithmetic to Analytic Philosophy). Open Court: Chicago, 2004.

WRIGHT, Crispin. Frege’s conception of numbers as objects. Aberdeen University Press, Aberdeen, 1983.