o principe dos comunistas

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O príncipe dos COMUNISTAS É um dos militantes mais antigos do PÇP É uma espécie rara de capitalista E uma estirpe raríssima de comunista É as duas coisas É da casta comunista que na ditadura transportava o Avante e a propaganda subversiva na mala do seu Jaguar topo de gama Pensando bem é isso que ele é um comunista topo de gama que viaja de Bentley na imensidão do proletariado Até o seu nome mistura dois mundos César Príncipe TEXTO DE LUÍS PEDRO CABRAL FOTOGRAFIAS DE RUI DUARTE SILVA Década de 80 O Partido Comu nista Português convocara uma jornada de luta no Terreiro do Paço Pela hora de almoço as ruas estavam cheias de pessoas que escorriam de camionetas vin das de todos os pontos do país A meio da tarde eram uma massa densa preparando os adereços da contestação afinando as vozes à cadência de discursos exultantes ampliados ao megafone Havia tensão no ar agitação frenética A dispersão congregava se desor denadamente E a manif atingia o seu grau ideal de ebulição A voz uníssona da imensa classe ope rária preparava se para marchar mais uma vez contra o poder con tra as elites os ricos os explorado res o capital Eis que irrompe por entre a multidão um imponente Rolls Roy ce que tinha a bordo um indivíduo com uma certa pose aristocrática impecavelmente vestido embora casual abrindo descaradamente caminho com as janelas escancara das Se naquele momento aterrasse no Terreiro do Paço uma nave es pacial de fabrico soviético causa ria menos espanto Muitos dos que ali estavam tinham visto multa coisa mas nunca um Rolls Royce tão nobre exemplar do imaginário coletivo símbolo de tudo contra o que eles lutavam Foi necessário algum tempo para se digerir esta visão do apoca lipse proletário a abrir alas no povo como um fecho éclair O condutor acenava e sorria Pedia licença bu zinando ao de leve Que extrava gância vinha a ser esta A utopia tinha descido à terra para provocar a malta Ninguém sabia O povo é sereno mas não convém exagerar Na verdade o espanto Expresso 43 a 46 S/Cor 3030 131300 Nacional Informação Geral Semanal Página (s): Imagem: Dimensão: Temática: Periodicidade: Classe: Âmbito: Tiragem: 22112014 Sociedade Revista

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Page 1: O principe dos comunistas

Opríncipe dosCOMUNISTAS

É um dos militantes mais antigos do PÇP É uma espécie rara de capitalistaE uma estirpe raríssima de comunista É as duas coisas É da casta comunistaque na ditadura transportava o Avante e a propaganda subversiva na malado seu Jaguar topo de gama Pensando bem é isso que ele é um comunistatopo de gama que viaja de Bentley na imensidão do proletariadoAté o seu nome mistura dois mundos César PríncipeTEXTO DE LUÍS PEDRO CABRAL FOTOGRAFIAS DE RUI DUARTE SILVA

Década de 80 O Partido Comu

nista Português convocara umajornada de luta no Terreiro doPaço Pela hora de almoço as ruasestavam cheias de pessoas queescorriam de camionetas vin

das de todos os pontos do país Ameio da tarde eram já uma massadensa preparando os adereços dacontestação afinando as vozes àcadência de discursos exultantes

ampliados ao megafone Haviatensão no ar agitação frenéticaA dispersão congregava se desordenadamente E a manif atingiao seu grau ideal de ebulição Avoz

uníssona da imensa classe operária preparava se para marcharmais umavez contra o poder contra as elites os ricos os exploradores o capital

Eis que irrompe por entre amultidão um imponente Rolls Royce que tinha a bordo um indivíduocom uma certa pose aristocráticaimpecavelmente vestido emboracasual abrindo descaradamente

caminho comas janelas escancaradas Se naquele momento aterrasseno Terreiro do Paço uma nave es

pacial de fabrico soviético causaria menos espanto Muitos dos que

ali estavam já tinham visto multacoisa mas nunca um Rolls Roycetão nobre exemplar do imagináriocoletivo símbolo de tudo contra o

que eles lutavamFoi necessário algum tempo

para se digerir esta visão do apocalipse proletário a abrir alas no povocomo um fecho éclair O condutor

acenava e sorria Pedia licença buzinando ao de leve Que extravagância vinha a ser esta A utopiatinha descido à terra para provocara malta Ninguém sabia O povo ésereno mas não convém exagerar

Na verdade só o espanto

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mantinha aquele cenário intacto Mas a reação não tardou Derepente a populaça fechou sesobre o Rolls Royce como se oquisesse rasurar Uns erguiam avoz outros começavam a testaros amortecedores do carro E o

condutor avançando cada vezmais devagar começou a ver avida a andar para trás

Por entre a multidão chegouum dirigente do partido que disseEh pá é o camarada Príncipe É ocamarada Príncipe Era o camarada César Príncipe militante debase desde que o PCP é partidocomunista desde que nasceu

Ocamarada vinha do Porto

Atrasou se um bocado porqueparou para almoçar Não chegou atempo de evitar esta entrada quepor momentos parecia ser trágicamas acabou triunfal De geraçãoespontânea começou a entoar seAssim se vê a força do PC Assimse vê a força do PC

Senhoras e senhores César

Príncipe um comunista etnográfico que passeia descontraidamen

te por entre estratos envergando todos os clichés da burguesiatransformou se num histórico do

Partido Comunista Português sendo dele uma antítese aparente Ouapenas a prova de que as aparências iludem

A LUTA CONTINUA

Entre um apelido que se transformou em título imperial e um título real transformado em apelidoo seu nome de batismo encerra

desde logo uma contradição CésarPríncipe nasceu em plena ditadura em berço de lavradores abastados com fortuna hereditária e um

bom quinhão de território para oslados de Braga

Exatamente para esses ladosa poderosa Central Elétrica umaextensão ideológica da indústriamade in Estado Novo tinha planospara um ponto concreto no mapade Portugal continental Alguémnum gabinete centralista de Lisboa havia desenhado uma circun

ferência no Minho sobre a aldeia

deVilar daVeiga Do ponto de vistahidrográfico Vilar da Veiga erauma espécie de ponto de exclamação a interromper objetivamenteo caudal do progresso Naquela aldeia distante perdida nos confinsda interioridade tinha nascido o

menino César Príncipe um imperador nascido num principado de

família desde sempre o mais bemvestido das redondezas

Nem mesmo na mente prodigiosa de uma criança era possível imaginar que o progresso iaentrar em obras no seu mundo

rural habitado por uma identidade própria Foi essa identidadeque me formou como comunistapois eu cresci no seu estado puroconta César Príncipe É por issoque se define como um comunistaetnográfico Um comunista biológico redefine A aldeia comoCésar Príncipe a recorda tinhaforno eira lagar e vida comunitária Tinha a sua identidade bem

vincada os seus rituais personalizados a caricatura de um pequenoexército com armas rudimentares

e até uma espécie de religião paralela Tema delicado pois a suafamília era da intimidade de Dom

António Bento Martins Júnior arcebispo de Braga César Príncipetambém esteve na fornalha paraa ecclesia não se tivessem opostoos caminhos ínvios das letras dasartes e de outras coisas que elenão dispensava

Quando os pequenos ditadores do Estado Novo ali chegaram acompanhados pela GuardaNacional Republicana para lhesfalar de um desígnio nacional osda aldeia desconfiaram E tinham

razões para isso A Central Elétricaapresentou se como um deus mi

sericordioso que tinha para lhes

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oferecer uma vida nova a troco

da sua Já se sabe como são estascoisas das lutas desiguais Quandoo regime abdicou das subtilezasos pedidos transformaram se emordens E a aldeia transformou se

numamilícia prestes a defender asua causa contra uma causa maior

A aldeia que na altura não tinhamais de mil habitantes decidiu

interpor um processo judicial paratravar o destino da barragem daCaniçada Foi como se David sesubmetesse à apreciação de umcoletivo de Golias

César Príncipe era criançaquando decorreu este processoNão acompanhou a luta até aofim porque entretanto os pais otinham colocado num colégio interno na cidade dos arcebisposOnde ele estava em 1954 quandolhe comunicaram que a sua aldeiaestava submersa Tinha na altu

ra 9 anos Imagine a dureza destegolpe Tão profundo que CésarPríncipe nunca recuperou dele Eeis como uma aldeia e uma Cen

tral Elétrica forjaram uma estirperaríssima de comunista primeirobiológico depois ideológico Afortuna de família a propriedade ealguns adereços que o capitalismolhe tinham para oferecer nunca oimpediram de querer o que querqualquer comunista pelas mesmíssimas razões

A sua aparência cai mais paraa direita conservadora do que paraa esquerda revolucionária A suacondição aponta mais para a burguesia do que para o povo CésarPríncipe sabe disso E não temqualquer objeção de consciênciaSou desprendido destas questõesPara ele sempre foi de César o queera de César Nunca deixou que oseu capitalismo material atrapalhasse o seu comunismo estrutu

ral Entre uma e a outra reside o

pilar da sua dialética interna o facto de ter o que outros não têm nãoimplica que ele não queira paraos outros o mesmo que ele tem Enunca confundiu a distribuição de

riqueza com a sua criação

Já agora Se todos os capitalistas do mundo distribuírem os

seus bens eu não me importo defazer o mesmo Quanto a isto nãoé preciso ser comunista para saberque a luta continua

TOMAR CHÁNA SITUAÇÃOQuando submergiram a sua aldeiamuitos sonhos de criançasubmer

giram com ela A família mudouse para outra propriedade maispróxima de Braga Mas era comose tivesse mudado para outro planeta Quando saiu do colégio interno César Príncipe continuou os

estudos em Braga aprofundandoos conhecimentos específicos dacidade e dos seus segredos E foidurante este tempo quando eletinha 18 19 anos que refinou asua arte de estar em dois mundos

comamesma naturalidade Tanto

frequentava os locais da situaçãocomo da subversão Tanto tomava

um chá com os apaniguados deSalazar que era visita frequentenum café da cidade como bebia

um tintol ao lusco fusco de um

estabelecimento mal afamado

na companhia de intelectuais estudantes artistas e outra maralha

que a PIDE tinha debaixo de olhoVistas bem as coisas muitas

vezes César Príncipe —quenuncaabdicou de vestir corte clássico

estilizado —destoava muitomaisnas tertúlias conspirativas do quenas sucursais do regime Utilizavaa sua realidade como um disfarce

É provável que isto me tenha salvo a pele muitas vezes

Asua pose aristocrata o nomee as relações da família a ostentação de um certo poder inerente à ordem das coisas causavam

evidentes pruridos aos agentesda polícia política e conferiam ao

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jovem César Príncipe imunidadetática que lhe permitiam ter umpé no regime e a alma no contra APIDE não achava verosímil que umhomem desta casta andasse envolvido em atividades subversivas

As células comunistas de Bragadesconfiavam do mesmo Ambos

tinham suspeitas infundadas Exatamente por essas razões Príncipetinha de ser mais clandestino queos outros à paisana na evidência

A células de Braga terão chegado à conclusão que César Príncipe era mesmo um organismoresistente Com armas invulgaresdada a sua posição que bem utilizadas se tornariam muito úteis

Em 1964 surgiram os primeiroscontactos formais digamos assimcom a resistência Sempre comsubtilezas — recordaPríncipeFoi como se a plebe fosse recrutarum elemento à nobreza Por es

tranho que pareça fui convidadoa aderir à causa em duas ocasiões

uma por um trolha Outra por umconstrutor civil acrescenta

Por temer tratar se de uma

artimanha da PIDE o camaradaPríncipe preferiu ficar como estava Um pouco mais tarde o construtor civil havia de provar semmargem para dúvidas que o seuconvite era leal E César Príncipeformalizou a sua adesão aos co

munistas Vínculo perpétuo Príncipe tem hoje 72 anos E não temintenção de mudar Afastar medo PCP era afastar me de mim e

da minha aldeia É por isso e nãosó que continua ligado ao partido continuando a escrever para ojornal Avante e para a revista OMilitante órgãos oficiais do PCP

ABENÇOADO JAGUARNa juventude em Braga o distinto camarada fazia o que podia naLuta Remava contra a maré utilizando o seu livre trânsito no iate

do Estado Novo Certa vez CésarPríncipe foi convidado a discursar num hotel dos arredores da

cidade Era um comício disfarçadode colóquio sobre literatura umadas suas paixões Na assistênciaestavam dois agentes da PIDE tãodiscretos como um Rolls Roycenuma manifestação Na circuns

tância Príncipe não se conteveFalei dos pobres das colónias daindependência da cultura e dasartes Tocou nas teclas certas tocando nas teclas erradas

Nem 48 horas depois a PIDEfoi à sua procura na quinta dospais Avisaram me a tempo e eufugi Corri até casa de um vizinhotroquei de roupa e chamei um táxiPassei por eles calmamente Osagentes nem notaram que esta foidas raras vezes que César Príncipeandou por aí mal vestido Na verdade acho que eles não me queriam prender Apenas pregar meum valente susto O meu supostoestatuto social condicionava osmuito

O seu suposto estatuto socialnão era apenas suposto César

Príncipe nunca negou que aprecia as coisas boas Nunca rejeitoua fortuna de família as propriedades os carros de luxo a sua vastíssima coleção de arte as pequenasmédias e grandes coisas que a vidatem para oferecer quando a elase junta o capital A sua ligaçãoao PCP é umbilical consolidou

no Estado Novo e solidificou parasempre Ironiza quando diz queo PCP faz o favor de me manter

lá César Príncipe foi por diversasvezes candidato CDU em legislativas e autárquicas no Porto e pelocírculo de Viana do Castelo

Em tempos esteve perto doComité Central do partido embora

também tenha colecionadodetratoresTalvez tenha sido a distância que o manteve sempre segurono PCP A sua vida esteve desde

sempre ligada a Braga e ao Porto embora tenha vivido bastante

tempo em Vila Nova de Cerveiraum paraíso no Alto Minho quemais parecia o retiro de um aristocrata escocês Vendi essa casa

há pouco tempo O compradorfoi Miguel Veiga um dos históricosfundadores do PSD que é tambémum amigo

César Príncipe foi durante décadas redator princípal do Jornalde Notícias no Porto onde eratambém dirigente sindical Umsindicalista atípico pois ia para aredação de Bentley Isso não meimpediu de lutar pelos direitos dostrabalhadores assegura E aproveita para assegurar também queo PCP jamais tentou interferir noseu trabalho enquanto jornalista

Por obra do acaso os carrosde luxo são uma constante em

muitos episódios marcantes dasua vida Mas vou contar lhe um

segredo não lhe vou negar quegosto de bons carros pois isso seria ridículo Mas na verdade sógosto deles pelo sentido estéticoAdoração só teve por um Jaguarmodelo desportivo linhas revolucionárias novinho em folha queele tinha em 1973 no estertor doEstado Novo altura em que a PIDEe as demais forças de segurançaintensificaram a repressão Aindahoje sente suores quando se lembra deste episódio que bem diz

da sua casta de comunista Vinha

no meu Jaguar de uma reunião nasede do PCP em Santa Catarina noPorto O camarada Príncipe vinhaalgo despreocupado como é seutimbre quando lhe fizeram sinalpara encostar Estacionou numa

Operação Stop da GNR do PortoE só aí se lembrou do que tinha namala do carro Folhetos de propaganda comunista documentaçãoantirregime e um número bastante apreciável de exemplaresdo Avante

Um diligente cabo da GNRaproximou se do carro E a CésarPríncipe só lhe ocorreu ir abrindoo vidro do carro o mais devagarque pudesse a ver se ganhava algum tempo para adiar o inevitável Com a janela a meio ouviu aolonge a voz de um oficial Essenão importa Esse não interessapá Mais uma vez a aparênciasalvara o

Pelas suas particularidadesnão é capítulo que se escreva nosanais do PCP Mas na altura o casoterá mesmo chegado ao conhecimento de Álvaro Cunhal queCésar Príncipe só conheceria maistarde O líder terá experimentadoreações ambíguas De qualquerforma ficou decidido que a malado Jaguar do camarada era ótimapara transportar material subversivo O próprio condutor ao serviço das fileiras do PCP era um tantoou quanto subversivo Uma característica que ele mantém intacta

Em toda a minha vida sempre me dei com a peixeira ou como maior capitalista do país Tanto ando de autocarro como de

Bentley É esta a metáfora da suavida Sou como a personagem deuma série de humor portuguesaem que a criada era a patroa e apatroa era a criada sendo ambasa mesma pessoa

César Príncipe reconhece queos tempos de crise como os quevivemos trazem a um comunis

ta que se preze todos os instintospossíveis menos o da contençãoMas é exatamente isso que se exigea este comunista específico que émuito mais que um militante de

base É um comunista de berço

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