o pretenso humanitarismo e o controle da juventude

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1 Grupo de trabajo (3 - Políticas de protección de derechos de niñas, niños y adolescentes en América Latina) O PRETENSO HUMANITARISMO E O CONTROLE DA JUVENTUDE THE PRETENDED HUMANITARIANISM AND YOUTH CONTROL JACKSON DA SILVA LEAL 1 PAULA GALATTO DE FÁVERI 2 RESUMO O presente trabalho analisa o processo de constituição da juventude em objeto privilegiado de intervenção estatal a partir de um discurso humanitário e uma prática punitiva. Para que se demonstre o porquê da juventude ter se tornado alvo da intervenção jurídico-política em prol de sua penalização e de seu controle, sob o disfarce de um pseudo-humanitarismo, faz-se uma retomada de alguns aspectos ocorridos na América Latina, os quais reforçarão o presente debate e demonstram a realidade e funcionalidade desse discurso e deste controle que subjaz ao discurso protetivo e salvador. O enfoque dessa discussão aponta a trajetória histórica da juventude no Brasil busca desvelar a realidade da problemática da infância e juventude na América Latina, sobretudo no caso do Brasil, que atualmente se encontra sob a égide do Estatuto da Criança e do Adolescente e do pretenso modelo da proteção integral, assim como a retorica dos documentos internacionais. Trabalha-se com uma analise teórica e bibliográfica a partir de um marco teórico permitido pela criminologia critica. Palavras-chave: juventude; controle; pseudo-humanitarismo; sistema penal; criminologia crítica. ABSTRACT This paper analyzes the constitution of youth in privileged object of state intervention from a humanitarian and a punitive practice. In order to demonstrate why the youth have become the target of legal-intervention policy towards their penalty and its control under the guise of a pseudo- humanitarianism, it is a resumption of some aspects occurring in Latin America, which reinforce this debate and demonstrate the reality and functionality of this discourse and this control that underlies the protective and savior discourse. The focus of this discussion points out the historical trajectory of youth in Brazil seeks to reveal the reality of the problem of childhood and youth in Latin America, especially in the case of Brazil, which is currently under the auspices of the Children and Adolescents and the alleged model of full protection, as well as the rhetoric of international documents. We work with a theoretical and bibliographic analysis from a theoretical framework allowed for critical criminology. Keywords: youth; control; pseudo-humanitarianism; penal system; critical criminology. 1 - INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como tema a criação da juventude como objeto de atenção das estruturas de controle do Estado a partir de uma atuação filantrópico- punitiva subjacente a um discurso salvador que se denomina como pseudo- humanitário. Parte-se do problema que é a verificação das reais funções operadas pelo funcionamento do sistema pretensamente criado para a proteção dessa juventude. 1 Graduado em Direito (UCPel), advogado inscrito na OAB/RS; mestre em Politica Social (UCPel); doutorando em Direito (UFSC); bolsista pesquisador CNPq; membro do Projeto Universidade Sem Muros (UsM-UFSC); professor de Direitos Humanos (UNESC); coordenador Grupo Criminologia Critica Latino-Americana (UNESC). 2 Graduanda em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense – UNESC.

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artigo publicado em anais do evento realizado em Buenos Aires em 2014, intitulado Seminario Internacional de Direitos Humanos, Violencia e Pobreza, artigo este de autoria de Jackson Leal e Paula Galatto,

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    Grupo de trabajo (3 - Polticas de proteccin de derechos de nias, nios y adolescentes en Amrica Latina)

    O PRETENSO HUMANITARISMO E O CONTROLE DA JUVENTUDE THE PRETENDED HUMANITARIANISM AND YOUTH CONTROL

    JACKSON DA SILVA LEAL1 PAULA GALATTO DE FVERI2

    RESUMO O presente trabalho analisa o processo de constituio da juventude em objeto privilegiado de interveno estatal a partir de um discurso humanitrio e uma prtica punitiva. Para que se demonstre o porqu da juventude ter se tornado alvo da interveno jurdico-poltica em prol de sua penalizao e de seu controle, sob o disfarce de um pseudo-humanitarismo, faz-se uma retomada de alguns aspectos ocorridos na Amrica Latina, os quais reforaro o presente debate e demonstram a realidade e funcionalidade desse discurso e deste controle que subjaz ao discurso protetivo e salvador. O enfoque dessa discusso aponta a trajetria histrica da juventude no Brasil busca desvelar a realidade da problemtica da infncia e juventude na Amrica Latina, sobretudo no caso do Brasil, que atualmente se encontra sob a gide do Estatuto da Criana e do Adolescente e do pretenso modelo da proteo integral, assim como a retorica dos documentos internacionais. Trabalha-se com uma analise terica e bibliogrfica a partir de um marco terico permitido pela criminologia critica. Palavras-chave: juventude; controle; pseudo-humanitarismo; sistema penal; criminologia crtica. ABSTRACT This paper analyzes the constitution of youth in privileged object of state intervention from a humanitarian and a punitive practice. In order to demonstrate why the youth have become the target of legal-intervention policy towards their penalty and its control under the guise of a pseudo-humanitarianism, it is a resumption of some aspects occurring in Latin America, which reinforce this debate and demonstrate the reality and functionality of this discourse and this control that underlies the protective and savior discourse. The focus of this discussion points out the historical trajectory of youth in Brazil seeks to reveal the reality of the problem of childhood and youth in Latin America, especially in the case of Brazil, which is currently under the auspices of the Children and Adolescents and the alleged model of full protection, as well as the rhetoric of international documents. We work with a theoretical and bibliographic analysis from a theoretical framework allowed for critical criminology. Keywords: youth; control; pseudo-humanitarianism; penal system; critical criminology.

    1 - INTRODUO O presente trabalho tem como tema a criao da juventude como objeto de

    ateno das estruturas de controle do Estado a partir de uma atuao filantrpico-punitiva subjacente a um discurso salvador que se denomina como pseudo-humanitrio. Parte-se do problema que a verificao das reais funes operadas pelo funcionamento do sistema pretensamente criado para a proteo dessa juventude.

    1 Graduado em Direito (UCPel), advogado inscrito na OAB/RS; mestre em Politica Social (UCPel); doutorando

    em Direito (UFSC); bolsista pesquisador CNPq; membro do Projeto Universidade Sem Muros (UsM-UFSC); professor de Direitos Humanos (UNESC); coordenador Grupo Criminologia Critica Latino-Americana (UNESC). 2 Graduanda em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense UNESC.

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    O objetivo desvelar as funes subjacentes ao discurso moderno-protetivo e que vo desde a docilizao e transformao do individuo em homem dcil e produtor, inculcao da ethos burgus, por certo que aceitando a estrutura social desigual sem questionamentos (como algo natural), at o puro e simples isolamento de indivduos definidos como perigosos, a partir de uma atuao claramente pautada pela ideologia da defesa social3.

    Nesta linha, busca-se demonstrar a funcionalidade desse discurso protetor, no processo de construo e legitimao das estruturas de controle, e o quanto esse controle se apresenta funcional ao funcionamento e perpetuao da modernidade burguesa e sua lgica de mercado organizada a partir da distribuio desigual de bens positivos e negativos (Baratta, 2011).

    Esse trabalho se apresenta como estudo e reflexo terica, a partir de material bibliogrfico, e desde o arcabouo terico permitido pelo acmulo da criminologia crtica, principalmente tendo em mente a realidade scio-histrica latino-americana e sua formao peculiar de capitalismo dependente e colonialismo econmico, politico e cultural. Analisa-se no primeiro ponto do processo de construo das estruturas de controle desde o final do sculo XIX, que coincide com a criao da juventude como categoria cientifica e como objeto de controle, e no segundo ponto o perodo contemporneo no Brasil, sob a gide do Estatuto da Criana e Adolescente e seu discurso da proteo integral, operacionalizado pelas mesmas estruturas e profissionais dos modelos predecessores. 2 O PROCESSO DE CONSTRUO DA JUVENTUDE COMO CLIENTELA DAS ESTRUTURAS DE CONTROLE

    Antes que se adentre a perspectiva da juventude brasileira, como resultado de um processo histrico, essencial a reflexo inicial de quem, desde o Cdigo de Napoleo, fora concebido como sujeito de direito, o que destaca Resta (2007, p. 20), el nico sujeto pleno iure contemplado por el cdigo era aquel varn, adulto, sano de mente, preferiblemente casado. Nesse sentido, tem-se que foi sob essa tica que se orientou por muito tempo a concepo mundial de sujeito de direito, longe de compreender a juventude.

    Sob a influncia da Revoluo Burguesa e, sobretudo, aps a sedimentao de uma sociedade ocidental e hegemnica, eminentemente industrializada e sob os 3 Com referencia a ideologia da defesa social, ver Alessandro Baratta (2011).

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    mpetos desenvolvimentistas, e ainda, sob o pretenso discurso e deificao de princpios modernos como a liberdade, igualdade e fraternidade, amplia-se e aprimora o discurso acerca da juventude, impulsionados pela necessidade de qualificao para as novas tecnologias e visando maior produtividade e desenvolvimento.

    Conforme Leal (2014) amplia-se em tempo e intensidade, a proteo e o reconhecimento da infncia como tal. Passa-se a entender e propagar a infncia como uma construo social, definida por elementos conjecturais polticos, sociais e culturais. Neste ponto, v-se mais claramente o atrelamento concepo de infncia e juventude que cambia e se vinculam s necessidades da estrutura social capitalista e sua necessidade de indivduos produtores materiais e ideolgicos, tornando-se refns da epistemologia burguesa e positivista hegemnica. Neste sentido, prope Cezar Bueno de Lima (2008, p. 39):

    O corpo, que at o sculo XVII constitui um mero objeto dos suplcios e das penas, ir, nos sculos posteriores, comportar diferente acepo. J no interessa danifica-los tanto fisicamente, mas forma-lo, reforma-lo, corrigi-lo e impor-lhe novas aptides com o objetivo de convert-lo num corpo sadio para o trabalho. A priso adquire novo significado, transfigurando-se em aparelho [...]

    Ao final do sculo XIX, no Brasil, de Lima (2007, p. 55-56) assinala que se demonstrou decisivo, para a expanso e sofisticao de mecanismos de represso e controle, o convencimento de que uma grande leva de adolescentes adentrava ao universo do crime. Acreditava-se que esses jovens infratores, considerados adeptos da vadiagem e da gatunagem, ameaavam a ordem pblica e a tranqilidade das pessoas de bem, gerando-se, para tanto, um sentimento de insegurana. Como resposta aos ociosos, imps-se o trabalho como algo prazeroso/vantajoso.

    Assim, a criao da juventude enquanto categoria cientfica e autnoma de anlise e controle, que no se conhecia at final do sculo XIX (cunhada pelo psiclogo Stanley Hall em 1898), foi criada e logo em seguida o Juizado de Menores nos Estados Unidos no incio do sculo XX (primeiro juizado de menores em Chicago no ano de 1903), demonstrando que a criao da juventude e do discurso de ampliao da proteo da juventude, escondia a prtica da necessidade de regular o crescimento e a desigual distribuio dos bens positivos para essa juventude, e a necessidade de constru-las como transgressoras a fim de poder combat-la.

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    Mediante essa situao, Rizzini (2006, p. 8-9) explana acerca da presso para que o Estado interviesse junto a esse segmento, atravs da criao de polticas sociais infncia, a qual se deveu ao movimento de salvao da criana, advindo dos pases protestantes da Europa e da Amrica do Norte, cuja motivao, oriunda das classes mdia e alta, almejava novas maneiras de controle social que legitimassem o seu poder.

    Abrindo-se parnteses conjuntura/retrospectiva brasileira infanto-juvenil, oportuna a considerao de Baratta (2014, p. 44-45), apud Beiras (2007, p. 152), acerca de algumas anomalias que se acoplaram luta juvenil, quais sejam: a excluso dos infantes do pacto social, isto , do exerccio da cidadania; o fato da luta das crianas pelo direito igualdade estar desvinculada da luta pelo reconhecimento de suas diferenas; e por no ser a luta pelos direitos da criana uma batalha prpria, mas dependente do discurso e do atuar dos adultos.

    Com isso, enfatiza de Lima (2007, p. 59) que, a partir de 1920, vigorou uma nova ordem institucional a qual passa a considerar as crianas precocemente abandonadas um problema do Estado, o que demandava polticas sociais. Dentro desse contexto, o discurso mdico-higienista perfez-se em forte adepto estatal, entusiasmando mdicos, assistentes sociais, educadores, polticos e juristas. Sobre essa nova ordem, o autor (2007, p. 57) considera um novo modelo pedaggico, calcado no ensino atravs do trabalho, sob a tutela estatal, o qual legitimou novos modos repressivos destinados essencialmente s crianas e aos adolescentes pobres. Isto , atravs da criao de institutos disciplinares, que mesclavam clausura e correo, modificar-se-ia os vagabundos e vadios, de at 21 anos condenados judicialmente - estando compreendidos, inclusive, infratores de 9 a 14 anos -, por intermdio do trabalho.

    Na passagem do sculo XIX ao sculo XX, Rizzini (2006, p. 4) evidencia a infncia empobrecida do Brasil como um problema social, isso porque os abandonados e delinqentes refletiam a preocupao com o futuro da nao. Afirmando-se, na poca, a seguinte mxima: salvar a criana era salvar o pas, o que respaldava o discurso ambguo de manuteno da ordem, da criao de meios de proteger a criana contra a indisciplina e a falta de trabalho ao lado da defesa da sociedade dos viciados e das ameaas paz social, difundido pela elite filantrpica e poltica.

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    No plano da proteo/controle da juventude, delimitava claramente a criao de duas juventudes distintas, uma destinada aos avanos terico-discursivos, destinadas ao ensino e formao tcnico-profissional, para quem estavam reservadas vagas em setores formais da produo e de quem dependia o futuro da nao. Para estas juventudes, foi ampliada a proteo e alargado o perodo entendido como de (de)formao deste contingente de indivduos (Leal, 2014).

    A sociedade que se pretendia moderna responsabilizava-se por este perodo de cuidado juvenil, ao passo que tambm ficava claro para quem esse avano no era destinado, para os menores, crianas provenientes de classes desfavorecidas, sem formao educacional formal nem possibilidade de tal, sem perspectiva profissional, em muitos casos sem famlia responsvel, ou quando possuem so to ou mais desgraados que os filhos, tendo sofrido agruras impensveis, amontoados nas nascentes e descontroladas metrpoles brasileiras, situados nas periferias do sistema, das cidades, nas favelas. Ou, como conceitua Edson Passetti,

    nem toda criana ou jovem menor. Menor aquele que em decorrncia da marginalidade social se encontra, de acordo com o cdigo de menores, em situao irregular [ainda que tal condio legal tenha deixado de existir, a condio material continua viva]. Esta engendra condies para que ele cometa infraes, condutas anti-sociais que no seu conjunto revelam prtica delinquencial. O combate a isso exige uma instituio criada para suprir as deficincias de adaptao decorrentes da vida marginal. Menor aquela criana ou jovem que vive na marginalidade social, numa situao irregular (PASSETTI, 1985, p. 37)

    Nesta linha, esse o primeiro perodo marcado em termos tericos e operacionais na criao do cdigo Mello Mattos (1927) e todo seu iderio higienista, que se propunha a tarefa de limpeza social nos grandes aglomerados urbanos brasileiros nas primeiras dcadas do sculo XX e seu desenvolvimento desigual e combinado e que tinha como objeto primordial de interveno os jovens da classe pobre, da ral da sociedade brasileira, buscando extirpar os costumes tidos como prejudiciais, e, sobretudo, contagiosos direcionando estes indivduos para instituies de correes, para introjetarem a disciplina e a orientao do trabalho e da educao projetando a construo de corpos e mentes dceis afeitas ao iderio liberal (Leal, 2014).

    Gradativamente, ao lado das referidas polticas institucionais de internao, destinadas aos jovens infratores, agregaram-se as prticas assistenciais provenientes do Judicirio, o qual retira dos pais o direito de correo (DE LIMA, 2007, p. 57). Sobre esse processo, Rizzini (2006, p. 13) descreve como a retirada da

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    paternidade dos filhos, a qual conferida ao Estado, que se pautou sob a gide do argumento da garantia da proteo da infncia contra o abandono moral; em que a famlia passa a ser vista como infratora por no cumprir o dever patritico de educar/zelar pela sua prole ou de vigiar a infncia. Escreve de Cezar Bueno de Lima (2007, p. 58-59):

    A finalidade do encarceramento era impor, no apenas mecanismos de correo, mas fundamentalmente a disciplina para o trabalho precrio e mal pago. [...] A arte da disciplina e do controle sobre crianas e adolescentes previa a educao para o trabalho, a aprendizagem de preceitos de higiene e o combate ao vcio. [...] os filhos da pobreza aprendero a arte de executar trabalhos manuais e contribuiro para impulsionar a indstria e o comrcio no seio de uma sociedade capitalista e urbanizada que generaliza a forma de trabalho assalariado.

    Sobre esse aspecto, mister destacar que, sob o amparo no discurso ambguo onde a criana precisava ser protegida mas tambm contida, a fim de que no causasse danos sociedade e sabendo-se que a periculosidade era atribuda infncia pobre, transformava-se a criana em elemento til ao Pas, encaixando, desde a infncia, os ociosos demanda capitalista. O que desencadeou o complexo aparato jurdico-assistencial, liderado pelo Estado, com a criao de leis, instituies de proteo e assistncia infncia. Investimento cujo objetivo era o de permitir uma educao de submisso, e no de qualidade, aos pobres (RIZZINI, 2006, p. 5) 4.

    Com o escopo de se manter a paz social, surgiram instncias de interveno e controle5, conforme Rizzini (2006, p. 15), cabendo medicina o diagnstico de recuperao e tratamento da infncia, tanto do corpo quanto da alma; justia a proteo da criana e da sociedade, atravs da regulamentao; e filantropia, substituta da antiga caridade, assistncia aos pobres com apoio de aes pblicas. Com isso, esses movimentos resultaram na organizao da Justia e da assistncia, ou complexo jurdico-assistencial, nas primeiras dcadas do sculo XX.

    Com a ditadura militar e o seu discurso mdico-higienista, De Lima (2007, p. 75) aborda que o inqurito social consubstanciou-se em verdadeiro instrumento de 4 Com efeito, no Brasil, pode-se afirmar que o controle da juventude um aspecto histrico. Isso porque,

    consoante De Lima (2007, p. 74), uma vez tendo-se como modelo-padro de problematizao os jovens infratores em situao de misria at a dcada de 80, obteve-se como resposta necessidade de cuidar dos pobres a sua integrao vida normal. Isto , contra a raiz geradora de conflitos juvenis configura-se como soluo-padro as prises, os internatos e a educao profissionalizante. 5 Sobre isso, de Lima (2007, p. 60-61) aborda que a partir do Cdigo de Mello Mattos, de 1927, os adolescentes,

    sob a denominao legal de abandonados e delinqentes, passaram a ser objeto da interveno dos saberes: mdico (que se responsabilizava com os cuidados com a sade e com a nutrio), pedaggico (imposio de disciplina e instruo) e jurdico (oferecia proteo legal). Entretanto, salienta que, malgrado essa proposta objetivasse solucionar essa questo de poltica social, no houve diminuio da pobreza, da situao dos adolescentes e de suas famlias, culminando, assim, na medicalizao da misria.

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    interveno cientfica em prol do conhecimento biopsicossocial, produzido por uma equipe multidisciplinar (composta por peritos sociais), o qual servia para auferir/ constatar se o jovem se enquadrava em quadro prejudicial. Esse quadro era intrnseco s periferias, vistas como produtoras das classes perigosas e alvos preferidos dos assistentes sociais, representando o perigo e uma mescla de imoralidade e falta de higiene, sexo e sujeira. Na mesma linha complementa Irene Rizzini, identifica-se na criana, filha da pobreza, um importante elemento de transformao social, [...] o que justificar e legitimar uma srie de medidas repressivas impostas sob a forma de assistncia aos pobres (RIZZINI, 2006, p. 14) 6.

    Desta forma, de Lima (2007, p. 75-76) confirma que, no Brasil, no teve o escopo de ser humanitria a interveno estatal por meio de seu complexo tutelar e assistencial, mas de simplesmente fabricar uma famlia popular sadia, permeando duas falcias, provenientes tanto das pessoas comuns quanto do discurso jurdico-assistencial, quais sejam a das famlias desestruturadas e a do suposto acesso democrtico escola.

    Iaki Rivera Beiras, resume en sntesis, el llamado modelo tutelar o de la proteccin comport la ms absoluta des-proteccin de los menores frente al ius puniendi del Estado (BEIRAS, 2007, p. 166).

    Rizzini afirma que o direito de educao de qualidade, bem como o do pleno exerccio da cidadania foram subtrados dos pobres, pois, imperava no seio da sociedade brasileira os moldes de uma poltica de excluso social e de educao para a submisso (2006, p. 1-2). Logo, justifica-se o fato de grande parte da populao juvenil brasileira, pobre, permanecer sendo vista como ameaa paz social.

    Ento, sob o pretenso humanitarismo, operava o complexo tutelar-assistencial nas famlias desestruturadas e o ensino profissionalizante significava acesso democrtico escola, todavia, como bem observa de Lima, os verdadeiros objetivos eram: o controle da juventude, combatendo-se a indisciplina dos costumes,

    6 Ao que de Lima (2007, p. 76-77) traduz no recolhimento de jovens atravs de instituies de internamento

    provisrio, confinamento por tempo fixo ou controle a cu aberto os quais, aps a avaliao, eram medicalizados pelo discurso jurdico-poltico em prol da instituio de mecanismos de controle, correo e de insero econmica subalterna dos setores sociais marginalizados.

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    e a impresso da ideia do jovem operrio/trabalhador incansvel disposto a executar tarefas em marcenarias, nos caixas de supermercados, [...] nas oficinas mecnicas [...], em troca de remunerao por produtividade ou sob o reinado do salrio mnimo fixado pelo Estado (2007, p. 76-77). O autor incisivo ao demonstrar o quo evidente fora a estigmatizao da juventude das periferias, rotulando-se os pobres e miserveis de abandonados e delinqentes, sendo que, atreladamente, assistia-se excluso econmica, proibio dos prazeres e disseminao de um discurso cuja ressocializao era a resposta/legitimao da priso e do internato.

    Ponto crucial para que se compreenda a discusso travada a percepo de que, no obstante a educao compusesse parte dos ideais republicanos, a descentralizao do ensino pblico primrio, sem qualquer respaldo da Unio, comps a realidade dos primeiros anos da Repblica, talvez porque a educao fosse sinnimo de arma perigosa. Repercutindo, pois, em uma desarticulao entre os vrios Estados e a desorganizao do ensino ao nvel dos Governos locais a indiferena nacional (RIZZINI, 2006, p. 23).

    Carvalho (1989, p. 24), apud Rizzini (2006, p. 23), muito bem descreve a realidade das escolas da poca: [...] casas sem luz, meninos sem livros, livros sem mtodo, escolas sem disciplina, mestres tratados com prias.

    [...] o objetivo no era realmente tirar a ignorncia da populao. Falava-se em educar, mas [...] como antdoto ociosidade e criminalidade e no como instrumento que possibilitasse melhores chances de igualdade social. A conhecida Escola Quinze de Novembro, idealizada para a correo dos menores, constitui um bom exemplo. Em seu Regulamento (02/03/1903), constava que: Sendo a escola destinada a gente desclassificada, a instruco ministrada na mesma no ultrapassar o indispensvel integrao do internado na vida social. Dar-se-lhe-, pois o cultivo necessrio ao exerccio profissional [...] Aos menores, a instruo mnima que permitisse domestic-los para o uso de sua fora de trabalho. [...] No por acaso, a aquisio de conhecimento foi restrita s minorias. [...]. A opo pela priorizao de uma poltica que nitidamente dividia crianas e menores, reflete as contradies acima apontadas de se promover a educao, porm limitando o seu acesso a uma determinada parcela da populao (RIZZINI, 2006, p. 23-24).

    Posteriormente, em meio ao perodo ditatorial (1964) surge o Cdigo de Menores (1979), sendo na verdade uma reforma do antigo cdigo Mello Mattos, e que se propunha a retocar os dficits de legitimidade angariados no perodo de gesto da dinmica anterior, e que, a partir deste momento, assume uma orientao que via nos jovens, mais do que apenas prias que necessitavam de interveno filantrpica caritativa e disciplinadora, visualizando um perigo em potencial ou real

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    para a nao, assumindo a ideologia da defesa nacional tpica do perodo da ditadura imprimida ao sistema penal e que entendia a necessidade de ferrenho combate a todo e qualquer ato de dissidncia ou mesmo mera suspeita, a partir da adoo de uma postura eminentemente periculosista (Leal, 2014).

    Para De Lima (2007, p. 61-63), com o advento do Golpe Militar de 1964, ocorrido no Brasil, semeou-se a formulao de inimigos internos, ao lado da instituio das Leis 4513/64, que traz a Poltica Nacional do Bem Estar do Menor, e 6697/79, a qual, alm de reformar o Cdigo de Menores de 1927, cria a Fundao do Bem Estar do Menor (FUNABEM) e Febens para cuidarem dos menores em situao irregular. Nesse contexto, a pobreza consubstanciou-se em sinnimo de situao irregular e o adolescente pobre, abandonado, carente fora rotulado de menor infrator, o que justificaria o controle rgido desses jovens. O estatuto de 1979 fortaleceu os poderes do juiz, alm de no fazer meno aos direitos juvenis, autorizando que o menor em situao irregular fosse processado sem direito a se defender, e se tendo como concepo de adolescente algum a ser tutelado e no pessoa. 3 A EVOLUO DO DISCURSO (PSEUDO)HUMANITRIO E A MANUTENO DAS ESTRUTURAS DE CONTROLE

    Com a Constituio de 1988 e a instituio do Estatuto da Criana e do Adolescente de 1990 (ECA), pe-se fim doutrina da situao irregular, atribuindo-se a responsabilidade pelos direitos da criana e do adolescente ao trio famlia, sociedade e Estado. O ECA traz a considerao de que criana e adolescente deve ser tratado como sujeito de direitos e jamais como instrumento de controle social, designando como responsabilidade dos municpios a instituio de polticas sociais que visem o bem-estar infanto-juvenil. Ademais, importante destacar que adepto das medidas scio-educativas, da mediao, bem como, somente se com carter excepcional e breve, as medidas de internao. O novo Estatuto, por sua vez, exige deciso judicial fundamentada, autoria e prova do ato praticado, para que haja o esclarecimento de envolvimento de jovem em ato infracional. Detendo, para tanto, o ECA, natureza scio-educativa (DE LIMA, 2007, p. 63-64).

    Aduz Resta (2007, p. 20-22) que a viso de criana como sujeito de direito uma construo recente, em virtude de ter sido considerada por muito tempo, e no exclusivamente no Brasil como centro de imputao de poderes e disciplina, o

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    que se deve ao modelo antropolgico na cultura da lei. Os infantes sempre eram vistos objeto de uma realidade futura: futuro pai, cidado, guerreiro, etc. Ademais, admite que foi no nvel internacional e supranacional que se produziu o reconhecimento positivo dos direitos infanto-juvenis, devido ao carter sedimentado na centralidade do adulto das instituies polticas dos Estados, encontrando bices, para tanto, nas legislaes estatais, porquanto estejam os direitos da infncia contra os Estados e seus artifcios.

    Baratta (2014, p. 7), com relao Conveno das Naes Unidas de 1989, tambm faz duras crticas no que concernente sua resposta sancionatria destinada ao comportamento do jovem infrator, porquanto ainda resguarde a internao e a privao de liberdade. Por outro lado, aponta que a mesma assegura satisfatoriamente o respeito a princpios bsicos, como o da presuno da inocncia do menor e o da legalidade, dentre outros.

    Por sua perspectiva, Mndez (2000, p. 2-3), enxerga o ECA, do Brasil, como a primeira inovao substancial latino-americana, a qual supera o modelo tutelar de 1919, considerando-se que de 1919 a 1990 as reformas s leis de menores no apresentavam verdadeiras mudanas com relao ao antigo modelo. Motivo pelo qual, considera o novo modelo da responsabilidade penal dos adolescentes, introduzido pelo ECA, quele que abarca justia e garantias. Servindo de inspirao, para tanto, o Estatuto brasileiro, no que diz respeito definio de criana como todo ser humano de at doze anos incompletos e, de adolescente, quele desde os seus doze at os dezoito anos incompletos, a muitas legislaes latino-americanas.

    Entende Alessandro Baratta (A2014, p. 5) que, no processo de definio dos direitos humanos das crianas e jovens, o qual perdurou aproximadamente noventa anos, a criana deixou de ser vista como o menor, alvo de compaixo ou represso, para a criana e o adolescente sujeitos plenos de direito. Emilio Garcia Mndez (2000, p. 5) admite, todavia, que o ECA vem enfrentando problemas, atualmente, os quais se originam do que denomina de uma dupla crise: de implementao e de interpretao. A crise de implementao se deve ao dficit de financiamento de polticas sociais bsicas, culminando na carncia em sade e em educao, atrelada tentativa de substituio dessas polticas universais por aspectos ilgicos: como a inadequada focalizao de polticas assistenciais, bem como com ineficazes e ilegais polticas de cunho repressivo. Em decorrncia desse mal manejo do gasto

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    social, portanto, a opinio popular tende a pensar da seguinte maneira: j que gastam mal, que pelo menos gastem pouco. Motivo pelo qual entende o autor que, a partir dessas duas crises, no h o aumento do gasto social que resolveria os problemas sociais que geram ambas as crises.

    Com relao segunda crise, a da interpretao, Mndez (2000, p. 6) assevera que a mesma tem relao estrita com as boas prticas tutelares compassivas, em nome das quais se cometeram as piores atrocidades contra a infncia, ou, o que o mesmo, com a permanncia de uma cultura que abarca o subjetivismo e a discricionariedade. Isto , justamente o que o autor considera como caractersticas opostas ao carter garantista de uma legislao na qual rege o rigoroso respeito pelo imprio da lei, baseada na tica dos direitos humanos.

    Atesta, ainda, que as bondades do ECA no derivam somente dele, como tambm da interpretao da Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana e outros documentos internacionais que se consubstanciam na Doutrina da Proteo Integral. Mndez (2000, p. 7) convicto no sentido de que no h discricionariedades e subjetivismos bons, pois, compactuando com o carter garantista, coaduna com a ideia de que a ausncia de regras sempre a regra do mais forte. O mesmo (2000, p. 8-9) analisa, destarte, a crise da interpretao como uma releitura discricional e subjetivista do garantismo do ECA e da Conveno Internacional dos Direitos da Criana, que engloba: a negao do direito penal mas no a negao privao de liberdade; medidas scio-educativas de carter indeterminado; o aumento do poder discricional da justia e da administrao quando na aplicao das medidas; e alto nvel de autonomia cientfica a respeito da letra do ECA.

    Desse modo, acredita Mndez (2000, p. 10) que o ECA responde aos altos padres internacionais de respeito aos direitos humanos, respeitando as garantias dos indivduos, independentemente da idade, ao assegurar concomitantemente a segurana da coletividade. No obstante, tambm considera necessrias leis reguladoras das medidas scio-educativas, que enxerga como a rea mais escura da administrao da justia juvenil, em prol do enfrentamento da permanncia de uma cultura, no ECA, de proteo subjetivista e discricional. Isso porque o escritor adepto do garantismo, uma vez que, ao referir-se Lei da Responsabilidade Penal Juvenil da Costa Rica (2000, p. 4), equiparando-a com o ECA, afirma que a mesma

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    detm [...] tcnicas jurdicas muito mais refinadas e garantistas, quer dizer, menos abertas e discricionais [...]. Concebe, por sua vez, como carter garantista de uma legislao (2000, p. 6) quela que se calca respeito rigoroso pelo imprio da lei [...] numa perspectiva de direitos humanos.

    Com efeito, a favor da eliminao das boas prticas tutelares e compassivas, em virtude das maiores atrocidades contra a infncia terem sido cometidas em nome do amor; a justia no pode ser substituda pelo amor.

    Trazendo uma avaliao acerca das medidas scio-educativas, no ECA de 1990, de Lima (2007, p. 70-71), por sua vez, percebe sua retrica filosfica e jurdica do garantismo, o fim do poder discricionrio do juiz e o respeito ao devido processo legal. Sob o paradigma da Proteo Integral, o adolescente passa a ser visto, pelo ECA, como sujeito de direito e com garantias processuais. Alm disso, o escritor tece algumas crticas ao ECA, pois acredita que o atual Estatuto reflete srias contradies, pois, muito embora substitua crime por ato infracional, esse justifica a aplicao de medida scio-educativa, a qual, por sua vez, s pode ser imposta pelo aparelho estatal de justia, alheio s vontades das partes diretamente envolvidas (adolescente infrator, sua famlia ou parentes, vtima e demais interessados).

    Ademais, a valorizao da internao permanece, porque se perfaz em prtica penalizadora mediante infraes como homicdio, roubo e reiterao de atos infracionais, ou seja, contrariando o perfil pedaggico proposto pelo prprio estatuto, considerando-se que h uma equiparao de ato infracional a crime e medida scio-educativa a pena. Nesse diapaso, de Lima crucial ao evidenciar que as medidas scio-educativas funcionam como espcie de controle jurdico-poltico pelo qual a misria transforma-se objeto de interesse:

    Sob o controle jurdico-poltico de medidas scio-educativas, a governamentalizao da misria converte-se em alvo de interesse e objeto de competncia tcnico-gerencial e assiste, de modo solidrio, expanso da mquina judiciria destinada aos jovens, o revigoramento da filantropia assistencial e, ainda, assegura lucros adicionais s empresas privadas. Essas, por meio de suas fundaes, arrancam subsdios fiscais para desenvolver projetos que tenham como pblico-alvo jovens pobres e infratores que habitam os cintures urbanos da misria (2007, p. 72).

    Um outro aspecto intrnseco discusso, apontado por De lima (2007, p. 87-88), o fato de que a atuao policial e dos demais rgos de controle acaba contribuindo para uma figura/esteretipo social acerca da natureza do crime e do

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    delinqente tpico, e isso se d pelo reforo de uma concepo, partilhada pelas pessoas comuns, que desconhece a diferena entre a criminalidade real, quantidade de delitos cometidos num tempo e lugar determinados, e a criminalidade aparente, conhecida e registrada pelos rgos oficiais de controle. Sendo pequeno o nmero das ocorrncias identificadas e perseguidas pelos rgos da polcia.

    Sobre isso, oportuna a transcrio dos dizeres de Mndez, o qual confere muito mais aos polticos, que propriamente aos meios de comunicao, a responsabilizao pelo alarde social da insegurana urbana, a qual se pauta na falta informao quantitativa combinada com distores, em troca da promessa ilusria da segurana:

    [...] alguns meios de comunicao tm sido sumamente eficazes em vincular em forma praticamente automtica o problema da segurana/insegurana urbana com comportamentos violentos atribudos aos jovens [...]. No entanto, no me parece que a iniciativa possa atribuir-se aos [...] meios de comunicao. [...] a iniciativa tem surgido de polticos pouco escrupulosos que [...] traficam com necessidades e angstias legtimas da populao tal como o medo e a insegurana urbana. [...] Sobretudo nos comeos destas campanhas de alarme social, a falta de informao quantitativa com que se distorcionava a pouca e confusa informao disponvel. [...] A obteno de informao confivel [...] o resultado da prioridade e da vontade poltica (2000, p. 9).

    Ressalta de Lima (2007, p. 85) que a massa de indivduos redundantes ao capitalismo transformou-se em interessante, pois foram transformados na clientela das prises, educandrios, e instituies de controle a cu aberto, isto , da indstria de controle do crime, passaram a ser objeto de lucro para a construo civil, indstria eletrnica e s consultorias especializadas em segurana.

    De Lima salienta, ainda, que a promessa destinada aos jovens contrrios ordem a educao compulsria e a integrao ao mundo que supostamente sabe reconhecer o desempenho de tarefas produtivas e salariais subalternas (2007, p. 72-73). Elucidando que a interveno penal age atravs da seletividade e da rotulao de determinados grupos especficos. Coaduna tambm o autor com a perspectiva de que a soluo a tudo isso no se traduz na negao de qualquer medida coercitiva ou na supresso da noo de responsabilidade pessoal, mas sim no questionamento do direito estatal penalizador, analisando-se em quais condies a internao, a residncia obrigatria, pode desempenhar um papel de reativao pacfica do tecido social. Inclusive, no acredita que o sistema penal produza um acordo satisfatrio entre as partes, por trazer o risco de uma punio desmedida.

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    Assim, Cezar Bueno de Lima adepto a sadas opostas ao atual modelo estatal penalizador juvenil, em prol de que o mesmo no continue operando baseado na seletividade, no etiquetamento e transformando os protagonistas em delinqente e vtima.

    De Lima (2007, p. 88) inmeras vezes evidencia sua posio, seja contra o etiquetamento/estigmatizao produzido pela mdia/instncias juvenis, as quais insistem na ideia de populao infratora e reincidente em prol de reafirmar a inevitabilidade de tais instituies, fazendo com que a sociedade associe os atos infracionais aos jovens pobres/oriundos de periferias; contra inclusive, a utilizao dos jovens infratores, confinados em internatos, como pretexto para a expanso do investimento cruzado entre Estado e iniciativa privada na busca de aes polticas que propem incessantes reformas sem encontrar solues eficazes (2007, p. 55).

    Em suma, contra a atuao dos aparelhos juvenis de controle, por ser a favor de uma sociedade sem penas, atravs da criao de mecanismos de soluo dos conflitos/problemas, cujos poderes pertencem s partes envolvidas (Mendez, 2000, p. 1 ou 2).

    Mndez (2000, p. 8) no pela impunidade da adolescncia, apontando que isso incentivaria a Justia pelas prprias mos, devendo os adolescentes continuar sendo responsveis de seus atos - se tpicos, antijurdicos e culpveis, conquanto que jamais sejam submetidos s mesmas sanes, processos e instituies dos adultos. V a responsabilidade penal dos adolescentes como aspecto intrnseco ao exerccio da cidadania.

    Ademais, entende Mndez (2000, p. 9) que se constitui numa resposta equivocada/irresponsvel da conjuntura atual a no compreenso do adolescente infrator enquanto sujeito de direitos, porm tambm de responsabilidade pelas infraes cometidas, bem como da necessria articulao entre o direito da sociedade, a sua segurana coletiva e o direito dos indivduos, de qualquer idade. Como conquista/avano normativo, consagrado no ECA, considera a construo jurdica da responsabilidade penal dos adolescentes, cuja impugnao comportaria um verdadeiro regresso ao festival do direito de menores 7. Contudo, a sustentao

    7 Rizzini (2006, p. 22) relembra que, poca da aprovao da legislao de menores, em 1927, a lei permitia

    que qualquer um fosse alvo da ao do juiz, podendo ser apreendidos tanto os menores abandonados/ pervertidos, quanto os que estavam em perigo de o ser, e, principalmente, os delinqentes. Para isso, bastaria

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    da existncia de uma responsabilidade social, por outro lado, ao mesmo, contradiria o Estatuto Juvenil, constituindo posio favorvel a polticas repressivas.

    Para Baratta (2014, p. 4), o qual aborda a condio da criana na Amrica Latina luz da Conveno Internacional dos Direitos da Criana da Organizao das Naes Unidas de 1989, o ECA de 1990 no Brasil, representa uma das legislaes de menores mais adiantadas do mundo. Isso porque, juntamente com o art. 227 da Constituio Federal de 1988, antecipou em um ano, os princpios norteadores da Conveno. Ao mesmo, a ratificao da Conveno, apesar de no ser suficiente, intrnseca na luta pela transformao da realidade social das crianas na Amrica Latina.

    Referindo-se ao Eca brasileiro, Baratta afirma: Se admite entonces una verdadera y propia responsabilidad penal del menor que es mucho mejor declararla as tal como es para salir de todos los eufemismos que han rodeado hasta ahora la real funcin punitiva con respecto de menores infractores, sino solamente abandonados. En este campo, efectivamente, se sale de un paradigma de la situacin irregular (2014, p. 7).

    De maneira a traar os limites que compuseram a fundamentao originria do direito dos menores, a qual ainda afeta a realidade atual, Baratta (2014, p. 5) destaca dois. Primeiro, a considerao da criana, ao invs de sujeito de direito, como alvo de uma proteo privilegiada e de controle especial. Segundo, tem-se a confuso entre a situao irregular e a situao em que unicamente se considera ao menor agindo delituosamente, conseqncia da teoria da periculosidade social. Como contraponto, entretanto, expe que a Conveno, a que se alude, supera esse primeiro limite, pois se ocupa en diversas normas del nio [...] como sujeto de derecho em sentido pleno, y no solamente, entonces como persona incapaz representada por los adultos a los que pertence la competencia y el deber de cuidarlos. A criana vista como algum que tem autonomia para saber de suas necessidades, pois portadora de conscincia, sujeito livre para comunicar-se e se associar a outros sujeitos.

    A despeito do segundo limite histrico, Baratta (2014, p. 6) considera que a Conveno responde de maneira a garantir inmeros direitos ao menor acusado ou sentenciado pela infrao a leis penais, fazendo distino conceitual entre essa situao daquela da no proteo, a qual exige, ao invs de sano, medidas de

    uma singela desconfiana/ o bitipo/ a vestimenta de um jovem para que o mesmo fosse arbitrariamente apreendido.

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    proteo. Admite, todavia, que alguns aspectos problemticos da atual situao em que se encontra a Justia de Menores da Amrica Latina, bem como do resto do mundo, no restam superados. Isso porque, a Conveno autoriza, em nome do princpio da excepcionalidade, o regime de internao de menores, tanto infratores como desprotegidos. Convertendo-se a confuso entre infrao de leis penais, pelo menor, com situao irregular pobreza e abandono - na criminalizao da pobreza e do abandono, a qual j deveria se encontrar devidamente superada, j que, para o autor, no se pode manter a velha doutrina da situao irregular.

    Acredita Baratta (2014, p. 8) que no seriam suficientes a vontade e a capacidade poltica, seja dos Estados, seja do mundo jurdico oficial, para uma efetiva implementao dos princpios e normas da Conveno na legislao e na administrao dos Estados, sem que haja um forte movimento social, oriundo da sociedade civil. Somente, portanto, com a efetiva participao da sociedade civil que se poder lograr eficaz a ao dos servios pblicos, bem como a dos juristas. Com efeito, explica que isso se daria atravs do favorecimento do surgimento de condies que permitan al portador de necesidades, al usuario de servicios (la comunidad), percibirse y organizarse como un sujeto de derechos, encontrando as su prpria capacidad de negociacin con los servicios publicos (Baratta, ano. p.8.

    No que se refere legislao a nvel supranacional, bem como, especialmente a partir da Conveno de Estrasburgo de 1996, infere-se, a partir de Resta (2007, p. 25), que o menor convertido em sujeito processual, podendo estar em juzo e ser escutado, deixando de ser alvo de interesse de outrem, ao que chama de progresivo reconocimiento de la subjetividad del menor. Alm disso (p. 27), prope a instituio de mecanismos de composio dos conflitos, atrelados infncia, como a mediao, por ser mais comunicativa, prxima e menos traumtica.

    Por fim, Baratta (2014) apresenta algumas espcies de indicaes ao problema que engloba a infncia da Amrica Latina, tais, como a descentralizao dos servios estatais, e a participao das comunidades, em uma perspectiva de devolver os conflitos aos indivduos direta e indiretamente interessados; ainda, reestruturao das instancias oficias, institucionais e legais, em uma linha de transformao das relaes sociais, e isso passa tambm em grande medida pela melhor distribuio dos bens positivos; tendo-se em conta o rompimento do com a logica assistencialista e autoritria da ceara da infncia e juventude, das respostas

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    virem dos adultos, e das instituies, e tendo os jovens como repositrios de adulteridade; e sim com o intento de traz-los como polos ativos e criativos na mudana social, e resoluo dos conflitos, e da prpria condio de subalternidade em que se encontram historicamente. 4 CONSIDERAES FINAIS

    O presente estudo, longe de trazer respostas rpidas e milagrosas ao paradoxo infanto-juvenil, tem o intento de esclarecer a forma de atuao dos sistemas tutelar-assistencial ao longo da trajetria brasileira, perpassando-se pelo atual modelo scio-educativo, proposto pelo ECA. Assim, evidencia-se que o controle e a represso sempre se fizeram presentes na realidade juvenil, malgrado se encontrassem camuflados sob o discurso legitimador de uma minoria, cuja alcunha era pessoas de bem. A falcia dessa minoria era incisiva ao aduzir que a soluo aos jovens ociosos se perfazia no ensino/trabalho devendo-se aqui abrir parnteses: uma educao pautada na pedagogia do trabalho, um ensino profissionalizante e subalternizante. O que se traduz na produo de corpos dceis, trabalhadores assalariados e teis mquina capitalista ou vida urbana que emergia no final do sculo XIX para o sculo XX.

    Nessa linha, o aparato jurdico-assistencial culminou nas prises, nos internatos, sob a gide da concepo popular de que lugar de menino pobre nessas instituies, porquanto a pobreza fora (e ainda persiste para muitos) como sinnimo de delinqncia e marginalidade; ideologias advindas da Doutrina da Situao Irregular. A rotulao e a seletividade de determinados grupos especficos ainda realidade hodierna, e no por acaso. Distorce-se a questo criminal, fazendo-se com que a populao acredite numa aparente, desconhecendo-se a cifra oculta - somente determinados casos so perseguidos pelos rgos policiais. E isso proporciona repercusso miditica e discursos polticos a alimentarem o populismo punitivo que surge da criada sensao de insegurana, tudo em troca de votos e capital material e simblico.

    Assim, assiste-se a expanso do aparelho judicirio juvenil, auferindo-se lucros indstria do crime. misria brasileira, estigmatizada, no se proporcionou educao pblica de qualidade, mas simplesmente empregos subalternos. REFERNCIAS

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    BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: introduo sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos/ Instituto Carioca de Criminologia, 1999. BARATTA, Alessandro. La situacin de la protecin del nio en Amrica Latina. In: http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/4/1836/24.pdf. Acesso em 30/05/2014 BEIRAS, Iaki Rivera. Los presupuestos ideolgicos de una justicia penal de/para los jvenes (hegemonia y anomalias de un difcil vnculo social). In: In: BERGALLI, Roberto; BEIRAS, Iaki Rivera (coord). JOVENES y adultos: el difcil vnculo social. Barcelona: Anthropos Editorial, 2007. LEAL, Jackson da Silva. O sistema penal na lente da juventude transgressora: da politica social politica penal. Dissertao de mestrado. Pelotas: Programa de Ps-Graduao em politica Social - UCPel, 2013. ________. Juventude e Criminalizao: do discurso protetivo prtica do controle punitivo. In: DEL MORO, Rosangela; et al. (org.). Direito da Criana e do Adolescente. Curitiba: Editora thala, 2014. pp. 105-132. DE LIMA, Cezar Bueno. Internao provisria, liberdade assistida e jovens assassinados: existncias interrompidas por um itinerrio penalizador. So Paulo: Tese de Doutorado em Cincias Sociais PUC/SP, 2007. MENDZ, Emlio Garca. Adolescentes e responsabilidade penal: um debate latino americano. In: http://www.justica21.org.br/j21.php?id=222&pg=0#.U9kIjJRdUlI. Acesso em 30/05/2014 PASSETTI, Edson. O que menor. So Paulo: editora brasiliense, 1985. RESTA, Eligio. La ley de la infancia. In: BERGALLI, Roberto; BEIRAS, Iaki Rivera (coord). JOVENES y adultos: el difcil vnculo social. Barcelona: Anthropos Editorial, 2007. RIZZINI, Irene. O movimento de salvao da criana no Brasil: ideias e prticas correntes de assistncia infncia pobre na passagem do sculo XIX para o XX. Congresso Brasa VIII. Vanderbilt University, Nashville, Tennessee, USA, 2006.