o poder local face aos desafios do século xxi desejos e realidade

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MALHA URBANA Nº 9 – 2010 103 O poder local face aos desafios do século XXI: desejos e realidades O Poder Local face aos desafios do século XXI: Desejos e Realidade Carlos Vieira de Faria 1 Abstract The history of the development of the modern Portuguese state shows, since the liberal revolution (1820), many difficulties in resolving issues relating to local government planning. Apart from the turbulent history of municipalities in the days of absolute monarchy and of liberalism, the Portuguese Republican ideology was far beyond what was expected. Much more serious in the case of the Salazar regime, a regime which sought to impose the state as the center of planning, settling the long history of subsidiary municipalities. Nota de apresentação A história da constituição e desenvolvimento do Estado Moderno português evidencia, desde a revolução liberal (1820), muitos dificuldades em resolver questões relacionadas com a administração autárquica territorial. Para além da história atribulada dos municípios nos tempos da monarquia absoluta e nos tempos do liberalismo, também a ideologia republicana portuguesa, apesar do seu credo descentralizador, tanto nas versões da 1ª República como 1 Professor e investigador na Universidade Lusófona. O presente texto procura traduzir o essencial da comunicação que foi apresentada oralmente e apoiada em vários diapositivos no Seminário sobre Desenvolvimento Local e Intervenção Comunitária, organizado pelo Instituto Politécnico da Guarda, em 4 de Dezembro de 2007.

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  • MALHA URBANA N 9 2010 103 O poder local face aos desafios do sculo XXI: desejos e realidades

    O Poder Local face aos desafios do sculo XXI: Desejos e Realidade

    Carlos Vieira de Faria1

    Abstract

    The history of the development of the modern Portuguese state shows, since the liberal revolution (1820), many difficulties in resolving issues relating to local government planning. Apart from the turbulent history of municipalities in the days of absolute monarchy and of liberalism, the Portuguese Republican ideology was far beyond what was expected. Much more serious in the case of the Salazar regime, a regime which sought to impose the state as the center of planning, settling the long history of subsidiary municipalities.

    Nota de apresentao

    A histria da constituio e desenvolvimento do Estado Moderno portugus evidencia, desde a revoluo liberal (1820), muitos dificuldades em resolver questes relacionadas com a administrao autrquica territorial. Para alm da histria atribulada dos municpios nos tempos da monarquia absoluta e nos tempos do liberalismo, tambm a ideologia republicana portuguesa, apesar do seu credo descentralizador, tanto nas verses da 1 Repblica como

    1 Professor e investigador na Universidade Lusfona. O presente texto procura traduzir o essencial da comunicao que foi apresentada oralmente e apoiada em vrios diapositivos no Seminrio sobre Desenvolvimento Local e Interveno Comunitria, organizado pelo Instituto Politcnico da Guarda, em 4 de Dezembro de 2007.

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    do Estado Novo, ficou muito alm daquilo que se esperava. Muito mais grave no caso do regime salazarista, regime que tentou impor o Estado como o centro da sociedade, liquidando o longo passado subsidiarista dos municpios.

    Somente com a revoluo democrtica de 25 de Abril de 1974, o pas passou a dispor de condies para concretizar mudanas significativas na afirmao deste escalo da administrao pblica territorial. esta experincia que importa retomar e perspectivar no novo contexto da Unio Europeia em que nos inserimos desde 1986. Com esta comunicao, procuramos enquadrar e caracterizar os novos desafios que, no contexto europeu mais aberto, vo implicar, cedo ou tarde no importa, uma reorganizao da administrao autrquica territorial a todos os nveis: seja a nvel macro, seja a nvel micro.

    Da as duas linhas estruturantes desta comunicao. A nvel macro, abordaremos questes decorrentes da nova reconfigurao do Estado, no contexto da modernidade avanada (ou, segundo outros, da ps-modernidade) em que se encontra o pas. A nvel micro, relevaremos algumas das novas frentes de aco do poder local. Nas duas situaes, a ideia comum que as atravessa a de que urgente a necessidade de avanar pistas reflexivas sobre a importncia da dinamizao das estruturas locais e sobre o papel destas na partilha do poder (local). Quanto a este ponto, partimos da assero de que o local se afirma como referncia e produtor de sentido do global. Ou seja, o local, na sua relao com o global, aqui perspectivado, no como bloqueio, mas como ponte e interaco.

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    I - NOVA RECONFIGURAO DO ESTADO: GOVERNO E GOVERNNCIA

    1. Evoluo do Estado Moderno

    A crise do modelo industrial nos anos 80 e a globalizao das economias mundiais tm levado certos autores a falarem de crise do Estado-Nao e, consequentemente, do declnio das pirmides decisrias tradicionais. Efectivamente, durante muito tempo, as polticas pblicas foram definidas como funes do sujeito-Estado em que este era abordado numa perspectiva proeminentemente jurdica e centrada na maneira como era organizado a nvel nacional. Esta abordagem valorizava, portanto, uma viso hierarquizada em que se verificava o predomnio das autoridades e das funes centrais sobre a periferia. Esta abordagem foi depois denominada constitucionalismo metodolgico, ou seja, abordagem mais preocupada com as prescries das leis e dos regulamentos do que com a realidade emprica. O governo era definido como o lugar onde se tomavam decises vlidas para todos.

    Recentemente, esta abordagem clssica est a ser preterida em favor de uma outra que valoriza o estudo das instituies em aco, permitindo desse modo observar os vrios actores, institucionais ou no, que participavam nas decises pblicas e sua execuo. O poder executivo passa a ser, assim, uma parte, mas no a nica componente, como sempre aconteceu at agora. Entende-se, ento, que o processo decisrio no se esgota no governo porque envolve vrios actores que tambm participam nas decises pblicas. Se a autoridade do Estado (Governo) nunca deixar de ser o actor principal das polticas pblicas, a verdade que j no a nica parte activa, visto actuar em interdependncia com os outros actores intervenientes neste novo processo decisrio.

    O estudo das polticas pblicas saiu, assim, do domnio reservado aos juristas para se converter num objecto privilegiado da cincia poltica e da sociologia. Neste novo olhar sobre os escales

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    de um poder cada vez mais descentralizado, emerge nova ateno quer ao nvel subnacional (do governo local s regies), quer ao supranacional (Unio Europeia, por exemplo).

    A ateno pela dimenso subnacional das polticas pblicas no tem sido contnua e , por isso, muito recente. At ao presente, os polticos, a poltica e as finanas locais eram um subsector obscuro da administrao pblica. A situao s comeou a mudar a partir de meados dos anos 60 (do sculo XX), quando se comeou a estudar e a perceber os conflitos entre centro e periferia, como que o governo local funcionava na realidade e como se distribua o poder nas cidades.

    Para a emergncia deste interesse pelo territrio importa recordar algumas mudanas que, ultimamente, convergiram no sentido de uma nova reconfigurao do Estado. s razes que esto na base das exigncias das autoridades locais para gerirem partes maiores da vida dos seus territrios, reivindicao que se propala um pouco por todo o mundo, no so indiferentes os fenmenos de territorializao diferenciadora na economia, nem as mudanas scio-polticas que os acompanharam. So estas mudanas scio-polticas que merecem uma referncia especial. De entre elas, destacaremos os ataques gesto centralizada dos problemas por gerar dfices de governabilidade.

    2. Emergncia da governncia

    O conceito de governncia pretende responder a esta nova realidade, corporizando o princpio da participao dos cidados (nas suas mltiplas formas) na "construo do seu quadro de vida. Ou seja, naquilo que pode influir, directa ou indirectamente, nas suas vidas quotidianas, atravs dos mais diversos actos e decises da administrao pblica, mais concretamente da administrao local.

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    Insistir no conceito de governncia procurar idear um espao pblico onde no se acantone numa viso redutora e simplista, como se se tratasse de um mero sistema racionalizado e rigidamente estratificado. A governncia corrobora uma viso polirquica do poder e da vida pblica locais, concebendo-a, sobretudo, como um campo ou um teatro, onde os diferentes actores urbanos encenam e contracenam, individualmente e em grupo, segundo a magia distintiva da multiplicidade de papis que cada um representa.

    Esta nova reconfigurao do Estado valoriza, agora, um sistema de governo multinvel territorializado, onde a par da responsabilidade eleitoral, adquire cada vez maior relevncia a presena de diversos actores e redes da sociedade civil que pressionam o Estado a permanentes negociaes, incentivando-o na busca de acordos e estimulando o crescimento de uma esfera pblica livre e participativa. Risco de o Estado se transformar num campo de vontades em competio, risco que constitutivo da prpria essncia da democracia.

    II As novas frentes do poder local

    1. Novas formas de participao

    Numa sociedade recentemente democratizada como a portuguesa, impe-se uma reflexo sobre novas formas e estilos de participao. Nas democracias ocidentais, tem-se vindo a verificar que a participao (poltica) tem sido selectiva: no s o nmero de cidados que participam politicamente limitado, como h ainda grupos que participam menos do que outros. Sabemos que a maioria dos estudos realizados neste domnio aponta para uma imagem diferente das democracias contemporneas, ao revelarem que a democracia convive com taxas de participao muito baixas. A participao poltica necessita de cidados bem informados sobre temticas polticas, empenhados activamente nelas e motivados para influenciar as decises pblicas.

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    De facto, o que se verifica que, segundo aqueles estudos e sondagens, a maior parte dos cidados s muito raramente respondem a este modelo de participao. A quantidade de pessoas activas ainda mais se reduz quando se estuda o grau de empenhamento: ir votar, interessar-se pela poltica, participar em actividades de partido, inscrever-se numa organizao poltica, menos ainda no que se refere ao preenchimento de cargos pblicos. O grau de selectividade da participao aumentava medida que se exigia comportamentos mais exigentes, em tempo e intensidade. A percentagem daqueles que participam levanta a questo da representatividade deste relativamente ao conjunto da populao.

    Analisando mais em pormenor este fenmeno, constata-se que os nveis de participao mais elevados se referem a pessoas com mais instruo, provm das classes mdias e alta, residem em meio urbano, vivem h muito tempo no mesmo lugar, pertencem maioria tnica, esto empenhados socialmente ou em organizaes de vrios tipos. Por este motivo, Pierre Bourdieu2 salientou que o estatuto socioeconmico determinava os nveis de participao e dava um sentimento mais forte de ter direito palavra e confiana na eficcia poltica.

    Nestas circunstncias, poder-se- afirmar que a igualdade poltica , pelo menos em parte, uma utopia, por partir da esperana difusa de que a democracia, dando poder aos menos privilegiados, atravs de um direito a voto igual para todos, teria levado a abolir os privilgios. Esta esperana baseava-se no facto de os menos privilegiados serem mais numerosos e poderem desfrutar dos direitos polticos em proveito prprio. Mas assim no aconteceu, porque os cidados so diferentes uns dos outros nas capacidades de utilizar as oportunidades de participao poltica. As oportunidades formais de igual acesso so utilizadas desigualmente pelos vrios grupos sociais.

    2 BOURDIEU, P. (1979), La distinction, Paris: Minuit

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    Em vez de se ficar por um discurso de falta de civismo e de interesse pela causa pblica, o que importa salientar que o problema da participao ganha outras dimenses quando se territorializa e quando na identidade de interesses e valores, os indivduos se sentem reciprocamente iguais. A participao poltico-partidria no esgota a participao cvica. H formas de participao mais inovadoras ligadas emergncia de valores ps-materialistas, na perspectiva de Inglehart3. Nos anos 70, este autor props uma nova taxinomia de valores scio-polticos que distingue dois grandes grupos de valores: 1) os valores materialistas e 2) os valores ps-materialistas. Os primeiros estavam associados satisfao de necessidades bsicas elementares, ao bem-estar econmico e coeso social, enquanto que os segundos relevavam de novas preocupaes sociais e individuais: estticas, intelectuais, de qualidade de vida e relativas ao envolvimento nos processos de tomada de deciso no trabalho, nos locais de residncia e no sistema poltico.

    Segundo Inglehart, as sociedades ocidentais estariam a assistir a uma prevalncia progressiva dos valores ps-materialistas sobre os valores materialistas. Neste sentido, este autor sustentava que quanto maior for o desenvolvimento scio-cultural de um pas, maior ser a salincia dos valores ps-materialistas relativamente aos materialistas. Inglehart chamava ainda a ateno para a importncia da socializao poltica, para afirmar que o momento decisivo em que se formam valores e crenas destinados a sobreviver no tempo se situa na passagem da juventude para a idade adulta. Segundo ele, estes princpios e prioridades adquiridos nesta altura do desenvolvimento da pessoa humana tenderiam a manter-se indefinidamente. Este dado aponta para a necessidade de

    3 INGLEHART, R. (1977), The silent revolution. Changing values and political styles among Western Publics, Princeton: Princeton University Press.

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    uma particular ateno ao mundo juvenil (seja a nvel da educao, seja a nvel da formao).

    2. Desenvolvimento Local

    As novas formas de participao envolvem mudana de rumo nas polticas de desenvolvimento econmico local. As dificuldades reveladas pelo Estado-Nao em definir e implementar mecanismos correctores das assimetrias territoriais, ao revelarem bloqueios estruturais da administrao central, deixaram a maioria das regies desamparadas e desprovidas de uma estratgia capaz de lhes possibilitar uma insero favorvel nos mercados globais. A persistncia deste cenrio centralista fez com que os governos locais autrquicos adoptassem um paradigma do desenvolvimento local, relegando para segundo nvel o planeamento centralizado.

    O objectivo nuclear desta estratgia era, e ser, promover, bottom-up, o desenvolvimento endgeno desses territrios de forma solidria. A palavra solidria quer aqui ressaltar a convergncia estratgica que deve animar os municpios no sentido de defenderem conjuntamente as autonomias municipais, evitando que a administrao central adopte medidas programticas e financeiras diferenciadoras, em que os benefcios de uns tantos so obtidos a expensas da maioria. Infelizmente, devido escassez de meios financeiros, estes casos so ainda muito frequentes em Portugal. A este propsito, citamos o caso de um presidente da Cmara da rea metropolitana do Porto que afirmou ao Dirio de Notcias, de 09/10/2003, no ter problemas em tirar aos outros para melhorar o seu concelho, desde que o fizesse com recurso a meios lcitos (Daniel Francisco4)

    4 Ver Daniel FRANCISCO (2007), Territrios chamados desejos: da largueza dos conceitos conteno das experincias, in Revista Crtica de Cincias Sociais, n. 77, 165-199.

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    Com todas estas limitaes e sujeies, a poltica de desenvolvimento local constituiu, apesar de tudo, o corolrio das polticas de infra-estruturas em que as autarquias locais portuguesas se empenharam na dcada de 80. As autarquias locais estiveram, por mrito prprio, na origem da colocao da poltica local no centro da cena. Os anos 90 foram decisivos na promoo deste novo paradigma. Ser de esperar que esta valorizao e centragem na dimenso local contribuam para o desenvolvimento social e educativo das pessoas, criando condies para a sua formao democrtica dos cidados e para o reforo das identidades regionais.

    Por isso se fala de subsidiaridade, ou seja, da ideia de que as entidades locais constituem o nvel de interveno mais adequado para a soluo dos principais problemas, estimulando o bom governo e a inovao. De facto, os governos locais conhecem melhor as necessidades da sua comunidade, favorecendo a participao poltica, so mais receptivos e responsveis, alm de mais eficientes na distribuio dos servios. Subjacente a este princpio est a ideia de que o Estado no se deve substituir s pessoas, s famlias e a todos os corpos intermdios. Um Estado subsidirio aquele que partilha a soberania e as competncias com as diferentes componentes da sociedade.

    A crise fiscal do Welfare State obrigou os governos locais a competirem entre si para assegurarem recursos econmicos, procurando atrair investimentos aos seus territrios. aqui que entram as polticas de desenvolvimento local, atravs das quais os autarcas procuram incentivar o investimento local, nacional ou estrangeiro, oferendo garantias de reduo de riscos e custos e aumentando a possibilidade de lucro pela construo de infra-estruturas, ajudas na procura de financiamentos, incentivos fiscais, favores na aplicao das regras municipais, desenvolvimento do sistema de educao, etc.

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    Toda a compreenso dos territrios perspectivados numa dimenso local passa pela sua construo como espao de concertao, de negociao, de projectos, de interaces com territrios envolventes, fronteirios includos. O territrio , assim, tornado territrio projecto (ver Daniel Francisco, nota de rodap n. 4) pela cooperao dos actores que nele decidem fazer algo, restabelecendo assim a essncia do poltico: construir algo em comum.

    Mas sob a aparncia de igualdade entre partes iguais, a verdade que h regies e municpios cuja fragilidade negocial notria, fazendo com que, apesar das esperanas nelas depositadas, o Estado continue a comandar as prioridades e os referenciais locais.

    Da que o optimismo em torno das noes de contratualizao, governncia ou polticas participativas muitas vezes desmentido na prtica. Infelizmente, so ainda muito frequentes os casos em que categorias de dirigentes (eleitos e tcnicos sempre prontos a reiterar o pendor democrtico das novas parcerias e articulaes) se associam mais facilmente s elites administrativas, econmicas e profissionais do que defesa e proteco dos interesses das populaes.

    3. Associativismo supra-municipal

    Um dos antdotos para neutralizar tais riscos poder ser dado pelo associativismo intra e supra-municipal. Centremo-nos neste ltimo, ainda pouco explorado entre ns. Dada a importncia e o protagonismo que as instncias comunitrias europeias sempre lhe atriburam, foi com a nossa integrao na Unio Europeia (UE) que foi despoletado o nvel regional. So conhecidas as atitudes regionalistas manifestadas pela Comisso Europeia desde a presidncia de Jacques Delors, assim como algumas polticas

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    comunitrias (em particular a Poltica de Coeso) especificamente pensadas para este efeito e que contriburam para conferir poder s autoridades regionais. E a verdade que, hoje em dia em todos os pases da Unio, excepo de Portugal, as regies europeias alcanaram, tanto no plano nacional, como no plano europeu, um reconhecimento e uma importncia que seriam inimaginveis h uma ou duas dcadas.

    Mas se a questo regional, em Portugal, apesar do preceito constitucional, continuam ainda sem soluo vista (depois do revelador fracasso do referendo de 1998 sobre este assunto), o mesmo no se pode dizer do regime da administrao local que, em conformidade com a Constituio Portuguesa, conheceu profundas mudanas, como a eleio directa dos executivos camarrios, o que relativamente ao passado, representou um passo decisivo rumo a um novo sistema poltico portugus.

    A recente lei, acordada entre PS e PSD5, sobre LEI ELEITORAL DAS AUTARQUIAS LOCAIS, demonstra que o sistema portugus vai sofrer acentuadas mudanas ao nvel poltico-administrativo. De facto, com a entrada em vigor de tal lei, o pas ir afastar-se de um modelo consensual e aproximar-se- de um modelo maioritrio de democracia, com a constituio de maiorias absolutas a quem no as conseguiu nas urnas. A pessoalizao e presidencializao sero os riscos naturais de executivos monocolores.

    Mas, para j e independentemente daquilo que ir acontecer com a regionalizao e daquilo que vier a resultar da Lei eleitoral das autarquias locais, agora aprovada, o que queremos eleger, em primeiro lugar, para debate neste Seminrio, a questo da estrutura poltico-administrativa do pas. Far algum sentido que, no

    5 Certos comentaristas salientam desta lei o facto de ela constituir uma espcie de tratado de Tordersilhas, permitindo ao PS e PSD a diviso da grande parte do poder autrquico.

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    contexto da UE e de uma economia aberta e global, Portugal continue a viver com 308 municpios e cerca de 4000 freguesias? Se a questo da regionalizao pode ser polmica, o que no devia ser polmico e estar na ordem do dia deveria ser a reduo drstica do nmero das autarquias locais: freguesias e municpios. Est a faltar-nos a coragem de um Mouzinho da Silveira (1832) e, sobretudo, de um Passos Manuel (1836-38) que reduziu os municpios para 351, para no falar j de Rodrigues Sampaio (1878) que, apesar de defender a coincidncia da rea do concelho com a da comarca, conseguiu, mesmo assim, um feito histrico ao impor a sua reduo para 290, nmero nunca mais alcanado at actualidade.

    provvel que uma proposta de uma reduo drstica do nmero de municpios e de freguesias custasse muitssimos votos, talvez mesmo a derrota, a um candidato a Primeiro-Ministro ou a presidente de Cmara Municipal que pretendesse levar por diante tal reduo. Como hbito entre ns, em vez de se discutir o essencial, continuamos a adiar o confronto com a realidade: a lgica atomstica que fragmenta e favorece a concorrncia individualista no territrio. E, esporadicamente, o pas ainda continua, de tempos a tempos, a ouvir os argumentos de um bairrismo passadista e exacerbado6 de uma qualquer aldeia, ressuscitando porventura um passado definitivamente devorado pela histria, que se julga por isso importante e reivindica, consequentemente, o seu direito de elevao categoria de concelho E vem a Lisboa ao Parlamento e ao Palcio de Belm, em excurses festivas, manifestar o seu desarrazoado descontentamento, quando a vontade no lhes feita!

    6 Estas observaes crticas, naturalmente inseridas numa mundiviso que os tempos contemporneos preanunciam, so extensivas, no meu entender, quer s (inadmissveis num Estado de direito) ameaas separatistas de alguns membros do actual Governo Regional da Madeira, quer incapacidade da UE em resolver, pela negociao, os conflitos tnicos nos Balcs.

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    A nossa ateno questo da reduo do nmero de freguesia e municpios no descura a importncia da criao das regies. O que queremos salientar que, por um lado, o pas enfrenta um grave problema que a reforma das actuais estruturas do poder administrativo territorial (criao de regies e reduo do nmero de freguesia e municpios), mas, por outro lado, tambm queremos realar que a classe poltica, numa voragem suicida, se divorcia cada vez mais do Povo-Nao e mergulha cegamente numa redoma irreal de marfim (Lei Eleitoral das autarquias locais).

    Em segundo lugar, em tempos de globalizao e do fim das fronteiras, queremos realar a necessidade de os executivos municipais encaminharem pela criao de associaes inter-municipais, no apenas para servirem de base legal a entendimentos pontuais ou a finalidades poltico-partidrias, mas tambm para definirem Planos Estratgicos mais alargados a nvel Intermunicipal, incluindo municpios fronteirios, sem esquecer a elaborao de Planos Intermunicipais de Ordenamento do Territrio (PIMOT), como estipula o Decreto-Lei 380/99.

    4. Novas frentes de aco municipal no quadro global

    Perante uma realidade em profundas transformaes, os desafios ao poder local no param de se multiplicar, incitando-o a enveredar por novas frentes de aco municipal, numa luta renhida contra a apatia e burocracias castradoras. Alm do associativismo supra-municipal, h outras frentes de combate que iremos, por agora, enunciar apenas, por j ir longo este texto e por se esperar que elas possam constituir ponto de partida para o debate que ter lugar ao longo do seminrio:

    * Oramento Participativo como caminho para vivificar uma cidadania activa;

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    * Fronteiras culturais os municpios da zona raiana devem fazer das fronteiras pontos de unio para repensar um futuro comum;

    * Educao e Formao Juvenil reas que pedagogicamente esto ligadas s comunidades locais e nas quais os municpios devem investir, apostando nos jovens como factores de mudana. Isto passar pela promoo do movimento associativo, em geral e, em particular, de um associativismo tipicamente juvenil;

    * Erradicao definitiva do analfabetismo e da iliteracia;

    * Mundo Rural que futuro? Que contributos deu o Interior para a elaborao do PNPOT? Que mundo rural se defende e se projecta? Apostar nas Escolas, Institutos e Universidades como palcos de debates, estudos e avaliao, mas tambm como factores de mudana e promoo de aco;

    * No ceder ao populismo desagregador dos territrios administrativos, mas fomentar antes o esprito de reduo e/ou de concentrao de freguesias e municpios;

    * Apostar em Parcerias e Protocolos a nvel intramunicipal e intermunicipal;

    * Marketing - explorar novas formas de promoo (em Portugal e no estrangeiro) dos territrios regionais ou sub-regionais.

    Consideraes Finais

    Voltamos ideia de sonho e realidade. As mudanas nas maneiras de fazer poltica e gerir a vida colectiva, tendo em conta a crise do Estado-Nao (e os bloqueios que ainda dificultam a sua

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    descentralizao), a construo europeia e os fenmenos da globalizao, envolvem clarividncia e capacidade para reagir inrcia caracterstica da cultura portuguesa7. No entanto, conceitos como governncia territorial, ou perspectivas como a da territorializao da aco pblica, aqui apresentados, para serem levados a srio h que transformar amplamente as mentalidades ainda eivadas de saberes, procedimentos prticos e automatismos de comportamentos de que no conseguem ou no desejam descartar-se.

    Pensar os territrios (locais, metropolitanos, regionais e fronteirios) enquanto fonte revitalizada de aco colectiva e bero de coligaes estratgicas, debilmente libertas da tutela estatal, apostadas na promoo de identidades territoriais, animadas por projectos, parcerias ou agendas sufragadas pelos cidados, ainda ver a realidade pelo prisma do desejo. certo que, no quadro crescente de transformaes que marcam hoje o modo de actuao polirquica das instituies e de gesto das polticas pblicas, h j aspectos que justificam, sem dvida, expectativas de resultados visveis num horizonte prximo. No entanto, h precaues que se aconselham. Mau grado a popularidade de noes como desenvolvimento local sustentado, celebrao de parcerias e aproveitamento de sinergias com a sociedade civil, das identidades culturais, da transparncia e participao, ou at de autarquias-providncia, o local no esgota a cidadania, por necessitar (cultural e politicamente) da fora propulsora e legitimadora que lhe dada pelo Povo-Nao.

    7 Na obra A Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa, (Lisboa: Arcdia, 1971), Vitorino Magalhes GODINHO refere como trao marcante o facto de o pas, de acordo com a sua anlise, dispor de uma cultura sem eficcia social. Para suscitar reflexes mais vastas e teoricamente mais arrojadas, aconselharamos tambm a leitura da obra de Joo de Almeida SANTOS (Paradoxos da Democracia, Lisboa: Fenda, 1998).

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    No podemos ignorar que local , ainda em muitas situaes, sinnimo de cultura localista, clientelar, fechada e individualista dos poderes autrquicos. A aco estratgica territorial, h que record-lo, pode ser sempre prisioneira de temporalidades especficas dos projectos dos indivduos, organizaes e das prprias polticas pblicas. Como sempre acontece em fases de grandes transformaes, o antigo e o novo continuam a conviver ainda sem grandes estorvos. Desde as pessoas-actores, s organizaes, at ao Estado, ainda h muita coisa para mudar.

    Por todas estas razes, ser mais circunspecto, a propsito do tempo presente, falar-se de transio entre um modelo mais centralizado, hierrquico e tecnocrata do progresso e as novas metodologias plasmadas no territrio, de que o desenvolvimento durvel, a democracia, a cidadania activa constituem os princpios motores, mas cuja fora impulsionadora e legitimadora recebida, como vimos, do Povo-Nao. Pelo que nos parece prudente temperar os entusiasmos e os sonhos dos discursos poltico-partidrios com a realidade dos factos; mas tambm no permitir que o sonho e o desejo se transmutem em mitos ou utopias nunca realizveis.

    Impe-se, por isso, que o poder local, em primeira instncia, assuma como prioridade suprema a transformao dos seus territrios atravs dos (novos) modelos e metodologias aqui apenas esboados. Ao proceder de tal modo, o poder local, retomando o fulgor que lhe foi abusivamente extorquido, estar finalmente em condies de desafiar e enfrentar, ajudando-o a resolver, o paradoxo de que Tocqueville j falava, em 1840: Il est contradictoire que le peuple soit la fois misrable et souverain.

    AbstractIntroduoLocalizaoSo VicenteFig.1 - (Fonte: Wikimedia Commons)Constituio geolgica e climaMindelo e a respectiva centralidadeAlado Planimtrico da Rede de ARDomsticasMindelo e a sustentabilidadeMindelo e o enquadramento6 MINDELO E A DRENAGEMDimensionamento hidrulicoVa = 10.(-bqs/(1+b)). (qs/a(1+b)-b).C.AI = a tb/Mindelo e a requalificao urbana