o perfil estratÉgico na fala do colonizador na obra: "o homem que queria ser rei" de...

32
UNIVERSIDADE IGUAÇU - UNIG LAUREANE RAMOS DA CUNHA O AGIR ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA “O HOMEM QUE QUERIA SER REI” DE RUDYARD KIPLING COORDENAÇÃO DO CURSO DE LETRAS Graduação em Letras

Upload: laureaneuerj

Post on 27-Jul-2015

314 views

Category:

Documents


1 download

DESCRIPTION

Artigo Apresentado às exigências da Universidade Iguaçu como conclusão de curso de graduação em Letras para a obtenção do título de Licenciado em Letras (Português/Inglês)-(UNIG/RJ).

TRANSCRIPT

Page 1: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

UNIVERSIDADE IGUAÇU - UNIG

LAUREANE RAMOS DA CUNHA

O AGIR ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA “O HOMEM QUE QUERIA SER REI” DE RUDYARD

KIPLING

COORDENAÇÃO DO CURSO DE LETRASGraduação em Letras

Nova Iguaçu08/07/2009

LAUREANE RAMOS DA

Page 2: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

2

O Agir Estratégico na Fala do Colonizador na obra: “O Homem que Queria ser Rei” de Rudyard Kipling

TCC apresentado em cumprimento às exigências da Graduação de Letras da Universidade Iguaçu, como requisito parcial para obtenção do título de

Licenciado em Português-Inglês.

OrientadoraProfª. Ms. Luzia Cunha Cruz

Nova Iguaçu08/07/2009

Page 3: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

3

O PERFIL ESTRTÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: “O HOMEM QUE QUERIA SER REI” DE RUDYARD KIPLING_________________________________________________________________

RESUMO

O presente artigo visa a apresentar o processo de atuação dos personagens Dravot e Carnehan na obra O Homem que Queria ser Rei de Rudyard Kipling, com base na Teoria do Agir Comunicativo do filósofo alemão Jürgen Habermas com foco na Teoria do Agir Estratégico. Em um ato discursivo um indivíduo age estrategicamente quando procura influenciar o “outro” empregando argumentos persuasivos e (ou) coercitivos, a fim de produzir resultados que estejam de acordo com seus planos. Destarte, abordaremos os aspectos do pensamento imperialista a partir da visão do crítico literário Edward Said analisando o comportamento do colonizador refletido na Literatura Inglesa do século XIX. Nosso objetivo é estabelecer parâmetros para o comportamento humano, quando o indivíduo, inserido em um contexto social, age de uma certa forma para atingir uma meta, colocando em jogo a sua própria vida.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria do Agir Comunicativo, Habermas, Rudyard Kipling, Imperialismo, Ética, “Outro”.__________________________________________________________________

THE STRATEGIC PROFILE IN THE COLONIZER’S SPEECH IN THE WORK: “THE MAN WHO WOULD BE KING” BY RUDYARD KIPLING__________________________________________________________________

ABSTRACT

This article aims at showing the process of performance from the characters Dravot and Carnehan in the work The Man who Would be King by Rudyard Kipling according to the Theory of Communicative Action from the german philosopher Jürgen Habermas with focus in the Theory of Strategical Acting. In a discursive act, the being shall seek to influence the “other” using persuasive and (or) coersitive arguments with purpose to produce results that are in accordance with his plans. In this manner we are going to show the thought from the imperialist vision of the literary critic Edward Said analyzing the behavior of the colonizer reflected in English literature of the nineteenth century. Our objective is to establish parameters for the human behavior, when the individual, insert in a social context, acts in a such way to reach a particular goal, despiting his own life.

KEY-WORDS: Theory of Communicative Acting, Habermas, Rudyard Kipling, Imperialism, Ethics, “Other”.

Page 4: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

4

O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA:

“O HOMEM QUE QUERIA SER REI” DE RUDYARD KIPLING

Introdução

O presente artigo pretende, a partir da visão histórica de Edward Said¹

e da perspectiva da filosofia hermenêutica da Teoria da Ação Comunicativa de

Jürgen Habermas, analisar o comportamento dos personagens Daniel Dravot e

Peachey Carnehan na obra O Homem que Queria ser Rei2 de Rudyard Kipling3.

___________________________

¹ Em 1978, o palestino Edward Said , ao escrever o clássico “Orientalismo” (Orientalism), rompe com os estudos pós-coloniais inspirados no marxismo para abraçar as teses de Foucaut. Até entãoninguém ousara interpretar a história como uma luta pela linguagem, e sim como uma luta de classes, como Marx e seus seguidores o fizeram.

2 O Homem Que Queria Ser Rei (1975) - Tradução de BOSELLI, Cristina Carvalho - Título original em Inglês: THE MAN WHO WOULD BE KING, é um conto dividido em dois momentos: no primeiro, o conto é narrado por um homem desempregado que sai da sua terra em busca de uma melhoria de vida e torna-se editor de um jornal. O narrador apresenta os personagens contando o seu encontro com os amigos Carnehan e Dravot. No segundo momento, o narrador é o próprio Peachey que conta as aventuras que viveu com seu amigo Dravot. A história narra as aventuras de dois ex-soldados britânicos: Peachey Carnehan e Daniel Dravot cuja relação é marcada pela amizade e lealdade. Os amigos decidem partir para a Índia em busca de riqueza e poder. Vivem trapaceando e simulando personagens para não serem pegos pelas autoridades locais e com isso, atravessam o Afeganistão, cruzam desertos, geleiras, montanhas, enfrentam bandidos e as intempéries naturais até que enfim chegam ao (fictício) Kafiristão. Lá encontram uma terra de bárbaros, que se reúnem em tribos isoladas, eternamente em luta umas contra as outras. Usando seus conhecimentos de estratégia militar, além de muita esperteza, Dravot e Carnehan vão ganhando a confiança do povo local até que conseguem seu intento. Daniel se torna o rei do Kafiristão. Muitas vezes ajudados pela sorte, pela História e pela Maçonaria (quando Dravot torna-se o Grande Mestre de Ofício ao descobrir os símbolos maçônicos e convencem a população de uma tribo de que são deuses), Carnehan e Dravot vão sobrevivendo sem que sejam desmascarados. Após ser flechado numa batalha e arrancar a flecha fora (que tinha atingido uma proteção que possuía no peito), Dravot é aclamado pelo povo como um deus vivo, sucessor direto de Alexandre o Grande. E isso acaba selando o destino dos amigos. Ao agir segundo suas emoções, Dravot quebra o contrato que fizera com Peachey e pede ao povo que lhe preparem uma mulher para casar-se com ele. A mulher, insatisfeita, morde o pescoço de Dravot. Ao ver o sangue escorrendo pelo braço de Dravot, o povo descobre que os amigos não passam de trapaceiros e todo o reinado é desfeito. A cada erro que Dravot comete em suas ações, Peachey está presente para orientá-lo, mas levado pela ganância e a inconsequência do homem colonizador, Dravot é levado pelo excesso de confiança e acaba perdendo sua própria vida. Mas, contudo, teve o que tanto almejou: a coroa de Rei em sua cabeça.3KIPLING, Joseph Rudyard (1865-1936) escritor e poeta britânico, nascido em Bombaim, na Índia, na época, parte do Império Britânico. Suas principais obras são: The Jungle Book (1894), The Second Jungle Book (1895), Just So Stories (1902), e Puck of Pook's Hill (1906), Kim (1901); Mandalay (1890), Gunga Din (1890), If (1910) e Ulster (1912); The Man Who Would Be King (1888); "Life's Handicap" (1891), "The Day's Work" (1898), e "Plain Tales from the Hills" (1888). Em 1907, Kipling recebe o Prémio Nobel da Literatura. Considera-se Kipling o principal representante da literatura imperialista.

Page 5: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

5

Abordaremos as características históricas, sociais e políticas que

influenciaram a literatura da época, as questões éticas e morais exteriorizadas pela

fala dos personagens, suas ações que transpõem barreiras e atravessam fronteiras.

Nesta medida, destacamos que as relações sociais manifestam as diferentes

personalidades através do discurso e expressam comportamentos, sentimentos e

mundos subjetivos e intersubjetivos.

Trataremos também de questões como: interação e ação social, que

são temas muito bem explorados pelo filósofo e sociólogo alemão Jürgen

Habermas. Destarte, sua teoria ocupará o lugar central na análise da obra de

Kipling que terá como foco o agir em sociedade. Neste sentido, Habermas propõe

ao pensar o agir em sociedade, o resgate do conceito de “Mundo-da-

vida”4(Lebenswelt), cuja proposta é quebrar o paradigma do individualismo, e

levantar um novo paradigma: o das pretensões universais criticáveis que com a

perspectiva da virada pragmática da linguagem traz à luz do uso pragmático da

linguagem como coordenador da ação, a prática social através da racionalidade

comunicativa.

O perfil estratégico do colonizador

No século XIX, período em que a Índia foi colonizada, a Literatura

Inglesa sofre uma grande influência do pensamento imperialista ocidental com

uma forte abordagem da relação colonizador-colonizado. Na obra analisada, a

figura do colonizado é a de um ser rústico, inferior, mestiço e bárbaro enquanto a

visão de colonizador se destaca como um ser superior. Portanto, o discurso

imperialista acredita que os habitantes das colônias não possuem identidade

própria. É necessário que alguém lute pelas causas dos “fracos”.

Vemos assim que, a literatura reflete o pensamento monolítico, forte

nos países ocidentais como a França e a Inglaterra e suas ideologias. Nas obras

___________________________4 Sobre o mundo-da-vida em Habermas, Pizzi diz que “a reconstrução do conceito de Lebenswelt no conjunto da vida e da sociedade requer um procedimento racional. Essa racionalidade é, ao mesmo tempo, comunicativa e historicamente situada, possibilitando a articulação de conceitos como liberdade e igualdade, autonomia e reconhecimento recíproco, emancipação e liberação, com base em um contexto existencial concreto e, ao mesmo tempo,pressupondo normas válidas por todos.” PIZZI, Jovino. O Conteúdo Moral do Agir Comunicativo, 2005, p. 217.

Page 6: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

6

literárias, portanto, há o papel do colonizador que pretende “civilizar”, impondo

seus costumes, a sua língua. O mesmo é apresentado no nosso conto em foco

quando, a princípio, se desvela uma resistência por parte dos nativos e o

colonizador é levado a “aprender” a língua nativa para então conquistar a

confiança do povo: “[...] Então ele perguntou o nome das coisas no dialeto deles:

pão, água, fogo, ídolos e tal, [...].” (KIPLING, 1975, p. 24).

Diante dessa dialética que concerne à relação colonizador -

colonizado, Said argumenta que o Oriente e o Ocidente estão interligados por

laços históricos e culturais provenientes do processo de colonização. Quanto ao

processo de orientalização do Ocidente, Said diz: “To speak of Orientalism

therefore is to speak mainly, [...], of a British and French cultural enterprise, a

project whose dimensions take it such disparate realms as the emigration itself,

the whole of India […]5.

Agir Comunicativo, Agir Estratégico e a arte da persuasão

Em sua teoria da Ação Comunicativa, Habermas segue a linha teórica

do pragmatismo, que compreende a comunicação como um ato racional - a

linguagem em uso. Assim, a ação comunicativa acontece no momento em que os

participantes desta ação interagem a fim de que haja uma compreensão entre

ambas as partes.

Nesta perspectiva, ego pretende comunicar algo: que seu discurso seja

aceito como válido por alter no sentido de ser significante e verdadeiro. Para isso,

o falante deve expressar-se de forma inteligível, permitindo que ambos possam

compreender-se mutuamente. Ao passo que, na comunicação onde um falante

utiliza o discurso em prol de alcançar objetivos próprios e garantir o sucesso da

ação, age de forma egocêntrica resultando na exclusão do outro.

No decorrer da história veremos que as personagens da obra analisada, buscam

obter um consenso. Neste enfoque, tal intento consenso está intimamente

relacionada ao Agir Comunicativo6.

____________________________5 “Deste modo, falar de Orientalismo é falar sobretudo [...] do empreendimento cultural Inglês e Francês, um projeto cujas dimensões tomam sentidos tão diferentes, como a própria imaginação, o todo constituído pela Índia.” SAID, Edward W. Orientalism, 1979, p.4.

6No que se refere ao Agir Comunicativo, Habermas diz que “o entendimento através da linguagem funciona da seguinte maneira: os participantes da interação unem-se através da validade pretendida de suas ações da fala[...]. Através das ações de fala são levantadas pretensões de validades criticáveis, as quais apontam para um reconhecimento intersubjetivo.” HABERMAS: Pensamento Pós-metafísico, 2002, p. 72.

Page 7: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

7

Na teoria do Agir Comunicativo os interlocutores pretendem chegar a

um entendimento através da interação numa troca intersubjetiva a fim de obter um

consenso. Para isso, ego precisa aceitar como válido o proferimento de

alter. Ao passo que no Agir Estratégico7, o interlocutor pretende influenciar a

ação do “outro” de acordo com seu interesse particular e induz o comportamento

alheio a agir conforme o seu desejo. Vejamos a fala de Peachey ao tentar

induzir o amigo ao qual acabara de conhecer durante a viagem de trem, a pagar o

envio de um telegrama ao seu amigo Dravot que espera por uma notícia de

Peachey na estação de uma cidade que fica a caminho do destino do colega de

viagem:

[...] Você vai fazer baldeação no Entroncamento de Marwar para chegar no território de Jodhpur e ele vai chegar no entroncamento de Marwar na madrugada do dia 24, pelo Correio de Bombaim. Você pode estar no Entroncamento de Marwar nesse momento? Não queria incomodar, porque sei como é precioso o pouco lucro que se consegue nesses Estados da Índia Central... mesmo se você fingir que é correspondente do Sertanejo. [...] Tenho que dar notícias dizendo o que me aconteceu, senão ele não vai saber para onde ir. Acharia mais que gentil da sua parte se você pudesse sair da Índia Central a tempo de se encontrar com ele no Entroncamento de Marwar, e dizer: “Ele foi para o sul por uma semana”. Ele sabe o que quer dizer. É um homem grande de barba ruiva, e muito alinhado. Estará dormindo como um cavalheiro, com toda a bagagem em volta, numa cabina da segunda classe. Mas não precisa ficar com medo. Você abre a janela e diz: “Ele foi para o sul por uma semana”, e ele entenderá. Só vai encurtar sua temporada por aqueles lados uns dois dias. Estou pedindo como um estranho que vai para o oeste – falou com afetação. [...] e espero que você dê o recado direitinho, pelo amor da minha mãe e da sua também. [...].É mais que um probleminha – continuou – e é por isso que estou pedindo; e agora sei que posso confiar em você. Um vagão da segunda classe no Entroncamento de Marwar, um ruivo dormindo. Jure que vai se lembrar. Salto na próxima estação, e tenho que ficar lá até ele chegar ou me mandar o que desejo.”

(KIPLING, 1975, p. 8)

De acordo com a passagem acima citada, percebemos que o agir

estratégico tem por meta atingir um determinado fim que pode ser alcançado ou

não. Sendo assim, a comunicação é utilizada para provocar efeitos

_______________________________7 Habermas afirma que “No Agir Estratégico a constelação do agir e falar modifica-se. Aqui as forças ilocucionárias de ligação enfraquecem; a linguagem encolhe-se, transformando-se num simples meio de informação.” HABERMAS: Pensamento Pós-metafísico, 2002, p. 74.

Page 8: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

8

perlocucionários8 que são efeitos que não guardam nenhuma relação com o

significado do proferimento, pois o falante só pode agir estrategicamente

ocultando os interesses particulares que subjaz o seu discurso. Neste sentido,

Peachey, ao tentar convencer o amigo, percebe que este se encontra na mesma

situação financeira que ele, ou seja, sem dinheiro, para pagar o envio do

telegrama. E no ato comunicativo, os amigos conversam sobre assuntos

pertinentes à condição em que eles se encontram: a condição de “vagabundos”.

Vejamos as passagens abaixo que nos mostram o momento em que as

personagens se identificam:

Peachey: “Se a Índia só tivesse homens como você e eu que, como os corvos, não sabem o que vão comer no dia seguinte, esta terra não pagaria setenta milhões de impostos: seriam setecentos milhões”.O amigo: “Quanto mais eu olhava para a sua boca, mais me sentia inclinado a concordar com ele. Falamos da política, a política da Vagabundagem que vê as coisas pelo lado avesso [...].”

(KIPLING, 1975, p. 8)

A partir da dinâmica do agir orientado para o sucesso, pode-se afirmar

que Peachey, ao comunicar-se com o amigo utiliza, em seu discurso, argumentos

que despertam a afetividade do companheiro, a fim de que este leve pessoalmente

o recado ao amigo Daniel Dravot. Carnehan dispõe de proferimentos como: “Meu

negócio é muito urgente.”; “Não queria incomodar [...].”; “Acharia mais que

gentil da sua parte se você pudesse [...].”; “Pelo amor da minha mãe e da sua

também [...].”; “[...] e agora sei que posso confiar em você.”

Não obstante, o colega de viagem envolvido emocionalmente, se sente

na obrigação de ajudá-lo e, ao partir para o seu destino, faz uma parada no

Entroncamento de Marwar, onde Dravot já esperava por uma notícia de Carnehan.

Pelas descrições que Peachey havia dado sobre Dravot, o amigo mensageiro

entregou o recado sem obter qualquer recompensa, pois a maior recompensa seria

ajudá-los. Vejamos, através do trecho abaixo o momento em que o “mensageiro”

entrega o recado de Carnehan a Dravot, e, persuadido por Carnehan, sente

satisfação em ter o seu dever cumprido:

“[...] Vim lhe dizer que ele foi para o sul por uma semana. Foi para o sul por uma semana!O trem começara a se movimentar. O ruivo esfregou os olhos.

___________________________ 8 Habermas define os atos da fala como locucionários, o qual o falante simplesmente diz algo, expressa um estado de coisas; ilocucionários, quando a linguagem é usada objetivando o

Page 9: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

9

– Foi para o sul por uma semana – repetiu. –Agora é só seguir o plano. Ele disse que ia lhe dar alguma coisa? Porque não vou.– Não disse nada – falei, e fui embora; continuei observando as luzes vermelhas desaparecerem no escuro.Fazia um frio terrível, pois o vento levantava rajadas de areia. Voltei ao meu trem [...] e fui dormir.Se o homem de barba ruiva tivesse me dado uma rupia, eu a teria guardado como recordação de um caso bem curioso. Mas a consciência do dever cumprido era a minha única recompensa.”

(KIPLING, 1975, pág. 9)

Podemos observar mais uma vez que na dinâmica da linguagem

voltada para o agir estratégico uma pessoa influencia a outra motivada pela

intenção de atingir o seu objetivo a qualquer custo e obter vantagens para si,

persuadindo e induzindo o comportamento alheio sem que o outro perceba a sua

intenção. Assim, todas as possibilidades de obter um consenso encontram-se

esgotadas. Nessa ótica, Lúcia Aragão afirma que:

“Na ação estratégica, um ator procura influenciar o comportamento do outro por meio de sanções ou da perspectiva de gratificação a fim de fazer com que a interação continue conforme o primeiro deseja [...]”

(ARAGÃO, 1997, p. 115 )Ao procurarem por um lugar no mundo onde pudessem reinar e

conquistar bens, Carnehan e Dravot reencontram, na redação de um jornal de uma

pequena cidade de Londres, o amigo que conheceram na viagem de trem. Este os

ajuda disponibilizando mapas da Índia. Então, ao planejarem suas aventuras,

encontram-se envolvidos em um processo comunicativo cujas ações são

amparadas em todo tempo pelo consenso a fim de que seus planos não sejam

comprometidos pelo desacordo. Vejamos o discurso de Dravot quando ele e seu

amigo Carnehan decidem viajar para a Índia:

“Pensamos no assunto meio ano, fizemos questão de procurar nos livros e mapas e decidimos que agora só existe um lugar no mundo que dois fortes podem chamar de ótimo. É o Kafiristão. Pelos meus cálculos, fica no canto de cima à direita do Afeganistão, a uns quilômetros de Pashwar. Lá existem trinta e dois ídolos pagãos e nós vamos ser os números trinta e três e

_______________________________entendimento mútuo; e perlocucionários, que é o ato no qual o ator, através da comunicação, causa um efeito no ouvinte, e, consequentemente, obtém vantagens pessoais.

“Eu caracterizei o compreender e o aceitar de ações de fala como sucessos ilocucionários; todosos fins e efeitos que vão além disso devem ser chamados “perlocucionários”. HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990, p. 72.

trinta e quatro. É um país montanhoso, e as mulheres são lindas!”

Page 10: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

10

(KIPLING, 1975, p. 15)

Cabe ressaltar neste momento que a arte da persuasão é explicitada

na literatura quando as personagens tentam ludibriar a população nativa com

promessas de crescimento e melhoria de vida em determinados discursos como o

de que os ocidentais, brancos, cultos têm a técnica do plantio, armamento

moderno, treinamento de soldados e estratégias de guerra, ou seja, todas as

novidades que trazem benefícios e os torna mais fortes. Observe o trecho da obra

em que Carnehan conta ao velho amigo editor de jornal sobre suas conquistas

junto a Dravot:

“[...] Aí uma porção de homens chegou ao vale, o Carnehan e o Dravot os pegaram com os rifles antes que soubessem onde estavam, correram para o vale, subiram para o outro lado, encontraram uma aldeia igual à primeira, o povo todo caiu com a cara no chão, e o Dravot disse: “Então qual é o problema entre as duas aldeias?”e o povo apontou uma mulher, bonita feito você e eu, que tinha sido raptada, e o Dravot levou ela de volta para a primeira aldeia e contou os mortos: eram oito. Para cada morto Dravot derramou um pouco de leite no chão e rodou os braços feito um cata-vento e disse: “tudo bem”. Então ele e o Carnehan pegaram os donos das aldeias pelos braços, levaram-nos para o meio do vale, mostraram-lhes o jeito de riscar uma linha com uma lança bem dentro da terra, e deram a cada um deles um tufo de grama dos dois lados da linha. O povo todo gritou e desceu como o diabo, e o Dravot disse: “Ide arar a terra, e ela dará frutos, e os multiplicará”; foi o que fizeram, mesmo sem ter entendido.[...]. Na semana seguinte, eles aravam a terra do vale quietos feito abelhas e muito mais bonitos; [...] Ele e o Carnehan escolheram vinte homens bons e os ensinaram a atirar com rifle, rastejar e avançar em formação, e eles gostaram muito daquilo; que beleza vê-los pegando o jeito da coisa! Então ele tirou o cachimbo e a bolsa de fumo e deixou cada um numa vila, e lá fomos nós ver o que tinha que ser feito na próxima aldeia. Era tudo pura pedra e lá estava uma cidadezinha, e o Carnehan disse: “Mandem plantarem no outro vale”; tirou-os de lá e lhes deu umas terras que ainda não tinham sido tomadas. . Era uma tribo pobre, e sacrificamos um cabrito antes de deixar que fossem para o novo Reino. Isso era pra impressionar o pessoal, e então eles se acalmaram, e o Carnehan voltou pra junto de Dravot, que fora para outra aldeia, pura neve e gelo e quase que só montanha.[...]”

(KIPLING, 1975, p. 25)

De acordo com os argumentos ressaltados acima, considerar a

importância do desenvolvimento da nação e “libertação humana” é garantir o

clima de segurança aos quais os nativos se encontram submetidos. Assim, o

colonizador pode tirar proveito das condições precárias do povoado e construir,

aos poucos, o seu império e com isso conquistar a confiança do povo local que

Page 11: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

11

depois de estar sob o domínio ocidental, perde o direito sobre si. Desta forma, o

imperador ganha a liberdade de aplicar as devidas penalidades a quem infringir a

lei imposta pelo dominador.

Ao analisarmos a obra de Rudyard Kipling, observamos que todo esse

jogo do império ocidental encontra-se presente na dialógica das personagens

quando, ao longo do conto, fortalecem-se ganhando cada vez mais aliados e

poder. A sorte parece ser uma fiel companheira e por tornarem-se seres

admiráveis, faz-se iminente o sonho de serem reis. Veremos que os anseios

imperialistas encontram-se muito bem explicitados na fala de Peachey Carnehan:

“Fizemos amizade com o sacerdote, fiquei lá sozinho com dois do Exército, treinando os homens, um Chefe enorme apareceu na neve com tímpanos e trompas zunindo, porque ouviu dizer que tinha um deus novo circulando por ali. O Carnehan apontou para a mancha escura dos homens no meio da neve, a meio quilômetro de distância, e disparou num deles. Então enviou uma mensagem ao Chefe dizendo que, a não ser que quisesse ser morto, devia chegar, apertar a minha mão e deixar as armas de lado. O Chefe veio primeiro sozinho, e Carnehan apertou a sua mão e rodou os braços, como o Dravot fazia, e ele ficou muito espantado e cutucou a minha sobrancelha. Então o Carnehan foi até o Chefe, e lhe perguntou, por mímica, se tinha algum inimigo que detestava. “Tenho”, disse o Chefe. O Carnehan escolheu os melhores homens e botou os dois do Exército para treina-los, e no fim de quinze dias os homens sabiam manobrar feito Voluntários. Então marchou com o Chefe para um grande planalto no alto de uma montanha, os homens do Chefe correram para uma aldeia e a tomaram; éramos três Mártinis atirando na mancha escura que eram os inimigos, Aí, tomamos aquela aldeia também, e dei ao Chefe um trapo do meu casaco e disse: “Ocupai até a minha volta”, como está nas Escrituras. Só para lembrar, quando eu e o Exército estávamos a um quilômetro de distância mais ou menos, atirei uma bala perto dos que tinham ficado na neve, e o povo todo caiu com a cara no chão.”

(KIPLING, 1975, p. 26)

Diante de tais circunstâncias, a observação acerca do agir estratégico

na fala das personagens, faz emergir um aspecto importante da arte da persuasão:

o disfarce (persona), dissimulação, papéis caracterizados pelos atores com suas

variadas formas de expressão: linguagens gestuais e verbais entre outras. Estas são

táticas usadas para manipular situações que se firmam sobre a necessidade dos

aldeões. Assim, através das forças externas como, por exemplo, ameaças de

morte, reprimem e enfraquecem a linguagem tornando-a incapaz de exercer o

papel de coordenadora da ação, criando um sentimento de impotência.

Page 12: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

12

Reside aqui a necessidade de ter um “rei” forte, sábio, para governar a

nação:

“Eu não fui Rei – disse Carnehan. – O Dravot é que foi Rei e ficou lindo com a coroa de ouro na cabeça e tudo mais. Ele e o outro sujeito ficaram nessa aldeia, e toda manhã o Dravot sentava ao lado do velho Imbra, o povo vinha e o adorava. Era ordem do Dravot.

(KIPLING, 1975, p. 24)

Para sustentar a posição privilegiada, se faz necessário um equilíbrio

emocional e mental que possibilite a interpretação de símbolos que concernem ao

mundo subjetivo de um determinado grupo social e traduzem sua cultura. Desse

modo, os protagonistas do conto garantem o status de reis:

“Peachey”, disse o Dravot, “não vamos mais lutar. Agora é usar a cabeça; por isso, me ajude” e levou aquele Chefe que deixei em Bashkai. Depois o chamamos de Billi Fish, porque parecia demais com o Billy Fish que dirigiu o tanque de Mach, no Bolan, nos bons tempos. “Aperte a mão dele”, disse o Dravot, e eu o fiz e quase caí, pois o Billy me fez a Saudação. Eu não disse nada, mas tentei a Saudação de Grau de Mestre, mas foi um erro. “Ele é um Companheiro, é o que ele é”, falei para Dan. “Ele sabe a senha?” “Sabe”, disse o Dan, “e todos os companheiros sabem. É um milagre! Os Chefes e os sacerdotes tomam parte nos trabalhos da Loja do Grau de Companheiro de um jeito muito parecido com o nosso, e fizeram marcas nas rochas; não conhecem o Terceiro Grau, mas vão descobrir. É verdade divina Aprendi nesses anos todos que os afgans conheciam até o Grau de Companheiro, mas isso é um milagre. Um Deus e um Grão-Mestre da Fraternidade sou, e uma Loja do Terceiro Grau vou abrir, e vamos juntar os sacerdotes e os Chefes das aldeias.”

(KIPLING, 1975, p. 27)

Percebe-se que Dravot, entremeado com a posição de poder e riqueza,

manifesta o desejo de abrir uma Loja. Carnehan, como mediador de suas ações,

nota que o companheiro encontra-se inclinado a agir de forma precipitada

arriscando a posição de Rei e de Grão-Mestre, alerta o irmão do perigo de abrir a

Loja: “Isso é contra a lei”, eu disse, “abrir uma Loja sem autorização de

ninguém, e você sabe que nunca tomamos parte nos trabalhos de uma Loja

antes.” (KIPLING, 1975, p.27).

Apesar de Carnehan buscar obter um consenso com Dravot, este se

encontra afetado por influências externas se mostrando irredutível:

“É um golpe de mestre em matéria de política”, observou Dravot. “Quer dizer, é dirigir o país como um vagão descendo a ladeira. Não podemos parar agora para perguntar, senão se viram contra nós. Estou com quarenta Chefes sob os meus pés, e faço e desfaço deles de acordo com o merecimento. Acomode

Page 13: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

13

esses homens nas aldeias, e providencia para iniciarmos os trabalhos de uma Loja qualquer. O templo do Imbra fica sendo a sede da Loja. As mulheres vão fazer uns aventais do jeito que você mostrar. Receberei os Chefes hoje à noite e iniciamos os trabalhos da Loja amanhã.”

(KIPLING, 1975, p. 27)

Vejamos que ambos compartilham de uma mesma história de vida e

utilizam no discurso objetos simbólicos pertencentes a um mesmo universo

cultural. Dravot não dá ouvido ao seu irmão de caminhada, e ainda o convence a

agir conforme a sua vontade. Assim, o universo em que os amigos encontram-se

inseridos constitui o pano de fundo para a ação comunicativa. Neste enfoque,

Aragão diz:

“Na atividade de orientar-se para o entendimento, as pessoas acabam por instituir um conjunto de sentidos gramaticalmente pré-determinado, a partir do qual os indivíduos socializados se abastecem para compreender, interpretar e agir sobre o mundo”.

( ARAGÃO, 1997, p.43)

Para este universo cultural, o qual os indivíduos compartilham,

Habermas usa a expressão “mundo de vida”9. A este universo pertence uma

multiplicidade de elementos fundamentais que envolvem a ação dos indivíduos

sobre o mundo: personalidade, cultura e organização social em que estão

inseridos. Neste sentido, os participantes encontram-se envolvidos no processo

comunicativo, movendo-se e reconhecendo-se em seus respectivos mundos e

agindo sobre eles.

Assim, ressaltamos que, na ação comunicativa, Habermas desenvolve a

Teoria da Verdade Consensual. Esta teoria apóia-se nas pretensões de validez do

discurso baseadas em um critério de verdade fundamentado, o que distancia sua

teoria do uso da linguagem apenas para nomear estado-de-coisas e busca a

comunicação livre, porém, propensa a críticas por parte do ouvinte, isto legitima o

discurso e elimina interesses próprios resultando assim em uma situação “ideal”

de fala. Segundo Aragão:

_________________________________9 “A visão habermasiana de “mundo de vida” é descrito como um mundo no qual os atores da comunicação são engajados nele e que comunguem das mesmas bases, das mesmas normas. As certezas que acompanham a ação podem ruir, não por causa das circunstâncias objetivas decepcionantes, mas devido a objeções ou a contradições dos outros que possuem valores diferentes ou que seguem normas incompatíveis entre si”. SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jürgen Habermas. Razão comunicativa e emancipação. Tempo Brasileiro, 2002. p. 116.

Page 14: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

14

“Ao elaborar uma teoria consensual da verdade que se opõe ao modelo de verdade como correspondência entre enunciados e estado-de-coisas, a intenção de Habermas é fundamentar o critério de verdade no uso original da linguagem, como formade alcançar entendimento entre falantes e ouvintes, totalmente isenta de qualquer coação. Numa teoria consensual da verdade, o critério para asseverar a verdade de um enunciado seria a possibilidade de se obter consenso, entre os participantes de uma situação de comunicação, sobre seu conteúdo.”

(ARAGÃO, 2002, p. 110)

De acordo com a teoria do consenso, o falante deseja comunicar algo

verdadeiro, entretanto, precisa tornar o ambiente propício ao entendimento e isso

pressupõe que o conteúdo abordado permita uma eventual intervenção por parte

do ouvinte. Desta forma, o locutor permite, ao tornar o ambiente dialógico, a

interação e a ação social.

Até aqui vimos que Peachey tem procurado, através do consenso,

ajudar o amigo a tomar decisões seguras. Entretanto, Dravot não deseja mais

“fazer uma Nação”, tudo que conquistou até agora como Rei torna-se pequeno

diante da sua ganância. Desde então, tem almejado “construir um Império”: “[...]

vamos ser imperadores, imperadores da Terra!”.

Não obstante, Dravot sente a necessidade de arrumar uma esposa, e

fazer dela uma Rainha. Em divergência do pensamento de Peachey, Dravot quebra

o contrato que fizera juntamente com seu amigo. Vejamos o contrato que Peachey

e Dravot assinaram, testemunhado pelo amigo editor do jornal antes de partirem

rumo à grande aventura:

“Este contrato entre mim e você dá testemunho em nome de Deus. Amém e assim por diante:

(Um) Que eu e você vamos entrar neste negócio juntos, isto é, vamos ser Reis do Kafiristão.(Dois) Que você e eu , enquanto este negócio estiver sendo resolvido, não vamos olhar para nenhuma Bebida, nem para nenhuma Mulher preta, branca ou mestiça, pois se meter com uma e outra é prejudicial.(Três) Que vamos nos conduzir com Dignidade e Discrição, e se um de nós se meter em confusão o outro responde por ele.Assinado neste dia por você e eu.Peachey Taliaferro Carnehan.Daniel Dravot.Dois cavalheiros decentes.”

(KIPLING, 1975, p.17)

Page 15: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

15

Nota-se que o caráter decisivo de Dravot deixa Peachey preocupado,

afinal, há entre os dois uma fidelidade, um amor fraterno que se firma no cuidado

de um com o outro. Vejamos os argumentos de Peachey e a resistência de Dravot:

Peachey Carnehan: “Pelo amor de Deus, deixe as mulheres de lado!”, eu disse. “nós fizemos todo o serviço sozinhos, apesar de eu não servir para nada. Pense no Contrato, e fique sem mulheres.”

Daniel Dravot: “Quem está falando de mulheres?”, disse o Dravot. “Eu falei esposa: uma Rainha que dê um Filho ao Rei. Uma Rainha saída da tribo mais forte, que fará você irmão de sangue deles e ficará do seu lado dizendo o que o povo acha de você e dos problemas lá deles. É isso que eu quero.”

Peachey Carnehan: “Pela última vez , eu estou lhe pedindo, Dan, não.” Falei. “Vai nos trazer confusão. A Bíblia diz que os Reis não devem gastar energia com mulheres, principalmente quando têm um Reino novo em folha para construir.”

Daniel Dravot: “Pela última vez estou lhe respondendo, eu vou”, [...].

(KIPLING, 1975, p. 33)

Por conseguinte, Dravot, contrariando a cultura da aldeia, se mostra

transtornado por haver uma resistência por parte dos aldeões em arrumar-lhe uma

esposa, pois, segundo a lenda, a filha de um homem natural não pode casar-se

com um deus. Se isto acontecer, diz Billy Fish10: “Ela tem que morrer.” (Kipling,

1975, p. 33).

Os aldeões, finalmente, separam uma moça para casar-se com Dravot:

“‘A moça está com um pouco de medo’, disse o sacerdote. ‘Ela acha que vai

morrer’, [...].” (KIPLING, 1975, p. 34).

Dravot, ao conhecer a moça, agrada-se dela e a abraça. Ao abraçá-la,

ela, assustada, “dá um guincho” em seu pescoço e o fere fazendo-o sangrar. Neste

momento, a sua verdadeira identidade é revelada e o povo revolta-se contra Daniel

Dravot: “Nem Deus nem Demônio, só homem!” (KIPLING, 1975, p. 36).

Armada a confusão, Daniel acusa o seu amigo Peachey de não ter

cuidado bem do seu exército permitindo que se instaurasse um motim no meio de

seus comandados. Sobre este episódio narra Carnehan:

“É culpa sua”, ele falou, “por não ter cuidado melhor do seu Exército. Tinha um motim no meio e você não sabia, seu cão danado, maquinista de trem, colocador de placas, carregador de

___________________________10 Na obra, Billy Fish é o chefe de Bashkai, um sacerdote que acompanha e assiste aos amigos nas questões religiosas e culturais das aldeias. Único homem que sabe da farsa de Peachey e Daniel e os acompanha até o desfecho da aventura dos amigos.

Page 16: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

16

missionário!” Ele se sentou numa pedra e me chamou de todos os nomes que lhe apareceram na cabeça. Eu estava tão triste que nem fiquei com raiva, apesar de ter sido a burrice dele que armou a confusão.”“Desculpe Dan”, eu disse, “mas não se pode contar com os nativos. Esse negócio foi a nossa perdição. Quem sabe não conseguimos alguma coisa lá em Bashkai?”“Então vamos para Bashkai”, respondeu o Dan, “e, pelo amor de Deus, quando eu voltar aqui vou passar uma vassoura nesse vale que não vai ficar um micróbio!”– Andou aquele dia inteiro, e a noite toda caminhou pesadamente na neve, mastigando a barba e resmungando.

(KIPLING, 1975, p. 36)

Decretada a sua decadência, Daniel Dravot se vê confuso, pois

arruinara todas as conquistas até então alcançadas por ele e seu irmão Carnehan. E

por conta de um ato impensado, quebra o contrato e torna-se vítima de seu próprio

ímpeto colocando em jogo a sua vida e a de seus fiéis companheiros Peachey

Carnehan e Billy Fish:

“Não tem chance de sair dessa”, disse o Billy Fish. “Os sacerdotes já mandaram mensageiros às vilas dizendo que vocês são apenas homem. Por que não continuaram sendo deuses até as coisas ficarem mais firmes? Sou um homem morto”, disse o Billy Fish, e se atirou na neve e começou a rezar para os seus deuses.”– No dia seguinte estávamos num país pra lá de ruim: sem um lugar seguro e sem comida. [...] Ao meio dia chegamos ao alto de uma montanha plana toda coberta de neve e, quando subimos havia um Exército em posição nos esperando!“Os mensageiros andaram depressa”, disse o Billy Fish com um risinho. “Estão nos esperando.”–Três ou quatro homens começaram a atirar do lado inimigo e um tiro perdido acertou o Dan na barriga da perna. Foi o que trouxe de volta a razão. Ele olhou o Exército por cima da neve e viu os rifles que tínhamos trazido para o país.“Nós colaboramos”, falou. “É Inglês esse povo. E foi minha maldita loucura que trouxe você até aqui. Volte, Billy Fish, e leve seus homens. Você já fez o que pôde, agora chega. Carnehan, aperte a minha mão e vá embora com o Billy. Talvez, não matem vocês. Vou encontrá-los sozinho. Fui eu quem fez isso. Eu, o Rei!”“Vai”, falei. Vai para o Inferno, Dan! Estou aqui com você. Billy Fish, você some, e nós dois vamos enfrentar esse povo.”“Eu sou um chefe”, disse o Billy Fish calmo. Fico com vocês. Meus homens podem ir.”

Notemos que a quebra de um contrato desencadeia uma série de ações que

afetam a convivência humana. Nessa dimensão política do agir em sociedade, o

“contrato moral nutre o agir comunicativo” Diante dessa afirmativa, PIZZI (2005,

p. 290) diz que “ o contrato representaria o aspecto formal desse compromisso

Page 17: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

17

moral, qual seja, o acordo em torno de interesses particulares, grupais e

institucionais, [...], representa a base de uma sociedade.”

Destarte, uma vez envolvido pela desventura de suas emoções, Dravot

percebe que é tarde demais, pois ele, Billy Fish e Carnehan são feitos prisioneiros

depois de uma emboscada. Billy Fish morre degolado, Dravot é levado para uma

ponte de corda e, lançado ao precipício, morre com a sua coroa na cabeça. Uma

morte digna de um Rei:

“Vocês acham que não vou morrer feito um nobre?” Ele se virou para o Peachey, o Peachey que chorava igual criança: “Eu trouxe você até aqui, Peachey”, disse: “tirei você da sua vida tranqüila para ser morto no Kafiristão, onde você chegou a ser Comandante-em-Chefe das Forças do Imperador. Diga que me perdoa, Peachey.” “Perdôo”, falou Peachey. “De todo o coração o perdôo, Dan.” “Aperte minha mão, Peachey”, disse ele, “Agora me vou. E se foi, sem olhar para os lados, e ficou pendurado no meio daquelas cordas balançando... “Cortem, vagabundos”, gritou; e eles cortaram, e o velho Dan caiu, rodando, rodando, rodando, trezentos mil metros, porque levou meia hora caindo até bater na água, e pude ver o seu corpo preso numa rocha com a coroa de ouro do lado.”

(KIPLING, 1975, p. 38)

Após a morte de Dravot, Peachey Carnehan Taliaferro é crucificado e

sobrevive. Segue-se a narração de Peachey:

“Mas o senhor sabe o que fizeram com o Peachey, no meio dos pinheiros? Eles o crucificaram, meu senhor, como pode ver pelas mãos do Peachey. Usaram cravos de madeira nas mãos e nos pés dele, e ele não morreu. Ficou lá pendurado, gritando; desceram com ele no dia seguinte, disseram que era um milagre não estar morto.”

(KIPLING, 1975, p. 38)

Peachey, já debilitado pelos ferimentos da crucificação, volta à cidade

onde iniciou suas aventuras com Dravot. Na redação do jornal, reencontra o

amigo editor e narra todo a sua história e, logo após, morre de insolação dois dias

depois de ter sido internado pelo amigo em um asilo.

Concluímos assim que, um indivíduo ao agir estrategicamente, pode

destruir todo um projeto de vida porque limita a possibilidade de interação e

comunicação. O homem é um ser político por natureza e isto pressupõe que a

linguagem seja a condição una para o exercício da vida em sociedade. Assim, a

ética será o princípio norteador do agir comunicativo, da prudência e do bom

senso.

Page 18: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

18

Conclusão

No decorrer do presente artigo, analisamos o jogo da persuasão

embutida na fala das personagens e a argumentação contida no discurso

imperialista dos dominadores que afeta todas as práticas sociais e políticas. Na

narrativa O Homem que Queria ser Rei, o processo de atuação dos protagonistas

representa a maneira de pensar da soberania ocidental que vê o “outro” como

mestiço e rude. Nesta ótica, a pretensão de Edward Said é de romper com a visão

política monolítica do oriente. Ele argumenta que nenhuma cultura é pura ou

única, todas são heterogêneas e extremamente diferenciadas.

Ao longo deste artigo observamos que a estratégia de Carnehan se

firma em ações bem calculadas, conscientes, enquanto Dravot age sempre pela

emoção. Assim, Carnehan possui uma visão mais abrangente, o que lhe permite

um autocontrole. Porém, a ação dos dois se firma nos ideais imperialistas que os

afastava progressivamente de suas culturas, fazendo-os adentrar em um mundo

desconhecido, distante e perigoso, e, impulsionados pelo desejo de adquirir bens

materiais e poder, mentem, trapaceiam, desvirtuando-se dos valores morais

necessários à boa convivência humana. Desta forma, o agir estratégico estabelece

uma “influência recíproca” de indivíduos que se posicionam em relação a outros,

guiados pelo sucesso. Ao passo que o agir comunicativo se traduz na linguagem

partilhada intersubjetivamente, e permite aos atores sociais interagirem-se,

distanciando-se do egocentrismo e compreendendo–se mutuamente.

A partir dessas considerações, o nosso estudo possibilitou demonstrar

que a ação orientada para o sucesso exclui à comunicação e o seu papel de

coordenadora da ação. Assim, ética é uma postura à qual os homens em processo

de humanização e, portanto, de libertação, têm de assumir, perante outros

indivíduos e a sociedade. A consciência moral é consolidada na busca do

exercício democrático onde predomina o diálogo como elemento fundamental no

processo de interação social. Desse modo, temos refletido à luz da filosofia

habermasiana, a ética discursiva que se contrapõe à visão individualista do

dominador, da negação do outro e, consequentemente, da exclusão social.

Page 19: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

19

O exercício democrático que propõe a autenticidade dos sujeitos,

participação e respeito à cultura, é um compromisso de todos os atores sociais no

exercício da solidariedade e cooperação. Assim, a comunicação sem coerção é o

ingrediente básico para a troca intersubjetiva e o reconhecimento de si na

complexa esfera do “mundo-da-vida”.

Page 20: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

20

Referências Bibliográficas

ARAGÃO, Lúcia A. M. de C. Razão Comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.

________________ Habermas: filósofo e sociólogo do nosso tempo. Trad. SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite e BARBOSA, Ricardo José Corrêa. Filosofia Prática e Modernidade. Rio de Janeiro: Editora Uerj, 2003.

ARAÚJO, Luiz Bernardo Leite. Religião e Modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola,1996.

AURÉLIO, Buarque de Holanda Ferreira. Minidicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1997.

AZEREDO, José Carlos. Escrevendo pela nova ortografia. Rio de Janeiro: Instituto Hauaiss – Publifolha, 2008.

BANNELL, Ralph Ings. Habermas e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica (coleção Pensadores & Educação), 2006.

KIPLING, Joseph Rudyard. O Homem que Queria ser Rei e outras histórias. Trad. BOSELLI, Cristina Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Record, 1975.

HABERMAS, Jürgen. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2006.

________________ Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Trad: ARAGÃO, Lúcia. São Paulo: Tempo Brasileiro, 2002.

________________ A Inclusão do Outro. Trad. SEABRA, George e SOCTHE, Paulo Astor. São Paulo: Loyola, 2002.

Page 21: O PERFIL ESTRATÉGICO NA FALA DO COLONIZADOR NA OBRA: "O HOMEM QUE QUERIA SER REI" DE RUDYARD KIPLING

21

_________________ Passado como Futuro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

_________________ Pensamento Pós-Metafísico: Estudos Filosóficos. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Biblioteca Tempo Universitário nº 90 (Série Estudos Alemães), 2002.

__________________ The Theory of Communicative Action - translated by Thomas McCarthy. vol 1. USA: Beacon Press, 1984.

PIZZI, Jovino. O Conteúdo Moral do Agir Comunicativo. Rio Grande do Sul: Ed. Unisinos, 2005.

SAID, Edward W. Orientalism. New York: Vintage Books Edition, 1979.

SIEBENEICHLER, Flávio Beno. Jürgen Habermas: razão comunicativa e emancipação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1994.