o perdão sobre a culpa e a vida sobre a morte · 2018-12-07 · alimenta de esperança e vida. de...
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FACULDADE DE SÃO BENTO
GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
JÚLIO ARAÚJO SILVA FIGUEIREDO NETO
A MISERICÓRDIA DE DEUS E A MISÉRIA DO HOMEM
O perdão sobre a culpa e a vida sobre a morte
SÃO PAULO-SP
2018
JÚLIO ARAÚJO SILVA FIGUEIREDO NETO
A MISERICÓRDIA DE DEUS E A MISÉRIA DO HOMEM
O perdão sobre a culpa e a vida sobre a morte
Trabalho de conclusão de curso apresentado à
Faculdade de São Bento como exigência para obtenção
do título de Bacharel em Teologia.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Alejandro Ribaric’
SÃO PAULO-SP
2018
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JÚLIO ARAÚJO SILVA FIGUEIREDO NETO
A MISERICÓRDIA DE DEUS E A MISÉRIA DO HOMEM
O perdão sobre a culpa e a vida sobre a morte
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de São Bento como exigência para
obtenção do título de Bacharel em Teologia.
Aprovado em: 06 de dezembro de 2018.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Alejandro Ribaric’
Faculdade de São Bento
Prof. Dr. Pe. José Eduardo de Oliveira e Silva
Faculdade de São Bento
Prof. Dom Lourenço, OSB (João Luiz Palata Viola)
Faculdade de São Bento
SÃO PAULO-SP
2018
3
Dedico este trabalho em especial à minha esposa Vanessa de Moura
Melão Figueiredo e à minha filha Isabela Melão Figueiredo. No seio
da família o homem experimenta profundamente sua vivência de fé. É
na família que somos autenticamente o que somos, com nossos limites,
fraquezas, contradições, e onde a misericórdia se torna vida no
suportar as dificuldades, no apoio dos momentos mais difíceis e na
lágrima da alegria da conquista após todo esforço. Vanessa e Isabela,
vocês foram o suporte incontestável para atingir o objetivo desta
graduação e instrumentos da misericórdia de Deus em minha vida, a
vocês, que me permitiram experimentar ao longo destes três anos a
“escola de Nazaré” o que a teologia mais me ensinou e vocês
encarnaram ao longo destes anos de estudo: “Esta é a minha alegria
e ela é completa! É necessário que Ele cresça e eu diminua. ”
(Jo 3,29b-30)
4
AGRADECIMENTOS
“... o Todo-Poderoso fez grandes coisas em meu favor. Seu nome é santo e sua misericórdia
perdura de geração em geração para aqueles que o temem. ” (Lc 1,49-50).
Agradeço, primeiramente, a Deus Pai de misericórdia, que na Pessoa do seu Filho Jesus Cristo,
me fez experimentar seu amor e bondade concedendo sua Graça, que me possibilitou concluir esta
graduação dos estudos teológicos e desenvolver a presente monografia.
À minha família natural, minha esposa Vanessa de Moura Melão Figueiredo e Isabela Melão
Figueiredo, por todo apoio, presença e carinho me sustentando nestes anos de graduação. Agradecimento
especial à minha mãe Ana Maria e meu pai Júlio Araújo Silva Figueiredo Junior (in memoriam), por
todo exemplo de luta e esforço ao longo de todos estes anos de vida me educando na fé, na honestidade
e na luta para conquistar meus objetivos. Assim como minha irmã Carla Andrea Figueiredo e minha
sobrinha Daniela Figueiredo Martins Carlos.
À minha família espiritual, a comunidade Aliança de misericórdia, em especial meus fundadores
Pe. Antonello Cadeddu e Pe. João Henrique, a quem tenho a honra de chamar de meus pais na fé, que
antes de aprender na teoria me ensinaram na prática a vida de Deus expressada na vivência da verdade,
do amor aos pobres e na vida de oração meditada e exercida com caridade o que significa buscar o
conhecimento de Deus.
Aos meus irmãos de comunidade que me apoiaram, sustentaram e me permitiram desenvolver
meus estudos teológicos absorvendo por tantas vezes o peso da missão para que eu pudesse me dedicar
aos estudos e chegar até aqui. Aos membros da Fraternidade Davi em especial, que foram constantes
apoiadores e incentivadores do meu estudo: a compreensão e o apoio de vocês foram fundamentais para
viver bem a vontade de Deus em minha vida. Obrigado irmãos!
Faço um agradecimento especial à presidência de nosso movimento nas pessoas do Pe. José
Custódio, Irmã Meire de Calcutá e ao Pe. Evandro Torlai, que me provocaram e incentivaram a enfrentar
o desafio de estudar Teologia, e assim, me fizeram descobrir minha vocação dentro desta graduação:
muito obrigado por serem voz de Deus em minha vida.
Meus queridos amigos e irmãos, Pe. Pedro Mariano, Prof. Dr. Joel Gracioso e Rafael Ferreira
de Brito, que foram um suporte incontestável ao longo destes três anos numa amizade próxima, na
partilha dos assuntos teológicos e seus desafios, mas fundamentalmente, no incentivo para uma
dedicação séria, responsável, comprometida e apaixonada pela arte da Teologia, assim como o apoio
didático em tantos estudos, trabalhos e nesta dissertação também, sem vocês e nossas discussões não
teria tanta graça, gratidão!
A graça de Deus e o seu cuidado se manifestam de diversos modos nos sinais que confirmam
nossos passos. Uma destas confirmações é a providência divina que não falha e agiu em minha vida
5
através de irmãos e irmãs muito especiais. Por isso, agradeço muito aos meus padrinhos que foram
canais desta providência para honrar as mensalidades da faculdade: Camila Silveira Lobo, Gianfranco
Cunha Ferreira, Leandro Hiroshi Hobo e Marina Chaves Craveiro Teixeira. Deus lhes pague por toda
generosidade e que o Senhor retribua cem vezes mais!!!
Impossível não agradecer a todos os professores da Faculdade de São Bento que contribuíram
ao longo desta graduação para o meu enriquecimento cultural e de fé. Um especial agradecimento ao
meu orientador Prof. Dr. Sérgio Alejandro Ribaric’, que com firme presença, seriedade acadêmica e
mística profunda, me conduziu na direção deste trabalho de pesquisa. Muito além disso, me ensinou que
a Teologia não somente se estuda, mas se torna vida naquele que se aproxima com humildade do mistério
de Deus e se deixa revelar na sua misericórdia e que mesmo no silêncio, nos fala profundamente e nos
revela o seu Amor. Gratidão mestre!
Agradeço a todos os meus colegas de classe com quem dividi ao longo destes anos o desafio de
aprender Teologia, mas mais que isso, partilhar a vida e conhecimento por um bem maior.
E por fim, a todos que de alguma forma colaboraram com esta etapa de minha vida acadêmica
e foram instrumento para que este trabalho pudesse chegar a sua conclusão. Muito obrigado!
6
“Precisamos sempre contemplar o mistério da misericórdia. É fonte de
alegria, serenidade e paz. É condição da nossa salvação. Misericórdia: é a
palavra que revela o mistério da Santíssima Trindade. Misericórdia: é o ato
último e supremo pelo qual Deus vem ao nosso encontro. Misericórdia: é a
lei fundamental que mora no coração de cada pessoa, quando vê com olhos
sinceros o irmão que encontra no caminho da vida. Misericórdia: é o
caminho que une Deus e o homem, porque nos abre o coração à esperança
de sermos amados para sempre, apesar da limitação do nosso pecado.”
(Bula Misericordiae Vultus, 11 de abril – véspera do II Domingo de Páscoa
ou da Divina misericórdia – no Ano do Senhor de 2015.)
7
RESUMO
Enfrentaremos o grande desafio de compreender como o ser humano, mesmo tendo ciência da
misericórdia de Deus, não tem condições de apreendê-la por constantemente se defrontar com
a sua realidade de miséria que o coloca numa atitude de culpa que o faz parecer incapaz de
experimentar esta misericórdia oferecida gratuitamente pelo Criador. Entretanto, ao fazer uma
experiência de sua própria miséria, o ser humano se defronta com esta explosão de amor
manifestada através da misericórdia de Deus que vem ao encontro da miséria humana. Não se
torna possível tocar a totalidade da compreensão deste mistério que é a misericórdia divina,
mas o presente texto quer ajudar a todos que tiverem contato com o seu conteúdo a compreender
uma dinâmica própria do amor de Deus em relação às suas criaturas, que faz compreender que
a miséria do homem não o exclui da possibilidade de alcançar a misericórdia divina mas, pelo
contrário, é através desta miséria que o homem pode se encontrar com este dom salvador que o
alimenta de esperança e vida. De forma sistemática, é possível compreender algumas faces da
misericórdia divina, a situação do ser humano e a resposta definitiva de Deus através da
encarnação de seu Filho único que oferece a cura da culpa através do seu perdão e o resgate da
morte através da entrega de sua própria vida.
Palavras-Chave: misericórdia. Miséria. Encarnação. Cruz. Verbo Encarnado.
8
ABSTRACT
We will face the great challenge of comprehending how the human being, even having
knowledge of God's Mercy, cannot apprehend it by constantly confronting his misery reality,
which put him in a guilty attitude that makes him seem incapable of experiencing this Mercy
freely offered by the Creator. However, when having an experience of his own misery, the
human being is confronted with this love explosion manifested through God’s Mercy that
comes to encounter the human misery. It is not possible to touch the totality of the
comprehension of the Divine Mercy mystery, but the present text wants to help all those who
have contact with its content to understand a dynamic of God’s love in relation to its creatures,
which brings the comprehension that the misery of man does not exclude him from the
possibility of reaching Divine Mercy, but on the contrary, it is through this misery that man can
meet with this saving gift that feeds him with hope and life. In a systematic way, it is possible
to understand some faces of the Divine Mercy, the situation of the human being and God's
definitive response through the incarnation of his only Son who offers the cure of the guilt
through his forgiveness and the death rescue through the surrender of his own life.
Keywords: Mercy. Misery. Incarnation. Cross. Incarnated Word.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO GERAL .................................................................................................................... 10
CAPÍTULO I: A MISERICÓRDIA DE DEUS ................................................................................ 12
1.1 Introdução ....................................................................................................................................... 12
1.2 O nome de Deus é misericórdia ...................................................................................................... 14
1.2.1 Rahamim: o entranhável amor materno e a fidelidade forte do Pai ............................................. 15
1.2.2 Hesed: lealdade e fidelidade de Deus, um pacto de aliança ......................................................... 16
1.2.3 Eleos: um ato gratuito de benevolência e bondade ...................................................................... 17
1.3 Perspectiva bíblica: O conceito de misericórdia no Antigo Testamento e nos Evangelhos ............ 19
1.3.1 A misericórdia como “aliança” no Antigo Testamento ................................................................ 19
1.3.2 A misericórdia como “salvação” nos evangelhos ........................................................................ 22
CAPÍTULO II: A MISÉRIA DO HOMEM...................................................................................... 26
2.1 Introdução ....................................................................................................................................... 26
2.2 A queda: o pecado como plano interrompido ................................................................................. 27
2.3 A experiência da culpa .................................................................................................................... 29
CAPÍTULO III: JESUS A MISERICÓRDIA ENCARNADA: O PERDÃO SOBRE A CULPA E
A VIDA SOBRE A MORTE .............................................................................................................. 35
3.1 Introdução ....................................................................................................................................... 35
3.2 O perdão sobre a culpa: Quem pode perdoar pecados a não ser Deus? (Lc 5,21) .......................... 36
3.3 A cruz: a Vida sobre a morte ........................................................................................................... 43
CONCLUSÃO ..................................................................................................................................... 47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................................. 49
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA .................................................................................................... 52
10
INTRODUÇÃO GERAL
O infinito mistério da misericórdia de Deus oferecida à humanidade que, ferida por seu
afastamento de Deus causado pelo pecado original, é um tema muito atual na Igreja, mas como
mistério, nos coloca de fronte a uma atitude gratuita da parte de Deus que não observa os
méritos do ser humano, mas por ser Amor por excelência (cf. 1Jo 4,8) e fiel à sua promessa,
não se move mesmo diante da infidelidade de sua criatura, a qual faz à sua imagem e
semelhança e que, tendo rompido sua amizade com o seu Criador é resgatada pela obra salvífica
realizada na revelação do verbo através de sua encarnação, paixão, morte e ressurreição.
Existe uma tensão constante entre esta misericórdia oferecida de forma gratuita da parte
de Deus e do homem que, tendo experimentado a sua miséria e tocado pelo pecado, sofre com
a sua separação em relação ao seu Criador carregando esta culpa e, nem sempre, se abrindo a
graça desta misericórdia oferecida.
A presente pesquisa tem caráter bibliográfico. A produção dos textos, num contexto
maior, tem como base as quatro áreas da reflexão teológica atual: os principais elementos da
Sagrada Escritura, da teologia sistemática, da vida cristã e da prática pastoral da Igreja. Como
se trata de um TCC (trabalho de conclusão de curso) procuramos delinear, a partir dos
fundamentos teológicos, uma abordagem teórica acerca do tema da misericórdia de Deus e a
miséria do homem, numa tentativa de expor a importância deste tema, tendo por base a análise
de textos do magistério e dos principais autores que se dedicam a essa área da teologia e sua
importância hoje na Igreja.
O trabalho dispõe de três capítulos que se originam do elemento norteador do TCC: “A
misericórdia de Deus e a miséria do homem: o perdão sobre a culpa e a vida sobre a morte. ”
No primeiro capítulo buscar-se-á uma explanação do tema da misericórdia como parte
de um dos temas mais abordados no contexto hodierno da Igreja Católica Apostólica Romana,
demonstrando inclusive a atenção dada ao tema por parte dos sumos pontífices. Ainda um olhar
atento ao próprio tema, que é a misericórdia, observando as raízes na formação etimológica nos
termos hebraicos e gregos, mas principalmente da abrangência da compreensão de cada um
destes termos aplicados ao Antigo e ao Novo Testamento. E por fim, uma explanação bíblico-
teológica dos termos no Antigo Testamento como sinal da aliança de Deus para com o homem
e no Novo Testamento como expressão da Salvação oferecida na encarnação do verbo.
O segundo capítulo se desenvolve em torno da análise da miséria humana que tem fonte
no pecado original e trouxe ao homem a experiência da culpa gerada pela separação do seu
11
Criador. Apesar do plano interrompido pelo pecado, poder-se-ão verificar todos os esforços da
parte de Deus em reconciliar o homem consigo e a possibilidade do ser humano enxergar em
sua própria miséria algo que atrai a misericórdia de Deus trazendo esperança de vida.
Ao terceiro e último capítulo desta pesquisa caberá a fundamentação apoiada em Jesus,
a misericórdia encarnada, como fonte de perdão sobre a culpa e vida sobre toda a morte. A
capacidade do Cristo em perdoar pecados, atribuição que lhe é própria por ser Deus, e sua vida
oferecida vez por todas em seu sacrifício salvífico na Cruz vencendo toda a morte, reconcilia o
homem com o Pai e o eleva à dignidade de filho de Deus, vencendo toda a morte.
Enfim, a partir da referida estrutura veremos que o tema da misericórdia de Deus e a
miséria do homem é parte de uma reflexão que tem encontrado um espaço importante na Igreja
no contexto atual. Buscar-se-á adentrar neste mistério impossível de ser desvelado por completo
e impossível de ser compreendido em sua plenitude pelo saber humano, mas possível de ser
tocado para aumento do conhecimento e crescimento da fé.
12
CAPÍTULO I: A MISERICÓRDIA DE DEUS
1.1 Introdução
O termo “misericórdia” é facilmente encontrado em qualquer dicionário da língua
portuguesa. Os significados ou sinônimos são muitos: compaixão, piedade, caridade,
comiseração, perdão. A misericórdia, porém, raramente é abordada nos dicionários teológicos,
mas sua relevância no contexto hodierno é muito grande e veremos ao longo destas páginas o
motivo de tal importância dada ao tema.
Em sua origem o termo provém do latim “misericordia”, o qual é o resultado da união
de “miseria” que indica aflição, pobreza, ausência do necessário para viver, e “cordis”, que
indica coração. O significado latino deste substantivo é, portanto, a reação provocada pela
aflição presente no coração humano de fronte a algo que lhe falta e que deve ser preenchido ou
restabelecido (CERBELAUD, 2004, p. 1150)1.
O presente capítulo tratará do tema da misericórdia dentro de uma perspectiva bíblico-
teológica buscando dar uma resposta sobre a miséria humana e que encontra de uma forma
muito forte nos últimos tempos, na Igreja, um lugar privilegiado.
Este tema marca fortemente o contexto atual da Igreja. Não que seja um assunto somente
atual, haja vista a amplitude que encontramos sobre o tema quando passamos os olhos pela
Tradição, pela Patrística e no Magistério da Igreja. Mas iremos nos ater aqui de forma particular
a dois expoentes mais que importantes sobre o assunto a partir do século XX.
A misericórdia ocupa um lugar especial de destaque no pontificado do Papa João Paulo
II, que sem dúvida foi um dos grandes expoentes da temática e que assumiu o tema como que
um fio condutor de seu pontificado. E com a mesma vivacidade, o Papa Francisco conduz a
Igreja neste terceiro milênio, apoiado neste mesmo tema tão presente em seu pontificado a
ponto de lhe ser uma forma de descrever a Igreja nos dias de hoje como a “Igreja da
misericórdia”.2
Em um breve parêntese, se faz mister recordar e recorrer às palavras do sacerdote Frei
Raniero Cantalamessa, pregador da casa pontifícia, por ocasião do ano da misericórdia que
ajuda-nos a entender a importância do tema:
1 CERBELAUD, D. Misericórdia. In: LACOSTE, J.-Y. (Org.). Dicionário crítico de teologia. São Paulo:
Paulinas – Loyola, 2004. p. 1150. 2 FRANCISCO, Papa. A Igreja da Misericórdia: minha visão para Igreja. Organização Giuliano Vigini;
tradução do prefácio Cristina Mariani. 1. Ed. São Paulo: Paralelam 2014.
13
“Certamente, nunca foi ignorada, no cristianismo, a misericórdia de Deus!
Mas a ela se confiou apenas a incumbência de moderar os rigores da justiça.
A misericórdia era a exceção, não a regra. O ano da misericórdia é a ocasião
de ouro para trazer à luz a verdadeira imagem do Deus bíblico que não só faz
misericórdia, mas é a misericórdia”3.
É exatamente sobre esta temática que o Papa São João Paulo II escreve a sua segunda
encíclica nominada Dives in Misericordia em 1983, onde aponta de forma clara que:
“É óbvio efetivamente, que, em nome de uma pretensa justiça (por exemplo,
histórica ou de classe), muitas vezes se aniquila o próximo se mata, se priva
da liberdade e se despoja dos mais elementares direitos humanos. A
experiência do passado e do nosso tempo demonstra que a justiça, por si só,
não basta e que pode até levar à negação e ao aniquilamento de si própria, se
não se permitir àquela força mais profunda, que é o amor plasmar a vida
humana nas suas várias dimensões.”4
Como quem quer esclarecer efetivamente a que veio, o atual pontífice Papa Francisco,
no terceiro ano de seu pontificado, no dia 11 de abril de 2015 – véspera do II Domingo de
Páscoa ou Festa da Divina misericórdia – promulga com a Bula Misericordiae Vultus, O rosto
da misericórdia, um ano de Jubileu Extraordinário da misericórdia5. Logo no início do texto, o
pontífice menciona o Cristo como o “rosto da misericórdia” do Pai e o qualifica como a síntese
de toda a fé cristã: a experiência da misericórdia de Deus passa através do encontro com seu
Filho encarnado. Cita São João Paulo II, recordando dois trechos da encíclica Dives in
misericórdia, sobre o esquecimento em que caíra o tema da misericórdia na cultura dos nossos
dias e a urgência em anunciar e testemunhar a misericórdia no mundo contemporâneo6. Mas
3 CANTALAMESSA, R. A Misericórdia salvará o mundo, In: L’OSSERVATORE ROMANO, 31 março 2016,
Città del Vaticano. p. 4. 4 JOÃO PAULO II, Papa. Carta Encíclica Dives in Misericórdia (Sobre a Misericórdia divina). n. 12. In.
http://w2.vatican.va/content/john-paul-ii/pt/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_30111980_dives-in-
misericordia.html atualizado até a última verificação no dia 20/11/2018. 5 Antigamente entre os hebreus, o jubileu era um ano declarado santo e que acontecia a cada 50 anos, no qual se
devia restituir a igualdade a todos os filhos de Israel. A Igreja católica iniciou a tradição do Ano Santo com o Papa
Bonifácio VIII em 1300. Ele planejou um jubileu por século. A partir de 1475, para possibilitar que cada geração
vivesse pelo menos um Ano Santo, o jubileu ordinário passou a acontecer a cada 25 anos. Um jubileu
extraordinário pode ser realizado em ocasião de um acontecimento de particular importância. Até hoje, foram 26
Anos Santos ordinários. O último foi o Jubileu de 2000. Quanto aos jubileus extraordinários, o último foi o de
1983, instituído por João Paulo II pelos 1950 anos da Redenção. A Igreja católica deu ao jubileu judaico um
significado mais espiritual. Consiste em um perdão geral, uma indulgência aberta a todos, e uma possibilidade de
renovar a relação com Deus e com o próximo. Assim, o Ano Santo é sempre uma oportunidade para aprofundar a
fé e viver com renovado empenho o testemunho cristão. Texto retirado da carta pastoral do Cardeal Dom Orani
Joao Tempesta, O. Cist. no site:
http://arqrio.org/files/repository/Carta_Pastoral_sobre_o_ano_jubilar_da_misericrdia___13_de_dezembro_de_20
15_17122015094932.pdf e atualizado até última verificação no dia 06/12/2018. 6 Cf. FRANCISCO, Papa, Bula Misericordie Vultus (O rosto da Misericórdia), n. 11. In.
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-
francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html atualizado até a última verificação no dia 20/11/2018
14
seu principal foco é apontar que “A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus,
coração pulsante do evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada
pessoa.”7
O Santo Padre em sua Carta Apostólica Misericordia et misera (misericórdia e miséria),
no termo do jubileu extraordinário da misericórdia, evoca Santo Agostinho que se utiliza deste
termo ao descrever o encontro de Jesus com a adúltera (cf. Jo 8,11-11), que nos faz compreender
o mistério do amor de Deus quando vem ao encontro do pecador: “Ficaram apenas eles dois:
a miséria e a misericórdia.8” Mais ainda, reforça categoricamente a necessidade de que “a
misericórdia não se pode reduzir a um parêntese na vida da Igreja, mas constitui a sua própria
essência, que torna visível e palpável a verdade profunda do Evangelho9.
Desta forma, vemos que a misericórdia precisa ser aplicada e vivida de forma muito
prática, ser parte do cotidiano de toda a Igreja e por isso nos é importante agora investigar as
faces desta misericórdia, partindo da introdução de um texto referente ao retiro que o Santo
Padre ministra para sacerdotes no ano da misericórdia e, logo após, dos termos que trazem um
sentido ainda mais amplo à palavra misericórdia, tomando como base primária e fundamental
a Sagrada Escritura.
1.2 O nome de Deus é misericórdia
No percurso do jubileu extraordinário da misericórdia, por ocasião do retiro espiritual
para sacerdotes guiado pelo Papa Francisco na Basílica de São João de Latrão no dia 02 de
junho de 2016, em sua primeira meditação, o Santo Padre, tendo escolhido o tema da
misericórdia introduz o retiro explanando de forma muito sintética e profundíssima o termo
discorrendo que:
“A misericórdia, no seu aspeto mais feminino, é o entranhável amor materno
que se comove perante a fragilidade da sua criatura recém-nascida e a abraça,
suprindo tudo o que lhe falta para poder viver e crescer (rahamim); e, no seu
aspeto propriamente masculino, é a fidelidade forte do Pai que sempre
sustenta, perdoa e reencaminha os seus filhos. A misericórdia é,
simultaneamente, o fruto duma “aliança” – daí dizer-se que Deus Se lembra
do seu (pacto de) misericórdia (hesed) – e um “ato” gratuito de benevolência
e bondade, que brota da nossa psicologia mais profunda e se traduz numa obra
7 Cf. FRANCISCO, Papa, Bula Misericordie Vultus, (O rosto da Misericórdia), n. 12. In.
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-
francesco_bolla_20150411_misericordiae-vultus.html atualizado até a última verificação no dia 20/11/2018. 8 OP. In Johannis 33, 5. In. FRANCISCO, Papa, CARTA APOSTÓLICA MISERICORDIA ET MISERA. 9 FRANCISCO, Papa, Carta Apostólica Misericordia et misera (Misericórdia e miséria) n. 1. In.
http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/apost_letters/documents/papa-francesco-lettera-
ap_20161120_misericordia-et-misera.html atualizado até a última verificação no dia 20/11/2018.
15
exterior (eleos, transforma-se em esmola). Este caráter inclusivo permite que
esteja sempre ao alcance de todos “misericordiar”, compadecer-se de quem
sofre, comover-se perante o necessitado, indignar-se porque sente o íntimo
estremecer-lhe diante duma injustiça patente e trata imediatamente de fazer
algo de concreto, com respeito e ternura, para remediar a situação. E, partindo
deste sentimento visceral, está ao alcance de todos contemplar Deus a partir
da perspectiva deste primeiro e último atributo com que Jesus no-Lo quis
revelar: o nome de Deus é misericórdia.10”
Extraímos deste texto três termos fundamentais: rahamim, hesed e eleos, os quais agora
vamos aprofundar seus termos e, em seus significados, aprofundar a dimensão com a qual Deus
expressa a sua misericórdia na miséria do homem.
1.2.1 Rahamim: o entranhável amor materno e a fidelidade forte do Pai
No vocábulo rahamim, podemos identificar a misericórdia divina com um amor
materno. É possível tomar tal compreensão com um olhar para a sua tradução latina que aponta
a expressão viscera misericordiae11, um amor de entranhas, o que podemos compreender por
um amor visceral, ou entranhado de Deus para seus filhos.
Relacionamos o termo rahamim nesta dimensão que classificamos como “feminina”,
uma vez que tal termo denota de forma mais particular um caráter mais afetivo e emocional de
Deus para com o seu povo. Isso também faz uma ponte com a paixão de Jesus, que nos faz
relacionar diretamente com a compreensão de um Deus que se faz próximo e que, por meio de
Cristo, se configura na realidade humana12. Este amor que é totalmente gratuito, sendo um
“envolvimento natural e necessário do coração de Deus”, um amor que se lança às últimas
consequências e que se entrega no lugar do outro, é uma exigência do ser de Deus, que vai de
encontro com o sentido do termo rahamim, que como vimos, denota o amor de mãe.
Neste ponto convém referendar-nos à luz da Sagrada Escritura que, entre as atribuições
feitas a Deus e, de uma forma especial, aqui recorrendo ao texto do profeta Isaías 49,15 “Por
acaso uma mulher se esquecerá de sua criancinha de peito? Não se compadecerá ela do filho
do seu ventre? Ainda que as mulheres se esquecessem eu não me esqueceria de ti.”, temos uma
revelação de um amor fiel e invencível graças à força misericordiosa da maternidade. Neste
10 FRANCISCO, Papa Primeira Meditação – Exercícios Espirituais para os sacerdotes em 2016. Retirado do site:
https://w2.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2016/june/documents/papa-francesco_20160602_giubileo-
sacerdoti-prima-meditazione.html e atualizado até a última verificação no dia 20/11/2018. 11 DICIONÁRIO DE LATIM, Ed. Porto, 3ªedição 2008: Vol 3. p. 418. 12 MCKENZIE, John L. Dicionário Bíblico. (tradução Álvaro Cunha... et al.; revisão geral Honório Dalbosco. São
Paulo: Ed. Paulinas, 1983.pp. 614-618. Daqui em diante citado como “DICIONÁRIO BÍBLICO. Org. JOHN
MCKENZIE.” e paginação correspondente.
16
ponto vale ressaltar que não é nossa intenção afirmar neste texto uma dimensão feminina de
Deus no que se refere a gênero, mas a modo de ilustração, entendemos que o amor materno
seria o mais próximo de uma compreensão teológica sobre o amor de Deus, respeitando os
limites a toda e qualquer especulação de como é e de que forma é o amor de Deus.13
Ainda dentro desta compreensão e atribuindo também a misericórdia como rahamim,
um amor que perdoa e sara as feridas, nos é possível associá-lo de forma direta ao sacramento
da reconciliação, que vem sobre o penitente que se acusa, com uma sentença de absolvição
gratuita reestabelecendo o relacionamento entre o homem e Deus. Neste sentido, de forma
muito clara, vemos que o perdão exercido sobre a culpa é, além de um remédio que cura, liberta
e reestabelece a vivência comunitária numa dimensão social da chamada “pax cum Cristo, pax
cum Ecclesia”, paz com Cristo, paz com a Igreja, permitindo que o penitente retome seu
caminho com a comunidade cristã e recomece a sua caminhada de fé. Em outras palavras,
podemos constatar que a dimensão rahamim da misericórdia reestabelece a dignidade perdida
pelo pecado e abre novos horizontes e possiblidades para aquele que foi perdoado, pois a
reconciliação com Deus é um gesto libertador e motivador.
1.2.2 Hesed: lealdade e fidelidade de Deus, um pacto de aliança
O termo hesed é considerado na religião e na moral hebraicas como atitude divina e
humana. O seu significado pode ser melhor compreendido quando estudamos os termos aos
quais ele está associado. Assim sendo, surgem expressões com origem no hebraico, que
designam a compreensão de misericórdia quando unidas ao termo hesed, tais como: o verbo
hãnam (manifestação de uma graça através de uma súplica), o termo hus (exprime piedade e
compaixão) e temos ainda o vocábulo emet (significa segurança, estar seguro de). Não podemos
considerar uma coerência perfeita do termo em si, pois o mesmo sofre uma evolução no seu uso
através dos séculos. Porém, apesar desta evolução, o termo tem um significado fundamental
que apesar de se modificar em sua evolução, não o altera substancialmente.14
O termo hesed, revela a essência de Deus, como diz o Papa Bento XVI: “Este é o pedido
de justiça que Abraão expressa na sua intercessão, um pedido que se baseia na certeza de que
o Senhor é misericordioso. Abraão não pede a Deus algo contrário à sua essência, bate à porta
13 FAUSTI, S. Una Comunità Legge Il Vangelo Di Luca. Bologna: Nuova Edizione, 2011. p. 45. 14 DICIONÁRIO BÍBLICO. Org. JOHN MCKENZIE. pp. 614-618.
17
do coração de Deus, conhecendo a sua verdadeira vontade.”15 Um amor que não pode deixar
de amar, pois o amor de Deus é pura compaixão pela vida do homem, está em sua natureza:
Deus é amor (cf. 1Jo 4,16).
Hesed é ainda mais claramente compreendido como “salvação”, conforme canta o
salmista que confia no hesed de Iahweh, exulta com a sua salvação (cf. Sl 13,6), pedindo que
Iahweh demonstre o seu hesed, garantindo sua salvação (Sl 85,8). Uma Vontade de salvação
de Deus que supera a justiça atributiva, ou seja, que vai além do rigor pensado e compreendido
como uma justiça com base na lei do talião16 que podemos encontrar nos textos
veterotestamentários, como citado por exemplo, em Êxodo 21,24-25. Será também associado à
Aliança, o que mais adiante trataremos de forma especial dentro da perspectiva bíblica do
termo.
1.2.3 Eleos: um ato gratuito de benevolência e bondade
Encontramos no termo grego eleos, o sentido mais amplo que sugere o termo
“misericórdia” no novo testamento. Ele irá aparecer em contextos que correspondem a hesed
ou utilizado de um modo que recorda o termo hesed. Uma verificação mais clara deste sentido
pode ser vista no evangelho de Lucas, seja no Magnificat ou no Benedictus.
Em relação ao Magnificat temos o vocábulo eleos, onde é totalmente possível a sua
associação a hesed no sentido de fidelidade. Deus manifesta seu amor de fidelidade para com o
seu povo, onde o Seu nome passa a ser conhecido entre as gerações. Podemos aqui ousar referir
o próprio nome de Deus como misericórdia:
“Minha alma engradece o Senhor, e meu espírito exulta em Deus meu
Salvador, porque olhou para a humilhação de sua serva. Sim! Doravante as
gerações todas me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-poderoso fez
grandes coisas em meu favor. Seu nome é Santo e sua misericórdia perdura de
15 BENTO XVI, PP. Audiência Geral na Praça de São Pedro, quarta-feira dia 18 de maio de 2011, Catequese
sobre ´O homem de oração – A Intercessão de Abraão sobre Sodoma (Gn 18,16-33)
https://w2.vatican.va/content/benedict-xvi/pt/audiences/2011/documents/hf_ben-xvi_aud_20110518.html e
atualizado até a última verificação no dia 20/11/2018. 16 A lei do talião sempre lembrada pelo termo: “olho por olho, dente por dente”, que se encontra no código de
Hamurábi e nas leis assírias, é de natureza social, não individual. Prevendo um castigo igual ao dano causado, visa
limitar os excessos da vingança (cf. Gn 4,23-24). O caso mais claro é a execução de um assassino (vv.31-34; cf.
21,12-17+; Lv 24,17). De fato, a aplicação dessa regra parece ter perdido desde muito cedo a sua brutalidade
primitiva. As obrigações do “vingador de sangue” (go´el, Nm 35,19+) foram se purificando até se limitarem ao
resgate (Rt 2,20+) e à proteção (Sl 19,15+; Is 41,14+). O enunciado do princípio continua em uso, mas sob formas
mais brandas (Eclo 27,25-29; Sb 11,16+; cf. 12,22). O perdão era prescrito no interior do povo israelita (Lv 19,17-
18; Eclo 10,6; 27,30-28,7) e Cristo acentuará ainda mais o mandamento do perdão (Mt 5,38-39+; 18,21-22+0. In.
Rodapé da BIBLIA DE JERUSÁLÉM, São Paulo: Paulus, 2004. pp.132-133
18
geração em geração, para aqueles que o temem. Agiu com a força de Seu
braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs os poderosos de seus
tronos, e a humildes exaltou. Cumulou de bens a famintos e despediu os ricos
de mãos vazias. Socorreu a Israel seu servo, lembrado de sua misericórdia,
conforme prometera a nossos pais em favor de Abraão e de sua descendência,
para sempre”. (Lc. 1,46-55)17
Também encontramos nos lábios de Zacarias, pai de João Batista, ao evocar o amor
misericordioso de Deus, o termo eleos que no sentido já acima citado configura-se na
compreensão e em comparação ao termo rahamim:
“Bendito seja o Senhor Deus de Israel, porque visitou e redimiu o vosso povo,
e suscitou-nos uma força de salvação na casa de David, seu servo. Como
prometera desde tempos remotos pela boca de seus santos profetas, salvação
que nos liberta dos nossos inimigos e da mão de todos os que nos odeiam; para
fazer misericórdia com nossos pais, lembrado de sua aliança sagrada, do
juramento que fez ao nosso pai Abraão, de nos conceder que – sem temor,
libertos da mão dos nossos inimigos- nós o sirvamos com santidade e justiça,
em sua presença, todos os nossos dias. Ora, tu também menino, serás chamado
profeta do Altíssimo; pois irás à frente do Senhor, para preparar-lhe os
caminhos, para transmitir ao seu povo o conhecimento da salvação, pela
remissão dos pecados. Graças ao misericordioso coração do nosso Deus, pelo
qual nos visita o Astro das alturas, para iluminar os que jazem nas trevas e na
sombra da morte, para guiar nossos passos no caminho da Paz.” (Lc. 1, 67-
79)18
Ainda encontraremos o sentido de eleos de Deus
“como vontade de salvar, fazendo eco ao uso veterotestamentário de
hesed. Juntamente com seu amor, é eleos que move Deus a dar a vida
em Jesus Cristo. (Ef 2,4; 1Pd 1,3). É o eleos de Deus, não os méritos
do homem, que constitui o motivo de sua vontade de salvação (Tt 3,5).
Em Rm 9,22ss, eleos e ira são contrapostos como motivos das relações
de Deus com os homens: a passagem é difícil, mas eleos é claramente
aí a vontade de salvação que já vimos.”19
Compreendemos assim que quando encontramos eleos no Novo Testamento o
poderemos entender sempre como uma vontade salvífica da parte de Deus, que está anterior e
muito acima de qualquer ato do homem. Ele inicia e leva a seu termo, o processo de salvação
em Cristo. Encontraremos o termo especialmente na disposição de perdoar e fazer o bem ao
homem. “O eleos neotestamentário entre os homens é transformado pela concepção
17 BIBLIA DE JERUSÁLÉM, São Paulo: Paulus, 2004. p. 1788. 18 BIBLIA DE JERUSÁLÉM, São Paulo: Paulus, 2004. p. 1789. 19 DICIONÁRIO BÍBLICO. Org. JOHN MCKENZIE. p. 617.
19
neotestamentária em amor, desenvolvimento revolucionário do NT que coloca na base do eleos
uma motivação mais profunda do que aquela que encontramos no AT.”20
Até agora conhecemos a Deus como misericórdia. Vamos agora aprofundar esta
temática na perspectiva bíblica, fazendo uma ligação da misericórdia no Antigo Testamento
como aliança e no Novo testamento como salvação.
1.3 Perspectiva bíblica: O conceito de misericórdia no Antigo Testamento e nos
Evangelhos
1.3.1 A misericórdia como “aliança” no Antigo Testamento
No Antigo Testamento, como já citado acima, observamos certa diversidade de termos
traduzidos como misericórdia, não reduzindo a uma única expressão algo que possa ter a
abrangência do significado teológico de misericórdia. Desta forma é possível perceber que a
linguagem semita traz diversas acepções em torno do termo “misericórdia”, as quais não são
facilmente delineáveis na língua latina.
Em suma, como já verificado, a misericórdia veterotestamentária engloba uma série de
elementos que podem ser assim especificados: Deus é misericordioso, então realiza
gratuitamente sua “kenosis21” vindo ao encontro do homem que suplica a sua misericórdia
(hãnam). Sendo Criador, traz dentro de suas entranhas um sentimento gerador de vida
(rahamim) e também Redentor que permanece, graças ao amor, fiel na Aliança estabelecida
com o homem (hesed).
Podemos observar germes da misericórdia nas narrativas iniciais da Sagrada Escritura,
como referência o Pentateuco, onde não há termos específicos do tema aplicados como os acima
citados, mas onde é perceptível uma ação divina caracterizada pelos aspectos da gratuidade,
benevolência e bondade.
Vemos a total benevolência de Deus que vê na sua obra criada algo bom, destacando
como muito bom o cume desta criação, o homem, criado a sua imagem e semelhança (cf. Gn
1,1-2, 4a), criação esta que mesmo depois da queda no pecado original (cf. Gn 3,1ss), após o
20 Ibidem, p. 618. 21 Kénosis: Conceito Cristológico que tem sua raiz e bases bíblicas em Fl 2,7: de Jesus Cristo se diz ali “despojou-
se (heautón ekénosen)”, tomando a condição de vida humana das outras pessoas, fazendo-se obediente ao Pai até
a morte de cruz. Significa por isso o “despojamento” de si operado pelo Filho de Deus no seu inserir-se na história
dos homens até fazer a experiência da morte de cruz. In. MANCUSO, V.; PACOMIO, L. (Orgs.). LEXICON –
DICIONÁRIO TEOLÓGICO ENCICLOPÉDICO. Tradução: João Paixão Neto e Alda da Anunciação Machado.
São Paulo: Loyola, 2003. pp. 427-428.
20
fratricídio (cf. Gn 4,1-16), ou mesmo após o dilúvio (Gn 9,1) Deus continua a se preocupar com
a vida do homem, manifestando a sua bondade, que também podemos compreender claramente
como misericórdia, pois mesmo em meio ao pecado o homem assume as consequências de seus
atos, mas sua vida é preservada.
Outro sinal da benevolência de Deus encontramos no chamado de Abraão (Gn 12,1-3),
uma aliança firmada com um homem que, por sua fidelidade ao Senhor, recebe a promessa de
uma descendência maior que as estrelas do céu (cf. Gn 15,5). Esta bênção divina, através de um
homem – símbolo de seu povo – prefigura a grande revelação do Êxodo dada agora a Moisés
com um movimento “kenótico” de Deus, a misericórdia que vem em favor da miséria do seu
povo: “Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está no Egito. Ouvi seu grito por causa de seus
opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de libertá-lo da mão dos
egípcios, e fazê-lo subir desta terra para uma terra boa e vasta, terra que mana leite e mel...”
(Ex 3, 7 – 8). E que em favor da aliança estabelecida, mediante a sua fidelidade, Deus vem em
socorro do seu povo: “Eu vi o gemido dos israelitas, aos quais os egípcios escravizavam, e me
lembrei da minha aliança.” (Ex 6, 5)22.
Este processo de libertação do povo é a manifestação da bondade de Deus, de sua
misericórdia da forma mais prática e efetiva, do Deus que se mantém fiel a sua aliança. E, tal
fidelidade, permanece mesmo quando o povo rompe novamente com Deus no episódio do
bezerro de ouro e a quebra das tábuas da Lei (cf. Ex 32,1-20). O povo rompe a sua aliança com
Deus, mas em resposta, mesmo diante das ameaças de correção, pela intercessão de Moisés, a
bondade e misericórdia de Deus é oferecida. (cf. Ex 33,19b).
Isto pode ser percebido de forma ainda mais significativa, e ainda dentro do Pentateuco,
quando no livro do Deuteronômio são dadas as recomendações para que não se voltem à
idolatria (cf. Dt 6,14ss). Deus ratifica a consagração do povo (cf. Dt 7,16), mas especialmente
um amor declarado de predileção, não por ser um povo numeroso, mas por serem o menor
dentre todos os povos (cf. Dt 7,7-9). E, por fim, renova a aliança recomendando a observância
das leis e preceitos dados pelo Senhor:
“Se ouvirdes estes preceitos e os praticardes fielmente, o Senhor teu Deus,
guardará a aliança de misericórdia que jurou a teus pais, amando-te,
abençoando-te, e multiplicando-te: abençoará o fruto do teu ventre e ofruto
do teu solo, teu trigo, teu vinho, teu óleo, as crias de tuas vacas e de tuas
ovelhas que jurou a teus pais dar-te. (Dt 7, 12-13).
22 AMENTA, P. Misericordioso e justo: o verdadeiro rosto de Deus Pai: viver a caridade pastoral. Tradução
D. Hugo C. da S. Cavalcante, Pe. Dr. Valdir M dos Santos Filhos. 1. ed., São Paulo: Edições Fons Sapientiae,
2017. Daqui em diante citado como “AMENTA, Piero. Misericordioso e Justo.” e paginação correspondente.
21
Em síntese, vemos no Pentateuco que Deus é misericordioso através da aliança, mesmo
que seu povo a rompa por diversas vezes, Deus continua como misericórdia. Seguidamente,
ainda que de forma breve, sem investir na tentativa de investigar mais profundamente, mas para
não deixar de citar outros pontos no Antigo Testamento, podemos verificar por toda literatura
histórica, sapiencial e profética, menções e intenções da aplicação do sentido de misericórdia
encontradas na escritura e enriquecendo ainda mais nossa reflexão.
No seguimento do Pentateuco são diversos os sinais da misericórdia como aliança e não
somente como uma revelação da essência de Deus. Esta aliança é reconhecida junto àqueles
que caminham diante dele, como por exemplo: “Iahweh, Deus de Israel! Não existe nenhum
Deus semelhante a ti lá em cima nos céus, nem cá embaixo sobre a terra; a ti, que és fiel à
Aliança e conservar benevolência para com teus servos, quando caminham de todo coração
diante de ti." (1Rs 8,23)23, mas que também convida o homem à conversão como vimos no
convite do profeta Oséias, que é o profeta do retorno a Deus “(...) levando-a para o deserto e
falando-lhe ao coração” (Os 2,16). “Igualmente no profeta Ezequiel: ‘Dize-lhes: Juro por
minha vida – oráculo do Senhor Deus – não tenho prazer na morte do ímpio, mas antes que ele
mude de conduta e viva!’ (Ez 33,11)”24 e no livro do Eclesiástico quando diferencia a
misericórdia exercida pelo homem da misericórdia de Deus (cf. Eclo 18,12). Esses conceitos
podem ser notados no salmo 103
“Iahweh é compaixão e piedade, lento para a cólera e cheio de amor; ele não
vai disputar perpetuamente, e seu rancor não dura para sempre. Nunca nos
trata conforme nossos pecados, nem nos devolve segundo nossas faltas. Como
um pai é compassivo com seus filhos, Iahweh é compassivo com aqueles que
o temem; porque ele conhece nossa estrutura, ele se lembra do pó que somos
nós. (Sl 103 (102),8-10.13-14)25.
Desta forma, a teologia veterotestamentária aponta a misericórdia como um amor
incondicional da parte de Deus para com o seu povo. Este amor, manifestado ao longo de toda
história do povo de Israel, passa pela criação e pela libertação da escravidão do povo no Egito.
Sempre reafirmada diante de toda inconstância do povo, na fidelidade, na bondade e na firmeza
do Deus que não volta atrás: “Porquanto vós sois, Senhor, clemente e bom, cheio de
misericórdia para quantos vos invocam. (Sl 86 (85),5)26.
23 BIBLIA DE JERUSÁLÉM, São Paulo: Paulus, 2004. p.480 24 Cf. AMENTA, Piero. Misericordioso e Justo. p. 26. 25 Ibidem, pp. 970-971. 26 BÍBLIA AVE MARIA EDIÇÃO ESTUDO. SÃO PAULO. p. 870.
22
1.3.2 A misericórdia como “salvação” nos evangelhos
A teologia bíblica da misericórdia no Novo Testamento é, de certa forma, uma
continuidade da linha veterotestamentária de um Deus que permanece fiel à Aliança e perdoa o
pecado, porém a grande novidade é a regeneração da humanidade através da Nova Aliança, já
anunciada pelos profetas, na pessoa de Jesus Cristo e a misericórdia humana como reflexo
daquela divina.27
Mas não podemos negligenciar que, apesar de no Antigo Testamento contemplarmos
esta misericórdia da parte de Deus mantendo-se fiel à sua Aliança; no Novo Testamento damos
um passo à frente, pois o convite vai além de contemplar a misericórdia divina, sendo algo a
ser imitado: “Sede misericordiosos como é misericordioso o vosso Pai” (Lc 6,36). Não obstante
o pecado, todo homem é dotado de uma centelha divina, que pode e deve exprimir uma atitude
de condescendência que imita, embora timidamente, aquilo que de Si Deus revelou.
Sendo homem tocado pelo pecado, incapaz de amar, só poderá imitar a perfeição divina
se permitir ser curado de seu coração endurecido. Aqui podemos nos remeter ao profeta
Ezequiel que diz: “Derramarei sobre vós água pura e sereis purificados... Eu vos darei um
coração novo e porei em vós um espírito novo...” (Ez 36,25-26). Infundindo no homem o seu
Espírito, Deus Pai redime o homem e o torna capaz de amar, capaz de afastar o egoísmo e nutrir
sentimentos de misericórdia.28 Este mecanismo se fundamenta através do sacramento da
reconciliação fazendo o homem perdoado viver uma regeneração em sua vida.
A ideia de salvação, ligada ao termo acima, já explanado o vocábulo eleos, nos conduz
a uma leitura dos gestos de Jesus como gestos de misericórdia em ação prática e que devem ser
reproduzidos por todos os que querem assumir o seu discipulado.
No evangelho de São Mateus, temos por duas vezes a citação do profeta Oséias (cf. Os
6,6), na qual é expressado o desejo divino da misericórdia ao invés de sacrifício (cf. Mt 9,13;
12,7) uma delas em discussão com os fariseus, primeiramente durante a refeição na casa de
Mateus e a outra depois das espigas arrancadas em dia de sábado. Toda polêmica se dá em torno
do termo “sacrifício”, Jesus propõe de se oferecer como eleos (misericórdia) aos pecadores e
aos discípulos, ao invés de oferecer um sacrifício a Deus. Assim sendo, a misericórdia é vista
como tolerância e liberalidade, ou seja, como uma percepção de que o outro necessita de algo
27 Segundo ESSER, os três conceitos semitas em torno da Misericórdia têm como base a questão jurídica da
Aliança e o sentimento humano de compaixão; a terminologia grega expressa na tradução da LXX e no Novo
Testamento, por outro lado, se baseia, predominantemente, na questão psicológica e individual. (cf. ESSER, H.-
H. Misericordia. In: COENEN, L.; BROWN, C. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São
Paulo: Vida Nova, 2000, p. 1295). 28 Cf. AMENTA, Piero. Misericordioso e Justo. p. 28.
23
que está ao alcance daquele que é misericordioso.29 Tal necessidade é apresentada, na visão do
primeiro evangelho, como um preceito de lei, algo indispensável, mas que é negligenciado pelos
fariseus.30 Isso é claramente ilustrado na citação: “Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas,
que pagais o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas omitis as coisas mais importantes
da lei: a justiça, a misericórdia e fidelidade.” (Mt 23,23)
Vemos que a misericórdia se apresenta como um projeto de salvação, uma necessidade
fundamental do indivíduo. Algo presente na lei, que vai além dos rigorismos e legalismos
próprios dos escribas e fariseus, pois a atuação da misericórdia confirma o exercício da justiça.
Cristo considera a dignidade da pessoa e a trata com respeito, observando a situação concreta
que ela se encontra e o que pode receber de Deus, para aí sim, oferecer um sacrifício. Deste
modo, Mateus manifesta o desejo da aproximação entre Deus e o homem, entre a misericórdia
divina e a miséria humana.
O evangelho de São Lucas, desde a antiguidade, conhecido como o “Evangelho da
misericórdia”, traz um valor muito pontual da história da salvação através do Antigo
Testamento que se atualiza na obra de misericórdia na vinda do Messias presente no Magnificat.
Traz também uma aproximação interessante sobre a preocupação com o outro, onde Jesus
mostra o Seu amor e predileção pelos pobres e pecadores; neste caso podemos lembrar da
parábola do bom samaritano (cf. Lc 10,29-37), onde a misericórdia é um elemento fundamental
na interpretação desta parábola. Jesus através desta parábola leva o ouvinte a tomar a mesma
atitude daquele que teve misericórdia ao sofredor, chamado como “o próximo”. Por isso é
preciso ser misericordioso como o samaritano, pois o Pai é misericordioso com todos os seus
filhos (cf. Lc 6,36).
Passando um olhar geral sobre o terceiro evangelho perceberemos o quão perturbadora
e revolucionária foi a postura de Jesus, contrastante ao rigorismo da lei judaica, em um tempo
em que se fazia necessário manter distância de toda impureza e contaminações, pois as doenças
eram tidas como maldição. Esta postura é veementemente contrária a atitude que Jesus assume,
pois ele veio para os doentes (cf. Lc 5,31).
Os “mestres” do tempo de Jesus não tocavam em mortos, Jesus movido por compaixão
toca a esquife e faz ressuscitar aquele filho da viúva de Naim (cf. Lc 7,11-17). Eles não falavam,
não andavam e muito menos ainda se colocavam à mesa com pecadores, mas Jesus ao sentar-
se com eles os convidava ao arrependimento (cf. Lc 5,29-32). Tampouco aproximavam-se de
leprosos ou endemoninhados, já Jesus cura um endemoninhado mostrando sua autoridade (cf.
29 DICIONÁRIO BÍBLICO. Org. JOHN MCKENZIE. p. 617. 30 FABRIS, R. MATTEO. 2. ed. Roma: Borla, 1996. pp. 226-228.
24
Lc 4,31-37) e um leproso que tem a coragem de lançar-se aos seus pés (cf. Lc 5,12-16). No
encontro com outros dez leprosos cura a todos, embora só um retorne para agradecer, sinal de
um amor que salva e não espera retribuição (cf. Lc 17,11-19). Aqueles que se designavam
“mestres da lei” não falavam com mulheres, porém diversas mulheres o acompanhavam Jesus
e o “serviam com seus bens” (cf. Lc 8,1-3). No encontro com uma pecadora pública, Jesus se
deixa tocar por ela (cf. Lc 7,36-49). Na observância do repouso sabático e de todos preceitos
da lei, seguido pelos Fariseus, Jesus mostra que n´Ele se resume toda a lei, pois “O Filho do
Homem é o senhor do sábado!” (Lc 6,5).
Apesar do termo eleos não aparecer nas conhecidas “parábolas da misericórdia”: a
ovelha perdida (cf. Lc 15,4-7), a dracma perdida (cf. Lc 15,8-10) e o pai com os dois filhos (cf.
Lc 15, 11.32), a conotação de todas estas parábolas expressam claramente características de
misericórdia. A atitude compassiva do pastor que deixa as noventa e nove em busca da ovelha
perdida, a alegria do retorno do pecador que se arrepende e da atitude do pai, que movido por
compaixão, vai em direção ao filho perdido e agora encontrado.
O Evangelho de São Marcos ressalta um aspecto muito forte da misericórdia ao designá-
la como “sentir compaixão”. Jesus detecta uma dificuldade humana e, movido pelo sentimento
de compaixão, realiza algo para aqueles que encontra: cura um leproso (cf. Mc 1,41), ensina a
multidão (cf. Mc 6,34) e multiplica os pães (cf. Mc 8,2), episódios muito presentes na tradição
sinótica. O sentimento de compaixão de Jesus é uma característica divina, uma atitude benévola
do pastor que se preocupa com suas ovelhas (cf. Nm 27,17).31
O segundo evangelho apresenta Jesus movido do sentimento de compaixão, mas ao
mesmo tempo um mover-se de forma concreta em socorro do outro. Não como sentimento
passivo, um sentimentalismo indiferente, mas como atitude concreta e que exige colocar-se na
situação do outro e sofrer com ele. Há um caminho, um ciclo completo de misericórdia já
evidenciado também nos outros evangelistas: perceber a necessidade do outro, colocar-se no
seu lugar e aproximar-se, para assim, finalmente, realizar algo que possa transformar a sua vida.
Na tradição joanina (Evangelho, Cartas e Apocalipse) não encontramos um amplo
desenvolvimento de uma reflexão bíblica teológica em torno da misericórdia. A única menção
ocorre na saudação inicial da Segunda Carta de João, na qual o autor deseja graça, misericórdia
e paz à senhora eleita (cf. 2Jo 3). Apesar de não termos a menção do vocábulo misericórdia nos
escritos do Evangelho, a tradição joanina apresentas vários relatos que expõem no modo de ser
e agir de Jesus a misericórdia do Pai.
31 GNILKA, J. Marco. 2. ed. Assisi: Cittadella, 2007, p. 355.
25
Tendo concluído esta análise de perspectiva bíblica no Antigo Testamento e nos
Evangelhos, vimos até agora todo o mover de Deus, que desde o antigo testamento faz Aliança
com o seu povo, permanece fiel, demonstra a sua bondade e insiste em ser misericordioso.
Chegamos até Jesus, que é máxima expressão desta misericórdia, o Deus que se rebaixa
(kenosis) e que em sua infinita misericórdia vem ao encontro do homem. Sua presença na
história, nas narrativas do Êxodo onde liberta seu povo da escravidão, culmina com sua
Encarnação, onde Ele mesmo se faz homem, para que a Sua misericórdia pudesse ser “tocada”
por todos.
Mas mesmo assim, ainda hoje o homem ignora a misericórdia e se volta contra Deus.
Sendo o homem criado a imagem e semelhança de Deus, por que ainda sua imagem é
deformada? Por que mesmo tendo experimentado esta misericórdia oferecida gratuitamente à
humanidade, continua se afastando de Deus?
O homem mesmo sendo capaz de Deus, por seu livre arbítrio da vontade, pela natureza
inclinada ao pecado pela culpa original, experimenta a sua miséria. Agora se faz mister
adentrarmos na compreensão a respeito do pecado que afasta o homem de Deus, impedindo-o
de perceber na sua própria miséria a presença e o convite à misericórdia divina: “Cada homem
tem o seu pecado para confiar, a sua solidão para doar, a sua dor para partilhar, a sua sede
para saciar. Cada homem tem uma ferida para ser curada, uma vergonha para ser abraçada,
uma dignidade para ser resgatada, uma miséria que invoca a misericórdia.32
32 HENRIQUE. Pe. João. No oceano da misericórdia infinita. São Paulo: Palavra e Prece. 2004. p. 17.
26
CAPÍTULO II: A MISÉRIA DO HOMEM
2.1 Introdução
Deus nunca abandonou o homem. Ele foi Aquele que deu o primeiro passo quando a
humanidade não mais poderia se aproximar d’Ele em consequência da queda. Portanto, Deus
revelou-se, deu-se a conhecer (cf. Ex 2 25) e ao longo dos séculos através da aliança com os
patriarcas e por intermédio da Torah, dos Reis, dos Profetas, sempre existiu a tentativa constante
da parte de Deus em “religar” novamente a humanidade a seu amor. Um esforço que não
encontrou no homem um entendimento do desígnio divino em resgatar a criatura feita a sua
imagem e semelhança, porém deformada pelo pecado.
Na fidelidade à sua Aliança, Deus manteve-se fiel ao plano de salvação realizado
plenamente no seu Filho Jesus Cristo. Mesmo tendo o homem interrompido seu relacionamento
com o seu Criador, através da Encarnação do Verbo, sua paixão e morte de cruz, No Filho,
Deus restitui a imagem que fora deformada de sua criatura, restabelecendo a comunhão entre
criatura e Criador. Por isso, o homem é “capaz de conhecer e amar seu Criador” (CIC33 §356),
pois ele é “a única criatura sobre a terra a ser querida por Deus por si mesma” (GS34 24) e
que compartilha pelo conhecimento e pelo amor, a vida de Deus.
Diante da iniciativa de Deus de misericordiosamente continuar buscando o homem,
expressada na nova e eterna aliança, realizada na sublime iniciativa de amor de Deus enviando
o seu Filho único ao mundo para resgatar o homem do pecado, ainda assim, o ser humano em
sua liberdade, escolhe estar separado de Deus, opta pelo pecado, definido por Santo Agostinho
como: “Aversio a Deo, et conversio ad creaturam”, aversão a Deus e conversão às Criaturas,35
voltando o olhar para o que foi criado ao invés de manter os olhos fixos em seu Criador.
Iremos agora buscar, cientes do limite da razão humana na compreensão de si próprio
apontar algumas impressões possíveis de serem tocadas a respeito da miséria do homem,
fazendo o ser humano viver no grande dilema paulino que se encaixa perfeitamente neste
momento: “Com efeito, não faço o bem que quero, mas pratico o mal que não quero.” (Rm
7,19)36.
33 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9ª ed. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Ave-Maria Loyola, Paulinas,
Paulus, Salesiana, 2002. Citado como CIC. 34 JOÃO PAULO II, Papa. Constituição Pastoral Gaudium et Spes (Sobre a misericórdia divina). Disponível
em: http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-
ii_const_19651207_gaudium-et-spes_po.html. Acesso em: 20 de nov. 2018. Citada como GS. 35 AGOSTINHO, Santo. O livre arbítrio. Paulus. São Paulo: 1995. Intr. n. 7 36 BIBLIA DE JERUSÁLÉM, Ed. PAULUS. SÃO PAULO: 2004. 1978 p.
27
2.2 A queda: o pecado como plano interrompido
Vemos no livro de Gênesis as duas narrativas da criação. Primeiramente em Gn 1,26-
27 lemos: “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que
eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e
todos os répteis que rastejam sobre a terra.’ Deus criou o homem à sua imagem, a imagem de
Deus ele o criou, homem e mulher ele os criou.” Na perspectiva sacerdotal, o homem criado
exerce seu poder sobre tudo o que foi criado: peixes, aves, animais domésticos e selvagens. E
por este poder participa da Glória do seu Criador.
Já na segunda narrativa, a ótica javista, (Gn 2, 7) nos apresenta: “Então Iahweh Deus
modelou o homem com a argila do solo e insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem
se tornou um ser vivente.” Nesta tradição não vemos explícito o tema da imagem, mas indica
que a imagem de Deus é a vida, como expressa o termo hebraico nefesh, “vivente”. Segundo o
exegeta G. Von Rad (1972, p.152)37, o javismo considera como imagem de Deus o poder divino,
garantia e afirmação da soberania celeste. Neste sentido, o homem, imagem de Deus, é
representante do poder de Deus, colocado acima das criaturas, mas sem deixar de ter seu limite
imposto por sua condição humana.
“O motivo do homem, imagem de Deus, não implica em explicação alguma
direta da natureza desta semelhança divina; seu centro de gravidade se acha
antes na definição do fim para o qual ela foi comunicada ao homem. A
dificuldade para nós está no fato de que o texto considera a simples declaração
desta semelhança com Deus como suficiente e explícita. Podemos dizer a tal
respeito duas coisas: as palavras tzélém, “imagem, estátua, objeto esculpido”
e demût, “semelhança, equivalência” – sendo que a segunda interpreta a
primeira, salientando a noção de correspondência e de semelhança – referem-
se ao homem todo, não exclusivamente à sua natureza espiritual, mas também,
e principalmente, à glória de seu aspecto corporal, ao hâdâr (“ornamento”,
“superioridade”, “majestade”) e ao kâvôd com que Deus o decorou (Sl 8,6).
Ez 28,12 fala ainda mais claramente da “beleza perfeita” do primeiro homem.
Como imagem de Deus, o homem está colocado bem acima de todas as
criaturas, mas a sua própria dignidade de pessoa lhe impõe também um limite
superior.”38
Por isso, enquanto representante e custódio da criação, o papel do homem não deve ser
entendido como de um dominador que se apossa de algo que não é seu. Ao contrário, ao criar
o homem do pó da terra, o supremo Criador o coloca como seu administrador responsável de
37 RAD, G. VON, Teologia do Antigo Testamento 1; tradução Francisco Catão; 1ª ed; São Paulo: ASTE, 1973.
p.152 38 Ibidem, p.152.
28
sua casa comum39. Uma interpretação equivocada de Gn 1, nos leva a um antropocentrismo,
que não coloca Deus no centro, mas o homem. Este é o princípio do pecado original, isto é,
colocar-se no meio do jardim e procurar com suas próprias forças roubar a eternidade
representada pela árvore da vida.
É possível verificar na Sagrada Tradição, em especial na teologia Patrística, muitas
interpretações que marcam a compreensão e a explanação sobre este ser “imagem e
semelhança”, assim como sua diferenciação e compreensão de cada um dos termos.
Considerando que o principal objeto e direcionamento do nosso olhar firma-se diante da
reflexão proposta, cabe mais verificarmos o quanto este ato de criação do homem demonstra
todo o amor divino por sua criatura e que por sua liberdade se perde no reconhecimento de
quem é e de para que foi criado. De qualquer forma cabe aqui um pequeno ensaio de alguns
doutores e padres da Igreja que nos auxiliam na linha de compreensão que estamos buscando.
Um dos primeiros exegetas cristãos, Irineu de Lion (135-203), ao interpretar esta
passagem observa que o adjetivo “vivente” identifica a imagem de Deus. Observa, em Adversus
Haeresis: “a glória de Deus é o homem vivente.40” Essa ideia nos faz interpretar que a
“imagem”, no mesmo sentido de “ser vivente”, indica o “poder divino” impresso na criatura
humana. O Documento de Aparecida (CELAM, 2007, n. 380)41, nesta esteira, proclama que
todo ser humano existe por amor de Deus que o criou e o mantém vivo, por isso sua criação à
imagem e semelhança é um acontecimento cuja fonte é o amor inesgotável do Senhor, autor e
dono da vida. Assim, como imagem vivente, o ser humano é sagrado, desde sua concepção até
a morte e pós-morte.
No texto de Tertuliano “De ressurrectione carnis 6,3-5” encontramos uma narrativa da
criação do ser humano pelas próprias mãos de Deus:
“Imagina Deus totalmente ocupado e interessado neste barro, com a mão, com
a inteligência, com a atividade, com o pensamento, com a sabedoria, com a
providência e, sobretudo, com o afeto que lhe orientava os delineamentos
(traços), que qualquer que fosse a forma na qual se desenhava aquele barro,
neste era pensado Cristo que se tornaria homem, isto é, barro, e era pensado o
Verbo que se tornaria carne, que então era terra. De fato, assim havia já falado
o Pai ao Filho: façamos o homem à imagem e semelhança de nós, e Deus fez
o homem – evidentemente aquele que havia desenhado à imagem de Cristo…
39 Cf. FRANCISCO, Papa, Laudato si (Louvado sejas. Sobre o Cuidado da Casa Comum). n. 116 40 OP. SOUZA, José Neivaldo. O destino do homem no plano de Deus: uma análise antropológica patrística
sobre a “imagem e semelhança”. In. Rev. Pistis Prax., Teol. Pastor., Curitiba, v. 1, n. 1, p. 119-145, jan./jun.
2009. Citando Adv. Haer. IV, 20, 7. A obra latina foi traduzida para o francês com o título: IRÉNÉE DE LYON
Contre Lês Hérésies, 3ª. ed. par ROUSSEAU, A. Paris: Lês Éditions Du Cerf, 1991. 41 DOCUMETO DE APARECIDA: Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano
e do Caribe, Edições CNBB, Paulinas, Paulus: 2007. n. 388.
29
Portanto, aquele barro já então punha sobre si a imagem de Cristo que estaria
na carne: não era somente obra de Deus, mas também penhor de Deus.”
Vemos desta forma o dom infinito de amor de Deus e sua bondade em seu ato criador
realizado por suas próprias mãos, tornando a criação um ato sagrado e divinizante. É exatamente
por este amor perfeito que Deus cria o homem: para viver com ele um relacionamento de
amizade. Mas o homem só poderá viver esta amizade caso tenha uma livre submissão a Deus e
é isso que se expressa no limitar o homem a não tocar na árvore do conhecimento do bem e do
mal. Vemos que:
“A árvore do conhecimento do bem e do mal (Gn 2.17) evoca simbolicamente
o limite intransponível que o homem, como criatura, deve livremente
reconhecer e respeitar com confiança. O homem depende do Criador, está
submetido às leis da criação e às normas morais que regem o uso da
liberdade.” (CIC § 396).
Ou seja, esta amizade pressupõe uma confiança plena do homem em relação a Deus.
Este plano é interrompido quando o “homem, tentado pelo Diabo, deixou morrer em seu
coração a confiança em seu Criador (cf. Gn 3,1-11)42. Ao abusar de sua liberdade, o homem
desobedece ao mandamento de Deus, rompe sua relação de confiança com o seu Criador e nisto
temos o que constituiu o primeiro pecado, entendido como pecado original. O antropocentrismo
distancia o homem de Deus, fazendo da sua própria vida e existência o centro de todas as coisas.
Isto determina a vida de todo ser vivente daí em diante que reconhece em todo o pecado um ato
de desobediência a Deus e uma falta de confiança em sua bondade (cf. CIC § 397).
2.3 A experiência da culpa
O que irá gerar em nós este plano interrompido, o rompimento desta amizade com Deus?
A sedução da serpente, que através de sugestões, “tentações”, convence a mulher, que come o
fruto e oferece também ao homem (cf. Gn 3,1-9), principalmente iludindo-os a respeito de um
conhecimento divino das coisas43. O pecado aqui também demonstra uma característica
importante, que ele nunca gera comunhão, mas gera consequências que não somente nos
atingem mas também àqueles que estão ao nosso redor. Isto vemos claramente diante da
narrativa do texto onde o processo de engano arquitetado de forma astuta pela serpente,
classificada como o mais astuto dos animais (cf. Gn 3,1a), engana a mulher gerando a
42 Cf. CIC § 397 43 KRAUSS, H. KUCHLER, M. As origens - Um estudo de Gênesis 1-11, p. 103.
30
desconfiança a respeito de Deus e, desta forma, encontram no “objeto proibido” uma fonte de
prazer e de poder: “A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que esta
árvore era desejável para adquirir discernimento.” (Gn 3,6a). Desta forma eles, alienados por
esta desconfiança, rompem sua amizade com o seu Criador e percebem-se nus (cf. Gn 3,7).
Separados de Deus, nasce neles o sentimento de culpa, como consequência direta de sua
desconfiança no Criador, diante da falta cometida, diante da escolha que fizeram, eles se
escondem, pois, diferente de seu estado natural em que conviviam com Deus normalmente, se
percebem separados (cf. Gn 3,8).
Sobre o pecado, temos no dicionário Mckenzie uma definição interessante:
“Do grego hamartia: o verbo significa ‘errar o alvo’. Isso não significa
meramente um erro intelectual de juízo, mas não conseguir atingir um
objetivo. Pode também, tecnicamente, ser identificado como um termo para
exprimir revolta. Errar o alvo pressupõe se precipitar em tomar alguma atitude
ou decisão sem pensar nas consequências que isso poderia causar e do mal que
poderia acontecer.” 44
Por isso, podemos compreender que, mais que um ato legalista ligado a uma
desobediência e sua punição, numa relação de causa e efeito, o ser humano se encontra na
situação de se ver separado daquele que o criou por amor, se escondendo embebido da vergonha
por desconfiar do seu Criador.
Como reflexo da consequência do pecado temos a culpa, que faz com que o homem se
afaste de Deus e, rompa a sua relação de amizade com o seu Criador; o Criador, com o qual até
então tinham uma relação de intimidade e com quem conviviam harmoniosamente no jardim.
“Uma das interpretações sobre o fato de Deus passear pelo jardim é que Ele quer trazer alívio
ao calor do pôr-do-sol que toca o homem, Ele deseja como Criador participar da vida do
homem, mesmo no erro”45.
A culpa do pecado torna-se um peso, é a consciência desta separação, pois pelo orgulho
o homem é incapaz de admitir a sua transgressão, mas tentando se defender coloca a culpa na
mulher, que por sua vez, coloca a culpa na serpente (cf. Gn 3,12-13). A cumplicidade do pecado
agora traz sobre eles o peso da acusação.
Ao retornarmos a pouco antes desta transferência de responsabilidade torna-se possível
verificarmos algo muito importante a ser ressaltado dentro da dimensão da misericórdia de Deus
que, mesmo diante da queda, não desiste e procura o homem: “Onde estás?” (Gn 3,9) e não o
faz para condená-lo, mas porque quer se relacionar com ele. Deus criou o homem para viver
44 DICIONÁRIO BÍBLICO. Org. JOHN MCKENZIE. pp. 705-706. 45 KRAUSS, H. KUCHLER, M. As origens – Um estudo de Gênesis, 1-11, p. 109.
31
em relacionamento com Ele, o seu Criador, mas o homem ferido pelo pecado, pela culpa, se
esconde de Deus.
Este grito ecoa por toda história da salvação, onde pela fidelidade à sua Aliança Deus
procura reconciliar o homem consigo. Passando por toda história do povo de Israel da antiga
aliança, desde Abraão, Moisés, Josué, Davi, Salomão, os reis e os profetas, o eco da voz de
Deus ressoa à procura do homem: “Onde estás?” (Gn 3,9).
Este eco vai encontrar resposta na Revelação realizada em Cristo Jesus, que na sua
“kenosis” experimenta a condição humana. Em um dos momentos mais altos das narrativas da
Paixão, quando levado a Pôncio Pilatos para ser julgado e condenado, exprime a condição
humana personificada em sua própria carne ferida, agora não somente pelos açoites dos flagelos
de tortura, mas identificada como espelho do homem ferido pelo pecado46. Enquanto se ouve o
grito de Deus no jardim do paraíso47: “Onde estás?” (Gn 3,9), ouve-se a voz de Pilatos
demonstrando o que o homem se torna quando se separa de Deus: Ecce Homo! “Eis o homem!”
(Jo 10,5).
Quando Pilatos pronuncia esta frase ele, sem o saber, responde a pergunta de Deus no
jardim do paraíso que ficara sem resposta. Agora em Jesus, homem de dores narrado no cântico
do servo sofredor como alguém
“... que não tinha beleza nem esplendor que pudesse atrair o nosso
olhar, nem formosura capaz de nos deleitar. Era desprezado e
abandonado pelos homens, homem sujeito a dor, familiarizado com o
sofrimento, como pessoa de quem todos escondem o rosto;
desprezado, não fazíamos caso dele” (Is 53, 2b-3).
Eis a melhor imagem para identificarmos o homem após o pecado. Para isso, Ratzinger
(2001, p. 182) vai descrever:
“Ecce homo”: espontaneamente essa expressão adquire uma profundidade
que ultrapasse aquele momento. Em Jesus, aparece o ser humano como tal.
N´Ele se manifesta a miséria de todos os prejudicados e arruinados. Na sua
miséria, reflete-se a desumanidade do poder humano, que desse modo esmaga
o impotente. N´Ele se reflete aquilo que chamamos “pecado”: aquilo em que
se torna o homem quando vira as costas a Deus e, automaticamente, toma em
sua mão o governo do mundo.”48
46 RATZINGER, J. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a ressurreição. São Paulo: Editora Planeta
do Brasil. 2011. p. 182. 47O significado religioso do termo como nome próprio, paraíso, remonta ao uso de paradeisos na LXX para
traduzir o termo hebraico gan, jardim, relativamente ao jardim do Éden em Gn 2,3, que exigia um nome especial
embora paradeisos seja empregado outras vezes na LXX sem conotação especial. A concepção do final da história
como retorno aos inicios foi um desenvolvimento normal da concepção messiânica e escatológica bíblica e judaica
(MCKENZIE, In: Dicionário bíblico, PARAÍSO. p. 693). 48 RATZINGER, J. Jesus de Nazaré: da entrada em Jerusalém até a ressurreição. São Paulo: Editora Planeta
do Brasil. 2011. p. 182.
32
Diante da evocação de Pôncio Pilatos, Ecce Homo, verifica-se a pronta resposta
daqueles que acusavam o Cristo pedindo uma sentença de morte: “Quando o viram, os sumos
sacerdotes e seus guardas começaram a gritar: ‘Crucifica-o! Crucifica-o’” (Jo 19,6). É a
humanidade, que diante como de um espelho, vendo a sua própria condição expressa no Cristo
flagelado e ferido, percebe sua própria condição diante do pecado. Uma imagem que se torna
insuportável de olhar, mais que isso, a personificação do pecado expressa naquele que se fez
pecado para reaproximar o ser humano de seu Criador, Ele que será o sacrifício por toda
humanidade. Todos desejam então sua morte e gritam por sua condenação, na ânsia de não
terem mais que contemplar a sua própria imagem no Cristo sofredor. Uma vez que o homem
enfermo não pode curar a si próprio, na plenitude dos tempos Deus mandou a Si mesmo na
pessoa do seu Filho para curar a ferida aberta pelo pecado, através da sua cruz49.
Desta forma, se torna possível compreender quando Paulo faz a explanação sobre o
pecado e onde opõe diretamente a diferenciação daquele que, liberto do pecado, alcança a vida
eterna. Na linguagem paulina, a morte é o “salário” daquele que permanece no pecado: “Mas
agora, libertos do pecado e postos a serviço de Deus, tendes vosso fruto para a santificação e,
como desfecho, a vida eterna. Porque o salário do pecado é a morte, e a graça de Deus é a
vida eterna em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 6,22-23).
Explanando até este momento a respeito da queda do homem, entendemos que falar de
pecado é preciso, pois para se falar de misericórdia é necessário falar da miséria, do orgulho do
homem que “escolheu” a si mesmo contra Deus (CIC §398). Não há como cancelar e
desconsiderar o pecado e a miséria humana e continuar pensando na misericórdia. Não é
prejudicial refletirmos sobre o pecado, sobre o orgulho, sobre a miséria do homem. Para além
disso, importa-nos relembrar que entre diversos doutores e Padres da Igreja encontramos
alegações onde a visão sobre o pecado cometido, também tem uma dimensão dentro da
permissão de Deus para que o orgulho do homem seja curado.
Santo Isidoro50 e São Tomás de Aquino51 afirmam que para punir o orgulho Deus
permite, às vezes, quedas graves em pecados vergonhosos. Eles afirmam que a misericórdia
divina se serve deles para abalar e fazer cair em si a alma orgulhosa.
São João Crisóstomo faz uma reflexão muito interessante também nesta mesma esteira:
49 “... o pecado do primeiro homem foi curado pela correção de conduta do Primogênito e a prudência da serpente
foi vencida pela simplicidade da pomba: por tudo isso foram quebrados os vínculos que nos sujeitavam à morte.”
Cf. IRINEO DE LION, Adversus haereses, 5,19,1. 50 OP. A arte de aproveitar as próprias faltas. Joseph Tissot – 3ª Ed; tradução de Emércio da Gama – São Paulo:
Quadrante, 2003 – (Coleção Vértice; 31), p. 55. Citando De summo bono, livro I, cap. 38 51 Ibidem. Citando Catena aurea, in 2Cor; 2a.-2ae., q.162, a.6
33
“Deus permite às vezes que as fraquezas das almas nobres e generosas venham
a ser conhecidas. Iam-se insinuando nelas intenções de vaidade e, por meio
dessas outras faltas, quer o Senhor despojá-las da glória do mundo pela qual
enfrentam perigos de toda espécie; mostrando-lhes que essa glória é efêmera
como a flor dos campos, obriga-as a dedicar-se a Ele sem reservas e a
considera-lo como único fim de todas as suas ações”.52
E muitos Padres da Igreja seguem esta mesma linguagem. Santo Agostinho dirá
resolutamente: “Deus olha com mais boa vontade às más ações seguidas de humildade do que
as boas obras infectadas de orgulho”53. São Gregório de Nissa: ‘Um carro cheio de boas obras,
conduzido pelo orgulho, leva ao inferno; um carro cheio de pecados, conduzido pela
humildade, leva para o Paraíso’. São Gregório Magno: ‘Sucede às vezes que quem se vê
coberto de manchas aos olhos de Deus está, no entanto, ricamente adornado com as vestes de
uma profunda humildade’”54.
São Bernardo em sua magnífica apologia da virgindade e da humildade, irá explanar:
“O pecador que, para seguir os passos do Cordeiro, toma as sendas da
humildade, avança por um caminho mais seguro do que o homem que, na sua
virgindade, segue os caminhos do orgulho; porque a humildade daquele já de
limpá-lo das suas impurezas, ao passo que o orgulho deste só poderá manchar
a sua pureza”55.
O homem é sempre convidado a não se esquecer de que suas misérias, o orgulho e as
feridas impressas pelo pecado foram cobertos e justificados na cruz pelo sangue redentor do
Cordeiro sem mancha que, de uma vez por todas, pagou por todos nossos crimes. Neste sentido,
como não aplicar o “felix culpa”, ó culpa feliz, para cada uma de nossas quedas, que mesmo
sendo um afastar-se do Criador, ao mesmo tempo, é instrumento útil e necessário que evoca
sobre a humanidade a misericórdia d´Aquele que sempre é fiel? Então se torna possível entoar
o cântico do Precônio Pascal, onde com grande alegria a Igreja exulta durante a Vigília das
vigílias dizendo:
“Ó Deus, quão grande caridade vemos no vosso gesto fulgurar: não hesitais
em dar o próprio Filho para a culpa dos servos resgatar. Ó pecado de Adão
indispensável, pois o Cristo o dissolve em seu amor; ó culpa tão feliz que há
merecido a graça de um tão grande Redentor!”56
52 Ibidem. Citando Exortação I, Ad Stagyr, 9 53 Ibidem. Citando Homilia sobre o publicano e o fariseu. 54 Ibidem, p. 56 55 Ibidem. Citando Homilia I, super Missus, n. 8 56 CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. MISSAL ROMANO.
2. ed. 16ª reimpressão, Paulus. São Paulo: 2012. p. 275.
34
Onde havia a nossa culpa agora há perdão, pois onde abundou o pecado superabundou
a graça (cf. Rm 5,20) e onde reinava a morte, reina a Vida, pois quando estávamos mortos em
consequência de nossos pecados, deu-nos a vida juntamente com Cristo, pois foi pela graça que
fomos salvos (cf. Ef 2,5).
35
CAPÍTULO III: JESUS A MISERICÓRDIA ENCARNADA: O PERDÃO SOBRE A
CULPA E A VIDA SOBRE A MORTE
3.1 Introdução
Após termos observado a misericórdia como grande atributo de Deus, na característica
de fidelidade à sua Aliança e na dimensão salvífica expressada no Verbo Encarnado, em
contraponto à miséria humana, que limita o ser humano na compreensão no que tange a
amplitude deste amor infinito do Criador e mesmo tendo o homem experimentado a dor da
culpa na sua separação de Deus, pode experimentar através de sua própria miséria o que invoca
a misericórdia de Deus. Veremos agora como a encarnação do verbo, ato de amor gratuito do
Pai sob a humanidade e expressão máxima de sua misericórdia, nos aproxima com total
propriedade deste caminho de reconciliação oferecido através do perdão que cobre toda culpa
e da morte de cruz do Filho que traz novamente à humanidade a plenitude da vida.
O perdão sintetiza a vida de Cristo que entrega sua vida pela humanidade reconciliando
o mundo novamente com o Pai rompendo com a culpa e morte estabelecida pelo pecado diante
da separação do ser humano em relação a Deus. Uma expressão máxima de amor gratuito,
incondicional e não merecido, mas que não é possível ser renegado diante desta atribuição direta
do Verbo que é a própria misericórdia encarnada.
O perdão é o sinal mais visível do amor do Pai, que Jesus quis revelar em toda
a sua vida. Não há página do Evangelho que possa ser subtraída a este
imperativo do amor que chega até ao perdão. Até nos últimos momentos da
sua existência terrena, ao ser pregado na cruz, Jesus tem palavras de perdão:
«Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem» (Lc 23, 34). Nada que um
pecador arrependido coloque diante da misericórdia de Deus pode ficar sem o
abraço do seu perdão. É por este motivo que nenhum de nós pode pôr
condições à misericórdia; esta permanece sempre um ato de gratuidade do Pai
Celeste, um amor incondicional e não merecido. Por isso, não podemos correr
o risco de nos opor à plena liberdade do amor com que Deus entra na vida de
cada pessoa. A misericórdia é esta ação concreta do amor que, perdoando,
transforma e muda a vida. É assim que se manifesta o seu amor divino. Deus
é misericordioso (cf. Ex 34,6), a sua misericórdia é eterna (cf. Sl 136/135), de
geração em geração abraça cada pessoa que confia n´Ele e transforma-a,
dando-lhe a sua própria vida.57
57 FRANCISCO, Papa, Carta Apostólica Misericordia et misera, n. 2
36
3.2 O perdão sobre a culpa: Quem pode perdoar pecados a não ser Deus? (Lc 5,21)
Deus em sua infinita misericórdia, ao enviar o seu filho ao mundo, O mandou com um
único objetivo, que era o de reconciliar a si todas coisas, através da ação salvífica do Verbo
encarnado. Onde encontramos então a autoridade que os fariseus perguntam a respeito da ação
do Rabi de Nazaré? Esta pergunta perpassara todo o novo testamento e será motivo de grandes
debates seja nas comunidades cristas do primeiro século, seja em toda era patrística.
Deus quis reconciliar consigo o homem doente e ferido pela sua ação livre em não
responder à sua própria vocação de se tornar filho no Filho e se assemelhar a ele, imagem do
Deus vivo e, consequentemente, o protótipo do Homem (GS I,22). Retomando a ideia que foi
explanada anteriormente, agora aplicada a esta verificação sobre a propriedade de perdoar,
vemos que o homem, criado à Imagem do Criador, está orientado a Cristo, Filho unigênito, que
em sua encarnação reconciliou a natureza corrompida do homem à dimensão divina de Deus.
Portanto, é através do mistério da encarnação que o homem experimenta a misericórdia de
Deus, que reconcilia a si todas as coisas através do seu Filho58, que não somente perdoa os
pecados, mas assume sobre si as culpas e dores da humanidade (Is 5, 4-11).
Neste sentido os Padres da igreja ao contemplarem o mistério salvífico, sempre
chamaram a atenção a um aspecto muito importante, que é o de nunca separar o mistério da
vida de Cristo, isto é, o mistério pascal, a sua encarnação, morte, ressurreição e ascensão. Estas
são partes de um único mistério da ação salvífica do Deus Trindade. Ao assumir a natureza
humana, Deus em Cristo, aceita experimentar e viver na sua carne, toda a dimensão
antropológica que a natureza ferida pelo pecado se encontrava, afastada de Deus. Esta condição
humana está no fato de que ao pecar, o homem cria a primeira barreira, isto é, a não relação
com seu Criador, se tornando distante e incomunicável na sua relação com Aquele que o
chamou à existência. No primeiro capítulo de Genesis vemos como Deus, caminhando pelo
jardim, falava com Adão, apresentava toda a criação, lhe dava autoridade sobre ela oferecendo
como alimento (cf. Gn 1,28-31), mantinha uma relação de amizade e de intimidade.
Como também já vimos acima, é mister retomar a ideia da amizade rompida pela ferida
do pecado, que ao proporcionar o afastamento divino, proporcionou a não relação da parte do
ser humano em relação a Deus. Aquilo que podemos evidenciar nas sagradas escrituras é que,
desde o antigo testamento, mesmo com o afastamento do primeiro homem, Deus nunca
abandonará sua obra criada à sua imagem e semelhança. Será então no mistério da revelação
58 JOÃO PAULO II, Redemptor Hominis (Redentor dos Homens), II, 9.
37
que a Trindade Santa se manifestará, em um primeiro momento, à distância, exortando através
da sua Aliança feita com Abraão e com a sua descendência, a uma busca de relação de
intimidade e amizade com a humanidade (cf. Gn 15). Mas, em vista do rompimento causado
pelo homem em relação a esta aliança, Deus por primeiro doa a si mesmo, como garantia da
promessa, não mais esperando da parte dos filhos de Adão, feridos e impedidos pela cegueira
do pecado, em darem a resposta necessária para o cumprimento da mesma Aliança. Por isso, na
plenitude dos tempos Ele envia o seu Filho unigênito (cf. Jo 3,16) em Cristo, assumindo a
condição da natureza corrompida. Neste sentido afirma Irineu de Lion:
Ora, este é o Criador; pelo seu amor é nosso Pai; pelo seu poder é nosso
Senhor; pela sua sabedoria é aquele que nos criou e modelou; é precisamente
com ele que nos tornamos inimigos pela desobediência ao seu mandamento.
Eis, então, por que, nos últimos tempos, o Senhor nos restabeleceu na
amizade, pela sua encarnação, tornando-se mediador entre Deus e o homem,
propiciando-nos o Pai contra o qual pecáramos, reparando a nossa
desobediência com a sua obediência, dando-nos a graça da conversão e da
submissão ao nosso Criador59.
Portanto a salvação do homem está intrinsecamente ligada ao Ágape de Deus. Foi por
amor e não movido por outro sentimento que Deus doa a si mesmo em seu Filho, fazendo com
que a distância criada pelo pecado fosse destruída, não com poderes especiais, mas pela
simplicidade do Criador que assume a natureza corrompida do homem, resgatando-a. Por isso
a misericórdia de Deus manifestada em Cristo se torna a garantia e a prova do Amor
incondicional de Deus, evidenciando seu modo de amar. Sendo que o homem foi criado e
direcionado a Cristo em sua existência, o próprio protótipo e modelo do verdadeiro homem, o
Filho de Deus, vem em socorro da sua criatura e se torna um com ele.
Esta misericórdia é atributo particular a Deus reconhecido em Sagrada Escritura e que
João Paulo II chama de “Amor mais forte que a morte, se manifesta na sua plenitude em Cristo,
na sua revelação em quanto Filho de Deus que veio para buscar aquilo que estava perdido60”.
Esta manifestação da misericórdia de Deus encarnada se dá na sua totalidade no próprio evento
da encarnação do filho de Deus. Então quando tratamos do tema da misericórdia divina, não
podemos não olhar para Aquele que se fez misericórdia e se derramou a si mesmo sobre as
59 IRINEU DE LION, Contra as heresias, V,17.1, 60 Dives in Misericordia, VII, 13: A Igreja vive vida autêntica quando professa e proclama a Misericórdia, o mais
admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da Misericórdia do
Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora. Neste contexto, assumem grande significado a meditação
constante da Palavra de Deus e, sobretudo, a participação consciente e reflectida na Eucaristia e no sacramento da
Penitência ou Reconciliação. A Eucaristia aproxima-nos sempre do amor que é mais forte do que a morte.
38
feridas dos pecadores. Transformando-se em remédio e cura para as enfermidades da alma, Ele
devolveu a incorruptibilidade à carne corruptível do homem61.
Ainda neste sentido, o Concilio Vaticano II se pronunciou claramente evidenciando uma
aproximação mais antropológica do mistério revelado em Jesus Cristo que se deu a conhecer,
revelando si mesmo assumindo a natureza humana:
Aprouve a Deus na sua bondade e sabedoria, revelar-se a Si mesmo e dar a
conhecer o mistério da sua vontade (cfr. Ef. 1,9), segundo o qual os homens,
por meio de Cristo, Verbo encarnado, têm acesso ao Pai no Espírito Santo e
se tornam participantes da natureza divina (cfr. Ef. 2,18; 2 Ped. 1,4). Em
virtude desta revelação, Deus invisível (cfr. Col. 1,15; 1 Tim. 1,17), na riqueza
do seu amor fala aos homens como amigos (cfr. Ex. 33, 11; Jo. 15,1415) e
convive com eles (cfr. Bar. 3,38), para os convidar e admitir à comunhão com
Ele. (DV I,2).
Então ao assumir a natureza humana, nos é possível claramente contemplar a ação
misericordiosa de Deus revelada em seu Filho, de descer e buscar o homem que se encontrava
na condição de escravo. Por isso tão grande mistério é digno de uma atenção particular neste
estudo sobre a remissão dos pecados que se concretiza, com a ação daquele que se deu a si
mesmo, fazendo-se um com os filhos de Adão. Deus fez com que a condição humana fosse
recapitulada e redirecionada a uma nova dimensão existencial, que é aquela de participar em
Cristo da sua natureza divina.
Tendo relembrado todo este percurso da Revelação, o objetivo agora é voltar a nossa
atenção à ação do Verbo encarnado e à sua capacidade de perdoar pecados. Como dissemos
acima, os fariseus ficavam estupefatos pelo fato do “Rabino de Nazaré” atribuir a si o poder de
perdoar os pecadores.
Na cura do paralítico no Evangelho de Lucas (Lc 5, 17-26), podemos ver a atitude de
Cristo em contraposição aos fariseus. Aqueles homens que levavam o paralítico para ser curado,
descerem-no carregado em uma maca por cima do telhado. Cristo olhando atentamente a
situação, observando a fé daqueles homens, se mostra compassivo com a situação do enfermo.
Movido unicamente por amor, Cristo primeiramente lhe perdoa os pecados e diante da
contestação levantada pelos fariseus que questionam “Quem é este que diz blasfêmias? Não é
só Deus que pode perdoar pecados?” (Lc 5,21) Jesus o cura através de um ato sobrenatural,
para que todos saibam que o Filho de Deus tem o poder de perdoar pecados na terra (cf Lc
5,24).
61 SANTO ATANASIO, A Encarnação do Verbo, II, 2002.
39
Mas há uma outra questão por trás desta indagação dos fariseus que vai além da questão
sobre perdoar pecados: como se pode perdoar alguém se este não cometeu nenhum delito contra
ele? Em que medida isso escandalizava aos demais?
Primeiramente temos que levar em consideração a plena consciência que Cristo tinha de
si mesmo, isto é, de ser Filho de Deus e enviado pelo Pai para salvar o mundo (Jo 3,16). Ao ter
tal consciência, Cristo usa da atribuição divina de perdoar pecados. Em Jesus de Nazaré, o
homem ferido pelo pecado e paralisado pelas consequências da culpa se torna curado e livre
da paralisia que o tornava incapaz de caminhar em direção à salvação.
Vemos no texto de Lucas que, ao deparar-se com o Messias de Israel, aquele homem é
curado diante de toda a multidão, em vista da fé dos que o levaram. E o Cristo deixa muito claro
na comparação entre perdoar pecados e curar um paralítico o diferencial que lhe é próprio e
próprio de Deus, perdoar pecados. Então uma vez perdoados os pecados, o homem se torna
autônomo, capaz de ficar em pé diante de Deus e carregar a si mesmo. A este episódio do
evangelho Irineu comenta explicando a fonte da autoridade do Cristo de poder perdoar os
pecados dos homens:
O Verbo pode, pois, dizer corretamente ao homem: “São-te perdoados os teus
pecados: aquele contra quem pecáriamos no início, no fim concedia a remissão
dos pecados”. Mas se fosse um aquele de quem transgredimos o mandamento
e outro a dizer: “São-te perdoados os teus pecados”, este último nem seria bom
nem verídico nem justo. Como se pode dizer bom quem não te dá o que é seu?
Como se pode chamar justo quem se apropria do que é dos outros? Como se
poderia dizer que os pecados foram verdadeiramente perdoados, a não ser que
o perdão nos seja concedido pelo que foi ofendido, “pelas vísceras de
misericórdia do nosso Deus, em que nos visitou” pelo seu Filho... Por isso, ao
perdoar os pecados sarou um homem e ao mesmo tempo revelou claramente
quem ele era. Com efeito, se somente Deus pode perdoar os pecados e se o
Senhor os perdoava sarando um homem, está claro que ele era o Verbo de
Deus, feito Filho do homem, porque recebera do Pai o poder de perdoar os
pecados, como homem e como Deus como homem participou dos nossos
sofrimentos e como Deus perdoa as dívidas que tínhamos com Deus, nosso
criador.62
Diante de tudo isso, o que podemos notar em todo o evangelho é que, ao pregar e realizar
sinais, Cristo anunciava o reino de Deus (Basileia) e proclamava a reconciliação de Deus a
quem chamava de Pai, com os pecadores e com aqueles que estavam perdidos (cf. Lc 15) (para
os encontrar em suas condições existenciais e livra-los da perpétua solidão e abandono que se
encontravam, pela distância em relação ao seu criador). Portanto, naquilo que escandalizava os
62 IRINEU DE LION, Contra as heresias, V 17.1.
40
fariseus estava a prerrogativa que o filho de Maria atribuía a si de poder absolver os pecadores63
e é justamente nesta consciência de ser Filho de Deus que Ele traz a verdadeira mensagem do
Reino. Podemos então dizer que a novidade do Reino de Deus que o Cristo proclama está no
anúncio da reconciliação plena do homem com Deus, fazendo sair da condição de escravo a
filho, de criatura a herdeiro. Cristo, em sua encarnação e no mistério pascal, deixou a clara
mensagem que a partir daí o homem não estaria mais só (cf. Mt 28,20) e poderia sempre contar
com a sua misericórdia.
São Tomás de Aquino entende que a misericórdia é a expressão máxima das virtudes e
a classifica como aquela virtude que está acima de todas as outras pelo fato de que esta requer
que o sujeito tenha compaixão e sentimentos supremos que somente Deus pode ter e que o
homem pode seguir pelo exemplo de Cristo se compadecendo do seu próximo. Ao ter a
experiência com a misericórdia de Deus e sua caridade, o homem entenderá como deve
proceder diante das dores e das dificuldades alheias, compadecendo-se e se condoendo com o
sofrimento que se apresenta diante de si. Tomás de Aquino explica:
Ora, em si mesma, a misericórdia é máxima. Pois é lhe próprio repartir-se com
os outros; e o que é mais, remediar-lhes as necessidades. Ora, isto é peculiar
ao que é eminentemente superior. Por isso dizemos que ter misericórdia é
próprio de Deus, e por aí se lhe ela manifesta eminentemente. Mas, quanto ao
seu sujeito, a misericórdia não é a virtude máxima, salvo se esse sujeito for
supremo, sem ninguém acima de si, e todos, abaixo. Pois, quem tem superior
é lhe melhor estar unido com ele do que remediar às necessidades do inferior.
Por onde, para o homem, que tem Deus como superior, a caridade, pela qual
se une com ele, tem prioridade sobre a misericórdia, que remedia as
necessidades do próximo. Mas dentre todas as virtudes concernentes ao
próximo, a mais principal é a misericórdia64
Neste sentido podemos então entender que, para Tomás de Aquino, a virtude da
misericórdia pertence exclusivamente a Deus por ser o sumo bem e o mesmo Deus para vir em
socorro das nossas fraquezas e das nossas necessidades tocando todas as dimensões humanas
pondo fim ao pecado: revelando a total doação e o verdadeiro significado de sacrifício de si
como dom gratuito e total de si pelo outro. Por outro lado, ao doar seu Filho ao mundo como
expressão última da sua misericórdia, Deus assume a criatura humana doando a ela sua
misericórdia como remédio diante de toda a pena e defeito e por isso, nesta miséria e pecado,
63 Cfr. G.L. MULLER, Dogmatica Católica, Teoria e Pratica da Teologia, p. 209. 64 Cfr.TOMAS DE AQUINO, Summa Teologica, II-II, q. 30, a,.4,3.
41
Deus realiza em um grau único, dando tudo aquilo que tem de mais precioso para si, derramando
o remédio da cura para as culpas e enfermidades do homem, isto é, o seu Filho65.
Então a misericórdia se torna visível na encarnação do verbo, onde o Filho amado vem
em socorro das misérias humanas, se compadecendo com o sofrimento alheio e assumindo para
si as culpas dos homens. Ele tem autoridade de perdoar os pecados e absolver as culpas, pelo
fato que sendo Filho de Deus e de natureza divina, ele assume a natureza humana corrompida
pelo pecado e faz sua aquela mesma natureza, doando então a sua vida em lugar da morte
espiritual, que se apresenta como a morte real, no sentido que a verdadeira morte é o
distanciamento de Deus. Em sua carne, Cristo assume as enfermidades dos homens, por isso
ele cura, liberta e mais ainda perdoa, pelo fato que ao ter o dom de se compadecer ele entende
as dores e padecimentos dos homens.
Este exemplo que Cristo deixou à sua Igreja de se compadecer dos mais humildes toma
o caráter de missão que configura a dimensão da Igreja enquanto comunidade eclesial, termos
sempre um olhar de misericórdia e compaixão àqueles que mais sofrem66, seguindo seu
exemplo, dar também a nós mesmos para a salvação das almas. Então a este ponto podemos
notar como o exemplo de Cristo nos convida a sermos sempre mais semelhantes a Ele nas
nossas atitudes. O convite de Jesus de sermos misericordiosos como o Pai é misericordioso (cf.
Lc 6,36), ecoa durante os séculos na ação da Igreja que nos faz em si filhos adotivos e coerdeiros
da promessa (cf. Gl 3,29).
Por isso podemos evidenciar que a ação misericordiosa do Verbo faz sim que o homem,
ainda que envolvido pela letargia do pecado e consumido por um egoísmo pessoal, seja
impulsionado a seguir o exemplo d´Aquele que por primeiro agiu por misericórdia (cf. Rm
9,16), devolvendo a ordem da criação ao seu devido lugar e colocando o homem de novo no
centro da criação, não para que a domine como um tirano, mas que sendo responsável pela
mesma criação, saiba dar glória a Deus e reconheça nesta grandiosidade criadora a mão
poderosa e misericordiosa de Deus, que não deixa faltar o pão nosso de cada dia e que
pessoalmente veio libertar e salvar o homem da sua condição fragmentada pelo pecado,
devolvendo a ele a sua integridade e dignidade67. Pode-se recordar aqui o texto do Oficio das
Leituras de autor desconhecido do século IV de uma antiga homilia do grande Sábado Santo,
“A descida do Senhor à mansão dos mortos” que narra este resgate do homem colocando-o
novamente dentro da comunhão da Trindade, não mais no paraíso mas num trono celeste:
65 Ibidem, I, q. 21,3. 66 Cfr. PAPA FRANCISCO, Exortação Apostolica Evangelii Gaudium, IV, II, 187. 67 Crf. Gaudium et Spes, I, 12-13.
42
“Levanta-te, vamos daqui. O inimigo te expulsou da terra do paraíso; eu,
porém, já não te coloco no paraíso mas num trono celeste. O inimigo afastou
de ti a árvore, símbolo da vida; eu, porém, que sou a vida, estou agora junto
de ti. Constituí anjos que, como servos, te guardassem; ordeno agora que eles
te adorem como Deus, embora não sejas Deus. Está preparado o trono dos
querubins, prontos e a postos os mensageiros, construído o leito nupcial,
preparado o banquete, as mansões e os tabernáculos eternos adornados,
abertos os tesouros de todos os bens e o reino dos céus preparado para ti desde
toda a eternidade”.68
Diante de tal exemplo, aquilo que nos leva a concluir em um primeiro momento é que,
ao fazer experiência da misericórdia de Deus que perdoa os pecados, o perdoado deve aprender
a perdoar também. Ao exercitar tão ação moral, a exemplo de Cristo, o homem redescobre a
sua semelhança com Deus, que perdoa e que se compadece. Este, segundo Basílio de Cesaréia
(330-379), é o grau mais alto da perfeição cristã que um fiel pode perseguir. Ao amar e ao se
compadecer o Cristão se assemelha a Deus, que ama e se compadece:
“Deveis ser perfeitos como o vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5,48). Vês
como o Senhor nos concede o que nos faz à sua semelhança? “Ele faz nascer
o seu sol igualmente sobre maus e bons e cair a chuva sobre justos e injustos”
(Mt 5,45). Se tu te fizeres adversário do mal, sem ira, esquecido da inimizade
de ontem, se amas teu irmão, se és compassivo, assemelhas-te a Deus. Se
perdoas ao inimigo de coração, assemelhas-te a Deus. Se como Deus age para
contigo, pecador, assim ages relativamente ao irmão que te ofendeu,
assemelhas-te a Deus pela misericórdia para com o próximo. Deste modo, se
ages racionalmente, tens a imagem de Deus, mas, assumindo a bondade, tens
a semelhança. Deves revestir-te de “sentimentos de compaixão, de bondade”
(Cl 3,12), a fim de te revestires de Cristo (Gl 3,27). Ao assumires a compaixão,
tu te revestes de Cristo, e a convivência com ele te faz familiar de Deus. Desta
forma a história da criação é educativa para a vida humana. “Façamos o
homem à nossa imagem.” Sejam criados à imagem, e adquiram também a
semelhança. Este poder te foi concedido por Deus69.
Portanto a vida nova doada em Cristo Jesus se apresenta como a garantia de que o
homem de natureza frágil e corrompida participe da vida divina. Esta mesma vida nova doada
por Cristo através do seu Espirito reconciliou a humanidade ao seu criador, através da remissão
dos pecados e pelo perdão das culpas através do seu atributo maior que é aquele de se
compadecer e sentir misericórdia, gerando de novo em si o homem, que foi criado a sua imagem
e semelhança (GS I, 22).
68 OFÍCIO DIVINO, Liturgia das Horas: Segundo o Rito Romano. Tradução para o Brasil da segunda edição
típica. São Paulo: Ed. Vozes; Paulinas; Paulos; Ave-Maria, 2000. p. 439. De uma antiga homilia do Sábado Santo
(PG 43,439.451.462-463) Séc. IV: a descida do Senhor à mansão dos mortos. 69 BASILIO DE CESAREIA, Homilias sobre a origem do Homem, I, 17.
43
Esta essência divina na dimensão ontológica do homem faz sim que ele anseie por Deus,
e quando não mais podia se comunicar com ele, condenado a uma morte eterna que se
caracterizava pelo afastamento total, Deus mandou seu único Filho para ir buscar aqueles que
estavam perdidos e os elevou à categoria de filhos de Deus. Este Filho pelo qual todo homem
foi criado para Ele e n’Ele70, aceitou livremente seguir a vontade do Pai, fazendo-nos
coparticipantes da sua gloria, se tornando para nós o modelo de como viver a vida humana na
sua plenitude.
3.3 A cruz: a Vida sobre a morte
Depois de ter testemunhado a misericórdia do Pai através da sua vida, dos seus exemplos
e de sua ação em meio ao povo de Israel, o bom pastor, que veio buscar o que estava perdido
(Lc 19,10), não somente se coloca a caminho, para buscar as ovelhas perdidas da casa de Israel,
mas se fere ao buscá-las, derramando assim seu sangue dando a sua própria vida. Pela sua cruz
Cristo demonstrou que os planos de Deus em salvar o homem, eram muito mais que um simples
gesto de compadecer e de demonstrar solidariedade, mas pelo sacrifício Pascal, o Filho de Deus
deixou a prova mais sublime do Ágape Trinitário que se doa totalmente, dando tudo aquilo que
se tem, isto é a Vida. Esta Vida consiste em voltar a comunhão com o Pai que foi desligada pelo
pecado71.
No esvaziamento de si mesmo na sua kenosis e se tornado não somente semelhante aos
homens, mas feito humilhação seguiu o caminho dos pecadores e foi buscar Adão no último
lugar onde ele poderia ser encontrado, em sua morte. Ao assumir o pecado do mundo, Jesus
Cristo assume as consequências das culpas e da condenação que, por suas mãos, o homem no
exercício do seu livre arbítrio, procurou para si mesmo. Em consequência disso, existe uma
morte eterna, muito mais grave e real do que aquela física, porque o existir fora da presença de
Deus já, por si mesmo, se torna um paradoxo, porque a própria vida do homem tem como fonte
a vida divina ao qual ele foi chamado72.
Ao subir naquela Cruz, o Verbo encarnado deu o exemplo a seguir de que o perdão está
acima de qualquer culpa e a vida é mais forte do que a morte. Depois de ter demonstrado com
70 Cfr. SANTO AGOSTINHO, Confissões, I, 1PL 32, p. 661. 71 Cfr. BENTO XVI, Enciclica Spe salvi, 4. 72 Cfr. G.L. MULLER, Dogmatica Católica, Teoria e Pratica da Teologia, p. 115.
44
gesto e com palavras a misericórdia divina73, no ato da crucificação, vemos que o nazareno
intercede pelos seus algozes dizendo: “Pai Perdoa-lhes: não sabem o que fazem” (Lc 23,34).
A este gesto diante da mais cruel das torturas e em meio às dores, o Amor e a Solidariedade
divina presentes na segunda Pessoa da Trindade demostra que Cristo verdadeiramente não
olhou para si (cf. Fl 2,10), mas como em toda sua vida pública, a vive para o homem. De fato,
o seu olhar está voltado para os pecadores. Neste sentido cometa Irineu:
Também, pelas palavras que o Senhor disse na cruz: “Pai, perdoa-lhes, porque
não sabem o que fazem”, revela-se a longanimidade, a paciência, a
misericórdia e a bondade de Cristo que, enquanto sofria, desculpava os que o
maltratavam. Ele, o Verbo de Deus, que nos disse: “Amai os vossos inimigos
e rezai pelos que vos odeiam”,foi o primeiro a praticar na cruz este
mandamento, amando o gênero humano e rezando pelos que o faziam
morrer74.
Portanto aquilo que podemos notar é que enquanto viveu, Cristo deixou o modelo a
seguir e o caminho a percorrer pelas vias que levam a Deus. Este caminho passa pelo seu corpo
estendido no lenho daquela cruz. Por isso não existe reconciliação plena que não passe por este
sacrifício supremo, uma vez que Ele em si perdoa os pecados dos homens e os transforma de
pecadores em reconciliados. Na cruz o homem encontra o sentido para a vida, que é de não
estar só nos sofrimentos e nas angústias. Na cruz os filhos de Adão encontram consolo e
esperança e descobrem que Deus não somente se compadece, mas literalmente padece, para
que os padecimentos humanos tenham sentido n´Aquele corpo ferido e massacrado na Cruz.
Ao estender os braços na hora da sua morte, Cristo doa a sua vida. Esta vida foi muitas
vezes interpretada pela tradição como o dom dos sacramentos e de um modo especial, como a
nova Eva. Logo, a sua morte se torna fonte de vida para todo batizado que, tendo acesso aos
sacramentos, goza dos benefícios e dos frutos deste sacrifício glorioso, glória essa escondida
naquele aparente falimento75.
No mistério da Cruz encontramos a síntese do amor da ação salvífica do Filho, onde
pela sua encarnação morte e ressurreição Deus reconcilia o mundo consigo em um gesto de
amor movido unicamente pela sua misericórdia, que se encarna nas ações e na entrega de Cristo.
73 W. BEINERT -B. STUBENRAUCH, Novo Lexico da teologia Dogmatica, p. 227: “O chamado de Jesus para o
arrependimento, revela não somente o pecado, mas tambem o amor <mierricordioso de deus que se cristaliza na
Cruz e nos eventos pascoais. Assim abre um novo espaço de vida vindo de Deus, para os pecadores”. 74 IRINEU DE LIÃO, Contra as heresias, III, 18.5. 75 Cfr. TOMAS DE AQUINO, Summa Teologica, II, q. 93, a. 3: Foi do lado do Cristo adormecido sobre a cruz que
jorraram os sacramentos, a saber, o sangue e a água, pelos quais a Igreja foi instituída.
45
A este efeito convém citar a afirmação do Concilio Vaticano II, que ilustra de forma clara o que
é querido expressar a esta altura do estudo realizado:
[...]Quando chegou a plenitude dos tempos, enviou o Seu Filho, Verbo feito
carne, ungido pelo Espírito Santo, a evangelizar os pobres, curar os contritos
de coração, como, médico da carne e do espírito, mediador entre Deus e os
homens. A sua humanidade foi, na unidade da pessoa do Verbo, o instrumento
da nossa salvação. Por isso, em Cristo «se realizou plenamente a nossa
reconciliação e se nos deu a plenitude do culto divino. Esta obra da redenção
dos homens e da glorificação perfeita de Deus, prefigurada pelas suas grandes
obras no povo da Antiga Aliança, realizou-a Cristo Senhor, principalmente
pelo mistério pascal da sua bem-aventurada Paixão, Ressurreição dos mortos
e gloriosa Ascensão, em que «morrendo destruiu a nossa morte e ressurgindo
restaurou a nossa vida». Foi do lado de Cristo adormecido na cruz que nasceu
o sacramento admirável de toda a Igreja[...] (SC, I, 5).
Como uma semente que cai na terra e morre (cf. Jo 12,24) gerando vida e dando
sucessivamente frutos de alimentos, aquilo que vemos no Tríduo Pascal é a máxima desta
realidade existencial do homem, mas mesmo ali o homem não estará sozinho pelo fato que o
Filho de Deus, ao experimentar e vivenciar em sua carne a dor do pecado, quis assumir a
dimensão integral do homem até o seu drama mais terrível que toca o fim da sua existência.
Estamos afirmando, portanto, que Cristo nos sofrimentos da cruz e na sua morte sobre aquele
madeiro, se tornou companheiro e solidário àqueles que devem enfrentar o fim de sua existência
terrena. Logo até mesmo na morte, Deus não deixará o homem sozinho e esta é a beleza mais
sublime da nossa fé.
Podemos notar a partir desta reflexão que a morte do Cristo foi sinal de vida, uma vez
que o autor da vida e de toda existência ofereceu-se pendendo na cruz. Somente aquele que
possui algo poderá doá-lo verdadeiramente. Por isso, quando a doutrina católica afirma com
alto e bom som que no sacrifício pascal de Cristo se obtém o perdão dos pecados e que uma
nova vida nasce, esta mesma doutrina nos leva a reafirmar a profissão de fé, que pela sua morte
ele desceu a mansão dos mortos, indo visitar aqueles que morreram e chama-los à vida.
A cruz, muitas vezes, alegoricamente comparada à árvore da vida, se sobrepõe sobre
àquela que Adão usurpou, desobedecendo o mandamento do criador em não comer do fruto
desta porque ao fazê-lo seria condenado a morte (cf. Gn3,6). Então, agora em Cristo, aquilo
que Adão perdeu por ter desobedecido foi restituído pela obediência na sua Cruz. O fruto de
morte é substituído pelo fruto da Vida, isto é, o próprio Cristo. Na cruz o homem encontra o
sentido da sua própria existência e da sua vocação que é de ser filho de Deus no Filho (cf. Ef
1,5). Ao assumir em sua carne a natureza humana e as consequências desta mesma humanidade
46
ferida pela falta de Adão, Cristo aceita morrer na cruz para gerar no homem a vida doada em
seu último suspiro (Mc 15, 37). Leão Magno (400-461) professou a este respeito:
Confessemos, pois, caríssimos, o que a voz do bem-aventurado doutor das
nações, o apóstolo Paulo, confessou gloriosamente: “Fiel é esta palavra e
digna de toda aceitação: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores”.
Por isso, mais admirável é agora a misericórdia de Deus para conosco, porque
Cristo morreu não por justos, nem por santos, mas por maus e ímpios. A
natureza divina não podia receber o aguilhão da morte, mas, nascendo de nós,
tomou o que poderia oferecer por nós. Outrora ele ameaçava a nossa morte
com o poder de sua morte, dizendo pela boca do profeta Oséias: “Ó morte, eu
serei a tua morte; inferno, serei a tua moradia”. Com efeito, morrendo, ele se
sujeitou às leis do túmulo, mas, ressuscitando, aboliu-as e assim interrompeu
a continuidade da morte, tornando-a temporal, de eterna Que ela era76.
Deste modo, depois de se encarnar assumindo integralmente a condição humana, o Filho
de Deus quis dar tudo de si sobre aquela cruz, dando a si mesmo e a sua vida para o resgate de
todos aqueles que nele cressem. A cruz não foi a última palavra, mas ao passar por ela a
misericórdia encarnada, isto é, o Verbo de Deus, deixou um rastro de esperança a todos aqueles
que por Ele vivessem e morressem. Dentro deste mistério de amor, a humanidade redimida olha
para si mesma, para a sua história e para a sua natureza. Contempla as suas dores e as suas
limitações, olha para o horizonte da sua vida e enxerga n´Aquele corpo pendurado sobre o lenho
da cruz a manifestação de Deus, que se revelou como Amor e misericórdia
Em sua ressurreição o mesmo Verbo que outrora assumira a vida humana em toda a sua
integridade, ressuscita também a nossa carne e nos faz sentarmos com Ele à direita de Deus,
lugar onde todos os homens em Cristo encontram seu lugar, isto é, ao lado e não distante, porque
não mais escravos, os redimidos se identificam com o seu “irmão mais velho”, isto é, com o
próprio Filho de Deus, Jesus Cristo. Filhos no Filho, este é o fruto da ação salvífica Trinitária,
onde o Cristo Unigênito de Deus partilhou a sua glória com a natureza desonrada e corruptível
do ser humano. A vida venceu a morte, o perdão apagou as culpas, Ele se deu totalmente e se
derramou como um bálsamo curando as feridas de morte que corroíam os homens. Médico,
remédio, irmão e Senhor, eis os títulos que podemos dar ao Filho de Deus, que com tão grande
amor nos amou e nos elevou consigo para uma vida que não terá fim.
76 SÃO LEÃO MAGNO, Sermão LIX , 8.
47
CONCLUSÃO
O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise sobre a relação que há
entre a misericórdia de Deus e a miséria do homem, perpassando o olhar inicialmente sobre a
dimensão da misericórdia em seu aspecto hodierno, tão implícita na Igreja Católica Apostólica
de Roma, de forma ainda mais essencial no pontificado dos três últimos Papas, mas também
com um olhar atento debruçado nas Sagradas Escrituras, Sagrada Tradição e Sagrado
Magistério mostrando a abrangência e a importância do assunto como fonte de pesquisa atual
para o campo científico da Teologia.
A disposição dedicada ao longo deste estudo coube aprofundar a relação existente entre
a miséria humana associada à separação do homem em relação a Deus, fruto do pecado original,
gerando no coração humano a culpa por tal distanciamento. Porém, para além desta constatação,
foi possível um novo olhar sobre a miséria humana ampliando a sua compreensão como um
alvo da misericórdia Divina, oferecida como dom gratuito por parte do Criador em relação à
sua criatura que fora criada à sua imagem e semelhança. Isso se deu através da revelação do
Verbo na Pessoa do Filho, Jesus Cristo, misericórdia encarnada, que exerce através do perdão
dos pecados a autoridade divina e por meio de sua morte de cruz, a reconciliação definitiva da
humanidade com o Pai, concedendo a todos, além da remissão dos pecados, a identidade de
filhos de Deus.
Foi então possível, verificar a relação que existe entre a misericórdia Divina e a miséria
humana, observando dentro do projeto da redenção a fidelidade de Deus em referência à sua
criação, em nunca abandoná-la, mas pelo contrário, perpassando toda a história da salvação que
culmina na encarnação do Verbo, a prova desta fidelidade do Deus da antiga e de nova aliança
estabelecida vez por todas para a remissão dos pecados. Nova aliança que, por mais que a
humanidade no seu livre arbítrio se confunda e inúmeras outras vezes opte pelo rompimento de
sua relação de amizade com o seu Criador, esta fidelidade se encontra disponível àqueles que
por ela clamarem e a buscarem: o mesmo sacrifício se renova todos os dias enquanto a Igreja
espera a vinda gloriosa e definitiva proclamada no Santo Sacrifício da Missa quando se
professa: “Todas as vezes que comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos, Senhor,
a vossa morte, enquanto esperamos vossa vinda!”77
Futuramente caberia na ampliação desta pesquisa um olhar mais abrangente e minucioso
junto ao estudo da misericórdia na Sagrada Escritura, que não foi possível se ater e ampliar
77 CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Missal Romano. 2.
ed. 16ª reimpressão, Paulus. São Paulo: 2012. p. 479
48
neste estudo, mergulhando mais nos aspectos semânticos contidos nos textos sagrados sobre a
misericórdia. Especialmente abrangendo nos textos do Antigo Testamento os termos hebraicos
associados à misericórdia, aprofundando também suas citações nos textos históricos,
sapienciais e proféticos, como também no Novo Testamento, adentrando mais profundamente
na literatura Paulina e epístolas católicas. Por fim, permaneceria o desejo de uma relação deste
estudo ligado aos Sacramentos que trariam uma abrangência riquíssima para o aprofundamento
do tema, mas que infelizmente pela limitação do tipo de estudo realizado não nos foi possível.
De qualquer forma, acreditamos que o objetivo ao qual nos propomos aprofundar
inicialmente neste estudo foi atingido, principalmente no aspecto de que ele provoca ampliar
horizontes que ajudem, ainda mais, perceber quão grande é a misericórdia de Deus oferecida à
humanidade de forma abundante, mas que nem sempre é acolhida e compreendida pelo homem
ferido pela culpa. O Pai Misericordioso e Justo não desiste de sua criatura pela qual tem amor
sem medida e a quem renova a esperança deixando à sua disposição a Graça de sua misericórdia
eterna.
Em Cristo o homem renasce e não morrerá nunca mais, se lembrará todos dias de cantar
as suas misericórdias que são sem limites e sua fidelidade que é eterna: “Louvai ao Senhor as
nações, louvai-o todos os povos, porque sem limites é a sua misericórdia para conosco, e eterna
a fidelidade do Senhor.” (Sl 116/117)78.
78 BÍBLIA AVE MARIA EDIÇÃO ESTUDO. SÃO PAULO. 898 p.
49
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