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Pedro Teixeira Castilho O PECADO DO PAI Da crença à heresia Orientadora: Profa. Dra. Anna Carolina Lo Bianco – PhD Instituto de Psicologia Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica Universidade Federal do Rio de Janeiro 2009

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Pedro Teixeira Castilho

O PECADO DO PAI Da crença à heresia

Orientadora: Profa. Dra. Anna Carolina Lo Bianco – PhD

Instituto de Psicologia Programa de Pós Graduação em Teoria Psicanalítica

Universidade Federal do Rio de Janeiro 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

INSTITUTO DE PSICOLOGIA

Tese intitulada O Pecado do Pai – da crença à heresia, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e submetida, em 18 de fevereiro de 2009, à Banca Examinadora composta por:

Profa. Dra. Anna Carolina Lo Bianco – PhD (UFRJ) – Orientadora

Profa. Dra. Betty Bernardo Fuks (Universidade Veiga de Almeida)

Prof. Dr. Luis Flávio Silva Couto (PUC - MG/UFMG)

Profa. Dra. Tânia Coelho dos Santos (UFRJ)

Prof. Dr. Ricardo de Sá (UFF)

Rio de Janeiro Programa de Pós-Graduação em

Teoria Psicanalítica da UFRJ 2009

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A child is sleeping An old man gone A father forsaken

Forgive your son! James Joyce

De onde surge o espectro do pai de Hamlet, se não de onde nos denuncia que ele foi

surpreendido na flor dos seus pecados? E de modo algum dá a Hamlet a proibição da lei que

possa fazer com que seu desejo subsista. Sigmund Freud

complexo de Édipo, um sonho de Freud... Jacques Lacan

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SUMÁRIO

Lista de figuras................................................................................................................8 Resumo...........................................................................................................................9 Abstract .........................................................................................................................10 Introdução .....................................................................................................................11

PRIMEIRA PARTE – CRISTIANISMO

Primeiro Capítulo: Pater semper incertus est ...............................................................24 O filho entre o amor e o ódio...................................................................................24 Totem e tabu: um mito sobre a ambivalência do Pai ..............................................48 O Pai em Freud: amor, ódio e comunhão ...............................................................58

Segundo Capítulo: Cristo é sumo pontífice (João 19,41-20,25) ...................................71 As vicissitudes do simbólico....................................................................................71 O sacrifício do filho em Nome-do-Pai .....................................................................89 O pecado do sujeito da ciência .............................................................................113 A repetição no sujeito de crença...........................................................................123

SEGUNDA PARTE – JUDAÍSMO

Terceiro Capítulo: A angústia dentro e fora da cena ..................................................138 O masoquismo como redenção do filho................................................................138 A angústia: um furo ...............................................................................................160 A lista dos objetos de Lacan .................................................................................175 A voz do Pai ..........................................................................................................182

Quarto Capítulo: O furo no saber................................................................................192 Os nomes do Pai...................................................................................................192 Os dois Moisés de Freud ......................................................................................204 Lacan, leitor de Kierkegaard .................................................................................213 O pai entre saber e verdade .................................................................................231

TERCEIRA PARTE – O PECADO

Quinto Capítulo: O desvio do Real..............................................................................249 O Joyce de Lacan .................................................................................................249 O tomismo joyciano...............................................................................................258 O pecado original ..................................................................................................274 Há pecado porque não há relação sexual ............................................................287

Conclusão: O pecado do Pai ......................................................................................301 Bibliografia Geral.........................................................................................................313 Bibliografia Teológica..................................................................................................320

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Ideal de Eu (FREUD, 1921/2003) ................................................................66

Figura 2 – Esquema L (LACAN, 1966/1998) ................................................................73

Figura 3 – Grafo da inibição do sintoma e da angústia (LACAN, 1962/2004) ............162

Figura 4 – Esquema ótico (LACAN, 1964/2004).........................................................171

Figura 5 – As formas dos objetos nos diferentes estágios (LACAN, 1964/2004) .......177

Figura 6 – Nó borromeano e o ego de Joyce (LACAN, 1975-76/2005) ......................272

Figura 7 – Nó borromeano (LACAN, 1975-76/2005) ..................................................281

Figura 8 – Nó borromeano e a nomeação (LACAN, 1975-76/2005)...........................283

Figura 9 – Grafo da sexuação (LACAN, 1972/1985) ..................................................290

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Resumo: Este trabalho busca recuperar o tema da dissolução do complexo de

Édipo na identificação da criança com o Pai. A partir daí, faz-se um esforço em

aproximar essa gênese da criança ao mito de Totem e tabu. Nesse mito,

buscaremos afirmar que o Pai, juntamente com os afetos de amor e de ódio

que ele desperta, é crucial na obra de Freud – desde a sua concepção sobre o

Édipo, passando por Totem e tabu, até Psicologia das massas e análise do Eu.

A identificação ao Pai, nesses textos de Freud, é a subjetivação dos afetos de

amor e ódio – um Pai ambivalente. Em um segundo tempo, levando em

consideração a experiência da falta, inicia-se um declínio do Pai. Nesse

segundo tempo da tese, o filho testemunha em Nome-do-Pai. Para Lacan, essa

função significante está articulando o desejo com a Lei. Há desejo porque há

lei. Elevando esse problema para uma questão teológica, podemos inferir, com

são Paulo, que há pecado porque há lei. O filho é a redenção do Pai,

juntamente com os desejos masoquistas que essa relação desperta no filho.

No entanto, a angústia é o sinal de outra versão do pai. A partir desse ponto,

começamos a pensar o pai como voz. A voz do pai é a articulação do desejo

com o gozo. Utilizando-nos do recurso teológico, vamos aproximar essa voz ao

shofar. No som desse instrumento, teríamos o pacto do povo judeu com

Yahveh. A experiência real do pai entra em jogo; esse pai teria quantas

versões fossem necessárias – os nomes do Pai. Lacan, leitor de Kierkegaard,

demonstra que o Pai é mais pecado que Lei. Com Lacan, temos a falta do pai,

seu pecado, que é consecutivo à pluralização dos nomes do pai e

concomitante à impossibilidade de pronunciá-lo. Nesse ponto, o pai transmite

sua impossibilidade. Desse modo, ao longo de seu ensino, Lacan propõe o Pai

em quatro momentos: o significante do Nome-do-Pai, o pai como nomeação, o

pai como função sintoma e o pai como dizer. O tema sobre a identificação traz

à tona a questão da transmissão, buscando concluir que o pai transmite seu

pecado.

Palavras-chave: Lei, Pecado, Teologia, Pai, Filho, Identificação.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Abstract: Firstly, this work searches of the dissolution of the Edipo’s complex

concerning the identification of the child. From this construction this work will

approximate to the Totem and taboo mythic. In this mythic, we will show that the

father is crucial in the freudians’ work when the psychic device is related to the

affection of love and hate. We can notice this since the Totem and taboo text

until The mass psychology and the analyses of the Self. From the identification

of the father comes the affection of love and hate. Secondly, the lacanian

conception of fault. From now the identification will take another place. The

conception of fault comes with the Name-of-the-father. This conception will

authorize a new point of view about the ambivalence of love and hate. The

significant of Name-of-the-father is articulated with the sin and the law. This

articulation comes from Saint Paul. In this sense, the son is the redemption of

the father. The son can only make a testimony in the Name-of-the-father. On

the other hand, the idea of object a shows a different point of view concerning

the relationship between the son and the father. The voice of the father shows

the list f the object a. This voice leads to the beyond pleasure and the desire.

We will compare the voice to the shofar. This is the voice that makes the pact

with the father. This god has as many names as possible. Now we will place the

identification to the Names of the father. What comes from this father is more

the sin than the law. Now the father is judged from his sin. The philosophy of

Sören Kierkegaard will help to make the conclusion. This thesis will concluded

that the sin of the father is transmitted to the son.

Keywords: Law, Sin, Theology, Father, Son, Identification.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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INTRODUÇÃO

A relevância estabelecida pela psicanálise quanto ao tema da

identificação deve-se, entre outros aspectos, ao lugar ocupado pelo Pai.

Levando-se em consideração as questões sobre a identificação e a religião,

buscamos comprovar que Freud e Lacan se apropriam da religião judaico-cristã

para explorar a questão da identificação ao Pai.

Pretendemos investigar o que se transmite na identificação do filho

com o Pai. Buscaremos registrar os percursos de Freud e Lacan sobre essa

temática, a partir do resgate teológico da psicanálise no que concerne à

identificação do filho ao Pai. Podemos demonstrar esse percurso como

expomos a seguir.

Primeiramente, apontaremos como Freud associa o tema da

identificação do filho à figura do Pai. Para sustentar tal hipótese, analisaremos

a construção sobre o tema nos textos de 1901 até aqueles de 1921. Os textos

de Freud são: Os três ensaios sobre a sexualidade, As pulsões e seus

destinos, Diferenças anatômicas entre os sexos, A dissolução do complexo de

Édipo, Totem e tabu e Psicologia das massas e análise do Eu, além dos textos

metapsicológicos.

Buscamos confirmar, a partir desses textos, a hipótese de que Freud

constrói a identificação à figura do Pai como amor e ódio. Isso permite verificar

que o complexo de Édipo é o Pai ambivalente do neurótico. A partir desse

resgate da literatura freudiana, objetiva-se demonstrar que a gênese da

identificação ao Pai encontra-se ancorada na figura do Pai primevo. Essa

hipótese será longamente desenvolvida em seu texto Totem e tabu (FREUD,

1913/2003). Isso permite perceber que a religião monoteísta e a história da

civilização passam a ser o objeto da pesquisa de Freud que visa à identificação

paterna. Considerando-se essa construção freudiana, podemos afirmar que,

para Freud, a ontogênese repete a filogênese.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Para confirmar nossa hipótese, vamos recuperar o mito freudiano de

Totem e tabu. Um pai todo-poderoso era senhor de todas as mulheres. Os

filhos o mataram, comeram e, na refeição canibalesca, incorporaram o poder

do pai e deram fim, por meio de um pacto, à violência da rivalidade em torno da

posse das mulheres.

O pai primitivo e idealizado torna-se o fiador desse pacto entre irmãos:

mediante a renúncia a um gozo sem limites, todos têm direito ao exercício da

sexualidade, dentro do respeito à regra comum. Assim teria nascido a lei

edipiana, que organiza a filiação masculina em torno do proibido e do desejo. É

o assassinato do pai primitivo que funda a civilização, cedendo lugar ao pai

edipiano, aquele que se curva à lei que enuncia.

Para Freud, há uma semelhança entre o sacrifício da morte do Pai, que

trouxe para os cristãos a remissão dos pecados, e a identificação ao Pai

primevo, que faz surgir a dimensão simbólica e instaura as relações fraternas

entre os filhos na cultura. A identificação ao Pai, para Freud, seria o amor a

este que seria subjetivado como idealização. Por outro lado, o ódio seria

subjetivado com o sentimento de culpa. A essas duas correntes afetivas, Freud

dá o nome de ambivalência.

Neste trabalho, a identificação se desdobra na assimilação de um Pai

ambivalente. Para ratificar essa hipótese, recuperamos uma passagem do texto

de Freud quando explica que a prática religiosa da comunhão pode ser vista

como encenação do que ele chama de mito de devoração do Pai totêmico, que

se subjetiva enquanto amor e ódio. Essa hipótese busca se confirmar na

conhecida referência ao Pai enquanto amor de são João (João 3,15-4,20).

Assim, poderemos demonstrar que Freud cria o complexo de Édipo em torno

da figura paterna e da castração.

Ainda considerando a hipótese freudiana da ambivalência em relação

ao Pai, buscarei, no primeiro capítulo, apresentar os desdobramentos dessas

correntes de amor e de ódio. Para isso, o texto Psicologia das massas e

análise do Eu, de 1921, traz as referências teóricas sobre a identificação que

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convergem para a ambivalência. Nesse texto de 1921, a identificação ao Pai,

para Freud, é signo do amor a este Pai.

A partir dessa perspectiva, pretendemos recuperar a tentativa de Freud

de salvar o Pai no que concerne ao tema da identificação. Em um segundo

tempo, já no próximo capítulo, demonstraremos a questão da identificação no

retorno de Lacan a Freud. Isso quer dizer pensar a identificação a partir da falta

na linguagem. O referencial desse momento, nesta tese, será a passagem

bíblica do verbo que se fez carne, a partir da qual veremos que essa

construção sobre a ambivalência é complexificada pelo psicanalista quando

propõe a identificação a partir da noção de falta inerente ao significante.

Sabemos que o investimento lacaniano é um discurso que obedece às

exigências da lingüística. Os rumos e os itinerários da teoria lacaniana trazem

processos de importação das produções intelectuais. Nesse momento da tese,

vamos fazer uma genealogia do Nome-do-Pai que não está desvinculada da

tradição cristã.

A partir daí, pretendemos afirmar que a experiência de crença se

desdobra nas paixões de amor, de ódio e de ignorância, sustentando-se em um

Outro que falta. Podemos afirmar que Lacan começa a propor um declínio do

Pai a partir do Nome-do-Pai, o que faz eco à referência bíblica utilizada pelo

psicanalista. Nessa perspectiva, a crença cristã tem como condição a

ressurreição de Cristo: a tumba esvazia-se para que se processe a

ressurreição. Surge, então, o homem de crença. A partir da crença, podemos

trabalhar a questão da transferência. Se Freud propõe pensar a noção de

transferência como amor, ódio e amizade, Lacan constrói o matema da

transferência a partir da repetição simbólica, pois o sujeito da ciência foi

forcluído por um saber que se repete na cadeia simbólica. A ferramenta para se

pensar isso é o Nome-do-Pai fazendo exceção na formação da cadeia

significante.

Concluímos, nesse segundo capítulo, que o sujeito falta ao significante:

a identificação se processa a partir da metáfora da abordagem crística do

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túmulo vazio. O sujeito passa a se supor no Outro. Nesse momento do

trabalho, a partir da tradição do verbo, buscaremos afirmar que o filho só pode

testemunhar em Nome-do-Pai. Isso significa implicar na palavra “pai” algo que

está sempre, de fato, em potência de criação. Ε é em relação a isso, nesse

campo simbólico, que temos que observar que o Pai, na medida em que

desempenha esse papel-pivô, maiúsculo, faz o filho existir.

Em seu retorno a Freud, Lacan, lingüista, traz as conseqüências

identificatórias do sujeito a partir do campo e da função da linguagem. O

elemento nodal desse retorno apóia-se no Nome-do-Pai. A construção

lacaniana sobre a identificação do sujeito com a linguagem deve-se ao Nome-

do-Pai, que é uma referência direta à religião cristã (LACAN, 1966/1996), que

reconhece Jesus como Filho de Deus, isto é, que liga o advento da mensagem

de Jesus à paternidade de Deus.

A paternidade de Deus é espiritual e não carnal, como terá sido o caso

em certas religiões pagãs antigas. Essa fórmula introduz o Nome-do-Pai em

uma “consideração científica” (A ciência e a verdade), no sentido em que define

o pai praticando um corte com a realidade fenomenal de um tipo qualquer de

pai, inserindo-o em uma relação de significante a significante. Essa passagem

do Édipo freudiano ao Nome-do-Pai equivale à construção de um mito científico

de significação universal.

Desse modo, também o pressuposto sobre a identificação, em Lacan,

apresenta um resgate direto da religião cristã. A partir do Nome-do-Pai,

pretendemos demonstrar que o significante se desdobra no axioma do

inconsciente estruturado como uma linguagem. Com o objetivo de trazer esse

debate para as questões teológicas, vamos procurar na referência de Lacan a

são Paulo a relação do pecado com a lei, pois essa referência serve para

mostrar que o Pai e um ente mítico que produz um “nó do desejo com a lei”

(LACAN 1960/1990). Esse Pai mítico é o Pai morto que faz exceção fazendo

surgir a cadeia simbólica.

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Isso traz uma leitura de que o Nome-do-Pai é a representação do

sacrifício do filho. Desse modo, também a partir do cristianismo, pretendemos

verificar que o filho pode apenas testemunhar em Nome-do-Pai. Uma

genealogia da tradição do verbo é a referência para esse Pai morto que é

representado pelo nome.

A partir da falta do Outro, Lacan (1964/2001) constrói o matema da

transferência, demonstrando que existe um sujeito suposto saber na relação

transferencial do sujeito com o Nome-do-Pai. Esse percurso leva Lacan

(1964/2001) a fazer alusão ao “Deus dos filósofos”: a suposição de saber em

Deus, feita por Pascal e Descartes, é um fenômeno de transferência ao qual o

psicanalista francês chama de Teologia.

Essa citação faz eco à conhecida elaboração freudiana de que Deus é

uma nostalgia do Pai. Com relação a esse Deus dos filósofos, Lacan

demonstra que a repetição entra em equilíbrio homeostático com o sujeito

suposto saber – sujeito do qual o saber foi elidido. Todo esse percurso serve

para confirmar que o filho testemunha em Nome-do-Pai a partir do sacrifício.

Como sabemos, esse sacrifício envolve um pacto, o laço do pai com as marcas

masoquistas do filho. Se, no filho, encontramos o masoquismo, isso se deve à

característica masoquista da pulsão de repetição. O masoquismo, para Freud,

seria a marca mais primitiva do registro erótico dessa pulsão. É o sacrifício do

filho em Nome-do-Pai que é subjetivado como masoquismo.

A partir daí, no terceiro capítulo, pretendemos demonstrar que Freud e

Lacan esbarram em uma impossibilidade ao construírem um saber sobre a

repetição. As construções sobre a repetição passam a evidenciar um limite de

representação, o que pode ser percebido nas transferências negativas, na

análise terminável ou interminável, no masoquismo originário, nas fantasias

reflexivas e nas construções das análises. Levando-se em consideração esse

ponto, buscaremos mostrar que essas construções tocam no limite de uma

impossibilidade.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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É nesse sentido que Lacan cria um lugar para pensarmos a repetição e

a via da angústia captura a origem disso que não deixa de se repetir. O

masoquismo, a partir da angústia, não seria a representação mais primitiva da

pulsão. O segundo classicismo lacaniano demonstra que a via da angústia é

uma resposta para o encontro com o desejo do Outro. As diretrizes lacanianas

sobre o afeto da angústia seriam o divisor de águas para se traçar um novo

saber sobre a identificação ao pai que, até então, se permite aproximar do

sujeito suposto saber.

Se o presente trabalho inicia-se a partir de uma tentativa de aproximar

o Pai da ambivalência e da falta, estamos, agora, próximos de um pai que

segue os pressupostos de sua falibilidade no real. No final do Seminário Livro

10: A angústia, Lacan faz um deslocamento do Édipo para o objeto pequeno a.

Nesse ponto, o autor da teoria do significante faz referência direta a um Pai que

ex-siste à palavra. A angústia passa a ocupar um lugar conceitual e clínico que

nos permite extrair um lugar para o objeto a. É por isto que vamos trabalhar a

angústia, porque ela é a via de acesso para o objeto a. Sairemos do Pai amor

para nos aproximarmos da via do gozo.

O Seminário Livro 10: A angústia permite, então, ressituar a castração.

A formulação desse seminário de 1964 ajuda a repensar a angústia de

castração como o limite da experiência analítica. Se existem os estágios pré-

genitais é porque eles se organizam como retroação do Édipo. No entanto,

Lacan reformula esse ponto demonstrando que os objetos do corpo são

separados. Os objetos do corpo passam a ser entendidos pela experiência do

real, não mais edípica e cronológica, mas topológica e sincrônica. Assim,

assistimos ao deslocamento do mito para a topologia do pai.

Partindo das construções que Lacan faz do objeto a, que é um objeto

recortado do corpo, não mais se aproximando do desenvolvimento da libido,

pretendemos expor as cinco formas desse objeto: o olhar, a voz, as fezes, o

falo e o mamilo. A pulsão evocante, que incide na divisão do sujeito, será

destacada desse grupo para pensarmos o tema da identificação.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Em seus seminários posteriores, Lacan vai falar não mais do Nome-do-

Pai, mas dos Nomes do Pai. Veremos, no quarto capítulo, que passar do

Nome-do-Pai aos Nomes-do-Pai modifica o estatuto do pai. Falar dos Nomes

do Pai, no plural – título exato de um Seminário do qual só aconteceu a

primeira lição –, indica que não é mais o significante unívoco do Nome-do-Pai

que opera na inscrição do sujeito na lei e no desejo. O que começa a se revelar

é muito mais o gozo de cada sujeito do que a metáfora científica do Nome-do-

Pai.

Depois da escrita “científica” da metáfora paterna, e insistindo nela,

Lacan faz ouvir uma outra voz que emana do Nome-do-Pai: a que diz respeito

à dimensão trágica da causa perdida. No final do Seminário Livro 8: A

transferência, Lacan reconhece, com efeito, que alterna entre uma definição

científica e a experiência trágica do desejo de cada um.

Isso quer dizer que Lacan começa a sublinhar a pedra de arrimo do

“declínio do complexo de Édipo”. A partir de Kierkegaard, Lacan (1964/1990)

começa a fazer essa incursão em outra perspectiva sobre o Pai. O Pai não

será mais abordado pela linguagem, mas sim pelo objeto a. O psicanalista

francês fará uso da religião judaica, demonstrando que, na angústia, não há

reconhecimento completo do sujeito, ao contrário do reconhecimento presente

no significante. Nesse ponto, nos aproximamos da leitura que Lacan faz de

Kierkegaard, demonstrando que esse objeto voz é o encontro com a falibilidade

do dizer do pai.

Se, num primeiro momento, existiria uma falta redutível ao significante,

no segundo, essa falta seria irredutível ao mesmo. Se até aqui trabalhamos o

Pai a partir de sua universalidade, podemos, agora, dizer que existem os

Nomes do Pai. Nesse sentido, os nomes do gozo são os Nomes do Pai. O

resgate lacaniano de Kierkegaard é de buscar a separação entre o saber e a

verdade. Nesse momento, a religião judaica serviria para demonstrar o

encontro com a falta da falta do Outro. Lacan (1960/2004) irá registrar que,

entre as cinco formas de objeto, há a pulsão evocante, que faz eco à

passagem judaica da voz de Yahveh: “eu sou aquele que sou” (Ex 3,14). Para

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Lacan, esse é o ex-niilo, na qual o princípio da origem se aplica ao pai. O pai

passa agora a ter um estatuto de furo.

Lacan traz um outro lugar para pensarmos o pai interrogando o desejo

de Yahveh. Se o nome de Deus é impronunciável por um judeu, podemos

pensar na própria experiência do furo. Levando-se em consideração esse

aspecto da tradição judaica, pretendemos fazer uma genealogia do dizer de

Yahveh. A dimensão ôntica do ser se rompe com a fala tautológica do Pai

judaico. Essa fala é o índice do próprio gozo de um Deus que deseja. Não

existe um nome que possa ser nome próprio, exceto como ex-sistência.

Nesse quarto capítulo da tese, o que está em jogo é a própria

castração do pai. O filho não pode mais testemunhar em Nome-do-Pai. O pai

não é quem castra o filho, mas é o pai castrado que transmite algo da

impossibilidade ao filho. A partir desse ponto, podemos nos aproximar de um

giro que este trabalho pretende demonstrar, quando Lacan (1964/2001)

procura, nos textos do Antigo Testamento, o exemplo de um Deus que deseja:

o Deus de Abraão, Isaac e Jacó. Considerando a referência de Lacan a

Kierkegaard, no seu Seminário Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise, o que o pai transmite para o filho é o seu pecado. Nesse relato de

Lacan, retomando Freud, em A interpretação dos sonhos, esse pai vai

descansar um pouco e sonha que seu filho levanta e lhe sussurra esta

reprovação: “Pai, não vês que estou queimando?”(LACAN 1973/1990, p. 37).

Essa alegoria presta-se a dizer que o Nome-do-Pai fracassa sempre

em barrar o gozo, ou seja, se existe o assassinato do Pai, estamos longe de

falarmos em assassinato do gozo. Nesse sentido, separa-se o Nome-do-Pai do

gozo. Isso quer dizer que se faz consentir um mais de gozar, pensar o pai

enquanto causa, não mais implicar o sujeito a uma Lei que o significante do

Nome-do-Pai vincula o sujeito, mas implicá-los nos semblants. Estaremos mais

próximos do pecado do pai. A partir do momento em que o pai está castrado, é

essa castração que transmite algo para o filho. A castração do pai é a condição

do pecado do filho. Diferentemente de um pai morto que faz surgir a união do

desejo com a lei, confirmando a construção paulina do pecado com a lei,

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Lacan, leitor de Kierkegaard, demonstra que o pecado antecede o próprio

pecado. Nesse ponto, afastamo-nos da lei para nos aproximarmos do pecado

do pai. O pai é muito mais pecado do que Lei. O pai, agora, é um operador

estrutural, signo da sua impossibilidade.

No Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise, ele afirma que a

castração é uma operação da linguagem – o agente da operação é o pai real. A

partir desse ponto, Lacan retoma a pergunta: o que é um Pai? Na famosa lição

de RSI, de 21/01/1975, ele propõe uma nova versão. A ação paterna está

garantida por uma função de sintoma, ao que ele vai chamar de “pai-versão”. A

pergunta “o que é um Pai?” vem seguida da interrogação: o que é uma Mulher?

O filho não testemunha mais o amor pelo Nome-do-Pai, mas é o amor do pai

que é condição de transmissão.

Essa seria a idéia de um pai real: aquele que teria seu desejo

direcionado para alguém. A partir dessa perspectiva, podemos recorrer à noção

de Pai no final do ensino de Lacan. Se, em um primeiro momento da tese, o

simbólico seria o sinônimo do Pai com seus filhos, agora, o simbólico se rompe,

surgindo os nomes do gozo do filho.

É aí que Lacan pergunta se é possível prescindir do Nome-do-Pai, e

ele mesmo responde que isso só pode ocorrer sob a condição de o sujeito

servir-se dele. Com essa resposta, aponta para o caráter da nomeação do

sujeito implicado nas particularidades do Nome, fazendo eco à referência

freudiana a Goethe, “aquilo que herdastes de teu pai, conquiste para fazê-lo

seu” (Goethe, Fausto, parte 1, cena 1, citado por Freud, 1913/2003, p. 159).

O pecado é a singularização do nome do gozo de cada um. Lacan,

com Kierkegaard, traz o pecado para cada ser falante. As referências ao pai

castrado aproximam-se do significado etimológico do vocábulo sinthoma. Sin: o

pecado, a mordida do saber sobre a verdade, como nos ensina a Bíblia, e o

pedaço dividido ou cortado (thomos, na referência grega, de onde deriva

thome).

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O resgate lacaniano da religião judaica traz à tona o desejo do pai em

marcar a pai-versão como suplência para a relação sexual. Essa suplência é

um nome do amor: “aquilo que dá suplência à relação sexual é precisamente o

amor” (LACAN, 1975, p. 44). O amor de um pai por uma mulher, sua pai-versão

como suplência, uma transmissão entre os dois lados disjuntos da sexuação. O

amor que permite a transmissão de algo entre as duas realidades distintas do

sexo.

É também pecaminoso dizer que a heresia do pai é seu pecado. Dizer

que o inconsciente é o pecado do pai é dizer que o inconsciente é a realidade

sexual em ato. Constituir-se como pai transmissor do inconsciente como desejo

é dizer que há a inexistência do Outro enquanto uma ex-sistência entre outras.

O que está em jogo é, agora, o seu gozo, muito mais do que a Lei. Nesse

ponto, o pai não é aquele universal que traz a Lei dos homens, mas sim um

que ex-siste entre outros. Isso o coloca independente do significante.

Procuramos confirmar essa hipótese a partir da referência de Lacan a James

Joyce. A escrita de Joyce fixa o ego do autor irlandês no corpo. Se Joyce

escreveu, segundo Lacan, não foi para render honras ao pai simbólico, mas

para fazer um nome. Isso é o pai do nome, muito mais que o Nome-do-Pai.

A partir daí, o pai será julgado por sua possibilidade de humanizar o

desejo, ao encarnar um tratamento do gozo, colocando em causa a Mulher.

Será um pai não mais tomado a partir da palavra, mas sim do que ele sabe

fazer com o seu gozo. O caminho do sintoma de um pai tem a função de

transmissão. Trata-se de um pai como versão de função de sintoma. A versão

de gozo de um pai é o que ele pode transmitir para um filho. É aí que se pode

produzir um sintoma para o filho. O pai passa a ter a função de fixação de

gozo. A sua impossibilidade é a sua transmissão. Para isso, Lacan cria os “nós

borromeanos”, demonstrando que o pai passa a causar um efeito de junção,

sem o qual tudo se separa e cai em pedaços. O pai é, agora, o pai do nome,

incumbido de ser um “operador estrutural” (LACAN 1969-1970/1982, p. 111).

A pai-versão vai transmitir algo da ordem libidinal do desejo, implicando

a questão amorosa como desvinculada de qualquer laço social (LACAN,

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1974/1993, p. 71), desvinculada do significante. Aí está um pai: a exceção que

aponta seu desejo e seu gozo, e, ao mesmo tempo, o interdita. Esse pai real

barra o engodo entre mãe e filho, mas não de maneira transparente, pois tem

seu desejo colocado em outro lugar – em uma mulher –, um pai que pode se

confrontar com o gozo feminino, com o gozo do outro. Pode-se dizer que Lacan

propõe uma outra direção para o tratamento, apontando para o desejo de um

Deus-Pai que cria um desvio na organização subjetiva, uma pai-versão, uma

função de heresia (RSI – hérésie) do encontro do sujeito com o desejo do

Outro (LACAN, 1975).

Para concluir, pretendemos aproximar essa pai-versão do pecado.

Como sabemos, castigo e pecado original são as construções feitas pelo

cristianismo e utilizadas pela psicanálise como traços iniciais que não cessam

de retornar ao tema da origem. Nesse momento, a pai-versão é, para Lacan, o

avesso da religião. Isso porque o psicanalista não salva o Pai. Assim,

pretendemos concluir que o pecado original do pai é a fixação do sintoma do

filho.

Assim, uma pergunta pode ser formulada nesta tese: por que é

necessário fazer o pai existir? Porque o amor ao pai faz o pai existir. Uma

maneira de apresentar o amor ao pai é conferir-lhe existência. Salvar o pai é

fazê-lo existir.

Para isso, faço o recurso ao teológico. Esse vocabulário, para trabalhar

o tema das identificações, representa uma forma de delinear essa questão.

Sabemos, pois, que os primeiros a perceberem e agrupar as emoções como

um mal a ser evitado foram os teólogos e os filósofos. Talvez, por isso,

possamos perceber essa relação com a psicanálise. A palavra, quando usada,

procura demarcar a força de sua origem. O vocábulo se transforma em um

instrumento que sintetiza e integra as questões pertinentes à psicanálise.

Nesse sentido, a psicanálise busca, de forma ampliada, trazer o vocabulário

teológico para seus impasses sobre a identificação.

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É por isso que este trabalho não trata de uma sucessão, como se cada

etapa superasse a anterior. Ou seja, não temos o objetivo de fazer um resgate

diacrítico e/ou evolucionista, mas sim um corte sincrônico sobre o Pai. Trata-se

de um estilo digressivo, que busca fazer uma dissecação prudente sobre o

tema da identificação. Antes de ser um ensaio exaustivo sobre as rupturas e

continuidades acerca do tema da identificação ao Pai, a presente tese busca

subtrair e ilustrar a questão a partir de resgates teológicos e religiosos. Se a

maneira com que Freud e Lacan avançavam sobre a questão do Pai foi uma

interrogação permanente, utilizando-se do tema da religião, isso não quer dizer

que hajam chegado a uma resposta fundamental e única.

Desse modo, estamos longe de uma psicanálise aplicada. Se a

psicanálise sempre precisou da religião para elucidar seus impasses, isso se

deve ao fato de os conceitos relacionados à origem caminharem de maneira

paralela em ambas. As respostas que a religião empresta à psicanálise

marcam diferentes abordagens sobre o tema da identificação. Nosso trabalho

vem transpassar a idéia de uma psicanálise aplicada, o que se reverbera na

aplicação que Lacan faz do Nome-do-Pai. Nesse ponto, podemos encontrar a

resposta na própria psicanálise, pois, como sabemos, ela dispensa a religião,

com a condição de se servir dela para avançar no seu percurso.

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Cristianismo

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Primeiro Capítulo

Pater semper incertus est

O filho entre o amor e o ódio

Love and hate come together William Shakespeare

A sexualidade encontra-se radicalmente modificada depois de Freud.

Isso se deve ao fato de o discurso freudiano ter produzido um deslocamento da

biologia para a pulsão. Essa especificidade da sexualidade se revela, também,

na escolha freudiana do termo “libido” e “trieb” que, contrariamente a certa

tradição psicanalítica, não pode ser assimilada ao instinto. Isso tudo leva Freud

a construir uma teoria da identificação. A pulsão freudiana não pode estar

desvinculada da noção de identificação.

Neste capítulo, buscaremos percorrer a construção de Freud sobre a

identificação ao Pai que teria como subjetivação os afetos de ambivalência de

amor e ódio ao Pai. Para demonstrar esse percurso, pretendemos apontar que

a organização da pulsão não está desvinculada do complexo de Édipo.

Para isso, as formulações freudianas sobre o complexo de Édipo

devem ser desenvolvidas, aqui, juntamente com a dissolução desse complexo,

que está justaposto com a fase fálica. Pretendemos demonstrar que a questão

da ambivalência ao Pai se concentra na fase fálica, ou seja, na representação

do órgão sexual vinculada à organização genital infantil. A característica da

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sexualidade infantil traz como idéia básica o corpo no campo do sexual. Isto é,

a totalidade do corpo seria erógena. Esse depoimento – já anunciado no

primeiro dos Três ensaios da teoria da sexualidade – de que o corpo seria um

conjunto de zonas erógenas, funda, assim, a teoria sobre a sexualidade infantil.

Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD, 1901-

05/2003), uma das obras mais conhecidas de Freud, há a hipótese do

psicanalista de colocar a sexualidade humana na dimensão perverso-polimorfa.

A partir de 1905, nos seus três ensaios, Freud começa a dizer sobre a

existência de uma sexualidade infantil perverso-polimorfa. Nesses três ensaios

é que surge a idéia da pulsão, sendo que essa construção de Freud não pode

ser pensada, sem o ponto de vista econômico, juntamente com a construção

do aparelho psíquico. E, em um segundo momento, é também nesses textos

que podemos verificar a aproximação da pulsão à idéia da sexualidade

perverso-polimorfa. Queremos, aqui, demonstrar o caminho de Freud que vai

da pulsão ao recalque. Isto é, a partir da pulsão, Freud deduz o conceito de

recalque e, tomando o recalque, ele constrói o inconsciente. Nesse ponto, para

que haja uma metapsicologia, há uma condição de construções teórico-

dedutivas.

Se essa obra de Freud é construída em torno da demonstração de que

a sexualidade não visa a um fim reprodutivo, é porque toda a psicanálise se

desdobrou na construção do aparelho psíquico fundado no inconsciente e na

sexualidade. Para isso, a sexualidade foi descolada de sua anterior origem

traumática, inscrita, agora, na perversidade polimorfa presente na sexualidade

infantil, modelada por fantasmas inconscientes. A contrapartida disso foi a

formulação de que o aparelho seria constituído por um conjunto de “traços”

psíquicos, não desvinculando a hipótese de que as pulsões e os traços

psíquicos seriam os constituintes fundamentais do aparelho psíquico esboçado

pelo discurso freudiano.

A idéia que traz Freud sobre as zonas erógenas são que elas se dão

na superfície do corpo. De certa forma, Freud sugere que os lugares corporais

do organismo se dão nas regiões da pele e da mucosa. A rigor, Freud,

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posteriormente, em um texto de 1914, Introdução ao narcisismo, vai falar de

uma erogenidade que se dá no organismo e na superfície. Isto é, a

interioridade do organismo também seria erogenizada. É por isso que, no caso

da condição humana, supõe-se uma erogenização biológica para a afirmação

da vida. Para que haja a vida, deve haver um investimento erógeno. É nesse

ponto que Freud propõe o auto-erotismo a partir da zona erógena. As zonas

erógenas vão passar a ter uma libidinização auto-erótica. No seu projeto por

uma psicologia científica, Freud comenta o choro infantil como a falta de

elementos para que o bebê possa suprir o que ele precisa.

“O desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos

os motivos morais” (FREUD, 1886-1899/2003, p. 363). Levando-se em

consideração que esse desamparo inicial é representado como o choro de uma

criança. Existe, no choro, uma insatisfação que diz que alguma coisa falta ao

bebê. O que falta ao bebê não é vigente. O outro liga uma força da pulsão

oferecendo um objeto que aplaca uma inquietude presente na zona erógena e

produzindo uma experiência de satisfação auto-erótica. O organismo seria,

então, marcado por um conjunto de zonas erógenas que seriam demonstradas

por uma inquietude em que se teria uma economia local de satisfação. Nessa

economia local de satisfação, não há comunicação com as demais.

Depois dessa breve discussão sobre as zonas erógenas, percebemos

uma crítica de Freud à sexologia, refutando toda hipótese de pensar o sexual

centrado apenas na genitália com fins reprodutivos. A sexualidade não pode

ser articulada no campo do instinto, passando a ser uma questão do

desenvolvimento pulsional a partir da identificação. Com efeito, o traço psíquico

assumiu, no discurso freudiano, o lugar da pulsão. Buscaremos demonstrar,

nesta tese, os desdobramentos dessa idéia do traço psíquico e sua vinculação

à hipótese identificatória. Sabemos que o campo da pulsão se inscreveu na

linhagem teórica do conceito de instinto, sendo deste uma derivação

importante. Evidentemente, a pulsão não é literalmente o instinto. Dessa forma,

a metapsicologia de Freud, resultante de um método racionalista (dedutivo) e

especulativo, imbuído de influências da filosofia metafísica, traria um discurso

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sobre o tratamento a partir de uma metapsicologia. A metapsicologia vai,

portanto, além da psicologia, na medida em que a psicologia se identifica com

a tradição de Wundt e o empirismo.

Assim, desde Os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud, a

partir de um método dedutivo, esboçou uma série de características do

conceito de pulsão que o diferenciava do instinto, principalmente a

inespecificidade do objeto da pulsão e sua multiplicidade.

Tanto o conceito de instinto quanto o de pulsão se inscreveram na

matriz teórica da força vital. Como o que estava em questão, no discurso

freudiano de então, era a pulsão sexual, a sexualidade seria, agora, a

materialização maior da vitalidade, em oposição tanto ao registro do espírito

quanto ao da natureza inorgânica.

Levando-se em consideração essas formulações freudianas sobre a

sexualidade, deve-se pensar que a pulsão sexual está necessariamente

vinculada às identificações da criança durante os primeiros anos de vida. A

libidinização seria, então, de fora para dentro. Faz-se necessária uma ação de

fora para que o bebê tenha um corpo. Desse modo, só teríamos um corpo se o

sujeito fosse alimentado pelas ações parentais vigentes nas estruturas sociais

modernas. Para isso, com relação a esse processo identificatório, Freud faz

recurso à mitologia grega, aproximando o Édipo grego da organização da

pulsão.

A partir dessa breve construção, para chegar ao complexo de Édipo,

pretendemos partir dos textos Os três ensaios da teoria da sexualidade e As

pulsões e seus destinos para demonstrar a identificação inerente à pulsão.

Esse caminho visa chegar à ambivalência que não pode ser pensada sem se

aproximar de um dos destinos da pulsão, a saber, o recalque. O recalque será

o paradigma para se compreender a ambivalência inerente ao complexo

edípico.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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É por isso que, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, está a

primeira referência freudiana à pulsão, termo recuperado da poesia de Schiller1

e um dos conceitos fundamentais da psicanálise (FREUD, 1915/2003). Esse

conceito surge, no final do primeiro ensaio, como referência à sexualidade

polimorfa que, desde então, passa a interpretar a sexualidade para além do

campo da genitalidade.

A partir daí, a pulsão passa a ser uma exigência de trabalho que é

imposta ao psiquismo em função da necessidade de homeostase do corpo com

o meio. A força vital2 do organismo biológico está ligada à quantidade de

prazer produzido. As exigências pulsionais construídas pelo aparelho psíquico

são a garantia da sobrevivência do organismo biológico. A condição para que

haja o biológico é o psíquico implicado na satisfação das vicissitudes da

cultura. Criam-se, assim, inscrições do psiquismo no registro do corpo, o que

nega qualquer gênese solipsista do sujeito.

Quando Freud concebe a pulsão como conceito fundamental da

metapsicologia, a questão que se coloca é a experiência do vivente com a

excitabilidade. Isso quer dizer que a condição do vivente é a excitabilidade. A

relação do vivente com a excitabilidade é marcada pela ordem de um

paradoxo. A excitação é inquietante e é fonte de um desprazer. Levada em

consideração a natureza dessa excitabilidade, o vivente deverá construir

destinos e vicissitudes para essa excitabilidade. Diante dessa impossibilidade,

produzem-se os destinos da excitabilidade. O vivente descarrega parte da

excitação, ao mesmo tempo em que mantém parte da excitação, surgindo uma

conciliação para a manutenção da vida.

Uma excitação não regula exatamente porque faltaria, como veremos,

um órgão somático para regulação. A essa excitabilidade que não pode ser

1 “O homem tem vontade (Trieb) de fome e afeto” (SCHILLER apud FREUD, 1915/2003, p.

113). 2 A idéia de “força vital” permite a Claude Bernard criar uma medicina experimental, um feito

no campo da biologia e da psicopatologia. Essa força vital é a matriz da noção de sentimentos e emoções, herdeiros das “Paixões da alma” e, nesse ponto da teoria sobre a sexualidade, o que está em jogo é esse vitalismo da pulsão (FOUCAULT, 2004).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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governada, Freud nomeia de “força da pulsão”. Como esses estímulos

reguláveis possuem uma regulação, reflexão e excitação, o que vai caracterizar

cada estímulo é uma descontinuidade. Por outro lado, a força da pulsão vai ser

constante e contínua. A descontinuidade e a inconstância implicam uma auto-

regulação, enquanto a continuidade da pulsão produz uma inexistência da

restituição.

O incremento intenso da excitabilidade produz um desprazer, a dor e a

inquietude. Isso quer dizer que essa regulação seria um artifício que

funcionaria como uma prótese da natureza biológica, e não seria algo dado

naturalmente, necessitando de uma ação externa. É nesse sentido que Freud

fala que é necessário criar destinos para essa excitabilidade.

As construções desse engendramento surgem com os estudos sobre a

sexualidade polimorfa, isto é, sobre as pulsões parciais. Para isso, Freud,

aposta na organização da pulsão em fases como a oral (o canibalismo), a fase

anal (a primitiva), e a fase fálica (a genital). Isso quer dizer que, para que a

pulsão crie seus destinos, é necessário que ela registre essas fases,

engendrando seus próprios circuitos (FREUD, 1901-05/2003).

A força pulsional surge como exigência de trabalho, estado de urgência

da vida, visando a uma descarga de excitação ativa para estabelecer uma

quietude no organismo. Para que a pulsão tenha seus destinos, através da

pressão, da finalidade, do objeto e da fonte,3 é necessário que as pulsões

parciais se organizem, criando uma finalidade de satisfação, que nunca é

3 Freud propõe quatro determinantes para o funcionamento pulsional. Entende-se por

pressão sempre ativa (Drang) uma força, uma parcela de movimento, uma energia para que o psiquismo crie uma excitabilidade. Esse seria o fator quantitativo da pulsão. Freud já usava esse termo no “Projeto por uma psicologia científica”. A finalidade (Ziel), na teoria freudiana, é o alvo que a força da pulsão procura, satisfazendo-se de maneira parcial, existindo as inibições da pulsão. O objeto (Objekt) é o meio, a mediação pela qual a força pulsional é apaziguada, podendo ser o que existe de mais variável na pulsão, até mesmo o próprio corpo. As fixações são as ligações da pulsão com os objetos, a partir dos encontros contingenciais com os mesmo. E, por último, a fonte (Quelle) é o processo somático que ocorre em um órgão, ou parte dele, e tem o estímulo na vida mental, determinando a pulsão. Para essa construção da montagem da pulsão, Freud, no texto “O narcisismo” (FREUD, 1916/2003), faz uma analogia com os pseudópodos da ameba, partindo do corpo em direção ao objeto, criando os investimentos libidinais.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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alcançada plenamente.4 É exatamente a insatisfação que origina e mantém o

circuito pulsional em funcionamento.

Todo o processo de identificação, a rigor, está em acordo com a

adaptação da vida de um ponto de vista biológico. Os exemplos que Freud

concebe a pulsão vão se concentrar no sistema reflexo. Para Freud, haveria

uma relação do estímulo de ordem sensorial e a resposta, de ordem motora,

que seria uma ação muscular.

O organismo dispõe de órgãos para eliminar o excesso de estímulos e

promover essa relação por meio dessa descarga. O que começa a se afirmar é

que existem certos registros que não são regulados por automatismos. Se

determinados estímulos não são regulados automaticamente, é porque não

existem órgãos de auto-regulação, como se existisse uma falha na

homeostase. Nesse ponto, estamos no limite do corpo e do organismo. Para

Freud, existem determinadas excitações que não são determinadas pelo ponto

de vista fisiológico. O ponto nervral da discussão de Freud aponta para a

pulsão como um excesso que não pode ser absorvido pelo dispositivo do auto-

reflexo. Para Freud, a pulsão seria uma exigência de trabalho que não pode ser

auto-regulada. Isto é, a exigência de trabalho na pulsão deve ser transformada.

A pulsão é uma exigência de trabalho que leva em consideração a

termodinâmica. Freud utiliza a categoria trabalho porque estamos sujeitos a

uma forma específica de excitabilidade que não pode ser regulada a partir de

um automatismo. Nesse sentido, o psiquismo é obrigado a trabalhar por conta

da pulsão.

A característica da pulsão é de uma montagem, a partir da noção de

força, que se desdobra em descarga, quando há necessidade do objeto em

produzir prazer. Em torno da impossibilidade da descarga é que a força será

transformada no circuito da pulsão. Essa impossibilidade de descarga produz

os destinos da pulsão. As pulsões e seus destinos trazem as vicissitudes da

força pulsional. Freud procura demonstrar como, a partir da força, se pode 4 A solução freudiana contra esse impasse foi a construção de uma pulsão inibida quanto à

meta (Zielgehent), ou seja, a pulsão não se satisfaz plenamente (FREUD, 2003/1921).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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produzir um destino. Se o aparelho psíquico é um aparelho de intensidades

pulsionais, é também dependente da identificação.

Ao dizer, em seu Projeto por uma psicologia científica, que o

desamparo primordial de uma criança é a manifestação de todos os motivos

morais, Freud quer trazer para o campo da identificação a resposta do Outro

diante do choro de uma criança. Nesse sentido, todo o problema é a forma que

o Outro vai aplicar à ruptura dessa intensidade. Isto é, a maneira com que o

Outro acolhe a intensidade dessa descarga. Quando o bebê chora, a pessoa

que está na função de Outro quer dar uma resposta para o choro. Da demanda

infantil, surge o processo identificatório da criança, produzindo os destinos das

pulsões. Ao mesmo tempo, surge uma oferta dos objetos gerando um

apaziguamento de inquietação pulsional. O Outro funciona como captura,

produzindo uma experiência de satisfação juntamente com o alvo e o objeto

que é ofertado.

Freud estabelece destinos para as pulsões, abarcando as maneiras

com que as mesmas podem se satisfazer na cultura. A construção dos destinos

da pulsão é estabelecida em dois grupos: um primeiro, a reversão a seu

oposto, o retorno em direção ao próprio eu; o segundo, a sublimação e o

recalque. Este último é o responsável pela regulação homeostática do aparelho

psíquico, cuja gênese está vinculada à ação paterna.

Teríamos uma demanda que será transformada em oferta. A passagem

da atividade à passividade – uma força que é ativa e vai produzir descarga. A

atividade se torna possível por causa da satisfação que ela oferta. Esse

movimento, além de ser ativo e passivo, vai se ampliar no princípio do eu. No

aparelho psíquico, o outro é sempre um modelo de intensidade. Só a partir daí

é que há um movimento de interiorização e subjetivação. O movimento de

subjetivação é de apropriação de identidade que se deve ao Outro.

As pulsões e seus destinos são uma invenção que cria direções para a

pulsão, na medida em que essa força é constante. A criação desses destinos é

da ordem de um artifício, tendo uma dimensão de previsibilidade. Enquanto o

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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estímulo aponta para uma previsibilidade, o que irá caracterizar os destinos é

uma imprevisibilidade.

Assim, para o primeiro grupo, podemos perceber que as pulsões

possuem uma gramática, na qual se revela uma sintaxe: vozes ativas (chupar,

defecar, ver e escutar), passivas (ser chupado, defecado, visto e escutado), e

reflexivas (chupar-se, defecar-se, ver-se, escutar-se), juntamente aos pares

sadismo/masoquismo e voyeurismo/exibicionismo.

Karl Abraham (1970), em Teoria psicanalítica da libido,5 demonstra a

gramática das fases de desenvolvimento libidinal. Para esse discípulo de

Freud, tal gramática é tratada a partir do caráter pré-genital dos estágios da

libido.

Entre os alunos de Freud, Karl Abraham foi o que mais desenvolveu o

tema das pulsões parciais, sobretudo a pulsão oral, como também o tema da

psicologia da religião, aproximando a pulsão oral ao ato de devoração ao Pai.

Utilizando-se de um detalhado material clínico, Abraham verifica os hábitos

orais e narcísicos infantis de incorporação, fazendo uma distinção entre as

formas de atividades bucais nutricionais e eróticas, etapa de desenvolvimento

da libido nomeada por Freud como fase oral. Percebe-se que a relação da

criança com a mãe vai produzindo uma gramática de relação – nesse caso, a

oral – do sujeito com os objetos, que ele quer engolir para dentro de si,

obedecendo à economia auto-erótica dos prazeres do órgão. Com relação a

esse aspecto, é importante lembrar o próprio gesto de devorar o Pai totêmico,

que tem em seu bojo a identificação via oral com o Pai.

5 O conceito de Freud de Nachtraglichkeit (après coup) introduz uma idéia de tempo anterior,

uma ação deferida ou ação retardada, que se opõe à idéia cronológica do desenvolvimento da libido. Freud, no texto A dissolução do Complexo de Édipo (FREUD, 1924/2003), comenta que as manifestações do orgulho do menino em ter o pênis teria, na ameaça de castração, um efeito adiado, nachtraglich. Também se referindo à identificação ao Pai, no texto Totem e Tabu, Freud diz: “o que até agora fora interdito por sua existência real foi doravante proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de obediência adiada, Nachtraglichen” (FREUD, 1913/2003, p.171-172). Apesar de Abraham ter aplicado uma teoria do desenvolvimento da libido que não se apoiaria na noção de nachtraglich, proposta por Freud, a nosso ver, o uso de Abraham, neste capítulo, deve-se ao fato de ser aquele que melhor aplica a gramática da libido.

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Na segunda etapa do desenvolvimento da libido, segundo Abraham,

teríamos a fase anal, que se dividiria em destrutivo-repulsiva e dominante-

retentora. Essa fase determina as fixações do erotismo anal, nos casos de

melancolia e de neurose obsessiva. Ambos conteriam duas tendências

antagônicas de prazeres no campo dos impulsos sádicos, percebendo-se a

reversão ao seu oposto, do sadismo para o masoquismo.

A diferença entre as duas fases – oral e anal – está, respectivamente,

no incorporar – pôr para dentro – e no expulsar e reter – eliminar. Nessas

construções de Abraham (1970), fica evidente a gramática da libido no que se

refere à reversão ao seu oposto e o retorno ao próprio eu. Se Abraham

constrói, de maneira mais detalhada, as vozes passivas, ativas e reflexivas,

juntamente do par sadismo/masoquismo, Freud recupera o par

voyeurismo/exibicionismo na lógica da pulsão escópica, olhar/ser olhado, em

uma cena que possui três tempos.

Em um primeiro tempo da cena freudiana, ainda na fase auto-erótica,

existiria um prazer ativo voyeurista, com alguém olhando para um órgão

sexual, marcando o prazer do órgão em ser olhado por alguém. Nesse tempo,

o auto-erotismo começa a abandonar o corpo, surgindo uma prevalência do

narcisismo; segundo Freud, a “pulsão de olhar passiva mantém o objeto

narcísico” (FREUD, 1915/2003).

No segundo tempo da cena do olhar, o prazer do órgão inscreve um

exibicionismo fálico que passa a ser um objeto estranho. Depois dele, ocorre a

entrada de um terceiro que olha para o órgão ou um objeto, finalizando os três

tempos da cena escópica.

Nesse ponto, o par voyeurismo/exibicionismo configura-se, de maneira

definitiva, com a entrada de um terceiro – a figura do Pai. Como veremos mais

à frente, essa cena é paradigmática para o complexo de Édipo, visto que a

figura do Pai, o terceiro, é a condição para a gênese do sujeito na cultura,

juntamente com a formação do recalque. Freud resume essa dinâmica da

seguinte maneira:

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Alguém olhando para um órgão sexual

= um órgão sexual sendo olhado por alguém

Alguém olhando para um objeto estranho

= um objeto que é alguém ou parte de alguém sendo olhado por uma pessoa estranha

Com a entrada de um terceiro na cena escópica, fica claro que o

significado de uma representação para o pênis existe apenas quando a libido

se concentra na fase fálica. Nesse momento, ela desloca-se do auto-erotismo

para o narcisismo. A referência de Abraham a uma história do desenvolvimento

da libido leva à fase genital, sendo que essa fase culmina no amor genital-

fálico:

No nível da organização fálica da libido, é evidente que o último grande passo em seu desenvolvimento ainda não foi dado. Não o será até que atinja o nível mais alto da libido – o único que deveria ser chamado de nível genital. Dessa maneira, vemos que a obtenção do nível mais alto da organização da libido vai lado a lado com o passo final da evolução do amor objetal (ABRAHAM, 1970, p. 153).

Para o autor, na fase genital, localiza-se a escolha objetal do sujeito,

com uma separação entre sujeito e objeto. É nessa fase, ligada ao complexo

de Édipo e à castração, em alguns momentos da teoria, que estará o

parâmetro para Freud propor a diferença entre os sexos. O processo migratório

da libido se aproxima à identificação justapondo o complexo de Édipo à noção

de castração.

Esse desenvolvimento começa no estágio oral da libido, da sucção ou

indiferenciação auto-erótica, passa para o estágio oral-canibal, seguindo para o

estágio anal e, por último, o genital-fálico, no qual a criança constrói uma

diferença sexual a partir da entrada de um terceiro. A teoria dos estádios oral,

anal e genital não pode articular-se facilmente com a descoberta dos desejos

edipianos. Para trabalharmos as conseqüências da entrada desse estranho,

devemos articular o segundo grupo dos destinos da pulsão – o da sublimação e

do recalque, mais precisamente, este último (Verdrängung).

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Aquém da sublimação, está a estrutura polimorfa da pulsão sexual, que

cria o caráter parcial dos primeiros objetos de satisfação. Nesse momento, as

pulsões ainda padecem de alvo para uma satisfação do objeto, por serem auto-

eróticas; o que está em jogo são os prazeres específicos dos órgãos, momento

no qual cada zona erógena segue sua forma particular de satisfação. O amor

de objeto só será possível quando as moções pulsionais forem sublimadas pela

cultura na fase fálica. Nesse sentido, a sublimação demanda um

funcionamento do circuito da pulsão a partir da cultura, apenas quando os

objetos de satisfação são deslocados para objetos na cultura é que existe a

ação da sublimação.

Também com a sublimação, encontramos as expressões da cultura e a

estética dos artistas, enquanto, no recalque, estaria toda a organização

sintomática do sujeito neurótico. A importância de trabalhar o recalque deve-se

ao desejo de morte do filho para com o Pai. A dependência do filho com o Pai

será a referência de Freud para formular o complexo de Édipo. A fórmula

complexo de Édipo surge no texto de Freud Um tipo especial de escolha de

objeto feita pelos homens (1910/2003). Para o psicanalista, na fase fálica,

teríamos, então, o sentimento de ambivalência erotizado a partir dos afetos de

amor e ódio.

É exatamente na fase fálica que ocorre a justaposição desse estágio

com o complexo de Édipo. Cabe, neste momento do texto, demonstrar as

relações construídas em torno do Pai a partir do filho. A partir dessa

construção, procura-se afirmar o caráter teológico de tal relação, instituindo o

filho entre o amor e o ódio. Assim, como pretendo demonstrar neste capítulo,

psicanálise e religião cristã teriam em comum o pacto entre a dimensão etérea

da alma e do corpo exacerbado pelo vínculo do amor ao Pai.

Para Freud, as resistências do percurso da pulsão que impedem a

satisfação se devem ao fato de ela estar em estado de recalque. A condição

para o recalque é o desprazer no lugar do prazer, estabelecendo um paradoxo

no que concerne aos destinos da pulsão.

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Nesse caso, para a metapsicologia freudiana, é necessário que haja

condições específicas para que a força que causa o desprazer se torne ainda

mais poderosa do que aquela que produz a satisfação pulsional do prazer.6 A

diferença em relação aos outros destinos da pulsão é que o prazer foi inibido

pela ação do recalque e desviado de seu fim pelo desprazer.7 A força que

causaria um desprazer seria a ação de repelir do consciente a representação

do recalque e mantê-lo afastado dele.

Com relação a esse fenômeno, Freud (1915/2003) recupera duas

variações de recalque: o recalque original e o recalque propriamente dito. O

primeiro cumpre a função de fixação, criando um enlaçamento da pulsão com

um objeto para se satisfazer. Essa fixação dá-se a partir da negação da

entrada de um representante psíquico. O recalque original determina um sujeito

dividido, para o qual representações inconscientes não teriam acesso ao

sistema pré-consciente, instituindo o impossível de uma tradução do

inconsciente.

Temos, então, fundamentos para supor um recalque originário, uma primeira fase do recalque, que consiste em que o representante psíquico (da representação) da pulsão é privado de admissão no consciente. Com isso se dá uma fixação, o referido representante fica imutável e a pulsão permanece ligada a ele (FREUD, 1915/2003, p. 143).8

Por outro lado, posterior à primeira ação, essa variação do recalque

afeta os derivados mentais, sendo posterior à primeira ação. O recalque

propriamente dito é aquele que cria as cadeias associativas de pensamentos.

6 A questão sobre o masoquismo será longamente trabalhada no terceiro capítulo da tese. 7 No recalque está a base para a construção do objeto de satisfação do sujeito. Com relação

à gênese do objeto, este carrega algo similar ao recalque. Em Pulsões e seus destinos, Freud (1915/2003) demonstra que a gênese do objeto de satisfação, para criar seus destinos, se dá como conseqüência do ódio, pois o “objeto nasce do ódio” (FREUD, 1915/2003, p. 134). Tal trabalho sobre a agressividade será elaborado no segundo capítulo, a partir da noção de imaginário e simbólico presente na teoria lacaniana. As questões sobre o masoquismo no corpo, que seria conseqüência, a nosso ver, do objeto que nasce do ódio, serão trabalhadas, a partir da noção do masoquismo original (FREUD, 1915/2003, p. 141), no terceiro capítulo.

8 Essa falta de representação no inconsciente, como pretendemos desenvolver no terceiro capítulo, designa um componente quantitativo da pulsão: o afeto.

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Nessa segunda variação, existe uma representação recalcada que provoca a

significação.

É com o fenômeno da aparição do sintoma que se indica que o

recalque não foi bem sucedido em sua montagem. Conforme o tipo de neurose,

o mecanismo básico do recalque irá se articular a outros mecanismos

(condensação e deslocamento) e contra-investir representações diferentes.

Freud debruça-se sobre o caso clínico de uma criança que apresenta um

sintoma de fobia de lobos. Tal sintoma, segundo o autor, surge como um

retorno do recalcado, devido a uma falha do recalque. A fobia, a priori, deveria

ser dirigida a uma agressividade inconsciente ao Pai, mas acaba por se

manifestar como sintoma fóbico. Do que trata essa agressividade ao Pai que se

apresentou como fobia de lobos?

No texto intitulado A organização genital infantil (FREUD, 1923/2003),

está a referência à integração de uma fase fálica como corolário da função

atribuída à castração e à concepção de recalque. Sendo assim, a partir desse

texto, podemos perceber a relação entre agressividade e Pai. A castração é um

dispositivo que tem como perspectiva a organização genital e as construções

edipianas a partir do recalque. Aqui, podemos notar que, sem qualquer

desacordo, Freud dá continuidade à elaboração teórica da primazia do falo a

partir da diferença sexual. Na investigação das teorias sexuais infantis, afirma a

universalidade do pênis como o único órgão sexual existente. Essa afirmação,

que surge de suas observações empíricas, leva-o a concluir que o pênis seria a

referência para a diferenciação entre os sexos.

Todos os seres humanos teriam pênis, tanto os meninos quanto as

meninas, que teriam o clitóris como um pênis menor.9 Desse modo, o falo, na

9 Nesse ponto, é reveladora a dúvida do pequeno Hans – abordada mais adiante –, que

encontrava o pênis par tout, até mesmo com sua irmã mais nova, dizendo que o pênis iria crescer. Constata-se que, nesse momento, o pênis era, para ele, um atributo universal. A organização da libido a partir do falo criaria a realidade pulsional do sujeito diante de uma forma de satisfação, podendo se subjetivar através da angústia de castração, no sujeito masculino, e do penisneid, no sujeito feminino. Cada saída, a partir da primazia do falo, é uma construção subjetiva para a diferença sexual, colocando cada posicionamento sexual diante de uma maneira específica de sexuação frente à primazia do falo. Tal organização

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organização sexual do masculino e do feminino, cria uma realidade sexual para

o sujeito, um saber diante da castração – ter o falo ou desejar o falo –,10

surgindo uma ligação específica de satisfação do Outro social.

Assim, para que haja a “dissolução do complexo de Édipo”, nos

meninos, é primeiramente necessário que eles pensem que o pênis, o phallus,

existe também nas meninas, e vai crescer, para que, em seguida, concluam

que o pênis, o phallus, das meninas foi retirado. A idéia de que seu próprio

pênis possa ser perdido, assim como teria acontecido às meninas, faz com que

os meninos se deparem com a ameaça de castração. Quando assume as

conseqüências dessa ameaça, separa-se da mãe e começa a se dirigir em

direção ao Pai.

Em Algumas conseqüências psíquicas da distinção anatômica entre os

sexos, Freud (1924/2003) comenta que a castração é o modo pelo qual o

sujeito se posiciona diante do outro sexo, um modo de referência para o

feminino e para o masculino: a castração que foi executada, no caso da

mulher, e a castração que foi ameaçada, no caso do homem. Enquanto, nos

meninos, o complexo de Édipo é destruído pelo complexo de castração, nas

meninas, é a partir daí que ele se faz possível e é introduzido.

Depois dessa abordagem inicial das fases de desenvolvimento da

libido até o phallus freudiano, pretende-se desenvolver, aqui, as identificações

edipianas até o recalque que se estabelece com o surgimento do desejo de

morte do Pai. Em um segundo momento, recuperaremos as etapas de

desenvolvimento da libido até a fase fálica.

No texto Introdução ao narcisismo, Freud (1914/2003) aponta para dois

tipos de escolha de objeto, duas formas em que o ser humano escolhe seu

objeto de amor: escolha narcisista – escolha do objeto amado à imagem do

deve-se à instauração do falo (phallus), existindo tanto para o feminino como para o masculino (FREUD, 1923/2003).

10 A primazia do falo é uma idéia de grande valor para se pensar a ausência do feminino como representação inconsciente. No entanto, como não pretendemos desenvolver a questão do feminino neste trabalho, partimos apenas da identificação do menino.

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próprio sujeito –, e escolha anaclítica – apoiada nos objetos encarregados de

cumprir sua função de autoconservação. Em um primeiro momento, o ser

humano apóia-se na mãe para que haja uma origem da sexualidade, essa

gênese de uma teoria sexual está vinculada à figura materna que traz, em

seguida, a do Pai.

Verifica-se que a mãe, na cena de A dissolução do complexo de Édipo,

instala-se como o primeiro objeto sexual, enquanto o Pai intervém como o

agente de castração. Essa concepção freudiana da castração é a origem da

ambivalência. Partindo da fase fálica, Freud observa que o interesse do menino

por seu pênis se manifesta a partir da manipulação do órgão, depois que ele

passa a interpretar o Pai como ameaça de amputação do mesmo. Esse fato é

constatado porque, em um primeiro momento, ele não se importa com o fato de

ter o pênis, mas quando olha os genitais femininos, percebe que pode perdê-lo.

Daí se observa que qualquer escolha que o menino faça equivale à perda do

pênis, ou seja, à castração como castigo: a satisfação amorosa no campo do

Édipo deve custar-lhe o pênis (FREUD, 1924/2003). O menino encontra-se,

portanto, em um dilema, pois a satisfação de seu desejo acarreta a ameaça de

perda do pênis. Pode, por isso, tanto renunciar ao objeto materno como

preservar seu desejo de incesto.

A partir desse ponto, podemos afirmar que o complexo de Édipo teria

como fundamento a ameaça de castração. A psicanálise demonstra que a

dissolução do complexo de Édipo é ocasionada por essa ameaça: “o

significado do complexo de castração só pode ser corretamente apreciado se

sua origem na fase da primazia do falo for também apreciado” (FREUD,

1924/2003, p. 185).

Logo, a partir do temor à castração, o menino identifica-se com o Pai

pela introjeção da imago paterna (ego ideal); no ego, dá-se o recalque do

desejo incestuoso (o desejo de morte do Pai), aproximando o complexo de

Édipo da castração. Se a criança se volta em direção ao Pai – ou à pessoa que

o sustenta –, é porque ela se identifica com o olhar paterno.

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A rivalidade com o Pai seria a subjetivação inconsciente do desejo de

matá-lo, um desejo de morte do Pai, conseqüência da tentativa da criança de

evitar a castração. Visto que esse desejo de morte não se realiza, torna-se

inconsciente. Como não existe uma representação para a morte, o Pai,

afastado, retornaria para castigar o filho em ato. O gesto de evitar a castração

do filho provocaria o sentimento de morte como resultado da morte imposta ao

Pai, o que vem evocar as vicissitudes da vida sexual da criança como condição

para o encerramento do complexo de Édipo.

Procede que, no nascimento, o indivíduo esteja inteiramente destinado à morte, e que, talvez, sua disposição orgânica já possa conter a indicação daquilo que deve morrer. Não obstante, passou a ser interessante acompanhar como esse programa inato é executado e de que maneira nocividades acidentais exploram sua disposição (FREUD, 1924/2003. p. 185).

Diferentemente da mulher, que constrói uma saída feminina para esse

impasse, o rechaço da feminilidade pelo menino é a negação da autoridade, e

reconhecê-la é colocar-se na posição feminina; em troca, a agressividade ao

Pai surge como superego, como desejo de morte do Pai, reforçando a hipótese

freudiana de que o superego é herdeiro do complexo de Édipo, a partir desse

conflito ambivalente. Nesse momento, a castração é, portanto, idealizada com

a morte do Pai, e o ponto que a criança evoca é a representação do Pai

idealizado, uma vez que a satisfação amorosa deve custar o próprio pênis

(FREUD, 1924/2003, p. 184).

Esse raciocínio leva à justaposição do Pai idealizado como desejo de

morte do Pai, trabalhada por Freud, no texto Introdução ao narcisismo

(FREUD, 1914/2003) como ego ideal. Examinando os destinos do narcisismo,

abandonado devido à evolução da libido na fase genital, Freud nota que uma

parte dessa libido não é investida diretamente nos objetos, mas se encontra

como substituto da perfeição narcísica. A idealização do Pai é condição para

que a libido seja investida para além do próprio eu, eu Ideal.

O narcisismo aparece deslocado sobre este novo ego ideal, como o ideal adornado de todas as perfeições... (o sujeito) não

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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quer renunciar à perfeição de sua infância, e, como não pode mantê-la frente aos ensinamentos recebidos durante seu desenvolvimento e frente ao despertar de seu próprio julgamento, procura conquistá-la de novo diante da forma de seu ego ideal. Aquilo que projeta ante si mesmo como seu ideal é a substituição do narcisismo perdido de sua infância, na qual ele mesmo era seu próprio ideal (FREUD, 1914/2003, p. 91).

O ideal do ego, na exterioridade do sujeito, dá-se a partir da figura do

Pai, sobre quem foi projetado o essencial do narcisismo perdido na infância. A

idealização paterna, como também a renúncia ao narcisismo do Pai, devido a

uma limitação, faz surgir o Pai a partir do Pai idealizado. O declínio do

complexo de Édipo é o luto do Pai, deixando como seqüela uma identificação

com o Pai.

Após terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso... O Pai morto tornou-se mais forte que o Pai vivo (FREUD, 1913/2003, p. 145).

É esse o momento em que a ameaça de castração se revela na

construção em que o Pai real é dissociado da representação do Pai idealizado,

possibilitando a identificação secundária com ele. A aceitação da delimitação

de seu desejo e da inacessibilidade da mãe – aceitação que não “cai do céu”,

mas pelo interesse narcísico como co-produtor das pulsões sexuais e de

autoconservação – fazem com que a criança efetue um triplo movimento:

abandona o esquema da onipotência como único, reconhece a diferença entre

o ideal e o real, e identifica este último como suporte da onipotência. Dessa

maneira, o ideal de eu situa-se no Pai, e o amor por ele determina a

identificação secundária, mediante a qual este Pai será assassinado.

No texto Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico,

Freud (1911/2003) demonstra que a satisfação da pulsão, no campo da cultura,

é conseqüência da categoria do Pai e da sublimação que ele implica: a

castração do sujeito é a sua entrada na cultura.

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Assim, podemos, por exemplo, tentar solucionar o seguinte sonho. Um homem que cuidou do Pai durante longa e dolorosa doença terminal conta que nos meses seguintes à morte deste sonhou repetidamente que o Pai estava de novo vivo e falava com ele como de costume. No entanto, sentia com extrema dor que o Pai já havia falecido, sem ter se dado conta da própria morte. Nenhum outro caminho leva à compreensão do sonho – que soaria sem sentido – senão ao acréscimo, após as palavras “que o Pai já havia falecido”, do complemento conforme seu desejo, ou em conseqüência de seu desejo, e, ainda a estas últimas palavras, o acréscimo de que era ele, o sonhador, que desejara. Assim, a idéia onírica passa a ser: é uma lembrança dolorosa para ele o fato de, quando o Pai ainda vivia, ter tido de desejar a morte do Pai (como uma redenção), e de como teria sido terrível se o Pai tivesse suspeitado disso. Trata-se aqui do conhecido caso de auto-recriminação após a perda de uma pessoa amada, e neste exemplo a recriminação remete ao significado infantil do desejo da morte do Pai (FREUD, 1911/2003, p. 230).

Como Freud compreende essa construção? Esse sentimento efetua-se

na escolha anaclítica do objeto. O investimento libidinal segue os caminhos das

necessidades narcísicas e liga-se aos objetos que asseguram essas

necessidades (FREUD, 1914/2003). A mãe, que satisfaz a fome da criança,

torna-se seu primeiro objeto de amor; em seguida, essa escolha é substituída

pelo Pai, símbolo de proteção. No entanto, no nível do recalcado, o próprio Pai

constitui um perigo para a criança, devido ao seu relacionamento anterior com

a mãe. Nesse ponto, o sonho que Freud escolhe para demonstrar o

funcionamento do inconsciente é paradigmático, no que se refere ao desejo de

morte do Pai, que seria a condição para a identificação do infans com o Pai

como um ser finito, com a conseqüente entrada do princípio da realidade.

Logo, o apelo à questão do Pai entra em cena. O eu não pode

renunciar ao Pai nem reagir a ele com agressão. Deve amá-lo como autoridade

inatacável (escolha de objeto anaclítica) e, nessa posição de impasse, degrada

o Pai; em fantasia, identifica-se com o Pai degradado e a agressividade é

recalcada. Neste ponto, podemos compreender o fenômeno da ambivalência

da seguinte maneira: o conflito entre o amor ao Pai e o ódio a ele é encenado

internamente, mas invertido. A agressividade ao Pai retorna sob a forma de um

imperativo superegóico, implicando o sujeito em um paradoxo entre o amor

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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(ideal) e o ódio (recalque) em relação ao Pai, interpretado sob a forma de um

mal-estar.

Tendo isso como referência, pretende-se aproximar as funções de

amor e ódio em relação a esse Pai de Freud. Para que haja o sacrifício do filho,

é necessário que ele subjetive esse Pai com os afetos de amor e de ódio, o

que Freud chamou de ambivalência. Como vimos, toda a questão da

ambivalência, para Freud, concentra-se na organização fálica, na

representação do órgão fálico. O sacrifício do filho revela-se a partir da

ambigüidade que ele estabelece com a realidade assimilada do Pai. Agora, o

filho sacrifica seu corpo para que, da cultura, a partir do recalque, ele possa se

satisfazer. O Pai torna-se a condição do inconsciente, a partir do recalque, que

coloca em jogo a castração do filho.

A partir daí, surge a ambivalência. É por isso que a convergência do

amor e do ódio a uma mesma pessoa está nos rastros da vida afetiva, ligando

e desligando os seres humanos da vida social. Estando na origem de todas as

transformações da paixão em relação ao Pai, o retorno do recalcado jamais

cessa e condiciona essa relação, não havendo uma deslibidinação do mundo.

O sacrifício do filho realiza-se pela identificação ao Pai, realizada por amor a

ele. A criança começa a nomear seus afetos, e é essa a própria condição para

que haja a realidade psíquica (Realität).

É o que vemos nos casos das fobias infantis com animais. Para isso,

tomemos o mais conhecido dos casos de fobia: o pequeno Hans. O pequeno

Hans tem medo de sair nas ruas por temer ser mordido pelo cavalo. O cavalo

que morde é um substituto do Pai que castra, e aí a angústia da fobia é

angústia diante do objeto, da castração, nos diz Freud. O pai de Hans é

carente porque ele não consegue separar suficientemente Hans da mãe,

portanto, ele não funciona bem como agente da castração, mas funciona,

suficientemente, para desencadear a angústia e o recalque que causará a

fobia.

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A fobia é o sintoma que supre a falha paterna e que reforça o lugar do

Pai como agente da castração. O caso de Hans não tem nada de excepcional,

pois o pai, na realidade, está sempre em deficit em relação ao agente da

castração.

O pequeno Hans padecia de seu sintoma justamente quando a

diferença sexual se inscreve no seu inconsciente – seres inanimados não

teriam o pipi e seres animados teriam o pipi. Depois desse episódio, aparece a

dúvida de Hans sobre sua mãe: será que ela teria o pipi ou não o teria? Essa

dúvida sobre a presença ou ausência de pipi é ampliada aos cavalos. Segundo

Freud, esse deslocamento para os cavalos se deve a uma cena vivida por

Hans:

a primeira pessoa que serviu a Hans como um cavalo devia ter sido seu pai. Quando a repressão (recalque) começou e trouxe consigo uma revulsão de sentimentos, os cavalos que tinham sido associados com tanto prazer, foram necessariamente transformados em objetos de medo (FREUD, 1909/2003, p. 113-115).

Esse deslocamento do sintoma de Hans para os cavalos passa a ser

sua principal queixa, e, simultaneamente, o medo dos cavalos vai-se

“transmutando gradativamente em uma compulsão para olhá-los: ele (Hans)

dizia: Tenho que olhar para os cavalos e aí fico com medo” (FREUD,

1909/2003, p. 24).

A clínica da fobia é fundamental para compreendermos o fenômeno da

agressividade ao Pai a partir das formações do inconsciente, e incluindo o

deslocamento dessa agressividade para o objeto fóbico. Podemos também

perceber, de maneira diferente, o fenômeno da ambivalência no sujeito

obsessivo.

Nesse ponto, também a clínica da neurose obsessiva é reveladora no

que concerne ao sentimento de ambivalência. A exemplo disso, teríamos a

sintomatologia do Homem dos ratos, que gira em torno do medo de alguma

coisa acontecer ao Pai, já morto, e à sua amada. No que se refere ao Pai,

Freud nota uma relação de ambivalência quando o homem dos ratos era

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indagado sobre a masturbação: o amor ao Pai era substituído por um ódio que

revelava o castigo do Pai face aos desejos sexuais do filho.

Esses efeitos da ambivalência são retratados em Sobre a tendência de

depreciação do objeto de amor, texto sobre a psicologia do amor, no qual

Freud utiliza pela primeira vez a fórmula “complexo de Édipo”, relatando a

divisão das pulsões sexuais do homem em duas correntes que se subjetivam

de maneira ambivalente. Se, por um lado, a mulher estaria para o homem

como a amada, por outro lado, a prostituta seria escolhida pelo homem para a

corrente de ódio.

Na mesma linha, Freud também introduz, pela primeira vez nessa

problemática da vida amorosa, o complexo de castração. Nele, está o princípio

da degradação da mulher por parte do homem – que não figurava em absoluto

na sua segunda contribuição, O tabu da virgindade –, e também o princípio da

hostilidade da mulher com o homem. Desde essa perspectiva freudiana,

poderíamos dizer que a subjetivação masculina com a mulher corresponde a

uma gramática da vida amorosa derivada do complexo de Édipo.

Levando em consideração essa subjetivação sobre a ambivalência,

podemos também vislumbrar um das faces dessa ambivalência, se levarmos

em consideração a leitura que a psicanálise faz sobre a religião. A religião

condena como pecaminoso os impulsos perversos e, ao mesmo tempo, se

apóia no sagrado para que a repressão se efetue.

Podemos localizar, nesse ponto, a convergência mencionada entre a

religião e a neurose obsessiva. Faz-se necessário proceder à investigação da

ação paterna a partir das reflexões sobre o uso da religião pela psicanálise, o

que irá permitir uma sistematização sobre a gênese do sujeito.11

O encontro da psicanálise com a religião autoriza Freud a demonstrar a

ação paterna na formação do aparelho psíquico (FREUD, 1913/2003). Se a

11 Freud aproxima a filogênese à ontogênese, tendo como eixo central a figura do Pai. Desse

modo, há uma reflexão entre a gênese psíquica e a cultura monoteísta judaico-cristã. O Deus-Pai da religião judaico-cristã se desdobra no Pai do indivíduo.

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neurose obsessiva é a caricatura da religião, isso se deve, entre outros

aspectos, ao fato de ambas terem como pilar o Pai.

A psicanálise tem se aproximado da religião desde suas primeiras

construções teóricas. Nos primeiros textos escritos por Freud, é possível

assinalar referências ao tema da religião. A incursão freudiana no tema da

psicologia da religião foi registrada nos artigos O tratamento da alma12

(FREUD, 1890/2003) e Atos obsessivos e práticas religiosas (FREUD,

1907/2003). Enquanto, no primeiro artigo, Freud trata da religião para aludir às

conseqüências das crenças no psiquismo do sujeito, no artigo de 1907, está o

primeiro esboço para Totem e tabu, escrito cinco anos depois, expondo o

encontro de duas referências de trabalho: as práticas da religião e as dos

rituais da neurose obsessiva. Assim, é possível perceber que Freud aproxima a

neurose obsessiva das práticas religiosas, fazendo uma comparação entre os

rituais religiosos e os cerimoniais obsessivos.

Nesse segundo artigo, os cerimoniais obsessivos são apresentados

como constituídos de pequenos atos ou restrições de ações que devem ser

executados em uma ordem. Aparentemente, não têm sentido, mas não se pode

renunciar a eles, sob pena de sucumbir a uma grande angústia. Freud comenta

que parece haver uma “lei tácita” que obriga o paciente a realizar o ritual,

criando a impressão de um “ato sagrado” (FREUD, 1907/2003, p. 102) que não

pode deixar de ser realizado. Em seguida, demonstra que os atos obsessivos

são movidos por um sentimento de culpa, cuja origem é desconhecida para

aquele que os pratica, denominando-o “sentimento de culpa inconsciente”

(FREUD, 1907/2003, p. 104). O obsessivo é tomado por um sentimento de

expectativa de punição e, nesse sentido, o cerimonial surge como ato

defensivo, medida protetora contra a mesma. A convicção de culpabilidade dos

indivíduos religiosos também faz com que estes recorram às orações e

12 Optamos, na tradução desse título, pela utilização do termo “alma”, que é mais próximo do

alemão Seele. Logo no início do texto, Freud esclarece que psique é uma palavra grega que se traduz por alma, sendo que o tratamento psíquico remeteria, então, ao tratamento da alma, notando que, originariamente, o tratamento da alma (von Seele aus) aplicar-se-ia ao tratamento de transtornos psíquicos ou corporais.

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invocações, interpretadas como medidas protetoras e defensivas para

minimizar o sentimento de culpa (FREUD, 1907/2003, p. 103). Nesse sentido,

podemos reconhecer, nos atos obsessivos, a mesma montagem presente nos

cerimoniais religiosos.

A esse respeito, fazemos referência às analogias freudianas: no que

concernem aos rituais religiosos e aos atos obsessivos, ambos são carregados

de significações que funcionam como uma maneira de apaziguamento de algo

ainda maior, tanto para o religioso como para o obsessivo. Em Totem e tabu,

encontra-se o seguinte comentário de Freud:

Por um lado, as neuroses apresentam analogias marcantes e profundas com as grandes produções sociais da arte, da religião e da filosofia; por outro, aparecem como deformações dessas produções. Poder-se-ia quase dizer que uma histérica é uma obra de arte deformada, uma neurose obsessiva, uma religião deformada, e uma mania paranóica, um sistema filosófico deformado (FREUD, 1913/2003, p. 78).

O paralelismo entre a vida religiosa e a neurose obsessiva pode ser

facilmente confirmado em Freud, também quando ele afirma que a “neurose

obsessiva é a caricatura da religião” (FREUD, 1913/2003, p. 78), levando em

consideração a questão do sentimento de culpa em ambas. As aproximações

entre neurose obsessiva e religião convergem para a figura do Pai, uma vez

que este tem um lugar capital na gênese do sentimento de culpa. Pretendemos

demonstrar, neste texto, que Freud delega à figura do Pai um lugar épico na

gênese do sujeito, propondo que a neurose é uma religião privada.

Essa aproximação não é aleatória. Partindo do paradigma freudiano de

que a neurose obsessiva é uma caricatura da religião, queremos aproximar o

Pai da neurose ao Pai da religião.

Assim, a neurose obsessiva ajuda a compreender as práticas

religiosas, sobretudo se levarmos em conta a figura do Pai como agente na

gênese do sentimento de culpa. A manifestação desse Pai se processa a partir

do desejo do filho de matar o Pai, o que podemos verificar, nos textos

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metapsicológicos freudianos, bem como em “A dissolução do complexo de

Édipo” e, ainda, nos textos sobre a psicologia do amor.

Desse modo, esclarece-se o caminho freudiano da identificação ao Pai,

caminho que parte do complexo de Édipo e da castração para a diferenciação

sexual. As capacidades de ligação e de simbolização deixam abertas as

possibilidades de integração via amor ao Pai. As diretrizes para desenvolver as

idéias da presente tese, neste momento, apontam para abordagem do Pai

ambivalente. Pretendemos demonstrar que o pai, em Freud, é o da

ambivalência de amor e ódio, juntamente com a experiência da comunhão.

Para trabalhar tal hipótese, pretende-se recuperar o texto de 1913, Totem e

tabu, apresentando a gênese de um Pai amor.

Totem e tabu: um mito sobre a ambivalência do Pai

O texto freudiano Totem e tabu (FREUD, 1913/2003) traz à tona o lugar

do Pai. Uma vez que trata da narrativa de uma gênese do Pai, Freud constrói a

gênese do Pai assassinado: a culpa da humanidade procede de uma tragédia,

um parricídio.

O ato de devoração do Pai é a própria assimilação oral da primeira

identificação, e tem como conseqüência o pacto civilizatório. Isso quer dizer

que nenhum herdeiro poderá usufruir de todas as mulheres como o Pai outrora

o fizera. A partir da relação do sentimento de culpa com o assassinato do Pai,

podemos pensar as conseqüências dessa conjunção, que é a organização

psíquica.

Na tradição cristã, pensamos numa doutrina que propõe um universo

criado por um ser semelhante ao homem e, contudo, em todos os aspectos,

magnificado com o poder, sabedoria e paixões ilimitados. Freud (1933/2003) o

descreve como um “super-homem idealizado”, a quem aqueles que crêem

chamam de Pai. Para a psicanálise, esse Deus realmente se assemelha a um

pai todo-poderoso, como concebido pela criança.

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Totem e tabu traz à tona o sentimento de culpabilidade acarretado pela

identificação a esse Pai. As implicações freudianas sobre esse mito são as

bases teóricas que levam o autor a construir um Pai que teria como substrato

teórico a passagem bíblica do sacrifício. Essa questão será importante, uma

vez que pretendemos que se quer demonstrar aqui que os caminhos

escolhidos pela neurose e pela religião se convergem na identificação com um

Pai. A cena do sacrifício de Cristo seria, a nosso ver, a que melhor representa

esse caminho. O texto Totem e tabu teria, em seu cerne, uma repetição da

cena bíblica. A morte de Cristo traz em seu âmago a veiculação da mensagem

do Pai para os seus filhos.

Uma parte deste recalque do pulsional é operada pelas religiões; que induzem os indivíduos a sacrificar à divindade seu prazer pulsional. “A vingança é domínio meu”, diz o senhor. No desenvolvimento das religiões antigas, acredita-se que muito daquilo a que o homem havia renunciado como “ímpio” foi cedido a Deus e ainda era permitido em seu nome, de forma que a cessão à divindade foi o caminho pelo qual o ser humano se liberou do império das pulsões malignas, prejudiciais à sociedade. Por isso, de modo algum se deve ao acaso que aos antigos Deuses se articulassem todas as qualidades humanas – com os conflitos que delas se seguem – em uma medida ilimitada, nem é uma contradição que apesar disto não fosse permitido justificar a própria impiedade a partir do exemplo divino (FREUD, 1907/2003, p. 109).

Desse modo, fica claro que Freud assinala as primeiras marcas do

lugar de um Deus-Pai em sua obra, já desde 1907, ao estabelecer que a

renúncia às pulsões é uma condição que impõe o desenvolvimento da cultura,

definindo, então, a moral juntamente com a religião. A ética do discurso

religioso demonstra que o sacrifício implica uma oferta do corpo a um Outro.

Toda a ética que formula Freud quanto à renúncia pulsional tem a ver com

esse sacrifício. Essa afirmação ganha força quando recuperamos o artigo A

moral sexual civilizada, de 1908. Nesse artigo, Freud observa que a

experiência nociva das civilizações se reduz à repressão da vida sexual.

No ensaio inicial sobre o mal-estar na cultura – “A moral sexual

‘civilizada’ e a doença nervosa dos tempos modernos” –, o discurso freudiano

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indicou como foram as repressões ao livre movimento e circulação das pulsões

sexuais, realizadas em diferentes momentos da história do Ocidente, e que se

efetuaram pelas instituições sociais, que seriam as condições de possibilidade

das “doenças nervosas”. Como esse processo teria se desenvolvido na

modernidade, poderia, assim, ser interpretado pelo incremento das

perturbações psíquicas nesse contexto histórico. Seria esta, enfim, a

conseqüência maior da moral monogâmica.

A moral é a marca da civilização. A distribuição entre o bem e o mal

que faz essa moralidade civilizatória é a renúncia da satisfação sexual. A

renúncia pulsional se estabelece paralelamente à civilização, e a religião passa

a reforçar o processo da repressão. Assim, a moral seria responsável por um

aumento do número e da gravidade das doenças nervosas modernas, devido

principalmente à redução das possibilidades de satisfação. Apenas indico o

tema, sem aprofundá-lo, para marcar o paradoxo apresentado por Freud: cada

renúncia ao pulsional se torna, agora, uma fonte dinâmica da consciência

moral. Cada nova renúncia aumenta a sua severidade e intolerância

(1929/2003, p. 158-171). Ou seja, quanto mais se renuncia ao gozo, mais

severo se torna o supereu. A renúncia pulsional cria a consciência moral que,

depois, exige cada vez mais renúncias. Renuncia-se à pulsão para satisfazer à

consciência moral, e, a cada vez, o supereu exige mais renúncias.

A moral sexual é caracterizada por uma coerção dos impulsos sexuais.

Após discutir a causa biológica das síndromes, juntamente com o higienismo,

com Krafftin Ebbing e Binswanger, autores já renomados à época, Freud, na

Moral sexual civilizada, demonstra que toda expressão da cultura se apóia nas

proibições da pulsão. A renúncia pulsional nos possibilita ter laços emocionais,

permitindo a Freud demonstrar a virada da sociedade agrícola para a

sociedade moderna, período em que escreve esse texto.

Os efeitos dessa coerção se voltam contra os seres humanos. Freud

comenta essa construção da seguinte maneira: nossa cultura repousa

integralmente sobre a coerção das pulsões – cada um é convocado a renunciar

uma parcela da pulsão agressiva e libidinal, em favor da vida em grupo. Nesse

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texto, que precede o Totem e tabu, já podemos perceber as preocupações de

Freud com relação à organização da civilização e as conseqüências disso no

psiquismo do sujeito moderno. Parece que Freud já começava a vislumbrar a

construção de um mito.

Assim, podemos observar que não é em vão que as reflexões teóricas

desenvolvidas desde Totem e tabu (FREUD, 1913/2003) até Moisés e o

monoteísmo (FREUD, 1929/2003) criam uma indagação: “o que é um Pai?”. O

trabalho de Freud foi o de inventar o mito do assassinato do Pai da horda

primitiva para, assim, expressar a lei sobre a interdição do incesto e a proibição

dos desejos do filho em relação à mãe, juntamente com o aparecimento do

juízo moral. Freud procura demonstrar o substrato edipiano presente nessa

interdição. O mito freudiano indica que a culpabilidade, ou a “culpa humana

universal”, é, como podemos perceber, conseqüência do desejo do filho de

destruir o Pai, oriundo do sentimento de ambivalência nutrido na fase fálica

(FREUD, 1913/2003).13 A culpa a que Freud faz referência é fundada sobre um

Pai que traz implicações para a construção do inconsciente edipiano.

Totem e tabu concentra todo um período de investigação em torno da

noção do Pai, retomando aspectos da ambivalência e dos tabus, projeção e

narcisismo (FREUD, 1913/2003, p. 75), o sentido paterno do animal totêmico, o

significado dos totens e dos tabus nas civilizações “bárbaras”.

Freud, no capítulo “Animismo, magia e onipotência de pensamento”,

demonstra que os povos primitivos compreendem a vida a partir da prática do

animismo, da magia e da onipotência de pensamento. A interpretação da

realidade feita por esses povos a partir do animismo consiste em atribuir vida

aos objetos inanimados. Para atingir as convicções anímicas, esses povos

lançam-se às feitiçarias. A magia, para Freud, seria uma maneira de colocar

em prática a vontade animista dos povos primitivos. O animismo não é um fato

em si, mas a própria explicação de todo o universo.

13 O sentimento de ambivalência, nessa fase, é proposto por Freud (1913/2003) no texto

Totem e tabu. Haveria uma ambivalência de amor e de ódio das comunidades primitivas e do sujeito obsessivo diante do tabu e do Pai, respectivamente.

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A partir desse aspecto, Freud propõe pensar o animismo como pré-

existente à religião. A religião propriamente dita surge quando um grupo quebra

um determinado tabu. Apenas depois que a tribo quebra o tabu é que se institui

o totem como um ente sagrado que não se pode tocar, possuindo o significado

da religião. Ao longo do tempo, o totem se metamorfoseia, até incorporar traços

humanos. A marca do humano no totem tem sua máxima representação na

religião monoteísta. O surgimento da religião se vincula ao fato de esta se

apoiar na figura do totem, que seria representado pelo Pai. É nesse contexto

que Lacan, em um dado momento de seu ensino, propõe a leitura do segundo

capítulo, “Animismo, magia e onipotência de pensamento”, e do terceiro

capítulo, “O retorno do totemismo na infância”, de Totem e tabu (FREUD,

1913/2003), como uma ontogênese. A partir do surgimento da religião,

podemos aproximar as recorrentes analogias freudianas da neurose com a

religião monoteísta.

Poderá você, segundo qualquer dos pontos de vista que lhe são conhecidos, explicar o fato de que a primeira forma pela qual a divindade protetora se revelou aos homens teve de ser a de um animal, que tenha havido uma proteção contra matar e comer esse animal, e que, não obstante, o costume solene tenha sido matá-lo e comê-lo comunalmente uma vez por ano? É exatamente isso que acontece no totemismo. E dificilmente tem propósito argumentar se o totemismo deve ser chamado de religião. Ele possui vinculações estreitas com as posteriores religiões de deuses. Os animais totêmicos tornam-se os animais sagrados dos deuses, e as mais antigas, mais fundamentais restrições morais – as proibições contra o assassinato e o incesto – originam-se do totemismo (FREUD, 1927/2003, p. 23).

Freud recupera o sentimento da religião decifrando o totemismo –

percebido como algo que antecede à religião propriamente dita. A partir do

totemismo, Freud pretende dar conta do tabu. É da religião do totem que deriva

o tabu – a lei.

As questões colocadas nesse texto têm como alvo o Pai – onipresente

–, e o resultado desses resgates míticos e/ou teológicos consiste em ancorar o

complexo de Édipo não apenas nas fantasias neuróticas, mas no ponto de

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origem da civilização monoteísta, fundando, assim, de modo mais amplo e

seguro, a afirmação de sua universalidade.14

Esse Pai, representação máxima da potência e do excesso, tinha sobre

os filhos, ao mesmo tempo, poder de vida e de morte. Um dia, os filhos,

unidos, rebelam-se e assassinam-no, instituindo, com o crime, a sociedade que

inaugura a civilização. A ação de se alimentar do Pai totêmico é o próprio

modelo de identificação. A sociedade consolida-se nesse ato de devoração,

surgindo a figura do Pai morto,15 representante dos ideais, valores, normas e

leis indispensáveis à civilização. O desejo inscreve-se no limite em que a lei

opera nos filhos desse Pai, implicando um corte pela cultura, que se desdobra

na satisfação exogâmica do desejo de cada filho.16

Freud estuda a sociedade totêmica dos aborígines australianos, em

que a norma fundamental do desejo é exogâmica. A proibição de relações

sexuais incestuosas teria como conseqüência a satisfação exogâmica. Para

que haja um funcionamento para os jogos sexuais, nessas tribos, há uma

subdivisão dos grupos e clãs: cada qual é identificado por um totem que

representa um animal, um vegetal ou um fenômeno natural de força divina. A

lei da exogamia dá a direção do desejo e os indivíduos da tribo, a partir da

proibição do incesto, não podem ter relações sexuais com pessoas do mesmo

clã totêmico, sendo obrigados a procurar outra forma de satisfação.17 Freud

recupera o conceito de tabu para demonstrar que as sociedades primitivas

14 É justamente no período de discussão sobre a dessexualização da libido e sobre a

presença de arquétipo no inconsciente, com Carl Jung, que Freud escreve o texto Totem e tabu.

15 A idéia de tomar como centro de Totem e tabu a noção de Pai morto é de Jacques Lacan, como pretendo desenvolver adiante.

16 Essa teoria totêmica parece ter chegado à perfeição, quando J. Frazer, naquele ano de 1910, publicou um compêndio considerável e definitivo que se baseia na seguinte observação: Totemismo e exogâmia. Baseando-se neste texto Freud achou possível responder à enigmática questão: o que é um pai?

17 A maioria das tribos australianas organiza-se de maneira a incidir em duas divisões conhecidas como classes matrimoniais ou “fratrias”, que são exogâmicas e abrangem certo número de clãs totêmicos. Cada uma dessas fratrias é dividida em subfratrias.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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eram submetidas a tabus que se fixam nos governantes (figura do Pai) e na

concepção de morte.

Essa norma exogâmica é a conseqüência do horror ao incesto nos

aborígines que, a partir da proibição, começam a criar instituições e costumes

que regulam as relações de desejo dos indivíduos com seus pares.

Se o mito de Totem e tabu refere-se à renúncia pulsional que a

civilização impõe ao sujeito, teríamos a contração da proibição como

conseqüência de um funcionamento para o desejo, instaurando para os filhos

do Pai uma sexualidade exogâmica. A sexualidade, como veremos, é gerada a

partir da união do desejo com a Lei, que tem como condição o modelo

edipiano. O humano nasce, portanto, da proibição originária do incesto, e é

exatamente desse conflito entre natureza e cultura que o mito edipiano do Pai

da horda primitiva almeja dar conta.

Para Freud, o assassinato é a realização de um ódio que transforma os

seres submissos em irmãos, e a morte do chefe da horda faz surgir uma culpa

pelo fato de se ter matado o Pai. O sentimento de culpa é, desse modo, o fardo

do assassinato do Pai, trazendo, paradoxalmente, como seu reverso, a

necessidade de um castigo proveniente do poder do Pai. O sacrifício, o pecado

e o parricídio surgem de maneira articulada no texto freudiano de 1913:

Um assassinato somente pode ser explicado pelo sacrifício de outra vida, o auto-sacrifício remete a uma culpa de sangue. E se esse sacrifício da própria vida produz a reconciliação com Deus-Pai, o crime assim expiado não pode ter sido outro senão o parricídio. (FREUD, 1913/2003, p. 155).

A partir desse assassinato, Freud estabelece a culpa da humanidade

como procedente de um crime contra o Pai, no ato de seu sacrifício. O pacto de

obediência resolve-se na medida em que nenhum descendente ocupará o lugar

do Pai morto, que usufrui de todas as mulheres. A conseqüência do

assassinato é uma dívida de obediência ao pacto. Essa indicação coloca-nos

em direção a uma dívida simbólica, o culto de uma obediência retrospectiva, na

medida em que o interdito do incesto é uma imposição do próprio Pai. Como

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conseqüência do assassinato do Pai primeiro, uma dívida é contraída com ele,

que é, então, sacralizado, tornando-se um Pai sagrado, no qual não se pode

tocar, cuja representação está vinculada, portanto, ao Pai. A sacralização do

Pai é uma tentativa de salvá-lo, porque ele, outrora, havia sido morto. A culpa é

a expressão dessa morte. O Pai surge do próprio sacrifício do filho, pela

cultura. Como tentativa de pacificar Deus-Pai pelo crime cometido contra ele, o

sacrifício mostra o laço de aliança e reciprocidade que une um grupo ou um

povo a uma divindade.

A partir da construção de Totem e tabu, pode-se ler que o pacto dos

cristãos com a figura de Deus-Pai é, segundo Freud, uma repetição do mito do

Pai primevo: A comunhão cristã absorveu um sacramento que é sem dúvida

muito mais antigo que o cristianismo (FREUD, 1913/2003, p. 51).

O ato de comungar revela a união com a figura de Deus-Pai, visto que

o corpo e o sangue de Cristo ilustram essa cena primeira do Pai totêmico.

Alimentar-se do corpo e do sangue de Cristo traz para a cena a própria

experiência totêmica: os filhos do Pai totêmico devoram-no para selar o pacto

entre o Pai e seus filhos, ato que se repete na comunhão. Nessa celebração

cristã, a união dos filhos com o Pai se manifesta no gesto de alimentar-se do

corpo e do sangue de Cristo. Nessa perspectiva, temos os irmãos devorando o

Pai para conquistar seu lugar de filhos: trata-se de um gesto de identificação a

partir do ato de se alimentar. O mito cristão revela que o sacrifício do filho

vincula a mensagem do próprio Deus-Pai aos cristãos, configurando um pacto

que se apóia na sacralização do Pai. A vinculação da mensagem de Deus-Pai,

a partir do sacrifício do filho, é o pacto cristão entre Pai e filho.

É a partir disso que, para Freud (1913/2003), o crime contra o Pai cria

os princípios estruturais da sociedade. A religião começa a existir com a morte

do Pai, juntamente com seus princípios morais. O “não matarás” (FREUD,

1913/2003) é, portanto, a construção da cultura. Freud não deixa de lembrar,

por várias vezes, esse sexto mandamento. Totem e tabu demonstra que o mito

do sacrifício do filho é o mito do pacto com Deus-Pai. Esse Pai odiado também

passa a ser admirado. A morte do Pai apazigua o ódio, persistindo somente

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uma expressão do remorso. Por esse ato memorável, teríamos a organização

social, a moral e a religião: a humanidade que nasce do sangue do assassinato

do Pai, em um banquete totêmico.

Um acontecimento como a eliminação do Pai primevo pelo grupo de filhos deve inevitavelmente ter deixado traços inerradicáveis na história da humanidade, e, quanto menos ele próprio tenha sido relembrado, mais numerosos devem ter sido os substratos a que ele deu origem (FREUD, 1913/2003, p. 156).

No mito freudiano, os irmãos terminam decidindo pela condenação do

tirano à morte, matando-o e consumindo-o no decorrer de um repasto

canibalesco. A noção de banquete totêmico está, todo o tempo, na teoria

freudiana, ligada à pulsão oral. Freud prossegue:

Que tenham comido o cadáver do Pai, nada tem isso de espantoso, dado que se trata de canibais primitivos. O ancestral violento era certamente o modelo invejado e temido de cada um dos membros dessa associação fraterna. Ora, pelo ato de absorção, realizavam sua identidade com ele, apropriando-se cada um de uma parte de sua força (FREUD, 1913/2003, p. 163).

A conseqüência desse gesto é a instituição da figura do Pai através de

uma sacralização: um Pai sagrado, intangível, mas que, paradoxalmente,

institui a paternidade como elemento central na construção de um cosmos que

se organiza em torno de sua dádiva, juntamente aos afetos de amor e ódio que

ele desperta. Dessa maneira, o bem comum passa a ser a sacralização de

Cristo. Surge, então, um Deus, representado pelo sacrifício de Cristo, que

passa a ser o bem comum divinizado. É importante considerar que os mitos

fundadores das sociedades humanas são atribuídos a um valor universal.

Todas as variantes de um mito se manifestam em uma série formal. Um grupo

atribui-se uma origem sagrada e a função espiritual se encontra nos mitos dos

grupos.

Na formação cristã, a imagem de Deus-Pai está vinculada à imagem de

Cristo, enquanto sacrifício do Filho. Essa cena, para Freud, repete-se com o

fato de que a desnaturalização do corpo (o surgimento da anima) é seu próprio

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sacrifício.18 A sustentação desse sacrifício se revela a partir de um amor ao

Pai. Desse modo, é necessário evocar um texto mais tardio de Freud,

Psicologia das massas e análise do Eu, para elucidar as manifestações desse

amor ao Pai que se sustenta pela agressividade, fazendo jus à hipótese

freudiana da ambivalência. Simultaneamente, quando faz existir o pai, por meio

do amor ao Pai, Freud teoriza a renúncia pulsional sob a figura do supereu. O

avesso do amor ao Pai é o supereu. É esse binômio que vamos trabalhar: a

salvação do pai e seu avesso.

Se Freud se ocupou, de maneira privilegiada, da religião monoteísta,

isso não foi em vão, sobretudo levando-se em consideração as conseqüências

da passagem sobre a comunhão na alusão do mito de Totem e tabu.

A mensagem do mito freudiano é, antes de tudo, a ação do Pai na

gênese dos sintomas neuróticos. Nesse momento, queremos demonstrar que

as manifestações dos afetos de amor e ódio se devem, principalmente, à

exposição da origem da Lei, que vem acompanhada da ação paterna. Seu

operador teórico será o complexo de Édipo, introduzindo a Lei e a origem do

sujeito.

O pressuposto dessa ação é a religião, que representa o mito do

neurótico. Para isso, iremos demonstrar, na última parte deste capítulo, como o

Pai freudiano segue os pressupostos do amor e do ódio no que concerne à

transmissão de um Pai para um filho.

Buscaremos, assim, defender o seguinte ponto de vista: se existe uma

comunhão com o Pai, sob os afetos de amor e ódio, essa comunhão existe

pelos efeitos da transmissão que esse Pai efetua para com o filho. Desse

modo, começa-se a desenhar o objetivo deste capítulo, associando, com base

nos textos freudianos, o conceito de ambivalência ao Pai – um Pai que é

comunhão. Mas, como se propõe, aqui, ele é comunhão às avessas, fundado

18 Para isso, Freud faz uma distinção entre a pulsão e o instinto, demonstrando a

desnaturalização da sexualidade humana.

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na manifestação de um amor que se sustenta a partir do recalcamento do ódio

(ambivalência).

O Pai em Freud: amor, ódio e comunhão

Até agora, foi demonstrada a vertente ambivalente do Pai nos textos

metapsicológicos e no texto Totem e tabu, de Freud. Neste segundo tempo,

pretendemos recuperar um texto de 1921, Psicologia das massas e análise do

Eu, para ratificar o processo de identificação ao Pai, que é marcado pelo crivo

do amor, juntamente com as manobras para a sustentação desse amor na

prática da comunhão ao Pai idealizado.

Freud, em 1921, escreve Massenpsychologie, apresentando a teoria da

libido como tese central para o tema da identificação e, conseqüentemente,

para a formação dos grupos. Para confirmar tal hipótese, o psicanalista propõe

pensar a indissociabilidade entre a psicologia individual e a psicologia social

(FREUD, 1921/2003, p. 67). Para Freud, o nascimento do indivíduo é o próprio

atravessamento do coletivo. Essa aproximação se apóia nos laços libidinais em

jogo na cultura.

A partir daí, pode-se afirmar que os processos afetivos individuais

passam a se arquitetar, essencialmente, no campo social. Uma rede

emaranhada, vasta e complexa cria a afetividade do indivíduo, juntamente com

suas relações com o outro social. Uma psicologia individual se aproxima da

psicologia coletiva, que se alicerça no processo identificatório. A libido seria a

condição para que a identificação se processe. Resta, então, percorrer a

natureza da libido freudiana para afirmar a hipótese de um Pai regido por uma

lógica ambivalente. Esse texto de 1921 traz à tona várias questões que tinham

sido trabalhadas, separadamente, em diversos artigos freudianos, como o

narcisismo, a identificação ao Pai e uma nova teoria sobre a libido.

Freud, no que concerne ao tema da libido, marca o tom dos seus

primeiros capítulos apoiando-se nas discussões dos teóricos de grupo do final

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do século XIX e da primeira metade do século XX. O psicanalista recupera as

idéias do sociólogo francês Le Bon e do americano Mc Dougall, cujas teorias

convergem para o conceito de “sugestão grupal”.

Nesses primeiros capítulos, Freud dialoga, principalmente, com Le

Bon, que propõe o conceito de contágio articulado à idéia de identificação. Para

o sociólogo, a massa é facilmente manipulável, podendo homogeneizar os

indivíduos. Freud contrapõe os aspectos propostos por Le Bon e acrescenta

que o fenômeno de grupo não pode ser desenvolvido sem o auxílio da libido.

As teorias positivistas de Le Bon sobre a questão das massas não preenchem

satisfatoriamente as questões sobre os grupos. Se compreendermos a crítica

feita por Freud, o mestre não tem que explicar a origem do poder que exerce

sobre o escravo. Com Freud, manifesta-se a relação que se estabelece em

torno desse poder.

Para Freud, o conceito de sugestão não contempla a teoria das

emoções, que teria como carro chefe a noção de libido. A crítica de Freud aos

dois teóricos de grupos se expressa na recorrência à antiga adivinhação de são

Cristóvão: “Christophrus Christum, sed Christus sustulit orbem: constiterit

pedibus dic ubi christophorus?” (FREUD, 1927/2003, p. 85).19

A partir dessa expressão trazida por Freud, percebe-se que, para o

psicanalista, surge uma pergunta: onde se apóia a teoria da sugestão dos

teóricos dos fenômenos grupais? Para Freud, a conclusão da teoria das

sugestões, assim como os pés de são Cristóvão, não se apóia em nada. A

proposta freudiana volta-se, então, a aproximar o conceito de libido à

identificação do sujeito.

A conseqüência de tal aproximação é demonstrada quando a

identificação passa a ser considerada com a libido. Para Freud, diferentemente

dos teóricos de grupo, no centro dos processos grupais e individuais, está a

libido, representante do amor e da sexualidade.

19 “Cristóvão carregava Cristo, Cristo carregava o mundo inteiro, onde, então, Cristóvão

apoiava o pé?” (FREUD, 1921/2003, p. 85).

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Freud, então, propõe pensar o grupo a partir da libido, ponto em que a

descrição do conceito toma um outro sentido. Se, em um primeiro momento, na

teoria psicanalítica, a libido era aproximada à noção de fragmentação,

abordagem longamente desenvolvida nos seus Três ensaios sobre a teoria da

sexualidade, depois de Além do princípio do prazer (FREUD, 1920), a libido

começa a ser ligação e, a partir do texto de 1921, a libido começa a ter um

caráter unificador.

As conseqüências de um investimento no próprio eu trazem mudanças

na teoria da relação de investimento de objeto. A expressão “ligação libidinal”

torna-se redundante, com as novas formulações sobre a libido.20 A partir de

agora, deve-se considerar que, para Freud, a libido é essencialmente uma

força de ligação capaz de organizar, de maneira progressiva, não só as

pulsões parciais, mas, também, os elementos constitutivos dos seres vivos.

A libido é a expressão extraída da teoria das emoções e que designa

uma magnitude daquelas pulsões que têm a ver com tudo o que pode ser

abrangido sob a palavra amor. O núcleo do que queremos significar por amor

consiste naturalmente no amor sexual, com a união sexual como objeto.

(FREUD, 1921/2003, p. 86).

Essa é a melhor definição de Freud sobre o novo caráter libidinal. A

psicanálise não fez nada de original ao tomar esse sentido para a palavra

amor. Em sua origem, função e relação com o amor sexual, o Eros do filósofo

Platão coincide exatamente com a libido da psicanálise. Freud, ao fazer tal

esclarecimento, propõe aproximar a concepção de libido à compreensão que o

apóstolo Paulo desenvolve sobre o amor na Epístola aos Coríntios: “Ainda que

eu falasse a língua dos homens e dos anjos, e não tivesse caridade (amor),

seria como o metal que soa ou como o sino que tine” (SÃO PAULO, apud

FREUD, 1921/2003, p. 87).

20 Levando-se em consideração esse aspecto, é importante chamarmos a atenção para a

construção da escola inglesa, que aposta em um desenvolvimento da libido. A libido, segundo os pós-freudianos, estaria em um processo de maturação, até se fixar na fase fálica. A cura do paciente estaria associada a essa fase.

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Freud propõe uma concepção de libido como uma força unificadora e

organizadora. Essa função unificadora toma corpo, na teoria freudiana, a partir

de 1920, quando a pulsão de morte começa a se contrapor à pulsão de vida.

Se a pulsão de morte é o desligamento do sujeito na cultura, teríamos, por

outro lado, a pulsão de vida como ligação. As características dessa ligação irão

se desdobrar na concepção de Ego Ideal e de Ideal de Ego, na teoria freudiana

das identificações. Esses dois elementos fazem parte da teoria do narcisismo:

narcisismo primário e secundário, respectivamente. A partir dessa construção,

torna-se necessário pensar as maneiras com que as metas do sistema libidinal

podem construir a ligação. Nesse momento das pesquisas de Freud, a pulsão

de vida estaria associada à ligação, e a pulsão de morte estaria associada ao

desligamento.

Recuperando Freud, a teoria sobre a libido relaciona a meta do amor

vinculada à união sexual (FREUD, 1921/2003, p. 86). Toda ligação libidinal é,

em sua origem, sexual. A partir da pulsão de vida, as metas sexuais devem

ser, de alguma forma, inibidas, para que esses vínculos se estabilizem,

segundo Freud, por duas razões: em primeiro lugar, deve-se considerar que,

quando as metas sexuais são rapidamente atingidas e os impulsos satisfeitos,

ocorre um desinvestimento libidinal que enfraquece, ao menos

provisoriamente, a ligação. É o período de repouso, refratário a novas

excitações. Há, contudo, um outro efeito dos vínculos libidinais, em que as

metas do prazer sexual não são inibidas. Embora esse efeito seja, de certa

forma, antagônico ao primeiro, pode ser igualmente pernicioso para a vida

societária. É a partir daí que podemos perceber as manifestações da

agressividade nos grupos.

Para trabalhar o tema da agressividade, Freud recupera a símile

schopenhaueriana dos porcos-espinhos. O grupo desses animais apinhou-se

apertadamente em certo dia de frio hibernal, de maneira a aproveitarem o calor

uns dos outros e, assim, salvarem-se da morte por congelamento. Logo,

porém, sentiram os espinhos uns dos outros, coisa que os levou a se

afastarem. Dessa maneira, permaneceram durante algum tempo, se afastando

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e se aproximando uns dos outros, até chegarem a encontrar uma distância em

que podiam manter o calor e também não mais se ferirem mutuamente.

Os membros de um grupo investem muita libido uns nos outros, e

esperam muito prazer uns dos outros, tendem a se separar da vida coletiva, a

se desligar do grupo. Ou seja, um excesso de ligação erótica produz um

desligamento. Com isso, os outros investimentos libidinais horizontais se

enfraquecem, bem como se enfraquece a submissão ao líder. O casal de

amantes, por assim dizer, dá as costas às exigências e compromissos coletivos

e altruístas, em benefício dos prazeres. Quando relações dessa natureza

envolvem o próprio líder, isto é, quando ele próprio privilegia uma ou um dos

outros membros da massa, em detrimento dos demais, é natural que cresçam

e proliferem as frustrações, invejas, ressentimentos e demais hostilidades, o

que ameaça, também, por esse outro lado, a coesão do grupo.

É preciso, portanto, inibir as metas sexuais e, ao mesmo tempo, dar

livre curso à circulação libidinal, para que haja, na massa, energia suficiente, a

fim de mantê-la unida e organizada, mas não tanta energia que produza, ao

contrário, sua desagregação, seja pela via do erotismo desenfreado, seja pela

via da agressividade incrementada. Essa é, seguramente, uma das maiores

dificuldades na vida de grupo: manter viva e coesa a “massa organizada”, pois

um excesso de vida pode contribuir para a desagregação e, ao revés, como

veremos adiante, um excesso de coesão pode comprometer a vitalidade.

Aqui, ao que parece, tornam-se necessárias as “compulsões externas”.

Quais os objetivos dessas coerções? Creio que podemos imaginar dois tipos

de ação para elas.

No que toca à estrutura interna, o importante é impedir a formação,

dentro da massa, de núcleos eróticos e campos imantados de energia que

tenham como conseqüências subtrair libido do conjunto e separar do coletivo

os membros envolvidos nessas relações preferenciais.

No entanto, como Freud justamente observa, a convivência na base da

libido des-sexualizada pode, a todo o momento, vir a gerar uma erotização

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excessiva, despertando as metas sexuais inibidas, mas preservadas no

inconsciente. Paradoxalmente, as mesmas interdições que procuram evitar a

sexualização exacerbada de algumas ligações eróticas, no seio da instituição,

contribuem para incrementar o potencial erótico dos vínculos, o que virá a

exigir controles ainda mais rígidos.

É a partir daí que se introduz o caráter de dessexualização da libido

(Desexualisierte Liebe). As novas hipóteses freudianas sobre a libido

convergem para formas de ligação totalmente destituídas de componentes

sexuais. Esses aspectos da dessexualização da libido convergem para os

temas da identificação, do narcisismo e da análise do eu. Desse modo, uma

das definições mais detalhadas sobre a questão da identificação é evocada. É

por isso que os temas tratados no capítulo “A identificação” resgatam as

questões lançadas por Freud sobre a libido. Nesse texto, o que está em jogo é

o laço originário com as figuras parentais, anterior a qualquer eleição de objeto.

A identificação é conhecida pela psicanálise como a mais remota expressão de um laço emocional (Gefühlsbindung)21 com outra pessoa. Ela desempenha um papel na história primitiva do complexo de Édipo. Um menino mostrará interesse especial pelo pai, gostaria de crescer como ele, ser como ele e tomar seu lugar em tudo. Podemos simplesmente dizer que toma seu lugar como seu ideal. Esse comportamento nada tem a ver com uma atitude passiva ou feminina em relação ao pai (ou aos indivíduos do sexo masculino em geral); pelo contrário, é tipicamente masculino. Combina-se muito bem com o complexo de Édipo, cujo caminho ajuda a preparar. Ao mesmo tempo em que essa identificação com o pai, ou pouco depois, talvez mesmo anterior a ela, o menino começa a desenvolver uma catexia de objeto verdadeira em relação à mãe, de acordo com o tipo anaclítico de ligação. Apresenta então, portanto, dois laços psicologicamente distintos: uma catexia de objeto sexual e direta para com a mãe e uma identificação com o pai que o toma como modelo [...] desde o começo, a identificação é ambivalente, pode ser a expressão da ternura ou a de eliminação. Comporta-se como um retorno na primeira fase oral, da organização libidinal, em que o objeto desejado e

21 Essa terminologia empregada por Freud merece ser destacada. Como foi apontado, o

objetivo desta tese é apreender as construções que Freud e Lacan fazem sobre a identificação ao Pai, ao longo da teoria psicanalítica, e, neste ponto, é importante demonstrar que Freud “salva o Pai”, no que concerne ao tema da identificação. O pai, para Freud, é amor.

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apreciado se incorpora, por devoração, e, assim, se aniquila como tal. O canibal, como é sabido, permanece nessa posição. (FREUD, 1921/2003, p. 99).

Trata-se da contradição entre a afirmação de que a identificação com o

pai é “a mais remota expressão de um laço social com outra pessoa”. Nesse

ponto, Freud trata da identificação primária com o pai, que se estabelece

independente de qualquer investimento de objeto. A fórmula encontrada por

Freud é que a identificação é a manifestação mais precoce das ligações de

sentimento a uma outra pessoa, havendo uma diferenciação da noção de

investimento de objeto e identificação.

Logo em seguida à dificuldade em trabalhar o tema da identificação,

Freud diz que a identificação, por incorporação, toma o lugar da inclinação

amorosa. Para isso, recupera o exemplo de irmãos em Cristo, no capítulo

intitulado “Dois grupos artificiais: a Igreja e o Exército”. A Igreja assume a

posição do grupo paradigmático, no qual o Pai legislador assume o papel

central, trazendo, em primeiro plano, a relação do laço social. Os irmãos em

Cristo, segundo o texto, compartilham o amor de Deus, que encarna a figura do

líder.

Essa extensão do amor que se apresenta como universal é, em

realidade, uma restrição. Não se amam aos outros homens pelo que eles são,

senão, porque são de Cristo. Esse laço que une é o laço de amor com Cristo-

Pai. Se Cristo ama a todos com um amor igual, é porque ele ocupa o lugar de

Ideal. Se o surgimento da anima é conseqüência do Pai morto, que se

metaforiza no amor ao Cristo, é nesse contexto que Freud comenta que o amor

por si mesmo só oferece uma barreira, que é o amor pelo outro, ou seja, o

amor pelo objeto.

Essa dimensão do amor no campo do ideal pode ser demonstrada no

termo Gefühlsbindung, utilizado por Freud em A psicologia das massas e a

análise do Eu, que não deixa a natureza libidinal para o fenômeno que ele

designa. A bindung (ligação) tem-se tornado o conceito-chave na concepção

freudiana de amor. A partir desse aspecto, quando levamos em conta essa

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construção, a noção de identificação deveria ser afastada do campo do sexual.

Os laços emocionais (Gefühlsbindungen) constituem a essência dos laços

grupais (FREUD, 1921/2003, p. 88). Freud retorna ao pai da horda primitiva de

Totem e tabu, demonstrando que a morte do pai, seguida de sua devoração, é

o elemento primordial, na gênese do sujeito e na ligação, para que haja

formação dos grupos. A identificação aparece como resultado defensivo de

perda do primeiro objeto de amor, que seria a mãe. A angústia pela perda da

mãe teria como resultado a identificação ao agressor. Nesse ponto, o percurso

identificatório permite uma passagem do agressor ao modelo idealizado. Com

relação a essa questão, Freud comenta.

Presumimos que o pai da horda primitiva, devido a sua intolerância sexual, compeliu todos os filhos à abstinência, forçando-os assim a laços (Bindungen) inibidos em seus objetivos (zielgehemmte Bindungen), enquanto reservava para si a liberdade de gozo sexual, permanecendo, desse modo, sem vínculos. Todos os vínculos (Bindungen) de que um grupo depende têm o caráter de instintos inibidos em seus objetivos. Porém aqui nos aproximamos de um novo assunto que trata da relação existente entre os instintos diretamente sexuais e a formação de grupos (FREUD, 1921/2003, p. 132).

As construções presentes nesse texto de 1921 expõem a confluência

de duas ordens – o primeiro objeto é a mãe, e a primeira identificação é o pai.

Essa proposta de compreensão dos motivos que teriam determinado os passos

teóricos de Freud, em seu capítulo sobre a identificação, ganhará maior

consistência e pertinência a partir de uma construção sobre a noção de eu

relacionada ao Ideal do Eu. Essa questão será trabalhada somente no capítulo

VIII: “Estar apaixonado e hipnose”, quando Freud demonstra que o retorno do

investimento de objeto está ligado à identificação e ao narcisismo. Trata-se de

uma comunidade construída em torno de um ideal do eu, entre indivíduos que

não se encontram uns aos outros por investimentos libidinais. A hipnose e o

estado de apaixonamento são os dois mecanismos através dos quais Freud

busca desenvolver a verdadeira natureza dessa ligação. O dispositivo do Ideal

do Eu é alimentado pelo narcisismo. O menino coloca o pai no lugar de seu

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ideal, ao fixar o pai como modelo. Essa ligação passa a ser expressa a partir

de uma idealização:

O grupo primário deste tipo é um certo número de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do eu e, conseqüentemente, se identificaram uns com os outros em seu eu (FREUD, 1921/2003, p. 110).

A natureza do estado de apaixonar implicaria em duas formas de

ligação. A primeira seria a ligação pelo objeto, e a segunda seria próxima da

repetição da idealização, cujo vetor é a ligação. O grupo se forma através

desse duplo caminho: ou seja, algumas pessoas colocam um mesmo objeto –

o líder – no lugar de seu ideal, e, conseqüentemente, modificam seus Eus, ao

se identificarem umas com as outras por meio do modelo comum. A Igreja é

descrita, em tal contexto, como a instituição onde os cristãos se identificam,

pois todos idealizam as palavras e a onipotência divina.

Figura 1 – Ideal de Eu

Fonte: FREUD, 1921/2003

Considerando-se o eixo vertical, Freud, no capítulo IX: “A massa e a

horda primitiva”, apresenta o Pai primevo como elemento decisivo na formação

dos grupos. E, assim, ao confirmar a hipótese de 1913, constrói a massa como

uma “revivescência da horda primeva”. O pai primevo surge como demiurgo no

processo identificatório do sujeito em um grupo. Freud não faz um uso ingênuo

do Cristo para trabalhar a noção de Ideal, a transmissão da substância divina, e

a ordem comum ao grupo normatiza a paternidade. O amor ao Pai é a resposta

do neurótico à identicacão.

O tabu que impede os primitivos de se aproximarem de seus chefes (a

morte, os governantes e os inimigos), por temor de emanações mágicas

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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(Mana), não deixa de lembrar o poder atribuído ao hipnotizador. Nesse ponto, a

hipnose é relacionada à horda primeva, e o hipnotizador ao pai primevo.

Essa medida tomada por Freud ajuda a pensar que “o pai primevo é o

ideal do grupo, que dirige o eu na posição de ideal do eu” (FREUD, 1921/2003,

p. 121). Nesse ponto, ficam garantidas a integridade e a força do eu de cada

membro do grupo e, ao mesmo tempo, a incrível força que liga todos ao líder

da massa. O objeto, cuja idealização filogenética garantia, independe do

investimento libidinal, vem no lugar do Ideal do eu e não do eu.

Freud escreve o capítulo XII do texto de 1921 – “Uma gradação

diferente no eu” – totalmente dedicado à função do Ideal do Eu no aparelho

psíquico. Os trabalhos sobre o Ideal do Eu fazem surgir uma ambigüidade

dessa função. Existe um jogo de forças entre a concepção que o Ideal do Eu

apresenta – um estado de perfeição narcísica – e uma outra que visa,

exclusivamente, exigências de ordem moral, transformando-se em um

imperativo superegóico, confirmando a hipótese de que a obediência ao Pai

decorre do imperativo do superego, herdeiro do Édipo.

No caso das massas artificiais, as vinculações eróticas se dariam em

dois eixos. No eixo vertical, seus membros se ligam ao líder, ao chefe, ao

substituto e encarnação atualizada da figura ancestral do chefe da horda, o pai

primordial. Para essa elaboração, Freud retoma o texto fundante do seu

pensamento cultural, Totem e tabu, de 1913.

Por outro lado, há que se considerar o eixo horizontal, em que os

membros da massa se ligam uns aos outros. Essa forma de ligação é a

expressão de Eros. No entanto, a face de Eros não se estabelece de maneira

fixa e linear. Isso se demonstra na relação de cada indivíduo com o líder. Essa

relação quase que certamente irá se desdobrar em frustração, ressentimento,

raiva e ódio. A originalidade da posição freudiana sobre a religião e,

conseqüentemente, sobre os grupos não é fundar a religião e os grupos sobre

o amor, mas sob a égide do ódio. Freud se detém nesse ponto, no qual, para

ele, há, no início, o amor ao Pai. Essa identificação ao Pai é a capacidade de

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ele amar a cada um de maneira igual. Nesse sentido, o pai é universal. O amor

dos filhos ao pai é a garantia da formação dos grupos que trazem marcas de

comunhão a um mesmo Pai.

No entanto, sobre as organizações das massas e das religiões – o

Exército, a Igreja –, há sempre um mecanismo pulsional no qual a pulsão de

morte toma o seu lugar. O que surge como a pulsão de morte são as relações

infernais com os filhos de um Pai primitivo. A massa quer sempre ser dominada

por um poder ilimitado. Nesse ponto, não pode haver mais medida. A partir daí,

Freud considera que toda massa comporta um poder e, nessa perspectiva, há

os amores de Eros a agregar os membros, como também há o ódio que separa

cada um. O desligamento e a ligação a esse Pai traduzem os laços afetivos do

sujeito em um dado grupo.

Essa manifestação da hostilidade do lado do amor será desenvolvida

por Freud a partir de uma equivalência entre a agressividade e a pulsão de

morte. Por outro lado, no que concerne aos irmãos, a manifestação da face

diabólica dos grupos aparece nos sentimentos de inveja e ciúme, mascarados

pela força da idealização de Eros. As relações afetivas íntimas e prolongadas

entre as mesmas pessoas contêm sentimentos de hostilidade. Isso também

acontece quando os homens se reúnem em grupos maiores. Todas as vezes

que as famílias se reúnem para o casamento, cada qual se julga mais

aristocrata e mais rica que a outra. Duas cidades vizinhas tratam de se

prejudicar. Povos que estão próximos dos outros se repelem, os alemães do

sul não suportam os alemães do norte, os ingleses abominam os escoceses e

os espanhóis detestam os portugueses.

O processo de identificação que deve se desenvolver entre os

membros do grupo, tanto no eixo vertical como no horizontal, tende a criar

semelhanças, tende a eliminar ou esmaecer diferenças entre eles. Ora, a

inibição das metas sexuais torna-se muito mais fácil quando as diferenças são

atenuadas e gera-se um ambiente propício à fusão indiferenciada. O erotismo,

em uma de suas vertentes, é estimulado pelo encontro dessas diferenças.

Freud, em seu texto, expõe com toda a clareza a questão. Nas grandes

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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massas artificiais, Igreja e Exército, não há lugar para a mulher como objeto

sexual. A relação amorosa entre homem e mulher fica excluída dessas

organizações. Mesmo onde se formam massas mistas de homens e mulheres,

a diferença entre os sexos não desempenha nenhum papel. Mal tem sentido

perguntar-se se a libido que dá coesão à massa é de natureza homossexual ou

heterossexual, pois não se encontra diferenciada segundo os sexos, e

prescinde, em particular, das metas da organização genital da libido.

Desse modo, surge uma distinção entre as pulsões sexuais diretas e

pulsões sexuais inibidas. A proposta freudiana é de pensar a dessexualização

da libido a partir do Ideal. A dessexualização da libido é um dos pontos a serem

sustentados na Psicologia das massas e análise do eu. Toda a questão da

dessexualização da libido, em Freud, é uma tentativa quase extrema de livrar o

laço libidinal originário do filho com o pai de qualquer vestígio de sexualidade.

Em outras palavras, a ligação originária da mãe com o pai não passa por uma

ligação com a mãe que passa por uma identificação com a mãe, que dirige ao

pai seu investimento sexual de objeto; a relação com o pai é exclusivamente

identificatória e não comporta nenhum investimento de objeto.

Se a religião cristã revela um pacto entre o Pai e o filho, Freud, a partir

dessa relação, recupera as conseqüências desse pacto para demonstrar como

se estabelece a transmissão desse Pai para o filho. A Gefuhlsbindung que

promove a identificação do filho com o pai é obrigatoriamente zärtich (um

menino mostrará interesse especial pelo pai, gostaria de crescer como ele, ser

como ele e tomar seu lugar em tudo). Nesse pacto, a identificação com o Pai é

a própria expressão do amor e do ódio, o sentimento de culpa inconsciente é a

subjetivação desse ódio. Freud apresenta a Identificação, no capítulo que leva

esse mesmo nome, como sendo a expressão de impulsos que não possuem

nem derivam de objetivo sexual; não nos resta senão considerar que, ao

descrever a identificação do menino com o pai, Freud se posicione do lado de

uma “psicologia que não pode penetrar nas profundezas do que é recalcado”.

A psicanálise, que ilumina as profundezas da vida mental, não tem dificuldades de demonstrar que os vínculos sexuais dos

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primeiros anos da infância também persistem, embora reprimidos e inconscientes. Ela nos dá coragem para afirmar que um sentimento afetuoso, onde quer que o encontremos, constitui um sucessor de uma vinculação de objeto completamente sensual com a pessoa em pauta, ou antes, com o protótipo (Volbild) (ou imago) desta pessoa.

Uma psicologia que não penetre ou não possa penetrar nas profundezas do que é reprimido, considera os laços emocionais afetuosos como sendo invariavelmente a expressão de impulsos que não possuem objetivo sexual, ainda que derivem de impulsos com esse fim (FREUD, 1921/2003, p. 130).

Nessa perspectiva, a sustentação do recalque se dá a partir do ódio ao

Pai. O pai primevo, para Freud, é o demiurgo desse mecanismo, que tem a

manifestação do amor ao Pai como uma das faces da identificação. A

ambivalência é, em Freud, a manifestação da identificação. Ela bascula os

excessos do amor e do ódio. Freud apontou para os desdobramentos sobre a

identificação e seus pontos de tensão e, nesse sentido, amor e ódio, a partir

daí, tornam-se pares inseparáveis.

Sendo assim, foi demonstrado que essa ficção legisladora percorre

desde as identificações narcísicas à dissolução do complexo de Édipo,

justapondo-se à fase fálica, aplicando à idealização do Pai as conseqüências

da identicacão a um Pai.

Cabe, então, no segundo capítulo desta tese, demonstrar a origem da

pulsão de morte, percorrendo o que impele a repetição dessa pulsão

silenciosa, para demonstrar a passagem da construção de Lacan sobre a

experiência da falta. Nesse sentido, pretendemos mostrar que a ambivalência

freudiana é suscitada a partir da experiência da falta inerente à linguagem. Se,

neste primeiro capítulo, pudemos argumentar que a ambivalência é a

subjetivação da identificacao ao Pai, neste segundo capítulo, buscaremos

aplicar a noção de falta como aquela que faz a ambivalência existir, a partir do

testemunho do filho pelo Nome-do-Pai.

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Segundo Capítulo

Cristo é sumo pontífice (João 19,41-20,25)

As vicissitudes do simbólico

Nada terá tido lugar senão o lugar Mallarmé

Vimos que Freud valoriza a interseção do corpo com a cultura para

extrair uma expressão identificatória da sexualidade. Para Freud, essa

abordagem sobre o corpo erógeno se deve às identificações com os primeiros

objetos de amor. Como pudemos demonstrar no primeiro capítulo, a

identificação é a idealização ao Pai. A solução freudiana para explicar essa

relação é a devoração do Urvater, que teria como conseqüência a idealização

do Pai. Aí, o primeiro capítulo nos permite concluir que, em certo momento da

teoria freudiana, teríamos um Pai dessexualizado para os traços

identificatórios.

Recapitulando as construções teóricas desenvolvidas no primeiro

capítulo, teríamos, no primeiro tempo de Totem e tabu: o pai gozaria a posse

de todas as mulheres; em um segundo tempo: os filhos matam o pai. A

fraternidade (comunhão), portanto, é fundada nesse assassinato, impetrado

como conseqüência do desejo de morte ao Pai. Nesse ponto, surge a

ambivalência de amor e ódio, justapondo-se à idealização do Pai. Vimos que

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Freud permite que se conceba a identificação primordial como ambivalente.

Vimos, também, que a ambivalência traz a identificação como expressão

suscitada pela relação Édipo e castração. No entanto, desde 1938, Lacan

apontava para a degradação do papel do Pai na família, operando o seu

retorno a Freud. A partir daí, pudemos embasar nossa reflexão acerca do

processo de declínio do Pai, e as conseqüências disso no que concerne aos

afetos do amor e do ódio.

Nesse sentido, era preciso refundar a psicanálise sobre o complexo

paterno, desembaraçando o mito freudiano do Édipo e o mito da horda

primitiva. Pretendemos demonstrar, então, neste capítulo, que a articulação

Édipo/castração está vinculada ao universo da falta, elaborado por Jacques

Lacan. Buscaremos evidenciar que as coordenadas lacanianas para a

idealização do Pai trazem um declínio de sua função inerente à linguagem. A

noção de falta será mais um articulador sobre a identificação, para, daí em

diante, constatarmos que a castração é a falta presente na linguagem.

Nesse ponto, teríamos uma transformação da ordem cronológica para

a ordem lógica. Como vimos, o desenvolvimento da libido se concentra na

relação pênis/castração, para que haja as construções do afeto de amor e ódio.

Agora, vamos abordar a subsbstituição do pênis pelo Phallus, juntamente com

alguns desdobramentos no campo da identificação ao Pai. Estaríamos, então,

abandonando o modelo biológico do desenvolvimento da pulsão, que passa a

ser substituído por um discurso teológico no que refere à noção de falta.

A questão da experiência da falta é a construção de um novo estatuto

do Pai: o Pai morto. Propomos, nesse sentido, um declínio que vai do Pai

idealizado ao Pai morto, oferecendo diferentes perspectivas na compreensão

do tema da identificação. O recurso para trabalharmos o tema da falta será o

significante do Nome-do-Pai, que é o tempo do ensino de Lacan

correspondente a seu retorno a Freud. Pretendemos demonstrar que Lacan vai

mais além da relação de amor e ódio imposta pelo complexo de Édipo. É a

partir dessa perspectiva que poderemos vislumbrar um declínio da figura

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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paterna, quando o Pai é interpretado sob o estatuto da falta inerente à

linguagem.

Pretendemos iniciar com o texto de Lacan “O estádio do espelho”, de

1936. Nesse texto, Lacan demarca os registros do imaginário e do simbólico

(LACAN, 1966/1998), e nos permite observar que o caminho o conduziu diz

respeito ao fato de a identificação estar nesses registros.

É por isso que podemos inferir que, nesse texto, o infans é reduzido ao

circuito imaginário a ↔ a’, representado no esquema L (1966/1998), não

trazendo a idéia de que há um registro psíquico, uma vez que ele se revela

juntamente com a instância simbólica.

Figura 2 – Esquema L Fonte: LACAN, 1966/1998

Teríamos as imagens do corpo fragmentado transformando-se em uma

totalidade ortopédica (LACAN, 1966/1998, p. 100), uma unidade totalizante. É

nesse ponto que podemos pensar o imaginário como uma gestalt. O infans

entraria em estado de júbilo pela apreensão da totalização de sua imagem –

expressão lacaniana do narcisismo primário de Freud.

Para Lacan, trata-se de uma armadura que reforça a impressão de

uma rigidez alienada no outro – a ↔ a’. Um estádio especular da criança com

aquele que a olha. A imagem que, nesse espelho, se reflete é a imagem que se

condensa. A integração do corpo fragmentado tem como resultado o

desenvolvimento da coordenação motora. Para Lacan, a função da alienação

está ligada à construção da imagem do corpo próprio. Nesse sentido, teríamos

o registro do imaginário como primeiro plano de identificação, estando aí o

ponto de diferenciação do ser humano em relação aos outros animais. O fato

de o bebê não nascer com a coordenação motora, com uma unidade corporal,

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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mostraria, para Lacan, a impossibilidade de ele possuir um moi fundado pelas

funções biológicas. É por isso que o psicanalista francês propõe que a primeira

experiência de satisfação é correspondente à perda do biológico.

O imaginário está do lado da sensação. Ele inclui todos os fenômenos

de ordem sensorial de um conhecimento que é, a priori, ilusório. Esse registro é

originário do conceito de imago de Freud. Lacan retirou de Henri Wallon a

evidência de que, antes de a coordenação motora ser neurologicamente

possível, a criança já se reconhece no espelho. Mas essa construção de Lacan

é também uma crítica a Wallon. Para o psicanalista, a gestalt da imagem da

criança no espelho seria um engodo, diferentemente do que é para Wallon, que

propõe um processo tônico-postural. O fato de se reconhecer no espelho

implica a noção de um moi entendido como unificado. Esse registro é o estado

intermediário entre o estado larval e o organismo já constituído. A construção

da imagem demonstra uma antecipação das funções psicológicas em relação

às funções biológicas. A humanização da imagem do mundo em que o homem

constrói sua casa ou a consciência de si é a relação do sujeito para com a

formação imaginária do eu ideal. É aí que existiria uma inadequação estrutural

entre o sujeito e a totalização especular da imagem vinda do outro; essa

inadequação advém do fato de que o ideal que constitui o sujeito não se esgota

na representação imaginária em que ele se precipita. O Eu é, então, entendido

como a sensação de um corpo unificado, e, na teoria do “estádio do espelho”,

encontra-se produzido desde a imagem do outro:

O ponto importante é que essa forma situa a instância do eu, desde antes de sua determinação social, numa linha de ficção, para sempre irredutível para o indivíduo isolado – ou melhor, que só se unirá assintoticamente o devir do sujeito, qualquer que seja o sucesso das sínteses dialéticas pelas quais ele tenha que resolver, na condição de [eu], sua discordância de sua própria realidade (LACAN, 1966/1998, p. 98).

Essa alienação no outro aparece de maneira invertida: aquele que bate

declara ter sido batido. Se a imagem especular aparece, em primeira instância,

sem a matriz simbólica privilegiada da identificação do sujeito ao ideal do eu, é

porque ela encontra sua contrapartida na impotência motora vivida pelo infans,

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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durante os primeiros meses de sua vida, de maneira invertida. Existe uma

identidade não separável entre os dois – o infans e a mãe –; ainda não se sabe

quem é quem.

No entanto, para que haja a fixação da imagem e a ruptura do

imaginário, é necessária a entrada de um ponto exterior, de outra ordem. O

eixo do simbólico, ou o reconhecimento do Outro, permite fixar a relação

imaginária entre o corpo e sua imagem. A miragem do narcisismo se quebra

com a entrada no simbólico. A posição do vetor S ↔ A é, como mostra a

ilustração, o que faz suporte ao eixo do imaginário, “uma linguagem que capta

o desejo no ponto em que ele se humaniza” (LACAN, 1966/1988, p. 295).

Nesse segundo registro está a libido, considerada por Lacan no eixo do

imaginário, de maneira narcísica. Para Lacan, a libido se mistura ao

narcisismo. No esquema de Lacan, encontramos, entre a e a', a libido – o que

chamamos de gozo –, de tal maneira que o eixo do imaginário é também o eixo

do pulsional. No Seminário Livro 1: Os escritos técnicos de Freud, Lacan

(1953-54/1979) posiciona a libido do lado do imaginário e o desejo de

reconhecimento do lado do simbólico. O objetivo de Lacan é demarcar a

influência da tendência americana em reduzir a psicanálise a uma psicologia do

ego. Para Lacan, o simbólico não é mais um registro sensorial.

A coordenada simbólica é a assunção do registro que faz a

intermediação das relações. Contrapondo-se ao registro imaginário, teríamos,

alhures, o simbólico, como desejo de reconhecimento do Outro. Esse desejo de

reconhecimento se encontra no vetor S ↔ A. É nesse ponto que Lacan aplica a

dialética hegeliana ao desejo do Outro. Essa construção nos permite fazer uma

aproximação do que se passa no estádio do espelho à concepção de grande

Outro.

Com base na dialética de Hegel, se, em um primeiro instante, a

imagem prevalece num ponto em que o registro da palavra está ausente, num

segundo instante, teríamos a presença do simbólico. As conseqüências do

simbólico marcam os caminhos da sexualidade, cuja realização necessita da lei

fundamental do simbólico, implicando-a no desejo do Outro. A relação que

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Lacan estabelece entre o lugar que o Pai ocupa com o lugar do Outro na

estrutura passa a ser a proposta do psicanalista. Assim, pode-se pensar o

Outro como garantia dos dizeres. Ele passa a ser a garantia da lei significante.

Nesse sentido, é importante assinalar que a temporalidade marca uma

espacialidade de um dentro e de um fora; para o aparelho psíquico, são

necessários dois tempos. O esquema “L” mostra o imaginário e o simbólico

com as duas instâncias que captam essa dimensão. A existência da

temporalidade se deve, entre outros aspectos, a um giro no simbólico.

Explicando a expressão desse giro, poderíamos vislumbrar a referência de

Lacan a santo Agostinho: “vi com meus olhos e conheci bem uma criancinha

tomada pelo ciúme: ainda não falava e contemplava pálida e com uma

expressão amarga, seu irmão de leite” (SANTO AGOSTINHO apud LACAN,

1966/1998, p. 117).

Santo Agostinho cria uma imagem sobre a cena da criança ao lado de

seu irmão recém-nascido e sua mãe. Nesse ponto, o registro escópico é

bastante importante, pois este é o instante em que o olhar se cega. O olhar

situa-se, assim, no olho materno captado pela criança. Ao faltar no olho da

criança o testemunho do olhar materno, aquele cai numa ausência. É a partir

desse registro que Lacan resgata o filósofo patrístico que comenta o momento

em que a criança se coloca em um estado de agressividade, quando percebe a

presença de seu irmão mais novo. Isso é a confirmação de que todo o

conhecimento do objeto vem do conhecimento de ciúme. O objeto passa a ser

fonte de concorrência e de rivalidade. Nesse âmbito, podemos verificar que

existe, por um lado, uma relação assimétrica de idealização, e, por outro lado,

uma relação simétrica de rivalidade. Na trama do ciúme, existe uma imagem

que não se capta – reconhece-se o outro como igual, mas, tambémm como

rival. O desejo do sujeito vai se consolidar a partir de uma rivalidade com o

Outro.

Existe um acordo que inclui a palavra. O processo dialético se situa na

negação do que captura a imagem do “ou eu ou você”. Então, surge o

recalque. Para Lacan, teríamos duas subjetivações: de um lado, o eixo do

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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imaginário, e de outro, o eixo do simbólico. Isso quer dizer que, em um primeiro

momento, no eixo a↔a’, estaria a intencionalidade agressiva. Talvez aí

possamos compreender a ambivalência freudiana, trabalhada no primeiro

capítulo, pois que ainda não existe um reconhecimento do sujeito no Outro. A

criança ainda assimila uma imagem. É no eixo S↔A’ que teríamos o corte da

relação especular, em que o simbólico inside.

O valor da cena da criança olhando o irmão é o espetáculo imaginário

proporcionado pelo próprio sentimento de completude. Quando a criança

parece ter ameaçada a imagem especular, uma experiência de não-

especularização da imagem do infans faz desencadear o sentimento de ciúme,

inaugurando a dimensão simbólica. Na trama do ciúme, vem uma imagem que

nos capta. Reconhecer o sujeito como igual, mas, ao mesmo tempo, como

rival. Essa experiência é o corte que o imaginário sofre pelo simbólico. O

momento em que inside uma fissura no eu. Nesse ponto, a divisão do eu é a

marca de um sujeito irremediavelmente cindido. Essa cisão é o próprio furo do

simbólico no eu (moi). Lacan, a partir dessa experiência, faz a distinção entre o

moi (imaginário) e o Je (simbólico). A função simbólica garante uma imagem

unificada do eu. Quando a criança da cena detecta sua relação com seu irmão

de leite, uma agressividade original é formada: o eixo do imaginário a ↔ a’

inaugura o que estamos entendendo como “estádio do espelho”, constituindo a

alienação do sujeito em sua imagem ideal. A conseqüência disso é a

agressividade incompatível com o moi, a dificuldade do moi em alcançar os

ideais como um corte narcísico do sujeito. Existe uma justaposição entre a

castração erótica e a agressividade. A relação agressiva intervém na relação

do moi. Ela é uma intenção agressiva que integra o funcionamento da imagem.

Nesse tempo, a única forma de explicar essa evidência na clínica, que Lacan

está teorizando como “estádio do espelho”, é a pulsão de morte, a idéia que faz

Lacan da pulsão de morte.

O estádio do espelho não está desvinculado da pulsão de morte. Isso

nos leva a perguntarmo-nos: por que a imagem se fixa? O que é a tensão

narcísica? É a pulsão de vida. Mas, para que haja essa força, é necessário que

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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haja outra. Tem que haver uma tensão que mantenha uma unidade, porque há

uma outra que tende à desunião. Isso é uma evidência clínica. Há momentos

em que se evidencia o domínio de uma tendência sobre a outra, e vice – versa.

Assim, teríamos: pulsão de vida x pulsão de morte, que, para Lacan,

seria a agressividade. No texto Agressividade em psicanálise, Lacan equivale a

intenção agressiva à pulsão de morte; intenção agressiva significa todo e

qualquer momento em que a imagem narcísica do sujeito se vê ameaçada.

Talvez por isso, para Lacan, o afeto do ódio seja o que mais se refere ao ser.

Por outro lado, com o aparecimento da identificação edipiana, com o

simbólico, teríamos o desejo de reconhecimento pelo Outro. O Outro passa a

coordenar o infans com seu desejo. A partir daí, podemos pensar que é esse

desejo de reconhecimento que implica o corte do simbólico na imagem

narcísica. O infans encontra, no olhar do Outro, seu próprio reconhecimento. A

imagem não é mais totalizadora e, assim, o ideal de eu lança para fora o

desejo de ser reconhecido no Outro, deslocando-se da imagem narcísica.

Nessa perspectiva, com o texto O estádio do espelho, apoiamo-nos na

noção do simbólico como necessária para a relação de aliança entre os pares,

a partir da qual se instaura o sentido do desejo como desejo de

reconhecimento, “de ser reconhecido na palavra, no simbólico” (LACAN,

1966/1988, p. 280).

O simbólico é a expressão na qual o sujeito se apóia para expressar

seu próprio ser. A palavra é, para Lacan, a segunda báscula do desejo. Esse

desejo revela-se, para o sujeito, como sendo o seu desejo (LACAN, 1953/1979,

p. 190). Existe um acordo que inclui a palavra, tendo o processo dialético se

incluído na negação da captura narcísica. A imagem do desejo vai se fixar no

Outro. Para a expressão do simbólico, é necessário esse giro. A partir do

exemplo trazido por santo Agostinho, podemos entender que é necessária essa

experiência, demonstrando que o sujeito seria a presentificação da completude

pelo imaginário (moi), e a experiência da falta (Je).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Feita a construção da incidência do imaginário e do simbólico na

identificação, pretendemos explorar as conseqüências da falta, para

ultrapassarmos as teorias freudianas da castração e do Édipo. Nessa direção,

abordaremos as vicissitudes do simbólico como corte histórico para a ação da

repetição. Essa ação é, para Lacan, a conseqüência da experiência da falta,

que faz a ambivalência se manifestar.

Lacan nos facilita o entendimento sobre a experiência da falta, se a

transportarmos para o campo da linguagem. A partir desse ponto, como foi

visto, encontramos o simbólico na constituição dos laços afetivos do sujeito na

linguagem. Tal conceito, como pretendemos recuperar neste capítulo, é a

própria divisão do eu (Spaltung). Essa divisão do sujeito é o caminho da pulsão

de morte freudiana.

Em Freud, se, em um primeiro momento, o Pai traz em seu bojo a

ambivalência, podemos inferir, então, um Pai que falta na linguagem e

antecede o Pai ambivalente de Freud. Para trabalharmos essa noção, é

necessário desenvolvermos o mecanismo da origem do simbólico, a partir do

texto freudiano Die Verneinung, permitindo aproximar Freud de Lacan.

Nesse texto, Freud demonstra o mecanismo de funcionamento das

associações de sentido dos pacientes. Para que esse mecanismo funcione, é

necessária uma Bejahung, afirmação, seguida de uma Verneinung, negação.

Esses mecanismos funcionam como opostos necessários para a formação de

um dentro e um fora na montagem psíquica. Os dois termos são utilizados por

Freud para encerrar uma ação dicotômica da afirmação e da negação

implicada no processo afetivo.

No texto A negativa (Die Verneinung), de 1925, há uma demonstração

da negação, representando uma tomada de consciência do recalcado. Freud

verifica que a experiência do juízo de existência traz à tona o conteúdo do

recalque pela negação.

Para que surja o aparelho psíquico, é necessária uma afirmação

primordial, Bejahung. Na constituição da afirmação, há dois tempos: um juízo

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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de atribuição e um juízo de existência. O juízo de atribuição seria a condição da

formação do Eu como juízo prévio. Para Freud (1925/2003), haveria um juízo

de atribuição anterior ao juízo de existência. A função de julgamento de

existência não visa encontrar na realidade externa um objeto correspondente

ao objeto imaginado pelo juízo de atribuição, mas reencontrar o objeto que

deixou marcas de satisfação na memória (FREUD, 1925/2003, p. 255). O juízo

de atribuição liga o organismo ao meio, distinguindo o que é bom do que é

mau, como, por exemplo, no ato de se alimentar de uma criança; ela faria uso

desse juízo comendo o que é bom e cuspindo o que é mau.

Em seguida, surge o juízo de existência, conferindo existência àquilo

que foi considerado bom e mau. Para que essa existência ganhe significação, é

necessária uma afirmação primordial, aproximando o juízo de atribuição ao

juízo de existência.

Nesse ponto, a afirmação primordial, Bejahung, seria uma evocação

ativa de um “sim”, referindo-se a um momento anterior, juízo de atribuição, para

conferir aos objetos uma existência. Essa ação é uma afirmação que vem

confirmar um momento anterior. No entanto, se a Bejahung dá a condição da

existência, ela não ocorre sem a negação (Verneinung).

A polaridade de julgamento parece corresponder à oposição dos dois grupos de instintos que supusemos existir. A afirmação (Bejahung) como substituto da união – pertence ao Eros; a negativa (Verneinung) – o sucessor da expulsão – pertence ao instinto de destruição (FREUD, 1925/2003, p. 256-257).

A ação dessas duas forças revela o juízo de existência como uma

nomeação a partir de uma afirmação primordial. Se a Verneinung circunscreve-

se com o estabelecimento de um fora, teríamos o juízo de existência como uma

afirmação primordial, fazendo surgir algo da negação do lado de fora da

afirmação. Desse modo, a negação primordial (Verneinung) está

necessariamente ligada à afirmação, sendo a realidade percebida como puro

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prazer, opondo-se ao estabelecimento da enunciação da afirmação primordial,

Bejahung,22 que inscreve o Eu na realidade desse juízo de existência.

No texto A negativa (1925/2003), Freud capta o lugar da enunciação do

pensamento enquanto expressão da afirmação primordial, força operante do

juízo de existência. O autor relata o caso de um paciente que, após contar um

sonho em uma sessão, afirma que a mulher à qual se referia no relato do

sonho não era sua mãe. Esse exemplo nos oferece o inverso reflexo da

negação. Para Freud, essa negação permitia certa enunciação de tomada de

consciência do recalcamento, sem que o sujeito que relatava o sonho aceitasse

o conteúdo do relato – uma separação da função intelectual do processo

afetivo. Freud poderá dizer que essa representação onírica do sonhador já é a

tomada de consciência do recalcado.

Ao final do texto, Freud comenta sobre o prazer generalizado da

negação, próprio ao fenômeno psicótico. Essa posição subjetiva, a psicose, é

um indício da desfusão das pulsões por retirada dos componentes libidinais

(FREUD, 1925/2003). Por outro lado, como Freud demonstra com a neurose,

para a operação de recalque, é necessário que haja uma afirmação primordial

de um juízo de existência, implicando a castração em uma Bejahung – uma

afirmação.

Esse momento mítico foi designado por Freud da seguinte maneira: é

necessário que haja uma negação (Verneinung) daquilo que é mau, para haver

uma primeira introjeção de algo bom. O que é representado dentro confere

existência a sua representação a partir do que está do lado de fora. Essa ação

fundante advinda de um dentro e de um fora é associada ao seu oposto,

Ausstossung. Para que isso se efetue, é necessária uma expulsão, que uma

22 O substantivo Bejahung e o verbo Bejahen são traduzidos por “afirmação” e “afirmar”. Para

Lacan, os textos decisivos de Freud para a construção das estruturas clínicas são: “A negativa” (Die Verneinung) e “O fetichismo”. Esses textos revelam saídas subjetivas do sujeito em relação ao falo: o recalque do simbólico, a denegação e a forclusão, que seriam os mecanismos da neurose, da perversão (o fetiche como aquilo do imaginário que escapa ao simbólico, surgindo o objeto/imagem) e da psicose, respectivamente. A partir deste ponto, veremos que Lacan se apropria desses textos de Freud inaugurando o conceito de falta.

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parte do ser que não corresponde ao simbólico possa operar um processo

inaugural. Desse modo, a Bejahung – como substituição da união – pertence a

Eros, enquanto a Verneinung – sucessão da Ausstossung – pertence à pulsão

de destruição, o desligamento.

Agora não se trata mais de saber se algo percebido (uma coisa) deve ser admitido ou não no eu (moi), mas, se algo presente no eu (moi) como representação também pode ser encontrado como percepção (realidade). É como vemos uma questão de fora e dentro (FREUD, 1925/2003, p. 255).

Para Freud, a origem do processo intelectual do julgamento segue o

princípio do prazer. No entanto, o que interessa a Freud é compreender qual é

a primeira tentativa de diferenciação do eu e do inconsciente, que tem como

conseqüência a noção de dentro e de fora, criando, aí, sujeito e objeto, “a

oposição entre subjetivo e objeto não existe desde o começo” (FREUD,

1925/2003, p. 255). O eu, em um primeiro momento, cria sua identidade

quando introjeta tudo o que é bom e leva para fora de si tudo que é mau.

A simbolização primordial seria a Bejahung, que é quando o eu expulsa

para fora de si tudo que pode dirigir a um princípio de constância no nível de

excitações do aparelho psíquico. O juízo de atribuição, no texto A negativa, traz

uma operação de perda do Das Ding. Essa falta do juízo de atribuição da

Bejahung poderia ser comparada à linguagem de coisa do esquizofrênico;

nesse ponto, na esquizofrenia, existiria um grau zero da fala.

A linha freudiana de divisão entre dentro e fora, que define o juízo de

atribuição, torna-se, com Lacan, a entrada no simbólico. Desde O projeto para

uma psicologia científica, Freud instalou uma divisão da realidade entre um fora

primeiro (das Ding) e um dentro, onde se pudessem reproduzir ou encontrar as

qualidades do objeto perdido; em seguida, opôs e associou Bejahung, que será

aproximado à incorporação do primeiro corpo de significantes, instaurado pelo

Outro, e a Ausstossung, que é a face negativa e a constituição do fora como

impossível, da qual a Verneinung é o sucessor. O fato de que a afirmação

primordial não ocorra sem negação implica a existência de uma negação

prévia, à Verneinung.

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Abre-se, então, uma série de questões que são desenvolvidas nos

debates de Jacques Lacan com Jean Hyppolite. Sabemos que Lacan atribuiu

fundamental importância ao conceito de negação em psicanálise. Pretendemos

retomar a leitura lacaniana do texto de Freud, Die Verneinung, principalmente a

resposta ao comentário de Hyppolite (1954-1955) sobre o artigo de Freud

sobre a Verneinung. Nossa leitura irá centrar-se, em primeiro lugar, no texto

dos Escritos intitulado, Resposta ao comentário de Jean Hyppolite, que foi uma

elaboração escrita de Lacan a partir de uma lição de seu Seminário Livro 1: Os

escritos técnicos de Freud.

Recapitulando, teríamos, no texto freudiano sobre a Verneinung, uma

outra maneira de dizer “não”, um não que vem como uma afirmação. A partir

desse ponto, a negativa seria uma forma de ter conhecimento do que, outrora,

estava recalcado, como uma suspensão do recalcado, porém, sem a aceitação

do que foi recalcado. Nesse sentido, existe um reconhecimento do inconsciente

pelo eu, mas esse reconhecimento se expressa como negativa. Aqui, teríamos

a dimensão desse reconhecimento: no movimento de suspensão do recalque,

o eu não admite o recalcado, porém, reconhece a não-admissão.

Nesse sentido, Lacan oferece outra via para pensarmos a constituição

do sujeito. Um retorno a Freud, pelo viés filosófico, traz uma perspectiva para a

fundamentação do sujeito. A filosofia de Hegel seria o carro-chefe nas

mediações desse diálogo. O discurso freudiano pôde, então, colocar a

problemática da constituição do sujeito pela inscrição da linguagem.

Em 1954, Lacan convida o filósofo Jean Hyppolite ao seu seminário

sobre a técnica freudiana, para saber como um hegeliano interpretaria o texto

de Freud “Die Verneinung”.

Primeiramente, é importante lembrar que Hyppolite concorda com a

tradução do referido texto para “Denegação”, mas, em seu comentário, propõe

que “denegação” não seria a única interpretação do termo Verneinung. Para o

filósofo, a destruição referida por Freud é substituída pela negatividade.

Hyppolite faz a relação da dialética do senhor e do escravo, utilizando como

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recurso a presença de uma negação como afirmação intelectual. Nesse ponto,

o texto freudiano introduz uma outra forma de não, um não que supõe uma

negação. Nesse caso, a negativa seria uma forma de tomar conhecimento do

recalcado.

As questões sobre o encontro da filosofia e da psicanálise parecem

ficar mais claras no comentário sobre a Verneinung freudiana. Nesse

comentário, Hyppolite (1989) demonstra a diferença entre a negação lógica e a

atitude de negação. Isso quer dizer que, para o filósofo, a Verneinung seria

uma atitude fundamental de simbolicidade explicitada (HYPPOLITE, 1989, p.

55). A partir desse ponto, podemos afirmar que a negativa, enquanto

Verneinung, e a negação lógica seriam duas diferentes formas de negação.

A distinção entre essas duas formas de negação traz,

conseqüentemente, diferenças entre ambas. De maneira diversa, a negação

lógica é a negação de uma afirmação, enquanto a negativa da Verneinung

supõe uma acolhida (Bejahung) primordial. Isso quer dizer que, na leitura de

Hyppolite, a negação lógica e a negativa (denegação) própria à Verneinung

podem significar um “não” de sentidos diferentes.

Assim, teríamos uma denegação de um não a partir de um “não” que

segue a lógica formal. Isso quer dizer que “não” passa a ser um símbolo da

enunciação. Enquanto a negação demonstra um princípio de contradição – não

é possível que algo seja e não seja ao mesmo tempo –, e, sob as mesmas

circunstâncias, a negação psicanalítica relaciona-se ao primeiro acolhimento

(Bejahung). Na Verneinung, supõe-se a relação entre o retorno do recalcado e

a admissão ou destituição do seu conteúdo. Ambas as formas de negação não

se excluem, pois estão situadas em campos diferentes.

Das conclusões de Hyppolite, Lacan demonstra que o sentido do

recalque é diferente da Verwerfung. No recalque, algo pode ser desconhecido

pelo sujeito, após ter sido verbalizado; então, é preciso admitir que, atrás do

processo de verbalização, há uma acolhida (Bejahung) primordial, uma

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admissão no sentido simbólico, que, mesmo contestada, é reconhecida nessa

contestação.

Caso falte essa admissão simbólica, a negação não ocorre sob a forma

do recalque (Verdrängung), mas da exclusão ou repúdio (Verwerfung). Pode

acontecer que um sujeito recuse o acesso, ao seu mundo simbólico, de alguma

coisa que, no entanto, ele experimentou e que não é outra coisa, naquela

circunstância, senão a ameaça da castração. Lacan mostra que Freud já fazia

essa distinção quando escrevia sobre a Verwerfung do caso do “Homem dos

lobos”: “O sujeito nada quer saber disso no sentido do recalcado” (LACAN, 1955-

1956/1985, p. 21). O conceito de uma Bejahung primordial revela, segundo

Lacan, que, na origem, para que o recalque seja possível, é preciso “um

primeiro núcleo do recalcado, como centro de atração que chama para si todos

os recalques ulteriores” (LACAN, 1953-1954/1979, p. 56). Essa idéia de uma

acolhida que sofre um primeiro recalque vai ao encontro da negação própria ao

campo da linguagem.

Para Lacan, o fator lingüístico é decisivo na Verneinung de Freud, pois

a negação é constitutiva do conteúdo negado, de forma que o sujeito não tem

mais poder sobre a existência desse conteúdo. Ou seja, o conteúdo existe,

mesmo que não admitido pelo sujeito. O discurso do sujeito pode contestar o

conteúdo, mas não abolir a propriedade fundamental da linguagem, que

consiste em implicar que “algo” corresponde àquilo que se enuncia – algo, e

não nada. Assim, Hyppolite supõe uma distinção entre a Verneinung, que

pertence ao campo da enunciação, e a negação lógica, pertencente ao campo

da proposição. Na primeira, está em questão a verdade do sujeito; na segunda,

a validade lógica de uma proposição. Se a Verneinung de Freud é correlativa a

uma verdade que foi verbalizada, mas não admitida, estaria, portanto, suposta

uma divisão entre um sujeito da enunciação e um sujeito do enunciado. Um

conteúdo é verbalizado, isto é, simbolicamente reconhecido, mas não admitido

como existente para o eu. A frase freudiana é clara: “Negar algo em um

julgamento é, no fundo, dizer: ‘Isto é algo que eu preferiria reprimir’ ”. Lacan

analisa a Verneinung a partir da relação com o outro e com o Outro. Em um

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primeiro momento, apresenta a relação com o outro, relacionada à

especularidade e, portanto, como constitutiva do eu. É preciso considerar a

Verneinung, afirma Lacan (1946/1998), como:

Uma negação formal: em outras palavras, de um fenômeno típico de desconhecimento (méconaissance) e sob a forma invertida (inversée) [...] forma cuja expressão mais habitual – Não vá pensar que... – já nos fornece essa relação profunda com o outro como tal, que valorizaremos no Eu (Moi). (LACAN, 1946/1998, p. 181).

Assim, se o que é submetido à Verneinung supõe um outro em relação

ao Eu, é porque, antes disso, há um Outro, há um acolhimento simbólico, uma

Bejahung primordial, que permite esse movimento da Verneinung. Assim, o que

foi submetido à Bejahung, mesmo recalcado, persiste, retorna na repetição

(retorno do recalcado), é submetido ao movimento da denegação, é uma

presença simbólica. É nesse sentido que Lacan se refere à presença do

significante no Outro como uma presença vedada ao sujeito, na maioria das

vezes. É vedada, mas acolhida, pois foi submetida ao recalque originário

(Urverdrängung).

Esse termo de Freud, “negação”, é para o sujeito a constituição do

universo simbólico, como escolha de reconhecer sua existência. A força desse

momento ganha um fôlego maior quando Lacan afirma que “essa criação do

símbolo deve ser concebida como um momento mítico” (LACAN, 1966/1998, p.

384).23

As dificuldades desse debate estão no fato de que, no caso Bejahung-

Ausstossung, trata-se de um mito sobre a origem, que supõe preexistir aquilo

que supostamente a constitui. As tentativas lacanianas de esclarecer essa 23 “O mito é, conforme uma fórmula discursiva, qualquer coisa que não pode ser transmitida na

definição da verdade, porque a definição da verdade não se pode apoiar senão em si mesma, e é enquanto a palavra progride que ela se constitui. A palavra não pode apreender a si mesma, nem apreender o movimento de acesso à verdade enquanto verdade objetiva. Ela apenas a pode exprimir – e isto, de um modo mítico. Se vamos nos guiar pela definição de mito como certa representação objetivada de um após ou de um gesto, exprimindo, de forma imaginária, as relações fundamentais características de certo modo de ser humano, em uma determinada época, se o vamos compreender como uma manifestação social latente ou patente do seu sentido, desse modo de ser, podemos então encontrar certamente a sua função no próprio vivido de um neurótico” (LACAN, 1980, p. 49-51).

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experiência da Bejahung promovem o surgimento do simbólico: “é ao

significante que se referirá a Bejahung primordial” (LACAN, 1953/1979, p. 73).

Na verdade, a Ausstossung vale para o sujeito em geral, faz parte do

processo da Bejahung; separando o Outro, tesouro dos significantes, a partir

da denegação. Nesse ponto, Lacan precisa que a existência comporta uma

dimensão estritamente ligada à negação: se nada existe a não ser sobre um

fundo de ausência, a simbolização é primitivamente uma negação. Essa

negação primordial faz parte do processo da instituição do significante para o

sujeito.

A negação torna-se, assim, uma denegação. Essa operação da

denegação vai implicar uma divisão psíquica (Spaltung); é nessa produção que

surge um estado de suspensão. Se a Bejahung é uma inscrição necessária à

entrada do sujeito no simbólico, isso se deve ao fato de ela ser uma criação do

símbolo, concernente a uma relação do sujeito com o ser (LACAN, 1966/199,

p. 382).

A preexistência da linguagem em relação ao sujeito, para Lacan,

implica que o sujeito só pode entrar na linguagem à custa de uma negação, de

uma rejeição, de uma exclusão de gozo chamada, por Freud, de Ausstossung.

A dupla operação Bejahung-Ausstossung se faz com o mesmo gesto, pois a

incorporação do simbólico – Bejahung – não se faz sem a rejeição –

Ausstossung. A partir da significação primordial, surge a historicização dos

significantes.

Essa experiência é designada, por Lacan, como a própria revelação da

palavra, que cumpre a função de revelar-se. A construção do dentro e do fora

traz uma interpretação sobre o ser. O sujeito passa a se reconhecer no desejo

do Outro. O juízo de uma existência é o próprio nome. A palavra, agora,

interpreta o ser em um lugar no mundo, a casa do sujeito é o próprio símbolo,

que traz um nome para seu corpo: o sujeito realiza seu corpo na palavra. No

dizer de Lacan: “a aparição do ser sob a forma de um não-ser” (LACAN,

1966/1998, p. 901).

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Se Lacan elevou o texto freudiano de 1925 a uma categoria ontológica

isso se deve, entre outros aspectos, no próprio dizer de Lacan, à revelação da

palavra como realização do ser (LACAN, 1953/1979, p. 298).

As noções de realização e revelação conjugam-se na emergência do

ser: a revelação da palavra é a realização de um ser. A revelação, portanto, é

dada pelo simbólico, e esse caráter divino é a própria construção do ser. É

nesse momento que o significante do Nome-do-Pai surge como exceção. Para

Lacan, a construção sobre o ser implica o sujeito na dimensão do próprio

Nome-do-Pai. É aí que a questão sobre o Pai, em Lacan, passa a ser uma

questão sobre a linguagem. Trata-se de saber o porquê do Nome-do-Pai, e não

mais do Pai. Essencial para o sujeito, o significante Nome-do-Pai, amarrando

as cadeias significantes, poderá articular o sujeito.

A experiência demonstra a revelação do filho pelo simbólico, revelado

no resgate do Nome-do-Pai. Dito de outra maneira, a partir das aulas de Lacan

sobre Hegel, podemos formular que o sujeito que não era reconhecido passa a

ser reconhecido pelo simbólico. O Nome-do-Pai leva a um triplo problema: o do

Pai, o do nome, e o do filho. Nessa perspectiva, pretendemos demonstrar que

é o filho quem nomeia o Pai, a partir de um testemunho. Se o filho reconhece o

Pai a partir de seu nome, cabe, aqui, portanto, abordar a noção de

reconhecimento pelo simbólico. Para ilustrar essa questão sobre o

conhecimento existente entre o filho e a linguagem, pretendemos recuperar as

referências bíblicas e as referências à concepção de morte no mundo cristão.

Na religião cristã, o Nome-do-Pai é o primeiro a ser invocado, antes de ser

aproximado ao Filho e ao Espírito Santo. Se o significante do Nome-do-Pai é

uma exceção, buscaremos aproximá-lo à figura de Cristo. Entendemos a

referência bíblica como uma das maneiras de se pensar a mensagem para o

filho, juntamente com a concepção de morte no Ocidente. Tomamos, aqui, a

cena do sacrifício de Cristo como a que melhor representa o próprio Nome-do-

Pai como referência de morte da coisa, incluindo o filho na tradição do verbo.

Com o Nome-do-Pai, Lacan propõe uma figura, definindo uma genealogia e

uma tradição. Lacan constrói uma leitura da subjetividade do sujeito, a partir da

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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linguagem. O inconsciente passa a ser transindividual, sendo estruturado como

uma linguagem. Se a palavra é a morte da coisa, como diz Lacan, a partir de

Hegel, teríamos, na tradição do verbo, o engendramento do Outro.

O sacrifício do filho em Nome-do-Pai

Sabemos que o conceito de Nome-do-Pai, em Lacan, une o complexo

de Édipo freudiano e o complexo de castração. Lacan vislumbra a dimensão da

palavra para captar a experiência da falta. Nesse sentido, pretendemos

demonstrar as vicissitudes do nome na formação do ser falante. Pretendemos,

ainda, apontar como são as dinâmicas de socialização que passam pelo crivo

desse nome e a relação do filho com o Nome-do-Pai.

Vimos que, para Lacan, a questão da identificação é tratada pela

linguagem. A solução freudiana do conflito edipiano será, portanto, em uma

abordagem lacaniana, interpretada a partir da incidência da linguagem.

Pretendemos recuperar o caminho que leva o sujeito a se identificar com o

Nome-do-Pai, sendo que esse caminho problematiza a função simbólica do

Pai. A partir daí, vamos defender a idéia de que, nesse momento do ensino de

Lacan, o filho apenas pode testemunhar em Nome-do-Pai.

Essa função traz, no seu mecanismo, a falta. Para Lacan, esse ponto é

a interpretação da falta anunciando o seu declínio. Lacan privilegia a fala, que é

marcada por significantes que se remetem um ao Outro. O homem passa a

existir por sua função simbólica, e é por ela que deve ser apreendido. No ponto

em que Freud localiza o recalque, para Lacan, a condição de fixação é a

dimensão simbólica enquanto efeito de morte do infans. Lacan, no seu retorno

a Freud, demonstra que seu percurso da experiência de morte é realizado pela

palavra como desejo de reconhecimento.

Em torno do simbólico, pode-se apostar em uma organização efetiva

da estrutura a partir de uma experiência de morte. Esse sacrifício do corpo visa

criar uma satisfação pulsional. Podemos perceber um enquistamento na

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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economia do desejo, como conseqüência de uma fixação do simbólico. Nesse

ponto, é importante apontar para a experiência de morte enquanto

idiossincrasia do simbólico:

Assim o símbolo se manifesta primeiro como assassinato da coisa, e essa morte constitui no sujeito a eternização de seu desejo. O primeiro símbolo no qual reconhecemos a humanidade em seus vestígios é a sepultura, e a intermediação da morte se reconhece em toda a relação na qual o homem chega à vida de sua história (LACAN, 1966/1998, p. 320, grifo nosso).

É aí que Lacan diferencia o corpo enquanto carne e o corpo como

“corpsificação” – que é como ele chama a negativização da carne (LACAN,

1966/1998). A homofônia entre corps, em francês, e corpse, cadáver em inglês,

permite a Lacan demonstrar que o simbólico “corpsifica”.

O cadáver teria seu lugar nas sepulturas, onde a morte é eternizada.

As sepulturas traduzem a marca deixada na história, representando o

surgimento do humano. Elas representam o lugar vazio dos corpos que fazem

série. Desse modo, o corpo é corpsificado, pelo simbólico, em uma série de

presença e ausência. A ausência é a morte, e ela é a sepultura. Lacan aponta

para a linguagem como operadora da ação de cadaverização do corpo: o ser

repetidamente conduzido para sua sepultura – um ser para a morte. O jogo

significante é a representação de que algo falta – no caso, a sepultura –, e

essa falta só pode ser pensada por intermédio do simbólico. A morte é, então,

o limite de uma função histórica, a maneira de o sujeito definir sua

historicidade.24 A assimilação do simbólico é a própria historicidade do sujeito.

24 Levando-se em consideração a articulação existente entre sujeito e história, é importante

apontar que a psicanálise é oriunda da epistemé moderna, que se orienta pela história. O surgimento da história e da origem transforma o homem em um sujeito interior, com sua finitude circunscrita à própria singularidade. A finitude, a morte, operou como fator desencadeador para as concepções da nova racionalidade (FOUCAULT, 1966/2000). A finitude e o conceito de história, para a Idade Clássica, eram incompreensíveis. Segundo Foucault, a história foi um acontecimento fundamental – um dos mais radicais que ocorreram na cultura ocidental, para que desaparecesse a positividade do saber clássico e se constituísse uma positividade de que, por certo, não saímos inteiramente. Na época moderna, o homem aparece como aquele que faz sua própria história, surgindo um homem de história. Com o pensamento moderno, o homem instala-se no cerne do mundo para criar uma história, e o pensamento teocêntrico perde a primazia: “quanto mais avança na posse da natureza, tanto mais fortemente é acossado pela finitude, tanto mais se aproxima de sua

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A face da repetição é a mortificação. Assim, podemos dizer que a mortificação

é a pulsão de morte. Cada sujeito passa a se colocar na cadeia simbólica para

repetir sua história. Temos, aqui, um dos aspectos do conceito de inconsciente

ligado a um sentido dado pelo Outro. Há significante! Ele é a produção de um

saber numa história que articula os acontecimentos produzindo sentidos:

– nos documentos de arquivo, igualmente: e esses são as lembranças de minha infância, tão impenetráveis quanto eles, quando não lhes conheço a procedência; – na evolução semântica: e isto corresponde ao estoque e às acepções do vocabulário que me é particular, bem como ao estilo de minha vida e a meu caráter; – nas tradições também, ou seja, nas lendas que sob forma heroicizada veiculam minha história; – nos vestígios, enfim, que conservam inevitavelmente as distorções exigidas pela reinserção do capítulo adulterado nos capítulos que o enquadram, e cujo sentido minha exegese restabelecerá. (LACAN, 1966/1998, p. 261).

É assim que, no Discurso de Roma, de Lacan (1966/1998), surge um

axioma: o simbólico como o assassinato da coisa. Recuperando Heidegger, no

mesmo texto, a relação do sujeito com o simbólico passa a ser uma questão de

efeito de morte pela palavra: o ser torna-se um ser-para-a-morte (LACAN,

1966/1998, p. 280).

O sujeito substitui a presença da mãe pela linguagem e passa a supor-

se no Outro da linguagem. Essa operação deve-se ao giro da representação da

coisa para a representação da palavra.25 Esse compromisso da verdade

própria morte” (FOUCAULT, 1966/2000, p. 356). As forças do homem começam a agarrar as forças da finitude enquanto forças de fora, e a história aparece “na medida em que o homem natural é finito” (FOUCAULT, 1966/2000, p. 356). “Morrer, outrora um processo público e altamente exemplar (pense nas imagens da Idade Média, nas quais o leito de morte se metamorfoseava num trono, de encontro ao qual, através das portas escancaradas da casa mortuária, o povo ia-se apinhando)” (BENJAMIN, 1983, p. 64).

25 Para Freud (1915/2003), em seu texto “O Inconsciente”, há uma distinção entre representação de coisa e representação de palavra. Nesse texto, contemporâneo dos textos sobre o narcisismo, nota-se a preocupação do autor em demonstrar o estado livre da energia psíquica como a ausência da categoria da linguagem. Tal fenômeno seria a “fala do órgão”, a partir da qual “uma única palavra assume todo o encadeamento de pensamento, onde a formação de substitutos, palavra e coisa, não coincidem” (FREUD, 1915/2003, p. 194). Dessa forma, é possível que um órgão com determinada função adquira outra. Freud comenta o caso da paciente de Victor Tausk, relatando que a mesma diz: “eu tenho olhos virados”, porque seu amante é um “virador de olhos”. Ela queria dizer que seu amante é um homem que não é muito confiável. Freud observa que os olhos dela funcionavam perfeitamente bem, diferentemente do que ocorre com a histeria; por outro lado, na

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subjetiva da palavra é o articulador com que Lacan diferenciou a flatus vocis da

palavra vazia (LACAN, 1966/1998, p. 177). A palavra plena traz à tona um

sentido de revelação, diferenciando-se da vazia por ser, em sua plenitude,

criadora e reveladora. Somente a palavra plena poderia, nesse momento do

ensino lacaniano, passar o sujeito para fora do muro da linguagem e produzir a

emergência do sujeito do desejo, que é o reconhecimento de seu desejo pelo

Outro.

Toca-se na essência do que propõe Lacan, a partir de suas aulas com

Kojève sobre Hegel, em sua doutrina do desejo: desejo de desejo do Outro.

Esse ato de enodamento do sujeito pelo Outro faz surgir a consciência de si e a

gênese do aparelho psíquico como campo de fala que vem do Outro. O sujeito,

agora, estaria implicado na repetição de um desejo de reconhecimento. O jogo

enquadra-se na morte para incluí-la no “nascimento do simbólico” (LACAN,

1966/1998). A negativização do corpo é a sua própria morte. Na teoria da

comunicação e da palavra, há um termo que conduz à evidência, a deduzir a

função do reconhecimento. Desde essa perspectiva, o reconhecimento é o

ponto em que culmina a comunicação; no começo do ensino de Lacan, o

desejo é o reconhecimento pelo Outro. Lacan desenvolve a noção do desejo do

homem que encontra seu sentido no desejo do Outro – o desejo é o desejo do

Outro.

O desejo que se dirige ao outro desejo vai criar um Eu [humano] essencialmente diferente do “Eu” animal. [...] Esse Eu será assim sua própria obra; ele será (no futuro) o que ele se tornou pela negação (no presente) do que ele foi (no passado), sendo essa negação efetuada em vista do que ela se tornará. (Cf. KOJÈVE, 2002).

Aqui, se pode perceber melhor a expressão que Kojève tomou

emprestado de Hegel: o desejo de reconhecimento de uma fala do Outro. A

esquizofrênica, pode-se dizer, a expressão não toca seu organismo. Quando diz “estou com os olhos virados” – e há muitos exemplos como esse no texto de Freud, como o caso do esquizofrênico que diz “eu não tenho cabeça”, porque disseram a ele que perdera a cabeça –, não há, aí, um problema do organismo, mas daquilo que ele diz, do enunciado. É uma espécie de delírio do corpo, existindo apenas a representação de coisa sem a representação de palavra (FREUD, 1915/2003, p. 195). Com Lacan, podemos perceber que o esquizofrênico não se implica em um discurso que se inicia a partir do discurso do Outro.

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condição para que a pulsão entre na dimensão da intersubjetividade é a

humanização, a partir da fala do Outro, levando o sujeito a buscar a flatus vocis

vinda de um Outro Absoluto,26 verificando que o inconsciente é, então, o

discurso do Outro. Na fala, o sujeito é reconhecido pelo Outro e, para criar esse

reconhecimento, deve primeiro reconhecer o Outro como capaz de reconhecê-

lo, com o qual a palavra funda a oposição de ambos os sujeitos e implica a

reciprocidade.27

Em diferença do moi, que, para Lacan, é construído desde a imagem

do outro, o Je decorre do Outro, que é referência à linguagem enquanto efeito

da ordem simbólica. Por isso, o sujeito é conseqüência do significante e está

regido pelas leis do simbólico. Portanto, podemos afirmar que a causa do

sujeito é a estrutura do significante.

Lacan, ao se deter na estrutura da fala, comenta que falar é falar para

o outro: na mensagem, o que é visado é o outro como Outro Absoluto; o outro

é reconhecido e desconhecido, e, dele, o sujeito recebe sua mensagem sob a

forma invertida.

O inconsciente é esse outro que está no campo e função de fala e

linguagem. A linguagem possui a propriedade lingüística de um significante

acoplado a um significado. E estes fazem séries, deixando rastros indeléveis

na vida libidinal do sujeito. A palavra plena, essencial, a fala empenhada, está

fundada na fala estruturada como significante. Assim, Lacan podia ver, no

saber absoluto de Hegel, o resultado da noção totalizante de uma interpretação

que uma palavra plena delega ao sujeito que fala. A trilha inicial configura-se

com o axioma de inspiração hegeliana, que diz: “o desejo do homem é o desejo

do Outro”.

26 Com efeito, na perspectiva hegeliana, Deus é propriamente o Absoluto, em sua mais alta

afetividade, ou o absoluto elevado à potência de si. Nesse sentido, sua filosofia é de um idealismo significativo.

27 Essa distinção entre o Outro com um A maiúsculo, isto é, entre o Outro enquanto não conhecido, e o outro, com um a minúsculo, isto é, do outro que é o eu, fonte de todo conhecimento, é fundamental (LACAN, 1981/1985, p. 51).

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A referência ao tema hegeliano do desejo – “o desejo é o desejo do

Outro” é humanizante. O desejo é, fundamentalmente, desejo de

reconhecimento do Outro. O sujeito é resultado da interpretação que faz do

Outro. Existe uma significação que vem do Outro. Para demonstrar essa

legalidade do Outro, podemos demonstrar as constantes referências ao Outro,

no próprio Freud. Uma das faces da garantia da ordem da legalidade simbólica

é a história judaica, destacada por Freud em O chiste e sua relação com o

inconsciente:

Dois judeus encontram-se num vagão de trem em uma estação da Galícia. “Onde vai?” perguntou um. “A Cracóvia”, foi a resposta. “Como você é mentiroso!”, não se conteve o outro. “Se você dissesse que ia a Cracóvia, você queria fazer-me acreditar que estava indo a Lemberg. Mas sei que, de fato, você vai a Cracóvia Portanto, por que você está mentindo para mim?” (FREUD, 1976/2003, p. 136).

Freud, que sempre se interessou por anedotas judaicas, faz referência

às que servem a um extremo refinamento, que se opera pelo absurdo. O fato

de o segundo judeu ser censurado por mentir, por dizer que está indo à

Cracóvia, seu verdadeiro destino, confirma um witz a partir do paradoxo, pois

trata da imputação de um dizer enquanto substituição. Esse episódio é a

própria interpretação que o sujeito faz do Outro, que definimos como o lugar

das identificações. Em resumo, o paradoxo que o Outro é forçado a interpretar,

dizendo que vai à Cracóvia para que o segundo pense que ele vai a Lemberg,

assume um avesso do fides28 (LACAN, 1981/1985), um fingimento. Lacan

observa que: “o que o sujeito me diz está sempre em uma ação fundamental a

um fingimento possível, aonde ele me remete e onde eu recebo a mensagem

sob uma forma invertida” (LACAN, 1981/1985, p. 48).

E, assim, nessa revelação, “o sujeito é mais falado do que fala”

(LACAN, 1981/1985, p. 49). A mensagem que o sujeito recebe do outro vem

sempre de maneira invertida:

28 Na tradição filosófica, o fideísmo é uma doutrina que se sustenta na impotência da razão

para alcançar certas verdades e as necessidades de introdução da fé (MORA, 1994).

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a fala, com efeito, é um dom da linguagem, e a linguagem não é imaterial. É um corpo sutil, mas é corpo. As palavras são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito; podem engravidar a histérica, identificar-se com o objeto do Penisneid, representar a torrente de uma urina da ambição uretral, ou o excremento retido do gozo avarento (LACAN, 1966/1998, p. 302).

O segundo judeu lê, na resposta do primeiro, uma intenção de enganá-

lo, mesmo que isso não corresponda ao que realmente é dito. A interpretação

lacaniana dessa passagem é que o Outro é reconhecido, mas não é conhecido,

ou seja, a mensagem vem invertida em um jogo do dizer e do impossível a ser

dito, jogo que o witz freudiano faz emergir e que é enfatizado por Lacan.

Sabe-se, portanto, que o símbolo se constitui como a morte da coisa:

ao se incorporar como mensagem invertida do Outro, desvitaliza o corpo e,

com a linguagem, acarreta um efeito de mortificação sobre o mesmo. Logo,

pode-se apontar que o desejo do Outro teria um efeito de mortificação do

sujeito pelo significante. O simbólico é a morte da coisa, na medida em que

uma mensagem vinda do Outro substancializa o corpo. O Pai é uma função na

tradição do verbo, o verbo se faz carne. Essas referências à tradição cristã

estão em Lacan.

A partir daí, o Pai passa a ser o incubo ideal do Pai simbólico. A

indagação recai, portanto, sobre o sentido do uso desse complemento

possessivo, limitante, algumas vezes circunstancial, que é a partícula “do”,

presente no sintagma de inspiração hegeliana: “o desejo do homem é o desejo

do Outro” (KOJÈVE, 2001, p. 14). Isso quer dizer, como pretendemos

desenvolver no próximo capítulo, que se trata do desejo do Outro, não no

desejo do Outro. Nesse sentido, podemos vislumbrar um desejo do Outro que

humaniza o sujeito. Esse momento de humanização do desejo é o momento

em que o homem nasce para a linguagem:

Numa palavra, em parte alguma evidencia-se mais claramente que o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro, não tanto porque o outro detenha as chaves do objeto desejado, mas porque seu objeto é ser reconhecido pelo outro. (LACAN, 1966/1995, p. 269).

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O desejo se faz reconhecer na experiência intersubjetiva com o outro:

ali reside sua humanização, no reconhecimento de sua particularidade, na

linguagem primeira que capta o desejo, mesmo se a mensagem vem do outro

de maneira invertida (LACAN, 1981/1985, p. 54). É aqui que pretendemos

demonstrar que essa experiência do desejo do Outro não ocorre sem a força

de um sacrifício, a que a própria falta nos acomete, enquanto uma experiência

enigmática de morte. Essa experiência da morte requer um sacrifício enquanto

marca da proibição:

É a simples indicação desse gozo em sua infinitude que comporta a marca de sua proibição e, para constituir esta marca, implica um sacrifício: o que cabe num único e mesmo ato, com a escolha de seu símbolo, o falo. Essa escolha é permitida porque o falo, ou seja, a imagem do pênis, é negativizada em seu lugar de imagem especular. É isso que predestina o falo a dar corpo ao gozo, na dialética do desejo. É preciso, portanto, distinguir do princípio do sacrifício, que é simbólico, a função imaginária que se sacrifica a ele, mas que o vela ao mesmo tempo em que lhe dá seu instrumento. (LACAN, 1966/ 1998, p. 837).29

A falta do objeto que designa o phallus está sempre ligada à falta no

significante. O phallus é destacado. A partir do phallus, existe uma série

significante da falta.30 Podemos aplicar, nesse sentido, a própria experiência de

morte pelo significante. A experiência de morte pelo simbólico demonstra a

experiência do sacrifício do filho pelo simbólico, para que o infans possa se

reconhecer no campo da fala. Para esse sacrifício de entrada no simbólico,

surge a dialética do simbólico como a falta do Outro. Cabe, então, uma

discussão sobre o nascimento do simbólico como experiência da falta do Outro.

Essa experiência é a própria revelação do simbólico. Com isso, queremos dizer

que o fato de a identificação se consolidar enquanto experiência da falta é

29 É importante ressaltar que Lacan se esforça em teorizar a natureza simbólica do falo, o que

reflete o esforço lacaniano de escapar a toda denotação biológica dessa organização. O falo, a partir de Lacan, passa a ser um significante, contrapondo-se a algumas leituras pós-freudianas, pelas quais o falo tem correspondência na anatomia. No seminário A relação de objeto, Lacan (1956/1995) articula o falo a um produto da metáfora paterna, e, no texto “A significação do falo” (LACAN, 1966/1996), o falo passa a ser interpretado como significante.

30 Pretendo chamar a atenção, aqui, para a definição lacaniana do phallus mediador entre a demanda e o desejo.

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devido às vicissitudes do simbólico. Se o simbólico é a condição para a

historicidade do sujeito, essa condição se deve à experiência dialética do

simbólico enquanto marca do desejo do Outro. É a partir deste ponto que

podemos afirmar que o simbólico é a própria experiência do inconsciente. A

condição para que haja a dimensão do humano é que este seja alimentado

pelo Outro.

Para isso, é necessário que o sujeito parta da experiência da falta do

Outro. Nesse sentido, pretendemos demonstrar o resgate teológico que faz

Lacan. Para ilustrar essa questão, buscaremos recuperar a passagem da

ressurreição de Cristo como a que melhor representa essa construção.

Entendemos o resgate teológico da ressurreição como a própria ação do

significante. A ação da linguagem sobre o corpo evoca as conseqüências da

regulação afetiva, a partir da tradição do verbo enquanto nome. O verbo que se

faz carne, na tradição cristã, é a mudança do que era concebido como um

“corpo biológico” para o que a psicanálise veio a conceber como um “corpo

erógeno”. Para que haja uma dissolução das identificações do infans, é

importante que a função do significante perpasse a tradição do verbo.

Logo, é possível aproximar a palavra a uma figura do divino, na

constituição do sujeito: “O verbo é, então, a morte da coisa” (LACAN,

1966/1998, p. 320; grifo nosso). Segundo a expressão dos autores da Bíblia,

fazendo eco ao banquete freudiano da identificação ao Pai, podemos

vislumbrar, com são João, que: “o Verbo se fez carne e habitou entre nós,

cheio de graça e de verdade, e vimos sua glória, glória como do unigênito do

Pai” (Jo 1,14).

O simbólico se incorpora, o corpo se faz verbo. Do encontro traumático

entre a carne e o verbo fica a marca de um sofrimento originário. Lacan é

obrigado a substantificar a fala e dar a ela uma potência, restaurando a teologia

da criação pelo verbo, a partir de um trabalho genealógico da tradição do

verbo. É nesse sentido que podemos entender que João, em duas palavras,

delimitou perfeitamente o âmbito do entendimento, dizendo: “No princípio era o

verbo” (Jo 1,1):

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a inteligência, efetivamente não pode ir além deste “era”; menos ainda a imaginação ultrapassar este “princípio”. De fato, por mais que subas com o pensamento, não superarás este “era”. E por mais que te esforces por ver o que está além do filho, não ultrapassarás o “princípio”. De acordo com esta exposição será uma piedade no filho simultaneamente com o Pai (BASÍLIO, séc. III/2005, p. 163).

É importante demarcar a preocupação de são Basílio da Capadócia no

que concerne às suas leituras sobre o verbo de são João. O santo do século III

faz uma leitura do substantivo “princípio” e do verbo “era”, a origem que são

João comenta como o princípio que fala.31 A leitura desses termos suscita um

início que é marcado pelo verbo, um verbo que aproxima o Pai do filho.

Cristo é o Verbo, o logos, isso nos é repisado na educação católica. Que ele é o verbo encarnado não há a menor dúvida, essa é a forma mais abreviada do Credo. É a totalidade do Verbo. (LACAN, 1957/1999, p. 463).

No princípio era o Pai, o Falo e o Verbo: é em torno dessa trilogia que

Lacan constrói o Édipo, como uma invariante inelutável inscrita no

inconsciente. Cristo é a própria carne deífica. O sexual é, portanto, desde a

origem, assujeitado à linguagem – “No começo era o Verbo”, que é também

Ação32 – e, sem poder sobre ela, pois a ordem simbólica, em sua permanência,

é uma organização lógica que regula, na base, as relações dos indivíduos com

sua cultura. Com Lacan, o Outro Absoluto de Hegel instaura o desejo e a

castração, amarrando o desejo com a Lei (LACAN, 1966/1988), enquanto o

simbólico representa a barra da relação incestuosa que o sujeito estabelece

com a mãe. Assim, pelo fato de o Pai habitar o Verbo, o filho só pode

testemunhar em Nome-do-Pai. Podemos, aí, abordar a questão sobre a

identificação, juntamente com a experiência simbólica, que é melhor

representada na paixão de Cristo:

31 “Eu sou o princípio, o mesmo que vos falo” (Jo, 8,25). 32 “Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse“, 1953 (Écrits, p. 271).

Lacan inverte a "inversão" de Goethe, "No começo era a Ação", para reafirmar a fórmula cristã, "No começo era o Verbo", que ele cita tal e qual, como seu credo, em Le discours de Rome (no mesmo congresso de 1953). A partir desse ponto, para Lacan, o inconsciente é compreendido como um aparelho de fala e de linguagem.

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É por seu intermédio que a verdade sobre Deus pôde vir à luz, isto é, que Deus foi realmente morto pelos homens, e que, a coisa tendo sido reproduzida [i.e. na Paixão de Cristo], o assassinato primitivo foi redimido. A verdade encontrou sua via por meio daquele que a Escritura chama certamente de o Verbo, mas também o filho do homem. (LACAN, 1986/1988, p. 221).

Desse modo, pretendemos percorrer as vicissitudes do simbólico,

tendo como parâmetro a experiência teológica. Os efeitos do corpo que se faz

carne seriam, a nosso ver, a própria palavra que mata o gozo.

A origem da palavra “paixão” é religiosa. O termo “paixão” tem ecos do

cristianismo. Além do sofrimento de Cristo, essa “paixão” é a própria paixão de

Cristo, já que, através de seu sofrimento, há testemunho. Desse modo, existe

paixão quando há sofrimento e testemunho. Na teologia cristã, ela designa a

ambos: o sofrimento e a morte de Cristo. Há um sujeito que é apaixonado e é

marcado por seu sofrimento. Isso é o que expressa o sublime grito: “Pai, por

que me abandonastes!”. Nesse sentido, Cristo se mostra como testemunha do

Pai. Essa é a solução de Lacan com relação à falta na linguagem. A primeira

vez que se chamou o Pai foi a primeira vez, na história, que Deus pode ser

chamado de Pai, como um grito masoquista para salvá-lo.33

Esse circuito, como pretendemos mostrar, será concluído na Paixão de

Cristo, com a reencenação do assassinato do grande Homem, seguido da

ressurreição daquele que a todos redime, e da confirmação da presença de um

Deus único. A partir do texto Totem e tabu, Freud demonstra que o assassinato

do Pai, por seu povo, é reencenado pelo sacrifício de Cristo, mensagem de um

Deus único, veiculação da dimensão simbólica do Pai. Cristo sacrifica a própria

vida para aliviar seus filhos do pecado original. Lacan utiliza o termo “paixão do

significante”. Para Lacan, essa experiência se revela no túmulo vazio como a

própria experiência da falta inerente ao simbólico.

Não temos que responder a nenhuma verdade última, especialmente nem a favor nem contra nenhuma religião. Já é muito que devamos colocar aqui, o Pai morto. Mas um mito não

33 A questão sobre o masoquismo será trabalhada no terceiro capítulo.

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se basta a si mesmo se não suporta algum rito, e a psicanálise não é o rito do Édipo, observação para desenvolver logo. Sem dúvida, o cadáver é um significante, mas, a tumba de Moisés está tão vazia para Freud como a de Cristo para Hegel (LACAN, 1966/1998, p. 833).

Esta tese busca, então, aproximar as vicissitudes do simbólico como

Nome-do-Pai. A partir desse objetivo, faz-se necessário demonstrar que é pelo

fato de faltar no Outro o significante de significação absoluta que Lacan

recupera essa passagem. Pretendemos demonstrar que o sujeito surge da falta

de uma significação absoluta do Outro, sendo essa falta a marca de seu

próprio pecado. Nesse ponto, é necessário que Cristo, para Hegel, e Moisés,

para Freud, estejam mortos e com suas respectivas tumbas vazias, lugar

evocado por Lacan como o da exceção inerente ao simbólico. Sugem sujeitos

apaixonados pelos significantes, já que a paixão remete à dimensão da falta. É

com referência ao falo que a paixão do significante se instala.

A existência de um pote de exceção no simbólico é exatamente o que

faz com que as paixões do amor e do ódio34 se sustentem em um Outro que

falta. O nome é uma exceção no simbólico. Desse modo, o feito da falta no

Outro é a fixação no Outro, através do fantasma, o que Freud chamou de

ambivalência. O neurótico opta por não saber sobre o desejo do Outro. O

sujeito é o resultado da interpretação do Outro. A tumba de Cristo esvazia-se

para que se processe a ressurreição. A partir do momento em que o corpo

subtrai-se de seu lugar, institui-se o sujeito que crê em suas paixões. Se Freud

propõe que o amor ao Pai se sustenta a partir de um ódio recalcado, esse Pai

amor não seria possível sem a noção de falta.35

34 Lembramos, aqui, o trabalho sobre a ambivalência desenvolvido no primeiro capítulo. 35 O phallus aparece como falta. O interessante é que ele é selado por um vazio. É

interessante ver como Lacan utiliza esse instrumento para localizar o lugar vazio do sujeito em relação ao falo, numa função que condensa a positividade de um gozo e a negatividade do complexo de castração freudiano. A experiência da falta retorna em uma demanda endereçada ao Outro. Essas paixões que produzem a existência do Outro: como ideal no caso do amor, no caso do ódio, teria o apagamento, e, com relação à ignorância, teríamos o saber (VIEIRA, 2001, p.176), um significante inesperado. É nesse tipo de véu que surge a paixão fundamental da ignorância.

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Cabe, aqui, um esforço de análise dos efeitos da incidência do Nome-

do-Pai (simbólico) para o fenômeno da ambivalência – amor e ódio, fenômeno

que se sustenta a partir da experiência da falta no Outro.

Existiria, então, uma relação entre amor e Outro. O Outro da demanda

detém os significantes da satisfação. Esses significantes adquirem valor

simbólico do testemunho do amor. Essa alusão de Lacan à experiência de

falta apresenta recursos imprescindíveis no que concerne ao estatuto do

inconsciente. Essa experiência é a mensagem enviada de um Pai para seu

filho. As referências lacanianas a essa passagem, a nosso ver, são as trilhas

da própria ressurreição de Cristo, enquanto aquele que veicula a mensagem

do Pai.

Resumindo, o sacrifício de Cristo é uma reencenação da morte do Pai.

A idealização do Pai é a manifestação do amor a ele, enquanto o ódio é a

própria sustentação desse amor, fenômeno a que Freud deu o nome de

ambivalência.

No entanto, há outro elemento que marca a identificação a esse Pai,

não mais relacionado à ambivalência, mas, à experiência da falta. Para que

haja esse fundamento, é necessário que a experiência de falta traga o

simbólico como elemento da constituição psíquica. Para além do significante,

só podemos imaginá-lo com base no simbólico, que reflete a experiência da

falta. A partir do relato bíblico, é necessário dizer, também, que a ambivalência

se sustenta na própria experiência da falta. Se Freud trabalha a idéia de

ambivalência, ele o faz por não ter em mãos o recurso da falibilidade simbólica

desse Pai. O recurso teológico, como vimos, é o que melhor embasa a

discussão acerca da experiência da falta, a partir da ressurreição de Cristo.

Se, para Lacan, a ambivalência – amor e ódio – se sustenta na própria

falta, é porque o neurótico responde à experiência do desejo do Outro com

horror. Nesse sentido, o caminho que esta tese trilha é a de demonstrar que a

construção freudiana sobre a ambivalência é revelada na experiência da falta

que o Nome-do-Pai suscita. Desse modo, no capítulo anterior, pudemos

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entender a ambivalência ao Pai como a expressão mais primitiva da

mensagem que um Pai envia para seu filho. Neste segundo capítulo, com o

ensino de Lacan, passamos a considerá-la como um lugar para uma resposta

diante da falta. Também pode ser dito que a paixão se manifesta enquanto

demanda, e é através da demanda que a paixão do significante opera:

Essa linha corresponde ao efeito da articulação significante tomada em seu conjunto, na medida em que, por sua simples presença, ela faz aparecer o simbólico no real. Em sua totalidade, ou por se articular, é que ela faz surgir o horizonte ou a possibilidade da demanda, esse poder da demanda que consiste em que ele seja, essencialmente e por natureza, demanda de amor, demanda de presença, com toda a ambivalência que convém introduzir nisso. É para falar de alguma coisa que falo aqui de amor. O ódio neste caso tem o mesmo lugar. É unicamente neste ponto que a ambivalência de amor e de ódio pode ser concebida. É também neste horizonte que podemos ver chegar ao mesmo ponto um terceiro termo, homólogo do amor e do ódio em relação ao sujeito, que é a ignorância. É aí que se encontra o significante de A barrado, deste modo, marcado pela ação do significante. É neste ponto que ocorre a passagem da demanda para um Outro que é a mensagem. (LACAN, 1957/1998, p. 452; grifos nossos).

A revelação do simbólico é a própria cena da ressurreição de Cristo

enquanto marca da experiência da falta do Outro. Este é o ponto em que o mito

do Pai morto vem tomar lugar. A cena da ressurreição de Cristo é a experiência

da falta do Outro pela revelação do simbólico. Através de Cristo, Deus-Pai

pode enviar sua mensagem por um registro simbólico. Ou seja, o simbólico é o

Nome-do-Pai que revela a experiência da falta.

É nessa perspectiva que a crença cristã tem como condição a

ressurreição do Cristo. Os cristãos amam o filho, e essa admissão é a base da

religião do filho. Há uma redenção pelo sacrifício do filho de Deus. Dito de outra

maneira, e recuperando as hipóteses teológicas presentes nesta tese, o amor a

Cristo se expressa sob a égide da ambivalência. Isso foi demonstrado quando

verificamos que sua face de amor se sustenta a partir de um ódio. Recorremos

ao mito freudiano do assassinato primordial para ressituarmos o amor ao Pai

cristão. Esse mito introduz a experiência da falta para que os afetos de amor e

ódio se sustentem. Podemos verificar, assim, que a figura do Pai monoteísta

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traz, exatamente, a encarnação do bem e do mal.36 Juntamente com a

ignorância, essas são as três paixões do ser, que se articulam a partir da

estrutura do significante – estando essa estrutura associada ou não a um

saber. Nesse caso, teríamos o amor como antônimo do ódio, e, de outro lado,

teríamos a ignorância, que situa o homem diante de um não-saber sobre o

desejo do sujeito. Para Lacan, é somente na dimensão do ser, e não na do

real, que se inscrevem essas três paixões fundamentais.

A partir de Lacan, essa insistência de amor ao Outro se realiza diante

da falta. O ato sacrificial da falta outorga consistência a um amor ao Outro. A

falta é a que melhor facilita o entendimento sobre a subjetivação da

ambivalência freudiana.37

A experiência religiosa deixa ver que é a partir do engendramento do

simbólico que podemos extrair uma fixação dos afetos – amor e ódio -, não

existindo afeto que não seja do Outro. O mecanismo que permite o advento da

falta é, então, a fixação da linguagem, a partir da experiência de morte pela

palavra. A presença do fantasma marca de maneira fundamental os modos de

subjetivação do Outro e de inserção na ordem simbólica. O fantasma é a

maneira de o sujeito representar o encontro com a falta do Outro. A falta torna-

se o espaço do simbólico, é o significante no Outro; é isso que demonstra a

própria experiência inconsciente, que tem como fundação o vazio, no qual a

experiência da falta do Outro lança o sujeito.

Seguindo essa trilha, vemos que Lacan comenta que o cristianismo

confere um conteúdo pleno à morte do Deus. Na realidade, mais do que

duplicar a morte do Pai, através do sacrifício do filho, “o cristianismo encarna

literalmente esta morte” (LACAN, 1986/1988, p. 227). Como ensina a Bíblia, o

filho é aquele que presentifica o Pai, na medida em que aí se inscreve, pela 36 ROUDINESCO, Elizabeth. Seminário proferido em 2007/2008, no Departamento de

Ciências da Religião da École des Hautes Études, em Paris. 37 É importante recuperar essa construção de Lacan sobre a ambivalência a partir da falta,

pois ele propõe articular a falta para além do binarismo da ambivalência, que é o par imaginário amor/ódio. A ignorância é exatamente o articulador estrutural desse binarismo. Lacan vai além da ego-psychology, que parece direcionar o tratamento apenas para o campo do imaginário.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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encarnação do verbo, o próprio ser de Deus, na função formal de um nome: o

Nome-do-Pai.

Surge aí o homem de crença, que teria na imagem de um túmulo vazio

um lugar para sua crença repousar. A promessa da ressurreição revela que a

experiência de um Pai morto se presentifica no esvaziamento do túmulo. O Pai,

como tal, não existe, a não ser morto, representado como um ente mítico. Por

essa razão, após a morte de Cristo, surge o amor entre Deus-Pai e os cristãos.

Nesse sentido, o cristianismo foi a religião que melhor construiu a

ligação entre o homem e Deus-Pai. Essa religião delega a Cristo o lugar de

sumo pontífice, veiculando a mensagem espiritual de Deus-Pai para os

cristãos. A dimensão divina do simbólico transfigura-se na própria encarnação

de Cristo.

Em seguida – articulação na qual não se detém suficientemente – se instaura um consentimento inaugural que é um tempo essencial na instituição dessa lei, quanto à qual toda a arte de Freud será de vinculá-la ao assassinato do pai, de identificá-la à ambivalência que então funda as relações do filho com o pai, isto é, ao retorno do amor após ter efetuado o ato. Esse ato constituía todo o mistério. Ele é feito para nos velar isto, que não apenas o assassinato do pai não abre a via para o gozo que sua presença era suposta interditar, mas, ele reforça sua interdição. Tudo está aí, e é justamente isso, tanto no fato quanto na explicação, a falha. O obstáculo sendo exterminado sob a forma do assassinato, nem por isso o gozo deixa de permanecer interditado, e ainda mais, essa interdição é reforçada. Essa falta interditada é, portanto, sustentada, articulada, tornada sensível pelo mito, mas é, ao mesmo tempo, profundamente camuflada por ele. É justamente por isso que o importante de Totem e tabu é de ele ser um mito e, como se disse, talvez o único mito de que a época moderna tenha sido capaz. E foi Freud quem o escreveu. (LACAN, 1960/1988, p. 216; grifos nossos).

O mito do Pai da horda primitiva traz a face encobridora da falta. É

assim que podemos interpretar a leitura lacaniana do mito da horda primitiva. O

pai de Totem e tabu é um Pai morto. Não temos mais conhecimento do Pai a

não ser morto. Podemos, então, localizar o ódio e o amor no campo do

imaginário, e a ignorância no campo da falta.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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A função do Pai não passa de um mito freudiano, é o que anuncia

Lacan. Esse mito se refere à equivalência entre pai morto e gozo, e à

insistência de Freud de que o assassinato do pai, tal como relata em Totem e

tabu, realmente tenha acontecido, dando origem à interdição do gozo.

Em Totem e tabu, Freud constrói um mito científico, o da horda

primitiva. O mito da horda primitiva é posto na origem do mito edipiano. Ele

organiza, em torno da transmutação simbólica da figura paterna, a lei da

proibição do incesto que enquadra o mito edipiano. No entanto, Lacan se

ocupa de colocar a presença do simbólico, no esforço de engendrar um mais

além do Édipo.

Buscaremos, então, investigar as construções lacanianas sobre o Pai

morto. As referências do Seminário Livro 7: A ética da psicanálise serão

recuperadas para demonstrarmos a gênese do Pai morto, a partir da noção de

falta. É no início dos anos de 1960 que Lacan insitirá em formular a sua crítica

à intersubjetividade a partir do Pai morto.

Através desta experiência de morte do infans, ele se identifica com o Pai morto e o sujeito começa a se reconhecer na sua a universalidade de outros sujeitos. O sujeito, juntamente com a experiência de morte que é o desejo do outro [...]. (LACAN, 1966/1998, p. 307).

A figura do Deus morto é um ente mítico que pode ser vislumbrado a

partir de um esvaziamento, o mesmo movimento que vê surgir a crença em um

Pai. No cristianismo, essa função é repetida na cena da ressurreição de Cristo,

enquanto espécie de horror ou denegação diante de um espaço vazio.

Mas é curioso ver, há algum tempo, desde que se sabe que Deus está morto, os tais dos fiéis empregarem o equívoco, referindo-se ao Deus da dialética, eles tentam encontrar o álibi de seu culto abalado (LACAN, 1960/1988, p. 56).

Essa falha a que Lacan faz referência é exatamente camuflada pelo

mito da ambivalência em relação ao Pai. Nesse caso, uma mensagem é

vinculada ao Pai primevo: o Pai morto retorna para que possam surgir os

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irmãos em Cristo, tornando necessário que haja um que esteja morto para que

os irmãos se identifiquem entre si.

É tão perto da tradição cristã que é impressionante – é na medida em que o assassinato primordial do Grande Homem vem emergir num segundo assassinato, o do Cristo, que, de alguma forma o traduz e o traz à luz, que a mensagem monoteísta se termina. É na medida em que a maldição secreta do assassinato do Grande Homem, cujo poder advém unicamente do fato de ressoar sobre o fundo do assassinato inaugural da humanidade, o Pai primitivo, é na medida em que este, enfim, vem à luz que se efetiva o que cabe bem chamar, pois, está no texto de Freud, de redenção cristã. (LACAN, 1960/1988, p. 214).

A partir daí, o processo mesmo da crença, como a experiência crística

ensina, deve-se ao fato de o lugar ocupado pelo corpo de Cristo ter sido

esvaziado. Essa experiência da palavra é, para a criança, o que se revela na

crença no Outro, que será capaz de guiar as marcas simbólicas do sujeito a

partir de um desamparo fundamental (Hilflosigkeit). Dito de outra maneira, é no

endereçamento ao Outro que a falta se apóia para garantir ao homem de

crença um sentido para sua experiência de morte. Daí as referências a uma

falta do Outro que vislumbra um sujeito de crença. Se, no caso do cristianismo,

existe um amor à figura de Deus, esse amor é devido ao horror suscitado

quando se encontrou o túmulo de seu filho vazio. A união dos irmãos, visando

matar e destruir o poder paterno, teve como conseqüência a interdição do gozo

do Pai, que possuía todas as mulheres. Em troca, instaura-se um pacto que

impede cada ser humano de gozar como o Pai. A posse de uma mulher é o

limite para que haja a Lei a que todos estão submetidos.

Nos termos de Lacan, a Lei da linguagem é contemporânea da

instalação da falta do Outro. O Pai da horda primitiva, assassinado pelo filho,

passa a existir com a sua ausência, para aí verificarmos que a mensagem que

pode nos dar o inconsciente é a do significante que falta no Outro. Este é um

Pai que se define a partir de uma Lei relativa ao desejo, um Pai que pode

encarnar a Lei a partir do desejo.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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A idealização do Pai é a afirmação da lei enquanto referência

simbólica, consolidando-se uma orientação dirigida a um ideal simbólico

veiculado pelo Pai. A crença no simbólico confere ao cristianismo sua maior

expressão. O cristianismo reencena a morte do Pai a partir da morte do filho,

encarnando essa morte como experiência de corpsificação pelo simbólico. O

psiquismo é, portanto, religiosamente cristão, se levarmos em conta que, para

Lacan, a verdadeira religião é a romana (LACAN, 1960/2005, p. 31). O filho só

pode testemunhar sobre o Pai se este estiver morto. A religião cristã constata

que a revelação de Deus se sustenta no sacrifício de Cristo. Cristo é a figura de

ligação entre Deus e seu povo, e sua revelação se manifesta a partir de uma

ordem simbólica.

A morte de Deus, consumada pela de Cristo, encontra-se, na verdade,

vinculada ao parricídio, mediante o qual se constitui, como vemos no mito

freudiano, a origem da Lei. O Deus cuja morte está em questão não é um Deus

metafísico, mas o Deus-Pai. Lacan associa a morte de Deus à de Cristo. O Pai

morto e a morte do filho têm como conseqüência o amor ao Pai. Assim, o

conceito de Nome-do-Pai, em Lacan, une o complexo de Édipo freudiano ao

mito de Totem e tabu, pela metáfora paterna. Unem-se, de maneira muito

elegante, e, juntos, introduzem o Pai morto – e o complexo de castração. A

força é a união das três vertentes de Freud. E é isso que Lacan relaciona com

a castração. O significante passa a corresponder a uma posição da diferença

dos sexos, a partir daquilo que define a presença e a ausência do phallus.

Compreende-se, nesse ponto, que o significante, para Lacan, é marcado como

pura diferença.

Para isso, é importante lembrar que Lacan, ao aproximar a morte de

Deus à de Cristo, qualifica este último como sempre presente. O Pai morto,

que, precisamente por ser morto, recua para o centro mítico das origens, passa

a ser a referência comum do ideal do ego: todas as referências recorrem a ele,

sendo essa a representação que vigorará após o crime inaugural.

Se o mito da origem da Lei se encarna no assassinato do pai, é lá que são tirados todos esses protótipos que sucessivamente

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se chamam animal totem, depois tal deus, mais ou menos poderoso e ciumento, e, ao fim das contas, o deus único, Deus, o Pai. O mito do assassinato do pai é justamente o mito de um tempo em que Deus está morto. (LACAN, 1960/1988, p. 217).

O tema do assassinato constitui a passagem do Pai morto à Lei. Isso

se expressa na problemática do segundo mandamento: “amarás ao próximo

como a ti mesmo”. A partir do comentário de Freud sobre esse mandamento,

no seu Mal estar na civilização,38 Lacan profere uma lição sobre essa

passagem bíblica. A comunhão cristã representou uma nova encenação da

culpa universal do Pai primevo. Essa comunhão é a ação do pecado na

pastoral cristã. O amor ao próximo representou uma síntese a partir da

sacralização do Pai morto. Quando Lacan, em seu retorno a Freud, aponta

para as formulações freudianas sobre o amor ao próximo, surge uma outra

interpretação para compreendermos que a psicanálise propõe um lugar para o

amor. Isso quer dizer que uma maldade, inerente ao amor ao próximo, retorna

para aquele que ama.

Sabemos que Freud, no texto Psicologia das massas e análise do Eu,

demonstra que a paixão antitética do amor é o ódio, e que o cristianismo se

apóia em uma ética de apelo ao amor: “amarás ao próximo como a ti mesmo”.

Assim, essa questão lançada por Freud traz à tona uma reflexão sobre esse

segundo mandamento, permitindo a não-renúncia ao gozo, mas uma maneira

de encontrar a maldade do outro tal qual a minha: “Os dois termos, a morte de

38 Para Freud, no seu Mal estar na civilização, de 1929, o ser humano estaria submetido a três

tipos de males que poderiam lhe causar sofrimentos: as catástrofes naturais, as doenças contagiosas, e as relações entre os próprios humanos. Com relação aos dois primeiros, segundo Freud, não poderíamos interferir de maneira decisiva, mas, em relação a este terceiro mal, Freud faz uma reflexão a partir da temática do segundo mandamento: “amarás ao próximo como a ti mesmo”. Freud passa a questionar o efeito civilizador desse mandamento. Para ele, se o próximo fosse um objeto possível de seu amor, esse amor não poderia ser imposto como um mandamento. Para o psicanalista, não basta amar ao próximo, é preciso amá-lo tanto quanto o sujeito ama a si mesmo. Freud vai considerar esse mandamento exorbitante. A partir daí, faz uma reflexão sobre as vicissitudes do amor e do ódio. É eentão que Freud ratifica suas hipóteses sobre a ambivalência, confirmando uma exacerbação do amor ao próximo, que, paradoxalmente, faz surgir uma força do supereu sobre o Eu. Essa ação do ódio sobre o Eu é demonstrada pela subjetivação do sentimento de culpa, sentimento este que seria a própria expressão do mal-estar na cultura.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Deus e o amor ao próximo, são historicamente solidários” (LACAN, 1960/1988,

p. 236).

Lacan, a partir daí, retoma a problemática desse mal-estar,

demonstrando que o apelo cristão não leva em consideração o fato de que não

podemos nos aproximar do Outro sem temê-lo, pois ele representa o gozo que

existe no prórpio sujeito. O sujeito não poderia se aproximar do outro sem

deixar de temer o gozo que existe naquele do qual se aproxima.

Mas, se Deus está morto para nós, é porque o está desde sempre, e é justamente isso que nos diz Freud. Ele nunca foi pai a não ser na mitologia do filho, isto é, na do mandamento que ordena amá-lo, ele o pai, e no drama da paixão que nos mostra que há uma ressurreição para além da morte. Quer dizer que o homem que encarnou a morte de Deus continua existindo. Continua existindo com esse mandamento que ordene amar a Deus. É perante isso que Freud se detém, e se detém da mesma feita – a coisa é articulada no Mal-estar na civilização – perante o amor do próximo, que nos parece algo de insuportável, a até mesmo de incompreensível. (LACAN, 1960/1988, p. 218).

Se Freud julga o “amar ao próximo como a ti mesmo” uma exorbitância,

Lacan vai mais longe, dizendo que a exigência desse mandamento faz com

que recuemos diante da maldade do próximo, que não é outra coisa senão nós

mesmos.

O amor ao Pai está em contradição com o amor ao próximo. O

mandamento cristão não se sustenta como princípio norteador de uma ética

para a psicanálise, pois, segundo Lacan, a condição de sustentação desse

dizer cristão porta uma incoerência. Amar ao próximo é garantir o amor do Pai

– seria a referência freudiana para garantir o problema da ética cristã, em seu

ensaio Psicologia das massas e análise do Eu. Se, para Freud, isso se

sustenta a partir do ódio que foi recalcado, para Lacan, no entanto, se Cristo

morreu na cruz para salvar os cristãos de seus pecados, isso ocorreu em

virtude do pecado original, para que Cristo executasse a mensagem de Deus-

Pai para com seu povo.

Paulo, um judeu romano de Tarso, apoderou-se desse sentimento de culpa e o fez remontar corretamente à sua fonte

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original. Chamou essa fonte de “pecado original”, fora um crime contra Deus, e só pôde ser expiado pela morte. Com o pecado original, a morte apareceu no mundo. Na verdade esse crime merecedor de morte fora o assassinato do Pai primevo posteriormente deificado. Mas, o assassinato não era recordado, ao invés, havia uma fantasia de sua expiação, e, por essa razão, essa realidade poderia ser saudada como uma mensagem de redenção. Um filho de Deus se permitia ser morto sem culpa e assim tomara sobre si próprio a culpa de todos os homens. Tinha que ser um filho, na medida em que fora o assassinato do Pai. É provável que tradições de mistérios orientais e gregos tenham exercido influências na fantasia da redenção. O essencial nela parece ter sido a própria contribuição de Paulo. No sentido mais próprio, ele foi um homem de disposição inatamente religiosa: os traços sombrios do passado espreitavam em sua mente, prontos a inrromperem para suas regiões mais conscientes (FREUD, 1939/2003, p. 83).

A partir da retomada de Freud por Lacan, pode-se ler, nessa

passagem, a maneira com que Freud interpreta a experiência da falta,

referência da religião enquanto o próprio pecado original. Nesse ponto, nos

aproximamos do objetivo desta tese, ou seja, delimitar como podemos

entender o pecado seguido de seus desdobramentos com relação à

identificação ao Pai. É por isso que podemos afirmar que a concepção de

pecado, até o momento, está intrinsecamente ligada ao significante. No

cristianismo, o sacrifício do filho coloca uma aliança com o Pai, uma aliança

que, com a morte do filho, faz surgir a ressurreição. O martírio do Cristo coloca

todos os filhos salvos do pecado. O sacrifício vicário é a própria espiritualização

dos sacrifícios – momento em que não há mais sacrifícios de animais. O

sacrifício de Jesus é a mudança do sacrifício cruento para o sacrifício espiritual,

surgindo alguém que sofra para a redenção de todos. A carne deífica é a carne

de Jesus Cristo. A mensagem que Deus-Pai envia para os cristãos é o próprio

Cristo.

A referência freudiana para essa questão é são Paulo que, em um

primeiro momento de sua vida, perseguia os cristãos e, em seguida, converteu-

se ao cristianismo. A maneira que Freud interpreta a experiência de culpa é a

leitura de são Paulo sobre a questão do pecado original (FREUD, 1939/2003).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Isso quer dizer que o judeu romano de Tarso conhecia uma falta imperdoável.

O enfoque freudiano repousa sobre o pecado original que são Paulo interpreta.

É a marca de um crime contra o Pai que se converte na morte do próprio

Cristo; segundo Freud, a primeira experiência de morte.

Lembremos quando Lacan comenta a epístola de são Paulo, ilustrando

a inseparável relação do desejo com a Lei. A reflexão de são Paulo na Epístola

aos romanos esclarece o percurso psicanalítico da própria falta. Na verdade,

isso é a renúncia a toda relação narcísica, o preço a pagar para confirmar a

Lei, que é o desejo do Outro. Se a lei do desejo sempre diz respeito a um

Outro, geralmente dramático, cruel, que exige renúncia e sacrifício, a questão

de são Paulo pode ser colocada da seguinte forma: sendo o Nome do Pai o

significante da lei no Outro, e partindo do fato de que não há desejo sem lei,

como se pode colocar a Lei juntamente com o desejo?

Lacan propõe no Seminário Livro 7: A ética da psicanálise que o objeto

de desejo é, por excelência, um objeto interditado. Para ele, a lei é o que define

o que se interdita, e o que está interditado é o que condiciona o desejo, então,

haveria uma prevalência da lei sobre o desejo. Para lidar com esse problema,

Lacan irá apoiar-se na definição de pecado de são Paulo, como se pode ler no

Seminário Livro 7: A ética da psicanálise, postulando que a lei cria o desejo, e

também é ela que sustenta e interdita o desejo. Existiria, assim, uma

equivalência entre os dois, que revela a reciprocidade entre ambos: o nó da lei

e do desejo: “com a lei do incesto, subtrai-se o inconsciente como um ato

enodado do desejo com a Lei” (LACAN, 1988, p. 217; grifo nosso).

Seguindo, por outro lado, o percurso de Freud, o sacrifício do filho

único levaria à reconciliação com o Pai, visto que Cristo morre para salvar os

cristãos de seus pecados (FREUD, 1913/2003, p. 155). O pecado, como

pretendemos desenvolver, é o que sustenta a Lei paterna e o pacto entre os

irmãos. Ou seja, é necessário que nem todos os sujeitos estejam submetidos à

Lei para que haja o pecado e, por conseguinte, que todos passem a estar

submetidos a ela para que a culpa pelo assassinato do Pai seja introjetada. A

Lei paterna inseriu-se com o pecado original: se Cristo morreu na cruz para

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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absolver os devotos de seu pecado, a Lei paterna marca sua ressurreição. A

marca da Lei paterna é o signo do amor, que se revela no amor a Deus, a partir

da ressurreição. A falibilidade do Pai é o próprio Cristo.

O ritual da comunhão cristã revela os irmãos em Cristo alimentando-se

do Pai primevo, em sacramento. O cristianismo demonstra que a culpa dos

cristãos recai sobre seu mártir, que morre para salvá-los do pecado original. A

morte de Deus, consumada pela de Cristo, encontra-se, como vimos, vinculada

ao parricídio, mediante o qual se constitui, no mito freudiano, a origem da Lei.

O Pai morto e a morte do filho têm como conseqüência o amor ao Pai. Assim, a

comunhão cristã é a que melhor representa uma nova encenação da culpa

universal do Pai primevo.

Se Freud salva o Pai a partir da ambivalência, aqui, por outro viés,

esbarramos em sua falibilidade. Lacan assinala que a idealização ao Pai existe

por que o pai falha no campo da linguagem. Freud suspeita que o mito cristão

do pecado original deva ser, inicialmente, um pecado de morte contra o Pai

primevo. O sacrifício é, então, a interdição marcada pelo simbólico, que vem se

apoiar na falta suscitada pelo pecado. A lei que resulta da idealização do Pai

morto.

Chega-se, então, ao pai morto como equivalente à castração, para que

haja a lei e o desejo. Então, a castração dá consistência e legitimidade ao

gozo, por intermédio da interdição. O inconsciente repousa diante desse ato

enodado, fazendo surgir a pulsão como elemento limite do corpo com a anima.

Vimos que o mito de Totem e tabu (FREUD, 1913/2003) ratifica que o

Pai morto seria reencenado na comunhão de Cristo. Para Freud, o mito cristão

é a repetição do pecado de morte de Deus-Pai. É na medida em que o Filho se

sacrifica que existe a reconciliação com o Pai.

A partir de Lacan, podemos vislumbrar que o Édipo, em Freud, articula

o desejo e a lei. Totem e tabu trata, então, de um “mito científico”, o da “horda

primitiva”, na qual um pai todo-poderoso era senhor de todas as mulheres. Os

filhos o assassinaram, comeram-no e, com o medo da retaliação, na refeição

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canibalesca, ao mesmo tempo, incorporaram o poder do pai e deram fim, por

meio de um pacto, à violência que resultava da rivalidade em torno da posse

das mulheres.

O pai primitivo, idealizado em pai morto, torna-se o garantidor desse

pacto entre irmãos: mediante a renúncia ao gozo sem limites, todos têm direito

ao exercício da sexualidade, dentro do respeito à regra comum. Assim, teria

nascido a lei edipiana que organiza a filiação masculina em torno do proibido e

do desejo.

Esse mito conta a passagem da natureza à cultura, em que a

humanidade se separa da animalidade. É o assassinato do pai primitivo –

gozador e castrador – que funda a civilização, cedendo lugar ao pai edipiano,

aquele que se curva, ele próprio, à lei que enuncia. Desse modo, o mito da

horda primitiva é posto na origem do mito edipiano. Ele organiza, em torno da

transmutação simbólica da figura paterna, a lei da proibição do incesto que

enquadra o mito edipiano. A partir da aproximação das questões teológicas à

perspectiva do significante, pretende-se dar continuidade a esta reflexão,

levando-se em consideração o discurso da ciência como desdobramento do

mito do Pai morto.

O pecado do sujeito da ciência

O que o cristianismo veicula é a figura de Cristo enquanto suposto crer

em Deus. Para que essa crença seja efetiva, é necessário que a morte de

Cristo esteja relacionada ao pecado. Deus oferece Cristo em sacrifício para

que morra em lugar dos homens, uma tragédia antiga que, segundo Lacan, faz

surgir o sujeito da ciência. Essa aproximação tem como referência o efeito da

reconciliação na revelação. No cristianismo, a mensagem de redenção de

Jesus prende-se ao fato de poder se valer do nome de Deus, seu Pai, de quem

ele é o filho único, engendrado por ele.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Nesse sentido, a idéia de batismo seria a expressão máxima da

reconciliação. No entanto, trata-se de uma reconciliação que se estabelece

através da morte de Cristo. Nesse ritual, os cristãos morrem com Cristo,

transformando-se em criaturas novas, livres do pecado original de Adão. Na

forma como o batismo é concebido, reside o princípio do discurso teológico. O

que libera as pessoas do pecado não é a morte de Cristo como tal, mas

compartilhar essa morte através do batismo: morrendo em sua própria carne, o

cristão deixa de pecar. Lacan recupera uma passagem de são Paulo, falando

de Cristo como “nova vida”:

Ou vocês não sabem que todos nós quando fomos batizados em Cristo fomos batizados em sua morte? Pelo batismo fomos sepultados com ele na sua morte. Para que, assim, como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também, nós possamos caminhar numa vida nova. (ROMANOS 6,3-4).

A morte de Cristo marca a entrada no sistema simbólico, que é

ratificado no batismo. Ao mesmo tempo em que a Lei se afirma, surge, porém,

o pecado como desejo de violá-la. É aí que podemos perceber que se “faz

necessário que o gozo seja recusado para que ele possa ser alcançado na

escala invertida da lei do desejo” (LACAN, 1966/1998, p. 841). Somente assim,

na função originária do pecado ou, dito de outra maneira, pelo nó estrutural do

desejo com a Lei, é que adquire sentido a construção paulina sobre a

redenção. As reflexões paulinas tocam no ponto da Lei que vem seguida de

uma transgressão.

Que diríamos então? Que a Lei é pecado? De jeito nenhum! Mas eu não teria conhecido o pecado se não existisse a Lei, nem teria conhecido a cobiça se a Lei não tivesse dito: “Não cobice”. Mas o pecado aproveitou a ocasião desse mandamento e despertou em mim todo o tipo de cobiça, porque, sem a Lei, o pecado está morto. Antes eu vivia sem a Lei, mas, quando veio o mandamento, o pecado reviveu e eu morri. O mandamento que devia dar a vida tornou-se para mim motivo de morte. Porque o pecado aproveitou a ocasião do mandamento, me seduziu e, através dele, me matou. (ROMANOS 7,7-13).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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São Paulo estabelece uma codependência entre a Lei e o pecado. No

dizer do apóstolo, a própria transgressão da Lei só é possível porque ela foi

dada aos homens para que eles conheçam o pecado. O gesto da Lei, numa

visão paulina, portanto, é de natureza ambígua. A Lei é compreendida como

um pecado anterior, uma lei que “crê” no pecado e que orienta a salvação. É

desse modo que podemos compreender as formulações paulinas, fixadas na

Epístola aos Romanos, sustentando que não há pecado anterior ou

independente da Lei. A Lei crê no pecado ao proibir o desejo. Paulo de Tarso

ilustra, de maneira exemplar, o circuito do desejo com o proibido. A interdição

crê no pecado instituindo o gozo como ilegal e culpável. Paradoxalmente,

transgredir a Lei não quer dizer outra coisa, senão ser obediente a seus

desígnios, deixar-se compelir, irremediavelmente, a desejar o proibido, alienar-

se, de maneira inexorável, ao desejo do Outro. O pecado é a marca que

sustenta a Lei. Nesse sentido, a “coisa” freudiana é a substituição do próprio

pecado, como se vê no Seminário Livro 7: A ética da psicanálise: “Com efeito,

há toda uma pequena modificação – coisa no lugar de pecado –, é este o

discurso de são Paulo que concerne à relação da lei com o pecado” (LACAN,

1960/1988, p. 106).

A partir desse ponto, o pecado do Pai, título desta tese, vem articulado

com a Lei. Essa articulação, contudo, só existe para Lacan e para são Paulo.

Até aqui, teríamos, na teoria do significante, a relação do pecado com a Lei,

vista a partir do Pai morto. No quarto capítulo desta tese, “O furo no saber”,

defendemos uma variação possível, que entende que o pecado está articulado

com o pecado.

Isso permite subverter o lugar do pai e a relação do pai com o objeto do

desejo. Tomemos como ponto de partida o que Lacan pôde enunciar num dado

momento de seu Seminário Livro 7: A ética da psicanálise, apoiando-se em são

Paulo. Quando Paulo de Tarso diz que o pecado é a lei, diz também que não

haveria pecado se não houvesse a lei; é a lei que faz surgir o campo do

pecado, uma vez que Deus emitiu a lei, sob a forma dos Dez Mandamentos, e

tudo o que não se submete a essas prescrições, nos faz cair no campo do

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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pecado. Portanto, são Paulo diz que o pecado é a lei, e Lacan, por seu turno,

introduz a idéia de que o desejo é a lei. Isso quer dizer que desejamos o que

está interditado pela lei. Basta que haja um interdito posto pela lei para que

algo se torne inelutavelmente tentador. Isso gira em torno do que Freud

elaborou em Totem e tabu, como também ao nível do Édipo. É o pai quem

traça os caminhos e limites do desejo e da lei.

Hipoteticamente, é o pai quem deseja a mãe como uma mulher,

fazendo-a aparecer como um objeto desejável. Porém, como é o pai quem

deseja esse objeto, é preciso supor, depois do que Freud elaborou, que esse

objeto cai sob o golpe da interdição para o filho. Portanto, Lacan assinala, no

esquema freudiano, que desejamos porque o objeto está interditado. Essa é a

questão. É a grande questão, pois, nessa perspectiva, nos pomos de acordo

com a fantasia do neurótico, ou seja, essa formulação é perfeitamente

homogênea com o que é sustentado na fantasia. Para o neurótico, o objeto

como objeto desejado encontra-se no campo do Outro, e é por haver, em torno

do objeto, a barreira de uma interdição que ele se torna um objeto desejado.

Passamos, então, a articular a noção de “falta” com o “pecado”. A

leitura lacaniana de são Paulo busca demonstrar que existiria uma submissão

da Lei ao pecado. O cristianismo é a religião que vem sustentar a Lei judaica, e

a suspensão cristã da Lei é o giro desta para o amor. Mais uma vez, a morte de

Cristo é a maneira cristã de anular as impressões excessivas da Lei.

A conversão de são Paulo ao cristianismo, segundo o próprio Freud,

representa bem o reconhecimento de que esta seria a única religião a dar

conta do pecado original, a partir da morte de Cristo. Se Paulo deixa de

perseguir os cristãos para se aproximar ao cristianismo, isso se explica pelo

fato de ele encontrar, na figura de Cristo, aquele que se sacrifica pela remissão

dos pecados. Aí, a verdadeira religião é a religião cristã, a religião da

reconciliação que se dá pacto entre o homem e Deus. Isso se efetua por uma

dialética entre o pecado e o perdão. O Deus do cristianismo estabelece uma

relação mais estreita com o homem, reconciliando-se com este. Mas o homem,

por outro lado, irá pagar eterna parcela de culpa por carregar o Nome-do-Pai.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Essa fórmula introduz o Nome-do-Pai em “uma consideração científica”

(A ciência e a verdade), no sentido de que define o Pai, praticando um corte

com a realidade fenomenal de um tipo qualquer de pai, inserindo-o em uma

relação de significante a significante. Não se presta a nenhuma caracterologia

de pai, nem tem por objetivo definir um pai normal ou uma posição normal de

pai na família. O símbolo do Nome-do-Pai é a sustentação para o pecado que a

falta suscitou, enquanto o amor ao Pai é sustentado pela inscrição da Lei que

vem do pecado. A verdadeira religião sustém a falta do pecado original a partir

de uma ética fundamentada no amor – “amarás ao próximo como a ti mesmo” –

; o amor ao próximo é a resposta à questão paulina sobre o pecado e a Lei.

A relação de Deus com os homens revela que Cristo é a interseção

entre Deus e os cristãos. A ligação de Deus com Cristo visa não mais ao Deus

dos pais, mas ao Deus-Pai de Jesus Cristo. Isso é o bastante para fazer uma

referência à religião cristã, na qual o Nome-do-Pai é o primeiro nome a ser

evocado, antes de ser associado ao do Filho e ao do Espírito Santo. Trata-se,

aqui, de chamar a atenção para o Nome-do-Pai enquanto um conceito que vem

da religião e não da ciência.

O trabalho sobre a falta segue os pressupostos da ciência moderna.

Lacan faz referência à origem judaico-cristã da verdade do sujeito.39 Para ele,

39 A construção lacaniana sobre o sujeito da ciência traz, como resposta, uma mudança na

consciência ética da paternidade e da sexualidade. O trabalho de Foucault serve, aqui, de referência, uma vez que aponta para as conseqüências da ética judaico-cristã. Se a ação paterna tem como maior expressão na cultura o monoteísmo judaico-cristão, essa ação evoca um novo dispositivo na regulação dos afetos. A paternidade é a transmissão de algo sagrado. Para isso, as pesquisas de Foucault, no que concerne à sexualidade, confirmam a hipótese de uma nova regulação dos afetos após o advento das sociedades judaico-cristãs. Em A história da sexualidade, Foucault (1990) demonstra que os usos dos prazeres, na Grécia Antiga, estariam vinculados a uma estética da existência, distinta de uma sexualidade cristã, trazendo em seu bojo uma sexualidade que teria sua gênese, segundo Freud, na substituição da mãe pelo Pai. Para o filósofo, o usos dos prazeres, na Grécia, diferenciar-se-iam da sexualidade no cristianismo, que engendra o pecado e a culpa como dispositivo de regulação de uma erótica do sujeito cristão. Desse modo, a união do desejo com a Lei, na pastoral cristã, cria a história de um homem de desejo (FOUCAULT, 1990). Se, para o cristianismo, o comportamento sexual, as atividades e os prazeres são objetos de preocupação moral, na Antigüidade Clássica, eram regidos por uma “estética da existência”. O valor do próprio ato sexual, no cristianismo, estaria associado ao mal, ao pecado, à queda, à morte, ao passo que a Antigüidade o teria dotado de significações positivas (FOUCAULT, 1990). Nesse ponto, com o Pai cristão, com sua origem simbólica, faz surgir um sujeito da “hermenêutica de seu desejo”, a crença na dimensão simbólica do

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essa ciência se apóia na ciência da linguagem, inaugurada por Saussure. É a

partir dos pressupostos religiosos do cristianismo que a lingüística pode se

enveredar na construção do inconsciente freudiano. O corpo perde sua

inocência, a nudez torna-se objeto de vergonha. O pudor é um sentimento

religioso e o prazer do sexo cai no universo do pecado. Essa é uma

demonstração dos processos históricos a influenciar novos modos de

subjetivação.

Se Lacan, em seu retorno a Freud, criou o axioma do inconsciente

estruturado como uma linguagem, ele o fez porque a ciência moderna se apóia

em pressupostos bíblicos, não na filosofia grega. O sujeito da ciência, como

veremos, é aquele que faz a divisão entre o saber e a verdade. Esse retorno a

Freud, a partir da lingüística, só foi possível porque o inconsciente freudiano

segue as diretrizes da ressurreição de Cristo. Lacan fala disso da seguinte

maneira:

A ciência, a nascida de Galileu, não se pôde desenvolver senão a partir de uma ideologia bíblica, judaica, e não da filosofia antiga e da perspectiva aristotélica. O progresso da eficácia da apreensão simbólica não cessa de estender seu domínio, desde Galileu, de consumir em torno dela toda referência que a limita aos dados intuitivos, e, deixando inteiramente seu jogo aos significantes, desemboca nesta ciência cujas leis vão sempre em direção a uma coerência cada vez maior, mas sem que nada seja menos motivado do que o que existe em algum ponto em particular (LACAN, 1960/1986, p. 153).

A fundamental importância dada por Lacan à questão da ciência deve-

se ao fato de a psicanálise estar vinculada ao discurso científico. O tema da

divisão do sujeito, a partir da noção de “falta”, é o ponto nodal da verdade do

sujeito da ciência. O fascínio de Lacan por Freud assenta-se, pois, no discurso

científico que a psicanálise traz para a cultura. De onde vem esse fascínio?

desejo. O trabalho de Foucault é demonstrar que, para os gregos, era o corpo e seus prazeres, a aphrodisia, mas, para os cristãos, será a carne e seus desejos, que passam a ser uma modalidade substancial completamente diferente; desse modo, “a sexualidade sem sexo [...] é a maneira moderna de resistir à instância do sexo, que solda o desejo com a lei” (DELEUZE, 1988, p.108-113, grifo nosso).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Esse fascínio vem da própria Bíblia, onde, para Lacan, está a origem da ciência

moderna.

Nesse ponto é que podemos entender o axioma lacaniano de que o

inconsciente é estruturado como uma linguagem. A partir daí, se opera uma

junção entre a ciência e o mito. O universo da ciência moderna é, a um só

tempo, e pelo mesmo movimento, um universo da precisão e um universo da

técnica.

Ora, a ciência só é realmente precisa se os instrumentos produzidos

pela técnica o permitirem materialmente. É verdade que, aos olhos de Galileu,

estes só permitem a precisão na medida em que a ciência preside a sua

concepção e a sua execução. Assim se configura o universo moderno: uma

união entre a ciência e a técnica, tão íntima e tão recíproca que podemos

também dizer que continua se tratando de uma mesma entidade, sob duas

formas, ou então uma ciência, ora fundamental, ora aplicada, ou, ainda, uma

técnica, ora teórica, ora prática.

A partir daí, o sujeito com o qual a psicanálise pode operar somente

pode ser o sujeito da ciência (LACAN, 1966/1988, p. 873). Para esse sujeito da

ciência, um nome se sustenta nele mesmo, na medida em que, por hipótese, a

ciência moderna determina seu modo de constituição. E essa ciência moderna

constitui-se pelo cristianismo, pois o cristianismo é o que distingue o mundo

antigo do mundo moderno (MILNER, 1995/1996, p. 32).

As referências lacanianas do Nome-do-Pai aludem ao Pai cristão. O

sentido que essa concepção de Pai trouxe à discussão sobre o tema da

paternidade é o do sacrifício do simbólico pelo infans.

As ambigüidades que a religião traz ao Nome-do-Pai são várias: pode

referir-se ao nome que tem o Pai, como também ao nome que o Pai dá aos

seus filhos; ao nome pelo qual um povo se refere ao Deus, e aos nomes dados

a Deus por suas criaturas.

Para Freud, a satisfação do desejo do homem exige que seja reconhecido. Este reconhecimento vem do objeto mesmo do desejo do homem. O que a instrução religiosa ensina à criança

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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é o Nome-do-Pai e do filho. A religião demonstra as vias pelas quais se pode testemunhar o amor pelo Pai [...]. (LACAN, 1951, seminário inédito).40

Quanto ao termo Nome-do-Pai, nesse jogo de relações, este comporta

uma nuança depreciativa, e aparece como um produto de degradação do pai

simbólico: “Ele [o homem dos lobos] nunca teve um pai que simbolizasse e

encarnasse o pai; em seu lugar lhe foi dado o nome do pai” (LACAN, 1951,

seminário inédito).

Lacan oferece uma única indicação quanto à proveniência do Nome-

do-Pai, que é a religião a cristã, a que reconhece Jesus como Filho de Deus,

ligando o advento da mensagem de Jesus à paternidade de Deus. E essa

paternidade, como dissemos, é espiritual e não carnal, como terá sido o caso

em certas religiões pagãs da Antigüidade.

Ao dar a Deus o nome de Pai, Jesus Cristo não o faz como membro do

povo eleito, sem evocar tradições e prerrogativas paternas, mas de forma bem

pessoal, por uma invocação singular:

Certamente é por isso que a atribuição da procriação ao Pai só pode ser efeito de um puro significante – o efeito de reconhecimento, não de um pai real, mas daquilo a que, segundo a religião, devemos nos referir como o Nome-do-Pai. (LACAN, 1966, p. 199).

Pode-se sustentar que a atribuição a Deus, por Jesus Cristo, do nome

de “Pai”, num duplo sentido – “meu Pai é vosso Pai” – teve forte influência

sobre a consciência da paternidade – sobre sua representação simbólica e

sobre sua experiência funcional –, na sociedade ocidental, tão intimamente

ligada à história do cristianismo (MOINGT, 1984).

40 "O que a instrução religiosa ensina à criança é o nome do pai e do filho" (LACAN: O homem

dos lobos 2. Seminário inédito); "É justamente isso que demonstra que a atribuição da procriação, ao pai, só pode ser efeito de um significante puro, de um reconhecimento, não do pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome-do-Pai" (LACAN: "De uma questão preliminar", Escritos, 1998, p. 562). O Nome-do-Pai, nessa perspectiva, faz do pai uma realidade de discurso anterior a uma realidade física. Os documentos de que dispomos permitem fazer retornar à primeira aparição do termo no primeiro seminário de Lacan, o de 1951-1952, sobre "o homem dos lobos", Serguei C. Pankejeff.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Pondo-se à parte e afastado do povo, Cristo volta-se para o futuro, não

para o passado. O Nome-do-Pai que ele dá a Deus serve para singularizar sua

pessoa e libertar seu destino da lei comum: ser filho remete a um sentido de

liberdade (MOINGT, 1984).

Com efeito, como poderia Freud deixar de reconhecer semelhante afinidade, quando a necessidade de sua reflexão o levou a ligar o surgimento do significante do Pai, como autor da Lei, com a morte, e mesmo com o assassinato do Pai – mostrando assim que, mesmo que seu assassinato seja o momento fecundo da dívida pela qual o sujeito se une à vida pela Lei, o Pai simbólico é o Pai morto, na medida em que ele significa esta Lei. (LACAN, 1966/1990, p. 199).

Desse modo, convém relembrar que o Pai morto passa a ser um

significante, um ente mítico que inclui todos os homens na castração,

constituindo o universo fálico que corresponde ao conjunto de todos os filhos

da horda primitiva. Lacan articula o Nome-do-Pai à universalidade de outros

sujeitos, para seu reconhecimento como uma experiência dos poderes da

palavra, ou seja, o nome de Deus.

O simbólico é a ferramenta de identificação do sujeito em um grupo.

Nesse ponto, quando aproximado de um contexto teológico, verifica-se que o

amor à figura de Deus-Pai é resultante da Lei civilizatória do Pai morto. A morte

do Messias, para o cristianismo, seria a legitimação da morte de Deus-Pai. A

ordem simbólica, como Freud interpreta o mito cristão, tem como garantia um

Pai como ideal. O Pai de Totem e tabu, que é todo amor, e cujo assassinato

provoca o amor ao Pai morto, Pai a quem Lacan opõe ao mesmo tempo o Pai

que preside à primeira idealização é aquele que merece o amor. Neste sentido,

o complexo de Édipo, o teórico-psicanalista não guarda senão o Nome-do-Pai

que se posiciona exatamente lá onde o saber faz função de verdade.

Na realidade, essa morte do Pai seria o operador estrutural para o ser

humano legiferar na cultura, sendo possível afirmar que, no cristianismo,

configura-se o sujeito que crê em Deus enquanto amor.41 Se a condição para a

41 Esse tema será amplamente trabalhado quando Freud relaciona a religião às experiências

infantis: numa situação de desamparo (Hilflosigkeit), a criança teme o poder dos pais, mas

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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organização dos afetos, como postula Freud, com a morte do Pai, tem como

conseqüência o amor ao Pai, a Lei que resulta da idealização religiosa do Pai

morto é a expressão do ideal de eu metaforizado na figura de Deus-Pai

Se a paternidade divina introduz a mensagem espiritual, e se o Pai

simbólico é o Nome-do-Pai (LACAN, 1994/1995), então, as descobertas dos

poderes da fala são o destino da linguagem.

É justamente isso que demonstra que a atribuição da procriação, ao Pai, só pode ser efeito de um significante puro, de um reconhecimento, não do Pai real, mas daquilo que a religião nos ensinou a invocar como o Nome-do-Pai. (LACAN, 1966/1998, p. 562).

Assim como Cristo, no mito de sua ressurreição, morreu para enviar a

mensagem de Deus-Pai aos cristãos, teríamos, na teoria de morte pelo

simbólico, a mensagem do Pai, que vem como o Nome-do-Pai, intermediação

que cumpre a função de mensagem do pai para o filho. O Pai passa a encarnar

a própria função simbólica. Essa função cria uma consistência para o Outro,

pois o sacrifício permite ao sujeito constatar que pode apaziguar o Outro,

estabelecendo com ele um pacto. Essa é a subversão do sujeito em Freud.

Isso quer dizer que o sujeito não é senhor da sua própria casa, e que o

inconsciente tem razões que a própria ciência desconhece. Portanto, há uma

verdade perdida que precisa se reintegrar ao campo da ciência. A verdade põe

em cena a existência de um lugar: o Outro. Enquanto rede de significantes, o

Outro, é o lugar da produção do saber do inconsciente como valor de verdade.

Para Lacan, o sujeito da ciência é aquele que separou o saber da verdade. E é

sobre o sujeito da ciência que opera a psicanálise, porque ela opera sobre

aquilo que foi forcluído: o sujeito. A ciência é o resultado da combinação formal

dos significantes. O Nome-do-Pai funciona na cadeia de significação, e é aí

que a revolução psicanalítica pode ser pensada, pelo fato de ela revelar o

saber existente em jogo na paixão.

depende de sua proteção. Na vida religiosa adulta, reaparece a sensação de vulnerabilidade, buscando-se, agora, a proteção em Deus. A imagem de Deus é criada à luz de experiências infantis acerca dos pais, especialmente da figura do Pai, que passa a ser idealizado pela criança como Ideal de Eu (FREUD, 1927/2003).

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A repetição no sujeito de crença

Neste ponto, é importante recapitular um aspecto fundamental no

desenvolvimento do tema em questão, ou seja, que a falta do Outro pode ser

percebida diante das três figuras das paixões do ser: o amor, o ódio e a

ignorância atribuídos ao desamparo que se revelou diante da tumba vazia do

Pai morto (LACAN, 1966/1998, p. 310). Podemos prosseguir, então, dizendo

que o Outro é marcado por uma falta central: o significante da falta no Outro,

significante sem o qual os outros nada representariam, mas que permanece

êxtimo ao Outro.

A falta existe e só pode ser pensada por intermédio do jogo dialético do

simbólico. É por isso que a compulsão à repetição, nesse momento do ensino

de Lacan, não se dá pela exigência pulsional, mas pela lógica do significante,

por sua insistência (LACAN, 1966/1998, p. 13). O automatismo da repetição

inclui a experiência do significante. A associação livre coloca em ação a cadeia

significante, incluindo os significantes em uma cadeia. A existência do

significante que foi excluído, do Pai morto, é exatamente o que faz com que as

paixões do amor e do ódio se sustentem em um Outro que falta (ignorância).

O sujeito passa, então, a se reconhecer nessa ordem. A experiência do

simbólico, repetimos, evoca uma experiência de morte, uma experiência da

palavra e da morte marcada pela negatividade. Torna-se, por isso mesmo, o

necessário movimento de uma capacidade de existir, entre ausência e

presença, entre impulso e surpresa, no qual a renúncia volta a cruzar o júbilo e

a passividade torna-se um ato de controle, instaurando aí a identidade do

sujeito. Para a criança, trata-se de fazer aparecer e desaparecer um objeto, e é

nesse movimento que o significante toma corpo e surge, na carne, a partir de

sua negativização enquanto significante da exceção. A carne atualiza-se a

partir de seu sacrifício. O que a criança vê é sustentado por uma perda, alguma

coisa que resta, uma experiência de morte. A face da repetição do significante

é a mortificação. O termo mortificação é a pulsão de morte.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Se a temporalidade surge com a criança que empura o carretel

(FREUD, 1920/2003), Lacan introduz uma distinção entre as estruturas

sincrônicas e diacrônicas da linguagem. Lacan apóia-se na cena paradigmática

do movimento do carretel nas mãos infantis para propor um ser cuja gênese

depende da linguagem. A brincadeira, descrita por Freud, diz respeito ao

movimento do carretel que é lançado e recuperado pela criança, reproduzindo

a alternância da presença e da ausência da mãe. Com essa repetição do

movimento do brinquedo do pequeno Ernst Halbestaff, substituir-se-ia a

angústia, suscitada pelo vazio enigmático deixado pela ausência da mãe, por

uma palavra. A brincadeira do neto de Freud revela a hipótese do avô de que

existe uma mortificação da pulsão que é propriamente a repetição.

Por conseguinte, esse gesto mecânico do jogo do carretel realizado

pela criança que recorre à palavra, abre para ela a expectativa de um desejo

materno que, potencialmente, não trata mais de uma satisfação pulsional, mas

de um registro no campo do simbólico, devido à substituição da presença da

mãe pela palavra. O significante surge do jogo de presença-ausência, o que se

ilustra por esse gesto do brincar da criança, efetuando a entrada do sujeito no

simbólico. É no jogo do fonema Fort (longe, ausente), seguido do fonema Da

(aí, presente) que surge o parle-être. Um significante, Fort, diante de outro

significante, Da, cria a oposição fonemática. Assim, a lingüística nos ensina o

Fort tendo sentido somente diante do fonema Da.42

Ela negativiza assim o campo de forças do desejo, para se tornar em si mesma seu próprio objeto, ganhando corpo imediatamente no par simbólico de dois dardejamentos elementares, anuncia no sujeito a integração diacrônica concreta do ambiente, reproduzindo mais ou menos aproximativamente, em seu Fort! e em seu Da!, os vocábulos que dele recebe. Fort! Da! É realmente já em sua solidão que o desejo do filho do homem torna-se o desejo de um outro, de um alter ego que o domina e cujo objeto do desejo é seu próprio sofrimento... Aqui neste ponto se constitui o assassinato da coisa, e essa morte constitui para o sujeito a eternização de seu desejo. (LACAN, 1966/1995, p.320).

42 Lacan aponta para a relação dos elementos discriminativos da semântica com a conotação

presença-ausência da alternância vocálica do fort-da, designando essa oposição como fontes subjetivas da função simbólica (LACAN, 1966/1998, p. 286).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Para que se estabeleça a primazia do simbólico, é importante que o

jogo do esvaziamento se efetue em dois tempos, o de jogar e o de puxar. No

primeiro, teríamos a representação da mãe pelo carretel, enquanto o segundo

traz a simbolização de sua ausência pela oposição de significantes, na fala da

criança, pois um significante, na teoria da linguagem, só tem sentido diante de

outro significante. Nesse momento, o objeto-carretel passa a ser incorporado,

evocando os destinos da linguagem, que se atualiza em pares simbólicos,

cortando a diacronia de fonemas da linguagem – a incidência destes na

diacronia revelam a estrutura sincrônica que está na assimilação de

reprodução do Fort e do Da (LACAN, 1966/1998, p. 320).

A compulsão à repetição manifesta-se, assim, não por uma exigência

pulsional, mas pela lógica de uma ordem simbólica. Isso é revelador no jogo do

vai-e-vem do carretel, objeto ritmicamente direcionado para a sua morte. A

criança vê o carretel, toma-o em suas mãos e, ao tocá-lo, não quer mais vê-lo,

atirando-o longe, até desaparecer. Quando o carretel retorna, puxado pelo fio,

ela o olha. Abre-se uma cisão ritmicamente repetida. A criança reconheceria a

mãe como separada dela e romperia a ligação imaginária com a mãe,

ascendendo ao simbólico, que cumpre, portanto, a função de separação entre

criança e mãe, função que, até então, era delegada ao Pai.

O Pai confirmaria essa separação, visto que o infans passa a ser

reconhecido por um significante, como, por exemplo, seu próprio nome,

encontrando a representação do seu ser no mundo a partir de seu próprio

reconhecimento na palavra. A representação do movimento do carretel seria a

representação pneumática43 do simbólico enquanto experiência de morte.

Lacan propõe, então, que não existe repetição que não seja concebível no real:

a repetição existe e só pode ser pensada por intermédio do simbólico.

43 O termo, que designa um antigo sistema parisiense de entrega rápida de cartas através de

tubulações subterrâneas, provém do latim pneumaticus e do grego pneumatikos (raiz “pneuma” = sopro), e teve, na Idade Média, a acepção de “sutil”. É com esta acepção e com a de sopro divino que Lacan joga em seu texto, em um conjunto de remissões que se perde na tradução. Cf. LACAN, 1966/1998, p. 26.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Sendo essa repetição uma repetição simbólica, averigua-se que a ordem do símbolo já não pode ser concebida como constituída pelo homem, mas constituindo-o. (LACAN, 1966/1998, p. 50).

A repetição é a própria pulsão de morte, que se manifesta no rastro da

sintaxe do significante. Como exemplo, recordemos o paradoxo de Russell, que

se refere ao catálogo da biblioteca que não contém seu próprio registro: esse

lugar foi destinado a ele pela introdução prévia do simbólico como uma

exceção. Podemos dizer que aí reconhecemos a relação do sujeito com a

cadeia significante, que está incluída e excluída. Esse lugar da exceção é o

lugar que permite que os elementos, diacriticamente, venham a se significar. O

fato de existir uma contradição irredutível ao significante, um ocupando o lugar

de exceção, é que o significante pode agir repetitivamente em uma cadeia,

fazendo algo do sujeito da ciência ser excluído.

Com efeito, esse limite está presente a cada instante no que esta história tem de acabado. Ele representa o passado sobre a sua forma real, isto é, não o passado físico, cuja existência é abolida, nem o passado épico, tal como se aperfeiçoou na obra da memória, nem o passado histórico em que o homem encontra a garantia de seu futuro, mas o passado que se manifesta revertido na repetição. (LACAN, 1966/1998, p. 319).

Uma repetição inscreve-se tendo, na cadeia simbólica, a experiência

de um ser-para-a-morte. Os destinos da linguagem contidos em um jogo são,

para Lacan, a reprodução do nascimento do simbólico, que, como podemos

demonstrar, vem substituir a falha na linguagem. Nesse ponto, a compulsão à

repetição dá-se pela exigência pulsional da lógica do significante: “a repetição é

uma repetição simbólica”, diz Lacan, iluminado por Kierkegaard (LACAN,

1966/1998, p. 50). Aqui podemos recapitular o objetivo desta tese para afirmar

que é a partir do fato de o túmulo estar vazio que é possível fazer séries com

os corpos, uma vez que o lugar vazio traduz a falta que, agora, é a falta

simbólica. O desejo se humaniza e a criança nasce para a linguagem. O jogo

do Fort- Da é um dispositivo que inventa um lugar para a ausência, permitindo

que a ausência tenha lugar,

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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portanto, se refutarmos como supersticiosa a idéia de que foram justamente esses números que determinaram o destino do sujeito, é forçoso admitir que é na ordem de existência de suas combinações, isto é, na linguagem concreta que eles representam, que reside tudo o que a análise revela ao sujeito como seu inconsciente. (LACAN, 1966/1995, p. 271).

Apenas falamos de recalque na medida em que há cadeia simbólica,

pois, do recalcado, apenas percebemos seus retornos, dado que a pulsão é

silenciosa. Uma seqüência do significante impõe-se com o mais além do

princípio do prazer, e um exercício da repetição no campo do simbólico rouba a

cena. Não por acaso, o gesto interpretativo de Lacan faz da pulsão de morte

uma máscara para a ordem simbólica. Para sua demonstração, Lacan mobiliza

a noção de repetição, demonstrando que o que se repete é o gozo.

O jogo que se mantém enquanto perda é uma perda que é imputada ao

pai. Nessa imputação, surge o fenômeno da entropia, manifestado pela

repetição. O que se repete é o gozo. Em cada sujeito, existiria um gozo inicial

que constitui uma infração que se fixa a partir do trauma. A repetição entrópica

se introduz a partir de algo que permanece implícito, a saber, o trauma do

gozo, o pecado. A incidência do trauma, a sua instauração, traz para a cena a

repetição. É o trauma da experiência com o simbólico que traz a repetição.

Desse modo, se determina um automatismo para cada sujeito e, assim, a

entropia é a existência de um-a-menos. Se o que aparece no primeiro plano é a

repetição, isso se deve ao fato de o trauma ser aquilo que força a repetir.

A compulsão à repetição é a marca indelével do sujeito, que teria sua

tradução freudiana na pulsão de morte (Tobetrieb). Essa pulsão é, então, o

limite da função histórica do sujeito, segundo a fórmula de Heidegger: “uma

possibilidade absolutamente própria, incondicional, insuperável, certa e como

tal indeterminada do sujeito” (LACAN, 1966/1990, p. 321).

Essa distinção lacaniana sobre a repetição propõe um momento para o

inconsciente se revelar no campo do simbólico. A partir da noção de repetição,

em Kierkegaard, Lacan estabelece uma temporalidade para ela.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Isso se revela no comentário lacaniano do conto “A carta roubada”, de

Edgar Allan Poe, que busca explicar o motivo pelo qual a polícia parisiense não

consegue recuperar a carta roubada, dos aposentos da rainha, pelo ministro D.

(LACAN, 1966/1988, p. 13). Como sabemos, o sujeito endereça-se ao Outro de

maneira invertida, criando um deslizamento da carta, que vai passando de

personagem para personagem, a partir de seu deslizamento.

No conto de Poe, a rainha, que havia recebido uma carta

comprometedora, vê-se, ao mesmo tempo, obrigada a receber a visita do rei e

do ministro. Diante de tal situação, deixa a carta à vista do rei, pensando que,

assim, ninguém poderia vê-la, mas o ministro percebe a intenção da rainha e

substitui a carta. No decorrer da narrativa, todos os personagens, o rei, a

rainha, Dupin, deixam-se ludibriar, sucessivamente, em seus lugares

respectivos, enquanto a carta circula sem que eles o saibam. Cada um é

induzido a conduzir-se por influência dessa circulação do significante (a

carta/letter) sem que lhe conheçam o significado (o conteúdo/litter).

A partir daí, Lacan procura demonstrar que o sujeito é efeito de

significante, sendo este sustentado pela estrutura de lei. A cadeia significante

está condenada pela lei simbólica. O comentário sobre o conto do escritor

norte-americano busca uma elaboração do lugar do significante sobre o sujeito.

Surge uma série de dois símbolos, (+) e (-), que produzem

combinações diferentes: a simetria de constância (+++), a alternância (+ - +), e

a assimetria (++-). Para demonstrar sua tese, Lacan faz referência ao matemático

americano N. Wierner, pai da cibernética, que usa o recurso demonstrativo dessa

propriedade. Essa ciência do conjetural cria um sistema para se trabalhar a

diferença na própria repetição. Inspirado pela Teoria dos Jogos, de John Nash, a

insistência do significante aparece, na formulação de Lacan sobre a linguagem. é

o conceito que marca a especificidade da cadeia significante, isto é, recupera o

automatismo da repetição (Wierderholingszmang) de Freud.

A asserção de Lacan com relação a esses símbolos é: onde há

significante, há lei. Nesse ponto, contrariando Freud, a associação livre, na

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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teoria lacaniana, não é mais livre, mas determinada pelos jogos da cadeia

significante: “uma série que retoma a questão do inconsciente enquanto

realizável no simbólico, pois, uma série que não se inscreve nesta rede é uma

série impossível” (LACAN, 1978/1995, p. 244).

Lacan recupera os deslizamentos do significante, que são delegados

ao jogo de presença-ausência do mesmo, interrogando o lugar a quem o

sujeito se endereça. Se, no início da psicanálise, está a transferência, é

porque, a partir dela, se pode suscitar as marcas simbólicas da falta do Outro.

A repetição passa a ser a transferência. Essa insistência de repetição do

significante é atribuída à experiência de falta à qual ele remete. Para que isso

se realize, a imagem do Pai ideal seria a de um Pai que fecharia os olhos para

o desejo do filho. O Pai desejado pelo neurótico é claramente um Pai morto

(LACAN, 1966/1988), e a cena da ressurreição é a que representa essa

questão.

Segundo o próprio Freud, todo conflito deve ser ganho na esfera da

transferência (FREUD, 1912/2003), que se apóia no horror do encontro com o

esvaziamento do túmulo. Lacan afirma o Nome-do-Pai como suporte da religião

monoteísta, justamente o que sustenta que a religião cristã é a crença em um

Pai que é amor.

O triunfo da religião expõe que a ciência deve demonstrar que existe a

falta no Outro. A ciência se define a partir da forclusão do sujeito que ela opera.

Existe, pois, uma demonstração de Deus como Outro pré-suposto e fundado a

partir da conexão de significante a significante, o Deus que foi elidido da cadeia

de significantes. Esse é o Deus que não se pode eliminar, que Lacan batizou

de “sujeito suposto saber”. Esse é o Deus que articula toda a cadeia simbólica

do discurso do inconsciente. Existe um Deus do significante que é à parte do

discurso da ciência.

Esse Pai é a marca para a organização do recalque no neurótico,

marca da ação, o significante que traz a morte do ser, criando um rastro para a

repetição no campo do simbólico. A ordem simbólica é a ordem libidinal, que

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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segue sendo não realizada até esse momento. A crença do sujeito em um

Outro se configura enquanto reconciliação, pelo viés de um pacto. Cabe, agora,

percorrer as modalidades das paixões da alma. Uma vez esclarecida a

dimensão significante das paixões, a partir da referência emblemática da figura

crística, a neurose de transferência freudiana seria o motor de todo o processo

psicanalítico para capturar aquilo que foi transmitido ao sujeito.

Essa perspectiva é a apreensão de Deus como substitutivo do Pai

morto. A teologia lacaniana preenche a concepção de uma repetição a partir de

uma negatividade. A teologia, assim como toda teoria – tributária, inclusive, da

mesma raiz etimológica –, indicaria a presença de um “sujeito suposto saber”,

latente em toda sua formulação, como está desenvolvido no texto “O engano

do sujeito suposto saber” (LACAN, 1967/2003, p. 338). O “sujeito suposto

saber” é definido por Lacan, no início de seu ensino, como aquele que é

constituído pelo analisante na figura de seu analista, e, mais tarde, o fará

equivaler a Deus-Pai. Lacan coloca na ciência dos homens um saber sobre

aquilo que falta ao homem, e apresenta um duplo aspecto da transferência:

como abertura e como fechamento, como simbólica e como falta. A

transferência, definida a partir do sujeito suposto saber, concerne à abertura

simbólica ao Outro. Quando se configura a transferência, o inconsciente se

abre. Há uma conexão estabelecida entre o ser do sujeito e o Outro, no

simbólico. Lacan busca a maneira de designar a transferência como

fechamento real. Nessa lógica, podemos reconhecer a separação como

interseção, ou seja, o momento em que o sujeito e o representante do Outro se

cruzam, em função de uma falha na articulação significante. É nesse ponto de

falha que se constitui o desejo do sujeito em razão da falta no Outro como

desejo do Outro.

O sujeito chega e se inscreve ali, numa correlação estática. Ora, o que

existe é uma estática da estrutura, e justamente pelo fato de haver falta. E a

falta pela qual a estrutura se move – e que gera a ação da estrutura – nunca é

aparente. Nessa perspectiva, Lacan (1964/2004) constrói o algoritmo do sujeito

suposto saber:

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S S q

s (S1, S2, … Sn)

Para que não nos enganemos, S1 é o significante da transferência em

seu laço com S2, um significante qualquer, a fim de fixá-lo. Lacan o escrevia

com um q. Isso implica traduzir, em termos de significante, a relação que se

estabelece, que condiciona a operação analítica. Desse laço, se produz, em

posição de significado, sob a barra colocada abaixo do significante da

transferência, o famoso sujeito suposto saber.

Disso resulta um sujeito. O sujeito resulta do estabelecimento dessa

conexão. Sobre esse modo de significado, estará “presente” o saber suposto, o

conjunto informando sobre “os significantes no inconsciente”. Quando Lacan

propõe esse algoritmo da transferência, passa a pensar o sintoma constituindo-

se como significante que se endereça a um Outro. Desse modo, a constituição

do sintoma passa a ser significante.

Conforme essa ótica, podemos dizer que o inconsciente, até esse

ponto, é o inconsciente transferencial, e supõe a ligação entre S1 e S2. Disso

decorre a distinção a ser feita, a fim de sabermos onde estamos, entre o sujeito

que consiste no saber dos significantes e o sujeito a quem esse saber é

suposto. Através da transferência psicanalítica, na qual o amor se dirige ao

saber suposto, trata-se de fazer existir o inconsciente, para, assim, conseguir

fazer existir a relação simbólica com o Outro.

Em cima da barra, temos o S, significante da transferência que indica o

sujeito que se dirige a outro sujeito, representado por um significante dito

qualquer. Embaixo da barra, temos o s, sujeito resultante da operação

analítica, que produz os elementos que fazem parte da cadeia significante que

o representa. Quanto ao Sq da primeira linha, ele nada tem com os s

encadeados debaixo da barra. O S.S.S., do saber suposto, nada sabe, mas

isso não pode satisfazê-lo, pois se trata exatamente do que ele tem que saber.

O sujeito que vai se dirigir ao Outro em busca de um significante qualquer.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Para Lacan, é um significante qualquer, mas não qualquer um. Esse

significante está no campo do Outro. O sujeito procura um significante qualquer

porque esse significante é aquele que vai dar sustentação ao saber

inconsciente. De acordo com os termos, notemos, de passagem, que o

equívoco do simbólico ainda persiste nesse caso. A fórmula dessa operação é

a seguinte: “O algoritmo, na medida em que ele é próprio, é pura função de

significante, não pode revelar senão uma estrutura de significante a essa

transferência” (LACAN, 1966/1995, p. 501).

Vê-se que é uma fórmula que comanda todo o processo de um

algoritmo que é “pura função significante”. A fórmula indica que a ausência de

sentido liga-se ao funcionamento da cadeia, na medida em que esta é

conhecida como cadeia de marcas diferenciais. A isso, porém, é preciso

acrescentar ainda: é que, em cima dessa determinação do jogo dos

significantes vem enxertar-se uma determinação última, a partir da qual

ordena-se, de fato, o jogo no seu conjunto. Um significante a que Lacan

denomina de “o significante da falta no Outro”.

Porém, nesses vários movimentos da prática analítica, permanece

constante a referência à transferência, a ponto de a orientação lacaniana ser

vista como clínica da transferência, ou clínica do significante, ou, ainda, clínica

do Outro. Lacan retomou o conceito de transferência de Freud articulando seus

diferentes desenvolvimentos e esquematizando-os em três momentos:

transferência como repetição; transferência como resistência (amor e ódio); e,

finalmente, articulando-a com a sugestão.44 Sem abandonar nenhuma dessas

três perspectivas, mas levando em consideração o conceito de falta, Lacan,

como sabemos, buscou definir uma essência da transferência e procurou um

eixo que possibilitasse articular essas várias formalizações numa só,

44 O fenômeno da transferência foi apontado por Freud nos textos escritos de 1911 a 1915,

que são intitulados: “Artigos sobre a técnica”, “Recordar, repetir e perlaborar”, e, especialmente, “A dinâmica da transferência”. Em 1920, no Mais além do princípio do prazer, a transferência passa a ter uma relação com a repetição e com a resistência, identificando as faces positivas e negativas desse conceito da psicanálise.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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encontrando-o na estrutura da situação analítica, pensando a transferência

como uma conseqüência imediata da associação livre.

Ao associar, no campo do simbólico, o analisante o faz para alguém,

colocando o analista como um ouvinte privilegiado da busca, pelo analisando,

da verdade sobre si mesmo, nos limites das suas palavras. Limite posto no

analista, enquanto encarna um ouvinte especial, que decide quanto à

verdadeira significação de suas palavras.

Existe transferência devido ao fato de o paciente associar livremente, e

é na submissão do analisante à regra fundamental, à regra de dizer tudo a um

outro, quando, pensando como um saber, se pode conectar o inconsciente a

um sujeito.

Desde esse prisma, a transferência é a relação com o saber. Esse

saber, porém, é, na situação analítica, atribuído ao ouvinte, “lugar” do analista,

e não necessariamente à sua pessoa. Se a transferência é de amor, o

marcante é que se trata de amor a qualquer um que esteja na posição de

analista. Esse “qualquer um”, peculiar à situação analítica, é o conceito de

Outro. Por isso, a clínica lacaniana é a clínica do Outro, ou clínica da

transferência, constituindo-se a linguagem como um terceiro, como referência

comum para os dois, analisando e analista. Nesse ponto, a transferência nos

ensina que volumes foram ostensivamente esvaziados de seus conteúdos –

corpos ressuscitados. A tumba devia, assim, esvaziar-se de seus corpos para

se encher de algo que não é somente uma promessa – a ressurreição do Deus

morto –, para, assim, surgir o simbólico, a partir de uma dialética. Essa

experiência abre para uma experiência de um Deus garantidor e de unicidade.

A invenção de Freud é a invenção do analista como Outro. O

analisante, pelo fato de aceitar a regra fundamental, que o coloca na posição

de não saber o que diz, cai na dependência desse Outro. No entanto, não se

trata de uma dependência real. Trata-se da dependência da relação desse

sujeito com o saber. Saber este que é o que se procura numa psicanálise. A

esse elemento que define a essência, o motor da transferência, a essa relação

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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epistêmica, Lacan chamou de “sujeito suposto saber”, saber que o discurso da

ciência forcluiu. Um saber a que o sujeito foi lançado. A ciência é o resultado

da combinação formal do significante, pois ela faz uma forclusão com o sujeito.

É aí que podemos aproximar a transferência ao automatismo da repetição.

Em razão de haver diferentes modalidades de saber, compartidas

socialmente nos diferentes momentos históricos, pode-se falar em diversos

modos de subjetivação, nos vários momentos da história, pois o sujeito

estabelece diferentes modos de relação com o Outro no decurso da história.

É porque o sujeito precisa de uma significação para o que não sabe, o

que, para ele, é enigma, o que não consegue decifrar, que ele entra em

análise. Lacan aproxima o significante a Deus-Pai, porque a perfeição

configura-se na representação de Deus acolhendo e oferecendo um lugar para

o homem, após a sua morte, e pode nomear seu ser. Se Lacan implicou, no

lugar da transferência, o lugar de Deus, isso não foi em vão, pois ele se revela

como um agrimensor do cosmos. Esse Outro, com maiúsculo, é, então, algo

que se planteia como sendo da ordem da dissimetria, cuja natureza é tal que

se poderia apontar para uma teologia lacaniana, enquanto algo em que se

poderia crer.

Segundo o próprio Freud, todo conflito deverá ser ganho na esfera dos

filhos da horda primitiva. Lacan articula o Nome-do-Pai à universalidade de

outros sujeitos, para seu reconhecimento como uma experiência dos poderes

da palavra, ou seja, o nome de Deus – um Deus não eliminável, “sujeito

suposto saber”. Esse Deus, a que Lacan chamou de Outro, é um Deus

fundamentado no fato da fala, no factum da fala.

Sendo assim, as forças no homem entram em elevação, à forma de

Deus-Pai, unidade onde a nomeação de um ser é representada. É nesse lugar

que se encontra o “sujeito suposto saber”, como o “lugar do Deus-Pai [que]

designei como Nome-do-Pai” (LACAN, 2001, p. 337).

Nessa formação do Deus-Pai, toda força é igualada à perfeição, revelando-se no sujeito que crê no amor ao Pai. Se a tarefa central da

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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transferência consiste em atribuir um nome às coisas, é porque ela pode nomear o seu ser. Entende-se por perfeição uma ação que traduza um comportamento colocando o homem dentro de uma representação da própria infinitude. A perfeição configura-se na representação de Deus, representação que acolhe e oferece um lugar para o homem nomear o seu ser. Toda a concepção de belo e divino presente na suposição de saber em um Deus-Pai tem um caráter ligado ao bom gosto, ao prazer, ao natural e ao verdadeiro. Nesse contexto, configura-se a presença de um “sujeito suposto saber” (LACAN, 2001, p. 337) que, dando início a toda psicanálise, marca a ilusão necessária para o processo analítico.

Essas marcas se revelam em um sujeito que crê em suas paixões. Lacan prossegue dizendo: “que Descartes precise de Deus, ou melhor, da verdade, para que o sujeito possa alojar-se sob a mesma capa que veste enganosas sombras humanas” (LACAN, 2001/2003, p. 329), para essa transferência, Lacan deu o nome do “Deus dos filósofos”. O Deus dos filósofos tem uma lei de funcionamento homeostática, pela qual a repetição atua no Pai enquanto amor. A homeostase é a própria perfeição que o sujeito conclama em Deus-Pai.

O que Lacan diz é que Descartes crê em Deus, condição do sentido para sua construção teórica sobre o cogito, que se organiza com base na suposição cartesiana quanto à presença de Deus. Após ter designado o Deus de Descartes como o sujeito suposto saber, Lacan possibilita pensar que, onde há sujeito suposto saber, há transferência. A teologia é uma palavra de origem platônica que remete ao uso grego sobre esse Deus, o saber sobre Deus é a teologia. A isso, teologia, Lacan representa com o Deus dos filósofos.

Nesse ponto, teríamos uma transferência semântica. A transferência seria uma significação que a falta do Outro despertou. Quando se revela o que falta, a transferência é o fator de desencadeamento. Quando isso se produz, há uma iluminação do lugar do Outro para o sujeito. Se, nesse momento, a transferência é a repetição que a falta iniciou, a crença no saber nos protege do abismo que é pensar que há saber sem sujeito – o sujeito suposto saber cobre esse saber. A crença no sujeito suposto saber é a maneira de satisfação da

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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própria repetição. Em outras palavras, o sujeito suposto saber é a invenção do Outro.

A partir daí, podemos relembrar que a falibilidade do Nome-do-Pai instituiu a crença no Filho. O Filho só pode testemunhar em Nome-do Pai. Lacan dá início ao seu texto “A proposição de 9 de outubro” com uma parte similar ao Seminário Livro 8: A transferência: “no começo é o amor”; no texto da proposição, Lacan afirma: “no começo da psicanálise está a transferência, [...] e é o eixo a partir do qual se articula tudo o que acontece com a transferência” (LACAN, 1960/94, p. 11).

A transferência instaura um novo campo, e o sujeito suposto saber é o pivô a partir do qual se articula tudo o que podemos entender como transferência.

Para concluir este capítulo, podemos demonstrar que o homem de crença verá sempre para além do que é, quando se encontra face a face com a tumba vazia, fazendo surgir uma construção fantasmática. Para Lacan, esta ação de teologia é o que ele limitou num saber em Deus-Pai.45

Quando Lacan articula a transferência a partir do sujeito suposto saber, ele a liga estreitamente ao inconsciente. Nós o observamos quando o vemos escrever, em “Televisão”: “a relação com o sujeito suposto saber é uma manifestação sintomática do inconsciente. A ilusão neurótica é que o sujeito suposto saber, pelo sentido se chega à verdade” (LACAN, 1974/1993, p. 75). No entanto, a experiência analítica ensina que o sentido tampona a falta do Outro. A operação analítica separa sentido e verdade, e é a fuga de sentido o que conduz ao real. Nesse ponto, o terceiro capítulo pretende percorrer as vicissitudes da repetição para demonstrar que a experiência do encontro do desejo do desejo do Outro se subjetiva a partir do sem-sentido da angústia como sendo sem objeto. A angústia seria, então, o sinal para ir além da repetição suscitada pela falta.

45 A perspectiva sobre a teologia lacaniana vai ser considerada no quarto capitulo a partir da

diologia lacaniana. Levando em consideração que o interesse desta tese é a religião na psicanálise pretendemos contrapor a idéia de Lacan entre O Deus dos filósofos é o que Lacan chama do Deus de Abraão, Issac e Jacó.

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Judaísmo

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Terceiro Capítulo

A angústia dentro e fora da cena

O masoquismo como redenção do filho

Na medida em que há relação de filho com o pai, surge essa idéia tresloucada do redentor, e isso há muito tempo. O sadismo é para o Pai, o que masoquismo é para o filho. Freud, de todo modo, tentou se desprender desse sadomasoquismo. Esse é o único ponto onde há uma relação suposta entre o sadismo e o masoquismo. Esses dois termos não têm estritamente nenhuma relação entre si.

Jacques Lacan

Como foi demonstrado, a insuportável experiência da falta do Outro se

desdobra em um sujeito que crê em suas paixões. Este é o sujeito da crença

em um Outro. Esse fenômeno é a transferência propriamente dita. Sabemos,

então, que a transferência é o suporte que a falta suscitou; a condição dela

mesma é a repetição simbólica. Como dizíamos, no capítulo anterior,

verificamos que a metáfora paterna implica o movimento de barrar o gozo,

produzindo a suposição de saber no Outro.

Por isso, podemos dizer que o gozo, ao passar pelo Édipo, inscreve-se

como (- φ) na castração. Nesse ponto, o que marca a experiência analítica é a

repetição produzida por esse menos que é pura negatividade. Pretendemos,

então, demonstrar o percurso de Freud e Lacan na resolução desse impasse

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

137

sobre a repetição suscitada pela impossibilidade da falta operada pelo Nome-

do-Pai.

Se, como pudemos demonstrar, o filho só pode testemunhar em Nome-

do-Pai, pretendemos, agora, localizar esse testemunho a partir das concepções

masoquistas elaboradas por Freud. Nesta primeira parte do capítulo,

pretendemos comprovar, a partir da pulsão de morte, que o masoquismo é a

redenção do filho. Enquanto, no capítulo anterior, propomos que a psicanálise

suponha uma ética que toca o desejo com a Lei, produzindo o pecado e o

desejo, e reduzindo o simbólico ao campo da pulsão, podemos pensar que a

neurose seria a crença no Outro. O neurótico se sacrifica, oferecendo sua

própria castração e crendo em um Outro religiosamente.

Neste ponto da tese, passamos a discutir a experiência da pulsão de

morte a partir das investigações freudianas sobre o masoquismo erógeno

primário. Se, no final do capítulo anterior, a pulsão de morte foi aproximada da

repetição simbólica, agora, levando-se em consideração o ponto de vista

freudiano, podemos demonstrar que o psicanalista propõe pensar essa pulsão

silenciosa articulada ao masoquismo.

Lacan abriu mão da transferência como amor, ódio ou amizade para

propor uma modalidade da transferência a partir da repetição. Lacan vai dizer

que a expressão da pulsão de morte, no simbólico, é a repetição na cadeia.

Lacan concentra tudo num só conceito. Temos, primeiro, a vivência de

satisfação, momento em que a pulsão se satisfaz e deixa uma marca, o

pecado; depois vêm as experiências ulteriores, que tendem a repetir a primeira,

no entanto, não conseguem se realizar, tendendo a continuar apenas como

repetição, expressão da pulsão de morte como simbólico. Para isso, Lacan fala

da inércia e da insistência da cadeia significante como duas formas de

expressão da pulsão de morte. A inércia seria uma repetição ligada às

propriedades do simbólico, às combinatórias do simbólico, que Lacan explica e

demonstra logicamente no texto de abertura de os Escritos: a carta roubada.

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É, portanto, a partir da sua idéia de pulsão de morte que Lacan entra

na psicanálise. A idéia de um jogo de tendências opostas – a pulsão de vida

tendendo a ser unidade contra a pulsão de morte tendendo à desintegração da

unidade. Em Freud, isso é nirvana. A idéia final de Freud sobre a pulsão de

morte é a de “entropia zero”, que significa não movimento de moléculas, é

morte absoluta.

A partir daí, a insistência tem a ver com a experiência de satisfação,

com a marca, e com o retorno ao inanimado. Nesse segundo momento, está a

pulsão de morte. O que diz Lacan: a satisfação da repetição é coordenada pelo

Outro. Vimos que Lacan privilegia isso, nos anos de 1960, através dos

significantes no ‘A’.

A partir desse ponto trazido por Lacan, retomaremos as questões sobre

a repetição em Freud, implicando a pulsão de morte a partir do masoquismo.

Com relação à pulsão de morte, Freud nos convida a saber mais sobre uma

destrutividade autônoma presente no processo mental do sujeito. Pergunta-se,

então: qual a função desse caráter autônomo da pulsão de morte? Sob que

condições pode surgir esse caráter? Qual a característica dessa força que leva

para a homeostase? Qual é sua relação com o princípio do prazer e com o

masoquismo erótico?

Para Freud, essa destrutividade autônoma levaria ao estado de perfeito

equilíbrio, cuja finalidade é a homeostase no mundo orgânico, manifestação do

primitivo no aparelho psíquico, algo ainda mais elementar e pulsional que o

dispositivo da Bindung:

a pulsão seria inerente à vida orgânica, a restaurar um estado anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob a pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de elasticidade orgânica, ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia inerente a vida (FREUD, 1920/2003, p. 36).

Para construir a gênese de tal força, Freud recupera a embriologia,

demonstrando que a vida teria surgido por acidente, no seio da matéria inerte:

“a tensão que então surgiu no que até aí fora uma substância inanimada se

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esforçou por neutralizar-se e, dessa maneira, surgiu o primeiro instinto: o

instinto a retornar-se ao estado inanimado” (FREUD, 1920/2003, p. 38).46

Para Freud, a consciência não seria o atributo universal dos processos

mentais que levaria a um princípio do prazer, mas apenas uma função especial

dos mesmos. Parte desse dispositivo conduz o sujeito para a morte, uma

Entbindung, trabalhando para desamarrar a Realität factual do psiquismo. O

que a consciência produz consiste, essencialmente, de percepções de

excitações provindas do mundo externo e de sentimentos de prazer que só

podem surgir do interior do aparelho psíquico como ligação.

Um fracasso em evitar a sujeição (Bindung) provocaria um distúrbio análogo a uma neurose traumática, e somente após haver sido efetuada (referência a Bindung) é que seria possível a dominância do princípio do prazer (e de sua modificação, o princípio de realidade) avançar sem obstáculos. Até então a outra tarefa do aparelho mental, a tarefa de dominar e sujeitar (binden) às excitações teria precedência, não na verdade em oposição ao princípio do prazer, mas independente dele e, até certo ponto, desprezando-o (FREUD, 1920/2003, p. 34-35).

A consciência ficaria na linha de fronteira entre o interior e o exterior,

voltada para o mundo externo e envolvendo os outros sistemas psíquicos. Ela

também não seria o único dispositivo atribuído aos processos desse sistema:

com base em impressões derivadas da experiência psicanalítica, afirma-se que 46 A primeira teoria freudiana sobre a sexualidade, como foi demonstrada no primeiro capítulo,

aproxima-se da vida. Nesse sentido, é importante lembrar que a identificacão ao Pai está ligada a um vitalismo. A partir de Claude Bernard, Freud cria o princípio do prazer, que é uma instância ligada à vida. Já em sua segunda abordagem, temos o aparelho como entropia para a morte: a vida seria uma maneira de resistência da morte, que seria o equivalente a narcisismo primário absoluto, igual a não vida, mais negativo até que a idéia de morte que é positiva. Lacan demonstra, ao longo de sua teoria, a definição de vida em medicina: “O conjunto de forças que resiste à morte”. Definição clássica de Bichat, que Lacan repete muitas vezes. Quer dizer que ele não trabalha com a noção de vida, mas com a noção de morte, o estado é a morte e a vida seria apenas uma desorganização da morte. O ser se mantém vivo enquanto resiste à morte, para a qual ele tende como estado original. A referência freudiana, nesse caso, é também o neuro-anatomista Bichat. Nesse sentido, o conceito de morte sai do absoluto e é repartido à vida. Há aquilo a que a vida se opõe, esse mortalismo, passando-se a um modelo de sobrevivência diante da indeterminação da morte. Nota-se uma mudança de abordagem de Freud: primeiramente, um aparelho ligado à vida e, em seguida, um aparelho como condição da vida. Michel Foucault (1980), em O nascimento da clínica, demonstra que o mórbido foi introduzido pela medicina moderna. A morte não seria mais algo divino, mas endógeno. Em Freud, cientista moderno, a pulsão de morte é constituição da morbidez de Thânatos, “uma afecção da vida que esforça em escapar da morte”. (FOUCAULT, 1980, p. 196-197).

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os processos expiatórios dos demais sistemas deixam traços permanentes,

que formam os fundamentos da memória.

Segundo Freud (1920/2003), muito pouco se conhece sobre outras

fontes de origem da consciência. Dessa maneira, quando formulamos a

proposição de que a consciência surge em vez de um traço de memória, a

assertiva merece consideração, uma vez que é estruturada em termos bastante

precisos.

Esse sistema caracteriza-se pela peculiaridade de que, nele, em

contraste com o que acontece em outros sistemas psíquicos, os processos

excitatórios não deixam nenhuma alteração permanente em seus elementos,

constituindo-se em fenômenos inconscientes. Uma exceção desse tipo foge à

regra geral e exige ser explicada por algum fator que se aplique

exclusivamente a esse sistema. Para Freud, tal fator, ausente nos demais, bem

poderia ser a situação exposta do sistema consciente, imediatamente próxima

do mundo externo.

Esse retorno ao inanimado era, de início, fácil de ser empreendido,

dada a instabilidade do ser vivo. No entanto, os sobreviventes se beneficiaram

por condições externas propícias, e tiveram um retorno retardado. Foi esse

prolongamento trágico do retorno ao inorgânico que deu lugar aos instintos de

conservação, à consciência do eu. Esta seria, portanto, o nome que Freud dá

ao caminhar organizado para a morte, à inércia da vida inorgânica, uma

tendência à fixação na compulsão à repetição, como uma força que existe para

um além do princípio do prazer. Nesse momento, surge o segundo dualismo

pulsional, a radical novidade teórica que trata a vida econômica do aparelho

psíquico com a pulsão de vida e a pulsão de morte. Teríamos, então, o

desprazer como aumento da tensão, que seria uma energia não-ligada, e o

prazer como esvaziamento da mesma. A tendência do aparelho seria a de

esvaziar toda a quantidade de tensão, criando, aí, o princípio de inércia. O

acúmulo de tensão provocaria o desprazer. A função desse mecanismo é

garantir que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte e afastar

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todos os modos possíveis de retornar à existência inorgânica que não sejam

imanentes do próprio organismo.

Sendo assim, Freud não podia evitar a hipótese especulativa segundo

a qual a pulsão seria um impulso inerente à vida orgânica, no sentido de

retornar ao estado inorgânico. O que ela repete é o estado mais arcaico, inicial,

do qual o organismo se afastou por exigência de fatores externos: o inorgânico.

O autor cita exemplos do mais além do princípio do prazer, de compulsões à

repetição, desde a criança que lança e recupera o carretel até as repetições de

uma mulher que se casa três vezes, com três homens diferentes, para que

cada um deles caia doente e ela cuide dos mesmos em seu leito de morte.

Desde 1914, em “Recordar, repetir, e elaborar”, Freud atém-se à

repetição. Essa constatação converge com os sonhos angustiantes dos

traumatizados de guerra (FREUD, 1920/2003, p. 13). As neuroses de guerra

teriam o trauma como chave para se pensar a repetição. Os sonhos dos

neuróticos de guerra não parecem tratar de algum mecanismo da não

elaboração do trauma ou de busca de satisfação da tendência de Eros: a

repetição apresenta-se à revelia de qualquer incidência simbólica e a despeito

do desprazer que é suportado. Trata-se de uma enigmática insistência em

repetir a cena, o encontro com o inassimilável que originou o trauma. Para

Freud, os sonhos traumáticos contrariam o princípio do prazer. Freud vai dizer

que o sujeito sonha com o trauma para produzir sentido.

As neuroses traumáticas são tratadas por Freud, em Além do princípio

do prazer, como se, ao se antecipar à experiência de perigo o sujeito vive uma

experiência real de morte. O trauma não teria a antecipação do pior – a

angústia ou sinal –, de forma que ele é impactante por um acontecimento que

lhe dá a experiência de morte. A experiência de desamparo traduz a

experiência traumática. No trauma, existe uma ausência de narrativa, sonhos

repetitivos, uma repetição da mesma imagem que provoca dor. Para Freud,

isso seria a própria compulsão. Há sonhos que são compelidos a esse tipo de

sonhar. É a partir disso que Freud formula o Além do princípio do prazer.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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A compulsão à repetição (Wiederholungszwang), para Freud, teria,

assim, um caráter econômico, entendida com premência pulsional (FREUD,

1920/2003), contrariando o princípio do prazer. Freud conclui que o retorno ao

inorgânico é um retorno à não-vida, e que a pulsão é o esforço para atingir

esse ponto, ou seja: a quietude do inorgânico é a perturbação, uma vez que se

dá a irrupção da vida – a própria homeostase do organismo. Em outras

palavras, em Mais além do princípio do prazer, de 1920, o que está em jogo é a

compulsão à repetição. Freud não podia mais pensar de outra forma, a pulsão

de morte não poderia ser um fato discutível.

O retorno ao inorgânico conduz à impossibilidade de homeostase entre

sujeito e seu meio. A partir de 1920, a repetição é a determinação do sujeito no

circuito pulsional, um ponto do sujeito diante da inacessibilidade do

inconsciente a uma ciência hermenêutica de interpretação simbólica. O prazer

e o desprazer, como excitação, são parte do “mais além”, que é coberto por

uma intensidade erótica.

Do ponto de vista de uma economia erótica, o sadismo seria a

revelação do modo de ação da pulsão de morte a caminho do inorgânico: “a

hipótese mais admissível é que esse sadismo seja realmente uma pulsão de

morte, expulsa do ego sob a influência da libido nascente, de modo que só

aparece no objeto” (FREUD, 1920/2003, p. 37).

O que leva Freud a fazer essa proposição é a própria natureza ativa da

pulsão. O caráter regressivo da pulsão, parte essencial da pulsão de morte,

evoca também a compulsão à repetição. Esse fator de desligamento da libido

desdobra-se nas reações de destruição e agressão, presentes na reação

terapêutica negativa, que nunca se manifestam por si mesmas, sendo sempre

algo distorcido, invertido ou deformado. Assim, a pulsão de morte trabalha para

destruir as impressões, não deixando registros, marcas ou caminhos, apenas

seus componentes sádicos e masoquistas.

A degradação do objeto é imputada ao sadismo, parte essencial da

libido. É nessa perspectiva que Freud (1924/2003) irá buscar, na origem

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reflexiva do sadismo, o masoquismo originário erógeno, a gênese da pulsão de

morte. O masoquismo seria o efeito de seu caráter regressivo. No entanto, no

seu ensaio “O problema econômico do masoquismo”, ele não consegue

estipular um estado puro da pulsão de morte (FREUD, 1924/2003). Essa

pulsão devora seu próprio registro antecipadamente, disfarça-se, a menos que

ela se maquie ou se pinte de algo erótico, como a inversão do sadismo, um

“masoquismo originário erógeno” da fixação do sintoma, a pulsão de morte em

seu estado puro.

A libido tropeça, nos seres animados pluricelulares, com a pulsão de morte ou de destruição neles dominante, que tende a decompor estes seres celulares, e a conduzir cada organismo elementar ao estado de estabilidade inorgânica... Defronta-se portanto o estado de tornar inofensiva esta pulsão destruidora, e a realiza orientando-se em sua maior parte, com a ajuda de um sistema orgânico especial – o sistema muscular – para fora, rumo aos objetos do mundo externo. Tomaria então o nome de pulsão de destruição, pulsão de apreensão ou vontade de poder. Uma parte desta pulsão fica diretamente a serviço da pulsão sexual, tarefa na qual realiza um trabalho importantíssimo. Este é o sadismo propriamente dito. Outra parte não compartilha dessa transposição para o exterior, sobrevive no organismo e ali permanece libidinalmente fixada, com a ajuda da excitação sexual mencionada. Nela veremos o masoquismo sexual erógeno (FREUD, 1924/2003, p. 169).

Depois de buscar no masoquismo um retorno da agressividade sádica,

Freud faz do masoquismo originário um dispositivo pulsional mais primitivo que

o sadismo, uma vez que ele faz parte, por excelência, do erotismo. Em um

texto tardio, “Angústia e vida pulsional” (FREUD, 1933/2003), o masoquismo é

definido como a capacidade da pulsão de morte de se sexualizar pela invenção

da exterioridade de um objeto, que tem por efeito a diferenciação da

autodestruição, mecanismo projetivo que engendra a alteridade. Logo, o prazer

é construído pela dor criada pelo Outro. A partir desse ponto, o masoquismo

originário é a redenção do filho. É também nesse texto que se faz uma

diferença entre a angústia automática e a angústia sinal, e que o masoquismo

é associado à natureza conservadora das pulsões, criando o espaço das

experiências traumáticas edipianas e o da perda edipiana. É nessa operação

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de sacrifício que surge a formação do circuito da pulsão em um Outro. O

sacrifício do filho seria, a nosso ver, a redenção pelo amor ao Pai.

Depois da revisão feita por Freud e de sua reorganização conceitual no

texto de 1933, Angústia e vida pulsional (FREUD, 1933/2003), a angústia se

torna um dos pilares teóricos da psicanálise. É para evitá-la que o Ego se

defende através de seus mecanismos.

Freud chama de traumático esse momento ante “o qual os esforços do

princípio de prazer malogram” (FREUD, 1933/2003, p. 96). É a emergência

desse momento que é temido. A soma da excitação, sua magnitude,

transforma uma impressão em momento traumático, paralisando a função do

princípio do prazer, conferindo à situação de perigo seu valor. “Os recalques

primeiros e originais teriam surgido de momentos traumáticos nos quais o eu

se deparou com uma exigência libidinal excessivamente grande” (FREUD,

1933/2003, p. 97). Encontraríamos uma dupla origem da angústia, “como

conseqüência direta do momento traumático” e como “sinal que ameaça com

uma repetição de um tal momento” (FREUD, 1933/2003, p. 97). Essa angústia,

como pretendemos evidenciar neste capítulo, permite uma passagem da

realidade para um real. Destacando na angústia o elemento perigo, Freud o

relacionava a algumas situações: no estádio inicial do eu, estaria ligado ao

desamparo da criança; nos primeiros anos, ao risco de perda do objeto; na fase

fálica, ao perigo de ser castrado, equivalente à angústia de castração; e na

fase de latência, ao temor do supereu.

É importante delimitar a relação entre o masoquismo e a angústia, pois,

se a redenção do filho pelo amor do Pai é o masoquismo, com a angústia,

principalmente depois de Lacan, o Pai começa a ocupar um outro estatuto, não

mais correspondendo ao sadismo – oposto do masoquismo.

Abandonando as interpretações de comportamentos masoquistas

apoiadas em Krafft-Ebing, Freud faz um uso diferente, que é o estudo da

gênese das perversões sexuais, passando a pensar o masoquismo como

forma estrutural da pulsão de morte, esclarecendo a natureza conservadora

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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das pulsões, juntamente com o processo de estruturação do masoquismo

diante do sadismo:

Há pessoas em cujas vidas se repetem indefinidamente as mesmas reações não corrigidas, em prejuízo delas próprias, assim com há outras que aparecem perseguidas por um destino implacável e, sem se aperceberem, causam a si mesmas este destino. Em tais casos, atribuímos um caráter demoníaco à compulsão e à repetição (FREUD, 1932-36/2003, p. 99).

Essa passagem é reveladora no que concerne ao esforço de Freud em

representar a pulsão de morte. Nem o sadismo nem o masoquismo primário

são suficientes para determinar um representante psíquico para essa pulsão

silenciosa, que não deixa nenhum monumento, nenhuma impressão, senão o

masoquismo como um simulacro erógeno.

Para esse caráter masoquista do filho, podemos fazer referência ao

texto “Uma criança é espancada”, em que há uma insistência de Freud

(1919/2003) em apontar a vertente inerte do fantasma, chamando essa

passagem de “frases sem fantasmas”. Nesse texto, está um Pai que faz surgir

no filho o masoquismo pulsional. Para seis pacientes escutados por Freud, e

que giram em torno da frase “uma criança é espancada”, algo é imemorável,

ficando fora de uma simbolização reflexiva. “Uma criança é espancada”

apresenta-se como uma fantasia excitante ou masturbatória, às vezes,

compulsiva, cuja gênese, segundo Freud, está na primeira infância, entre cinco

e seis anos. Em “Uma criança é espancada”, Freud faz um uso diferente, que é

o estudo da gênese das perversões sexuais. É isso que Freud busca ao falar

da fantasia de que uma criança está sendo espancada. Freud está usando o

que observou em sua filha Ana. Ao mesmo tempo em que está estudando a

gênese das perversões, Freud está demonstrando a gramática da fantasia. A

fantasia de “bate-se numa criança” articular-se-ia em torno de uma frase

primeira: “meu pai bate em mim”. Esta seria a fantasia fundamental; o que ele

mostra depois, é o desdobramento da fantasia, é a gramática, que é como uma

fantasia inconsciente pode se manifestar na consciência, pelo impessoal, pela

cisão do sujeito. Esse artigo de Freud sobre a gênese das perversões ainda

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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não é completo. Ele será completado pelo texto do O fetichismo, 1927, A

clivagem do Ego e Organização genital infantil, 1923.

Lacan não retoma o texto “Uma criança é espancada” para esclarecer

a gênese das perversões, mas para mostrar a gramática da fantasia da qual

ele irá deduzir uma lógica da fantasia; são usos diferentes. Em “Bate-se numa

criança”, Freud está usando a noção de perversão, baseado numa categoria

psiquiátrica e não pelo mecanismo, assim como o masoquismo, também

entendido como uma característica clínica e não pelo mecanismo,

impossibilitando que esse texto seja usado para se compreender as

perversões.

Levando-se em consideração essa contribuição de Lacan para

interpretar o artigo freudiano de 1919, para alguns sujeitos femininos – não

todos –, essa fantasia pode se tornar a fantasia fundamental, passando a ser a

lógica de suas vidas – fazer-se espancar pelos homens é uma forma

metafórica de se referir ao gozo implicado no comportamento de se fazer

maltratar. Segundo Freud, não é a fantasia sádica inicial, mas sua fase

masoquista recalcada – “ser espancado pelo pai” – que se torna um verdadeiro

sintoma. Citamos Freud:

os seres humanos que portam em si essa fantasia dão prova de uma sensibilidade particular, com relação às pessoas que eles podem inserir na série paterna; eles se deixam facilmente ofender por essas pessoas (FREUD, 1919/2003, p. 192).

É dessa forma que elas procuram a realização dessa situação

fantasmática. Elas são espancadas pelo pai, para sua maior tristeza e, quando

procuram a realização dessa situação fantasmática, fazem um sintoma, pois

não se trata mais de um gozo ligado a algo imaginário, mas uma verdadeira

prática de gozo que se coloca nesse lugar.

Para Freud, existem três maneiras de ver o porquê da inércia desse

sintoma. A primeira é a satisfação ligada à fantasia matriz. A segunda razão é

que essa fantasia funda uma posição muito sólida: um objeto maltratado pelo

substituto paterno. O Édipo se encontra, assim, prolongado indefinidamente

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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numa posição sexuada feminina que encontra, quase sempre, no parceiro, um

complemento: as fantasias sádicas masculinas. É, por vezes, mais fácil para

uma mulher localizar a feminilidade dessa maneira do que afrontar o incômodo

vazio da alteridade que tal posição implica. É possível acreditar nele apesar do

sofrimento, ou melhor, justamente por causa do sofrimento que ele contém. A

terceira razão para a inércia desse sintoma é mais ou menos o inverso da

segunda: esse sintoma é compatível com uma identificação viril, freqüente na

histeria, suportada pela identificação com o menino espancado.

Esse sintoma permite, ao mesmo tempo, uma identificação viril e uma

posição feminina “masoquista” – masoquismo no sentido da fantasia. Freud

reconstitui essa fantasia em três fases, associadas a três cenas formuláveis em

três frases. A primeira fase, sádica, situa-se como uma lembrança muito antiga:

meu pai espanca a criança que eu odeio, normalmente um irmão ou uma irmã.

Desse modo, o primeiro tempo vem como recordação: “o pai espanca a criança

(que eu odeio)” (FREUD, 1919/2003, p. 182). Nessa cena, o pai acaba

provando seu amor pela criança, espancando um irmão ou uma irmã. A frase

fantasiosa desse tempo é: “o pai não ama essa outra criança, ele só ama a

mim”. A significação implícita é que ele só ama a mim.

A segunda fase, eu sou espancado por meu pai, jamais é lembrada, ela

está recalcada e é, eventualmente, reconstituída na análise. O ato de espancar

do pai é interpretado como sinal de seu amor. Depois dessa frase, construída

da relação pai/irmão, aparece uma outra, “o pai me espanca”, axioma

gramatical construído pelo sujeito, percebido, agora, na cena com o pai. Esse

tempo é tão radicalmente inconsciente que não se pode rememorar. Trata-se

da fase mais importante, pois é a que estrutura o sintoma. Encontramos, aí, o

caráter masoquista, que, segundo Freud, determina a causa do gozo desse

sintoma, ainda que a fantasia “uma criança é espancada”, seja, aparentemente,

sádica. A terceira fase, “uma criança é espancada”, ou “bate-se numa criança”,

é a primeira a ser formulada pelo sujeito em análise. Tanto quem espanca, um

adulto qualquer, quanto a criança espancada, quase sempre um menino, não

são identificáveis, são anônimos. Essa fase, segundo Freud, é acompanhada

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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de uma forte excitação sexual de natureza masoquista, mesmo que,

inicialmente, pareça sádica.

É nesse momento que Freud irá abandonar a discussão entre a cena

vivida e a construção da fantasia para dar ênfase à segunda opção: “a fantasia,

via de regra, permanece inconsciente e só pode ser reconstruída no decorrer

da análise” (FREUD, 1919/2003, p. 178). Para ele, há o caráter de fixação da

libido, de inércia e impermeabilidade da fantasia, que se configura em três

tempos, sendo que o terceiro se forma como um quadro erógeno para o sujeito,

pois aquilo que não tem sentido para o sujeito deve ser construído

Esta segunda fase é a mais importante e decisiva de todas. No entanto, devemos dizer que, de certo modo, ela nunca teve uma existência real. Nunca foi rememorada, nunca conseguiu tornar-se consciente. É uma construção da análise, mas não deixa de ser, verdadeiramente, uma necessidade para esta exposição (FREUD, 1919/2003, p.183).

E, finalmente, apenas no terceiro tempo, pode-se pensar em uma

realidade sexual do sujeito e de uma falicilização do gozo.

Como conseqüência dessa evolução na prática da psicanálise, Freud,

em Construções em análise, de 1937, sugere que a cura dar-se-ia pela

presentificação de traços mnêmicos, produzindo novas possibilidades de

ligação entre eles. Ao questionar a impossibilidade de existir a recuperação de

uma “verdade histórica”47 através da interpretação, Freud concluiu que o motor

da cura não está relacionado à comunicação de um saber na construção das

frases, mas à atualização da materialidade que sustenta a significação dessas

fantasias.

Ele aproxima de um delírio o trabalho do analista de construir algo que,

imemorável para o analisando, é passível de ser extraído do material veiculado

em análise. Essa construção vem resgatar o que é impossível para o

analisando representar através das suas lembranças, algo que está além da

transmissão simbólica. 47 Pretendemos dissertar mais amplamente sobre a verdade histórico-vivencial no quinto

capítulo.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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A questão do delírio a que Freud se refere, nesse texto, é tomada

como a posição do analista para interpretar essa “verdade histórica”. Para

Freud, o delírio propriamente dito, ou seja, de um sujeito psicótico, denota que

contém um fragmento da verdade histórico-vivencial. Para o psicanalista,

quando se aproximam as construções em análise ao delírio, trata-se de livrar

esses fragmentos da verdade histórica-vivencial de suas deformações e

resituá-los no passado. Freud segue essa mesma lógica quando pergunta se a

construção em análise é verdadeira ou falsa. Para ele, essa construção é

verdadeira, na medida em que é uma construção subjetiva. Esse fragmento da

verdade histórico-vivencial substitui o fragmento da realidade subjetiva. Tal

fragmento sofre inúmeras desfigurações, apagamentos ou esquecimentos,

porém, sua presença no delírio é marcante; ainda que venha envolto em ditos

incompreensíveis e repletos de erros, do ponto de vista do senso-comum, tais

fragmentos representam o “núcleo de verdade do delírio” (FREUD, 1937/2007,

p. 270).

Em outro texto da fase final de Freud (1937/2003), “Análise finita e

análise infinita”, a pergunta fundamental é o limite para o domínio das pulsões.

O que interessa ao psicanalista é a capacidade de dominar a repetição, pelo

viés da simbolização. O estofo da interpretação analítica seria, para o homem,

o complexo de castração e, para a mulher, a inveja do pênis, revelando o falo

como referência para a cura. A partir desse ponto, a angústia de castração, no

masculino e no feminino, torna-se divergente enquanto modos de subjetivacão.

Em contrapartida, foi também nesse contexto teórico que a cura se

transformou num projeto quase infinito e, no limite, quase não mais alcançável,

não mais finito, como era nos primórdios da psicanálise. Freud confrontou os

impasses para a regulação efetiva da pulsão de morte pela pulsão de vida.

Seria, portanto, o trabalho silencioso da pulsão de morte o que faria uma

oposição constante, no psiquismo, ao trabalho psicanalítico, delineando, agora,

o esboço da análise sem fim.

Assim, como vimos até aqui, Freud vai além do anímico, ancorando-se

na biologia para encontrar a gênese da pulsão de morte, fazendo jus à sua

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índole científica. Ainda que utilizemos a noção de pulsão de morte apenas

como referência clínica, não fazemos especulações teóricas. Freud fez. Ele

partiu do psiquismo para deduzir a razão de ser dos seres biológicos. É

também sua imersão na judeidade que o leva a interpretar a pulsão de morte a

partir de uma ótica religiosa. A manifestação do demoníaco seria uma das

faces dessa pulsão, uma vez que ela é o retorno do recalcado, no qual o ego

perde sua hegemonia, outrora regida por Eros. A tarefa de ligação de Eros é

suscitada no amor, papel que melhor se manifesta no amor ao pai do

cristianismo, diante da figura do Pai morto, como foi desenvolvido no segundo

capítulo, indo contra a tarefa de desligamento delegada ao caráter diabólico da

pulsão.

A compulsão à repetição começa a ser revelada como limite da clínica.

O conceito de “transferência negativa”, construído por Freud nos anos vinte,

revela certa ineficácia da interpretação freudiana. É nessa época que Freud

elabora a pulsão de morte. Se, para ele, a experiência analítica constituía-se

pela experiência do saber, a pulsão de morte surge como limite do saber e da

Bildung.

Freud reconhece: “conserva as características essenciais pelas quais

os sonhos diferem notavelmente dos pensamentos de vigília e engendram em

nós a necessidade de explicá-los” – Freud ultrapassa os problemas da

interpretação, indo além da psicologia que, até então, tinha sido seu objeto,

chegando mesmo a advertir o leitor: “aqui acaba o caminho fácil” (FREUD,

1920/2003, p. 62).

Nós sabemos que a experiência analítica surgiu a partir de um giro de

discurso que parte da clínica do olhar para a clínica da escuta.48 Mas, com

48 O nascimento da clínica enquanto domínio da experiência e da positividade médica é um

fenômeno histórico. O final do século XVIII e o início do século XIX irão oferecer o cenário científico e social necessários para a constituição da medicina moderna e de sua clínica (FOUCAULT, 1987). Na sua origem, o termo clínica quer dizer a observação que se faz à cabeceira do doente. A alusão a esse vocábulo é a referência direta à clínica médica. O sentido etimológico da palavra clínica vem do grego kliné, que significa cama ou leito. Daí decorre uma de suas significações mais tradicionais em medicina: a concepção de que o saber médico é formado ao pé da cama do doente, e que, portanto, o ensinamento da arte médica deve se dar junto ao leito do paciente. A clínica tradicional pauta-se, assim, no

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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relação e esse método da fala, esbarra-se em uma impossibilidade para se

atingir a cura da fala. Trata-se, em definitivo, do que Freud chamou de “reação

terapêutica negativa”. Coloca-se o acento no gozo que está no sintoma. Freud

já havia percebido esse fenômeno na década de 1920, juntamente com a

pulsão de morte.

A partir desse ponto, já podemos vislumbrar as construções de Lacan

no que concerne aos impasses freudianos sobre a pulsão de morte. Na

transferência negativa dos finais de análise, as manifestações das repetições

dos sonhos traumáticos, nos fantasmas masoquistas ou sádicos, nas

construções em análise, nas reações terapêuticas negativas, nas

estudo de casos. O olho clínico é o dispositivo de avaliação dos sintomas médicos. A anatomia patológica, que permite verificar, no cadáver, a realidade das novas concepções médicas, desenvolveu-se sob princípios que fornecem a base da nosologia e do vocabulário médico contemporâneo. Dito de outra maneira, seu objetivo constitutivo de estudo foi, a rigor, o cadáver, que permite informar, de maneira objetiva, mediante as alterações anatômicas correspondentes, o processo e o desenvolvimento da doença. É a partir desse contexto que a frase do neuro-anatomista Bichat, “abram alguns cadáveres!”, começa a fazer sentido para os médicos da época. O entusiasmo que Bichat e seus discípulos sentiam com a descoberta da anatomia patológica adquire significado. Esse caminho traz a eleição do cadáver como objeto de investigação determinante da clínica médica. A constituição da clínica médica é um reflexo das transformações essenciais ocorridas na organização da cultura ocidental. A importância da era científica para a civilização moderna seria determinante. Foucault, através de seu método genealógico, comenta que foi em função disso que a medicina acabou por fornecer os substratos paradigmáticos das ciências humanas. A ampla aceitação das idéias de seus principais atores (Bichat e Pinel) vem demonstrar a importância do pensamento médico nas fundamentações e nos paradigmas da psicologia clínica. Esse modelo médico traz, então, um modelo organicista, considerando o patológico caracterizado como uma doença de ordem física. O corpo anatômico como objeto e alvo do poder foi descoberto durante a época clássica, constituindo-se na clínica médica individualizada, pois o seu controle minucioso, através de operações, realiza a sujeição constante de suas forças e impõem uma relação de docilidade-utilidade. Por outro lado, teríamos outros tipos de doenças que não apresentavam uma sintomatologia regular, com lesões orgânicas passíveis de identificação pelos anatomistas. A sintomatologia passa a não ser vista pelos anatomistas da época. As lesões deixam de ter fundamentações orgânicas e começam a intrigar o método positivista da abordagem médica. Nesse ponto, é importante chamar a atenção para o fato de Freud trazer para as discussões sobre a angústia a perspectiva de a angústia ser um sinal, assim como a abordagem médico-anatomista do sintoma. Desse lado, as neuroses começavam a se apresentar como perturbações sem lesões, não oferecendo uma regularidade esperada. Surge, então, Charcot e seus estudos sobre a histeria. Como sabemos, a histérica começa a colocar em xeque o método anatômico. Começa a surgir um outro método clínico. No século XIX, no Groupe hospitalier de la Pitié-Salpétrière, Charcot tenta demonstrar que, apesar de um referencial anatômico, a histérica apresentava uma sintomatologia de outra ordem. A prática da confissão começou a ser a condição desse método clínico. Foucault localiza a cura pela fala a partir da passagem das ciências naturais para as ciências humanas. O ser humano transformou-se em um animal confidente.

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rememorações reflexivas traduzindo tentativas de nomeação da pulsão de

morte, e nas interpretações negativas, surgem os impasses freudianos para

ligar a pulsão. A compulsão à repetição apresenta-se, pois, como limite da

clínica, que, para Lacan, poderia ser encontrado na angústia de castração

(LACAN, 1962/2004, p. 111).

A descoberta de um núcleo pulsional irredutível do sintoma ligado ao

trauma não permite ao campo psicanalítico limitar-se à rede de significantes

regida pela interpretação. O real do trauma arruína o inconsciente redutível à

significação. A interpretação, que está ligada ao automatismo significante, não

poderá dar conta do núcleo real traumático que se encontra no cerne do

sintoma.

É por isso que Lacan (1962/2004) não vê com maus olhos a pulsão de

morte: a cura estaria ligada a ela, uma vez que toda pulsão passa a ser pulsão

de morte.49 A repetição, então, seria o limite do simbólico diante da formação

imaginária do eu. Para o caráter mono-pulsional da pulsão, ele marca a

suspensão do poder organizador do simbólico que, em seu limite, levaria à

ruptura do eu como formação imaginária, sendo a angústia a única tradução

subjetiva. A partir disso, Lacan propõe pensar a pulsão de vida como formação

imaginária do eu, passando a ser lançado de sua unidade pela pulsão de

morte.

A libido, para Lacan, resiste por estrutura à simbolização integral e é o que designa o objeto a. Por isso o Nome-do-Pai enquanto um significante organizador não resiste à organização total da pulsão de morte. Neste ponto, até aqui, a libido circula no campo do imaginário. A libido circula do eu freudiano ao objeto externo, de maneira que o gozo, em Lacan, em um primeiro momento do seu ensino, teria um estatuto imaginário (MILLER, 2007, p. 116; grifo nosso).

A partir desse comentário de Jacques-Alain Miller, pretendemos

apontar o processo do caráter monopulsional. Com as considerações de Freud

49 Para Lacan, teríamos um monismo pulsional, diferentemente de Freud, que criaria a pulsão

de vida e a pulsão de morte. Por isso é que toda pulsão seria, na teoria lacaniana, virtualmente pulsão de morte (LACAN, 1966/1996).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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sobre o masoquismo e a pulsão de morte, Lacan aposta em diferentes lugares

para o sadismo e o masoquismo. Diferentemente de Freud, Lacan demonstra

que algo não é representado por esse oposto. Isto é, nas primeiras

elaborações lacanianas sobre a angústia, passam a se colocar o desejo sádico

e masoquista como funções. O primeiro poderia ser articulável apenas a partir

da esquize, como divisão que o sujeito faz no Outro: não é mais o sofrimento

do Outro que se busca na intenção sádica, mas sua angústia. Aqui, é

importante marcar o desejo de evidenciar que o masoquismo não seria o limite

crítico da pulsão. Ao introduzir o sadismo e o masoquismo no Seminário Livro

10: A angústia, Lacan comenta que há um jogo de ocultação, no qual se mostra

algo para dissimular outra dimensão. No masoquismo, por sua vez, teríamos

um objeto declarado como objeto de troca: “reconhecer-se como objeto de

desejo do Outro é sempre masoquista” (LACAN, 1962/2004, p. 125).

Quando o desejo e a lei encontram-se juntos, o que o masoquista tenciona evidenciar – e evidenciar, acrescento, em seu pequeno palco, pois nunca se deve esquecer essa dimensão – é que o desejo do Outro produz a lei (LACAN, 2004, p. 126; grifos nossos).

O valor do masoquismo é se colocar como objeto de desejo para o

Outro, produzindo a lei e fazendo existir uma relação da mesma com o desejo

do Outro. É no lugar de desejo que o masoquismo se coloca na cena para o

desejo do Outro enquanto lei. Para o masoquista, há uma posição de dejeto,

apresentando-se submetido ao Outro e colocando-se em uma cena com o

semblant de maltratado. A submissão masoquista envolve uma revolta. O que

se procura na fantasia masoquista é uma encenação. Ela é particular ao

sadismo e à produção da divisão subjetiva que o sádico faz no Outro. O desejo

sádico não é articulável a partir da esquize que faz do sujeito. Podemos impor

o limite exato em que aparece uma divisão – o sádico quer saber onde se situa

o limite. O gozo sádico não consiste apenas em fazer o sofrimento do outro,

mas sim em provocar angústia.

Se Lacan propõe que o desejo sádico se aproxima do fetichismo, por

outro lado, o masoquista quer subir no palco e mostrar alguma coisa. Ele não

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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tem valor algum. Por isso, Lacan observa que o masoquista põe em questão o

desejo com a Lei. O desejo e a Lei, como visto no capítulo anterior, são a

mesma coisa para o masoquista. O masoquista aparece na cena com o

objetivo de colocar em questão o desejo que faz a Lei. Podemos, então,

começar a verificar que, para Lacan, o sádico e o masoquista são duas

formas diferentes de colocar em questão o objeto a.

Com relação ao desejo e à Lei, Lacan demonstra que esta nasce da

transmutação misteriosa ou mutação misteriosa do desejo do pai, depois de ele

ser morto (LACAN, 1962/2004, p.120), o que tem como conseqüência o

complexo de Édipo e o encontro com o desejo do Outro operando a castração.

No caso do masoquismo, o desejo do Outro se faz no palco, no limite ilusório

de reconhecimento hegeliano. Quando não se pode mais permanecer na cena

sendo reconhecido pelo Outro, surge o objeto pequeno a. O masoquista está

no palco, pois este é ainda o lugar neurótico do desejo do Outro, aquém do

objeto a que está fora da cena. Na medida em que o sujeito não é conhecido

como tal, o que vamos encontrar é um resto que cai. É importante evocar, aqui,

a abordagem feita no segundo capítulo, mostrando que Lacan dá um passo a

mais do que Hegel e aproxima-se de Kierkegaard. Como pretendemos

desenvolver mais adiante, há algo que não é reconhecido e nem

especularizável pelo sujeito. E agora, com a construção do objeto a, a condição

para que ele seja reconhecido é o não-reconhecimento. Lacan concebe a

angústia como a via de acesso ao que não é significante, ao objeto a.

Poderíamos dizer que a angústia propriamente dita não é significante. No

Seminário Livro 10: A angústia, se elabora um objeto cuja essência, natureza e

estrutura não apenas se distinguem dos significantes, mas também se

constroem de uma forma irredutível ao significante. Vê-se emergir o objeto a

juntamente com a idéia de que o masoquismo faz algo cair, ao se colocar na

cena do desejo e da Lei. É necessário que haja um não-reconhecimento para

surgir o reconhecido. Por ser um resto que cai, que não pode ser colocado ao

reconhecimento do eu, o reconhecimento do Outro, no sentido hegeliano, é a

marca da identificação ao Eu Ideal (Moi), cuja referência é a genitalização da

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libido e a identificação ao Pai morto. Mas, anterior a isso, o objeto é sem Outro,

passando a ser um resto que cai.

A experiência do trauma passa a ser uma experiência de não-

reconhecimento. São marcas do sujeito que não foram reconhecidas. Isso quer

dizer que nos afastamos do “estádio do espelho”, existindo aquilo que nunca foi

reconhecido no campo da imagem. O que passa a estar em jogo seria a

dimensão traumática que atende ao significante para pensarmos a

identificação.

O masoquista também encarna o objeto. Por um lado, o masoquista

deseja aparecer na cena como um simples objeto de troca, todavia, o que ele

faz valer é justamente o fato de ele ali estar como objeto-dejeto que cai, ou

seja, ele ali está identificado ao objeto causa de desejo.

Trata-se, aqui, de fazer a crítica do simbólico, inaugurando a

irredutibilidade do inconsciente à simbolização reflexiva. O que Lacan parece

expor, nesse momento, não é a falta produzida pelo significante, mas a falta pela

qual o significante pode vir a ser produzido, essencial: a falta no sentido da

negatividade, no sentido da ausência, da irrealização que o significante produz e

que seria aquilo pelo qual o mesmo é produzido. Para Lacan, esse seria o lado

avesso da falta, ou seja, a falta da falta (LACAN, 1962-2004, p. 147).

É por isso que, diferentemente de Freud, para Lacan, o sadismo não é

o avesso do masoquismo, pois os dois não são um par reversível. A passagem

de um para outro se dá pela rotação de um quarto de volta (LACAN,

1962/2004), não por algo simétrico. Se, para o sadismo, teríamos a busca da

angústia do Outro, sua esquize, no masoquismo, há o lugar do resto sendo

encenado em um palco na própria estrutura. As conseqüências de Lacan

perceber a não-simetria entre o masoquismo e o sadismo nos conduzem a uma

nova maneira de pensar essas duas subjetivações. Levando-se em

consideração que o sadismo e o masoquismo teriam novo estatuto a partir da

angústia, pretendemos percorrer a natureza desse afeto tão caro para a

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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psicanálise lacaniana, que poderia ser pensado como um resto que cai do

corpo.

No capítulo anterior, esbarramos com a falta do significante que produz

o sujeito suposto saber a partir do Pai morto. O Pai morto é um significante

qualquer, forcluído da cadeia simbólica pelo discurso da ciência. Em

contrapartida, no Seminário Livro: 10: A angústia, a elaboração passa a ser de

uma falta irrredutível ao significante. Para construir o objeto a, Lacan propõe

uma falta que o simbólico não pode suprimir. É aqui que encontramos uma

resposta para a repetição que foi suscitada pela Lei e pelo desejo. Essa

resposta é o afeto da angústia, que é puro gozo. Com relação a esse aspecto,

podemos recuperar a transferência como suposição de saber, trabalhada no

segundo capítulo, para lembrar que, aqui, com a construção do objeto, a

transferência passa a ser pulsátil. Nesse sentido, teríamos a abertura e o

fechamento do inconsciente. O inconsciente é um órgão. As referências

hegelianas da alienação e da separação ratificam as questões sobre o abrir e o

fechar do inconsciente.

Já podemos descrever os impasses de Lacan nas construções do

problema freudiano. Lacan descreve o inconsciente como uma borda que se

abre e se fecha para tomar o inconsciente homogêneo a uma zona erógena,

para mostrar que existe algo em comum entre o inconsciente e o

funcionamento da pulsão. Alienação e separação são figuras que ele usa para

articular significante e gozo, propondo privilegiar a causação do sujeito em

detrimento do conceito de inconsciente. A causação do sujeito ocorre em duas

operações: alienação e separação. Alienação é a abertura simbólica ao Outro e

corresponde ao momento no qual o sujeito emerge no campo do Outro. A

alienação é da ordem do puramente simbólico. O resultado dessa operação é

uma resposta de gozo que Lacan chama de separação. A separação

corresponde ao fechamento real ao Outro. Alienação e separação, ainda que

respondam à mesma estrutura lógica dos conjuntos, não são do mesmo nível.

A alienação é simbólica, corresponde à abertura da palavra, enquanto a

separação, a divisão, traduz o momento de fechamento.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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A alienação encobre o fato de que o objeto de gozo está perdido. A

alienação é o fato de que o sujeito é produzido dentro da linguagem e é inscrito

no lugar do Outro. É agora que podemos começar a propor a modalidade da

transferência e o real. Lacan apresenta um duplo aspecto da transferência:

como abertura e como fechamento, como simbólica e como real. A

transferência, definida a partir do sujeito suposto saber, concerne à abertura

simbólica ao Outro.

Quando se configura a transferência, o inconsciente se fecha. Há uma

conexão estabelecida entre o ser do sujeito e o Outro no simbólico. Lacan

busca a maneira de designar a transferência como fechamento real. Designar a

transferência-divisão como distinta da transferência-alienação não tem tido o

mesmo eco que o sujeito suposto saber: “A transferência é posta em ato da

realidade sexual do inconsciente” (LACAN, 1964/90, p. 131), é uma tentativa de

dar formulação ao real da transferência, propondo que, na transferência, tem

algo do real inassimilável pelo gozo. No lado simbólico, Lacan insiste na

transferência como engano da verdade como efeito simbólico. Do lado real,

acentua o objeto a como real que vem efetuar o fechamento.

A partir daí, a pulsão é a pulsação do inconsciente. Isto é, o

inconsciente temporal, inconsciente que se abre e se fecha, e cujo tempo é

uma dimensão que não pode ser atribuída e em oposição às regras nas quais

ele até então confiara de maneira lógica. E em nome do quê? Ele o faz em

nome da experiência analítica. Nessa perspectiva, o inconsciente só funciona

ali como uma suposição.

É a partir desse ponto que vamos começar a tratar a questão da

identificação a partir do objeto a. As coordenadas para se tratar esse tema

trazem a referência do objeto a que demonstra outras variações sobre a

questão da identificação. Nesse sentido, vamos tomar as vicissitudes desse

objeto lacaniano para compreender a questão da identificação ao Pai.

Levando-se em consideração as construções sobre o objeto a a partir

do masoquismo originário de Freud, pretendemos trazer os desdobramentos do

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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objeto permitindo pensar o não reconhecimento do sujeito na linguagem. Isso

nos autoriza pensar o tema da idenrtificacao a partir da noção de real presente

na teoria lacaniana.

A angústia: um furo

A crítica a Lacan que considera que ele haja subtraído a idéia de afeto

pode ser interrompida a partir de seu Seminário: Livro 10: A angústia.50 O texto

é o esforço de Lacan em estipular a estrutura do objeto a, “sua originalidade à

teoria psicanalítica” a um objeto destacado do corpo (LACAN, 1964/2004, p.

375). Já no capítulo 8 desse seminário, Lacan anuncia que vai apresentar a

noção de objeto pequeno a. Para isso, Lacan contrapõe a idéia de objetividade

à de objetalidade. Como vimos, a conseqüência da fundação do objeto a deve-

se a um outro saber sobre a repetição, que não se aplica às construções

freudianas e tampouco ao automatismo da repetição. Se a idéia de Lacan é

trabalhar a transferência a partir da alienação e da separação, a justificativa

seria o objeto a.

Ora, se existe uma diferença de abordagem entre Freud e Lacan

acerca da angústia, esta pode estar situada na formulação da “angústia como

angústia de castração”,51 em Freud (1925/26/2003, p. 135), e da “angústia

como um afeto que não é sem objeto”, em Lacan (1962/2004, p. 84). Nesse

50 O livro A teoria psicanalítica do afeto, de André Green, traz essa crítica de que Lacan eleva

a repetição ao significante. O modo como Green concebe o afeto está no livro O discurso vivo (1982) e, posteriormente, em O trabalho do negativo. A maneira como o autor concebe o afeto passa pelo recurso ao termo “alucinação negativa”. Essa hipótese é retirada de Freud, que usa o termo para pensar sobre uma concepção psicanalítica do afeto. Enquanto uma alucinação positiva é uma percepção sem objeto, teríamos a alucinação negativa como uma não-percepção de um objeto; segundo Green, não perceber alguém em um ambiente, por exemplo. A relação da alucinação negativa com o afeto seria apontar este último como algo que fica como presença de uma ausência, algo que, sendo ausente, faz trabalhar. A idéia greeniana de afeto teria alguma semelhança com a concepção lacaniana da angústia, existindo alguma evidência de irredutibilidade em ambas.

51 Não pretendemos, aqui, nos ater à questão da angústia como trauma do nascimento, em seu caráter filogenético, de acordo com Freud (1913/2003), a partir de Otto Rank. Conforme a lei de Haeckel, Freud utiliza a ontogênese como repetição da filogênese: ao mesmo tempo em que o desejo incestuoso aciona a angústia, algo do pai primevo também é evocado.

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ponto, vamos começar a pensar a construção de Jacques Lacan sobre a

angústia, sendo anterior à castração edipiana. Deveríamos esperar que a

mensagem do Seminário Livro 10: A angústia trouxesse a angústia de

castração, à qual Lacan havia dado uma função estruturante ao longo se seu

ensino nos anos de 1960. Porém, a partir de seus afetos, que suscitam a

angústia da castração, sabemos da relação desta com o romance parental.

Vemos que se abandona toda a idéia freudiana da angústia de castração, que

teria como centro o caso do pequeno Hans (CASTILHO, 2007, p. 325), e, com

a angústia lacaniana, não iremos encontrar a ameaça do Pai como fator

desencadeante.

Aqui, se trata, pelo contrário, da elaboração de uma nova estrutura da

falta, uma estrutura não significante da falta, que passa pela topologia e que

despeja um estatuto do corpo. Se, antes do seminário, o corpo está do lado do

imaginário, agora, passamos a presenciar os objetos separados do corpo.

Para Lacan, o ponto intransponível não seria a angústia de castração

propriamente dita, mas o fazer da castração aquilo que falta ao Outro. É por

isso que pretendemos demonstrar esse percurso no Seminário Livro 10: A

angústia, pois Lacan, mais uma vez, permite repensar a referência freudiana do

amor e da identificação.

Nesse sentido, com relação à construção do imaginário como moi,

Lacan convida-nos a fazer uma orografia da angústia, a descrição de um relevo

e grafos, colocando-a em uma topologia: o eu é lançado (jeté) de sua unidade

e o que surge é seu deslizamento. Aqui, já podemos perceber uma discussão

sobre a maneira com que o Je se projeta no sentido de ser arrojado. Percebe-

se a relação que se estabelece entre o Je e o verbo jeter.52

Lacan apresenta uma via que parece duvidosa, ao propor a angústia

como um afeto. A angústia lacaniana não é capturada pelo recalque, por tratar

52 Mantivemos o jeté porque, em francês, podemos entender o sujeito jogado para fora de sua

unidade.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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de um objeto perdido, um afeto53 além da significação, não aplicado ao campo

do significante, cuja gênese é o parricídio, como trabalhado no primeiro

capítulo. Pretendemos, então, evocar um novo dispositivo na montagem do

aparelho psíquico.54

Desse modo, em “A angústia na rede de significantes”, Lacan

(1962/2004) interpreta a angústia como um afeto que se encontra à deriva

entre os significantes. Ela não se deixa capturar nesse lugar. A “rede” seria o

que poderia capturá-la, uma “malha” que prende o afeto da angústia. Ele faz

uma distinção entre emoção e angústia, instituindo cada uma delas em

condições diferentes de movimento e dificuldade. A partir da conceituação feita

por Freud, em 1926, Lacan elabora o processo de diferenciação da libido na

inibição, no sintoma e na angústia, colocados no mesmo quadro, mas em

posições subjetivas diferentes, como se não se articulassem. Cada posição

subjetiva teria um estatuto distinto. O impedimento, o embaraço e a comoção

são o que distinguem a angústia/afeto da emoção. A partir dos eixos

dificuldade e movimento, a angústia estaria em registros diferentes de ação, se

comparada à inibição e ao sintoma.

Figura 3 – Grafo da inibição do sintoma e da angústia

Fonte: LACAN, 1962/2004, p. 22

53 O termo afeto não tem sua raiz na psicanálise – já aparecia na Grécia, e remete ao pathos,

em grego. 54 A resposta de Freud para esse afeto vem a partir de seu desejo científico para tratar o

enigma da origem. A filogênese, em seu texto darwinista Totem e tabu (FREUD, 1913/2003), surge de um ato: no princípio é o ato, não o verbo, na determinação do sujeito pelo simbólico. Se Freud faz do mito o recurso para compreendermos esse afeto, é para demonstrar a herança filogenética do indeterminismo. Freud ainda era herdeiro do neo-lamarckismo.

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161

No esquema montado no Seminário 10: A angústia, Lacan está se

referindo à “Inibição, sintoma e angústia”. O que se analisa é a fala do paciente

sobre sua inibição, um efeito no psiquismo que não é analisado em ato. Lacan

situa a inibição como uma paralisação da libido, a libido sem movimento,

gerando uma diminuição nas aptidões locomotoras e a perda do controle da

imagem construída do eu. O sujeito inibido é aquele que não consegue sair de

um lugar, lançar-se em um projeto.

Na segunda coluna, o sintoma estaria na passagem da inibição para a

angústia. Lacan busca a origem etimológica do vocábulo “impedimento” e

encontra a palavra impedicare – cair em uma cilada, armadilha. Nesse caso, o

sujeito está impedido porque está preso em uma armadilha, que é a captura

narcísica. Como pretendo demonstrar, aquilo que coloca o sujeito em

movimento é justamente a falta de alguma coisa na imagem – uma forma leve

de angústia. Quando o sujeito se identifica com a imagem, é porque recua

diante da castração (simbólico) e cai na cilada imaginária.

Se o movimento é menor e a dificuldade é maior, existe o embaraço.

Lacan faz referência à palavra do espanhol embarazada, “estar grávida”. A

palavra “embarazo” apresenta-se a partir da decomposição do termo freudiano

“inibição”, que inaugura a série “Inibição, sintoma e angústia”. Esse termo

refere-se a uma “forma de angústia”, o sujeito vive uma divisão subjetiva.

Verifica-se que, tanto na inibição como no embaraço, existiria uma ausência de

movimento, mas, como o quadro revela, na inibição, a dificuldade está ausente.

Na clínica, mesmo que o paciente tenha uma inibição, trabalhamos com a fala

do paciente sobre a sua inibição; a inibição é motora, é um distúrbio da

motilidade, enquanto o sintoma é significante.

A emoção será trabalhada como comoção, no português, subjetivada

como perturbação e inquietude. Também se encontra uma referência

etimológica: trata-se de um movimento, uma agitação que desagrega, uma

comoção (comover ou tirar do lugar). Lacan descarta a angústia como sendo

parte da emoção; passa a compreendê-la como uma comoção sem relação

com o simbólico.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

162

A angústia estaria no último termo do grafo, como tendo o máximo de

movimento e o máximo de dificuldade, presente quando não se sabe mais o

que fazer, quando não há em que se agarrar. Depois de Freud, Lacan irá

mostrar que a questão do desejo do Outro, ou seja, a angústia, se coloca a

partir da temporalidade. A angústia é impensável se não a colocarmos em uma

dimensão temporal. Isso está ligado ao desejo do Outro. O momento da

angústia é correlato daquele em que o Outro se coloca em movimento. É nesse

sentido que a angústia passa a ser a vertigem do possível. Assim, Lacan

substitui o X da coluna da angústia pelo encontro com o gozo do Outro, que é a

própria destituição subjetiva, e leva a passagem ao ato, momento em que o

sujeito se identifica como objeto de desejo do Outro, trazendo a marca da

impossibilidade.55

Para Lacan, toda pulsão passa a ser pulsão de morte, pois a

sustentação da libido é a impossibilidade, e não mais o significante. No que diz

respeito ao lugar do sujeito suposto saber, como um significante forcluído do

sujeito em que toda a cadeia se organiza, nesse momento da teoria, a libido se

ancora em nada.

Como pretendemos demonstrar no próximo capítulo, há uma

separação entre o saber e a verdade. A partir daí, poderemos compreender a

noção de fechamento e abertura do inconsciente. O aparelho psíquico e suas

representações apóiam-se na negatividade de algo que não pode ser

representado. Lacan aponta uma mudança de perspectiva da física newtoniana

para a de Einstein (LACAN, 1964/2004, p. 297). Nesse segundo sistema físico,

está a topologia, podendo incluir um furo na superfície. Assim, a libido apóia-se

nesse furo, formando a realidade psíquica (LACAN, 1973/1990), uma instância

que tem o estatuto de impossibilidade do puro Affekt, passando a ser pura

pulsão de morte, escapando do dualismo pulsional. Se até esse momento

Lacan sofreu severas críticas dos psicanalistas por estar excluindo o afeto,

agora, a teoria lacaniana passa a ser impensável sem o estatuto do Affekt.

55 A questão sobre a impossibilidade será trabalhada no próximo capítulo.

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Na passagem lacaniana sobre o texto Le ravissement de Lol V. Stein,

escrito por Marguerite Duras (1986), a relação da fantasia com o impossível é

paradigmática. Longe de qualquer psicanálise aplicada, Lacan (1965/2001)

estuda o que restou do lado da vacuidade e da inconsistência. No texto, a

protagonista Lol encontra-se em um instante eterno ao entrar no salão de

festas e ver seu amado, Michel Richardson, com Anne-Marie Stretter. Um

instante de esvaecimento subjetivo, em que não há a que se agarrar, um

esmagamento que faz ocorrer uma fixação fantasmática a partir da cena

(LACAN, 1965/2001), criada pelo objeto olhar e definida a partir do centro dos

olhares. Existe uma fixação da imagem que se torna pura superfície. Tudo

recai sobre seu campo de ilusão e ela constrói uma cena imaginária. Quando a

adolescente Lol vê a cena do noivo com outra mulher, baixa os olhos para,

depois, acompanhar o casal com o olhar e, em seguida, desmaiar. Lol se casa

com outro homem e muda-se de cidade, tem filhos e aparenta ter uma vida

tranqüila. Após dez anos, retorna à cidade e vê, caminhando, um homem e

uma mulher que lhe parecem familiar. Depois desse episódio, o passado

retorna para Lol, que não consegue mais diferenciar o sonho da realidade.

Em Hommage fait à Marguerite Duras, Lacan (1965/2001) reconhece

esse instante do olhar: momento em que Lol se coloca como protagonista da

cena – seu apoio durante os próximos dez anos – na qual sua posição

subjetiva se ancora, fazendo-se olhada como les centre du regards. É um

momento privilegiado, em que a vacuidade faz surgir o Affekt em seu estado

puro. Ela sabe-se olhada e, ao mesmo tempo, renuncia ao olhar, substituindo o

brilho que um objeto agalmático poderia estabelecer a partir de uma esquize

entre olho e olhar. Aí, podemos perceber que a magia do olhar é o parâmetro

para o estado de ausência da protagonista. Esse olhar gera e alimenta a ilusão,

criando um espaço irreal onde somente Lol pode circular.

Para Lacan, esse afeto não se apóia em nada. Se, para Freud, a

metapsicologia sobre a angústia gira em torno de um objeto – a angústia como

angústia de castração –, teríamos, em Lacan, um não saber fazer com a falta

da falta do Outro (LACAN, 1962/2005, p. 147). Isso quer dizer que há a

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inexistência de um significante da falta da falta do Outro. Lacan recupera uma

construção lingüística para negar o caráter ôntico da angústia e afirmá-la

enquanto afeto que não é sem objeto, porque não tem uma maneira de se

satisfazer em sua plenitude, criando apenas movimento. Isso é encontrado na

retórica como a função da litotes, que traz à tona a idéia de que, embora

pareça que não, existe. Logo, a angústia é definida pela anulação do

significante, fazendo surgir um outro dispositivo na teoria lacaniana, que seria o

objeto a, “isso não equivale a dizer que esse objeto seja apenas o avesso da

angústia, mas que ele só intervém, só funciona em correlação com a angústia”

(LACAN, 1962/2004, p. 98), criando uma perturbação profunda de movimento

de objeto do gozo do Outro, lugar em que Lol V. Stein, personagem de Duras,

se fixa por vários anos. Nesse sentido, ao ler o romance da escritora francesa,

percebe-se que Lol é inteiramente o que é, desde a primeira página do livro.

Isso quer dizer que o arrebatamento de Lol estaria localizado desde a noite do

baile.

O texto em homenagem a Marguerite Duras permite a Lacan isolar o

lugar determinante do olhar não como atividade do sujeito, como um sujeito

que vê, mas como função inversa do sujeito, como um sujeito que é visto por

algo que olha sem se ver. A divisão estrutural do sujeito revela, no nível da

pulsão escópica, o que ele não pode ver enquanto ele olha, pois é olhado.

Tal seria, portanto, a modalidade do visível, quando sua instância se

faz inelutável: um trabalho do sintoma, no qual o que vemos é suportado por

algo que esvanece, que atinge o visível do nosso corpo vidente, para que

possamos abrir os olhos e experimentar o que não vemos, fazendo ver outra

coisa e ensinando modos de ver. É nesse ponto que Lacan tenta dar nome ao

inominável.

Lacan cita a metáfora do louva-a-deus, dizendo que a fêmea, depois do

ato sexual, devora o macho. O psicanalista evoca, assim, a condição de

angústia do sujeito diante da falta do significante no campo do Outro. A

questão da angústia estaria, portanto, concentrada no enigma do sujeito no

campo do Outro.

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Suponham-me em um recinto fechado, sozinho com uma louva-a-deus de metros de altura. É uma boa proporção para que eu tenha a altura do louva-a-deus macho. Além disto, estou vestindo a roupa de um louva-a-deus de 1,75m, mais ou menos a minha altura. Eu me olho, miro minha imagem, assim fantasiado, no olho facetado da louva-a-deus. É isto a angústia? Está bem perto. Trata-se da apreensão pura do desejo do Outro como tal, uma vez que justamente ignoro minhas insígnias, pois estou ridiculamente vestido com a mortalha do varão. Não sei o que sou como objeto para o Outro (LACAN, 1962/2004, p. 39).

No campo do Outro, existe a falta da falta. Aqui, teríamos o aspecto

inovador da temática da angústia. É por isso que, para Lacan, não há acesso

ao desejo, não há sustentação possível que não seja por meio da angústia

construída a partir da falta da falta do Outro. Para Lacan, esse ponto é uma

construção subjetiva do significante da falta do Outro. A sustentação possível

do desejo supõe a relação ao objeto que se configura na relação com o Outro,

relação mediada pelo registro da fantasia. É justamente na experiência de

indeterminação que é colocado o sujeito. A metáfora do louva-a-deus é a idéia

de que existe um não-saber diante da falta do Outro. Em Lacan, não se pode

saber sobre a falta do Outro, e a angústia seria a falta da falta. Diante da

inexistência de um saber sobre a falta do Outro, há a angústia, e é nesse ponto

que Lacan avança sobre a repetição.

A angústia não é, pois, sem objeto, no dizer de Lacan, um vez que ela

acomete o sujeito quando ele se encontra confrontado com algo que ocupa, no

quadro do fantasma, o lugar vazio do objeto de desejo. Manifesta, assim, o

desejo do Outro, não como falta, mas como falta da falta, pela qual se estrutura

simbolicamente o desejo.

A angústia é o sinal do direcionamento da cura do paciente, a bússola

que aponta para aquilo de mais estranho (Unheimlich) na experiência analítica,

mas, também, para aquilo de mais íntimo, sua ex-timidade sobre o encontro

com o desejo do Outro. Um sinal (LACAN, 1962/2004) daquilo que o sujeito

evita e que define sua verdade (BAAS, 2001) com relação ao desejo.

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O que estaria em causa no Seminário Livro 10: A angústia seria o

estatuto do objeto do desejo, aquilo que instaura, que atrai o desejo do sujeito.

Devemos passar pelo estatuto do objeto da angústia. A angústia não é

pensada em si, não é recortada como objeto de investigação, mas como uma

passagem de uma dimensão a outra. Nesse ponto, antes das construções

sobre a angústia, o que era visível poderia ser lisível, agora, não existe mais

essa relação biunívoca entre as palavras e as coisas, entre o ver e o ler.

Portanto, na terceira lição do Seminário Livro 10: A angústia, “Do

cosmos a Unheimlichkeit” (LACAN, 1962/2004, p.38), há marcações sobre

essa falta de simetria entre a representação e o mundo, nos capítulos: “O

mundo e a cena do mundo”; “A relação especular do significante”; e, por último,

“Hamlet e a cena sobre a cena”. A angústia fica ligada a tudo o que pode surgir

no campo do Unheimlichkeit, levando Lacan a afirmar: “o homem entra na sua

casa em um ponto situado no Outro mais além da imagem do que estamos

feitos” (LACAN, 1964/2004).

Na primeira passagem, é a determinação do objeto de angústia, na

dimensão escópica, que estabelece o estatuto do objeto a. Uma maneira de

introduzir essa questão seria buscar as referências freudianas na compreensão

da problemática da angústia como via de acesso da pulsão de morte. Um texto

de Freud, “Um distúrbio de memória na Acrópole” (FREUD, 1936/2003), escrito

em homenagem ao teólogo Roman Rolland, é basilar para a discussão dessa

temática. Em uma viagem que fez com seu irmão mais novo à Itália, o autor

sugeriu que fossem até a Grécia, onde teriam mais condições de viabilizar o

passeio. Os dois vão para Atenas e, no momento em que Freud está no alto da

Acrópole, é atravessado por uma idéia:

Quando por fim na tarde da nossa chegada eu me encontrava na Acrópole e pousava meus olhos sobre o cenário, um pensamento surpreendente, uma idéia estranha passou rápido em minha mente, e a idéia é esta: então tudo isto existe mesmo. Tal como aprendemos no colégio (FREUD, 1975/2003, p. 292).

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Alguma coisa do ponto de vista do campo escópico apresentou-se para

Freud, como divisão. Ao comentar “então, tudo isto existe mesmo”, ele vai

puxando o desdobramento dessas elaborações, que é o efeito que se tem

quando somos confrontados com alguma coisa excessiva. Qual seria o estatuto

disso? Lacan designa essa experiência como um vislumbre do objeto, que se

rompe e que se apresenta, normalmente, na angústia, e que poderia permitir

acesso à dialética do desejo, simplesmente para constatar a presença desse

objeto.

Na lição de Lacan, o objeto é pensado a partir do campo imaginário, da

dimensão escópica. Por que Lacan passa pelo imaginário para introduzir a

angústia? A necessidade de percorrer o escópico para conferir esse objeto vem

do fato de ele se configurar como estranho. A estranheza daquilo que se

apresenta tem quase um estatuto de objeto. De alguma maneira, a via do

imaginário seria propícia para perceber esse objeto que se apresenta no

campo escópico e no campo visual, sendo necessário reformular a concepção

anterior que se tinha sobre o imaginário, apoiada sobre o estádio do espelho,

pois este não seria suficiente para dar conta da dimensão do objeto que se

apresenta na angústia. Recordemos que, no estádio do espelho, teríamos

objetos modelados pela imagem. Até esse ponto, pensávamos que era o

protótipo do mundo dos objetos na imagem; nesse seminário, buscaremos,

mais adiante, destacar que surgem objetos que não são como os demais; há

uma decomposição do que seria o especular. Nesse sentido, podemos

perceber uma crítica do imaginário. Lacan faz, aí, uma passagem do esquema

“L” ao esquema ótico: no primeiro, temos a ilusão de que a pulsão está ligada à

imagem e à agressividade; assim como para Freud, seria a subjetivação da

manifestação dessa pulsão, enquanto, no esquema ótico, haveria um furo na

imagem (LACAN, 1964/2004). A libido, agora, é pura pulsão de morte; nesse

momento, nos afastamos de qualquer binarismo pulsional, afirmando que toda

pulsão é pulsão de morte. A gestalt imaginária vacila. É no campo da imagem

que algo escapa. O real fura a gestalt do espelho.

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Lembremos, então, a organização do esquema ótico. No esquema

ótico, há uma máquina com dois espelhos, um convexo, do lado esquerdo, e

um plano, no meio. Aquilo que acontece do lado esquerdo não

necessariamente se reproduz no lado direito. Essa é a primeira distinção no

modo de se pensar o campo do imaginário que, até então, calcava-se apenas

no operador espelho. O Estádio do espelho com formador da função do Eu

obedece um princípio de simetria e, quando Lacan expõe esse processo para

introduzir a função simbólica, esse princípio basta-se a si mesmo para

simbolizar a relação a’ – a. O primeiro elemento diferencial que introduz o

esquema ótico opera uma cisão entre a e i de a.

Por outro lado, nessa complexificação, tem-se um modo de pensar o

campo escópico, o campo do imaginário. É nessa assimetria (o que se

apresenta de um lado do espelho não necessariamente vai se encontrar no

lado oposto) que vamos ver que há um lugar, no campo imaginário, para se

perceber o objeto da angústia. A idéia do Estádio do espelho ultrapassada é a

de que tudo aquilo que está do lado do real estaria também presente nesse

outro lado, em uma relação narcísica. Esse movimento traz uma imagem

perturbada, fazendo surgir uma mudança do estádio do espelho para o

esquema ótico. Está perturbado porque se manifesta algo do objeto que

deveria ficar apenas do lado do sujeito. No esquema ótico, há um espelho que

separa não refletindo um ponto da imagem. Isso quer dizer que existe um

ponto que não está no campo do Outro refletido. É aqui que Lacan demonstra a

falta da intersubjetividade presente no início de sua teoria. Estamos indo para

mais além da imagem.

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Figura 4 – Esquema ótico

Fonte: LACAN, 1964/2004, p. 50

Para compreender esse fato, podemos lembrar o comentário de Lacan,

num trecho do Hamlet. A referência é a uma cena dentro da cena, o que os

comentadores de Hamlet têm como uma peça sobre a peça: “the play inside

the play”. A peça inicia-se com uma visita do fantasma do pai de Hamlet,

comunicando que ele teria sido morto pelo próprio irmão, Cláudio, que, alguns

dias depois, casa-se com a esposa do pai, Gertrude, e assume o reino. Hamlet

é convocado a vingar essa ação e tomar o trono do tio usurpador. O drama

passa a se desenvolver em torno das decisões de Hamlet em relação ao que

faria e sobre a honestidade da palavra do fantasma. Para confirmar a culpa do

rei, e apreendê-la, Hamlet lança mão da encenação de uma peça, dentro do

castelo, com um grupo de atores que estava passando por lá. Designa a peça

como “Ratoeira”, uma “armadilha”, para pegar não um rato, mas um rei que

podia ser culpado. Nessa cena, alguma coisa também se introduz no lugar que

deveria permanecer vazio, o que podemos perceber nos efeitos que produz no

personagem do rei assassino.

Na encenação, o rei é morto com gotas de veneno despejadas em seu

ouvido pelo próprio irmão. O ponto que chama a atenção é que a pessoa que é

chamada para representar o assassino está em uma posição exatamente

homóloga à do próprio Hamlet, sobrinho do rei. Hamlet encena o próprio ato

parricida, o que é um detalhe bastante interessante.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Podemos recorrer, assim, a esse esquema ótico para explicar a

dimensão do estranho. Como sabemos, Freud explica que o Unheimlichkeit

pertence ao domínio do angustiante. Essa lição vai conduzir à emergência

desse objeto estranho no imaginário, que leva às portas do sinistro. O artigo

freudiano “O estranho” é construído na dimensão escópica; nele, o imaginário

não representa aquilo que reflete. A inspiração de Freud é o conto “O homem

de areia”, de Hoffmann (FREUD, 1919/2003), cuja tradição está no romantismo

alemão, tendo como marca o horror e a fantasia que fazem surgir o grotesco. A

importância que tem a dimensão escópica para a intrusão do objeto estranho

são os futuros desdobramentos que esse objeto poderá ter também no campo

simbólico e no real.

Lacan (1962/2004) afirma que o unheimlich é propriamente o heimlich;

a raiz dessa palavra demonstra tudo o que é íntimo, conhecido e familiar, mas,

pelo fato de ser tão íntimo, chega também ao secreto, estranho e assustador,

ou ao angustiante. Está aí a idéia de que o estranho não se faz sem o

enquadre anterior do familiar. É o heimlich que dá origem ao unheimlich; é o

familiar que produz, de certa maneira, o estranho; é o familiar que dá o

enquadre da angústia enquanto aparecimento de algo no lugar do familiar.

Assim, podemos considerar que não há mais uma adequação entre as

palavras e as coisas, e questionar o significante que se apóia no significado.

Nesse sentido, através do esquema ótico, Lacan demonstra o que escapa à

unidade imaginária do corpo. Há a dimensão de um gozo que permite

ultrapassar a dimensão da miragem. A partir desse ponto, fica mais clara a

idéia de que toda pulsão é pulsão de morte. É por isso que podemos afirmar

que o objeto a de Lacan é um corte, ou uma subtração a algo que não está

para sempre. Se, para Freud, a angústia de castração esbarra no rochedo,

percebe-se que Lacan institui um furo no rochedo da castração, com o objeto a.

Quais seriam as conseqüências disso na constituição do sujeito lacaniano? A

resposta é o desejo do Outro, a falta do Outro, que é aquele que me vê

(LACAN, 1962/2004). A angústia é o sinal para o desejo do Outro, que já está

antes do sujeito, próprio objeto, causa de desejo e de gozo. Nesse contexto,

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podemos situar, no Seminário: Livro 10 Angústia: “O que o neurótico recua não

é a castração, mas aquilo que falta ao Outro” (LACAN, 2004, p. 56).

Do mesmo modo, Lacan deixa subitamente de lado a forma especular

unitária do corpo para trabalhar com as particularidades do corpo. Lacan

recupera os órgãos do corpo e abre mão do corpo esplêndido e unitário do

espelho. Se, recuperando uma expressão que se utilizou precisamente para

desenvolver o Seminário Livro 10: A angústia, o corpo imaginário é um corpo

unitário e sem órgãos, poder-se-ia aproximá-lo do Anti-Édipo; agora, deixa-se

de lado o corpo mortificado pelo significante e o aproximamos, se podemos

formular assim, de órgãos sem corpo.

É por isso que no Seminário Livro 10: A angústia, o gozo se desloca da

repetição significante para os objetos que dão formas a esse corpo. Lacan

procura representar, a partir dos órgãos, partes de gozo que não são

significantes. Isso pode ser compreendido como pedaços de corpos, fazendo

eco à “libra de carne” Shakesperiana; seriam fragmentos de real que se

encontram, pela primeira vez, ilustrados a partir do imaginário, e que, mais

tarde, procuraremos demonstrar sua consistência lógica.

Lembramos que, no capítulo anterior, a castração se produzia a partir

de uma negativização produzida pelo falo. Aqui, damos um passo a mais, ao

propor que o gozo é um efeito impossível de negativizar; esse processo se

despreende do significante. Nesse sentido, a angústia lacaniana não é a

incidência do falo produzindo a série de significantes, mas um órgão que se

destaca do significante. Lacan, nesse contexto, propõe uma nova lista para se

pensar esse estatuto do órgão.

A retroação do Édipo, juntamente com o desenvolvimento cronológico,

como formalizou Freud, a partir de Karl Abraham – o oral, o anal e o genital –,

supõem que esses estágios tenham valor a partir do ponto de capiton edípico

que enoda e dá sentido aos estágios. Isso quer dizer que existem,

cronologicamente, estágios pré-genitais, mas não pré edípicos, pois o Édipo

está em todos os estágios. De uma outra maneira, no Seminário Livro 10: A

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172

angústia, teríamos outra construção que não traz a questão da retroação, mas

sim os objetos.

Entramos nas cinco formas do objeto a: oral, anal, fálico, escópica e

evocante. É aqui que Lacan se debruça para apontar as manifestações do

objeto no corpo erógeno, corpo com buracos contornados pelas bordas

libidinalizadas e erotizadas pela interpretação que o sujeito faz da falta do

Outro, orifícios erógenos tangenciados por zonas libidinais, batizadas por

Abraham de objetos parciais. Lacan traz, nesse seminário, uma nova reflexão

sobre as origens. Ele desenvolve uma tese sobre a anterioridade dos objetos.

O que está em jogo, nesse ponto da tese, é o tema da origem que se traduz a

partir da anterioridade dos objetos. Aqui, vamos propor uma outra abordagem

sobre a identificação implicada nas formas do objeto.

Como foi trabalhado no primeiro capítulo, Freud inicia o trabalho das

pulsões parciais nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (FREUD,

1901-1905/2003): a fase oral (canibalismo), a fase anal (primitiva) e a fase

fálica (genital), para demonstrar as fases de desenvolvimento da libido, que se

organizaria, de forma definitiva, a partir da fase fálica. Mas, em uma

perspectiva diferente da trabalhada no primeiro capítulo, queremos demonstrar

que os objetos da pulsão parcial pré-existem ao engendramento do Outro.

Desse modo, é importante apontar que o significante entra no real através do

corpo. O primeiro aspecto que devemos privilegiar, a partir da noção da

identificação e do objeto a, seria a idéia de esse objeto anteceder à

significação. Isso aproxima a construção de um saber das cinco formas de

objetos primordiais da extração corporal.

Ao contrário do que pudemos formular no segundo capítulo, o objeto a

não aparece como uma estrutura articulada, mas sim como um corpo

esfacelado, como algo articulável. A partir deste momento da tese,

pretendemos comprovar, com base nos ensinos de Lacan, que a psicanálise,

ao contrário do que se pensava, não é mais uma teoria da relação de objeto,

mas da falta no objeto.

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Estamos nos cinco objetos naturais, ou seja, os três objetos freudianos

– oral, anal e fálico – acrescidos dos objetos olhar e voz, conceituados por

Lacan. Ei-los, então; cinco objetos que se referem a objetos naturais de um

corpo despedaçado. Os três primeiros caem de um corpo, partilham da divisão

do sujeito, e situam-se na dinâmica da demanda: o seio, as fezes e o falo.

Contudo, é na dinâmica do desejo que se apresentam os dois objetos

lacanianos: o olhar e a voz.

Seguindo essa direção, vamos vislumbrar o lugar do a no Outro. No

entanto, como sabemos, esse lugar é irredutível à simbolização e irredutível

segundo as leis normais do campo visual, exterior ao Outro, mas,

paradoxalmente, está incluído no Outro diferente do significante. Por isso,

Lacan se vê obrigado a detalhar as separações anatômicas do objeto, as

separações naturais dos objetos tomados do corpo, e, precisamente, sem a

intervenção do Outro. É o que ele chama de separação. Não há castração,

senão separação dos objetos, separação dos órgãos, trata-se de uma

separação anatômica anterior à icidência do Outro; com efeito, isso quer dizer,

de modo independente do Édipo.

A lista dos objetos de Lacan

Nessa linha, o Seminário Livro: 10: A angústia dá um passo a mais, ao

propor uma tese original sobre o lugar, a função e a experiência da angústia,

esse afeto tão fundamental para a experiência subjetiva. Na última parte desse

seminário, Lacan se dedica a demarcar a experiência corporal. Há, nessas

formulações lacanianas, novas categorias para os objetos. Lacan faz uma

extração dos objetos oral, anal e genital – objetos herdados de Freud, e que,

anteriormente, foram utilizados pelo movimento psicanalítico inglês, que tem

como maior representante Melaine Klein –, dando a eles uma nova formulação.

Nesse seminário, a sexualidade constitui-se em torno do buraco, da

falta que circunda o vazio do objeto. Sendo assim, de que tratam os objetos

parciais em Lacan? Esses objetos valem por serem caducos, restos destinados

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a cair da operação do sujeito, objetos que pertencem, simultaneamente, ao

Outro e ao sujeito. Quando Lacan apresenta sua lista de objetos, ele insiste em

dizer que é o objeto “no Outro” e não “do Outro”. Lacan considera que o objeto

oral é o resto da necessidade no Outro, o excremento é o resto da demanda no

Outro. Que o olhar é a potência no Outro, e a voz é o desejo no Outro. Lacan

diz “no Outro” porque esse objeto é separado do organismo do sujeito. Nesse

sentido, só podemos pensar essa separação porque um sujeito pode ser visto.

Isso quer dizer que esse espaço só se constitui com a condição de que o corpo

e os objetos estejam elididos. Desse modo, há um outro espaço que interessa

a Lacan, que é a objetalidade e, como poderemos verificar, não é mais uma

objetividade.

Na teoria dos estádios oral e anal, certos objetos se condensam na

relação libidinizada, o que Lacan traduz em termos de objeto a, como mais-

gozar. A partir daí, esses objetos permanecem escondidos como objetos

comuns, mas esses objetos são anteriores ao objeto comum, e, também,

anteriores à imagem. É uma exterioridade que o sujeito não pode apreender de

forma especular.

Assim, começamos a demonstrar as delimitações (corte cria bordas),

objeto (excluído do corpo) ânus – anal – fezes, pálpebras – escópico – olhar,

orelhas – invocante – voz – lábios – oral, seio. O corpo, considerado como uma

carne completamente “significantizada”, é um corpo morto, somente

significante. Há uma oposição entre o Outro como lugar de significantes – que,

por definição, está completo – e o $, ou seja, essa falta de gozo que faz o

Outro incompleto, inconsistente e até mesmo inexistente.

Esses objetos, ao mesmo tempo em que marcam sua presença no

campo do desejo, apontam para a fixação de um gozo que insiste; a única

tradução subjetiva desses objetos é a angústia. É aí que esses objetos insidem

de uma maneira não compartilhada, não comunicável e mais êxtimo do sujeito.

É essa a maleabilidade das zonas que contornam o corpo, como

cicatrizes indeléveis, a partir da ausência de significação no Outro.

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Diferentemente de Freud, para Lacan, essas zonas libidinais não se constituem

a partir de fases, mas pela falta que o sujeito interpreta da falta no Outro. É o

gozo do Outro que impele a pulsão a uma cadeia de significação ativa.

Nesse momento do ensino de Lacan, é da falta desse significante no

Outro que emerge o sujeito, da interpretação que o sujeito constrói do encontro

com o Outro que contorna o vazio do objeto. A consistência do objeto é o vazio,

é nada. Lacan reduz o objeto a a algo que não se substancializa, traduzido em

formas homólogas ao olhar, à voz, ao oral, ao genital e ao anal. Delimitações

de bordas que são circunscritas pela falta da falta do Outro. Ao fim, se Lacan

utiliza a referência freudiana das fases oral, anal e genital, ele acrescenta mais

dois objetos – o olhar e a voz –, fazendo referências à experiência religiosa.

Lacan propõe construir os objetos-causa como não especularizáveis –

não podemos capturá-los no campo do espelho. Eles escapam do campo do

visual. Surge, então, algo que não pode ser sintetizado como imagem – objeto-

causa da angústia, objeto a, vazio que é marcado pelo desejo do Outro que

humaniza o sujeito falante, a falta do Outro, que erotiza o vazio do objeto. Para

Lacan, esse objeto é irrepreensível seguindo-se as leis normais do campo

visual. O objeto a pode tamponar todos os orifícios, e o desejo do Outro

aparece na margem, na borda, obstruindo esse buraco, com o qual o encontro

é de estrutura, não mais mítico. Os modos de apresentação dos objetos estão

correlacionados um com os outros, existindo uma maturação do objeto a.

Figura 5 – As formas dos objetos nos diferentes estágios

Fonte: LACAN, 1964/2004, p. 320

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Quando considera o objeto oral, no Seminário Livro 10: A angústia,

Lacan concebe uma clivagem entre o mamilo, o bico do seio, e o seio como

nutridor. Existe uma questão ligada ao mamilo, que está vinculada ao desejo

erótico, e uma questão ligada ao seio nutridor, que pode ser pensada como o

ponto de angústia que se ergue sobre a satisfação de alimento, esperada do

seio. O grafo parte do objeto oral, o seio, na função de desmame. O objeto oral

é o paradigma da função de corte entre o sujeito e o outro. O seio se separa do

corpo da criança e não do corpo da mãe. Trata-se de um corte anterior à

castração edipiana. O seio ocupa um lugar de objeto do qual o sujeito deve se

soltar, objeto a ser perdido, renunciado. É o seio que cai quando o sujeito faz

soltá-lo. Pertence ao sujeito, embora esteja no corpo da mãe. Dessa maneira,

tem caráter amboceptor, estando do lado de quem suga e do lado de quem é

sugado. A realidade do sujeito passa a ser o objeto caído do Outro. O seio e as

fezes são objetos destinados a cair, têm o caráter de perda, no qual o objeto se

desubstancializa.

A passagem da pulsão oral para a anal é anterior, e traz a relação com

a demanda do Outro. O objeto fezes faz surgir a demanda do Outro. É o resto

da demanda do Outro que ele pede enquanto objeto anal – excremento

enquanto objeto de demanda do Outro, que vale por ser objeto de troca com o

Outro, em forma de pedido do Outro. Se, no nível oral, o sujeito solta ou não o

seio, no nível anal, o Outro demanda do sujeito as fezes, podendo esta ser

fonte de nojo ou ter o caráter de um presente: objeto agalmático – a

permanência do objeto como algo, coisa que circula, báscula, não mais o

sujeito que solta, mas um objeto que se solta para o desejo do Outro. Logo, é

um objeto do dom que Outro demanda, criando uma dialética cheia de regras,

que circula e bascula. O sujeito pode ou não se identificar com esse objeto,

submetido à demanda da oblatividade do Outro. Lacan privilegia a abordagem

do objeto anal na perspectiva do ideal, ou seja, da sublimação.

No alto do grafo, surge o falo, sempre parcial, pois, em sua

detumescência, pode faltar. Esse objeto está inserido no corpo e passa a ter

uma fisiologia, sendo construído a partir da natureza evanescente da ereção. É

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daí que ele tem função central: o falo acena para o que não está resolvido na

cópula sexual, sendo aproveitado quando está tumescente. É a imagem do

corte e da separação, na possibilidade da falta do instrumento, que funciona

para a efetivação do desejo, sendo mais significativo por sua queda do que por

sua presença. Ele é a entrada da negatividade do objeto de desejo. O fato de o

objeto de desejo poder faltar lança o sujeito no desejo e, nesse ponto, é a

alternância que permite o encontro sexual e a afetivação da libido. Nesse

seminário, propõe-se a função da detumescência no lugar da castração. Por

isso, de maneira geral, preocupa-se com as particularidades anatômicas dos

corpos em relação aos órgãos:

Afasta-se de toda mitologia, de toda dramaturgia do Édipo... e se os objetos emergem aqui como única, e ao mesmo tempo se multiplicam em relação às listas tradicionais, é por que estão desligados de toda retroação edípica. A separação que encontramos em alienação e separação é considerada como tal, independente de uma separação anatômica anterior à incidência do Outro. (MILLER, 2007, p. 55)

Na tumescência e detumescência do falo, existe um registro a partir da

retroação dos objetos perdidos, oral e anal. É porque há uma retroação,

primeiro no nível anal e depois no nível ideal, que o sujeito percebe que perdeu

algo dele. Nesse ponto, podemos lembrar uma passagem do texto do pequeno

Hans, em que ele diz que o pênis pode se atarraxar e desatarraxar-se,

demonstrando que há um objeto cortado, anterior ao campo do simbólico. É aí

que se pode pensar que esses objetos não podem fazer parte da partilha ou da

concorrência, pois eles não são especularizáveis. Isso quer dizer que eles são

anteriores aos objetos comuns, que podem ser compartilhados.

Na lição XIX desse mesmo seminário, pode-se perceber o que se

destaca na desedipianização da castração, produzindo um estatuto da

castração relativo ao organismo, à detumescência e à copulação. Nesse

sentido, o obstáculo conceitual da castração passa a ser uma questão sobre o

funcionamento do órgão:

Demos todo o valor ao termo princípio. Lacan encontra no funcionamento do órgão o princípio, o fundamento, a raíz, a

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causa, do que se elabora na psicanálise às coordenadas edipianas. Mas trata-se no nível do órgão e do seu funcionamento, que é o princípio, se apaga a dramatização edipiana, se leva a sério a idéia de princípio, é dizer que o princípio está no nível do órgão como tal. De que o princípio da angústia de castração não está no nível de nenhum agente de castração, de nenhum Outro que ameaça, não se inscreve no Édipo (MILLER, 2007, p. 61).

O valor do termo separação substitui a castração. Surge, então, uma

desmitologização da psicanálise, conduzindo Miller a propor as peças

destacadas do corpo. Esses objetos requerem um corte que não é simbólico.

Isso quer dizer que são anteriores aos objetos comuns, funcionando como

objetos escondidos. O fato de que sejam anteriores aos objetos comuns, aos

objetos que podemos compartilhar, implica que eles sejam anteriores ao

simbólico. Não somente esses objetos são anteriores aos objetos comuns, mas

são, também, exteriores à imagem. É uma exterioridade de antes, que o sujeito

não apreende de forma especular, em que se formam o moi e o Je. Por isso,

ele faz uma distinção do objeto no Outro como anterior ao objeto do Outro. O

que Lacan permite pensar, na utilização da separação, consiste em partir da

demanda do Outro para remeter o objeto a à dimensão de causa de desejo.

Em relação a isso, a pulsão escópica é reveladora.

A pulsão escópica alude à figura da estátua de Buda. Lacan observa

suas pálpebras, através das quais seria difícil descobrir seu sexo: seria ele

homem ou mulher (LACAN, 1962/2004). Esse olhar de Buda é a articulação do

desejo à imagem. Cria-se o desejo como ilusão, um ponto vazio, que não é

especularizável. O olhar é abordado, a partir do budismo, ligando a ilusão à

concepção de desejo como ilusão. Dizer que o desejo é uma ilusão é dizer que

não tem suporte.

Uma diferença nítida entre o olho e o olhar começa a ser delineada

pela psicanálise, o começo do desejo como ilusão é o vazio não-especular do

objeto. É o olhar tomado na função de agalma que cria o desejo, é da falta da

falta de objeto que surge o desejo. Além de sua ausência fazer sua presença, é

a presença da falta do objeto que move o sujeito. O sujeito olha para elidir o

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fato de que tem algo que não vê, sem perceber que o mundo olha para ele.

Para que o sujeito veja, é necessário que tenha algo que não vê.

Se não se sabe se Buda é homem ou mulher, é por causa do ponto de

anulação do seu olhar. As pálpebras são um espelho da ilusão: há algo de

engano e de miragem no uso da pulsão escópica. A experiência búdica tem

uma referência ao espelho sem superfície, onde nada se reflete, dando lugar

ao que se revela na imagem. No olhar situado na escultura de Bodnisattava

não existe abertura dos olhos, a pálpebra está quase fechada, deixando passar

um fio branco de olhos. As pálpebras preservam a fascinação do olhar, ao

mesmo tempo em que indica algo do sujeito. Trata-se de uma figura visível que

evita o invisível, ponto em que o desejo e angústia coincidem. O olhar do Outro

só se torna objeto de reconhecimento a partir do momento em que existe uma

subjetivação da imagem, dando vida, como um brilho no olhar, um momento

nulo, o instante zero (LACAN, 1964/2004). É por isso que podemos

compreender o fato de o vampiro não se reconhecer no espelho. Na parábola

do conde de Wladwostock, o vampiro não se reconhece no espelho

exatamente porque não existiu um Outro para criar a ilusão de seu desejo e da

imagem do seu eu (moi): “O desejo é ilusório. Por quê? Porque se dirige

sempre para o outro lugar, para um resto, para um resto constituído pela

relação do sujeito ao outro que vem se substituir aí” (LACAN, 1962/2004,

p. 276).

O desejo do Outro oculta a castração, o ponto zero, ausente de

qualquer significação, buraco esvaziado de gozo que se suporta pela

castração, em termos lacanianos. Esse objeto parcial de Lacan é o suporte do

sujeito na formação imaginária de seu desejo, a “falta do Outro como aquela

que me vê” (LACAN, 1962/2004).56

56 Lacan (1964/1990) trabalha com o conceito das artes plásticas de “anamorfose”, a partir de

um quadro de Holbein. Não vemos o quadro de uma maneira objetiva, há algo meu que atrai o sujeito que olha para a obra. Barthes (1984, p. 44) exemplifica isso em sua obra a A câmara clara: o punction no quadro é o que me atrai em uma fotografia, como se algo nos olhasse, um buraco que atrai o sujeito. O contorno da obra é uma ilusão que se ancora no vazio. A obra seria uma ilusão criada em torno do que me olha.

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Estes dois últimos objetos, o olhar e a voz, acrescentados por Lacan,

estão situados no nível do desejo. Eles estão ligados diretamente à divisão do

sujeito a partir da fração libidinal que se pode subtrair do corpo. Como foi

trabalhado neste capítulo, podemos perceber uma crítica do próprio Lacan ao

“estádio do espelho”, uma vez que o valor do olhar e da voz vieram recobertos

pela reação imaginária. Nesse ponto, o objeto não se reflete. O

reconhecimento que se estabelece a partir da imagem, agora, se dá pelo

desconhecimento suscitado pelo objeto a.

A voz do Pai

Vimos que Lacan, no Seminário Livro 10: A angústia, coloca a

disjunção do Édipo e da castração. A separação passa a ocupar o lugar da

castração e do falo, surgindo um ponto de incongruência na identificação com o

Pai. A retroação do Édipo, como formalizou Freud, a partir de Karl Abraham,

supunha que esses diferentes estágios (oral, anal e fálico) adquirissem sentido

e valor a partir do ponto edípico que a proibição do Pai confere ao sujeito.

Quando Lacan volta ao tema, ele propõe que não é o desejo e a lei que trazem

o sujeito, mas sim a separação dos órgãos. O objeto é anterior ao desejo e à

lei. Nesse sentido, o objeto está anterior ao desejo; quer dizer, anterior à

função paterna a que o desejo está vinculado. Lacan, assim, questiona o

estatuto do pai como Nome-do-Pai.

A voz rompe com o jogo sintático de uma voz passiva e ativa. Não

podemos pensar a partir da noção de mensagem e receptor. Abandonamos,

então, a hipótese de uma gramática da voz. A partir desse momento, a voz

passa a ser algo anterior à articulação da fala. Por meio desse encontro da voz

com o corpo, está a equivocidade da fala. O objeto da pulsão evocante é a voz.

Nessa versão da pulsão, há um se fazer ouvir que se dirige ao Outro. É aí que

se pode evidenciar que o desejo do homem é o desejo do desejo do Outro.

Sem sombra de dúvida, a voz é o que resta quando se é despojado das

identificações, o desejo seria, então, uma história da voz. É pelo fato de não

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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existir uma mensagem invertida, que vem do Outro, que podemos pensar em

uma história da voz. A voz marca o campo do desejo: “Os ouvidos são, no

campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar” (LACAN,

1962/2004, p. 184).

É pelo fato de o orifício não ser mais fechado que escutamos o que nos

dá prazer e aquilo que está mais além do prazer. É nesse orifício do corpo que

a voz inside, trata-se, portanto, de uma caixa de ressonância para a recepção

da força da voz. É dessa maneira que o objeto voz surge para delimitar o

silêncio que é anterior à voz. O silêncio que ninguém ouviu, mas que todos

escutaram.

É nesse sentido que devemos pensar a voz. Ela é a última instância do

Outro. O caráter da voz é etéreo. Ele é o sopro do shofar, um sinal de presença

do desejo do Outro. Ele marca a aliança entre o Deus Yahveh e o povo judeu.

É com o shofar que há um sinal do encontro com a voz do Outro. A tradição do

verbo é, agora, a transmissão de uma voz.

A partir desses demarcados até aqui, podemos começar a construir

uma nova maneira de se pensar a questão da identificação, delineada a partir

da divisão do Outro. O que Lacan se pergunta no Seminário Livro 10: A

angústia é de que lado está o objeto. Quando se debruça sobre esse tema, há

um deslocamento do Édipo para o objeto. Não se determina o infans pela

proibição, mas sim pela separação. Quando Lacan introduz o objeto voz, é à

voz de Yahveh que traz a referência da tradição judaica, na Bíblia e nos rituais,

bem como as referências talmúdicas, especialmente à cerimônia do Yom

Kippur, no qual se escuta o som do shofar. Com relação ao objeto voz, Lacan

investiga o shofar, primeiro instrumento de sopro na história da civilização

judaico-cristã, que emite um som contínuo, fora de qualquer tom. Isso seria

representado no shofar, chifre de carneiro usado nas sinagogas para integrar a

comunidade judaica. Na história do judaísmo, esse instrumento estabeleceu o

pacto entre o povo hebreu e Yahveh, e é tocado para comemorar duas

ocasiões: o aniversário do mundo e a presença de Deus.

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No Seminário, Livro 10: A angústia, Lacan comenta o texto de

Théodore Reik, Le rituel, psychanalyse des rites religieux, sobre o shofar, que é

tocado três vezes na sinagoga, depois do Rosh Hashanah (aniversário do

mundo) e no Yom Kippour (a presença de Deus), dia do grande perdão,

primeiro dia do ano do calendário judeu. O som tem a função de renovar a

aliança com Deus, emocionando a todos por representar a voz de Deus, seu

rugido, refererindo-se às tábuas da Lei, aos seus mandamentos, e inscrevem o

sujeito na cultura. Nesse ponto, o dispositivo voz é o lugar do que existe de

mais real do Outro:

onde se insere no campo do enigma do Outro e em que momento pode intervir tal tipo de objeto, a voz, que acreditamos conhecer bem, sob o pretexto de que conhecemos seus restos, na forma das vozes extraviadas da psicose, seu caráter parasitário, como imperativo interrompidos do supereu? (LACAN, 1962/2004, p. 321).

No Seminário livro 10: A angústia, o shofar é o ponto de amarração

para a elaboração do objeto voz. Trata-se de um mugido, tendo algo de

primitivo também em sua fabricação, que não é refinada. O instrumento é

quase que apenas retirado do animal, produzido com parte de seu corpo, é seu

chifre, seu osso. O som evoca o grito do Pai como marca do que Freud

chamou do recalque originário, ou recalque propriamente dito. Nesse ponto, o

shofar representa o momento solene em que Deus dita a Moisés os dez

mandamentos, surgindo, aí, a aliança entre o povo Judeu e seu Deus, gesto

que funda a Lei.

Para os judeus, é familiar o mugido do shofar, por três vezes repetido,

no encerramento da celebração de Rosh Hashanah. A Bíblia refere-se,

explicitamente, à “voz do shofar”: um som estarrecedor que, após a cerimônia

de reconhecimento, lembra aos fiéis a vigência e a aliança com Yahveh. Para

todos os efeitos, eles ouvem a voz de Deus. Uma voz isolada, ao mesmo

tempo vazia e cheia de sentido, tanto que basta para renovar o pacto, ela

possui o sentido absoluto da aliança: uma voz caída.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Podemos partir do fato de que a função da fala é o que confere um

sentido às funções do sujeito. Essa fala enlaça um ao outro do significado – ou,

antes, o “a significar”, o que resta a significar – e o significante; e esse enlace

comporta sempre um terceiro termo, que é a voz. Se dizemos que não se pode

falar sem voz, nada a dizer disso, podemos inscrever no registro da voz o que

é resíduo, resto da subtração da significação ao significante. E podemos

também, numa primeira abordagem, compreender a voz como tudo o que, do

significante, não concorre ao efeito de significação. É isso que um esquema

bem simples de Lacan comporta. A voz aparece na sua dimensão de objeto

quando é a voz do Outro. O que conta aí? O que conta é que essa voz vem do

Outro. A esse respeito, a voz é a parte da cadeia significante não passível de

ser assumida pelo sujeito como “eu”; é subjetivamente atribuída ao Outro.

Esse som traz como marca uma mediação evanescente entre a

expressão mítica e a palavra articulada em um discurso. Uma voz

transgressora que se apresenta seguida do discurso articulado da palavra do

Nome-do-Pai. Theodor Reik prolongou as teorias totêmicas de Freud, fazendo

uso do tema da psicologia da religião, ao lado de Karl Abraham. As passagens

de Reik sobre o shofar nos levam a ver que esse som do corno, que se faz

ouvir na sinagoga, quando da renovação do pacto do povo eleito com Yahveh,

é a referência do psicanalista. Esse som não é a Palavra de Deus, mas um

mugido de touro, ou de bode, feito para lembrar a morte do Pai e o pacto que

se deve seguir. A voz ressoa em um vazio que é o vazio do Outro, não

moldada, senão articulada, afônica, ressoando nos ecos do real, por onde a

verdade se transmite.

O sujeito monta um fantasma pelo qual a voz lhe retorna, passando a

manipular os objetos fantasmáticos onde a voz é o primeiro; a voz que suscita

a angústia a partir do encontro com o Outro, marcando uma anterioridade

lógica ao estádio oral. Retornando ao grafo dos cinco estágios da constituição

dos objetos, Lacan diz dos vínculos do estágio oral com as manifestações

primárias da voz. O sujeito ouve a voz de um desejo que ele não sabe. A voz é

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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a única forma do objeto a, que articula o desejo do sujeito com a vinda do

Outro.

Essa voz permite abordar o estatuto enigmático da questão do Pai.

Esse enigma apresenta a voz como aquilo que antecede o Nome-do-Pai. O Pai

não se suporta, portanto, a partir de seu nome, mas na instância pré-simbólica

da voz. Nesse ponto, teríamos o que se distingue, no seminário, como a marca

da identificação. Ela se estabelece em um esquema que Lacan propõe como

divisão – o que nos permite ler que o Outro é o Outro porque existe um resto.

Isso quer dizer que há algo que não é significante e que está separado do

corpo.

A esse respeito, a voz vem no lugar do que é do sujeito propriamente

indizível, e que Lacan chamou seu “mais de gozar”, com a castração; quer

dizer que não se escuta a voz no real, que aí somos surdos. Onde está, então,

a instância da voz? E, se é feito um pacto, é a entrada no simbólico tanto para

o judeu quanto para o Deus que firmou esse pacto. Então, é um Deus sobre o

qual a lei também incide e marca seu desejo. Esse Deus é a voz, pois só resta

a voz do shofar, um grito angustiante e angustiado, pois o shofar soa a cada

vez que o humano e a divindade selam um pacto. Destacamos que há, na voz,

qualquer coisa que escapa ao efeito instrumental. E é precisamente que o

sujeito se ligue ao Outro: o que o sujeito liga ao Outro é a voz no campo do

Outro.

Esse corno de carneiro, chamado de shofar pelos hebreus, é

mencionado por Lacan no Seminário: Livro 10: A angústia, como o objeto voz.

Diante do som profundo desse corno, pode-se perceber algo que é transmitido,

mas que não pode ser mais que um som puro, não significante. É por isso que

são os objetos tomados da demanda – o objeto oral e o objeto anal – que

vieram ao primeiro plano na análise, antes deste objeto do desejo, que é a voz.

Há voz a partir do fato de que o significante gira em torno do objeto indizível. E

a voz, como tal, emerge a cada vez que o significante se quebra, para agregar

esse objeto ao horror.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Portanto, muito logicamente, o Seminário Livro 10: A angústia

desemboca em um questionamento do pai, pois o pai, o tesouro do significante,

não pode transformar em significante todo o mundo percebido. Podemos,

assim, chamar a atenção para o caminho que está seguindo esta tese. O pai

não é mais idealizado, como trabalhamos no primeiro capítulo, tampouco um

pai que falta na linguagem, como foi trabalhado no segundo capítulo. Teríamos,

a partir desse seminário lacaniano, um pai que é pura voz que é só gozo, a

pura imensidão da voz que é só gozo. Se, no segundo capítulo, o Pai da

linguagem se apresenta como aquele que faz a união do desejo com a Lei,

neste momento, caminhamos para o pai que é gozo e desejo.

A voz está desligada do Outro. Essa voz é a única coisa que existe

quando se é despojado dos prazeres da identificação. Não é apenas uma voz,

mas é “a voz”. Nesse sentido, o desejo é uma história de voz que constitui um

comando.

A problemática da voz é ontológica. Há uma reivindicação do problema

da voz e da sua “gramática” como um problema metafísico fundamental e,

conjuntamente, como estrutura originária da negatividade. Ela é, antes, a

possibilidade da impossibilidade da existência em geral, do esvanecimento de

todo referir-se e de todo existir. É apenas no modo puramente negativo, em

que se tem a experiência da impossibilidade radical.

Segundo uma tradição que domina toda a reflexão ocidental sobre a

linguagem, dos gramáticos antigos ao fonema, na moderna fonologia, aquilo

que articula a voz humana, em linguagem, é de pura negatividade. Uma vez

que tem lugar na voz, a liguagem tem lugar no tempo. Ela é cronotética.

A voz que permite capturar o ter lugar da linguagem apresenta-se,

portanto, como o fundamento negativo sobre o qual repousa toda a onto-logia,

negatividade originária sobre a qual toda a negação se sustenta. A voz toma

seu impulso nesse apelo ao pai. Não é por acaso que a função do apelo torna-

se visível no shofar. Um som puro que surgiu ao final do “Dia da renúncia” e é

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levado ao Outro divino, como que para comemorar esse momento do Sinai, em

que o povo “viu” a voz, testemunha ocular da revelação.

Nessa voz, se pode distinguir três impulsos distintos: voz simples, que

desafoga a interioridade (tekiah), gemido entrecortado, que traduz o

rompimento (chevarim), lamentação endereçada à misericórdia divina

(terouah). São degraus que marcam o trajeto anagógico da voz a Voz: voz que

se exprime antes de marcar um efeito no Outro, inscrição da aliança marcando

uma presença corporal.

Ela é realmente a voz de Deus. Aquele que proíbe sem que saibamos

que é proibido. Tal é o paradoxo da voz que marca, ao mesmo tempo, a

insuficiência de todas as teorias da analogia e da equivocidade. Ela tem a

mesma dimensão da linguagem sem ter a sua condição. Ela espera o

acontecimento que fez dela uma linguagem. Ela deixou de ser um ruído, mas

não é ainda uma linguagem. Ela é o progresso do vocal sobre o real.

É nesse ponto que encontramos a voz como um objeto separado do

corpo. Existem objetos que são partes desprendidas do corpo, cuja estrutura é

uma borda. É pelo fato de esses objetos terem sido separados do corpo que

eles exercem a função de resto. Se Lacan partiu da angústia para construir os

objetos separados do corpo, é porque esses objetos não podem estar no

campo do significante.

Em face de um corpo especular que habita a linguagem e a

representação, ergue-se um corpo como resto. Esse resto faz uma ação de

corte, separando-se do corpo especular. Diferentemente de uma ação de

castração, agora, surge a separação de objetos perdidos. Os órgãos se

separam do corpo não mais como uma ameaça de castração ou uma ação

dialética do significante fálico. Surgem órgãos que se desprendem do corpo.

Essas separações são mutilações de partes do corpo, algo anterior à

simbolização fálica. Nesse ponto, os objetos separados do corpo podem

produzir angústia. Porque são objetos separados do corpo anterior à

significação. Aí, a lista de objetos é independente da referência da castração e

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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do desenvolvimento. Saímos do corpo especular para o campo dos objetos

soletrados do corpo. Nos termos de Lacan:

A voz onde o que diz, mas não pode responder por isso. Para que ela responda, devemos incorporar a voz como alteridade do que diz [...] lembremos aqui essa forma de identificacao cujo primeiro modelo é a voz e a respeito da qual falamos de incorporação (LACAN, 1964/2004, p. 319).

Assim, para concluir este capítulo, é importante demonstrar que

estamos saindo do universal e cristão, do definido de um Pai, para o indefinido

do particular. Isso quer dizer que o objeto é causa de desejo, e que esses

objetos são anteriores ao Outro do significante. Este não é mais o Pai amor

que trabalhamos no primeiro capítulo, a partir da comunhão dos irmãos pelo

amor a esse Pai; também não é mais o Pai da ciência forcluído pelo saber.

Agora, estamos trazendo a dimensão do pai cujo afeto é a ignorância. Nesse

pai, não há saber. Esse seria o caminho para o movimento encarnado, para a

multiplicidade do Nome-do-Pai, e para as multiplicações que esses nomes

podem oferecer.

Essa posição secundária, por si só, ressitua a construção, ou seja,

evidencia que tudo isso é uma elucubração de saber, cujo princípio deve ser

buscado na dimensão do objeto a, e não no assassinato do Pai. Apenas no

Seminário Livro 10: A angústia, podemos ver com mais clareza a angústia

como o sinal da falha do pai. Nesse sentido, a angústia assinala algo do real do

pai. A partir daí, procuramos demonstrar os desdobramentos desse real do pai

que a experiência da angústia traz à tona.

É aqui que podemos demonstrar os desdobramentos desse objeto voz,

que faz a união do gozo com o desejo do Outro. O pai não é mais o pai morto,

que faz a união do desejo com a lei, mas faz a junção do desejo com o gozo.

Ele não faz a junção dos filhos em torno de sua dádiva, como abordado na

experiência da comunhão, no primeiro capítulo. O pai é o particular que faz do

objeto o mais de gozar de cada um, trazendo um gozo particular de cada Um.

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Quando Lacan, no fim do Seminário Livro 10: A angústia, anuncia o

seminário sobre “os nomes do pai”, ele propõe um novo lugar para o pai, que

não é mais o Nome-do-Pai. Nesse sentido, podemos dar um novo valor ao

termo princípio; isso quer dizer que o princípio está no nível do órgão que

apaga toda a dramaturgia edípica. A partir daí, podemos começar a apagar o

complexo de Édipo como um conceito fundamental da psicanálise.

Buscaremos, então, no próximo capítulo, tirar as conseqüências dessa

afirmação de que o Édipo não seria mais um conceito fundamental da

psicanálise, juntamente com a tentativa de encontrar outras maneiras de se

pensar a questão do princípio, que, certamente, nos leva para a origem, pois,

nesse ponto, separam-se o Édipo e a castração, o que demonstra a

anterioridade do objeto.

Podemos, então, formular o objeto a como algo anterior à proibição do

desejo. No Seminário Livro 10: A angústia, propõe-se chegar a um estatuto do

anterior ao desejo e anterior à lei, ou seja, anterior à significação fálica. Por

isso, na última lição do ano, Lacan anuncia que sua elaboração deveria

desembocar no seminário dos “nomes do pai”.

Recapitulando, se, no segundo capítulo desta tese, pudemos

demonstrar que a crença surge para tamponar a falta no campo do significante,

levando o filho a testemunhar em Nome-do-Pai, a partir deste capítulo, com o

conceito de angústia, demonstramos que a falta falta. Como pretendemos

trabalhar no próximo capítulo, não seria o pai enquanto amor, mas o próprio

amor do pai que marca a lógica da falta da falta.

Na vertente do amor, encontra-se a dimensão imaginária desse Pai,

como pudemos discutir nos primeiros capítulos. Isso se desdobra na dimensão

intersubjetiva da transferência enquanto saber. Nesse ponto, encontramos o

amor perfeito, cuja realização se estabelece em um acordo intersubjetivo que

impõe sua harmonia.

Por outro lado, ainda no presente capítulo, consideramos também a vertente da angústia, que traz algo diferente de um acordo subjetivo impossível

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de qualquer hamonia. Nessa perspectiva, o amor e a angústia passam a ser correlatos subjetivos diferentes. O filho não pode mais testemunhar em Nome-do-Pai a partir do amor suscitado pela falta. A partir do amor a esse nome, teríamos o objeto a enquanto algo que não pode mais ser nomeado. Como vimos, dizer que o objeto a não é nomeável é apresentá-lo como algo irredutível à simbolização. Em outras palavras, o Nome-do-Pai, operador maior da simbolização, fracassa.

Como podemos verificar, a metáfora paterna vai bem com as referências cristãs, confirmando uma precisão diagnóstica de Lacan com relação a Freud, quando demonstra que tudo o que fazia a psicanálise era salvar o pai e fundar, assim, a religião do amor ao Pai.

Vamos, então, recuperar, no próximo capítulo, a articulação que faz Lacan, ao querer interpretar o desejo de Freud de salvar o pai. Nas últimas lições do Seminário Livro 10: A angústia, quando Lacan anuncia o seminário sobre “os nomes do pai”, estabelece um outro pai, irredutível ao significante. Trata-se de um pai que não se deixa enganar pelo seu nome, um pai que sabe que não existe uma simbolização total, colocando em questão o seu amor.

O Seminário Livro 10: A angústia é o divisor de águas na teoria lacaniana, é nesse texto que Lacan propõe uma investigação da angústia para além da castração. Essa concepção de angústia é a marca de Lacan na teoria psicanalítica, fazendo surgir o objeto a. Nesse ponto, Lacan faz aparecer um Outro que não pode ser mais comparável a um Deus invariável e mudo. É um Deus que não é todo, distinguindo-se desses pequenos outros, feitos de imagens, e no qual se pode crer. Fica, então, estabelecido em Lacan, o fato de encontrarmos uma seqüência, propondo ir mais além da angústia de castração, o que nos diz que ela é secundária diante da falta, se não a angústia como falta da falta. É uma tentativa de desvincular a realidade psíquica como uma realidade religiosamente cristã, amando ao Pai, desconstruindo a religião da falta para ressignificar a angústia – sua verdadeira causa. Assim, com a construção do objeto a, como trabalhamos neste capítulo, evidencia-se que o que restou foi uma voz caída do pai. Há, então, definitivamente, uma passagem para além do Édipo, isso quer dizer que saímos da primazia do Pai para a do objeto a. Pretendemos desenvolver, nos próximos capítulos, o percurso de tal abordagem.

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Quarto Capítulo

O furo no saber

Os nomes do Pai

Se um pai que não tem filho não é um pai, um filho que não tem pai

pode ele ser um filho?

James Joyce.

De uma maneira contrária, vimos, nos dois primeiros capítulos desta

tese, que, na tradição cristã, se salva o Pai por amor, a partir de seu nome.

Neste segundo momento, trazemos, juntamente com a tradição judaica, outro

lugar para o pai.

Podemos afirmar que começamos a desconstruir o pai. As

coordenadas para percorrermos essa desconstrução partem da ambivalência,

em Freud, seguida da falta, que faz a união do desejo com a Lei, a partir do

Nome-do-Pai. Essaa construções nos permitiram verificar que a Lei se articula

com o desejo, demonstrando que o filho só pode testemunhar em Nome-do-

Pai. A partir daí, passamos à discussão do afeto da angústia, que veio

associada à repetição e ao masoquismo originário, para chegarmos ao objeto

voz.

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Como sabemos, depois de Freud, Lacan mostra que a questão do

desejo do Outro se coloca no campo da angústia. É desse ponto que vamos

partir: do encontro com o desejo no Outro. Agora, podemos verificar que, nos

dois primeiros capítulos, há um Pai no qual o filho crê religiosamente. Assim, a

partir deste momento da tese, podemos ir além do Édipo, exatamente por ter

concebido o Édipo em seu lugar. Parece, assim, ficar mais fácil compreender

porque, com o título de Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, em

1962, Lacan exclui o complexo de Édipo das referências fundamentais da

psicanálise. Partiremos da virada feita por Lacan, numa direção além do Édipo,

e da pluralização dos nomes do pai.

Vimos que, no final do Seminário 10: A angústia, Lacan faz uma

passagem do pai ao objeto a. Indo ainda mais longe, leva a cabo uma

generalização da operação de castração, sob a modalidade da separação dos

objetos do corpo. No fim desse seminário, à medida que vai tematizando as

formas do objeto a – oral, anal, olhar e voz –, já começa a trabalhar o tema da

separação, apontando a passagem da castração à separação. No final do

Seminário Livro 10: A angústia, Lacan desemboca num questionamento do pai,

anunciando o tema do seminário seguinte: “Introdução aos Nomes do Pai”.

Sabemos que ele dá apenas uma única aula desse seminário. Em

outubro de 1963, a Associação Internacional de Psicanálise (IPA), reunida em

Estocolmo, decide tirar de Jacques Lacan sua função de analista didata. A

essa decisão, Lacan dará o nome de “excomunhão”, e compara esse episódio

ao que sofre o filósofo Baruch de Spinoza, por parte da comunidade judaica de

Amsterdã. Ao introduzir os Nomes do Pai, Lacan nos convida a pensar em uma

falta irredutível do significante. Essa referência é a passagem do Pai unívoco

para o de vários nomes.

Como formulado no capítulo anterior, é na angústia que se revela a

apreensão deste real, como encontro com o desejo do Outro. A concepção

lacaniana de uma dimensão além do Édipo permite-nos pensar em uma

pluralização do Nome-do-Pai, como suplência à falha estrutural do Outro. É por

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isso que, já naquela única aula do seminário sobre os nomes do pai, Lacan

comenta:

Podemos encontrar o símbolo dessa hiância nesse mesmo contexto, o da relação de El Shaddaí com Abraão. É aí que, primordialmente, nasce a lei da circuncisão, a qual gera, como sinal da aliança do povo com o desejo daquele que o elegeu, esse pequeno pedaço de carne cortada (LACAN, 2005/2005, p. 85).

É a partir daí que podemos começar a perceber que Lacan sempre

teve a idéia de que é preciso distinguir deuses, e que nem todos podem ser

uma versão do apagamento do gozo. Partindo dessa questão, que começamos

a desenvolver no final do terceiro capítulo, pretendemos, agora, recuperar a

vertente do pai como gozo. Os nomes do pai são os nomes do gozo. Para a

questão sobre a identificação, Lacan não deixa de relacionar a história do povo

judeu com o desejo de Yahveh. Buscaremos demonstrar que essa é a vertente

de gozo do pai. Nessa versão, não estamos mais na relação do desejo com a

Lei, que produz o desejo e a demanda, como foi trabalhado no segundo

capítulo, mas sim nas implicações do desejo com o gozo. Não existe mais um

Nome-do-Pai, mas os Nomes do pai. Ele é plural, não é absoluto, não é único,

é entre outros. Assim, iremos assistir a um deslocamento do amor a um único

Pai, que poderia ser representado pelo cristianismo, juntamente com as marcas

imaginárias que esse Pai carrega, para os nomes do pai que traz a via do gozo.

Com relação a essa via, nos aproximamos da tradição judaica, que marca a

presença do Deus a partir de uma voz.

A partir desse ponto, podemos fazer uma marcação entre a via do

amor e a via da angústia. A via do amor e do desejo, como pudemos descrever

nos dois primeiros capítulos, traz “o desejo como desejo do Outro”, fazendo

eco à tradição cristã de que o filho só pode testemunhar em Nome-do-Pai. Por

outro lado, a via da angústia indica o caminho do gozo que é a pura pulsão de

morte. A via da angústia é o que confere ao objeto definido enquanto disjunção

entre o gozo e o desejo. A via do amor estaria próxima do desejo, enquanto a

via da angústia faz supor o gozo. No seminário Introdução aos nomes do pai,

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Lacan recupera o ponto de vista da tradição, a respeito do sacrifício de Abraão

e ao significado do Akedah, demonstrando outra relação de um pai com o filho.

Nesse seminário, Lacan faz referência ao pai totêmico como primeiro

nome da divindade. Para o psicanalista, com o Akedah, está uma nomeação

que se sustenta pela eficácia de um dizer. Essa eficácia se efetua pela

intervenção de um anjo. Essa ação produz algo que resta, o pedaço do

carneiro que subsiste a seu chifre, que será utilizado como instrumento: o

shofar. Esse instrumento milenar transmite o gozo do pai para o filho. É aí que

terminamos o capítulo anterior e damos continuidade ao presente capítulo.

Pretendemos verificar quais são os desdobramentos dessa transmissão do Pai

para o filho, no que concerne ao gozo.

Tendo essa referência, queremos perceber que Lacan procura uma

outra face de Deus, que está do lado do gozo. Deus inscreve-se no estatuto do

gozo. O estatuto mesmo do objeto é a hiância que marca o gozo. O gozo de

Deus vem demonstrar que o homem sofre em sua carne, produzindo objetos

separados do corpo, objetos que foram cindidos do corpo. Isso ocorre pelo fato

de o homem ser, fundamentalmente, dividido, irremediavelmente separado do

Outro.

Se sabemos, a partir do segundo capítulo, que a falta do Outro é

condição necessária de acesso ao desejo, no decorrer de seu ensino, Lacan

faz uma passagem do Outro ao Um. Valeria, então, dizer que, se uma primeira

clínica era centrada no desejo, nesse segundo momento, certamente

estaríamos centrados no gozo particular de cada um. O Um é um dos nomes

do pai.

Lacan caminha para além do Outro, rumo a um significante novo, o Um

que não é universalizável, mas singular. Ao erodir o Nome-do-Pai, dá-se

estatuto de real ao gozo, como aquilo que ex-siste ao sentido e, portanto,

prescinde do Outro. Iremos nos deter na lição única do seminário Introdução

aos nomes do pai, que traz questões relevantes sobre outros lugares do pai.

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Aplica-se, então, uma ética na qual os pais da Igreja não precisam se mostrar

suficientes (LACAN, 1962/2005, p. 64).

Vemos, portanto, que é necessário colocar no nível do pai um segundo termo depois do totem, que é essa função que creio ter definido em um de meus seminários, mais longe do que jamais se fizera até o presente, isto é, a função do nome próprio (LACAN, 1962/2005, p. 73).

Essa referência de Lacan apresenta uma genealogia distinta do que

trabalhamos no segundo capítulo sobre o Pai. Com relação aos lugares do pai,

Lacan propõe os nomes do Deus judaico. Lacan tece sua elaboração em torno

do nome próprio de Deus, fazendo a questão girar em volta do pai. Marca,

nesse sentido, a prudência dos gregos, que traduziram El Shaddaí por Theos,

“nome que dão a tudo não traduzido por ‘Senhor’, Kirios, que é reservado ao

Shem, isto é, ao nome que não pronuncio” (LACAN, 1962/2005, p. 78).

A partir de uma orientação judaica, Lacan purifica, pluraliza o nome de

Deus para os nomes de Deus: Adonai, El Shaddai, Elohim, El – esse Deus, no

qual não se crê nem se supõe, senão, que é o Deus de que se tem certeza.

Lacan, nessa única aula, formula que o real do Deus de Abraão, Isaac e Jacob

se evidencia por uma sinalização da angústia. Toda a emergência desse Deus

é uma emergência angustiante, que é uma voz sem corpo. A genealogia de

Abraão não terá mais nada de transcendental, é a descendência ligada a um

ato de fala enquanto transmissão de uma benção. Isso fará com que o pai

transmita para o filho a falibilidade do dizer.

Dieu d’Abraham, Dieu d’Isaac, Dieu de Jacob, non des philosophes et des savants, écrit Pascal en tête du memorial. Du premier on peut dire ce que je vous ai peu à peu habitués à entedre, à savoir q’un Dieu, ça se rencontre dans le reel. Comme tout réel est inaccessible, ça se signale parce que que ne il ait trompe pas, l’angoisse (LACAN 1964/ 2005, p. 92).

Esses são outros deuses, que se silenciam diante do saber. Nesse

sentido, pretendemos fazer, aqui, uma genealogia do pai judaico.

Diferentemente do Deus dos filósofos, Lacan procura, na referência judaica,

como iremos mostrar, uma divisão entre o saber e a verdade. A voz tautológica

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da tradição judaica produz um furo no saber. A parábola de Abraão é uma

emergência angustiante. Nesse relato bíblico, Deus pede a Abraão que mate

seu filho Isaac. Quando Abraão resolve fazê-lo, Deus pede para Abraão para

apenas sacrificar o seu carneiro. O ritual religioso demonstra que a separação

do objeto para fora do corpo pode chegar a uma mutilação. É aí que podemos

localizar, na temática judaica, a passagem do totem para a castração de um

pai.

Quando Abraão está prestes a matar Isaac, aparece um anjo, enviado

por Deus, anunciando que este lhe pede para não consumar o sacrifício. Lacan

retoma essa passagem ressaltando a necessidade desse ato. Nesse sentido,

podemos nos afastar de um projeto universal de Lacan, para começar a pensar

a particularidade da ação de cada um. Os nomes da castração do pai remetem

a uma particularidade desse pai. Isso faz parte de um projeto anti-hegeliano de

Lacan. A partir de Kierkegaard, há uma interrogação permanente sobre a

existência de um Pai universal.

Toda a dialética hegeliana é feita para preencher esta falha e mostrar, numa prestigiosa transmutação, como o universal pode chegar a se particularizar pela via da escansão da Aufhebung (LACAN 2005/2005, p. 63).

A angústia é a via de acesso com respeito à Aufhebung. O que fica

nesse relato é a transmissão de um rito judaico da circuncisão. Desse modo,

assinala-se que esse ritual passa de um Deus morto para um Deus do desejo.

Isso fica claro quando procuramos, na referência a Abraão, o sacrifício de

Isaac. Na cena bíblica, celebra-se a circuncisão de um objeto cedido, no campo

do Outro, para captar o que não é significante e, sim, um resto.

Ici se marque le tranchant du couteau entre la jouissance de Dieu et ce qui,dans cette tradition, se presentifie comme son désir. Ce dont il s’agit de provoquer la chute, c’est l’origine biologique. C’est là la clé du mystère, où se lit l’aversion de tradition judaique à l’égard de ce qui existe partout ailleurs. L’ hébraique hait la pratique des rites métaphysico-sexuels qui, dans la fête, unissent la communauté à la jouissance de Dieu. Il met tout au contraitre en valeur la béance séparant le désir de la jouissance (LACAN, 1964/2004, p. 100).

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O Deus de Abraão, Isaac e Jacob, cuja emergência é assinalada pela

angústia, é um Deus que demanda um sacrifício, um corte de gozo a partir de

seu desejo. E esse corte, essa demanda de gozo, é a circuncisão produzida

por um desejo de Deus. Esse Deus dos judeus é um Deus que pede e, na

medida em que pede, é um Deus que goza. O Deus dos judeus é o seu próprio

nome que diz: “Eu sou aquele que sou” (Ex 3,14).

Na angústia, o objeto pequeno a cai. Essa queda é primitiva. A diversidade das formas assumidas por esse objeto da queda encontra-se em certa relação com o modo sob o qual o desejo do Outro é apreendido pelo sujeito. É o que explica a função do objeto oral. (LACAN, 1964/2005, p. 66).

Esse Deus, como vamos recuperar adiante, é a operação da castração.

O Deus está encarnando a função de um pai real. Esse Deus, que demanda a

circuncisão, é designado como aquele que estabelece um corte e, ao mesmo

tempo, transmite um gozo.

Não sem motivo, Lacan faz alusão à tradição judaica. A partir de um

resgate genealógico dessa tradição, podemos perceber que YHVH se

pronuncia como äaä, um dos nomes próprios do Deus Pentateuco. Na tradição

judaica, é um tabu pronunciá-lo, o que está prescrito na narrativa do Êxodo (Ex

20,7). Quando procuramos a Bíblia, podemos perceber substituições: Adonai

“meu senhor” ou “o nome”. É a partir dessas dificuldades que a ortografia

desse nome é conhecida como tetragrámaton.

Com relação a essa característica da tradição judaica, a história oral

desse nome caiu em desuso. Desse modo, não se conhece mais a pronúncia,

mas, com relação à grafia do nome, empregam-se apenas consoantes,

usualmente transliteradas do hebraico como YHVH. Por outro lado, devido às

transformações da grafia, na atualidade, houve uma mudança radical,

passando a ser escrita sem vogal alguma.

Isso também é perceptível quando buscamos outra raiz etimológica.

Com relação à tradução latina do nome, também há vários desacordos.

Quando Moisés subiu o Monte Sinai para chegar à sarça ardente, e foi

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apresentado aos dez mandamentos, perguntou: quem fala? E o Deus de Isaac

respondeu: “Eu sou aquele que sou. Vai dizer ao seu povo que eu sou” (Ex

3,14).

Sabemos que Deus disse a Moisés que YHVH era o Deus dos seus

pais. O Deus de Abraão, Deus de Jacó, enviou essa voz a Moisés – este é o

nome para sempre, e é assim chamarão este Deus, de gerações em gerações.

No que se refere à angústia, teríamos um lugar conceitual para esse

Deus, a partir de Kierkegaard, a quem Lacan faz referência, demonstrando que

Deus pôs Abraão à prova, dizendo-lhe para tomar Isaac, seu único filho, a

quem amava, e levá-lo à Terra de Moriah para oferecê-lo em sacrifício.

Kierkegaard examina esse episódio da Bíblia num livro chamado

Temor e tremor. O livro se inicia com o capítulo “Prelúdio e variações”

(KIERKEGAARD, 2004, p. 21) e, nesse capítulo, há quatro variações do

sacrifício de Isaac. Lacan enuncia que: “Deus ordena: sacrifica teu filho, mate-

o” (LACAN, 1964/2005, p. 80), e, nas quatro variações, segundo o filósofo

dinamarquês, Abraão o executa. Trata-se do pai que deseja, e não do Pai todo

amor. O interessante é que o filósofo propõe variações para esse grito de

Yahveh. Ele examina a questão do desejo do Outro sob a modalidade do

desejo de Deus. Esse Deus, que exige que Abraão sacrifique seu filho para

provar a sua fé, tem vários nomes.

Esse é o percurso que faz Kierkegaard se debruçar sobre questões de

natureza clínica, como é o caso da angústia e do desespero. Kierkegaard

gostava de personificar os problemas, hipotetisando-os em figuras conhecidas.

O interessante são os verdadeiros “casos clínicos” de Kierkegaard – Jó, Abraão

–, que mostram a dimensão da escolha. Lacan faz das passagens bíblicas

estudadas por Kierkegaard aplicações clínicas da relação do sujeito com o

objeto a.57

57 O dilema de Jó, para Kierkegaard, se reduz à sua escolha com relação à fé. Personagem

rico, satisfeito, acima de tudo, um justo, Jó é posto à prova por Deus. Jó possui muito, tem sete filhos e três filhas, rebanhos imensos e, brutalmente, perde tudo. Seu próprio corpo fica recoberto de feridas imundas. Do fundo de seu sofrimento, Jó diz: “não fui sempre

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Esse objeto a é resto real de gozo, na medida em que ele não pode ser

capturado pelo significante, o gozo irredutível ao princípio do prazer. Para

Kierkegaard, o desespero de Jó é o real da angústia, mais precisamente, do

objeto a. O desespero de Jó é encontrar um Deus fora da imagem, um Deus

enquanto furo.

Em várias ocasiões, no seminário sobre os Nomes-do-Pai, Lacan

(1963/2005) comenta a passagem bíblica que diz que Moisés, no monte Horeb,

no monte da sarça ardente, estava a cuidar do rebanho de seu sogro quando

um anjo apareceu no meio de uma sarça em fogo. Nessa mesma ocasião,

quando Deus chama Moisés e diz a ele para retornar ao Egito, libertar o povo

hebreu e servir a ele, Lacan (1963/2005, p. 77) comenta que Moisés disse a

Deus (o Elohim) que iria ao encontro dos filhos de Israel. E, se perguntassem

qual era o nome de Deus, iria responder: “Eu sou aquele que sou (èhiè ashèr

èhiè)”. As discussões sobre essa passagem giram em torno do nome sagrado

de Deus. As interpretações teológicas apontam para dois elementos: èhiè

ashèr èhiè e YHVH.

Nesse ponto, para Lacan, a mitologia do Nome-do-Pai vem a ser o

suporte de todo pacto social, como demonstram os irmãos em Cristo, diante do

Nome-do-Pai. Nos dois primeiros capítulos, o Nome-do-Pai era, portanto, o

enodamento da Lei e do desejo. Em contrapartida, se o Nome-do-Pai cumpre a

função de união do desejo com a Lei, os Nomes do Pai estão na hiância do

desejo e do gozo com a particularidade de cada um como nomeação. Com

relação a essa tradição, Erik Porge sugere que é uma aproximação entre o

nome de Deus e o Real que faz com que Lacan situe o Nome-do-Pai pela via

do gozo:

moderado e paciente? Não me mantive sempre em silêncio? Não me mantive sempre em repouso? E, no entanto, a cólera de Deus recaiu sobre mim” (Jó, III,26). Jó teria feito a escolha correta? Os amigos que o visitam e que tentam explicar o motivo de sua queda, estão, provavelmente, convencidos de que não. Mas eles não foram como Jó, não se calaram sete dias e sete noites. O que aconteceu na alma de Jó durante esse período? Não se ponderou sobre a escolha que fez, essa escolha manifestada no instante. Esse instante, para Kierkegaard, “é o ponto a partir do qual algo se fixa para sempre, ele é da eternidade, o ponto de encontro entre o Deus e o humano”. Cf. LE BLANC, Charles. Figuras do saber – Kierkegaard. São Paulo: Editora Estação Liberdade. 2003, p. 75.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Tomando o “eu sou” como uma recusa de resposta de Deus, Lacan considera que esta frase é constitutiva de um furo no nível do Nome-do-Pai, que este furo é o furo do simbólico (A barrado) e que o pai como nome é cuspido (recraché) por este furo. Os dois sentidos do Nome-do-Pai correspondem aos dois sentidos do turbilhão: os nomes que nomeiam as coisas as submergem no turbilhão do simbólico d’onde sobressai em certo momento o pai como nome (PORGE, 2000, p. 145).

É por ter extraído amplamente as conseqüências estruturais da

representação desse pai, através da transmissão de Moisés, que a genealogia

judaica constata que esse povo pôde construir, para si, mais do que qualquer

outro povo jamais o fizera, um Deus como garantia da ordem libidinal.

Assim, recapitulando essa tradição, podemos constatar que Moisés

sobe ao monte Sinai e desaparece de seu povo. Encontra-se, então com

Yahveh, um nome impronunciável, que só pode ser escrito com o tetragrama.

Em seguida, Moisés desce do Sinai, descobre o bezerro de Ouro, reduz o

mesmo a pó, e quebra as Tábuas da Lei, mostrando que a escrita divina é

ilegível. Surge, então, como o próprio legislador. O Pai de Aton está recalcado,

e sua verdade retorna para a voz dos profetas ou através da imagem a voz de

Yahveh.

Moisés não apenas forneceu aos judeus uma nova religião, pode-se afirmar com igual certeza que ele introduziu para eles o costume da circuncisão. Este fato é de importância decisiva para nosso problema e jamais sequer foi levado em consideração. É verdade que o relato bíblico o contradiz mais de uma vez. Por um lado, faz a circuncisão remontar a era patriarcal, como sinal de um pacto entre Deus e Abraão (LACAN, 1964, p. 23).

É na passagem da revelação do nome de Deus a Moisés, no Êxodo,

que Lacan irá apoiar sua crítica na interpretação ontológica do lugar de Deus.

Um Deus que faz do homem sua imagem e semelhança. Sabemos que a

tradição cristã aposta nas imagens. De uma maneira contrária, a tradição

judaica faz uma genealogia da voz.

A voz que escuta Moisés faz Lacan encontrar uma garantia para

estabelecer o que poderia ser os princípios de sua “diologia”. Entendemos essa

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crítica à ontologia como uma leitura de um Deus que não seja a imagem e

semelhança do homem. Sabemos que a tradição cristã se sustenta no poder

da imagem, e, é por isso que Lacan chamou a atenção para os nomes do Deus

da tradição mosaica.

Para Lacan, se uma experiência com Deus é possível, essa

experiência dar-se-ia em torno de uma hiância. São várias as referências de

Lacan a esse episódio do Antigo Testamento, mencionado a partir de

perspectivas distintas. Em todas elas, no entanto, a tônica dos comentários é a

de confrontá-la à interpretação teológica, como se essa passagem da Bíblia

fizesse saltar a verdade recalcada pela teologia. A “diologia” lacaniana anuncia,

assim, que o Deus de Abraão, Isaac e Jacob é a confluência da ordem do real,

que se apresenta com o nome de “Eu sou aquele que sou”.

Mas qual a conseqüência da conjunção entre esse Deus-Pai e o modo

como apresenta o seu nome, “Eu sou aquele que sou”? Conceber o lugar do

Deus como impossibilidade, isto é, como apresentando um furo na trama de

significações, gera conseqüências bastante distintas daquelas que se originam

da presença, nesse lugar, de um ente supremo ou daquele ao qual se deve

testemunhar em seu nome. A própria noção de paternidade passa a ser

avaliada a partir do que pode ser pensado como uma fuga na ordem mesma do

sentido. As coordenadas para se pensar a relação do filho com o pai são,

agora, ancoradas na fala tautológica do pai judaico.

Nessa perspectiva, Lacan observa que a angústia experimentada por

Kierkegaard, diante do seu encontro com Deus, introduz um elemento

impossível de ser desprezado em qualquer tentativa de apreensão do lugar

ocupado por Deus, na experiência de uma religiosidade que escapa a toda

suposição de saber.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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A perspectiva de Lacan é encontrar, em Kierkegaard,58 um Deus que

escape aos adjetivos de belo, bom, justo e verdadeiro. Diferentemente de um

Deus instituído na posição de suposição de saber, desdobrando-se na figura

paterna, Kierkegaard é uma experiência que traz a voz tautológica do pai

traduzida pelo afeto da angústia. Um furo na organização lógica da rede

significante. Em última instância, um Deus não especularizável pelo ego, que

não preenche nenhuma forma de ideal ou de culpa superegóica vinda dos

afetos de amor e ódio. Lacan recorre, então, à angústia para articular sua

“diologia”. Se as construções sobre esse afeto nos conduzem para o pai

judaico, é importante lembrar que Freud já havia percebido essa relação ao

trabalhar os aspectos da tradição do judaísmo, em 1909.

Nesse sentido, é importante trazer as construções freudianas para o

judaísmo. Sabemos que a relação de Freud com a figura de Moisés não tem

início com o texto Moisés e o monoteísmo. Freud já havia visto o Moisés de

Michelangelo, em 1909, e, somente algum tempo depois, em 1938, escreve

Moisés e o monoteísmo, um texto sobre as origens do judaísmo e as

características do povo eleito.

As hipóteses de Freud ressoaram sobre o mito da horda primitiva do

Totem e tabu. Essa referência faz eco aos tempos egípcios, quando existia um

senhor todo-poderoso, morto pelos seus filhos. Para Freud, a força desse ato

se desvanece na memória consciente dos filhos desse Homem. Nesse

momento, a partir da referência de Lacan ao Moisés de Freud, é importante

lembrar as construções do psicanalista que trazem a idéia de dois Moisés.

58 Em sua elucidação do conceito de “angústia”, Kierkegaard parte do abismo irreconciliável

entre o finito e o infinito, abismo sentido pela existência humana como uma angústia radical, como um desamparo em que a subjetividade limitada do homem não está suspensa no nada de seu angustiar-se, graças ao qual pode ela ser inteiramente concreta, fugir do engano da razão unificadora e identificadora, e submergir no turbilhão do existir. Considera que a investigação da angústia tenha de sair do quadro do psicológico para entrar no existencial. A angústia é, por certo, um modo de afundar-se num nada, mas, ao mesmo tempo, a maneira de salvar-se desse mesmo nada que ameaça aniquilar o homem angustiado, isto é, uma maneira de salvá-lo do finito e de todos os seus enganos (Cf. MORA, José Ferrater. Diccionário de filosofia. Nueva edición actualizada por la Cátedra Ferrater Mora bajo la dirección de Josep-Maria Terricabras. Barcelona: Editorial Ariel, 1994, p. 138).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Assim, recuperando as construções de Freud, discutiremos como Freud

percebe a relação entre a tradição mosaica e a figura de Moisés.

Os dois Moisés de Freud

Em Moisés e o monoteísmo, Freud busca demonstrar a relação entre o

assassinato do Moisés monoteísta, pelo seu povo, e a veiculação da sua

mensagem, ou seja, da mensagem de um Deus que transmite algo do

assassinato do Pai primevo.

No entanto, foi Moisés quem trouxe a idéia de um Deus único,

revivendo a marca do momento inicial da cultura, da religião e da moralidade.

Para Freud, autor de Totem e tabu, os filhos reviveram o parricídio. Nesse

caso, Moisés teria sido a vítima do crime. A posição de Moisés era a de

apresentar uma Lei imposta por Deus-Pai. Assim, Moisés estabeleceu um

contato com Deus-Pai, sem ver a sua face ou pronunciar seu nome: “Eu sou

aquele que sou. Vai dizer ao seu povo que eu sou” (Ex 3,14).

Para Freud, essa transmissão traz uma marca na tradição judaica.

Para ele, essa seria uma função reguladora de um Deus único, confundindo-se,

na cultura, com o “avanço em espiritualidade” (Geistigkeit), que Freud atribui à

passagem, da prevalência da maternidade para a primazia da paternidade.

Para Freud, essa modificação representou um verdadeiro passo na apreensão

da realidade enquanto tal, uma vez que essa apreensão está apoiada,

exclusivamente, sobre conjecturas, suposições, hipóteses – como a própria

paternidade –, e não sobre as evidências dos sentidos, encarnadas pela

maternidade.

Quando Moisés levou ao povo a idéia de um deus único, ela não era em nada nova, mas significava a reanimação de uma vivência das épocas primordiais da família humana, desaparecida desde muito tempo da memória consciente dos homens. Mas havia sido tão importante, havia engendrado ou encaminhado alterações tão profundas na vida dos homens, que é impossível não crer que deixara como seqüela na alma

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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humana traços permanentes, comparados a uma tradição (FREUD, 1939/2003, p. 125).

A partir desse ponto, com Freud, podemos verificar que Moisés teria

sua origem egípcia, para, em seguida, ser morto pelo povo de Israel. Essa

hipótese é aventada por Sellin, porque a leitura de Freud da passagem do

antigo testamento obriga o fundador da psicanálise a repetir a cena do Pai

totêmico que goza (FREUD, 1913/2003). Por certo, para Freud, Moisés foi a

vítima do crime, assumindo o lugar de mensageiro do Deus dos judeus.

Todavia, houve uma recompensa histórica. O fundador do monoteísmo acabou,

segundo Freud, ressuscitado na crença de seu povo.

A partir daí, Freud se pergunta como a pré-história da constituição da

moralidade, da religião e da cultura sobrevivem por gerações e gerações? Para

responder tal questão, o psicanalista recorre à idéia de tradição e de

transmissão. Então, a partir da problemática trazida por Freud, encontramos,

em Moisés e o monoteísmo, a distinção entre duas tradições.

A primeira seria uma tradição comunicada transmitida de Pai para filho,

por meio da palavra. Essa tradição marcaria os modos de comportamento da

comunidade. A outra, Freud define como uma tradição “pré-arcaica”, e diz

respeito às marcas pré-históricas. Para Freud, o povo eleito continua a sofrer

as marcas dos traços arcaicos. A tradição indelével dessas marcas traz algo

excessivo e inapreensível:

A tradição concebida por Freud, portanto, não se firma na continuidade de um conteúdo, passado de uma geração a outra, desde tempos imemoriais. Não se trata de uma tradição comunicada de pais a filhos, repetida ao longo da história, que perduraria apesar de suas desfigurações. Trata-se, antes, de uma tradição calcada nesses fragmentos – nucleares –, que sustentam, por seu caráter de verdade histórico-vivencial, a sua transmissão através do tempo. Uma tradição herdada fundada em marcas, muitas vezes obscurecidas e apagadas, que produzem efeitos e exercem sua autoridade e seu poder de propagação, justamente nesse lugar de “sombras” em que estão, expulsas das operações conscientes. Articulam-se nos intervalos e nas lacunas do acontecer histórico e de lá saem à luz portando a certeza de sua força constituinte e matriz dessa tradição (LO BIANCO e ARAÚJO, 2008, p. 366).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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O livro de Freud, publicado pela primeira vez em Amsterdã, em 1939,

sob o título Der Mann Monotheitiche Religion, foi marcante para a comunidade

judaica. Fazia muito tempo que Freud estava obcecado pela figura do profeta,

diante da escalada do anti-semitismo em sua época. Essa pergunta sobre a

tradição é a procura do vienense em saber por que um judeu se torna judeu.

Freud decide escrever um romance histórico para demonstrar que o que

fortalece sua religião não é uma verdade material, mas, sobretudo, sua

verdade histórica.

A hipótese freudiana de que Moisés era egípcio, e não judeu, introduz

uma alteridade para a tradição judaica. Para Freud, em Moisés e o

monoteísmo, existem dois tipos de verdades: uma material e outra histórica. A

a partir desse ponto, interessa-se por tratar de definir em que consiste cada

uma dessas verdades, pois, lendo o texto Moisés e o monoteísmo, percebemos

que, para o psicanalista, há uma distinção entre elas.

No exato momento em que “desjudaizou” Moisés, Freud pergunta: o

que é a judeidade na sua essência? Para Freud, haveria uma herança

filogenética que faz com que um judeu se mantenha judeu. Um lugar que está

fora de uma tradição judaica. Apoiando-se na tese do neo-lamarckismo, Freud

propõe a existência de algo que é transmitido de gerações a gerações.

Foi em Roma que Freud observou, pela primeira vez, a história de

Moisés, ao visitar a Igreja de San Pietro, em 1909, observando a escultura feita

por Michelangelo. Agora, em 1939, Freud desloca Moisés de seu lugar. Ao

desjudaizar Moisés, mostrou como o criador ou fundador é sempre exilado. É

sob essa condição que consegue inverter a tradição, suplementar a religião do

Pai, criando um lugar êxtimo para esse Pai.

Desse modo, em Moisés e o monoteísmo, podemos encontrar um

questionamento de Freud sobre o lugar do Pai. Freud tem uma obsessão que

concerne ao tema da crença, trazendo uma outra abordagem sobre a verdade.

Ele não mais aborda a religião e suas implicações como correlatas ao

complexo de Édipo, contrapondo a tradição e a transmissão presente na

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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religião judaica. Para isso, Freud irá pensar a questão da mensagem

monoteísta no judaísmo, indagando como se funda uma tradição e como se

pode transmiti-la? O que importa à tradição monoteísta, segundo Freud, deve-

se à eficácia da mensagem monoteísta, a partir da duplicidade da figura de

Moisés: o Moisés egípcio e o Moisés midianita.

Freud divide Moisés. Essa divisão do Pai dos judeus traz duas

vertentes. Por um lado, teríamos, Moisés Egípcio, o grande nome que

representa a religião de Akhenaton. Isso consiste em uma concepção unitária

do mundo que comporta a idéia de uma racionalidade real e que crê em um

Deus único. O Moisés Egípcio escolhe um grupo de homens, os hebreus do

Egito, para fundar a comunidade do povo escolhido, que se reúne, constitui-se

e se estabelece em torno da mensagem mosaica.

A verdade material estaria próxima de um acordo que existe no mundo

exterior. Ela é sinônimo do trabalho científico. Esse tipo de verdade está

próxima da objetividade. Outra noção de verdade seria a histórico-vivencial. A

que isso se aplica? Para Freud, a crença em um só Deus corresponde às

vivências primordiais da família humana; em termos freudianos, existiu uma

pessoa extraordinária, durante longo tempo esquecida, mas mantida viva

através de experiências duradouras, comparáveis a uma tradição. Freud

conclui, então, que um único grande Deus é o retorno desfigurado de uma

tradição que é plenamente justificada.

Percebe-se que, para o psicanalista, a verdade histórico-vivencial tem

sua raiz em um acontecimento que deve ser necessariamente vivido tanto pela

humanidade como pelo sujeito. Isso quer dizer que só conhecemos essa

verdade na efetiva existência histórica da humanidade ou na história do sujeito.

Para Freud, no entanto, essa verdade é condenada a ser esquecida. Nessa

concepção de verdade, o que se rompe é essa inadequação entre o

pensamento e a verdade. Na realidade, o que existe é uma lembrança, assim

como a existência de um grande homem que pode ser reconhecido sob a

forma de um Deus único.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

206

Em contrapartida, o Moisés midianita é aquele a quem Deus se dirige

na sarça ardente, no monte Sinai, para dizer ao povo eleito: “eu sou aquele que

sou”. A resposta de Deus a Moisés é um exemplo daquela que o sujeito recebe

do pai. É uma resposta de negativa, e, também, uma negativa de resposta –

nega-se que a resposta possa ser de uma pessoa. Na seqüência do diálogo

entre Moisés e a voz que sai da sarça ardente, chegamos a esse momento em

que Moisés pede a Deus que revele o seu nome, recebendo como resposta

uma tautologia: “Eu sou aquele que sou”. Esse Deus é a voz, pois só resta a

voz do shofar, um grito angustiante e angustiado. O shofar soa a cada vez que

o humano e a divindade selam um pacto.

Em meio aos comentários a respeito de Moisés e o monoteísmo, Lacan

retorna ao exame dessa passagem do Êxodo. Apoiando-se sobre a distinção

freudiana de dois Moisés, na história do povo judeu, Lacan lamenta o fato de

Freud ter evitado comentar, em seu estudo, o encontro desse segundo Moisés,

o “inspirado”, com a voz que emerge da sarça ardente, isto é, o encontro de

Moisés com um Deus que se apresenta como escondido. Em seu livro sobre a

ética na psicanálise, Lacan quer apontar para o fato de que a sarça ardente

que circunscreve a voz de Deus vem indicar a sua inacessibilidade, ao mesmo

tempo em que aponta para a procedência das leis:

Esse Deus escondido é um deus ciumento. Parece muito difícil dissociá-lo daquele que, na mesma roda de fogo que o torna inacessível, faz, diz-nos a tradição bíblica, com que os famosos dez mandamentos sejam ouvidos pelo povo reunido em sua volta sem poder transpor um certo limite (LACAN, 1960/88, p. 213).

Assim, as sinalizações freudianas sobre o pai dos judeus são

recuperadas, por Lacan, com uma intensidade tal que a fala de Yahveh irá

percorrer toda a lição sobre os Nomes do pai. Ele mesmo é furado pelo real do

pai. Sabemos que é porque o nome de Deus está próximo desse real que

Lacan comentou os nomes de Deus (Adonai, El Shaddai, Elohim, El). Em seu

único seminário sobre os nomes do pai, Lacan discorre, em diversas ocasiões,

sobre a aventura de Moisés no monte Horeb – também conhecido como o

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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monte da sarça ardente. Ali, Deus o chama do meio da sarça, para confiar-lhe

a missão de retornar ao Egito a fim de libertar os hebreus e servir a Deus,

seguindo-se a passagem em que Moisés indaga sobre o seu nome.

É nisso que se concentram todas as discussões sobre o nome sagrado

de Deus, que se busca interpretar em razão dos dois elementos que

possuímos: de um lado, o ehie asher ehie, e, de outro o YHVH, os quais

tendemos a aproximar um do outro. YHVH é, hoje, impronunciável, porque sua

pronúncia se perdeu. Na leitura pública, o nome de Deus foi substituído por

Adonai (plural de Adon, Mestre, Senhor), um dos outros nomes pronunciáveis

de Deus, que, como sabemos, não tem o caráter sagrado do tetragrama. Essa

inversão de sentido é suportada pelo furo do nó borromeano, como iremos

desenvolver; um furo que não se pode sequer imaginar, e que remete ao “eu

sou aquele que sou”: “A nomeação é a única coisa de que estamos seguros de

que faça furo” (LACAN, RSI, 1975, inédito, sessão de 15 de abril de 1975).

Aí há um furo. Εsse furo é o real do pai simbólico. Nenhum pai pode

dizer “eu sou”, a não ser que seja Deus respondendo a Moisés: “sou o que

sou”. Nenhum nome é próprio ao Pai, e é por isso que existe uma pluralidade

deles. Adonai (ou El) nomeia o Nome sagrado – YHVH – de Deus. A

impronunciabilidade de seu Nome não é tributária dessa triplicidade. Uma

grafia fixa-se e torna-se um furo, uma recusa de resposta, no Nome de Deus.

Na origem, YHVH podia ser pronunciado, mas somente uma vez por ano, pelo

Grande Sacerdote, no Santuário de Jerusalém, no dia do Yom Kippour. Depois

da destruição do templo, e de sua substituição pelo estudo, o Talmud, a

verdadeira pronúncia se perdeu. Ele permanece portador do crédito da

identidade de Deus. A origem de YHVH guarda seu mistério, e é objeto de

inúmeros comentários. Mesmo que cientificamente discutível e teologicamente

correto e habitual considerar um paralelismo entre os versos 14 e 15 do

capítulo 3 do Êxodo, assim como os versos 6, 3, em decorrência disso, YHVH

seria a terceira pessoa do verbo hyh, hayah, ser, seja: “ele é”, retomando o “eu

sou” de ehie em ehie asher ehie.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

208

Nesse sentido, com relação à origem etimológica do nome, podemos

traduzir essa frase: eu sou aquele que se chama – ou que é – “eu sou”. Para

Deus, teríamos também: “eu sou”, ou então, na terceira pessoa: “ele é”, forma

mais próxima da palavra YHVH, sendo esta a expressão que se fixa como o

nome do Deus dos hebreus. Na medida em que, segundo uma crença

consagrada, conhecer o nome de alguém é conhecer seu ser, a significação de

YHVH adquire enorme importância como nomeação.

Conhecer essa significação é aceder a um Deus. A tradução da frase

ehie asher ehie difere da conexão com o tetragrama. Para Michaeli, as

múltiplas traduções possíveis dessa frase convergem para duas principais: “Eu

sou aquele que sou” ou “eu sou o que sou”.

A tradução judaica traduz o ehie para um futuro: “serei o que serei”, e

“eu serei me enviou a vocês”. Segundo André Chouraqui, deve-se

compreender essa frase fora de nossa escala cronológica, ao mesmo tempo

como um passado, um presente e um futuro, na intemporalidade de suas

significações. Para o autor, o nome YHVH revela o mistério do ser de Deus,

convocando a uma união mística. No texto bíblico, a tradução grega dos

Setenta (ego eimi o on, "eu sou o sendo"), e a latina da Vulgata (ego sum qui

sum) acentuaram fortemente a problemática do ser, a ponto de conduzir a uma

assimilação de Deus ao Ser.

Mas nenhum nome pode designar a substância de Deus. Como

veremos no próximo capítulo, este está além da substância. Há um paradoxo,

explorado pela teologia negativa, segundo o qual, quanto mais esse ser se

esquiva, mais o nome sagrado de Deus designa seu ser. Quanto mais o nome

é inefável e o ser transcendente, mais seu nome se identifica ao seu ser. Onde

o nome mais deveria tomar posse do ser, uma vez que entra em fusão com ele,

é justamente aí que se revela a inacessibilidade dessa tomada. O nome é um

sem-nome.

André Caquot, referência de Lacan nessa discussão (LACAN,

1971/1992, p. 125), propõe um “pseudônimo de Deus”, em um estudo muito

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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preciso sobre os problemas de tradução do ehie asher ehie, em que ele opta

por “serei o que serei”. O autor põe em dúvida a significação de YHVH como

terceira pessoa do verbo ser, e considera que a declaração divina a Moisés

tem sua razão de ser em si mesma. Deus revela sua existência dissimulando

sua identidade, e a primeira palavra dessa declaração, ehyeh, que toma o lugar

do nome próprio que Moisés espera, torna-se, naquilo que Moisés deve dizer,

um pseudônimo de Deus.

Isso é proferido por um Deus que se apresenta, essencialmente, como

escondido. Lacan não busca, de modo algum, identificar Deus ao ser. Entre as

duas grandes opções de tradução que distinguimos com Michaeli, Lacan

escolhe claramente aquela que, além de não buscar estabelecer uma conexão

com o nome sagrado de Deus, apresenta-se como uma recusa de Deus a

responder a essa questão.

Nesse lugar em que Deus é interrogado acerca de seu nome, uma

palavra de verdade sai, uma palavra de recusa, que instala, no coração da

resposta, um furo. A resposta de Deus a Moisés é um exemplo daquilo que um

sujeito recebe do pai. É, ao mesmo tempo, uma resposta de recusa e, como

dissemos, também uma recusa de resposta e recusa de que a resposta seja de

uma pessoa. Ela é impronunciável por um sujeito, o que revela a inexistência

do Outro. Só pode ser conhecida como lembrança desfigurada. É

impronunciável por um sujeito, o qual revela uma forma de inexistência do

Outro.

O YHVH é uma nomenclatura da figura divina impronunciável, Yod He

Vav He, que poderia ser pronunciado somente uma vez por ano, se não

tivessem perdido sua pronúncia. Várias traduções da Bíblia substituíram o

tetragrama por Yahveh, Javé ou Jeová. Assim, a origem do nome YHVH é

ainda um mistério. A leitura teológica desses nomes afirma que, quanto mais

se purifica para falar do nome, mais se revela a sua inacessibilidade.

Recuperando a passagem da sarça ardente, Lacan confere, nesse episódio, o

encontro de Deus com Moisés, relatado no Êxodo 3:

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Sonhei para alguns pequenos desta tribo que me rodeia, prestar-lhes o serviço de elucidar um pouco esta questão que concerne a sua relação com o nome. O nome de Deus impronunciável, aquele que se exprimiu no registro do eu (Je) é preciso dizê-lo. Não eu sou aquele que eu sou. (LACAN, 1975. A lógica da fantasia. Lição de 25 de janeiro de 1967. Seminário inédito).

Desse modo, esse trajeto revela que os problemas de tradução da

nomeação do Deus do episódio da sarça ardente atestam a inacessibilidade

desse nome. A genealogia judaica confirma a hipótese de Lacan de que, ao

tomar o “eu sou aquele que sou” como um furo, o psicanalista faz surgir o pai

como um Nome.

Eu sou o que sou, isso é um furo, não é? É daí que – por um momento inverso, porque um furo, se vocês acreditam nos meus esqueminhas, um furo, isso turbilhona, antes, isso devora, e depois, há os momentos em que isso expele, o quê? O nome, o pai como nome. (LACAN, 1975. A lógica da fantasia. Lição de 25 de janeiro de 1967. Seminário inédito).

A partir daí, podemos verificar que ser pai, como agente da castração,

significa dizer que o acesso escolhido por Lacan para a questão do pai foi o de

um por um dos que se tornaram pais. Para definir um pai, como veremos,

Lacan propõe as versões do pai como pai-versão. Lacan, então, reformula o

laço social a partir do sexual. Ele propõe pensar que o sexual faz buraco no

saber. Nesse sentido, nos anos de 1960, Lacan começa a propor uma outra

interpretação sobre o pai.

As referências que Lacan faz sobre Kierkegaard a respeito do pai

conduzem para a fundamentação desta tese. Se, no Seminário Livro 11: Os

quatro conceitos fundamentais da psicanálise, o complexo de Édipo deixa de

ser um desses conceitos fundamentais, é porque Lacan constrói um outro lugar

para o pai, trazendo sua causa sexual como transmissão. É nesse sentido que

podemos compreender os desdobramentos desse pai. Justamente na lição

“Inconsciente e repetição”, desse seminário, Lacan pergunta o que é um pai.

Assim, vamos encontrar um Lacan leitor de Kierkegaard, no que concerne às

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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questões sobre o pecado, trazendo, para a teoria psicanalítica, a castração na

transmissão do desejo do filho.

Lacan, leitor de Kierkegaard

A referência, agora, é a alusão da Lacan a Kierkegaard, em 1964, no

Seminário Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

Buscaremos demonstrar o percurso de Sören Kierkegaard sobre a noção de

pecado, a partir da angústia, no livro do filósofo dinamarquês.

Para Kierkegaard, trata-se de pensar sobre o pecado a partir da idéia

de que esse seria um resto impossível de ser absorvido, por não pertencer a

nenhum campo do conhecimento: “As relações estabelecidas por Kierkegaard

são as questões que jamais foram confessadas, que vão de seu pai à falta”

(LACAN, RSI, 18 de fevereiro de 1975).

A partir desse ponto, podemos dar um passo a mais nas investigações

desta tese. Pretendemos trazer as formulações de Lacan sobre o pai, à luz de

Kierkegaard. É nesse contexto que, para demarcarmos a falibilidade do pai,

iremos nos apoiar na filosofia de Kierkegaard, criando uma equivalência da

angústia com o pecado. Diferentemente dos resgates à filosofia que foram

feitos até o momento, pelos quais podemos aproximar o desejo com a Lei, a

partir do Pai morto, aqui, vamos aproximar o desejo com o gozo, verificando

outros desdobramentos sobre o pai. Se, na aproximação feita no segundo

capítulo, pudemos recuperar são Paulo para demonstrar que a Lei é anterior ao

gozo, isto é, não existe pecado sem Lei, neste momento, com a filosofia de

Kierkegaard, Lacan traz uma outra abordagem sobre o pai na psicanálise.

As considerações paulinas sobre o pecado demonstram que é

necessário que haja Lei para que o pecado exista; assim, vamos dar uma outra

interpretação do binômio Lei/pecado, para demonstrar que o pecado vem antes

da Lei.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Pretendemos demonstrar que Lacan delimita o lugar do pai da

angústia, finalmente desenvolvendo uma metapsicologia sob os auspícios de

Kierkegaard, que teria reforçado a função-limite entre o real e a angústia. É

para compreendermos esse aspecto que vamos nos apoiar em Kierkegaard, e

é justamente por isso que a questão se coloca: seria Lacan simplesmente

hegeliano? Nessa empreitada, para esclarecer o pensamente hegeliano, Lacan

supreende-se a si mesmo quando diz que a verdade é Kierkegaard quem nos

dá. Há uma passagem em que Lacan é bem explícito, contrapondo Hegel a

Kierkegaard.

A verdade da angústia é Kierkegaard quem a dá, não é a verdade de Hegel. Mas é a verdade da angústia que nos leva a nossas observações relativas ao desejo no sentido psicanalítico. (LACAN. Le séminaire livre X – L´angoisse. Edition Seuil – lição do dia 28 de novembro de 1962).

A questão que se coloca é saber por que, ao longo de um ensino de 30

anos, Lacan evoca o filósofo Kierkegaard para trabalhar a transmissão do pai.

Essas considerações, a partir da angústia original, abrem uma nova dimensão

para a compreensão do encontro da falta da falta do Outro. Essa proposta de

Lacan vem desvelar que o Outro não se constitui no encontro com o abismo

que essa falta suscita. Entremos, então, nos aspectos tocados pelo filósofo

dinarmaquês, sem o qual não se poderia desenvolver as considerações sobre

a angústia e a verdade.

Esse caminho traçado pelo filósofo tem como referência capital os

mitos bíblicos de Adão e Eva, juntamente com Abraão. No seu livro, O conceito

de angústia, Sören Kierkegaard parte da idéia de pecado, afirmando que sua

inclusão produz a separação entre o cristianismo e o paganismo. Certamente,

nos gregos, não encontramos a idéia de pecado. Esse termo, como

trabalhamos no segundo capítulo, funciona como divisor de águas entre os dois

mundos. Desse modo, não podemos aproximar a concepção grega de

subjetividade da cristã, visto que o princípio de responsabilidade moral

individual, tal como podemos entender hoje, não existe na Grécia antiga.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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A angústia, com Kierkegaard, passa a ser o vestígio da liberdade. A

angústia nos confronta com um campo não definível que abriria a liberdade.

Isso quer dizer que o Outro não pode mais responder no campo dos

significantes. A ilusão hegeliana seria pensar que o universal se pode juntar ao

particular, que se pode chegar ao lugar do particular. Surge, então,

Kierkegaard, que, frente a Hegel, passa do universal ao particular.

O filósofo dinamarquês vai contra santo Agostinho, Hegel e são Paulo,

que fazem do pecado original um conceito especulativo e o lêem como um

recobrimento do mito por outro mito. Para Kierkegaard, como já dissemos,

trata-se de pensar o pecado a partir da idéia de que este seria um resto

impossível de ser absorvido, por não pertencer a nenhum campo do

conhecimento. É justamente porque o pecado original não pertence a nenhum

campo do saber que Kierkegaard procura na angústia a única via de acesso

para abordá-lo.

Primeiramente é importante saber que a angústia traz uma hiância

impossível de ser suturada, que marca o limite do significante, recorta um

objeto que não tem imagem, e se reverte de desespero, de temor, de terror, de

pecado e de impossibilidade. Na própria filosofia, Kierkegaard foi o primeiro a

usar o conceito psicológico de angústia a partir de um contexto dogmático –

teológico. O filósofo faz um ensaio sobre a angústia e provoca Hegel, quando

diz que a dialética hegeliana não vai suprir esse afeto. Estamos no campo da

angústia, juntamente com a rebeldia do particular. Surge, então, Kierkegaard

para trabalhar o sacrifício de Abraão, que traz um Deus que não funciona como

o Deus dos filósofos. Assim, a angústia é o encontro com o desejo do Outro.

Lacan vislumbra esse afeto com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó (LACAN

1967/2003, p. 338). Essa seria a primeira referência teológica do objeto. Para

introduzir os Nomes-do-Pai, Lacan encontra a pluralidade do Nome-do-Pai. O

pai passa a ter “tantos (nomes) que não há um que lhe convenha, a não ser o

Nome do Nome como ex-sistência” (LACAN, 2001, p. 563), da mesma maneira

que, para Kierkegaard, o pecado é singularizado.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Nesse ponto, com Kierkegaard, a angústia passa a ser a liberdade

subjetiva que acomete a experiência do encontro com o desejo do desejo do

Outro. Essa referência de Kierkegaard, em seu ensaio “O conceito de

angústia”, traz a manifestação da diferença ontológica como uma

pressuposição da angústia pré-existente a ela: o pecado original.

Para Kierkegaard, nenhuma ciência pode dar conta desse conceito. O

pecado já foi lançado. A pesquisa filosófica é, assim, substituída por uma

premissa teológica. Isso quer dizer que não é o caso de se pensar a angústia a

partir de uma causalidade ou de uma origem. A angústia, sob o prisma do

pecado, leva o espírito ao encontro da anima e do corpo. Essa síntese se

expressa naquilo que a Bíblia colocou como objeto interditado. É daí que os

pressupostos científicos não são as ferramentas para interpretar a angústia,

mas sim as questões teológicas.

Para o filósofo dinamarquês, as referências de se pensar a dimensão

do pecado estão implicadas no pecado original de Adão. Segundo Kierkegaard,

não se trata de pensar a partir de uma causa. Isso seria uma maneira

distorcida de pensar que o pecado de Adão interpreta a verdade como o

pecado do primeiro homem. Para ele, antes, deveríamos pensar que o pecado

precede o próprio pecado (KIERKEGAARD, 2004, p. 37). É por isso que

podemos verificar, na observação de Kierkegaard, que a idéia de Adão como

primeiro homem planteia uma incógnita; isso quer dizer que: ser o primeiro

significa ser o número 1 na série dos números inteiros, ou seja, dentro das

séries das gerações, o uno que simboliza toda a humanidade, no caso de

Adão, ficaria fora do gênero dos indivíduos.

O pecado, pois, entra no mundo subitamente, quer dizer, mediante um salto, agora bem, este salto põe ademais a qualidade, e no mesmo momento de ser posta a qualidade tem lugar o salto de qualidade, de maneira que a qualidade supõe o salto e o salto supõe a qualidade. (KIERKEGAARD, 2004, p. 39).

Kierkegaard aproxima o pecado de Adão aos outros pecados. O

enigma da origem, nesse caso: o pecado de Adão é saber o que impõe o salto

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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e a qualidade. As referências do filósofo sobre o tema do pecado são sempre

alusões ao mito de Adão e Eva. Segundo a história bíblica, Adão foi criado por

Deus. Em seguida, Adão deu nomes aos animais, utilizando-se de uma

linguagem que, segundo Kierkegaard, é “uma linguagem tão imperfeita como a

da criança” (KIERKEGAARD, 2004, p. 55-56). O homem, depois de criado,

precisava de uma companhia, então, foi subtraída Eva a partir das costelas de

Adão. Esse momento mítico do pecado original é, para o filósofo, uma

repetição numérica: “o mito apenas exterioriza o que é interior”. Isso quer dizer

que o pecado acontece em outras partes, “dava no mesmo termos no mundo

apenas um Adão como mil Adãos”. (KIERKEGAARD, 2004, p. 55). Essa

referência a Adão faz eco à Epístola aos Romanos, de são Paulo. Nela,

podemos perceber também a referência à gênese do pecado:

Assim, como por apenas um homem entrou o pecado no mundo, e o pecado de morte, assim, também a morte foi propagando em todos os homens por aquele em que todos declaram. (ROMANOS 6,3-4).

Quanto à cena do pecado original, se a serpente é um ente mítico na

história bíblica, ela pode nos levar a pensar que a tentação venha de fora do

paraíso. No entanto, o filósofo não confirma essa hipótese quando comenta a

frase do texto clássico de são Tiago, de que Deus não tenta a ninguém, senão

que cada um tenta a si mesmo (KIERKEGAARD, 2004, p. 57).

Nesse movimento é que surge a queda, e a psicologia, segundo

Kierkegaard, não poderia explicar a queda porque ela é um salto quantitativo.

As conseqüências, de acordo com Kierkegaard, foram duas: o pecado veio ao

mundo e, a partir daí, ficou estabelecida a sexualidade. Desde então, segundo

o filósofo, um não pode separar-se do outro.

Com a pecaminosidade, estabelece-se a sexualidade, e, nesse mesmo

instante, inicia-se a história da espécie humana. A conseqüência do pecado

original é uma angústia que se manifesta na presença do pecado original. A

angústia engendra o próprio pecado original. É por isso que, segundo

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

216

Kierkegaard, a angústia seria o pecado original de cada um. Podemos evocar,

aqui, a pressuposição de que é a angústia que traz o pecado.

Nesse sentido, o autor do livro O conceito de Angústia aponta o pecado

como parte da condição humana. Para o filósofo, é uma questão de pensar o

pecado original como o pecado de cada homem. O pecado original é algo que

acomete a todos os homens. A angústia nos confronta em um campo não

definível que se abriria para a liberdade. Assim, Kierkegaard assevera que a

angústia é a realidade da liberdade, já que, se existisse total liberação, essa

liberdade não teria lugar. A angústia não apenas surge diante do nada; ela é o

que provoca e o que permite pensar esse nada como causa da filosofia.

É necessário, então, saber que, para Kierkegaard, há uma operação da

inocência para a falta. Para Kierkegaard, a inocência é também a ignorância.

Sua existência não pode ser questionada por uma perspectiva simplesmente

casuística e imanente. O pecado não se aproxima de nenhuma disciplina do

conhecimento. A pesquisa sobre a angústia é inarticulável sem o conceito de

pecado. Toda essa argumentação está centrada no evento determinante da

queda de Adão.

Para o dinamarquês, a pesquisa em psicologia é suspensa por uma

premissa teológica, exatamente porque nenhuma ciência pode dar conta do

pecado, porque ele está colocado desde sempre. O conceito de angústia se

apóia sobre um outro motivo: a uma ruptura histórica – isto é, o pecado original

introduzido pelo cristianismo e que propõe a origem de alguma perda. Isso quer

dizer que se produziu uma relação do homem com o mundo. A questão do

pecado opera uma nova maneira de o homem encontrar seu caminho, não

mais pela reminiscência, mas pela repetição. Essa idéia kierkegaardiana traz à

tona a questão da origem justaposta à questão do pecado. O texto sobre a

angústia interroga a origem da queda de Adão, no sentido de que todos os

homens, a cada vez, são introduzidos a um singular pecado original no mundo.

É necessário, assim, reintroduzir, por cada homem, o primeiro pecado. A

repetição é, dessa forma, determinante, uma vez que o primeiro pecado produz

a série. O primeiro pecado funda, então, um antes e um depois – é antes, e

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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apenas aí, que há inocência. A inocência não aparece de uma só vez destruída

pela ação do pecado. Nesse sentido, para Kierkegaard, o pecado original não

seria um fato isolado que aconteceu no Livro do Gênese, e sim um

acontecimento que está presente em todos os homens. Sendo assim, do

primeiro pecado, extrai-se um conceito daquilo que é comum a todos os

homens. A propósito disso, há uma diferenciação do primeiro pecado para com

o de cada homem: “No indivíduo, desde Adão, não tivemos que fazer deles

algo da inocência, mas, um recalcamento da consciência do pecado”

(KIERKEGAARD, 2004, p. 52).

A inocência seria a essência do ser, mas ela é, também, a própria

ignorância que sustenta um não querer saber sobre o pecado. Desse modo,

fica claro que Kierkegaard tem um projeto de trazer o pecado para os mortais.

O filósofo desmitifica o pecado, levando-o para cada homem. Ele singulariza o

pecado original:

O primeiro pecado é algo diferente de um pecado qualquer, quer dizer, de um pecado como muitos outros, e também se vê com toda facilidade que é algo distinto de um pecado. No sentido de relacionar um pecado com outro como o número 1 com o número 2. (KIERKEGAARD, 2004, p. 37).

É significativo que Kierkegaard também o encontre a propósito do

primeiro pecado, do pecado original de Adão, e que ele seja também levado a

se referir ao número. Segundo as idéias tradicionais, a diferença entre o

primeiro pecado de Adão e o primeiro pecado de todo homem é que o pecado

de Adão condiciona a culpa como conseqüência, enquanto o primeiro pecado

de todo homem pressupõe a culpa como condição. Se assim fosse, Adão

realmente estaria fora da espécie, que não começaria com ele, mas fora de si

mesma, o que é contrário a qualquer conceito. Só conseguiríamos recuar ao

problema que pede naturalmente a explicação ao homem número 2, ou, antes,

ao homem número “1”, já que o número “1” se tornou o número “0”, que é

Adão.

É na procura de um ponto de estrutura na história, ou do que se mostra

a partir de uma diacronia, que está na base do encontro entre Kierkegaard e

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Lacan. Trata-se de pensar em uma consistência implícita. Podemos pensar a

origem a partir de uma função numérica, como uma contagem. Surge, então,

mais um princípio de ordem, de ordenação, do qual um elemento, o pai, está

na origem, fiador, mas de um princípio conjuntista, sincrônico, já que, para

haver cálculo, contagem, são necessários, no mínimo, dois elementos que

contam.

O texto do dinamarquês não traz para a discussão o dogma da origem.

A pergunta que perpassa o conceito de angústia é o motivo que leva Adão a

habitar no pecado sem saber, e a proposta do filósofo é encontrar, no primeiro

pecado, um conceito. Mas, se Kierkegaard, a partir de Adão, exclui o um

interno da série, é porque já está pensando na originalidade dessa série. É um

giro vertiginoso que está nas primeiras páginas do livro O conceito de angústia,

nos levando a um real da origem. De uma vez, se engendra o pecado nas

séries das gerações. Até poderíamos invocar a elaboração de Kierkegaard

sobre a repetição para dizer que o escândalo não engendra a transmissão do

pecado, senão sua repetição. Podemos dizer que Adão – e, em Adão, o

pecado – entrou no mundo não como um efeito de determinação quantitativa,

nem como causa ideal eficiente, produtora de efeitos históricos, mas sim como

um salto introduz na quantidade. Para Kierkegaard, o mito do gênero sustenta

a única dialética possível, quando diz: “o pecado entrou no mundo a partir de

um pecado” (KIERKEGAARD, 2004, p. 39). Ou seja, não há palavra que

nomeie o ato da divisão primordial do Outro, exceto saber que o pecado se

engendra a partir do pecado. É esta construção de Kierkegaard que, a nosso

ver, interessa a Lacan: só existiria pecado porque existe um pecado anterior.

Além disso, o que circunscreve o texto do filósofo é o propósito de

problematizar o caminho epistemológico da própria filosofia. Trata-se de

pensar, com Kierkegaard – diferentemente de Hegel, que propõe que o real é

racional –, que há uma maneira de pensar em que o real não é racional. A

angústia, para o dinamarquês, seria aquilo que não se sintetiza. Lacan vem

servir-se de Kierkegaard para consolidar o obstáculo oposto pelo inconsciente

a todo pensamento ligado a uma síntese. Seria aquilo que o espírito não pode

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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abolir ou recuperar para incluir sob a égide do universal. A psicanálise se

aproxima do filósofo, que, com relação a esse aspecto, indicaria a angústia

como o fenômeno fundamental e problema principal da neurose. É aí que

Kierkegaard propõe uma sistematização sobre a angústia.

Se o filosófo dispõe-se a pensar a origem do pecado, é para trabalhar

essa origem buscando a singularidade de cada origem. Adão introduziu o

pecado no gênero humano. A angústia, para Kierkegaard, é o que não se

sintetiza – também à diferença de Hegel, que pensa a dialética a partir de uma

tese, de uma antítese e da síntese. Em Kierkegaard, existe algo que não se

adéqua a esse axioma. O espírito não pode estar no campo do universal. O

pecado é de cada um, assim como o nome é Um.

É nesse sentido que devemos pensar a importância clínica da angústia

para Lacan. Diferentemente do medo, para Lacan, como sabemos, a angústia

não é sem objeto. Para Kierkegaard, a falibilidade da figura do pai teria como

máxima expressão o pecado que engendra o pecado. Depois do primeiro

pecado, uma fenda se abriu para que outros pecados se singularizassem entre

os homens.

O filósofo cria a distinção entre a angústia objetiva e a angústia

subjetiva. Em um primeiro momento, a angústia objetiva poderia ser pensada

como uma angústia peculiar da inocência, que, por certo, não é outra coisa que

a reflexão da liberdade em si mesma. Em um segundo momento, teríamos a

angústia subjetiva, que é entendida no sentido mais estrito. É a angústia

instalada no indivíduo, como conseqüência do seu próprio pecado. Essa

angústia pode ser muito bem comparada com a vertigem. Mas, pergunta

Kierkegaard: onde está a causa de tal vertigem? “A causa está tanto em seus

olhos quanto no abismo”. E, no indivíduo posterior a Adão, segundo o filósofo,

a angústia é mais presente. Esse presentismo que resulta em uma

predisposição não significa nada, antes que o indivíduo se tenha feito culpável;

constitui, pois, o pecado que se presssupõe a si mesmo (KIERKEGAARD,

2004, p. 74).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Si le Nom du Pére soutient la structure du désir avec celle de la loi, c’est son péché, qu’il a été surpris, fauché, et loin qu’il donne à Hamlet les interdits de la loi que peuvent faire subsister son désir, c’est d’une profonde mise en doute de ce père trop idéal qu’il s’agit à chaque instant. (LACAN, 1973/1990, p. 38).

E, segundo Kierkegaard, se quisermos pensar o centro desse pecado

original, teríamos de saber sobre a angústia. A angústia é condição do pecado.

Para ele, a angústia não pode ser articulável sem o pecado. Kierkegaard

obscurece os limites do antes e do depois místicos, entre a inocência e a

culpabilidade, já que, para ele, no paraíso, Adão e Eva se angustiavam de

nada, e é o nada que os leva a algo, que os faz cair em pecado. Por isso, como

ele irá dizer, é a angústia que engendra o pecado, e não o oposto. Para tanto,

o filósofo se debruça sobre o desespero de Jó e de Abraão, na construção de

cada pecado. Mas o pecado passa a estar associado ao gozo. Isso quer dizer

que, para Kierkegaard, como já sabemos: “não existe pecado sem outro

pecado”.

Se a filosofia de Kierkegaard é a de desmistificar o pecado, neste

momento, este autor é a referência para se pensar a noção de falta enquanto

pecado. A referência de Lacan sobre Kierkegaard vem logo depois do

comentário de Lacan sobre o Pai que acorda com a voz do seu filho que diz a

ele.

Só existe pecado/gozo porque o pecado já foi lançado. Nesse ponto, é

importante lembrar as construções sobre o pecado, trabalhadas no segundo

capítulo desta tese, a partir de são Paulo. Se, com o Nome-do-Pai, Lacan, no

seu Seminário livro 7: A ética da psicanálise, diz que o pecado não pode estar

dissociado da Lei, nesse outro momento, Lacan demonstra que o pecado se

articula com o pecado. Parece que trazemos um Lacan contra Lacan. Agora,

podemos começar a pensar as referências de Lacan no que concerne ao pai.

Ou melhor, no fato de o pecado do pai ser a condição de gozo do filho.

Père, ne vois-tu pás que je brûle? Sinon du poids des pechés du père, que porte le fantôme dans le mythe d’Hamlet dont Freud a doublé le mythe d’Oedipe. Le père, le Nom-du-Père,

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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soutient la structure du désir avec cle de la loi – mais l’heritage su père, c ést celui que nous désigne Kierkegaard, c’est son péche. (LACAN, 1971/1990, p. 38)

A via da angústia permite o acesso ao real, que é pecado e gozo. Em

seu percurso na direção do para além do pai, Lacan começa a dizer, no

Seminário livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, que o

Édipo foi um sonho de Freud.

Se Lacan, em um primeiro momento, quando comenta sobre o pai

simbólico, faz referência ao Pai morto (os exemplos são vários: o assassinato

de Laio, pai de Édipo, e o pai morto de Hamlet), agora, ao introduzir o além do

pai, temos, sobretudo, a morte do filho. Para desenvolver esse comentário,

Lacan examina um dos sonhos do livro Interpretação dos sonhos, de Freud.

O sonho apresenta um pai que estava velando o filho e, em certo

momento, se retira para descansar um pouco. Ele havia pedido a um velho

para substituí-lo; por descuido, o velho não percebe que uma vela caiu sobre a

mortalha, que começa a queimar. É o brilho produzido pelo fogo que faz com

que o pai desperte. Mas, qual é a origem do sonho? Para Freud, o pai teria

escutado esta frase do filho, durante uma febre alta: “Não vês que estou

queimando?” (FREUD, 1900/2003, p. 504). Freud é tocado pelas palavras do

filho. Conclui que se trata, sobretudo, de um resto diurno, e que, nesse sonho,

cumpre-se o desejo do pai de ver seu filho de novo com vida. Há, aqui, um

paradoxo, porque, ao despertar, o pai verá o filho partir novamente.. Porque

Freud diz isso? – pergunta Lacan, propondo a seguinte resposta: porque ele

quer salvar o pai. O filho aponta a falta do pai, mas Freud parece não ver isso.

É justamente esse ponto – pai, não vês? – que é retomado por Lacan,

no Seminário Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise,

quando quer ir para além do pai. No capítulo “O inconsciente e a repetição”,

Lacan diz:

Por que esse nome senão para evocar o mistério que é, nada menos, o do para além do mundo, e quem sabe que segredo é compartilhado entre o pai e essa criança que vem dizer-lhe: Pai, não vês que estou queimando? (LACAN, 1964, p. 38).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

222

Trata-se do segredo compartilhado sobre a falta do pai. O Nome-do-Pai

sustenta a estrutura do desejo junto com a da Lei, mas a herança do pai nos é

designada por Kierkegaard, é o pecado do pai.

Lacan está indo, então, para além do amor ao pai. Não se trata,

portanto, da Lei. Toda a questão gira em torno de um profundo questionamento

acerca desse pai demasiadamente ideal. Lacan questiona, assim, o pai

edípico, isto é, o pai idealizado. Não é mais o amor ao Pai, mas o amor do Pai

– o pai a partir de sua causa. A direção da análise lacaniana, tal como

apresentada no Seminário Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise, tenta produzir um efeito de separação entre o ideal e o objeto a.

Na quinta aula desse seminário, Lacan (1964/1990) recupera o sonho

relatado por Freud, trazendo à tona um pai que sonha e busca algo que não

encontra. Um filho morto é velado pelo pai, que vai para um quarto ao lado. No

mesmo quarto do filho, está uma pessoa que, a pedido do pai, vela esse corpo

até que adormece, deixando que uma vela desencadeie um incêndio. Apesar

do acidente, o pai continua dormindo no quarto ao lado, mas, no sonho, o filho

o toma pelo braço e diz: “pai, não vês que estou queimando?”.

A partir daí, Freud comenta a culpa do pai por não ter salvado a vida do

filho, que, antes de morrer, se encontrava “queimando de febre”, realizando um

desejo do pai de vê-lo vivo. É importante perceber que o filho não recebe a

heresia do pai como enfermidade, mas descobre, na angústia quantitativa, uma

hiância que o separa da lei do pai. Não há mais a lei do pai sem o pecado.

No sonho, o filho aparece junto da cama, toma-o pelo braço, e sussurra

em tom de censura: “Pai, não vês que estou queimando?”. Lacan pergunta o

que desperta o pai; para Freud, o que acordaria o pai seria a realidade do ruído

de uma vela tombada incendiando a cama de um menino morto. Para Lacan,

Freud aproxima esse sonhar à tese de que o sonho seria uma realização de

desejos.

O despertar do pai não poderia ter sido causado por um evento

externo; se o propósito do sonho é a realização de desejo não-realizado na

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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vida cotidiana do sujeito, o que é despertar? Não será, no sonho, uma outra

realidade? O que se subtrai na construção dessa tese não é mais um pai que

se limita na palavra, e sim um pai que se coloca a partir de sua causa sexual.

Isso quer dizer, o que esse pai faz com seu gozo traz uma interpretação sobre

a causa do pai.

Se, como nos ensina Lacan, nesse momento do seminário, a

sexualidade é a realidade inconsciente (LACAN, 1964/1990, p. 130), o que o

pai não pode suportar é ver que seu filho representa o queimar com o desejo

sexual. Assim, o sonho conta a história de um real: o filho em chamas tocando

o pai. É o desejo inflamado do filho que o pai não pode suportar ver, ou é

aquilo que o desejo desperta nele? Ele desperta porque passa do sonho para a

vigília. Ao referir-se à “criança queimando” como sonho paradigmático, Lacan

nos diz não somente o que de fato desperta. Para Lacan, Freud não consegue

ver o que o sonho realmente mostra ao pai: a forma do filho, como um horrível,

sinistro, corpo em chamas, tomando o pai pelo braço, tocando-o.

Mas, também é pecaminoso dizer que a heresia do pai é seu pecado.

Dizer que o inconsciente é o pai é dizer que o inconsciente é a realidade sexual

em ato. Para se constituir como pai transmissor do inconsciente como desejo, é

preciso dizer que há a inexistência do Outro enquanto uma ex-sistência entre

outras. O que está em jogo é, agora, o seu gozo, muito mais do que a Lei.

Nesse ponto, o pai não é aquele universal que traz a Lei dos homens, mas sim

um que ex-siste entre outros. Isso o torna independente do significante.

Talvez possamos compreender a alusão de Lacan ao sonho da criança

queimando, recontado no Seminário Livro 11: Os quatro conceitos

fundamentais da psicanálise. Lacan volta ao sonho trabalhado por Freud em A

interpretação dos sonhos, para abordar o mistério mais angustiante que une o

pai ao seu filho morto. A tese fundamental de Freud, nesse texto de 1900, é

que o sonho é uma realização de desejo. Isso quer dizer que o sonho se

realiza de maneira alucinatória. A partir desse estudo de Freud sobre a

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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interpretação, percebe-se que ele faz uma positivização de traços psíquicos.59

O sonho é uma realização de desejo (Wunscherfüllung) e, se assim é, o sonho

passa a ter uma função na manutenção do dormir, regulando a satisfação do

sujeito durante a vida noturna. Ou seja, sem o sonho, não existiria o sono; o

sonho é a realização de um desejo que se apresenta cifrado pela censura.

Por outro lado, quando Freud relata o sonho do pai que vê o filho

queimando, não se trata de um sonho, mas sim de um pesadelo. O pesadelo é

exatamente a falta da censura do recalque. Nessa perspectiva, o pesadelo

seria uma angústia de morte, que Freud chama de sonho de angústia, a partir

do momento em que o sujeito desperta. Os exemplos são os sonhos

traumáticos, que são uma experiência aguda pela falta de dor, e a morte que

acomete os sonhos traumáticos. A partir daí, não podemos encontrar, nas

expressões oníricas, apenas os substratos para a realização de desejo, mas

também formas de expressão da angústia. 59 O sétimo capítulo do livro A interpretação dos sonhos é sobre uma metapsicologia

psicanalítica. Freud aproxima a metapsicologia à filosofia. Nesse sentido, a teoria psicanalítica se afasta de uma tradição empírica e positivista (ciência quantitativa e positivista). A existência da psicanálise é contemporânea ao ciclo de Viena. Quando Freud diz ter sido lido como um romancista, é por ter escrito seus casos clínicos demonstrando sujeitos marcados por conflitos internos. Assim, ele aproxima-se da literatura, afastando-se das monografias médicas da época. Com relação ao livro de 1900, o sonho demonstra que todas as lembranças e associações que Freud especula poderiam estar ligadas a ele; todas as imagens sobredeterminadas, todas as cadeias associativas que compõem o sonho – como diz Freud –, numa árvore genealógica, apontam, repetem a realidade desse ponto não simbolizável. Antes do livro de Freud, o sonhar, o lapso e o ato falho eram considerados performances psíquicas que tinham um caráter negativo no que concerne aos sentidos que esses suscitavam. No século XIX, as formações inconscientes eram consideradas uma forma de degradação da vida psíquica. Até aquele momento, dizia-se que só se pode ter pensamentos em estado de vigília. As formações psíquicas passam a ser positivizadas, a partir do momento em que Freud atribui um sentido dado ao inconsciente. No capítulo primeiro do livro A interpretação dos sonhos, Freud percorre proposições neurofisiológicas, demonstrando o sonho como algo fora de qualquer expressão fisiológica. Freud critica as interpretações sobre o sonho próximas a qualquer fenômeno mecânico de atividade sensorial. Isso quer dizer que, para os teóricos mecanicistas, existia a hipótese sobre o sonho como excreção das excitações cerebrais. Freud faz uma crítica à teoria científica sobre o sonho, afirmando que o sonhar tem sentido. Nesse ponto, podemos trabalhar a noção freudiana do sonho como um texto sagrado, pois Freud faz um retorno à interpretação onírica. O sonhar, a partir de Freud, passa a ser uma formação inconsciente. A conseqüência disso é que Freud retoma a concepção pré-científica sobre o sonho, sempre afirmando que o sonhar quer dizer algo. Freud retoma o modelo bíblico do sonho, presente no Velho Testamento, juntamente com o modelo greco-romano, que diz haver um sentido hermenêutico no sonho. A leitura freudiana sobre os sonhos ía na contramão da tradição cientificista do século XIX. Nessa perspectiva, afirmar que o sonho tem um sentido é incluí-lo nas formações do inconsciente, como o chiste, o ato falho e o sintoma.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Nos sonhos, saímos das organizações mais estruturadas (movimento

progrediente) e processamos um movimento regrediente do aparelho psíquico,

fazendo surgir a produção dos pesadelos. Com relação ao pesadelo do sétimo

capítulo do livro A interpretação dos sonhos, não há mistério mais angustiante

do que aquele que une o pai com o cadáver do seu filho.

Assim, a partir de Lacan, orientado por Kierkegaard, a culpa recai

sobre o filho, para demonstrar que a castração do pai é o seu pecado. O sonho

sobre o filho remete à própria castração do pai. O pai não pode saber que está

morto, só o filho pode testemunhar a morte do pai. A partir da morte do pai, o

sujeito fica submetido ao excesso.

Para Lacan, o sonho não trata da culpa por não ter salvado o filho, mas

de uma pergunta: o que é um pai? O barulho produzido pela queda da vela que

provocou o fogo agiria como elemento da realidade que intervém na produção

onírica do pai, além de poder tê-lo despertado. É esse despertar que, segundo

Lacan, se pode transmitir. O que se transmite é o pecado do pai. O Édipo

passa ser contado a partir do pecado do pai.

É nesse contexto que Lacan faz referência a Kierkegaard. O pecado só

pode existir se houver outro pecado. É para os efeitos da transmissão que, em

uma lição de 29 de janeiro de 1964, Lacan chama a atenção. Para essa

questão, o aviso não vem sem acento, pois toca em um ponto de estrutura.

Lacan procura adicionar àquilo que chama de “sonho freudiano” dos mitos de

Hamlet e de Édipo a falibilidade do pai – que se reconhece no encontro com o

real, entre o sonho e o despertar. Se o centro do livro O conceito de angústia,

de Kierkegaard, é uma análise sobre o pecado original em Adão, Lacan

recupera esse livro do filósofo para fazer uma análise que concerne à questão

do desejo e do gozo, isto é, o relato indireto de um sonho de fonte

desconhecida – um sonho de angústia –, destinado a despertar o sonhador.

Apesar da engenhosa interpretação que corrobora sua tese, o essencialmente

traumático traz à tona o fato de que o filho não pode mais salvar o pai a partir

de seu nome.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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É com esse intuito que Lacan retoma o relato do sonho, para falar da

relação do sujeito com essa defasagem que lhe afeta, mas da qual ele não se

apropria, e para ressaltar o encontro com o real, que se dá como o átimo que

quase não há entre o sonho e o despertar.

A passagem de Abraão com seu filho Isaac demonstra que, no

sacrifício do filho, ele paga com sua própria carne. A obediência a Deus faz

com que Abraão recupere seu filho. Mas não se pode afirmar o contrário disso,

não há garantia de que o filho recupere seu pai. Nesse ponto, podemos

compreender a pergunta de Lacan, em 1964, o que é um pai para um filho?

A resposta que pode ser dada, aqui, é paradoxalmente uma pergunta:

o que é um filho para um pai? Se, por um lado, a interpretação de Freud é de

que o sonho revela a realização do desejo do pai de que seu filho viva um

pouco mais, ou seja, de que seu filho morto fale com ele, teríamos, no

comentário de Lacan, uma virada hermenêutica sobre essa manifestação

onírica. O pai, para Lacan, não está mais à altura de uma função. A construção

desse sonho não é a do pai para com o filho, mas sim do filho em relação ao

pai.

Nesse sentido, busca-se dar vida à libido. Ela passa a ser um novo

paradigma. No Seminário Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise, a transferência passa a ser a “realização sexual em ato”, pelo fato

de, agora, a libido ser um órgão. Lacan busca, no filho, a realização sexual

desse pai. A libido, enquanto órgão, se define por uma perda natural. A

invenção de Lacan consiste em dizer que, na divisão do sujeito, algo se perde

sob a forma de libido. Lacan indica que há mais realidade nessa mensagem do

sonho do que no barulho pelo qual o pai identifica o que se passa no quarto ao

lado. É, portanto, essa outra realidade – uma realidade que se passa na

ruptura entre percepção e consciência – que constitui o inconsciente; essa

Outra cena é que desperta o sujeito.

O sonho queima – trata-se de um sonho de angústia – por fornecer a

essa outra realidade, ao real foracluído do simbólico, uma imagem. O sonho

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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queima por homenagear a realidade faltosa que causou a morte da criança, ao

repetir, retomando, em relação ao que se passa ao lado, este inevitável “tarde

demais” que acompanha a ação do pai em direção a seu filho. E, pela falha do

pai, se paga com angústia: “Ninguém pode dizer o que seja a morte de um filho

– senão o pai enquanto pai”, diz Lacan, e completa: “isto é, nenhum ser

consciente” (LACAN, 1964/1990, p. 60).

O tema do amor ao pai corresponde ao Édipo. Lacan desenvolve o

tema da proibição com O Nome-do-Pai. Quando Lacan disse que o Édipo foi

um sonho de Freud, é preciso entendê-lo, verdadeiramente, como tal, em sua

dupla acepção. Por um lado, Freud sonhou o Édipo; por outro, o fez existir, fez

existir o complexo de Édipo, foi ele que o introduziu, salvando o pai.

Entendemos que esse “pai enquanto pai” não se confunde com

nenhum ser consciente, porque, “enquanto pai”, ele opera uma transmissão.

Do outro lado, o que há é não um outro sujeito (o pai como o ser consciente

que cumpre essa função), mas os objetos que podem causá-lo – o olhar e a

voz emoldurados pela porta do quarto contíguo, deixada entreaberta. A criança

tem seu lugar na transmissão, mas, nesse sonho, o que desperta, o que se faz

ouvir, é o fracasso do pai – no ponto mesmo em que essa transmissão é

interrompida pelo irredutível do real da morte. Nesse ponto, é importante

lembrar a construção de Freud, aqui trabalhada a partir do texto Psicologia das

massas e análise do Eu. No capítulo sobre a identificação, é sabido que Freud

propõe um Pai amor, salvando-o nesse lugar, ao que Lacan comenta:

No discurso psicanalítico, encontramos às vezes certos termos que servem de filum na explicação – o termo pai, por exemplo. E encontramos às vezes alguém tentando reagrupar seus dados principais. Exercício penoso, quando feito no interior do que se espera, no ponto em que estamos de um enunciado e de uma enunciação psicanalíticas – ou seja, no interior de uma experiência genética. A propósito do pai, as pessoas se julgam obrigadas a começar pela infância, pelas identificações, e isso é algo que verdadeiramente pode chegar a uma extraordinária farfalhada, a uma estranha contradição. Falarão da identificação primária como aquela que liga a criança à mãe, e isto, com efeito, parece óbvio. Contudo, se nos reportarmos a Freud, seu discurso de 1921, chamado Psicologia das massas e análise do Eu, é precisamente a identificação ao pai que é

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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dada como primária. É certamente bem estranho. Freud aponta ali que, de modo absolutamente primordial, o pai revela ser aquele que revela a primeiríssima identificação, e nisso, precisamente, ele é, de maneira privilegiada, aquele que merece o amor. Isto é bem estranho, certamente, e entra em contradição com tudo que desenvolve da experiência analítica que estabelece sobre a primazia da relação da criança com a mãe. Estranha discordância do discurso freudiano com o discurso dos psicanalistas. (LACAN, 1970/92, p. 82).60

Mas, se Freud salva o Pai, qual seria a conseqüência da causa sexual

de um pai no campo da transmissão? Podemos perceber que, quando Lacan,

em seu Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise, considera o mito do Édipo

como um sonho de Freud, o psicanalista dedica três classes para colocar o

problema do Édipo e do Totem e tabu dentro de coordenadas estruturais. Se

Lacan procura deslocar o Pai do Édipo para o mito do Totem e tabu, é porque

ele procura, nesse segundo mito, a causa sexual do pai.

Essa afirmação de Lacan indica como se pode desenvolver o além do

Édipo. O Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise corresponde ao

momento em que Lacan obteve, claramente, a separação de Édipo e da

castração. Não é mais o pai que introduz a castração, mas é a castração do pai

que é efeito de estrutura, e que, dessa maneira, ocupa um lugar na

transmissão. Vamos procurar demonstrar que essa castração do pai é a própria

impossibilidade desse pai. E isso só pode acontecer na medida em que o pai

esteja castrado. Nesse sentido, o pai é o agente da castração. O pai real é o

transmissor. É de Lacan a idéia de interpretar o desejo de Freud – o Édipo

deve ser interpretado como um sonho de Freud. Essa referência faz eco ao

texto de 1921, de Freud, que, para Lacan, é uma tentativa de salvar o pai.

A partir daí, podemos perceber que Freud preserva, no Édipo, o núcleo

de sua religiosidade. O amor ao Pai é o Édipo freudiano, a idéia de um Pai que

merece amor, e ainda, um Pai todo amor. O paradoxo freudiano se apóia no

60 A partir desse comentário de Lacan, é importante chamar a atenção para uma outra

interpretação sobre o pai, levando em consideração a crítica de Lacan ao texto de Psicologia das massas e análise do Eu, texto em que Freud desenvolve a identificação com o amor do Pai.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Pai como merecedor de amor. Lacan faz uma equivalência do pai com o gozo,

deslocando o Pai do Édipo para o pai de Totem e tabu. Quando o psicanalista

francês denomina o pai como um operador estrutural (LACAN, 1971/1990, p.

111), traz o impossível como uma operação real: “O pai, o pai real, nada mais é

que o agente da castração – e é isto que a afirmação do pai real como

impossível está destinada a mascarar” (LACAN, 1970/92, p. 117).

O mito que surge como enunciado de uma impossibilidade de discurso

remete a um gozo impossível de estar no discurso. O pai real não é o da

proibição, é aquele que coloca que nenhuma solução será uma solução

totalizadora ou passível de comunhão. De nenhuma maneira podemos situar o

pai real como o pai traumático. Ele é um dos nomes do impossível a separar o

Édipo e a castração.

O pai entre saber e verdade

Neste momento da tese, vamos começar a discutir a questão aberta

por Kierkegaard, em seu livro O conceito de angústia, com relação ao pecado e

ao Pai. Pretendemos percorrer a idéia de que o pai real relaciona-se ao registro

do impossível que escapa ao simbólico. “Real” adquire, agora, o sentido de

designar a efetividade da operação, a castração, cujo agente é um indivíduo.

Em “pai real”, a palavra “real” designa, então, as duas extremidades

que parecem antinômicas: o real que escapa à noção de pai simbólico, e o

agente definido, encarnado, que realiza a operação simbólica da castração. O

pai real é real por ocupar o lugar de impossível. O real, o impossível do pai,

encarna-se em um personagem do círculo familiar da criança, que não é

forçosamente o genitor. Esse aparente paradoxo dá lugar à definição mais

constante do pai real: “O pai real, está estritamente fora de cogitação defini-lo

de uma maneira segura [...] que não seja como agente da castração” (LACAN,

1970/92, p. 121).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Esse impossível implica demonstrar que sua simbolização não é

redutível cientificamente. Se devesse sê-lo, o que se diria é que o pai real é o

espermatozóide, mas seria “cientificamente insustentável” e, “até segunda

ordem, ninguém jamais pensou em dizer que é filho de tal espermatozóide”

(LACAN, 1970/92, p. 120). A partir desse comentário, podemos perceber que,

para Kierkegaard e para Lacan, esse pai está além de qualquer psicologia:

“Quer dizer, a enunciação freudiana nada tem a ver com a psicologia. Não há

nenhuma psicologia concebível neste pai original” (LACAN, 1970/92, p. 116).

A função do pai real não procede, portanto, do campo e da função da

linguagem. Não há ato da morte do pai na origem: outra leitura sobre o mito de

Totem e tabu tem – como veremos – o sentido de um enunciado dito como

impossível, no campo de uma articulação significante.

Mas, para além do pai, no ponto em que não fazemos do pai o

operador da lei que impõe um limite ao gozo, qual seria esse operador? No

seminário de 1970, Lacan dá um salto, dizendo que a inclusão no Outro produz

uma perda de gozo. A inclusão do sujeito na linguagem produz, por si mesma,

uma perda de gozo, que, por um efeito de entropia, se recupera sob as formas

do objeto a. Então, no mais além do pai edípico, é a própria linguagem que

produz o efeito de perda de gozo, gozo que é, em parte, recuperado através do

objeto a.

Nesse ponto, estamos numa dimensão além do Édipo, porque não

estamos mais fazendo a castração girar em torno do pai, pois, agora, sabemos

que o pai simbólico dá uma vestimenta edípica a um elemento de estrutura. Se,

por um lado, o Édipo dá a essa estrutura uma vestimenta imaginária, o pai

simbólico permite apenas ao filho testemunhar em Nome-do-Pai. Com o pai

real, dizemos que o pai é aquele que castra.

Isso permite a Lacan dar um passo a mais, dizendo que o pai, na

verdade, é um pai real, ou um operador lógico que sustenta a castração. Não

se trata, portanto, do pai do mito, do pai edípico ou do Nome-do-Pai que

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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executa a castração. Trata-se do pai para além do pai, porque passamos do

mito à estrutura.

Assim, Lacan não invalida os mitos freudianos, mas vai reconhecer um

valor de verdade. Lacan demonstra que esses mitos apontam para uma

diferença entre o gozo e o saber. Isto é o que define o termo “operador

estrutural”, que é signo de impossível.

Aí, reconhecemos, com efeito, para além do mito freudiano do Édipo, um operador, operador estrutural, aquele chamado de pai real, com a propriedade, eu diria, de também ser ele, na qualidade de paradigma, a promoção, no coração do sistema freudiano, o que é o pai do real, que coloca no centro da enunciação de Freud um termo de impossível. (LACAN, 1970/92, p. 116).

Aqui, se radicaliza a função da castração. No próprio significante

mestre, estaria a função topológica. Mesmo na linguagem do mestre há

demanda fracassada em gozo. Há repetição na demanda. O pai também

deseja: “O pai real é o agente da castração. Não se refere ao pai castrador,

mas ao pai agente. O pai real procede da natureza do ato no que se refere à

castração” (LACAN, 1970/1992, p. 92-118).

Por isso, no Seminário livro 17: O avesso da psicanálise, Lacan coloca

em tensão o mito edípico e o Totem e tabu. Essa tensão é preliminar à teoria

de Lacan sobre os gozos. Lacan considera os mitos freudianos como mitos do

pai, e os analisa um em relação ao outro, realizando uma decomposição

estrutural do pai, operando uma desconstrução do pai através dessa oposição.

Essa oposição entre o Édipo e Totem e tabu é levada a cabo tanto no

Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise como, em parte, no Seminário

Livro 23: Le Sinthome.

As construções, em termos de saber e gozo, são uma

desimaginarização do Édipo freudiano; no Édipo, aparecem os elementos

imaginários da teoria freudiana – ambivalência. Mais uma vez, é importante

repetir o diz Lacan, que o Édipo é o sonho de Freud, acrescentando que, como

todo sonho, é necessário interpretá-lo, servindo-se do método estrutural.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

232

Assim, no Édipo, temos, no primeiro tempo, o assassinato do pai; no

segundo, o gozo da mãe; e no terceiro, o inconsciente como o desejo de saber

a verdade.61

No primeiro tempo de Totem e tabu, o pai goza de todas as mulheres.

No segundo, os filhos matam o pai. A fraternidade, portanto, é fundada no

assassinato. No terceiro tempo, trata-se do gozo da mãe, das mulheres. A

proibição do gozo das mulheres é feita pela fraternidade: o pai morto é

equivalente à condição de gozo, que é equivalente à castração. A castração é

o que dá consistência e legitimidade ao gozo, por intermédio da interdição.

Assim, teríamos a fórmula lacaniana:

Pai morto = condição de gozo – castração

Essa fórmula implica conseqüências que Lacan desenvolve em duas

frases: “só há felicidade no falo”, e “o gozo é o que se encontra figurado pelo

órgão masculino” (LACAN, 1971/1990, p. 70).62 Ao se colocar o pai em posição

de exceção por causa de seu assassinato, vela-se a sua própria castração.

Esconde-se o fato de que a castração vem de um outro lugar que não do pai.

Assim, no seminário, encontramos um Lacan que critica o Lacan que

interpretava o Édipo como metáfora paterna. Parece que estamos no avesso

do pai. Portanto, Lacan considera sua interpretação como original.

Perguntando-se, agora, para que serve o Édipo, Lacan responde que não

serve para nada, encetando todo um debate sobre outra face dessa indagação:

“Quem se serve do Édipo? Unicamente os alunos. Todas as outras pessoas o

abandonaram”, diz Lacan (1971/1992, p. 83).

61 Com relação a este ponto é importante chamarmos atenção para o caminho que esta tese

está seguindo, no segundo capitulo trabalhamos o matema da transferência demonstrando que a experiência da falta no Outro produzida pela vicissitude do simbólico se desdobra em um sujeito de crença, assim, o saber é testemunhado pelo filho a partir do Nome-do-Pai. Esta afirmação permitiu verificar que o filho pode apenas testemunhar em Nome-do-Pai.

62 Essa questão sobre o gozo do órgão e da felicidade do gozo fálico será trabalhada no quinto capítulo a partir do gozo fálico. No final do ensino de Lacan surge uma insistência do psicanalista em deslocar o significante fálico para o gozo fálico.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

233

Lacan vai se perguntar, então, sobre a validade de continuar se

servindo dele. Daí, decorre um segundo momento da crítica, que não é mais a

crítica de Lacan por Lacan, mas a crítica de Freud por Lacan.

Encontramos, nesse sentido, um eixo crítico do mito freudiano do

Édipo. Esse mito não é considerado, por Lacan, como um mito perigoso, mas

sim como uma construção que vai assimilar um sonho. O Édipo, diz Lacan,

está relatado a partir da perspectiva do filho. É o filho que conta o que são suas

peripécias, suas tragédias. É ele que assassina o pai e goza da mãe sem o

saber.

Na leitura que faz Lacan de Totem e tabu, a abordagem é diferente. No

Édipo, tínhamos o Nome-do-Pai, enquanto, em seu comentário sobre Totem e

tabu, Lacan faz passar o gozo da mãe ao pai. O que se modifica é que, se, no

mito de Édipo, o filho goza da mãe, em Totem e tabu, o gozo se desloca para o

lado do pai. A diferença é que já não se trata de um pai ideal, mas, ao

contrário, de um pai que goza das mulheres.

Em Totem e tabu, temos esse orangotango, esse pai que goza de

todas as mulheres (não das mães). Sublinho esse termo porque é a base da

elaboração de Lacan sobre a sexuação feminina. No seminário seguinte –

Seminário Livro 18: D´un discours qui ne serait pas du semblant –, Lacan se

pergunta se é possível falar de todas as mulheres para, em seguida, apontar a

mulher como não-toda: “Não há este universal: todas as mulheres. A Mulher

não existe” (LACAN, 1970/71, p. 105) – formulação que pretendemos trabalhar

no próximo capítulo.

Mas, em Totem e tabu, o pai morto já não é um pai simbólico; ele

equivale ao gozo. O pai morto é o lugar no qual se inscreve o gozo de todas as

mulheres. O pai de Totem e tabu leva consigo, para sempre, o gozo que falta,

gozo que é impossível: é impossível gozar de todas as mulheres. O impossível

é situado do lado do pai gozador, e é um elemento da estrutura.

É por entender que é impossível que o pai goze de todas as mulheres

que Lacan irá dizer que esse universal não existe – e esse impossível, como

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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estrutura, se inscreve do lado desse pai, no lugar da exceção. Há, então,

definitivamente, uma passagem para além do Édipo, porque, no Édipo, surge,

primeiramente, a lei, que produz a proibição ao incesto, e, a seguir, ocorre o

assassinato. No Édipo, teríamos a lei que precede o gozo. Isto é, a lei dizia que

era proibido gozar da mãe, mas Édipo infringe a lei e goza da mãe.

Ao contrário, em Totem e tabu, na passagem do mito à estrutura, o que

vem antes é o gozo, e depois a lei. Primeiro surge esse pai que goza de todas

as mulheres, e é seu assassinato que funda a lei que proíbe aos filhos de

gozarem de todas as mulheres. Nesse ponto, é importante perceber que há,

entre os dois, uma inversão: no mito de Édipo, é a lei que precede o gozo,

enquanto, na estrutura, o gozo precede a lei. Mais uma vez, estão em pauta as

construções paulinas, discutidas no segundo capítulo, sobre o binômio pecado

e lei. Se Lacan, agora, faz referência a Kierkegaard, e, em seguida, ao mito

freudiano do Totem e tabu, é para inverter a formulação de são Paulo, que já

havia utilizado em 1960.

Lacan recupera o mito do Édipo e sua própria construção mítica de

Totem e tabu, mostrando que, nela, as relações entre o gozo e a lei se opõem.

Em Totem e tabu, o gozo (de todas as mulheres) precede a morte do pai pelos

filhos: “muito pelo contrário, é a partir da morte do pai que se edifica a

interdição desse gozo como primária” (LACAN, 1970/92, p. 112). Lacan

assinala que Totem e tabu não justifica miticamente o interdito do incesto

materno, uma vez que são as mulheres do pai, e não as mães, que são

submetidas à interdição, após o assassinato primordial (LACAN, 1971/2006, p.

159).

Devo sublinhar que a função-chave do mito se opõe, estritamente, em

ambos os casos: lei, no primeiro caso, de tal modo primordial, que exerce suas

represálias mesmo no caso em que os culpados a tenham infringido

inocentemente; e é da lei que procede a profusão de gozo. No segundo caso,

gozo na origem, lei depois, são todas as mulheres que estão, por princípio,

interditas à comunidade dos machos, que se transcendeu como tal nessa

comunhão. Lacan conclui dizendo:

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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É curioso que tenha sido necessário esperar esse tempo para fazer tal asserção, a saber, que o Totem e tabu é um produto neurótico, para que eu pudesse avançar, o que é absolutamente incontestável – não é verdade? – sem que por isso eu sequer ponha em causa a verdade da construção, e é mesmo nisso que ela é testemunha da verdade [...] e ao testemunho que o obsessivo traz de sua estrutura, ao que da relação sexual resulta impossível de formular no discurso que devemos ao mito de Freud. (LACAN, 1971/1990, p. 120).

Então, como se estabelece esse novo lugar do pai? Ou melhor, se o

pai está castrado, quais são as conseqüências disso? Lacan demonstra o gozo

fálico a partir da referência de que só há felicidade no falo, o que interessa é a

referência a uma função fálica; ao invés de falo, introduz-se uma função de

gozo ligada ao complexo de castração. Na estrutura, primeiro está o gozo – o

sujeito goza de seu corpo –, gozo este que é, de certa forma, limitado pela

inclusão do sujeito na linguagem, mas que – a partir do Seminário livro 17: O

avesso da psicanálise, e do exame do pai orangotango, do pai da horda

primitiva que goza de todas as mulheres –, como veremos no próximo capítulo,

estará nas fórmulas da sexuação.

Segundo Lacan, tal como se enuncia, não mais no nível do trágico,

com toda a sua leveza sutil, mas no nível do enunciado de Totem e tabu, o mito

freudiano é a equivalência entre o pai morto e o gozo. Eis o que podemos

qualificar, então, com a expressão “operador estrutural”:

Que o pai morto seja o gozo, isto se apresenta a nós como sinal do próprio impossível. Ε é nisso mesmo que reencontramos, aqui, os termos que defini como aqueles que fixam a categoria do real. (LACAN, 1969/970, p. 116).

No mito freudiano do Édipo, ao contrário do mito de Sófocles, é

explicitada a questão do gozo do pai, já que o que o define, mais que a

procriação, é o fato de gozar de todas as mulheres. O impossível provém da

conjunção desse gozo fálico e da figura do pai morto. Morte e gozo ocupam o

mesmo lugar. A lógica que Lacan desenvolve a partir de Totem e tabu consiste

na articulação de diferentes modos de servir de argumento à função fálica,

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

236

articulação que se fixa na escrita dos quantificadores da sexuação, que

veremos mais adiante.

Isso não quer dizer que essa lógica só se aplique ao mito, e seja

unicamente a reescritura do mito. O mito fornece os elementos lógicos que vão

servir de material a essa escrita lógica, a qual, por sua vez, permite lê-lo de

outro modo. O pai de Totem e tabu é reduzido à função de exceção, à

castração de “ao menos um” que não seja servo da função fálica, exceção que

confirma a regra da universalidade da castração. A primazia do pai não é,

segundo Lacan, um reflexo do patriarcado, mas define um ponto em que a

castração poderia ser encerrada numa abordagem lógica da forma que

designaremos, a partir de Kierkegaard, como numeral. O pai não somente é

castrado, mas é castrado precisamente a ponto de não ser mais que um

número. Esse número é o zero, cuja necessidade aparece, em Kierkegaard,

quando aborda as séries, a fim de estabelecer o sucessor de um primeiro

Adão; a equivalência lógica da função do pai é precisamente essa função do

zero, freqüentemente esquecida.

Com efeito, o complexo de castração é habitualmente considerado

como uma negatividade, uma limitação. Mas, quando há função de gozo,

introduzimos um outro ponto de vista: o fato de que o sujeito goza de sua

castração. A castração determina um gozo particular para o sujeito. É a

especificidade da neurose: o sujeito goza de sua castração. Com a criação da

função fálica, Lacan associa ao significante “falo” a função positiva do gozo, por

um lado, e, paralelamente, a função negativa da lei e da interdição ligada ao

pai, que vinha do complexo de castração freudiano.

A função fálica tem, então, uma dupla versão: ela tem uma face real –

o gozo – e uma face simbólica – a lei, a interdição, a castração. Isso permite

que, com apenas um instrumento lógico, possamos representar essas duas

versões, ao passo que, ao falar do significante “falo”, Lacan se referia a um

significante de uma perda de gozo, algo que era simbólico. Não havia esse

lado real, que é: “eu gozo dessa perda”. Há, inicialmente, esse ponto: “eu peço

um gozo” – é a castração representada pelo significante “falo”. Mas há um

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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segundo tempo: “eu gozo dessa perda” – é o lado da função fálica no sentido

de função de gozo. Desse modo, há uma ausência de garantia no gozo sexual,

ausência de complementaridade entre o encontro com o sexual e o simbólico.

Não há nada no Outro que dê articulação simbólica entre o gozo e o sexuado –

uma vez que ele é desejante, como um ser sexuado –, nada que dê uma

significação para o encontro do sexuado com o simbólico.

Assim, é importante remarcar que, no Seminário Livro 17: O avesso da

psicanálise, há uma indicação de que o sonho de Freud implica conseqüências

que Lacan desenvolve em duas frases: “só há felicidade no falo” e “o gozo é o

que se encontra figurado pelo órgão masculino”.

Há muitos outros requintes na maneira de substituir esse gozo cujo aparato, que é o do social e que desemboca no complexo de Édipo, faz com que, por ser o único que daria a felicidade – justamente por isso – esse gozo seja excluído. Essa é propriamente a significação do complexo do Édipo. E é por isso mesmo que na investigação analítica o que interessa é saber como aparece, em suplência à interdição do gozo fálico, algo cuja origem definimos a partir de uma coisa totalmente diversa do gozo fálico, que é situada e, por assim dizer, mapeada, pela função do mais-de-gozar. (LACAN, 1971/1992, p. 70).

A interpretação faz equivaler o pai à castração. Esta é a própria

interpretação do sonho. É, de alguma forma, a interpretação freudiana do pai.

O pai é castrado. Ao se colocar o pai em posição da exceção, por causa de seu

assassinato, vela-se a sua própria castração. Esconde-se o fato de que a

castração vem de um outro lugar, que não o do pai. Desassociar a castração

do Édipo é desligar a castração do pai.

Isso só pode assegurá-lo mediante um significante (o significante que falta do Outro sexo) que forçosamente falta. O sujeito é chamado a ser sustentado, o complemento (appoint), no lugar dessa falta (a do significante) mediante um signo que chamamos (o signo) de sua própria castração. Consagrar sua castração a essa garantia do Outro é aquilo diante do que o neurótico se detém (LACAN, 1962/2004, lição de 05/12/62).

Lacan propõe um para além do mito de Édipo, um operador estrutural

que define como sendo o pai real. Como operador estrutural, o pai seria, então,

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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um significante e, em se tratando de um pai, seria o significante do gozo. A

verdadeira mola propulsora é esta: o gozo separa o significante-mestre, na

medida em que se atribui ao pai o saber como verdade.

A castração corresponderia ao fato de o pai ser o que nada sabe da

verdade. O Pai real, definido a partir da exceção presente no Pai de Totem e

Tabu, é função diferente do Pai da lei. O pai tem uma relação mais estreita com

o real e não com o simbólico, como era originalmente o caso.

Em se tratando do saber e do pai, é importante lembrar-se do afeto da

ignorância. Lacan, ainda nesse seminário, salienta que esse afeto é o único

que tem relação com o saber. Não seria também esta a “feroz ignorância” de

Yahveh, de que nos fala Lacan: o saber do sexual, do gozo? Lacan representa

esse lugar, o lugar que o analista deve ocupar com o discurso do analista,

como o saber do pai real, do pai do gozo, que transmite a partir do seu ato. Se

Lacan faz referência a um gesto de ignorância de Yahveh, é porque ele trata a

questão do saber pela via da ignorância.

Se a ignorância é a égide das paixões do ser, como verificamos no

segundo capítulo, por que há a referência de Lacan a Yahveh? A ignorância é

a única que se relaciona com o saber. A ignorância de Yahveh é sua voz: “ehie

asher ehie”, “Com efeito, o discurso da lógica proporcional é, como se

sublinhou, fundamentalmente tautológico” (LACAN, 1971/1992, p. 84-85).

Aqui, lembramos da ignorância douta, que se situa na junção entre o

saber e o não saber. A douta ignorância é a obra capital de Nícolas De Cusa.

Nessa obra, que trata de temas relativos a Deus, não se obtém a experiência

divina mediante o saber, mas a partir do que denomina a ignorância metódica

que marca um limite do conhecimento humano. São complexas as relações

entre o saber e a verdade, juntamente com suas variações, trazendo a verdade

como estrutura de ficção. Com a matematização dos quatro discursos, o saber

se encarna em uma letra. Nos discursos, a verdade tem um lugar fixo, e tem

parentesco entre a verdade e o gozo. A verdade é a irmã da impotência. A

impotência da verdade vela a impossibilidade. A tentação de Lacan, no

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise, é reduzir esse lugar a uma

característica lógica, demonstrando que a verdade é irmã do gozo.

O pai torna-se, assim, a presença do real no simbólico, “signo do

impossível”. O pai real agora faz uma operação radical entre o discurso da

ciência, que se propõe saber em termos absolutos quem é o pai biológico, e o

discurso da psicanálise, que faz dele um ponto de impossível do saber e da

norma. Como vimos, no segundo capítulo, o significante do Nome-do-Pai forclui

o sujeito da ciência, instaurando a suposição de saber, e, nesse momento, no

avesso da psicanálise, o modo de existência do Pai está ligado à

impossibilidade, produzindo um furo no saber. Se a psicanálise instalou o

centro da doutrina no mito do pai, Lacan passa do mito para o mythique-ment –

a estrutura (LACAN, RSI, Inédito, aula 11/03/75) –, e vai mais longe que Freud,

abrindo a dimensão do além do Édipo.

Esse encontro é o que se busca desenvolver neste capítulo, como

marca da própria castração do sujeito. Se o que o pai transmite é a

impossibilidade do gozo, o que se questiona é, finalmente, o gozo do pai, e a

construção ficcional do fantasma que interpreta o gozo do pai do ponto de vista

do sujeito. Para que um pai transmita a castração, é preciso que o pai também

passe por ela. Transmitir a castração quer dizer que o gozo é impossível para

todo sujeito falante, e só pode ser recuperado a partir de uma ficção.

Os aspectos do complexo de Édipo devem ser distinguidos no que se

liga ao mito de Totem e tabu (LACAN, 1970/92, p. 107). Lacan, em seu

Seminário Livro 18: D’un discours qui ne serait pas du semblant, na lição de 9

de junho de 1971, propõe uma “esquize que separa o mito de Édipo de Totem

e tabu” (1971/2006, p. 159). Se, antes, havia insistido na oposição entre a

tragédia e o mito, Lacan, agora, considera as duas versões em função do mito,

para mostrar seu parentesco com uma forma lógica, pois sabemos que as

relações entre o gozo e a lei são inversas em um e em outro caso.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

240

Na ocasião dessa distinção, Lacan revisita a única observação de

Freud da qual, até esse momento, não havia se servido para introduzir o

Nome-do-Pai: o caso Dora (FREUD, 1901/2003).

Demonstrando como, na histeria, a relação com o pai é idealizada,

Lacan observa que, no caso de Dora, seu pai ocupa um ponto pivô. Ele é

doente e impotente. Lacan atribui uma grande importância ao segundo sonho

de Dora, e, em particular, ao fragmento esquecido, do qual Dora não se lembra

senão após a interpretação de Freud, concernente à primeira parte, em que ela

sonha que seu pai está morto: “e que ela foi calmamente para seu quarto e

pôs-se a ler um livro grande que estava sobre sua escrivaninha” (FREUD,

1901/2003, p. 98).

Segundo Lacan, o segundo sonho marca que o pai simbólico é

justamente o pai morto, que não se alcança a partir de um lugar vazio e sem

comunicação

Na caixa vazia desse apartamento abandonado por aqueles que, depois de ter convidado, partiram por seu lado para o cemitério, Dora encontra facilmente um substituto para esse pai num grande livro, o dicionário, aquele onde se ensina o que diz respeito ao sexo. Assim, marca com nitidez que o que lhe importa, para além mesmo da morte de seu pai, é o que ele produz de saber. Não qualquer saber – um saber sobre a verdade. (LACAN, 1970/92, p. 90-91).

O complexo de Édipo não é a lei do desejo da histérica, mas o

resultado, o produto – sob forma de saber com pretensão a verdade – do

discurso que determina a histérica. No Seminário Livro 17: O avesso da

psicanálise, encontramos, a partir da histeria, uma degradação da figura do pai.

Lacan formula claramente o pai como castrado em estrutura; sua impotência

está revestida com os emblemas da potência.

Podemos afirmar que é essencial para o inconsciente que comporte um

ponto de impossível que mantém uma disjunção entre sujeito, saber e gozo.

Pudemos compreender, ao longo desta tese, que a herança do complexo de

Édipo se transmite sob a égide do amor, isto é, pela identificação ao Pai. O pai

imaginário é um pai amor. A histérica demonstra a imago do amor ao pai. Por

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

241

isso, no Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise, Lacan pode dizer que,

para falar do pai, a histeria é, na verdade, um melhor guia do que o Édipo. Por

que diz isso? Dora, por exemplo, se dirige a um pai idealizado, para denunciar

que ele está castrado. Então, se a histérica se dirige, por amor ao pai, a um pai

idealizado, isso é seguido da denúncia da falta desse pai. Por isso, a histeria

seria um melhor guia para falar do pai, no ponto preciso em que o pai

idealizado está essencialmente castrado. Lacan pode, então, insistir que o

complexo de Édipo é um sonho de Freud, porque Lacan chega à verdade por

meio da estrutura. Assim, com relação ao caso Dora, Lacan introduz, para um

dos elementos do triângulo amoroso, o senhor K, a categoria de terceiro

homem (LACAN, 1971/92, p. 89).63

Como Lacan determina esse terceiro homem no discurso da histérica?

A histérica se vincula com distintas figurações do mestre e do laço social. O pai

é mestre no discurso da histérica. Lacan, nesse seminário, distingue, em Dora,

os lugares do pai e do senhor K. Nesse caso, denomina o senhor K como o

terceiro homem. A histérica encontra e aponta a falha do pai. Dora, por

exemplo, diz: “meu pai, para dormir com a Sra. K, quer me entregar ao Sr. K.

Ele é um gigolô”.

Lacan retoma o caso Dora na medida em que se produz a discussão

do pai em torno de uma causa sexual. A posição feminina de Dora é

interpretada a partir do desejo do pai.

Com relação ao segundo sonho, que marca o fim da análise com

Freud, Lacan atribui uma grande importância, e, em particular, ao fragmento

esquecido. Lacan diz que, em vez de seguir à tumba do pai morto, Dora,

dirigindo-se calmamente para o seu quarto, vai ao dicionário, fazendo uma

transformação da verdade em saber. Nesse saber, surge o lugar do pai, não

mais idealizado ou morto, mas sua causa sexual. Para isso, Lacan diz que o

63 Esse conceito aparece na filosofia, mais precisamente no texto de Aristóteles, A metafísica,

e é conhecido como “Argumento do terceiro homem”, depreendido das formulações de Platão sobre o mundo das idéias.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

242

“Édipo desempenha o papel do saber com pretensão de verdade” (LACAN,

1971/1992, p. 92).

Com o avesso da psicanálise, o pai idealizado está radicalmente

questionado, sobretudo, porque ele está castrado. Essa posição de Lacan

demonstra que o pai só merece o amor e o respeito onde há causa sexual. O

feito de recorrer ao mais além do Édipo é a destruição sistemática do pai como

ideal universal.

O que vai a Dora é a idéia de que ele tem o órgão. O terceiro homem, para quê? Certamente, seu valor reside no órgão, mas, não para que Dora seja feliz com ele, senão para que outra prive com ele (LACAN, 1970/92, p. 89).

A histérica tem a qualidade de saber fazer declinar o Pai Ideal,

colocando-o em um homem particular, portando em si uma distância entre o

universal e o singular. É nesse sentido que Lacan faz uma releitura de Dora. A

partir desse ponto, o estatuto do complexo de Édipo e da castração será

reconsiderado.

É isso precisamente é que chega a sustentar, sob esse ângulo da potência de criação, sua posição em relação à mulher, mesmo estando fora de forma. É isto que especifica a função da qual porém a relação com o pai da histérica, e é precisamente isto que designamos como o pai idealizado. (LACAN, 1970/92, p. 89).

Para guiar-se nessa análise, o complexo de Édipo é “estritamente

inutilizável” (LACAN, 1971/92, p. 93), e há espaço para empregar outros pontos

de referência, em particular, o da divisão do saber e da verdade, bem como o

do mestre com o qual o pai não tem senão uma relação distante. É em função

dessas referências mais fundamentais que o Édipo tem um papel:

O Édipo desempenha o papel do saber com pretensão de verdade, quer dizer, do saber que se situa na figura do discurso do analista, no lugar do que designei [...] como o da verdade (LACAN, 1970/92, p. 92).

É nesse sentido que Lacan, em seguida, comenta que não precisa

mais salvar o pai, à moda de Freud. Ele desassocia o complexo de Édipo de

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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uma base mítica, transferindo-o para uma base lógica. A referência a Totem e

tabu demonstra a verdade como uma estrutura lógica, a partir da

impossibilidade. Encontramos o avesso do pai, isto é, com o seu gozo. Por isso

ser a impossibilidade, caímos, então, em um esquema lógico. O impossível

provém do gozo fálico. Para a lógica de Lacan, o pai passa a ser articulado de

diferentes modos, para servir-se de um argumento à função fálica. Articulação

que se fixa na escrita dos qualificadores da sexuação.

Nesse sentido, Lacan começa a se perguntar como pode articular a

pergunta sobre a problemática da relação entre o real, o simbólico e o

imaginário. O pai, como operador estrutural, parece demonstrar o pai real

diante dessa articulação. Isso vai acontecer quando Lacan encontra a solução

sob a forma de quarta consistência de um nó borromeneano. Nesse ponto,

Lacan não se esquece de lembrar: “O que Freud chama de realidade psíquica

tem perfeitamente um nome, é o que se chama de complexo de Édipo”

(LACAN, RSI, lição de 15 de abril de 1975, inédito).

A partir do próximo capítulo, vamos perceber que Lacan, ao propor o

quarto nó no complexo de Édipo, observa que há um dizer de Freud que “semi-

diz” a verdade. Nesse sentido, não se trata mais de designar apenas o nome

dado ao pai, mas sim o nome dado pelo pai.

É preciso o simbólico para que apareça, individualizada no nó, essa coisa a que não dou o nome de complexo de Édipo – que não é tão complexo assim. Chamo-a de Nome-do-Pai, que não quer dizer nada mais que o pai como nome – o que não quer dizer nada no princípio –, não somente o pai como nome, mas o pai como nomeante. (LACAN, RSI, 15 de abril de 1975, inédito).

Essa invenção remete ao furo do nó borromeano, um furo que não se

pode imaginar. No nó borromeano, há três para Um. No decorrer do próximo

capítulo, buscaremos sustentar que há um resto sintomático que não se pode

simbolizar. Trata-se, pois, de uma generalização da tese de que o sintoma é

sempre um sinthome. Isso só podemos encontrar a partir do ponto do

irredutível da pai-versão, que é o gozo do pai. É em razão desse caráter de não

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

244

existência real que se pode dizer que ela responde a uma necessidade lógica.

Mas, se há relação de analogia entre as formulações de Freud e a fórmula de

Lacan, resta saber, no entanto, se é possível reduzir a pai-versão.

Uma parte dos problemas suscitados pelo Nome-do-Pai encontra uma

espécie de solução, pelo menos provisória, com o nó borromeano, no

seminário RSI, em 1975. Lacan evoca, nessa ocasião, o ponto em que se

encontrava em 20 de novembro de 1963:

Estabelecerei este ano, por assim dizer, a questão de saber se – quanto aquilo de que se trata, a saber, o enodamento do imaginário, do simbólico e do real – falta essa função suplementar, em suma, de um toro a mais, aquele cuja consistência serviria para fazer referência à função dita do Pai. Essas coisas interessavam-me há muito tempo, e foi por isso que comecei Les noms du pere, embora naquela época não tivesse ainda encontrado esse modo de figurá-las. (LACAN, RSI, sessão de 11 de fevereiro de 1975, inedito).

Essa confissão de Lacan confirma nossa análise da problemática do

Nome-do-Pai, tal como ela se colocava em 1963: a saber, sua articulação com

o real, o simbólico e o imaginário. Nessa época, Lacan não podia formular em

termos assim tão precisos, e explícitos, o problema diante do qual se

encontrava. É no momento em que encontra a solução que o problema

implícito se torna explícito. Nesse sentido, o quarto elo explicita o Nome-do-Pai

implícito nos três. Ele começa por dizer:

O que fez Freud? Vou lhes dizer o que: ele fez o nó a quatro com esses três que jogo como uma casca de banana sob seus pés. Mas eis como ele procedeu: inventou alguma coisa que chamou de realidade psíquica. (LACAN, RSI, sessão de 13 de janeiro de 1975).

Lacan admite que o que reconhece da invenção freudiana depende

dessa “casca de banana” que ele joga sob seus pés. É nesse momento mesmo

em que faz que Freud vá ao chão que reconhece sua invenção. Mas a

invenção é, efetivamente, a de Freud, e acrescenta: “O que ele chama de

realidade psíquica tem, perfeitamente, um nome, é o que se chama de

complexo de Édipo” (RSI, sessão de 11 de fevereiro de 1975, inédito).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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E Lacan acrescenta que o que Freud instaura com seu Nome-do-Pai é

idêntico à realidade psíquica que instala o vínculo entre simbólico, imaginário e

real. Lacan diz, de certo modo, que a realidade psíquica de Freud é um dos

nomes do pai. Isso permite compreender melhor por que, depois de ter feito em

pedaços o complexo de Édipo, Lacan parece recuperar seu prestígio. Como

um sonho de Freud, ditado pela histérica, um produto neurótico, pode

desempenhar um papel assim tão importante quanto o de manter juntos, em

Freud, o real, o simbólico e o imaginário?

Ao atribuir, ao complexo de Édipo, esse lugar no nó borromeano,

Lacan reconhece nele, definitivamente, uma função que vai além da crítica que

faz a esse complexo: uma função suplementar e de suplência, apesar – ou por

causa – das imperfeições que denunciara. O quarto elo borromeano significaria

que há, no complexo de Édipo, um dizer de Freud que escamoteia a verdade,

excede e suplementa os conteúdos, criticáveis, desse complexo. Lacan dá o

passo de atribuir a esse dizer, a importância de uma dimensão integral,

irredutível aos ditos de Freud, que ele não se incomoda de criticar, ainda mais

se considerarmos que reconhece essa dimensão suplementar.

A versão que Freud inventa lhe permite, em particular, não considerar a

si mesmo o pai de sua teoria. Sua teoria sustenta-se pelo nome de complexo

de Édipo, que ele inventou, é verdade, e a qual confere, porém, uma

consistência ligada somente ao seu Nome. O complexo de Édipo é um Nome-

do-Pai que funciona precisamente onde há um ponto em que a teoria não tem

pai. É um Nome-do-Pai por ser uma nomeação do pai nos dois sentidos do

termo: nomeação de uma função do pai, e nomeação produzida por Freud, a

quem se pode imputar.

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O pecado

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247

Quinto Capítulo

O desvio do Real

O Joyce de Lacan

Ad pulchritudinem tria requiruntur. Primo quinden integritas, sirve perfectio: quae enim diminuta sunt, hoc ipso turpia sunt. Et dedita propotio sive consonantia. Et iterum claritas, unde quae habent colorem nitidum, pulchra esse dicuntur.

São Tomás de Aquino

Se, em um primeiro momento, trabalhamos a versão simbólica sobre o

Pai, remetendo à legalidade do Outro, essa legalidade, como foi demonstrado,

não faz nada mais senão denunciar o caráter de crença nesse Outro. Na

primeira parte deste trabalho, demonstramos que o neurótico supõe um Pai,

crendo religiosamente nele. O Pai, nesse momento, é um símbolo, e dispensa

portanto, a presença. Lacan, revelando a influência de Hegel, recupera o jogo

entre ausência e presença para demonstrar as características desse Pai.

Em seguida, a partir do masoquismo, desenvolvemos as formulações

sobre a angústia, mostramos que Lacan fórmula uma clínica sobre um outro

pai. Essa formulação traz à tona o pai real. Esse é o pai que vem apresentar o

gozo. É por isso que podemos verificar que ainda resta uma pergunta de

Lacan: quais são as possibilidades deste pai?

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É a partir desse ponto que começamos a fazer contato com as

demandas lacanianas à obra de James Joyce. Levaremos em consideração,

que o texto de Joyce é diferente do que se avaliava como literatura, passando

a ser uma tentativa de escapar da pátria, da religião e da linguagem, um texto

não mais condizente com os cânones literários, mas criando um limite para o

que pode ser atribuído como literário. Lacan procura, nessa escrita, uma

elucubração sobre o pai como nomeação de possíveis ficções, para dar conta

do fato de que o Édipo, no caso, seria uma ficção entre outras.

No curso do Seminário Livro 22: RSI, de 1976, Lacan inicia uma

confrontação sistemática com o escritor irlandês. Suas referências convergem

para uma escrita que marca a singularidade do que se pode entender como

propriamente literário; os livros de Joyce são sobre toda a sociedade humana,

e, por isso mesmo, usam a linguagem comum, a despeito das suas regras

semânticas, sintáticas e ortográficas, transformando-a num mero ruído

confortador da instituição da linguagem. Joyce fez isso de tal maneira que a

linguagem acabou sendo o principal, senão o único, personagem de seus

romances, fazendo alusão à literalidade que se aproxima do que podemos

compreender como a especificidade do literário.

O que se produz a partir desse seminário, seria outra maneira de se

pensar o Édipo. Nesse seminário, há certos conceitos que são refundados e

que nos permitem conceber a experiência clínica de um novo modo. Não se

trata de uma nova clínica, mas sim de uma nova maneira de se interpretar a

questão do sintoma, juntamente com um outro lugar sobre o pai. É aí que

Lacan redefine a função paterna e outorga outro lugar para a linguagem.

Ou seja, a obra de Joyce testemunha o que já foi considerado como

fundamental nas elaborações de Lacan, nos anos de 1970: a separação entre

o Outro e o gozo. Dito de outro modo, a separação entre o simbólico e o real.

Como pretendemos demonstrar neste capítulo, a separação entre o

simbólico e o real surge de maneira inusitada e singular. É nesse sentido que

devemos compreender a crítica de Lacan a Freud, quando diz que ele nunca

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249

abandonou o complexo de Édipo para pensar a realidade psíquica (LACAN,

RSI, 14/01/75). No entanto, percebemos que Lacan critica Freud, ao dizer que

o pai é um operador estrutural. Por isso, vamos mostrar que o pai é um quarto

elemento na junção do real, do simbólico e do imaginário. Existe outra maneira

de se produzir um nó, a partir de um quarto elemento, o sinthome. O sinthome

é também o pai. Ele é o pai que se nomeia. Ele é o avesso do pai, pois ele,

agora, cumpre a função de manter juntos os enodamentos. É a partir desse

ponto que podemos verificar, na escrita de Joyce, uma prática de um pai às

avessas.

Eu fiz um passeio em Joyce porque me solicitaram tomar a palavra em um colóquio. Bom... se Joyce está preso no círculo e na cruz, não é porque ele havia lido muito Santo Thomas de Aquino na sua formação de jesuíta. Vocês estão todos presos entre o círculo e a cruz. (LACAN, 1975/2005, p. 37).

O projeto literário de Joyce é uma pretensão universalizante, havendo

por parte do autor uma intenção de produzir uma sinopse das artes e das

ciências, um modelo do corpo humano. Os personagens dos romances de

Joyce, como o homem comum, não podem pensar o que querem pensar, nem

fazer o que querem fazer, pois estão presos a uma lei externa, estão

assujeitados à linguagem. E é a partir desse aspecto que Joyce chama a

atenção de Lacan, antes do Seminário Livro 23: Le sinthome. Lacan, a convite

de Jacques Aubert, faz uma pronunciação no V Simpósio Internacional James

Joyce, dizendo que Joyce está preso entre o círculo e a cruz, o que, a nosso

ver, coloca uma questão sobre o pai. O seminário de 1976 é uma báscula que,

no recurso dos círculos, está em consonância com outra construção sobre o

pai.

Recapitulando, se, em um primeiro momento, Lacan constrói o Nome-

do-Pai enquanto ligação entre o Pai e o filho, em seguida, depois da redenção

do filho, teríamos, alhures, a pluralização do Nome-do-Pai, não mais como

elemento de ligação da mensagem do Pai com o filho, como a atitude crística

nos ensina, mas como os nomes do próprio gozo de cada sujeito. A partir da

tradição judaica, essa universalização do Nome-do-Pai configura a marca da

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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singularização dos nomes do gozo de cada sujeito. Nesse ponto, não é o filho

que testemunha o pai a partir de seu nome, mas é o desejo do pai que

transmite algo para o filho. Essa maneira de nomear escapa às modalidades de

união do desejo com a Lei, como foi demonstrado a partir do Pai – questão

abordada no segundo capítulo deste trabalho –, trazendo, agora, para o nome

próprio, uma singularidade para o sujeito naquilo que condiciona seu gozo.

Agora, nesse seminário – contrastando com o anterior, o Seminário

Livro 22: RSI, e com o posterior, o Seminário Livro 24: L'insu que sait de l'une

bévue s'aile a mourre, marcados por uma teorização abstrata, suportada na

topologia do nó borromeano –, há uma referência que se poderia chamar de

clínica: a referência que Lacan faz à pessoa e à obra de Joyce. Essa

referência, nesse momento do ensino de Lacan, a um autor tão particular como

James Joyce, visava justamente dar conta do efeito da letra que, mesmo fora

do simbólico, o condiciona. Com esse recurso, Lacan tentou precisar as

relações entre o simbólico e o real.

O anúncio que Lacan faz de Joyce não é apenas para demonstrar a

questão sobre o pai do escritor, mas, também, o lugar que o pai ocupa na

neurose a partir de seus últimos seminários. As referências lacanianas à obra

de Joyce conduzem-nos a uma nova questão sobre o pai, que está preso entre

o círculo e a cruz, tocando também no real do pai do neurótico.

Nesse ponto, buscaremos discutir as referências lacanianas sobre

como fazer um nome prescindindo do Nome-do-Pai, juntamente com a

concepção de pecado que isso implica (LACAN, 1976/2007, p. 131). A que

tudo isso nos leva? A um primeiro ponto: a disjunção entre o nome e o pai. Se

colocarmos, de um lado, a função da linguagem, e de outro, a função do pai,

fica o nome em outro lugar que não o do pai. Separa-se, então, nome e pai. A

segunda conseqüência é que o pai não se reduz ao Nome-do-Pai, o que

implica, portanto, a questão do seu gozo, com toda a dificuldade que se tem de

nomeá-lo.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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A leitura de Lacan sobre Joyce marca a maneira com a qual o autor

irlandês faz um nome que dispensa esse Nome-do-Pai. Nessas conferências

sobre Joyce, Lacan cria uma linguagem que vai sempre sendo elaborada no fio

de uma heresia. Aí está a proposta de Lacan sobre a nomeação: não intervir no

Nome-do-Pai, mas se servir dele (LACAN, 1976/2007, p. 131). Pode-se

prescindir do Nome-do-Pai? Pergunta Lacan. Sim, sob a condição de se servir

dele, responde o psicanalista. Essa resposta que Lacan dá à sua pergunta

aponta para o caráter de nomeação do sujeito, implicado nas particularidades

dos Nomes do pai, fazendo eco à referência freudiana de Goethe: “aquilo que

herdastes de teu pai, conquiste-o para fazê-lo seu” (GOETHE, Fausto, parte 1,

cena 1, citado por FREUD, 1913/2003, p. 159).

É a partir dessa perspectiva que podemos elaborar outros

desdobramentos sobre a identificação ao pai. Esse seminário de Lacan

também permite elucidar as significações possíveis do provocador, do

inconsciente tocar o real.

E, como estamos considerando o Nome-do-Pai a partir de seus

pressupostos cristãos, como foi trabalhado nos dois primeiros capítulos, se

levarmos em consideração a fórmula “prescindir, com a condição de se servir

dele”, pode-se prescindir de acreditar nele. O que caracteriza essa passagem é

a dimensão da crença. Abrir mão do nome do pai não implica em não fazer uso

dele: por aí, vemos uma separação entre o nome do pai e o gozo.

Neste momento, queremos demonstrar que, para Lacan, Joyce cria

uma terceira perspectiva sobre o pai, isto é, Joyce faz uma suplência de

escrita, criando um pai como suporte. O projeto literário do autor vai na direção

de um uso particular do escrito, indicando uma singularidade literária,

indagando o que seria literatura.

Desde Dublinenses (JOYCE, 2003), que reúne contos que possuem

uma narrativa linear, com personagens que fazem parte da trama, até Ulisses

(JOYCE,1966), um dos livros mais aclamados da história da literatura

ocidental, evocando uma interdependência entre a linguagem e o mundo que

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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pergunta sobre o futuro da escrita, revela-se uma experiência com a língua que

faz surgir o primado da escrita e desaparecer a camada uniforme na qual se

entrecruzavam o visto e o lido, o visível e o enunciável, fazendo esvanescer o

olhar sobre a cena. Joyce, que não ignorava a etimologia do seu nome,

derivado da palavra inglesa joy, que significa alegria (o mesmo se dando com

Freud, na língua alemã), fez de seus romances, romances cômicos. Joyce

escreveu para entreter, para celebrar a vida, para dar júbilo. Isso torna evidente

porque as coisas e as palavras vão se separando até não mais haver dentro e

fora, sujeito e objeto, leitor e obra. As referências deste último capítulo

pretendem demonstrar as incidências de uma manifestação sobre o lugar do

pai nessa experiência.

Segundo Lacan, isso só foi possível porque Joyce fez uso do pai. Para

o escritor, a paternidade seria uma ficção legal (JOYCE, 1966), recuperando a

“Carta a Stanislau”, um dos capítulos de Ulisses, podemos começar a

vislumbrar esse caminho: “se um pai que não tem filho não é um pai, um filho

que não tem pai pode ele ser um filho”? Pergunta Joyce.

A mesma coisa quanto à lógica interna de cada obra de Joyce, na qual

vai ocorrendo uma ruptura progressiva com os padrões clássicos da escrita e

uma transgressão progressiva da semântica, da ortografia, enfim, de todos os

parâmetros que, antes de Joyce, regiam a produção literária. O que o levou a

isso? O que pode Joyce ensinar a um psicanalista? Lacan, em 1976, em seu

seminário sobre o sinthome, afirmou que Joyce ilustra de maneira exemplar o

funcionamento do Nome-do-Pai, que, nesse momento de seu ensino, está no

plural, ou seja, “os” Nomes-do-Pai, e não se referem a tudo o que efetiva a

função de “amarração” topológica do quarto termo do nó borromeano, tal como

havia introduzido na última aula do seminário anterior – RSI. Desde que

introduziu os nós borromeanos – como maneira de investigar a lógica da inter-

relação entre os registros, na lição “Rodinhas de barbantes”, no seu Seminário

Livro 20: Mais ainda, até o seminário RSI –, Lacan trabalhou com o nó

borromeano de três termos. Mas, no decorrer desse seminário, começou a

formalizar o nó borromeano de quatro termos. A razão dessa substituição foi o

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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fato de não existir maneira de se estabelecer, topologicamente, diferenças

entre os registros; o nó passa a ser, no mínimo, de quatro registros. Somente

ao se nomear, de maneira diferente, cada um dos elementos do nó é que se

pode sustentar as diferenças entre eles. Lacan introduziu, então, o termo

“nomeação” como o quarto elemento, que permitiria a amarração topológica

dos demais. Essa nomeação poderia ou não passar pela identificação ao pai,

mas, como sabemos, o objetivo desta tese é verificar a identificação ao pai,

Vamos, então, nos dedicar aos desdobramentos dessa referência.

Retornemos, pois, para a obra de James Joyce, na tentativa de

elucidar esse quarto elemento na constituição psíquica. Essa perpectiva traz o

desvio de um real na amarração dos quatros registros. Logo de início, no livro

O retrato do artista quando jovem (JOYCE, 1916/1996), há um embate

agonístico sobre questões religiosas, juntamente à figura de um pai opaco e

omisso de Joyce. Para isso, o crítico de Joyce, Hugh Kenner64 propõe uma

leitura importante, no que concerne à questão do pai de Joyce, desse primeiro

romance.

Podemos dizer que Um retrato do artista quando jovem é unificado pelo esforço de vinte anos de Stephen em substituir um pai pelo outro. Na primeira frase seu pai, de “rosto peludo”, está lhe contando uma estória sobre a “vaquinha mu”. Este pai desce – “...um pequeno proprietário, um pequeno investidor, um beberrão, um bom homem, um contador de estórias, o secretário de alguém, alguma coisa numa destilaria, um cobrador de impostos, um falido e atualmente um louvador de seu próprio passado – e, na última frase do livro, a palavra “pai” aponta para trás, nas alturas: Velho pai, velho artífice. Valha agora e sempre (KENNER, 1974, p. 131).

Esse pai, no enredo do O retrato do artista enquanto jovem (JOYCE,

1916/1996), contribui para a construção da personagem de Stephen Dedalus,

um dos alteregos de Joyce; é um pai, nessa vertente imaginária, fraco e

ausente. Quando o pai de Stephen é indagado sobre a questão da formação

religiosa dos jesuítas que educavam o jovem, ele responde que achava que os

64 Hugh Kenner qui, à mon avis, parle assez bien de Joyce, peut-être à cause du saint Thomas

D’Aquin en question (LACAN, 1976, p. 16).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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religiosos eram pessoas que teriam contatos importantes e, certamente,

Stephen poderia encontrar um bom emprego depois de ter estudado com eles.

Isso é revelador no que se refere à figura de um pai que se ausenta de sua

responsabilidade de criar um pacto com o filho. Na trama Um retrato do artista

quando jovem, há uma figura paterna apática. Nesse ponto, podemos

perguntar quais são os desdobramentos sobre a transmissão de um pai pouco

idealizado para o filho. É aí que Lacan, no seu Seminário Livro 23: Le

sinthome, não deixa de fazer o comentário sobre o pai de Joyce.

Ser nascido em Dublin, com um pai bêbado de carteirinha e mais ou menos Feniano, isto é, fanático, de duas famílias, pois é assim que acontece com todos quando se é filho de duas famílias, e quando se crê macho porque se tem um pedacinho de pau. Naturalmente, perdoem por esse termo, é preciso mais que isso. Mas como ele tinha o pau um pouco mole, se assim posso dizer, foi sua arte que supriu sua firmeza fálica. E é sempre assim. O falo é a conjunção do que chamei de esse parasita, ou seja, o pedacinho do pau em questão, com a função da fala. E é nisso que sua arte é o verdadeiro fiador de seu falo. (LACAN, 1976/2007, p. 16).

Não foi em vão que Lacan se interessou pelo tema. A história do

seminarista traz uma revelação que tem como final o abandono da vida

religiosa. O enredo desse primeiro romance de Joyce narra a escolha de um

jovem estudante jesuíta que opta por abandonar a vida religiosa em prol da

literatura. Tal escolha é narrada em detalhes, com acepções teológicas que

passam a ter um caráter divino. O texto joyciano constrói-se a partir de uma

mudança que toca o protagonista da trama. Em um primeiro momento, o

seminarista está inserido em um sistema de ensino em que prevalecem as

normas de uma servidão simbólica. No entanto, em um segundo momento, as

mudanças subjetivas do jovem começam a implicar o sujeito em uma nova

construção da realidade.

O caráter filosófico atribuído por Lacan à obra de Joyce vem, portanto,

da mudança de perspectiva subjetiva conferida a Stephen, que cria um nome

que passa a ser um Pai do Nome. O seminarista abandona a vida religiosa

para torna-se escritor. A perspectiva lacaniana sobre o romance de Joyce é o

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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próprio questionamento da crença em um nome. Para isso, o centro desse

romance de formação (Bildungsroman) está na escolha do jovem seminarista

em ser escritor. As orientações do estudante são suas tradições e formações,

que têm como bússola a concepção de são Tomás de Aquino sobre a estética

e a experiência da revelação divina. As referências joycianas evocam uma

mudança de perspectiva de vida fazendo alusão ao filósofo medieval. Nessa

escolha, está implicado o caráter ontológico da vida de Joyce. O teólogo da

Idade Média opera uma síntese entre a teologia cristã e a filosofia aristotélica.

Joyce recupera são Tomás de Aquino porque encontra, no filósofo, um estatuto

sobre a existência de Deus, uma busca das manifestações dessa presença que

se mantém fiel a Aristóteles. Nesse ponto, quando investigamos a questão

sobre o pai, na teoria lacaniana, vamos buscar na religião monoteísta essa

confirmação, sobretudo a partir do sentido dado por são Tomás de Aquino, em

conjunto com a experiência da existência de Deus e a relação trinitária do Pai,

pelo filho, no Espírito Santo.

Para ele, a existência de Deus poderia ser acessada no caminho da

revelação. São Tomás cria as provas efetivas da existência de Deus, de

maneira empírica. Essas provas, propostas pelo mestre da escolástica, são

cinco. A primeira: “tudo o que se move é movido por algo”. Temos um

deslizamento infinito, que faz pensar em um primeiro motor, que move os

outros e não é movido, sendo essa uma idéia de Deus.

Tudo que existe na natureza tem que ser movido por alguma outra coisa. Da mesma forma, esta outra coisa, na medida em que está em movimento, deve também ser movida por algo mais. Mas essa cadeia de eventos não pode retroceder para sempre, porque se o fizesse não poderia haver um primeiro motor e, portanto, nenhum outro. Pois os segundos motores não podem se mover a não ser que sejam movidos por um primeiro motor, da mesma forma que uma vareta não move nada a não ser que seja movida por uma mão. Dessa forma devemos chegar a um motor primeiro que não seja movido por nada. E todos compreendemos que este é Deus. (SÃO TOMÁS DE AQUINO, Summa theologica).

A segunda é quase uma variação da primeira: “se tudo é causado, tudo

é causa de algo”. Nesse ponto, não se pode conceber que alguma coisa seja

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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causa de si mesma, pois todas as coisas são causadas. A leitura tomista

propõe que uma coisa vai causando outra coisa, que vai causando outra coisa,

e, assim por diante, para que haja uma primeira causa não-causada.

A terceira, como a primeira, tem influência aristotélica. Trata-se do

contingente e do necessário. Para o filósofo, todos os seres estão em

constante formação; alguns são gerados e outros morrem, mas a existência

não seria necessária e sim contigente, pois o que é necessário não precisa de

causa para existir. Assim, para que algo exista, é imprescindível que algo o

faça existir. A força que faria as coisas existirem seria Deus.

A quarta refere-se ao perfeito, ao que não tem falha. Agora, com a

influência platônica, o filósofo propõe que existam graus de bondade, de

verdade e de nobreza para atingir uma prova absoluta. A figura de Deus seria o

absoluto da perfeição.

A quinta é a idéia de que tudo tem um fim, e o fim último é Deus. As

coisas possuem certa ordem, sua finalidade demonstra que elas não são

movidas pelo acaso, mas teriam uma inteligibilidade, que seria Deus.

Levando-se em consideração essas construções tomistas sobre a

questão da existência de Deus, pretendemos recuperar as referências

lacanianas sobre esse Deus. Essas concepções de são Tomás de Aquino, a

partir de Joyce, induzem a uma reflexão do estatuto do pai nas pesquisas

lacanianas, na década de 1970. A partir dessa lista de acesso à revelação,

podemos inferir as referências de Joyce sobre a experiência divina, a partir do

seu fillósofo preferido.

O tomismo joyciano

Nesse tópico, pretendemos demonstrar que a leitura de Joyce, por

Lacan, é a tentativa de resolver uma hipótese ôntica. Para isso, comecemos

pelos jogos homofônicos de Lacan. Teremos, então, sinthomadaquin, que soa

como o nome do santo homem, mas se aproxima também do sintoma, sin-

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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thome. Podemos verificar, nesse jogo de homofonias, que, ao mesmo tempo,

Lacan evoca o filósofo para remeter ao santo e ao pecado, implícito na palavra

do inglês sin, de maneira justaposta.

O jogo homofônico nos faz lembrar do sintoma e do filósofo medieval,

condensados em uma mesma palavra. Aí, podemos pensar em quais seriam as

conseqüências do lugar de um pai na formação sintomática do fantasma.

Primeiramente, podemos procurar isso nos elementos da arte, em são

Tómas de Aquino, que são: integridade, consonância e claridade, ou claritas.

Para Lacan, a epifania joyciana é uma das marcas da estética tomista, claritas,

que teria um caráter ôntico de esplendor do ser.

No livro Um retrato do artista quando jovem, Joyce (1996) comenta as

concepções de estética do filósofo medieval:

find these and you find the qualities of universal beauty. Aquinas says: Ad pulcritudinem tria requiruntur integritas, consonantia, claritas. I translate it so: Three things are needed for beauty, wholeness, harmony and radiance. (JOYCE, 1996, p. 241).

São Tomás de Aquino referiu-se a certos fenômenos na relação e na

apreensão do objeto. Nesse caso, o objeto, além de possuir uma integridade

(integritas) e uma harmonia (consonantia), também era tomado por uma

claritas. Esta última seria a manifestação do objeto, que se apresentava a partir

de certo brilho que o iluminava de maneira quase alucinatória, como uma

experiência inusitada que atinge o próprio ser.

A maneira com que o jovem escolhe o destino literário se deve ao

clássico conceito de estética de são Tomás, momento em que a filosofia

medieval se confundia com a teologia65 para traduzir a experiência do divino.

65 A ruptura da teoria do conhecimento com a teologia começa, de maneira estrita, com uma

análise como a de Nietzsche. A filosofia, antes, como teologia, preenchia o vazio da metafísica como ciência do ser (FOUCAULT, 2003). No livro As palavras e as coisas, Foucault cita Nietzsche como sendo o responsável por colocar a linguagem “numa multiplicidade enigmática que precisaria ser dominada”. Para Foucault, depois que Nietzsche “matou” Deus, o homem passou a ter que se haver com a palavra. Percebe-se que a morte de Deus, para Nietzsche, seria a primeira atitude contra-teológica. O homem

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Aqui está a aproximação feita por Lacan entre são Tomás e Joyce: o que são

Tomás chama de claritas é o que surge em Joyce como o esplendor do ser.

Consultez là –dessus l’ouvrage de Jacques Aubert, et vous verrez qu’il y a dans le sinthomadaquin je ne sais quoi qu’il appelle claritas auquel substitue quelque chose comme le splendeur d’Être, qui est bien le point faible dont il s’agit. (LACAN, 1976/2005, p. 14)

Se, para atingir o belo da estética tomista, devem ser seguidos três

registros – integridade, consonância e claridade, ou claritas –, em Joyce,

encontram-se as epifanias, algo da ordem da manifestação do ser, do

esplendor, uma manifestação súbita, quer do discurso ou no gesto, ou em uma

frase memorável da própria mente.

Os três registros tomistas são decisivos para se compreender a leitura

lacaniana de Joyce, mais especificamente a claritas, que se aproxima da

coisificação do objeto, manifesta-se como um brilho de experiência que afeta o

ser e que, paradoxalmente, atinge a particularidade de uma nomeação.

A partir da noção de nomeação que se desdobra na concepção de furo,

podemos demonstrar um outro lugar sobre o pai. Se a leitura de Lacan sobre

Joyce é a verificação de uma questão do pai-sintoma, para uma nomeação a

partir do sin-thome, veremos que a questão sobre o sin-thome evoca o uso do

pai enquanto corte que sustenta uma função (LACAN, 1976/2005, p. 150). As

investigações lacanianas, no que concernem ao Pai, no Seminário Livro 23: Le

sinthome, apontam para a força do lugar do Nome-do-Pai que vincula o furo

como nomeação. Podemos demonstrar que é esse o pai do nome, que não

reconhece outra versão além da fictícia: o Nome-do-Pai.

Para verificar a equivalência entre a nomeação e o furo, devemos nos

aproximar da escrita do irlandês. As passagens de epifania em Joyce são

análogas ao claritas. No texto de Joyce, a manifestação epifânica constrói-se a

partir de um objeto ou de uma cena, retirando-os do seu contexto habitual e

estaria diante do vazio de representação da palavra que, anterior à morte de Deus, teria significado pleno, designado pelo Outro (FOUCAULT 1966).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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produzindo uma revelação de natureza espiritual imposta ao ser. A razão

literária de Joyce é buscar uma manifestação repentina, que surge para habitar

o ser.

Quando esses escritos são colocados em outro contexto, rompem o

sentido semântico, criando novas ligações sintáticas e fazendo surgir algo

inefável. Essa é a razão pela qual Lacan diz que Joyce dá um ponto final ao

sonho, à formação do inconsciente, e que Finnegans Wake, seu último livro, é

o despertar do sonho do sentido.

As referências tomistas sobre a experiência divina são as leituras

joycianas para a experiência da revelação. É importante mostrar que o caminho

de Joyce é percorrer as indicações sobre o divino em são Tomás. Se a questão

sobre a revelação, como foi trabalhada no segundo capítulo desta tese, traz a

emergência do simbólico a partir da experiência da falta, neste último capítulo,

não há experiência da falta, mas sim o estatuto do furo e suas conseqüências.

Nesse ponto, o escrito joyciano aborda a língua na sua materialidade.

As implicações de um além do Nome-do-Pai, que permitem pensar uma

amarração, escapam da apreensão fônica de um significante. É a partir desse

aspecto que a expressão “operador estrutural” pode ser confirmada na

investigação lacaniana. Essa nova amarração é um saco que tem um efeito

topológico de furo, amarrando o real, o simbólico e o imaginário. A amarração

do escrito se faz a partir de uma ferramenta que leva Joyce a fazer uso dos

outros três registros.

Os contos joycianos, em sua primeira fase de escritor, são ricos de

epifanias, revelando um fracasso do sentido em seu final. Isso demonstra que a

metáfora (Nome-do-Pai), carregada de sentido, não é um recurso joyciano para

construir o sentido de seus contos. De importância fundamental, as “Epifanias”

– que receberam de Joyce esse título litúrgico – eram pequenas composições,

diálogos triviais que o escritor recolheu, em sua juventude, nas ruas de Dublin,

e que tinham um caráter de claridade e de revelação; permaneciam, porém,

como enigma. As “Epifanias” eram testemunhos de uma experiência interior,

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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qualificada pelo próprio Joyce como extática, mas que, em sua trivialidade,

chegavam perto do sem-sentido.

A teoria das epifanias, em Joyce, está vinculada às idéias de Stephen,

quando expõe ao seu colega, em um dos diálogos de Um retrato do artista

quando jovem. Stephen explica, em linguagem pseudo-escolástica, a integritas,

que quer dizer totalidade, percepção de uma imagem estética como uma coisa

auto-limitada e auto-suficiente no plano de fundo do espaço ou tempo que não

é ela própria.

A consonantia é também simétrica e rítmica, uma imagem estética

concebida como complexa, múltipla, divisível, separável, mas que é formada

por suas partes e sua soma harmoniosa; é a síntese da percepção imediata,

que é seguida da análise da apreensão. E, por último, teríamos a claritas,

qualidade que engendra uma história, integrando-a. Desse modo, na tradição

escolástica, existem esses três critérios formais para a beleza.

Para Lacan, a filosofia de são Tomás de Aquino implica a verdade do

sujeito: “devem-se dizer as coisas: no que se refere à filosofia, nunca se fez

nada melhor feito: não há senão isso de verdadeiro”. Para isso, ele postula

que, mesmo existindo o ser, este não se alcança muito rapidamente, afinal, se

pode passar ao largo do Nome-do-Pai, mas com a condição de servir-se dele.

Lacan é tomista: concorda com a doutrina da verdade desenvolvida por

são Tomás. Essa verdade, para ele, é de difícil acesso. Seria impossível

metodologizar e sistematizar sobre a verdade e, por essa impossibilidade,

nunca a conhecemos plenamente.

É nesse sentido que Lacan pega emprestado o método literário de

Joyce. Segundo Lacan, a epifania, em Joyce, revela o encontro do inconsciente

com o real, manifestação de súbita luminosidade, como uma revelação

esvaziada de significação fálica, visto que esse significante pertence à ordem

da significação. A epifania aproxima-se da claritas tomista, satisfação estética

do momento epifânico, sem gerar sentido, assim como a própria claritas

(LACAN, 1975/2005).

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A partir daí, é importante perceber que as concepções tomistas sobre a

trindade trazem uma abordagem sobre a relação do Pai com o filho que

interessam a Lacan para compreender o efeito de amarração dos três registros.

Para construir esse comentário de Lacan sobre Joyce, teremos de nos

aproximar das construções teológicas de são Tomás sobre a trindade. No texto

do teólogo, está um dos enigmas mais instigantes da tradição cristã. O Um

constituído pela Trindade do Pai, pelo Filho e no Espírito Santo.

Para o teólogo, Deus é cognoscível. Isso é uma variante noética que

diz que Deus é amor. Se Deus conhece o filho, ele só o conhece através do

espírito. As preposições que precedem o uso dos nomes do Pai, pelo Filho, no

Espírito Santo, indicam diferença de natureza, existindo uma substancialidade

diferente em cada um. Na leitura de são Tomás de Aquino, o sentido da

questão pneumática é entendido como sopro, suspiro e substância imaterial,

trazendo a união do Pai com o Filho.

Se temos de clarear esses impasses teológicos de são Tomás de

Aquino, é porque Lacan trouxe sua filosofia para pensar os desdobramentos da

relação do Deus-Pai com o Filho. Na primeira parte da Suma teológica, são

Tomás demonstra, através da formulação e da resolução de dezessete

questões, a inexistência de contradição entre a dimensão una de Deus e a

diversidade das três pessoas que compõem esse enigma da Trindade, que é

Deus Uno.

Para o filósofo medieval, o Filho é gerado pelo Pai, encontra nele sua

origem, enquanto o Pai é aquele do qual o Filho advém. O termo “gerado” é

extremamente específico. No caso de são Tomás, o uso dos termos é sempre

unívoco, e nunca é de maneira equívoca. O que existe por traz dessa

formalidade é a questão da geração. O uso da palavra geração vem do fato de

ser próprio do Pai. Em que consiste essa relação do Pai para com o Filho? A

problemática se inicia quando não se pode dizer que o Filho e o Espírito Santo

sejam Deus. O problema da Trindade é uma questão sobre a origem. Desse

modo, a trindade é um problema pneumológico, que pergunta como o Espírito

Santo foi gerado. Em latim, gerar, assim como conhecer, se aproxima de

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gnan/genoses/gnoses, da mesma forma que, em grego, temos

gene/gnosis/gêneses. A geração é a pergunta sobre o dizer de Deus, pois,

pensar a questão sobre o Deus Absoluto que gera traz, em si, um paradoxo.

A relação do conhecer com o gerar, para são Tomás, se dá a partir,

sempre, da relação do saber com o Pai. Para são Tomás, esse Pai é absoluto.

Se Deus é absoluto, e o conhecimento se dá a partir da relação, esse

conhecimento é justamente a geração. A raiz da palavra conhecer é a mesma

raiz da palavra gerar. O relacionamento entre o ato de conhecer é a geração,

entre o Pai e o Filho, há uma absoluta geração. O Espírito procede do

fenômeno do Pai com o Filho. Dessa plenitude que acomete o Pai com o Filho,

procede o Espírito Santo.

O Espírito Santo é o envolvimento que existe entre o Pai e o Filho. A

idéia de laço entre o Pai e o Filho cabe ao Espírito Santo. O Pai emana o Filho

e é o Filho que envia o Espírito. O mundo seria a marca de uma

despotencialização de Deus, visando demonstrar que existe uma sustentação

no campo da relação.

O mistério da Trindade, no entanto, também advoga que ambos – e

cada um, em sua diferença – são uma única substância: o intelecto divino que

se encontra no Pai, seguindo o infinito entendimento de si mesmo, gera, à sua

imagem e semelhança, o Filho, e, devido a essa geração, essas duas pessoas

não se equivalem. Nesse contexto, o Pai não é derivado de um outro, mas é

“ingênito”, “não gerado”, e, como único princípio gerador, é distinto do Filho,

que é gerado. Por sua vez, o Espírito Santo não é propriamente uma geração

do Pai, porque, caso o fosse, não teria qualquer distinção do Filho – o Pai gera

apenas o Filho. Logo, o Espírito Santo vai proceder, por inspiração, do mútuo

amor entre pai e filho. Enquanto essa procedência a partir do Pai se dá

imediatamente para que o Espírito Santo possa se valer do ser do Pai, aquele

que acontece do Filho acontece graças a uma mediação.

Por fim, é a dimensão internalizada do movimento de inspirar que, na

procedência do Pai, por intermédio do Filho, constitui o Espírito Santo, como

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consubstancial a essas duas outras pessoas da Trindade: se o sopro fosse

para fora, se o movimento fosse uma expiração, a terceira pessoa seria exterior

ao Uno característico da Trindade.

Assim, o Pai, o Filho e o Espírito Santo subsistem no campo da

relação. O que está sustentando a divindade é a relação. Essas relações

possuem três substâncias, ou três instâncias: o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Esses três registros só podem existir na relação. Mas, o que se deve

demonstrar na questão sobre a Trindade é que o Pai não pode ser absoluto,

pois, se o for, como pode criar relação?

É por isso que a procedência do Espírito Santo, na Trindade, foi tema

de toda a célebre Querela do Filioque, de antigas discussões que François

Regnault nomeou de “papel bizarro do Espírito Santo”. Isso fica claro quando

procuramos os dois pontos de vista da Igreja Católica e da Igreja Ortodoxa

sobre a Trindade. Como encontramos em são Tómas de Aquino, havia a tese

de que o Espírito Santo procedia do Pai, por intermédio do Filho; por outro

lado, existe a tese de que procedia apenas do Pai. Valorizando a primeira idéia,

sustentada pela Suma teológica, Regnault elucida as questões sobre a

Trindade, juntamente com o nó borromeano, dizendo que não é senão via o

Espírito Santo que há algo de borromeano na Trindade; em outros termos, é o

Espírito Santo que se enlaça ao Pai e ao Filho, de modo que, se um deles se

desvincula dos outros, toda a Trindade se rompe, todo o nó se desfaz.

Então, se a questão do Filioque é o motivo da separação da Igreja

Católica com a Igreja Ortodoxa, podemos verificar que a posição católica com

relação a Filioque é propor que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho.

Desse modo, existe uma relação íntima na Santíssima Trindade. O Espírito

Santo procede do Pai e do Filho, isso é uma percepção emanentista; o nó que

segura é o círculo trinitário, isto é, uma circulação interna.

É com o nó trinitário que Lacan inventa a formalização que vai se tornar

o sin-thome em Joyce. Nesse deslocamento, de um pai-sintoma (Deus-Pai)

para um sin-thome, está o que François Regnault comenta como sendo um

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aprisionamento de Joyce no que Lacan chama “o círculo e a cruz”, quer dizer,

um ponto mais além do mundo e da teologia, no nó borromeano (Regnault,

2001, p. 28).66 Isso quer dizer que a amarração desse nó procede do Espírito

Santo. Nesse sentido, pretendemos demonstrar um outro lugar para a

sustentação desse nó, a partir da relação do Pai com o filho.

A partir desse ponto, podemos lembrar que Lacan, no Seminário Livro

20: Mais ainda, comenta que os cristãos transformaram a versão grega do

Deus ignorante de ódio, em dilúvios de amor (LACAN, 1971/1982, p. 113). São

Tomás de Aquino e santo Agostinho foram os primeiros a refletir sobre esse

amor divino. Deus é uno e trino. Deus ama a seu Filho, seu Filho ama a seu

Pai, e o Espírito Santo vincula o amor entre ambos – essa é a ortodoxia cristã.

Para Lacan, esse nó trinitário planteia o problema do Um e o da maneira como

o Um se faz corpo. Ou seja, isso quer dizer que “o homem, e não Deus, é um

composto trinitário” (LACAN, 1976/2007, p. 143).

A partir desse ponto, podemos nos aproximar da construção de Lacan

sobre a Trindade. Para Lacan, no romance de James Joyce, está uma

reveladora passagem da construção do ego, que teria como sustentação esse

nó trinitário. O que Lacan pretendeu demonstrar em seu seminário sobre Joyce

e de que maneira esse quarto termo do nó, pode ser “suprido”. Lacan tenta

demonstrar, através de Joyce, de que maneira essa suplência do Nome-do-Pai

pode realizar-se, e que, no caso particular de Joyce, se realizou mediante três

operações: o “sinthoma”, o “fazer-se um nome” e o “”ego”. No seminário sobre

o sinthome, ao deslocar os Nomes do Pai para a função de amarração

topológica do quarto termo do nó, Lacan afirma que a ausência deste permite

delimitar o lugar em que algo possa ser colocado em substituição.

O uso que Joyce faz do pai é de um enodamento do imaginário com o

real. Lacan aponta para o efeito de suplência do pai, em Joyce, para constituir

66 Lacan acabava de ler a obra de Clive Hart, Structure and Motif in Finnegans Wake, que

demonstra que o entrecruzamento do círculo e da cruz, segundo o próprio autor, estrutura fundamental do último livro de Joyce, não faz mais que a entrada direta no nó borromeano. Para Clive, Joyce faz a cosmologia de seu livro se ancorar sobre um nó (RABATÉ, 2005, p. 155).

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um ego. Essa passagem interessa a Lacan por ser o instante em que o escritor

abandona seu corpo. Lacan verifica que a relação de Joyce com seu corpo não

passa pela imagem. Desse modo, o sin-thome de Joyce será o que introduz

uma articulação entre imaginário e real, fazendo surgir o corpo e o ego de

Joyce.

A descrição que Joyce faz de uma surra que levou de uns amigos,

presente no romance Um retrato do artista quando jovem, é retomada na última

aula do seminário 23, e articulada por Lacan como determinando a relação de

Joyce com seu corpo. Esse episódio da vida de Joyce foi por ele descrito como

tendo o efeito de fazê-lo sentir que seu corpo caía como uma casca, uma

roupa. Lacan deu uma importância fundamental a esse acontecimento, e

sugeriu que ele produzira, em Joyce, uma relação alterada com o próprio

corpo, fazendo com que ele o sentisse como corpo alheio.

Se Lacan define o “eu” como a “idéia de si mesmo como corpo”,

precisamente o eu de Joyce caracterizava-se por uma alteração desse

funcionamento. Lacan formalizou, utilizando-se do nó borromeano, o anel do

imaginário escapando, fugindo, isto é, não sendo articulado aos outros anéis

(real e simbólico). Por isso, haveria no caso de Joyce a necessidade de

produzir uma “nominação imaginária” do eu. Essa nominação imaginária do eu

de Joyce seria aquilo que faz “suplência” à ausência de um “moi”, o qual

depende do Nome-do-Pai e da função fálica, e que é suprido mediante esse

ego (não é “moi”) particular, que escapa como tal à dimensão imaginária. O

que se convencionou chamar de “Ego de Joyce”, faz de Joyce um “desabonado

do inconsciente”, permitindo a ele realizar algo novo ao nível da língua, em sua

articulação com a linguagem, produzindo uma escritura que, carecendo de

significação, a liberou do imaginário.

A base para sua tese é o episódio da surra. Em um determinado

momento do romance, algumas noites depois de Stephen Dedalus ter sido

recriminado publicamente pelo professor, em sala de aula, o jovem católico

irlandês passeava por uma estrada, quando lhe pedem que pare. Quando

Stephen olha para trás, percebe que eram três colegas de sala de aula que

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estavam chamando por ele. Esses colegas caminhavam, comentando sobre

livros, escritores e sobre a quantidade de livros que tinham lido nas casas de

seus pais. Stephen prestava bastante atenção na conversa e percebia que,

entre os colegas, estava o mais ignorante da turma, e o mais bagunceiro da

classe. Depois de conversarem entre eles, um dos colegas perguntou a

Stephen qual seria o melhor escritor que ele havia lido. Stephen indaga sobre

qual seria o tipo de escritor, um romancista ou um poeta? Ele menciona qual

seria o melhor escritor em prosa, em sua opinião, pois percebia a insistência

dos colegas. Em seguida, é indagado sobre o melhor poeta. Stephen responde

qual seria o melhor poeta, quando, de repente, lembra que havia esquecido

dos votos de ficar calado diante dos colegas.

Em face da reposta de Stephen, os três dão uma gargalhada, o poeta

escolhido por Stephen era, na opinião dos demais, sem educação. Stephen

retruca, dizendo que os colegas não sabiam nada de poesia. Assim, começam

a discutir sobre poesia, até que um dos colegas ordena que Stephen seja

agarrado e, imobilizado, é golpeado por um dos colegas com uma bengala. Ele

é agredido pelos colegas até ser arremessado em uma cerca de arame

farpado. Depois disso, obrigam-no, então, a confessar que o autor que ele

escolhera não prestava. Depois de “confessar”, seus algozes correm pela

estrada. Stephen fica sozinho, perguntando-se o motivo de não sentir ódio

pelos colegas que o haviam atormentado. Toma o rumo de sua casa, “rasgado,

afogueado e ofegante... meio cego pelas lágrimas” (JOYCE, 1996, p. 92).

Para Stephen, recordar o fato não lhe causava nenhuma raiva; todas

as idéias de amor e de ódio que havia apreendido nos livros lhe pareciam

inventadas: “he had felt that some power was divesting him of that

suddenwoven anger as easily as a fruit is divested of its soft ripe peel” (JOYCE,

1996, p. 92). Depois de algum tempo, Stephen tenta lembrar de sua própria

fisionomia, mas não consegue: tudo o que acontece são vozes que ouve dentro

de si, vozes de seu pai e de seus formadores, dizendo que ele deveria

continuar sendo um gentleman. Essas vozes, a partir daquele momento,

soariam falsas (JOYCE, 1996).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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As questões que perpassavam esse episódio constituem, para Lacan,

a maneira pela qual Joyce cria um pai para se nomear. Os golpes dos colegas

afetaram Stephen, seu corpo não reage e não extrai dos golpes qualquer gozo

do tipo masoquista.67

Se, em um primeiro momento, Stephen se pergunta por que não havia

guardado rancor ou raiva daqueles que lhe bateram, surgem, em seguida, as

referências de amor e de ódio que havia encontrado nos livros, e que, agora,

lhe pareciam irreais. Nesse ponto, quando toma a surra, a cólera se dissolve e

Stephen não parece amar seu corpo como a si mesmo: suas paixões

narcísicas dissiparam-se e diluíram-se imediatamente. Naquele momento, todo

o afeto teria sido evacuado, como se seu corpo fosse uma casca. Para Lacan,

nessa passagem de Joyce está o signo do imaginário, destacando-se de seu

nó borromeano.

A conclusão lacaniana é que a relação de Joyce com seu corpo não

passa pela imagem. Lacan vê, no relato de Joyce, o signo de que o imaginário,

que traz a noção de corpo, se destaca do real e do simbólico. Surge, aí, um

desprendimento de seu ego com relação ao seu corpo. A construção do corpo

de Joyce passa pelo buraco, sem existir uma relação narcísica com a imagem

do corpo, mas uma relação com o que falta na imagem, fazendo buraco no

corpo. Isso é a relação direta que Joyce estabelece com o objeto. Nesse ponto,

é revelador que Joyce seja o verdadeiro nome da paixão da alma: ele revela

um objeto como um buraco. Para esse objeto, a leitura de Lacan do texto de

Joyce busca aproximar o Pai como quarto nó que amarra o real, o simbólico e

o imaginário. É assim que podemos mudar de geometria, que se pode admitir

deformações topológicas que afetam as linhas e as superfícies, permanecendo

constritas, limitadas por invariantes prescritas pela própria topologia. Sem 67 É importante lembrar que, no primeiro capítulo, trabalhamos as incidências do masoquismo

sobre o sujeito, levando em consideração a ação paterna, no texto de Freud, para a formação psíquica; como demonstramos, a partir dessa ação, surge a culpa. Estas seriam as características do masoquismo moral, longamente trabalhado por Freud, no seu Mal estar na civilização, e no texto O problema econômico do masoquismo. Em seguida, no terceiro capítulo, a partir do conceito de angústia, trouxemos as conseqüências do masoquismo para a angústia. Agora, neste momento do estudo, Lacan parece desenvolver outra perspectiva sobre o masoquismo.

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dúvida, do último ensino de Lacan emerge uma verdade que não é do tipo

sólido, que tampouco é do tipo superfície, e que ele quis que fosse do tipo nó,

tipo que não nos é familiar. Foi porque essa verdade surgiu que o nó se pôs a

ex-sistir. Ele se pôs a existir por um golpe de força de Lacan, que o legitimou

dizendo que esse nó surgia da própria prática analítica.

Não existe aí nenhuma relação com o significante; quando Lacan

recupera a passagem de Joyce, não existe nenhuma ligação com um Outro.

Essa passagem demonstra um gozo com o corpo próprio produzindo um furo.

Esse furo comporta o desaparecimento das ordens dos lugares, ele não é uma

ausência que se faz presente.

Diferentemente do conceito de falta, trabalhado no segundo capítulo,

que implica uma combinatória de lugares e refere-se a um primeiro momento

no ensino de Lacan, o furo implica um desaparecimento da ordem dos lugares,

o desaparecimento do próprio lugar da combinatória. Não é uma falta no Outro,

mas no lugar do Outro, um furo, porque esse Outro ex-siste como o próprio

desaparecimento da combinatória. Lacan traduz a passagem de uma

problemática da dominação para uma do enlaçamento, com as questões

aferentes. Lacan chega a conceber o estatuto topológico de um buraco. Isso

quer dizer que o nó borromeano se inscreve a partir de um buraco que ex-siste

em seu centro. Seria esse enlaçamento, garantido por um elemento

suplementar, um quarto elemento funcionando como o pai do nome, que Lacan

chamou de sinthoma; ou – e esta seria a alternativa – os três são enlaçados

entre eles próprios?

Entretanto, isso ainda é apenas um véu lançado sobre o que constitui a eficácia da linguagem, isto é, sobre o fato de que a linguagem não é, ela mesma, uma mensagem, mas que se sustenta apenas pela função do que chamei de furo no real. (LACAN, 1976/2007, p. 32).

O nó borromeano é um nó ternário, constituído por três círculos de

barbante, que representam, para nós, o real, o imaginário e o simbólico.

Topologicamente, esse nó é formado por vários círculos de barbante, pelo

menos três, atados de tal maneira que, se você soltar um, todos estarão livres.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

269

Quer dizer que nenhum está preso ao outro. Portanto, a particularidade do nó

borromeano, é o próprio atamento, o seu enodamento, o que permite que

Lacan considere, finalmente, essa estrutura dos nós borromeanos como

quaternária: há os três círculos de barbantes e, com o quarto elemento, há o

próprio nó. No primeiro período do ensino, tínhamos, pois, quatro termos: real,

simbólico e imaginário, e um quarto termo, o pai do nome, que enoda o

significante, o sentido e os efeitos de real. Da mesma maneira, no último

período de ensino de Lacan, temos três termos e um quarto. Três termos que

são os três círculos de barbante, absolutamente equivalentes – real, simbólico

e imaginário – e um quarto termo, que é o próprio enodamento. O que muda, é

que não há mais um registro que domine os outros. O nó borromeano é

democrático, poder-se-ia dizer, em seus registros: há três e um enodamento. O

que é muito diferente é que esse enodamento está, ao mesmo tempo, em todo

lugar e em nenhum lugar:

O complexo de Édipo é, como tal, um sintoma. É na medida em que o Nome-do-Pai é também o Pai do Nome, que tudo se sustenta, o que não torna o sintoma menos necessário (LACAN, 1976/2007, p. 23).

Ele não se inscreve em um lugar preciso do nó, ele é a própria

articulação dos três círculos de barbante. Não é mais o Nome-do-pai para

todos, é cada um a seu modo. É com esse nó de quatro termos que Lacan

inventa a formalização que vai tornar-se o sinthoma de Joyce.

A ex-sistência, tornada uma categoria do último ensino de Lacan, é

aquilo de que se qualifica o real. Para enlaçá-lo, o sem-lei responde, agora, ao

fora da ex-sistência. No nó de três termos, Lacan havia reduzido a função do

pai a não ser senão estritamente o enodamento, sem hierarquia de um

significante sobre o resto, de um registro sobre os outros. Com o nó de quatro

termos, ele dá um passo a mais, inscrevendo o sintoma como enodamento,

esse sintoma pode ser o Nome-do-Pai, mas também pode ser outra coisa.

Essa passagem do nó de três termos ao nó de quatro termos consiste em levar

em conta, com relação a esses três registros, a esses três círculos, um quarto

círculo que é o enodamento dos três outros. Este quarto termo é, de fato,

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

270

absolutamente idêntico a todos os outros, exceto que ele nomeia o registro que

enoda. O sintoma é, ao mesmo tempo, o traço particular para o sujeito, a

marca do pai, o traço do gozo singular que escreve o objeto pequeno a, o mais-

de-gozar. Essa passagem do Nome-do-Pai para o pai do nome estabelece a

função de nomeação como o quarto laço, nos três registros.

Figura 6 – Nó borromeano e o ego de Joyce

Fonte: LACAN, 1975-76/2005

O Pai que nomeia o gozo não é um pai do registro do significante,

portanto, não pertence à categoria do inconsciente nem do semblante. Há

diferença entre o Nome-do-Pai e o Pai que nomeia o gozo: o pai é esse quarto

elemento, sem o qual nada é possível no laço do simbólico, do imaginário e do

real. Convém também chamar de outra maneira ao Nome-do-Pai. Lacan faz a

precisão de que o sinthoma é o mais individual que existe para um sujeito,

daqui em diante que o Nome-do-Pai está destinado a nomear, enquanto

sintoma, o mais individual, o mais singular do gozo de um sujeito. Trata-se com

efeito, de um erro,

Não é que o simbólico, o imaginário e o real estes (rotos) o que define a perversão é que são distintos e que tem que supor um quarto; neste caso, o sintoma que tem que supor é o tetrádico. (LACAN 1976/2007, p. 79).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

271

O nó é a própria impossibilidade de os seus anéis se desfazerem sem

desatar a estrutura do nó. O pai, nesse sentido, é um operador estrutural,

porque ele é signo do impossível. Lacan propõe algo que é diferente, essa é a

pai-versão do Pai que é falha, uma falha que tem um estatuto de furo.

Podemos verificar que, desde o Seminário Livro 22: RSI, o real supõe a ex-

sistência, o sinthome, em que este que ex-siste enlaça os três registros em um

nó tetrádico. Lacan retomará a função do pai que enoda o real, o simbólico e o

imaginário, cumprindo, assim, o que denominará uma função-sinthoma. Lacan

liga a função do pai relacionando-a à denominação. Essa função do pai vai

além da castração. O pai passa a ser a causa do sintoma e debilita

consideravelmente aquela função de garantia da Lei. O Pai tem a possibilidade

de enodar os três registros fazendo sinthoma.

O que faz o laço borromeano é a perversão, quer dizer, mais a versão até ao Pai. O Pai é um sintoma, ou um sinthoma, como vocês preferem. A existência do sintoma é que está implicada pela posição mesma no que supõe o laço do Imaginário, do Simbólico e do Real. (LACAN 1976/2007, p. 21).

É para subtrair a pulsação de cada sujeito que se deve assumir esse

desligamento instantâneo. O princípio do amor ao Pai, que foi chamado por

Freud de Édipo, é, para Lacan, o que, nos três registros, se enoda a partir de

um quarto. Nesse ponto, é necessário uma pai-versão, como quarto elemento

no laço. É por isso que, no primeiro capítulo desse seminário, Lacan indica o

sinthome, como o quarto laço que une os outros três elementos superpostos,

esse quarto laço é uma versão do Pai. Lacan continua dizendo que o complexo

de Édipo é um sintoma, na medida em que o Nome-do-Pai se sustenta no pai

do nome.

Esse pai do nome é onde tudo se sustenta. Ele é exatamente um nó, o

próprio negativo da religião, já que o princípio do amor ao pai é a religião cristã,

podendo formar o Nome-do-Pai, que existe precisamente por causa de um furo

produzido pelo amor do pai. Ao fazer um deslocamento do amor ao Pai para o

amor do pai, produz-se o avesso da religião: o pecado do pai.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Desse ponto de vista, falemos de maneira lúcida, esse método recusa o que constitui uma virtude dita teologal. É nesse aspecto que nossa apreensão analítica do que diz respeito ao nó é o negativo da religião. (LACAN, 1976, p. 36).

Mais uma vez, qual seria a melhor maneira de se pensar isso senão a

partir do pecado original. Sabemos que toda a doutrina religiosa cristã se apóia

em torno do pecado original, essa primeira falta que impeliu Adão e Eva para

fora do paraíso. Como estamos desenvolvendo nesta tese, Lacan permite

inferir sempre essa relação entre a psicanálise e a religião, pois, se o complexo

de Édipo nos permite aproximarmo-nos do Nome-do-Pai, neste momento,

podemos aproximar o furo ao pecado/gozo. É importante observar que essa

aproximação entre a psicanálise e a religião se estabelece pela categoria da

falta que antecede ao simbólico (furo). Isso leva Lacan a afirmar que a

apreensão analítica do nó é o negativo da religião.

A partir daí, é importante pensarmos a função desse furo na própria

sustentação da linguagem (Nome-do-Pai). Se o pecado é a fenda aberta para

que a religião possa repousar, pretendemos, mais uma vez, demonstrar as

implicações desse furo a partir do recurso teológico, para trabalharmos a

transmissão do pecado do pai.

O pecado original

Se podemos recuperar o dito de Lacan, de 1976, de que não existem

teorias atéias, ele mesmo assinala que a apreensão analítica do nó é o

negativo da religião. No momento da criação divina, Lacan se lembra do

episódio da gênese como nomeação. Para o psicanalista, Adão não é bem

sucedido ao dar nome a todas as coisas. Existe um momento de fracasso

daquele que nomeia; Adão não pode nomear as bactérias. Lacan, fazendo

alusão ao início de Finnegans Wake, Adão é, agora, Madam.

Je dis qu’il faut supposer tétradique ce qui fait lê lien borroméen – que perversion ne veut dire que version vers le père – q’en somme, le père est un symptôme, ou un sinthome, comme vous voudrez. Poser le lien énigmatique de l’imaginaire, du

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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symbolique et du réel implique ou suppose l’ex-sistence du symptôme. (LACAN, 1976/2005, p. 19).

Logo de início, no seminário de 1976, o que chama a atenção é a grafia

que Lacan utiliza – symptôme –; trata-se de uma antiga forma ortográfica para

sintoma, que ele recupera de Bloch e Wartburg,68 saindo do uso médico do

sintoma. Isso se deve, primeiramente, à interpretação que Lacan faz da

amarração que Joyce constrói para criar esse Pai, não mais enquanto uma

função, mas como suporte. É por isso que o Nome-do-Pai, em Joyce, é

também o Pai do Nome (LACAN, 1975/2005, p. 22), no qual tudo se sustenta

por um nó borromeano a quatro.

Quando Lacan propõe o sinthome, podemos recuperar a origem

etimológica da palavra e apreender o sin – no inglês, pecado –, a mordida do

saber sobre a verdade, como nos ensina a Bíblia; e, de outro lado, o thome, –

na referência grega, thomos, que remete a pedaço dividido, cortado. O

neologismo joyciano da palavra sinse reforça o jogo homofônico de Lacan. O

irlandês brinca com os poderes da palavra, construindo um poema em que as

palavras se fundem para formar uma única palavra, com vários sentidos

possíveis. A criação joyciana da palavra sinse remete tanto à origem (since)

como ao sentido (sense) e, ainda, evoca o pecado (sin). O sinthome remete a

uma grafia do francês antigo. Nos séculos XV e XVI, usavam-se essa grafia

para designar a manifestação de uma etermidade. Ali, por certo, se detecta

essa grafia, depois substituída pela atual.

Nesse sentido, a referência de Lacan para o pecado vem do sin do

inglês, remetendo ao pecado original, à primeira falta, a que expulsou Adão e

Eva do paraíso, um enfoque sempre presente na obra do autor. A gênese, para

Joyce, tem uma marca do pecado, um ponto de inflexão na história bíblica:

Aqui se renova a noção de falta. A falta, cuja consciência constitui o pecado, é da ordem do lapso? O equívoco da palavra é o que permite pensá-lo, passar de um sentido ao

68 No início do texto de Lacan, há uma alusão ao dicionário etimológico de Bloch e von

Warburg para confirmar que o symptôme era escrito sinthome, permitindo a Lacan também aproximar o saint do Sinthome.

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outro. É o que existe na falta, esta falta primeira que Joyce nos põe de manifesto, de tal modo, é da ordem do lapso? O equívoco da palavra é o que nos permite pensá-lo, pensar de um sentido ao outro. O que existe na falta? (LACAN, 1976/2005, p. 94).

Essa falta é a própria redenção que permite evocar o primeiro erro da

criação do mundo por um demiurgo, que tem como única condição o pecado

original. Aqui é importante evocar a força de tal referência bíblica no Seminário

Livro 23: O sinthome. E Lacan chama de “la faute, le sin, donc c’est la

l’avantage de mon sinthome de commencer par là. Ça veut dire en anglais le

péché, la première falte” (LACAN, 1975/2005, p. 13), como um jogo pluri-

idiomático, sin e home, em inglês, que quer dizer “pecado” e “lar”;

respectivamente, se combinam para dar, no inglês, saint'home, homófono do

sinthome, do francês, e, ainda, de saint’homme.69

Se Lacan inicia seu seminário sobre o sinthome com Adão e Eva, ele

problematiza a questão da nomeação nessa passagem do Gênesis. Nesse

ponto, surge a colocação de Lacan de que foram as mulheres que inventaram

a linguagem, “com a serpente elas falam” (LACAN, 1976/2007, p. 13). A

nominação faz aparecer a proibição, o pecado do sintoma. Da nomeação ao

ato de nomear do modo criacionista. Eva torna-se imortal por ter provado do

fruto proibido da sabedoria, uma mulher que faz o sintoma do homem porque

ela faz o pai dar valor sexual às palavras. A transgressão é fundante, a partir

de Eva, quando esta come a maçã, constituindo-se o desejo. Esse ato de

pecado levaria Adão e Eva à expulsão do paraíso, a partir da castração, uma

falta inerente.

M’Adam, é a maneira pela qual Lacan se refere a Adão, é aquele que

dá nome às coisas que existem. Nesse sentido, para Lacan, o desejo do pai

cria o nó borromeano, saindo do uso gramatical do Pai universal para criar o

singular do pai.

69 No conhecido texto de Jacques Lacan, “Télévison”, ele evoca a posição do santo (saint)

como “un saint [...] ne fait la charité. Plutôt se me-il à faire le dechet: il décharite. [...] Le saint est le rebut de la jouissance. [...] Il jouit“ (LACAN, 1974, p. 28).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

275

Com a escritura fundamental se pode criar um Adão. A referência de

Lacan à gênese é de propor uma discussão do gênero quando pergunta se

Adão é, na verdade, um Madam. O psicanalista demonstra a construção do

mito da gênese quando Adão perde uma costela para que Eva fale sua língua.

Toda a língua inventada por Adão para nomear os seres. Mas, imediatamente,

é uma mulher que conversa com ele, conduzindo Adão ao pecado original.

A pecaminosidade é, mais uma vez, a referência desta tese. A visão

lacaniana do Éden de Joyce marca uma outra escansão, pois, segundo o

próprio Lacan, Joyce seria um herético, assim como ele. É no Seminário Livro

22: RSI que Lacan começa a usar de maneira mais elaborada a problemática

do nó e de uma pai-versão. RSI – o Real, o Simbólico e o Imaginário –, em

francês, formam o homófono de hérésie (heresia). Esse caráter herético é a

ação do quarto laço que ata os três registros. É assim, nesse quarto laço, que

Lacan introduz a nominação.

É por isso que, nas questões sobre o Pai, está subtraída a noção de

furo, pois o furo é exatamente o saber servir-se do Pai. O pai passa a ser um

sintoma particular, e a única maneira para que se cumpra a função de pai é a

partir de sua pai-versão. Aí está a questão do Seminário Livro 23: Le sinthome:

o nó como o suporte de James Joyce para essa trilogia do real, do simbólico e

do imaginário.70

A partir de Joyce que se pode fazer amarração desta trilogia, uma vez

que ele faz uma intervenção tomista na mesma, introduzindo um novo laço.

70 As referências lacanianas sobre os nós devem-se aos encontros do psicanalista com o

jovem matemático Valérie Marchand. Essa descoberta do nó borromeano foi acompanhada, para Lacan, de um encontro decisivo com vários jovens matemáticos da mesma geração que Miller e os alunos da ENS. Também eles haviam percorrido um itinerário político de extrema-esquerda. Pierre Soury foi, incontestavelmente, o personagem mais fascinante desse grupo. Eis como ele é apresentado, hoje, pelos que o conheceram: comparando-o a seus contemporâneos e aos sábios e pensadores que o precederam, é fácil perceber que Pierre Soury terá seu lugar na história e será considerado em breve como um gigante da cultura ocidental. O conjunto de sua obra científica e filosófica é tão importante quanto a de Wittgenstein [...]. Soury, por enquanto, só é conhecido pelas mil pessoas que assistiam ao seminário de Lacan de 1975 a 1980, porque Lacan referiu-se a ele umas trinta vezes e o fez falar em seu lugar em duas ou três oportunidades.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Para Lacan, essa ação passa por uma hérésie (heresia). Assim, ele falará de

um pai cujo desejo é causado por uma mulher, mãe de seus filhos.

Para que haja o acontecimento do furo, é necessário que ele preencha

seu fundo de maneira análoga a de um saco. Diferentemente de um furo, no

qual uma reta infinita poderia atravessar sem tocar no fundo, o furo se

assemelha a uma reta euclidiana, que, ao entrar no saco, toca o fundo. Se

retomarmos uma passagem de Lacan no O Seminário Livro 22: R.S.I., ele faz

referência as maneiras de se entender o furo fazendo uma alusão ao Deus da

tradição judaico-cristã:

O Nome-do-Pai é o próprio nó? E o que é um nó? É um furo e uma modulação em torno deste furo. O nome próprio é um furo (como as coisas não têm nome dá-se um nome à ausência da coisa) Os judeus são muito claros para aquilo que chamam de Pai. Eles o colocaram em um ponto de furo que não podemos nem mesmo imaginar – Eu sou aquele que sou, isso é um furo, não? Um furo [...] isso engole e depois cospe. O que isso cospe? O nome, o Pai como nome. (LACAN, RSI, lição de 15 de abril de 1975, inédito).

Esse furo do objeto tem a característica de uma fixação, e é a propósito

dessa ação que ele amarra os três registros; é o encontro com a

impossibilidade que a fixação promove produzindo uma operação estrutural. As

três dimensões são os espaços criados pelo Real, Imaginário e o Simbólico. É

o furo que causa essa articulação entre os três laços, pois, é só a partir das

três dimensões enodadas borromeanamente que é possível a escritura do

objeto a. O Nome-do-Pai seria a própria noção de furo que faz a junção sem a

qual tudo se separa e cai em pedaços. A junção é a própria nomeação que faz

o nó. Mas do que se trata esse Pai? Como é promovida a questão do furo? Se,

para esse pai, teríamos de estar próximos do dizer, não existe melhor maneira

de demonstrar isso senão a partir do Pai de Moíses. Isto é, a dimensão

espacial é criada pelo dito. Essa questão pode começar a ser pensada a partir

de RSI, quando Lacan comenta que

Um pai só tem direito ao respeito, senão ao amor, se o-dito amor, o-dito respeito, estiver, vocês não vão acreditar em suas orelhas, pai-vertidamente orientadas, isto é, feito de uma

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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mulher, objeto pequeno a que causa seu desejo, mas, o que essa mulher em pequeno a escolhe, se me posso exprimir assim, nada tem a ver na questão. Do que ela se ocupa é de outro objeto pequeno a minúsculo, que são seus filhos, junto a quem o pai intervém, excepcionalmente, no bom caso, para manter na repressão no justo semi-Deus, se me permitem, a versão que lhe é própria de sua pai-versão. A única garantia de uma função de pai, que é a sua função, a função de sintoma tal como escrevi ali. Para isto, basta aí que ele seja um modelo de função. Aí está o que deve ser um pai, na medida em que só pode ser exceção. Ele só pode ser o modelo da função realizando o tipo. Pouco importa que ele tenha sintomas, se acrescenta aí o da perversão paternal, isto é, que a causa seja uma mulher que ele adquiriu para lhe fazer filhos, e que com estes, queira ou não, ele tem cuidado paternal. A normalidade não é a virtude paterna por excelência, mas só o justo semi-Deus dito há pouco, ou seja, o justo não dizer, naturalmente a condição de que não esteja costurado com linha branca, esse não dizer, isto é, que não se veja de imediato do que se trata naquilo que ele não diz. (LACAN, RSI, aula de 21 de janeiro de 1975).

É nesse seminário que Lacan cria um outro estatuto para o pai. A

função do pai passa a ser orientada pela mulher. Nesse ponto, trata do pai

enquanto Homem, e da mãe enquanto Mulher. O respeito não é mais o amor

ao Pai, como postulava Freud, mas já não se trata do amor ao significante

primordial, senão que o respeito ocorrerá por uma possibilidade de amor do

pai, pelo pai que possa possuir uma causa, a do amor por uma Mulher. O pai,

então, cumpre a função de sintoma, quando orienta seu desejo por uma

Mulher.

Vocês verão que uma mulher na vida de um homem é alguma coisa na qual ele acredita. Ele acredita que há uma delas, por vezes, duas ou três, e é muito interessante – ele não pode acreditar apenas em uma, ele acredita numa espécie (RSI, Lacan 21 janeiro 1975).

O pai desperta seu desejo por uma mulher fazendo dela o objeto a que

causa seu desejo. O dizer do pai está além de qualquer significação, esse dizer

é a libido. Um objeto que sustenta o Imaginário, o Real e o Simbólico. O desejo

de um pai por uma mulher transforma o desejo por ela em uma particularidade

(LACAN, 1976/2005, p. 19). A pai-versão é um caso particular de uma exceção,

e ela só é possível na função de sintoma, pois a função de sintoma é homóloga

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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à função do pai. O pai crê na sua mulher e os filhos crêem na sua palavra.

Assim, uma mulher pode perfeitamente dar um filho a seu marido que seja filho

de um outro, daquele justamente que ela queria que fosse o pai. Que qualquer

modo, foi por causa disto que ela quis ter um filho (LACAN, 1970/1992, p. 120)

Nesse ponto, Lacan faz do Nome-do-Pai um valor de uso, uma

ferramenta, a pai-versão é a garantia de nomear a função de um sintoma que

se dirige a um Outro. É exatamente nesse ponto que saímos de um Pai da

hermenêutica para um Pai do pragmatismo. O que quer dizer que Lacan parte

do transcendental e cede ao pragmatismo. Lacan, em seu Seminário Livro 20:

Mais ainda, ao reduzir os termos primordiais (Nome-do-Pai, falo, Outro) a

serem conectores, parte do transcendental de um Nome-do-Pai ao

pragmatismo. Anteriormente, tais termos eram tidos como transcendentais, por

condicionarem a experiência, por serem uma dimensão autônoma prévia à

experiência. Como conseqüência, tais termos passam a ser da ordem do

contingente. Ou seja, não são fixos. O Nome-do–Pai aparece como semblant,

na medida em que funciona como conector dos registros RSI. O Falo, que até

então era o significante da negatividade, torna-se um valor positivo, como

“gozo fálico”. Essas modificações relacionam-se ao conceito de suplência, o

que vem a dar uma nova fundamentação à teoria lacaniana de sujeito e todos

os desdobramentos a que isso conduz.

Há uma inversão de perspectiva ao se priorizar a prática. Passa-se de

uma estrutura transcendental a uma pragmática. A topologia é uma pragmática,

por ser pura mostração. É necessário praticar os nós para que haja um acordo

entre os três registros. O fazer, ou melhor, saber fazer aí, se sobrepõe ao saber

a priori como condicionante da experiência.

Nesse sentido, a referência do Seminário Livro 22: RSI implica que os

três aros soltos definem a pai-versão, pois esta configura uma versão do pai e,

ao mesmo tempo, uma versão para o pai: um pai que falha quando deseja uma

mulher. Um pai que não impõe apenas a norma, mas que introduz um não-

dizer, com a condição de que esse não dizer não seja transparente.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Figura 7 – Nó borromeano

Fonte: LACAN, 1975-76/2005

Quando não se pode mais ligar um registro em superioridade com

outro, Lacan propõe que os três registros estejam enodados. Podemos

perceber, aqui, que o Nome-do-Pai ocupa essa função de enodamento, porém,

como estamos demonstrando, ele não será mais um significante. Se, por um

lado, temos o nome do pai como uma instância reguladora e sedante, por

outro, na versão do pai, não sucede o mesmo. No nó borromeano como tal, o

furo é o que caracteriza propriamente o simbólico; a ex-sistência é o traço do

real, e é na consistência que se reconhece o imaginário. Cada um dos três é

afeito a cada uma das argolas, mas essa tripartição se encontra do mesmo

modo em cada elemento que se deixa assim decompor: furo, ex-sistência e

consistência.

É de fato aí que jaz o que incita ao erro de pensar que esse nó seja uma norma para a relação de três funções que só existem uma para outra em seu exercício no ser que, ao fazer nó, julga ser homem. A perversão não é definida porque o simbólico, o imaginário e o real estão rompidos, mas, sim porque eles já são distintos, de modo que é preciso supor um quarto nó que, nessa ocasião, é o sinthoma. Digo que é preciso supor tetrádico o que faz o laço borromeano – perversão quer dizer apenas versão em direção ao pai –, em suma, o pai é um sintoma, ou um sinthoma, se quiserem. (LACAN, 1976/2007 p. 21).

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Logo na primeira lição, Lacan pergunta com que os três registros

podem se enodar; seria uma questão de lógica, não há enodamento apenas

com os três arcos. É nesse contexto que Lacan propõe pensar um quarto

elemento que seria a pai-versão. Nessa lição, Lacan nos indica que o quarto

elemento viria do pai. Imediatamente depois dessa construção, Lacan continua

dizendo que o complexo de Édipo é um sistema, e que tudo se sustenta na

medida em que o Nome-do-Pai é o Pai do nome.

Em um momento seguinte, na lição “Joyce o sintoma”, Lacan propõe

novamente o pai como quarto elemento no enlaçamento, na medida em que

tudo se sustenta quando o nome-do-pai se transforma naquilo que nomeia, a

saber, o pai do nome. Isso quer dizer que tudo se sustenta na medida em que

o nome do pai é também o pai do nome. Desse modo, podemos perceber, com

Lacan, que todo pai é sinthome, mas nem todo sinthome é pai. Isso é o que

nos permite a matriz da posição da ex-sistência, que designa, sempre, quando

evocamos, uma vez que essa posição é correlativa à inexistência do Outro.

Se Lacan valoriza a ex-sistência, é porque se inscreve a partir do Outro

que não existe. Da tese – esta é uma – da inexistência do Outro, resulta a

necessidade de propor uma ex-sistência. O Outro obedece a uma lei de

relatividade, a mesma expressa pela fórmula segundo a qual um significante só

vale em relação a outro significante.

Não é por acaso que tem uma homofonia aproximando-se da pai-

versão – père-version. Esse pai possui um lugar que falta, um lugar que

incomoda, longe do Nome-do-Pai que regula os códigos coletivos.

Para isso, Lacan chama a atenção para o fato de que Joyce, em

momento algum, está preocupado em render honras ao seu pai – situação que

implicaria uma dívida simbólica –, mas está preocupado em construir um nome.

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Figura 8 – Nó borromeano e a nomeação

Fonte: LACAN, 1975-76/2005.

Lacan demonstra a dimensão indissociável entre nome e escrita, em

Joyce. Com a escrita, Joyce cria um nome, ou seja, durante duzentos anos, ele

ocupa os universitários que se dedicam a um trabalho exegético de seu texto.

A escrita de Joyce é um ato de nomeação que cumpre a função de ocupar

aquele que lê seus escritos. Lacan utiliza a nomeação71 para elaborar os

efeitos dos arranjos da nodulação entre um nome e sua escrita. O autor

irlandês, quando cria um nome próprio, não se sustenta mais a partir do Nome-

do-Pai. A criação do quarto nó é a maneira pela qual Joyce amarra os

registros, prescindindo do Nome-do-Pai.

A função que cumpre esse quarto nó, como aponta Lacan, é uma

versão sobre o pai que falha. Para isso, Paul Claudel, parafraseado por Lacan,

diz: “se o desejo tivesse que cessar com Deus, eh! Invejar-se-ia o inferno?”, e o

próprio Lacan responde: “o desejo do homem é o inferno”, o que traz à tona a

questão da pai-versão, da versão do desejo do pai que está pai-versamente

orientado. Nesse sentido, o quarto nó seria uma reparação sintomática para a

falha estrutural do aforismo lacaniano: “não há relação sexual”.

71 Nomination, no Dictionnaire de l'Académie Française, é definido como “ação de nomear

alguém a um emprego, a um cargo, a uma dignidade”; o verbo nommer assegura como acepção: “dar, impor a um ser ou coisa um nome próprio ou comum que o designa individualmente; designar, escolher para uma função, um posto dado”.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Lacan marca a disjunção entre gozo e Outro. Disso decorre que o gozo

é, fundamentalmente, Um (Uno). O paradigma da não existência da relação

sexual toma como fato a evidência: “há gozo”. Uma definição que relaciona o

gozo unicamente ao corpo vivo. Nesse sentido, é necessário evocar a primeira

lição do Seminário Livro 20: Mais ainda. A substância gozante, “aquilo de que

se goza”. A partir daí, implica-se a disjunção entre o gozo e o Outro. Goza-se

sem o Outro. Essa disjunção é a não-relação. Tudo que é do gozo é gozo Um,

quer dizer, sem o Outro. Todo gozo efetivo, gozo material, é gozo Um. Esse é o

gozo do próprio corpo: é sempre o próprio corpo que goza. O gozo sexual é

sempre gozo, o gozo do corpo do outro sexo, especificado por uma disjunção e

por uma não-relação. O gozo como tal não estabelece relação com o Outro.

A partir desse ponto, podemos demonstrar que Lacan busca articular

em novos termos a relação entre a demanda de amor dirigida ao pai. No

Seminário Livro 23: Le sinthome, Lacan retoma o mito freudiano relativo ao

amor ao pai; nesse momento, não se trata mais do pai simbólico, senão do pai

real. É como se o pai legal mascarasse o ilegal. Essa outra versão do Pai é seu

gozo.

As referências lacanianas sobre a questão do pai fazem eco nos

estudos freudianos sobre o mesmo tema. Freud já estava a par desse desejo

do pai quando analisava um pintor que havia substituído a figura paterna por

um demônio: “E como a experiência o demonstra, não é desses traços que

depende o gozo do corpo, no que ele simboliza o Outro” (LACAN, 1972/1982,

p. 131).

Freud escreve o texto Uma neurose demoníaca do século XVII

tomando como base manuscritos dos séculos XVII e XVIII: o Trophaeum

Marianoecellense (Troféu de Mariazell). Nesse texto, Freud interpreta a

melancolia depressiva do pintor Christoph Haizmann, a partir da narrativa do

artista sobre uma possessão demoníaca. Esse caso apresenta, à maneira de

Freud, o lugar do diabo numa tradição judaico-cristã, lugar que é aproximado à

figura de Deus.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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O caso se baseia num manuscrito originário de Mariazell – lugar de

peregrinação próximo de Viena –, onde havia um pacto escrito com o diabo.

Isso acontece quando esse pintor, depois da morte de seu pai, passa a ser

vítima de uma depressão que o impede de pintar, levando-o a fazer um pacto

com o Diabo. Esse pacto faz o pintor prometer-se ao diabo, colocando-o como

substituto do pai amado. Ou seja, Christoph Haizmann, em um pacto por

escrito, se compromete a entregar-se de corpo e alma ao Diabo. No entanto,

quando o tempo desse pacto se aproxima dos nove anos do prometido, o pintor

procura os monges para o libertarem do demônio. Depois de passar um

período em penitência e oração, em um convento, o Diabo retorna, sob a forma

de um dragão alado, entregando o pacto de volta para o pintor.

Nesse caso de demonologia, Freud encontra dados importantes,

examinando o pacto estabelecido com o Diabo, procurando encontrar a

suposição que sustenta esse pacto. Para ele, o pintor não havia estabelecido

um pacto em torno do dinheiro, da beleza e de prazeres sexuais; diversamente,

esse pacto girava em torno do estado melancólico em que o pintor encontrou-

se depois da morte de seu Pai. O ponto para o qual Freud chama a atenção,

em Uma neurose demoníaca do séc. XVII, é o fato de o pintor ter feito um

pacto com o demônio para ser seu filho obediente. Freud deduz que a

melancolia em que se consome o pintor está relacionada com a morte do pai, e

é sua depressão que leva a afirmar o pacto com o diabo, esperando, desse

modo, ver-se livre dela.

O falecimento do pai fizera com que Haizmann perdesse a capacidade

de trabalhar e sucumbisse à melancolia. No entanto, se conseguisse um

substituto para o pai morto, poderia conquistar o que perdera. O demônio entra

como um substituto paterno, tendo em troca a alma do pintor.

Para Freud, esse fato é devido a uma inversão do pacto, ocorrendo

justamente depois da morte do pai do pintor, que deseja ter o demônio como

um pai dedicado. Freud lembra que as religiões carregam marcas do pai

primevo quando vivo, um ser de maldade infinita, mais semelhante ao demônio

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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do que com Deus. Esse amor pelo pai poderia produzir um demônio como

substituto paterno, senão a partir daquilo que é o próprio pecado do pai?

A cólera do espírito do pai cai sem misericórdia sobre Christoph

Haizmann, seja como restrições – inibições no trabalho, para ganhar seu

sustento, seja como terror. Tudo isso se configura clinicamente em suas

manifestações físicas: desmaios, convulsões, vômitos. A sua invenção de criar

um pacto com o Diabo demonstra a intrusão do pior do pai. A transmissão do

luto pela morte do pai está suspensa, ele parece não chorar o pai, mas,

lamentar a desproteção em que seu pai o deixou.

Freud atribui esse padecimento a uma degradação do pai, após sua

morte, e à hostilidade contra si mesmo por essa degradação, que se expressa

na mortificação à qual está submetido pelo demônio.

Quando Christoph se torna órfão de pai, fica a mercê tanto dos

prazeres mundanos quanto dos desejos incestuosos. As referências nas suas

pinturas e as demandas à virgem não deixam dúvidas do estrito enlace com

sua mãe, substituído pelo laço com seu pai. Essa relação com o pai transitará.

em Christoph Haizmann. através da atração do gozo sádico do pai, a partir de

fantasias eróticas de apanhar essa grotesca versão, com que o pintor procura

substituir o pai. O desenho de um diabo feminilizado, com um par de grandes

peitos, revela sua luta e seu abatimento, ao mesmo tempo em que denuncia o

lugar de impotência em que coloca o seu pai.

É obvio que Christoph Haizmann aspirava pactuar. Um pacto implica a

garantia de ter lugar no desejo do Outro, um pacto garante uma segurança do

existir a partir da fantasia. Mas, Christoph Haizmann fica preso à pai-versão

desse pai, sem tratá-lo no campo do ideal. Se fica com o pior, é porque não

pode se sustentar como filho-homem no mundo. Essas imagens, comentadas a

partir do texto de Freud, demonstram isso. É nessa linha que Lacan caminha

para o que há de mais-de-gozar.

Os lugares dessa thomenagem [thommage] demarcam-se por dar sentido ao semblant – através dele, o da verdade de que não há relação –, por dar sentido a um gozo que vem supri-la,

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ou até ao produto de seu complexo, ao efeito chamado (por feito meu) de mais-de-gozar. (LACAN, 2001/2003, p. 460).

Na sexta lição do Seminário Livro 23: Le sinthome, está a expressão

“mulher-sintoma” e “homem-devastação”. Essa é a referência de Lacan para

compreendermos que ser a mulher de um homem pode designar uma que foi

eleita como o invólucro no qual ele goza. A mulher pode, assim, fixar o gozo do

homem. O gozo fálico. É nesse ponto que podemos pesquisar se o conceito de

homem está articulado ao pecado, quer dizer, ao seu pecado. Vamos, agora,

perceber como o quarto elemento, que se agrega ao real, ao simbólico e ao

imaginário, mantém unidos a partir da supressão de um enodamento.

Há pecado porque não há relação sexual

Vimos que, do ponto de vista da posição masculina, é mais difícil dar

conta do que seria o desejo de um filho. A questão que Lacan responde, sem

formular, é: como os homens podem querer ter filhos? Como um homem pode

querer ser pai? Ele responde a isso pela pai-versão. Um homem quer ser pai

se o seu desejo é pérè-versamente orientado. A partir daí, Lacan vai explicar o

que é ser pérèversamente orientado: “é fazer de uma mulher objeto-causa de

seu desejo”. Um desejo pérèversamente orientado, condição de amor para um

pai, é um desejo orientado em direção a um objeto a. Pai-versão: fazer de uma

mulher objeto-causa de seu desejo. O que isso quer dizer? Lacan diz que o

que essa “uma mulher”, no lugar de objeto a, acolhe não tem nada a ver com a

questão. Um homem coloca uma mulher na posição de objeto a, mas os

objetos a dessa mulher não têm nada a ver com o caso. Isso diz respeito ao

que uma mulher toma como objeto a. Ele acrescenta que ela se ocupa dos

seus objetos, que são seus filhos. Há uma dissimetria. Uma mulher está em

posição de objeto a para um homem, enquanto os filhos estão em posição de

objeto a para uma mulher, ou seja, não há relação. Cada um tem sua

orientação.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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A maneira com que Lacan aborda essa construção do pecado do pai,

sua pai-versão, se encontra nas fórmulas de sexuação do Seminário Livro 20:

Mais ainda. O minucioso trabalho de Lacan sobre as fórmulas de sexuação se

encontra em uma lógica para a castração baseada no axioma: não há relação

sexual. Se a pai-versão faz suplência, essa suplência surge porque é um nome

do amor: “aquilo que dá suplência à relação sexual é precisamente o amor”

(LACAN, 1975, p. 44).

Nesse ponto, será importante verificarmos os desdobramentos do amor

de um Pai a uma Mulher. O amor que, a partir do pensamento de Lacan,

permite a transmissão de algo entre as duas realidades distintas do sexo. É o

amor de um pai pela mulher, sua pai-versão como suplência, uma transmissão

entre os dois lados disjuntos da sexuação.

A pai-versão irá transmitir algo da ordem libidinal do desejo, implicando

a questão amorosa como desvinculada de qualquer laço social (LACAN,

1973/1993, p. 71). Lacan parece estabelecer um registro do amor, juntamente

com o laço social. Isso fica sob a responsabilidade do pai, pelo fato de se ter

defrontado com a castração, ao saber o que fazer com um gozo da Mulher. O

pai sai, aqui, da universalidade e aponta para a a singularidadedo gozo d’A

Mulher. O além do Édipo é inseparável do Homem saber responder ao gozo

d’A Mulher. Se a mulher pode responder a partir do gozo fálico, é pelo fato de

ela ser não-toda. Relendo a primeira lição do Seminário Livro 20: Mais ainda,

podemos detectar o esforço de Lacan em colocar o gozo feminino no lugar de

não-toda.

O gozo – gozo do corpo do Outro – resta, ele, uma questão, porque a resposta que ele pode constituir não é necessária. Isto vai mesmo mais longe. Não é nem mesmo uma resposta suficiente, porque o amor demanda amor. Ele não deixa de demandá-lo. Ele o demanda mais ainda. Mais ainda, é o nome próprio dessa falha onde, no Outro, parte a demanda de amor (LACAN, 1972/1990, p. 13).

Nesse momento, subsite o amor e o respeito. É o amor que permite ao

gozo condescender ao desejo. É a partir desse ponto que Lacan chama a

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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atenção para a idéia de Mulher e Mãe, sendo as distinções de Lacan em torno

d’A Mulher marcadas pela noção de não-toda.

Se não temos mais o falo preso a um significante, que determina a

questão da transmissão, teríamos agora o gozo fálico. Aí está um pai, sendo a

exceção que aponta seu desejo e seu gozo, e, ao mesmo tempo, o interdita.

Esse pai real interdita o engodo entre a mãe e o filho, mas não de maneira

transparente, pois ele tem seu desejo colocado em outro lugar – em uma

mulher. A partir daí, podemos recuperar o quadro da sexuação para

demonstrar o axioma da inexistência da relação sexual. Não há, no simbólico,

um significante que permita escrever a correspondência entre os sexos. Se a

relação sexual não existe no simbólico, ela ex-siste sobre a forma de sintoma.

O sintoma passa, então, a ser a resposta real à inexistência da relação sexual

no simbólico. Há algo que não se completa no campo do sexual, algo que não

é coordenado pela significação fálica. Não existe simetria entre os sexos. O

que existe é o gozo do corpo do macho e da fêmea.

O feminino passa a ser uma versão da pai-versão do pai. É o cerne do

não-todo feminino que traz como conseqüência a castração do macho.

O homem que aborda a mulher, que, na verdade, acredita que a aborda, somente aborda a causa de seu desejo, que designei com o nome do objeto a. O ato de amor é isso: a perversão polimorfa do macho. (LACAN, 1972/1985, p. 98).

Quando um homem aborda uma mulher, ele põe em jogo a fantasia.

Se, na primeira versão sobre o pai, como vimos no segundo capítulo, a partir

de são Paulo, o pai proíbe ao filho, objeto de seu desejo, unindo o desejo com

a Lei. A conseqüência disso é o desejo pelo proibido – o pecado –, ainda na

versão edipiana. Não mais no campo do Édipo, mas no além do Édipo, a única

coisa que se pode transmitir é o pai com relação ao gozo fálico – o homem

goza com o não-toda da mulher.

A partir daí, o pai corresponde à função de exceção que culmina com a

fórmula da sexuação. No lado esquerdo do grafo da sexuação abaixo é

colocada a questão dos universais e das existências. Nesse seminário, a

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castração não depende da linguagem, mas ela decorre da existência do “ao

menos um” que nega a função. É necessário que haja um pai que não seja

castrado para que todos o sejam. Se o pai do Édipo transmite a lei, teríamos,

com o pai das fórmulas da sexuação, a experiência da castração. É a partir daí

que podemos começar a compreender a alusão de Lacan de que não existe

um Outro do Outro. Na medida em que todos são castrados, é que um não é.

Figura 9 – Grafo da sexuação

Fonte: LACAN, 1972/1985, p. 103

O que o quadro acima mostra, na parte de cima, do lado direito, “lado

homem”, e do lado esquerdo, “lado mulher”, é a posição do ser sexuado. Do

lado homem: para que todos os homens estejam no registro da função fálica, é

necessário que pelo menos um não seja castrado. A razão de um homem estar

no campo da exeção faz surgir todos os outros homens castrados, isto é, existe

um homem que escapou à castração. Se os homens constituem um conjunto

universal de todos os homens submetidos à castração, só um homem subtrai-

se a ela: o pai da horda, isto é, o pai simbólico. Fabricando um alógrafo, Lacan

chamava de hommoinzin (au moins un) [homenosum (ao menos um)], esse pai

encarregado de instituir a fantasia de um gozo absoluto a partir do qual se

podia ordenar para todos os outros (homens) o lugar de uma proibição. É

necessária uma exceção para caracterizar a ordem do lado homem. O pai que

goza de todas as mulheres está no lugar da exceção:

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Existe um x que não está submetido à castração: o pai da horda que

goza de todas as mulheres. Essa exceção funda o universal: todos os sujeitos

estão submetidos à castração: todos os irmãos estão sujeitos à castração. A

função de exceção – representada por meio do quantificador lógico –

correspondente às fórmulas da sexuação – e a função de nomeação, ambas

referidas ao Pai, tomam sua referência do gozo. A exceção designa o gozo do

Pai primordial ou Pai real, exercendo função de castração sobre o resto do

conjunto submetido à significação fálica, enquanto a função de nomeação

concerne, de preferência, ao gozo do ser falante que tem o cargo de nomear o

gozo a partir do pai do nome:

Como pensar isso do lado das mulheres? Sabemos que o lado

esquerdo das fórmulas se refere ao masculino, e o direito, ao feminino. Do lado

feminino, parte-se de uma inexistência: não existe um sujeito que não esteja

submetido à castração:

O fundante para as mulheres não é o universal nem a exceção, mas a

inexistência de um sujeito que não haja passado pela castração. Isso mostra

que a mulher não está inteiramente inscrita na função fálica: ela é não-toda

inscrita nessa função. Lacan propõe o par: todo/não-toda, colocando a negação

nesse matema, e diz que a mulher é não-toda inscrita na ordem fálica.

Sendo assim, as mulheres fazem existir o amor ao pai desde uma

posição de gozo (não-toda inscrita na função fálica). Nelas, o amor está unido

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ao gozo. Em sua demanda de amor, há um retorno desse excesso, sob as

formas de estrago existentes nas relações entre mulheres e homens. No caso

das mulheres, não haveria uma que faz exceção, pois ela é não-toda na

função, podendo passar de um lugar para o outro. Dessa forma, não existe o

sujeito que está totalmente submetido à lei fálica, pois não há uma exceção

que caracterize esse grupo. Cada mulher, particularmente, está dividida entre

uma parte que é a função fálica e outra parte que não traz o registro fálico; as

mulheres são contadas uma por uma. Para as mulheres, dizia Lacan, não

existe limite ao gozo. Em conseqüência, a mulher, no sentido do universal, ou

da “natureza feminina”, não existe, surgindo a fórmula: “A mulher não existe”,

ou, ainda: “A mulher é não-toda”. Quanto ao gozo feminino, ele se define por

ser um gozo “suplementar”. Desse modo, esse paradigma está essencialmente

fundado na não-relação, ou seja, na disjunção: na disjunção entre o gozo e o

Outro e na disjunção entre o homem e a mulher. Na fórmula: “não há relação

sexual”. O conceito de linguagem é reduzido a semblante, assim como a

palavra ao gozo. A conseqüência desse deslocamento da palavra ao gozo é a

não-relação. Há uma disjunção entre significante e significado. Nas palavras de

Lacan:

esse só tem a ver, enquanto parceiro, com o objeto a inscrito do outro lado da barra. Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual, que é o Outro, por intermédio disto, de ele ser a causa de seu desejo. A este título, como o indico alhures em meus gráficos, a conjunção apontada desse e desse a, isto não é outra coisa senão fantasia, (LACAN, 1975/1985, p. 75).

A seta que sai de um lado para o Outro é a maneira com que o homem

coloca a mulher em sua fantasia para a realização do ato sexual. A mulher é

sempre um outro para o homem, que ultrapassa os limites do homem pelo viés

da Lei.

É a partir daí que podemos verificar que Lacan, no Seminário. Livro 20:

Mais ainda, oferece uma abordagem para a posição feminina para além do

gozo fálico: instaura-se, aí, o gozo feminino. Diferentemente de Freud, que

aponta a posição feminina a partir do viés fálico, Lacan propõe a questão da

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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feminilidade como um gozo a mais. Essa é uma abordagem que converge para

a noção de objeto de gozo do Outro; o gozo feminino é um gozo que parasita

aquele outro, que é o gozo da linguagem, o gozo fálico, o gozo do pai.

No Seminário Livro 20: Mais ainda, investiga um gozo que não pode se

escrever na linguagem, “não cessa de não se escrever”. Para Lacan, conforme

as teses apresentadas nesse seminário, paralelamente às investigações sobre

a sexualidade feminina, na trilha que o leva a situar o gozo para além da

dimensão fálica, haveria algo situado na experiência mística, uma vez que “é

na medida em que seu gozo é radicalmente Outro que a mulher tem mais

relação com Deus” (LACAN 1975/1985, p. 103).

Existiria, para tal experiência, para que se possa atingir o mais além do

ser, onde Deus se esconde, a necessidade de um vazio de imagens e

palavras, remetendo à definição dos míticos, proposta por Lacan, como

aqueles que “experimentam a idéia de que deve haver gozo que esteja mais

além” (LACAN, 1975/1985, p. 102). De fato, como assinala Lacan,

Não há na mulher senão excluída pela natureza das coisas que á a natureza das palavras [...] se ela está excluída pela natureza das coisas é justamente pelo fato de que, por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar. (LACAN 1975/1985, p. 99).

A saída mística é o encontro com o inominável. A mulher não-toda

demonstra o impossível que está fora da linguagem, colocando-se na posição

de objeto de gozo do Outro. É essa a experiência de um gozo suplementar,

fora da articulação significante, um gozo que as mulheres experimentam e que

elas não sabem. Esse acesso que o feminino tem com relação a outro gozo é o

acesso a uma satisfação infinita.

Mais do que se colocar na posição de objeto de desejo do Outro, é

consentir que esse gozo, que está nas mulheres e nos místicos, como santa

Tereza d´Ávila e san Juan de la Cruz, se organize a partir deste tipo de

subjetivação: colocar-se na posição de objeto para o Deus, a figura do grande

Outro. Cabe, aqui, ressaltar que a experiência mística possui uma relação com

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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esse gozo. O gozo fora da significação fálica, a que Lacan chamou de gozo

feminino:

Esse gozo que se experimenta e do qual não se sabe nada, não é ele o que nos coloca na vida da ex-sistência? E por que não interpretar uma face do Outro, a face Deus, como suportada pelo gozo feminino? (LACAN, 1975/1985, p. 103).

Situado no mesmo plano do gozo feminino, Lacan interroga a

experiência mística, “Do que gozam os místicos?”, “eles gozam e o

experimentam”, concorda Lacan, “mas não sabem nada dele” (LACAN

1975/1985, p. 103). Situada no mesmo plano do gozo feminino, no seu caráter

de transbordamento em relação aos limites impostos pela palavra, a

experiência mística viria indicar um modo particular de acesso a Deus, como é

possível notar no seguinte poema de san Juan de la Cruz, “Canciones de la

alma”, cujo eu poético assume a voz feminina:

En mina noche oscura/con ansias en amores inflamada/ dichosa ventura/salí sin ser notada/ estando ya mi casa sosegada/Oh noche, que guiaste! /O noche amable mas que la alborada!/Oh noche que juntaste amado con amada,/amada en amado transformada.

Em relação ao sexual, só existe esse falo. Ou seja, um sexo não entra

em relação com o Outro do sexo oposto por outro meio que não pela fantasia,

pois não há relação sexual. Ocorre que o pai faz da mulher seu objeto de

desejo e de seu gozo, e ela, assim, consente em colocar-se no gozo fálico do

macho. Isso inscreve a fêmea, de um lado, como mãe, e, de outro, como

mulher. Ela, a mulher, é o gozo de seus filhos e do homem que faz dela seu

sintoma. Desse modo, do lado da sexuação, o gozo se inscreve como sintoma.

Assim, a pai-versão é o fazer da mulher um sintoma. Já não é mais uma clínica

com o sintoma codificado a partir da cadeia significante, mas sim do parceiro

sintoma. A Mulher como sintoma, sem saber, vai revelar algo do gozo do

sujeito. Uma mulher pode ser o sintoma para o homem. A mulher é aquela que

pode consentir em ser objeto de gozo para o homem. O Pai passa a ser uma

versão da função de sintoma, e o acento está posto para a Mulher. É aí que a

função sintoma passa a ser função de laço social, uma função de enodamento

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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que permite aplicar o gozo no laço social. Isso quer dizer que o sintoma do pai

permite um enodamento entre os parceiros. O dizer do pai trará

conseqüências.

Na parte inferior do gráfico, o homem teria o a enquanto condição de

gozo, para que haja sua fantasia. A partir desse esclarecimento, vemos que o

termo principal que delimita o lado masculino é o falo. O lado homem só pode

buscar no lado mulher aquilo que ele acredita ser a sua complementaridade,

um objeto que esteja de alguma maneira marcado pelo falo. No campo do

homem, ele marca a mulher com o objeto fálico.

Podemos verificar, assim, que a fantasia é o nome da única flecha que

religa os dois lados, tendo como origem o lado masculino. Ao observar o

sentido das flechas apresentadas no quadro em questão, podemos considerar

que a fantasia é a única forma de acesso ao lado feminino, partindo do lado

masculino. Que a fantasia permita o acesso ao lado mulher não implica que o

sujeito possa ter acesso ao Outro, no lado oposto, pois, com o que é pertinente

ao Outro, ele se relaciona apenas com o que se extrai, o objeto a. Visto que

não há relação entre os dois lados, o objeto a vai suplementar a ausência de

relação sexual. Segundo Lacan: “do lado do homem, é que aquilo com o que

ele tem a ver, é com o objeto a, e que toda a sua realização quanto à relação

sexual termina na fantasia” (LACAN, 1975/1985, p. 80).

O não haver relação sexual não implica que não haja relação com o

sexo. É justamente isso que a castração demonstra, porém, não mais que essa

relação com o sexo não seja distinta em cada metade, pelo fato mesmo de

separá-las.

A menos que o homem esteja perversamente orientando seu desejo

em relação a uma mulher, essa relação se completa, uma vez que ela, a

mulher, ocupa o lugar de a, causa de desejo desse homem. O que torna o

corpo de uma mulher desejável para um homem é o lugar em que o homem

coloca a mulher, lugar de causa do desejo. O homem recorta a mulher. Existe

uma voz/um olhar, no corpo da mulher, que seduz o homem, que causa o

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desejo do homem. A condição desse desejo do pai é a sua causa. Para um

homem, a imagem de uma mulher é o suporte desse objeto a, e isso quer dizer

de sua fantasia. Ou seja, isso seria representado por uma parte do corpo da

mulher, uma parte do imaginário que funciona como suporte de seu corpo. No

que concerne à relação sexual, cabe dizer que a relação não se estabelece

entre os parceiros, mas sim entre objetos que não são os mesmos. Quando

Lacan afirma que não há relação sexual, é porque o objeto da fantasia do

homem é que faz o real do sexo existir.

Assim, a partir de março de 1972, Lacan pôs-se a construir um matema

da identidade sexual, fazendo entrar no quadrado lógico de Apuleio, ou seja, as

fórmulas da sexuação. Surgem proposições estabelecidas. A primeira: “Todos

os homens têm o falo”. Na segunda, dita universal negativa: “Nenhuma mulher

tem o falo”. Constata-se que as duas fórmulas servem para definir a identidade

feminina, de um lado, e a identidade masculina, de outro. É por isso que Lacan

indicava o lugar de um impasse: não pode haver complementaridade num

domínio no qual sempre reina a diferença. É assim que a ausência de

complementaridade entre os dois modos da identidade sexual pode ser

traduzida, por Lacan, da seguinte forma: “Não há relação sexual” (LACAN

1975/1985, p. 53).

Concluindo, ser Pai é, então, ter a perversão particular de colocar a

mulher no lugar de objeto, isto é, colocar a mulher como causa de seu desejo.

Mas, diferentemente de um fetichista, que coloca um objeto no lugar para

substituir a mãe, Lacan diz que o Pai coloca a mulher para produzir um desejo

particular. Para que um homem possa ocupar esse lugar, ele deve fazer da

mulher seu objeto de desejo, seu sintoma. É necessário que ele saiba fazer,

com a mulher, um sintoma que os una, tornando-se, então, um parceiro-

sintoma.

O ato de amor. Fazer o amor, como o nome o indica, é poesia. Mas há um mundo entre a poesia e o ato. O ato de amor é a perversão polimorfa do macho, isto entre os seres falantes. Não há nada de mais seguro, de mais coerente, de mais estrito quanto ao discurso freudiano. (LACAN, 1972/1982, p. 98).

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A fala do pai não é um dito completo, mas ela deve valer-se de um

meio-dizer, daí sua relação com o dito. Para que haja esse meio-dito, Lacan vai

situar o pai no lugar do meio-deus. Esse lugar que o pai ocupa é um lugar do

entre-lugar, não mais um lugar de Pai morto, mas, pelo contrário, de um pai

que deve saber fazer algo com o lugar que ele ocupa. O pai que nomeia o gozo

é o Pai real, o pai que pode fazer de uma mulher o objeto-causa de seu desejo,

um pai “perversamente orientado”:

É impossível a verdade tornar-se um produto do savoir faire? Mas, ela então será apenas meio-dita, e encarnando-se em um significante de índice 1, ali onde é preciso pelo menos dois para que assim, apareça a única A-Mulher – mítica, no sentido de que o mito faz singular. (LACAN, 1976/2007, p. 14).

É aqui que o homem crê na sua mulher, pelo viés de seu sintoma. O

objeto de causa do desejo de um homem por uma mulher é um recorte de seu

corpo, ou seja, um objeto de fetiche. Nesse ponto, o homem faz a relação

sexual existir, quando ele cria uma mulher, pelo seu sintoma, como objeto de

gozo para sua fantasia.

A mixórdia é insuperável, pelo que nela se salienta da castração, dos desfilamentos por onde o amor se alimenta do incesto, da função do pai, ou do mito em que o Édipo é reduplicado pela comédia do Pai-Orango, do perorante Otango [Père-Orang, du pérorant Outang]. É sabido que, por dez anos, me esperei para fazer num jardim à francesa dessas vias a que Freud foi o primeiro a saber aderir em seu desenho, embora, no entanto, o que elas têm de tortuoso sempre tivesse sido assinalável para quem quisesse desfazer suas dúvidas quanto ao que supre a relação sexual. (LACAN, 2001/2003, p. 457).

Nesse sentido, “ao menos para o homem” (LACAN, 1975/1985, p. 108)

a verdade é a Mulher e, isso não tem nada a ver com o desejo que seja

masculino. Pelo contrário, o desejo não é nem masculino nem feminino; antes,

encarna o lado Mulher para o desejo masculino. Isso quer dizer que essa é a

maneira masculina de fazer com que não haja a relação sexual.

Para Lacan, diferentemente do que é para Freud, Deus não surge a

partir do interdito, mas Deus é o nome da relação sexual que não existe. Então,

nesse momento, Lacan não fala o que apontava Freud. Ele procura a

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genealogia de Deus a partir do gozo, que, para Freud, é um gozo interditado.

Desse modo, Lacan procura uma genealogia de Deus a partir do gozo

interditado. Ou seja, não é o gozo a ser interditado que traz a experiência

divina; é, sim, a não relação sexual.

Sabemos que Lacan coloca que o falo é um significante e que funciona

por identificação; é o que chama de identificação fálica. No Seminário 20, diz

que o essencial não é que o falo seja um significante, mas que seja gozo. Dizer

que o gozo é fálico é dizer que “não se relaciona com o Outro como tal”. Há

uma passagem do gozo como proibido para a inexistência de uma escritura

para o gozo (Furo). A castração visaria ao rechaço do gozo (fálico) para aceder

à lei do desejo. Dito de outra forma, não há, no simbólico, um significante que

permita escrever a correspondência entre os sexos. Se a relação sexual não

existe no simbólico, ela ex-siste sob a forma de sintoma. O sintoma passa,

então, a ser a resposta real à inexistência da relação sexual no simbólico. “Não

gozarás como um idiota”, é a fórmula canônica que impõe a exigência de ir até

o Outro para gozar. É um modo imperativo no nível do gozo fálico.

Dessa vez, precisa Lacan: “Dizer que uma mulher é não-toda, é o que

o mito nos indica, que ela seja a única para quem o gozo supera aquele do

coito”. Eis aqui que chega a tese do feminino como “suplemento” do masculino,

e não como seu “complemento”. Porém, a mulher deve passar pelo homem

que, ao mesmo tempo, está a seu serviço.

O parceiro objeto a, o que é A-Mulher para um homem, não é o sujeito,

nem a imagem, nem o falo, mas um objeto extraído do corpo do sujeito. A partir

daí, Lacan elaborou o parceiro essencial, que o conduziu ao parceiro-sintoma.

Lacan institui, de modo definitivo, o campo do Outro face ao sujeito,

representado por um conjunto.

Encontra-se, aí, a parceria entre o sujeito e o Outro, o que equivale a

dizer que o sujeito tem essencialmente como parceiro no Outro, o objeto a.

Lacan formulou a conseqüência da não representação através da assertiva

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“não há relação sexual”, o que significa dizer que o parceiro essencial do

sujeito é o objeto a, essa invenção lacaniana.

Para isso, Lacan cria um neologismo, diz-mensão, com o que se

introduz um equívoco e um deslizamento de sentido, criando uma relação

diferente entre o dito e a dimensão espacial. Se, para esse pai, teríamos de

estar próximos do dizer, não existe melhor maneira de demonstrar isso senão a

partir do Pai de Moisés. Isto é, a dimensão espacial é criada pelo dito:

Assim é que o dito não vai sem o dizer. Mas, se o dito sempre se coloca como verdade, nem que seja nunca ultrapassando um meio-dito (como me expresso eu), o dizer só se emparelha com ele por lhe ex-sistir, isto é, por não ser da diz-mensao [dit-mension] da verdade. (LACAN, 2001/2003, p. 451).

Lacan, no seu último ensino, privilegia a satisfação da linguagem, o

significante não apenas mortifica o corpo, mas tem, também, uma maneira

própria de satisfação: “o gozo de que se trata, por isso mesmo, não é apenas o

gozo do corpo, é também o gozo da linguagem, na medida em que o sujeito

tem um corpo” (MILLER 1998, p. 101).

Trata-se de uma relação do pai com o filho que não é mais definida

pelo Nome-do-Pai. Não é uma definição a partir do significante, é uma

definição a partir do gozo e do mais além do gozo. Uma análise destaca essa

contingência e, se há essa contingência, é porque, de maneira correlata, algo

não está necessariamente inscrito. O parceiro, na condição de parceiro sexual,

jamais está prescrito, ou seja, programado. Nesse sentido, o Outro sexual não

existe em relação ao mais-de-gozar. Daí que o eixo dessa segunda clínica de

Lacan poderia ser a separação do sentido e do Real. E seria devido a essa

antinomia entre Real e sentido que, no ensino de Lacan, a questão do sintoma

tenha se tornado uma prioridade, pois, se o real exclui completamente o

sentido, o sintoma é uma exceção.

O parceiro verdadeiramente essencial é o parceiro de gozo, o próprio

mais-de-gozar. Lacan diz, no Seminário Livro 20: Mais ainda, que é o

“encontro, no parceiro, dos sintomas e dos afetos de tudo que marca em cada

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um o rastro de seu exílio da relação sexual” o que provoca o amor, o que

permite vestir o mais-de-gozar com uma pessoa. Trata-se de uma nova

doutrina: a do amor que não passa apenas pelo narcisismo. Nessa trilha, o

amor passaria pela existência do inconsciente, o que supõe que o sujeito

perceba, no parceiro, o tipo de saber que nele responde à não-relação sexual,

ou seja, supõe a percepção, no parceiro, do sintoma que ele elaborou em

razão da não-relação sexual. O parceiro do sujeito, então, não é o Outro, mas

sim o que vem substituí-lo sob a forma de causa do desejo, concepção radical

do parceiro que faz da sexualidade uma vestimenta do mais-de-gozar. O amor

é o que permite fazer mediação entre os Uns do gozo solitário para fazer existir

o inconsciente como Outro, efeito que Lacan situa no final de seu seminário Os

não-tolos erram: “Quem não está enamorado de seu inconsciente erra”.

Quando o Pai cumpre a função sintoma do amor por uma Mulher, ele poderá

gozar de seu inconsciente. O fato de o Homem escolher uma Mulher vai

evidenciá-lo em sua condição de gozo. Nesse ponto, esse é um pai carregado

de gozo, que Lacan irá designar como Sinthome; essa nova definição da

função do pai coloca o sintoma como função de gozo.

Nesse sentido, é importante saber que a teoria da sedução, do começo

da psicanálise, nunca perdeu completamente a atualidade. Ao contrário, ela

contém uma insuperável parte de verdade, na medida em que as fantasias das

crianças, que põem em cena as tentativas de sedução oriundas de seus pais,

correspondem à sua posição efetiva no desejo destes.

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Conclusão O pecado do Pai

Em uma carta à Gardiner, de 1927, quando Freud comenta a questão

colocada por seu colega sobre como o próprio Freud se via como psicanalista,

ele escreve:

Eu estou contente que você me colocou esta questão, porque, para ser franco, os problemas terapêuticos não me interessam muito, atualmente eu estou muito impaciente, eu sofro de certa impaciência que me impede de ser um grande analista, entre outras coisas, porque eu sou muito pai. (FREUD, 1927).

Freud reconheceu sua posição no movimento psicanalítico e Lacan

interpreta que o desejo de Freud é o fundamento da instituição que ele mesmo

criou. O desejo de salvar o Pai é o sintoma que Freud não analisou: o culto ao

Pai. Foi esse trajeto que esta tese procurou percorrer. Sabemos que, para

chegar nesse caminho, começamos a demonstrar a importância do discurso

freudiano para a compreensão da sexualidade humana.

Depois de Freud, a sexualidade não é mais da ordem do instinto. Se

fosse, as relações entre homens e mulheres se reduziriam à multiplicidade do

encontro com o macho e a fêmea, no reino animal, ou entre o espermatozóide

e o óvulo, na ordem biológica. No início do primeiro capítulo, pudemos apontar

que a sexualidade humana está articulada com a perversão-polimorfa.

Com efeito, o discurso freudiano torna delicado o uso dos termos

homem e mulher. Nesse sentido, apontamos que Freud constrói as teses do

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complexo de castração e do complexo de Édipo, juntamente com a primazia do

“phallus”. Ambas as teses passam a ocupar um lugar central na psicanálise,

passando todos os estados da sexualidade e da identificação a se articular com

o phallus.

De todas as maneiras, os impasses de Freud não impediram o

vienense de manter a primazia do phallus a partir do desenvolvimento da libido.

Assim, o complexo de Édipo designa esse processo de transformação

imaginária da sexualidade fálica, única e idêntica para os dois sexos; em duas

posições subjetivas diferentes, homens e mulheres, permanencem organizados

pela libido fálica. Freud formula que a sexualidade masculina se organiza com

o temor à castração, que produz a relação dos homens com as mulheres, sob a

forma de horror ou repugnância. Para as mulheres, a sexualidade se organiza

em torno do Penisneid, e a relação com os homens se demonstra sobre a

forma de reinvidicação e ódio.

Para isso, percorremos os pressupostos freudianos sobre a

identificação, demonstrando que os afetos de amor e de ódio são

desdobramentos do temor à castração do filho. Verificarmos que o filho tem o

pai como amor, como garantia da castração. O sujeito deseja a morte do pai e

o salva, o faz existir em todas as direções da cura. Isso sob a idéia de que o

pai proíbe; logo, é o sujeito que está em falta, porque deseja a morte do pai.

Finalmente, com seus artigos sobre a religião, Freud desenvolve a noção de

pai como Deus-Pai: Deus é sempre pai. Trabalhamos uma primeira

interpretação do mito Totem e tabu para demonstrar que o amor ao Pai traz a

crença nesse Pai. As questões sobre a identificação foram aplicadas a partir do

texto Psicologia das massas e análise do Eu, a fim de verificar as vicissitudes

dos afetos de amor e ódio, juntamente com a idealização ao Pai e a comunhão

desse amor ao Pai entre os filhos. Nesse texto de 1921, Freud trabalha a

identificação do filho com o Pai a partir do amor, ou seja, a garantia do filho é o

amor ao Pai.

O ponto central desse primeiro capítulo foi, então, o fato de que Freud

salva o Pai. Ele salva o Pai ideal. A teoria de Freud tem essa perspectiva, e é

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dessa perspectiva que ele dirige o tratamento. Tomamos exemplos clínicos – o

pequeno Hans e a neurose obsessiva do Homem dos Ratos – para mostrar

que essa perspectiva freudiana responde à clínica. Assim, o preço pago pelo

amor ao Pai, para salvar o Pai, é a renúncia à pulsão. Vimos isso através do

supereu subjetivado pelo ódio. Ou seja, quanto mais se sustenta esse amor ao

Pai, mais aumenta a severidade do supereu. Eis o paradoxo, a outra face de

salvar o Pai é o supereu.

Em um segundo momento desta tese, reatando a identidade da

sexualidade como libido fálica, Lacan retorna a Freud com um esclarecimento

do conceito de phallus, a partir do Nome-do-Pai, e uma diferenciação da ordem

imaginária e da ordem simbólica no seu estádio do espelho. Com efeito, o

esforço de Lacan em trazer o phallus para a ordem do Nome-do-Pai trata de

uma função como imagem negativa na imagem especular. De maneira

bastante particular, Lacan faz uma justaposição entre o Nome-do-Pai, o

phallus, e a castração. Desse modo, na ordem simbólica, o phallus não é uma

imagem, mas um significante. A partir daí, a função simbólica do falo é definida

por Lacan como função de castração; isso quer dizer, como sacrifício de gozo.

Essa é a função da falta, cujo símbolo é o phallus.

O argumento que sustenta esse momento da tese gira em torno de

uma crítica da autonomia do “moi”, sustentada pela descrição e relação da

função de desconhecimento na Verneinung (negação). Por outro lado, a

subsistência do Pai se faz possível a partir do consentimento ou aceitação de

Bejahung, a afirmação do significante operando o Nome-do-Pai. Lacan utilizou

a relacão binária do desejo com a demanda para demonstrar a relação do filho

com o pai, para introduzir o lugar do Édipo. As advertências de Lacan foram

demonstradas pela tese de que é o Nome-do-Pai que ordena os registros da

castração. Para demonstrar as características desse Pai, fizemos uma incursão

na herança religiosa desse termo utilizado por Lacan. Na formulação lacaniana,

pudemos demonstrar o resgate genealógico de tal termo da tradição cristã. A

tradição cristã aponta para a relação do filho com Deus-Pai a partir do Nome-

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do-Pai. Nesse sentido, se produz um filho que pode testemunhar em Nome-do-

Pai, verificando que o phallus surge como o significante forcluído do sujeito.

Assim, se operou uma distinção essencial ao logo do ensino de Lacan.

O pai que introduziu o Nome-do-Pai é uma das primeiras indicações de Lacan

nesta tese. O Nome-do-Pai serve como articulador do desejo com a Lei. Esse

momento traz o pai no lugar de uma exceção, como o Pai morto.

Tecnicamente, a metáfora paterna – Nome-do-Pai – corresponde à metonímia

do gozo. Para reconhecer esse processo, demonstramos que isso só é

possível porque esse Pai está morto. A partir daí, com o Pai morto, surge um

significante que foi elidido do sujeito.

A função fálica, então, se define pela castração. Essa operação leva a

pulsão a substituir o instinto pela demanda do Outro. Somente existe

sexualidade e desejo se estiverem organizados pelo complexo de castração,

cujo operador, no nível simbólico, é o Nome-do-Pai.

Essa constatação propõe pensar a sexualidade a partir da função fálica

como castração simbólica. Essa castração é a operação do Pai morto, que

produz o enodamento do desejo com a Lei. Para isso, fizemos uso do recurso

teológico, pudemos demonstrar, a partir de são Paulo, que só há pecado

(desejo) porque há Lei. Nesse sentido, Lacan põe em evidência as vertentes da

demanda de amor e desejo para a forclusão simbólica que a falta suscitou.

Surge, então, o sujeito de crença.

Partimos, daí, da demanda de amor e do desejo do filho como uma

suplência da experiência da falta simbólica. A ambivalência freudiana se

sustenta na falta lacaniana, pois sabemos que a tradição cristã aposta mais do

que qualquer outra no poder da imagem. Lacan sustenta que a primazia do

simbólico permite a universalização da função de castração. O discurso da

ciência é a universalização da forclusão do sujeito. Trata-se, então, de uma

verdade que foi forcluída. O sujeito passa a supor um saber no Outro – a

Teologia de um Deus ao qual se supõe um saber. Na vertente do amor e,

seguindo a mesma linha, com a religião do amor ao Pai, se desdobram

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303

posições de testemunho do filho com o Pai. Essa referência serve para verificar

que Cristo é sumo pontíficie. A religião cristã é a que melhor representa a

prática do testemunho. Nesse caso, a análise parte da paixão do neurótico por

ter um Outro consistente, de fazê-lo existir, o filho crê religiosamente no Nome-

do-Pai.

Para esse Deus-Pai, Lacan demonstra que a repetição entra em

equilíbrio com o sujeito suposto saber – sujeito do qual o saber foi elidido. Todo

esse percurso serviu para demonstrar que o filho testemunha em Nome-do-Pai

a partir do sacrifício, um sacrifício que envolve um pacto – esse laço do Pai

com as marcas masoquistas do filho. Se, no filho, encontramos o masoquismo,

isso se deve à característica masoquista da pulsão de repetição. O

masoquismo, para Freud, seria a marca mais primitiva do registro erótico dessa

pulsão. Esse sacrifício do filho em Nome-do-Pai foi assim subjetivado pelo

masoquismo.

A partir daí, demonstramos que Freud e Lacan esbarram em uma

impossibilidade ao construírem um saber sobre a repetição. As construções

sobre a repetição mostraram-se como um limite de representação, o que pode

ser percebido nas transferências negativas, na análise terminável ou

interminável, no masoquismo originário, nas fantasias reflexivas e nas

construções das análises. Levando em consideração esse ponto,

demonstramos que essas construções tocam no limite do impossível.

Aí, pudemos apontar que Lacan cria um lugar para pensarmos a

repetição. A angústia passou a ser o caminho para o que não deixa de se

repetir. As diretrizes lacanianas sobre o afeto da angústia seriam o divisor de

águas para se traçar um novo saber sobre a identificação do filho ao Pai, que,

até então, se permitia aproximar do sujeito suposto saber.

Se o presente trabalho iniciou-se a partir de uma tentativa de abordar o

Pai do campo do imaginário (amor e ódio), em seguida, pela via do simbólico

(Nome-do-Pai como o significante da excessão), estávamos próximos de um

pai que segue os pressupostos de sua falibilidade no real. Daí, no final do

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

304

Seminário Livro 10: A angústia, Lacan fará um deslocamento do Édipo para o

objeto pequeno a. Nesse ponto, o autor da teoria do significante faz referência

direta a um Pai que ex-siste à palavra. A angústia passa a ocupar um lugar

conceitual e clínico; nessa altura, extraímos um lugar para o objeto a. É por

isso que trabalhamos o afeto da angústia, tomando-a como via de acesso para

o objeto a. Pudemos verificar, então, que a angústia lacaniana está entre o

desejo e o gozo, levando-nos a nos afastar de um Pai amor, na medida em que

nos aproximamos da via do gozo.

A angústia demonstra que há uma dimensão distinta daquilo que

podemos encontrar como a via do amor. Na vertente da angústia, aparece a

disjunção entre o gozo e o desejo. Se a primeira hipótese da tese poderia

imaginar que o S de A barrado, S (A) é a experiência da falta redutível ao

significante – esta é, pelo menos, o caminho para o fenômeno de transferência,

em que se supõe um saber do Outro. No Seminário Livro 10: A angústia,

estaríamos no estatuto da falta topológica irredutível ao significante.

Nesse ponto, percebemos que o objeto a é tratado como uma estrutura

distinta do significante. É por isso que, nesse mesmo seminário, começamos a

remontar a lista freudiana dos objetos que estavam limitados e ordenados pela

castração. A lista lacaniana adiciona o olhar e a voz, determinando as zonas

erógenas sobre os orifícios do corpo. É aqui que buscamos mostrar os

desdobramentos desse objeto voz, que faz a união do gozo com o desejo do

Outro. Por isso é que Lacan se viu levado a detalhar as separações

anatômicas do objeto, ou melhor, as separações anatômicas dos objetos

tomados pelo corpo. Não há castração a não ser a separação do corpo dos

órgãos. Esses objetos são separados do corpo porque antecedem à castração,

ação que produz algo que resta – o pedaço do carneiro que subsiste; seu chifre

que será utilizado como instrumento: o shofar. Esse instrumento milenar

transmite o gozo do pai para o filho. É nesse ponto que terminamos o terceiro

capítulo e procuramos dar continuidade à discussão no quarto capítulo.

Começamos a verificar os desdobramentos dessa transmissão no campo do

gozo.

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305

Pudemos afirmar, então, que estávamos iniciando a desconstrução do

Pai. Partimos da virada operada por Lacan, na direção de um além do Édipo e

da pluralização dos nomes do Pai. No final do Seminário 10, Lacan desemboca

num questionamento do Pai, anunciando o tema do seminário seguinte: os

Nomes do Pai.

A partir desse seminário, verificamos que Lacan explicita vários nomes

do Deus judaico: são os Nomes do pai – estes são outros deuses, que se

congelam a partir do saber. Fizemos, então, um resgate genealógico da

tradição do Pai judaico. Diferentemente dos Deus dos filósofos, Lacan procura,

na referência judaica, um não-saber. A parábola de Abraão traz uma

emergência angustiante, e, aí, pudemos localizar a passagem para o pai da

castração, recuperando da tradição judaica, o sentido do Deus de Abraão,

Isaac e Jacó.

Também em Moisés e o monoteísmo, seguindo o caminho de sua

tradição, pudemos encontrar um questionamento de Freud sobre o lugar do

pai. Freud não mais aborda a religião e suas implicações como correlatas ao

complexo de Édipo, contrapondo a tradição e a transmissão presente na

religião judaica. Para isso, Freud irá pensar a questão da mensagem

monoteísta no judaísmo. O objeto de pesquisa de Freud girava em torno de

uma interrrogação: como se funda uma tradição e como se pode transmiti-la?

O que importa à tradição monoteísta, segundo Freud, deve-se à eficácia da

mensagem monoteísta a partir da duplicidade da figura de Moisés: Moisés

egípcio e o Moisés midianita. Freud divide Moisés. Essa referência faz eco à

conhecida passagem bíblica de Moisés diante da sarça ardente; a fala

tautológica do pai traz seu desejo na cena da relação com o filho: “eu sou

aquele que sou”. O pai, agora, demanda, a castração do pai passa a ser a

condição do filho.

Ser pai como agente da castração significa dizer que o acesso

escolhido por Lacan para a questão do pai foi a singularização de um por um

dos que se tornaram pais. Para definir um pai, Lacan propõe as versões do pai

como pai-versão. Lacan, então, reformula o laço sexual. Ele propõe pensar que

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

306

o sexual faz buraco no saber a partir do “eu sou aquele que sou” judaico. A

principal referência deste trabalho é a alusão de Lacan à Kierkegaard, feita em

1964, no seu Seminário Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da

psicanálise:

Pai, não vês que estou queimando? Do que é que ele queima? – senão do que vemos desenhar-se em outros pontos designados pela topologia freudiana – do peso dos pecados do pai, que carrega o fantasma no mito de Hamet com que Freud duplicou o mito de Édipo. O pai, o Nome-do-Pai, sustenta a estrutura do desejo com a lei – mas a herança do pai é aquilo que nos designa Kierkegaard, é seu pecado. (LACAN, 1973, p. 43).

Buscamos demonstrar, então, o percurso de Sören Kierkegaard, sobre

a noção de pecado a partir da angústia. No livro do filósofo dinamarquês, O

conceito de angústia, a relação entre o pecado e a angústia é interpretada

justamente pelo fato de a questão se colocar no campo teológico. Esse

caminho traçado pelo filósofo tem como referência capital os mitos bíblicos de

Adão e Eva.

E foi justamente porque o pecado original não podia pertencer a

nenhum campo do saber – nenhuma ciência daria conta de acomodá-lo –, que

Kierkegaard procurou, na angústia, a única via de acesso para abordá-lo. A

partir desse ponto, o presente trabalho buscou dissertar sobre as relações

possíveis entre a questão da angústia e do pecado original na obra do filósofo

dinamarquês.

É nesse sentido que devemos pensar a importância clínica da angústia

para Lacan. Diferentemente do medo, como sabemos, a angústia não é sem

objeto. Para Kierkegaard, a falibilidade da figura do pai teria como máxima

expressão o pecado que engendra o pecado. Assim, o pecado do pai é a

condição do filho. A partir daí ficamos muito mais próximos do pecado do que

da Lei, como trabalhamos antes, a partir das reflexões paulinas, pois, depois do

primeiro pecado, uma fenda se abriu para que outros pecados se

singularizassem entre os homens.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Todo esse trabalho era para mostrar a crítica de Lacan à idéia de um

pai que merece amor. Na primeira parte desta tese, nos aproximamos do Pai

amor, tendo como referência a metáfora cristã do Pai. Em seguida, chegamos

a um pai que traz as referências judaicas, pois, como demonstramos, no

Seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan opera

uma passagem do Pai ao objeto pequeno a. Em seguida, no Seminário 17: O

avesso da psicanálise, o pai real é o operador da castração. Lacan faz uma

passagem do Édipo ao Totem e tabu. Para Lacan, o Édipo é um sonho de

Freud, e o pai passa a ser um operador estrutural, porque ele é signo de uma

impossibilidade. Tal impossibilidade é o que faz furo entre o saber e a verdade.

Para trabalhar isso, demonstramos que o pai real se aproxima do afeto da

ignorância. Diferentemente dos afetos de amor e ódio, esse afeto é o único que

se relaciona com o saber. Lacan faz referência a esses afetos para dizer que

saber e verdade não andam juntos. Isso se deve à proposta lacaniana de

pensar em um pai que não pode testemunhar a partir da crença em seu nome.

Lacan se serve disso no momento em que procura, na lógica, os

instrumentos de uma escrita que lhe permita aproximar-se do real como

impossível. É, pois, no momento em que pensava o real com o “não há relação

sexual”, que Lacan introduz a função fálica pela via de uma função em que o

gozo se liga à linguagem.

Nesse sentido, produzimos uma mudança em relação ao pai. A

existência se fundava pelo particular, pela maneira particular com que um pai

transmite o Nome-do-Pai. Ou seja, o Nome-do-Pai é uma função universal,

mas é através do particular que um pai pode ou não transmitir o Nome-do-Pai.

Aqui, encontramos a exceção: é na exceção singular que se funda o Nome-do-

Pai, um a um. O pai nunca será um universal. A função fálica é universal, mas

tal função precisa estar encarnada pelo gozo fálico de um pai para uma Mulher.

Para tornar-se pai, precisa colocar uma mulher no lugar de objeto a, causa de

seu desejo. Um pai que pode se confrontar com o gozo feminino – com o gozo

do Outro. Se, antes, tínhamos a Lei para produzir o pecado, esse pai do último

ensino de Lacan é mais pecado do que Lei. Assim, as determinações sobre os

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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desdobramentos do conceito de Lacan foram elucidadas ao redor do conceito

de pai-sintoma. Esse caminho foi lido a partir da pai-versão e da mulher como

causa de desejo, fazendo surgir um deslocamento do simbólico do sintoma

para o real do sintoma.

É esse pai real que funda o universal: todos os irmãos estão

submetidos à castração. O segredo do pai é sua castração. Há uma passagem

ao mais além do Édipo, uma passagem da proibição ao impossível.

Finalmente, concluímos que, no mais além do Édipo, não partimos mais da

oposição particular/universal, mas sim da necessidade de uma exceção

singular que exemplifica a exceção. Logo, o objeto interditado pela Lei é um

objeto visado pelo desejo, é precisamente isso que Lacan irá subverter. Ele vai

des-solidarizar o objeto como objeto-causa do desejo, da interdição, da lei, a

fim de comprovar que não é a interdição que engendra a operação do desejo,

mas sim que o objeto a, como causa, é responsável pelo desejo.

Com um longo desenvolvimento sobre as transformações do conceito

de sintoma, pudemos articular o primeiro momento da tese a partir do sintoma

como metáfora, e, em seguida, o sintoma como gozo. Com efeito, o sintoma

como função de gozo é um conceito tardio. Podemos lembrar que os caminhos

desta tese conduzem para a articulação do sintoma como metáfora, a partir do

Nome-do-Pai, coordenado pelo complexo de Édipo e pela castração, surgindo

o nó do desejo com a Lei, até o sintoma como gozo, trazendo a dimensão de

engodo do sintoma; num segundo tempo, pudemos chegar ao pai que fixa o

gozo desse sintoma.

Assim, Lacan dirá que o pai é um sinthoma, um enodamento do real,

do imaginário e do simbólico. O pai não está nem no laço imaginário, nem no

laço real, tampouco no laço simbólico: ele é o quarto laço que enoda esses três

registros. Esse sinthome do pai é a sua pai-versão. O pai passa a ser julgado

pelo que faz com seu gozo, a partir da impossibilidade da relação sexual

inscrever-se no campo dos significantes.

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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Como vimos nesta tese, Lacan dedicou todo o seminário do ano 1975-

76 a um comentário sobre o sinthome, explorando também as possibilidades

homofônicas do termo: sin (o pecado), homme ou bome (home rule, lei de

autonomia nos combates pela independência irlandesa) e, enfim, saint Thomas

[são Tomás de Aquino]. Em são Tomás, trabalhamos uma teoria da criação

que derivava da claritas, isto é, da terceira qualidade do belo, segundo a qual o

objeto revela sua essência ao tornar-se a coisa mesma. Essa é a revelação do

real de um pai ou, como foi trabalhado, do encontro do inconscinete com o real.

É o personagem Stephen Dedalus, de James Joyce, que enuncia essa tese da

criação, já chamada por Joyce epifania (aparição), desde seus primeiros

escritos. A epifania é definida como uma “súbita manifestação espiritual”, que

se traduz pela vulgaridade da fala ou do gesto, ou então por alguma “frase

memorável do espírito mesmo”. Na perspectiva de Lacan, a epifania toma o

nome de sinthome, ou, ainda, é referida como “esplendor do ser”. Joyce era,

portanto, designado por seu sintoma, transformado em sinthome. Dito de outro

modo, seu nome confundia-se com essa teoria da epifania, que ele fizera sua,

e que consistia em situar a criação num reino do êxtase místico, separado do

tempo. Nesse sentido, o pai não é mais a falta que o Nome-do-Pai, inerente à

linguagem, suscitou, mas ele é o furo que é signo de uma impossibilidade que

amarra os outros três registos: o real, o imaginário e o simbólico. O gozo fálico

se separa do Nome-do-Pai.

Por meio desse gozo, Lacan cria a pai-versão como busca para a

geometria borromeana. Lacan integrou o sinthome à nova problemática dos

nós. Num primeiro momento, esforçou-se em construir um vínculo tetrádico,

isto é, “atar borromeanamente a quatro”; esse quarto nó é a pai-versão, ou,

como esta tese demonstrou: o pecado de um pai.

Assim, last, but not least, esta tese apontou que teríamos, na versão do

pai do Édipo, um pai que transmite a lei. Seguindo essa versão, se quisermos

pôr a prova o declínio do Nome-do-Pai, devemos buscar, na relação do

Homem com a Mulher, o sintoma do pai. Os signos do declínio do Nome-do-Pai

devem ser buscados na vertente do gozo. Essa vertente é o pecado de cada

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O PECADO DO PAI Pedro Teixeira Castilho

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pai. O pecado original é, como sabemos, um resgate à origem, presente no

Gênesis. Se a religião buscou tamponar o pecado da origem, por outro lado,

ela começou a crer nesse Pai. Isso se deve ao fato de o pecado ser o avesso

da religião. As imagens da crença em um Pai se desdobram em um Pai amor.

É por isso que esta tese buscou os caminhos contrários de um amor ao Pai.

Nesse ponto, há um pai que escapa às questões dos ideais que seu amor

suscita, aproximando da sua castração como gozo libidinal.

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VOCABULAIRE DE THEOLOGIE BIBLIQUE, publicado sob a direcao de Xavier Leon-Deufour, Jean Duplacy, Augustin George, Pierre Grelot, Jacques Guiliet, Marc-Francois Lacan, Paris, Ed. du Cerf, 1971. [O primeiro livro foi publicado, em portugues, com a seguinte referência: Xavier Leon-Dupour e outros. Vocabulario de teologia bíblica, Rio de Janeiro: Vozes, 1972.].