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O peacebuilding do Brasil na África e no Haiti: uma alternativa à paz liberal, ou só maquiagem?*
RESUMO Apontar as falhas da “paz liberal” tem se tornado um esporte popular no mundo acadêmico, mas pouco se fez ainda para indicar como estas pertinentes críticas poderiam ser operacionalizadas na atuação das operações de paz in loco. Este artigo analisa os esforços de peacebuilding de uma potência emergente para a qual esta atividade constitui um elemento-chave de seu perfil internacional, que tem gerado fortes ataques ao paradigma liberal dominante: o Brasil. O Brasil criticou fortemente tanto as intervenções ocidentais calcadas na responsabilidade de proteger quanto os preceitos liberais subjacentes à prática das operações de paz da ONU, e seus representantes sublinham a originalidade e o excepcionalismo de seu próprio incipiente paradigma de construção da paz. O artigo relaciona exemplos concretos de experiências brasileiras de peacebuilding no Haiti e na África com elementos correspondentes da “paz liberal”. Deste modo, identificam-se tanto elementos na atuação brasileira que reproduzem os modos da paz liberal, quanto outros que constituem o fundamento de um desafio verdadeiramente inovador ao paradigma vigente nas operações de paz.
Kai Michael Kenkel Institutode Relações Internacionais
PontifíciaUniversidade Católica do Rio de Janeiro
4o Encontro Nacional da Associação Brasileira de Relações Internacionais,
Belo Horizonte, 23-26 de julho de 2013
* O autor agradece a generosidade de Mariana Alves da Cunha Kalil, que traduziu o presente texto e melhorou seu conteúdo com seus perceptivos comentários. Eventuais erros são de minha responsabilidade.
1
O Brasil é a sexta maior economia mundial, abriga a maior população
afrodescendente fora do continente africano, com o qual possui fortes laços históricos
e culturais, e tem ocupado continuamente, no Haiti, uma posição de liderança em uma
das maiores operações de paz das Nações Unidas (ONU). Todavia, enquanto
permanecem ausentes certas condições muito específicas que ensejariam maior
ampliação de ganhos políticos, no que tange suas vantagens comparativas no
peacebuilding, a tendência de maior participação do Brasil no continente africano não
parece, no entanto, traduzir-se em um aumento de sua participação em operações de
paz naquela região. 1 A política externa brasileira atualmente está vivendo uma
transição, de uma cultura regional de segurança que interpreta de maneira restritaa
não-intervenção rumo a uma postura com horizonte global que crescentemente a
confronta com a necessidade de projetar responsabilidade pela segurança
internacional, inclusive por meio de operações de paz robustas.
A África ocupa um papel importante na emergência do Brasil como global
player, tanto em termos estratégicos quanto normativos. O presidente Lula da Silva
(2003-2010) estreitou significativamente os laços com o continente tanto como forma
de fortalecer uma agenda internacional revisionista quanto para demonstrar
solidariedade com o Sul global. O país tem procurado se servir do casamento entre
segurança e desenvolvimento que o peacebuilding representa para transformar seus
próprios sucessos domésticos na área de desenvolvimento em capabilityno palco da
segurança internacional. Porém, sua aversão à imposição da força tem mantido muito
limitada sua participação em operações de paz no continente africano, onde este tipo
de operação prevalece. Desta forma, apesar de seus laços mais estreitos com o África
e seu histórico mais expressivo nas operações de paz—ambos de duração
significativamente maior que os de outras potências emergentes como Índia e
China—o Brasil é recém-chegado ao cenário estratégico do continente, em particular
no que tange à evolução recente das operações de paz ali desdobradas.
Após breve introdução da atuação do Brasil como ator nas operações de paz e
no cenário de segurança internacional, este trabalho se debruça sobre as implicações
da presença do país na África. A análise inicia caracterizando a tensão entre as
tradições brasileiras arraigadas nos princípios regionais de pacificismo, não-
intervenção e não-uso da força, e sua posição como ator ascendente de horizonte
1Mesmo com a recente indicação de um general brasileiro como Force Commander da MONUSCO, a maior e
mais robusta missão da Organização, desdobrada no Congo.
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verdadeiramente global. Focando-se no posicionamento do país para com as normas
de intervenção e nos seus avançossocioeconômicos domésticos, o trabalho se
concentra no desenvolvimento incipiente de uma abordagem especificamente
brasileira ao peacebuilding, com grande potencial de implementação na África. O
paper conclui sua análise radicando essa abordagem nas orientações históricos e
atuais da engajamento da política externa e da cooperação para o desenvolvimento do
Brasil na África.
Soberania e intervenção na América do Sul e no Brasil2
O posição do Brasil sobre a intervenção e assuntos afins—operações de paz,
uso do força, a “responsabilidade de proteger” e a evolução dos princípios que
norteiam as medidas de segurança coletiva—é firmemente enraizada em uma
combinação de preceitos revisionistas naturais para uma de potência emergente, e
elementos de uma cultura estratégica comum aos países do continente sul-americano.
A expressão mais cogente dessa abordagem comum é de Arie Kacowicz; entre os
elementos elaborados por este autor que possuem relevância para a intervenção e a
participação em operações de paz são: um forte compromisso com a resolução
pacífica de contenciosos; uma interpretação da soberania que a iguala
predominantemente com a inviolabilidade de fronteiras3; aderência estrita ao princípio
da não-intervenção; e um compromisso interno com a democracia e os direitos
humanos. 4 A esses, deve-se acrescentar uma predileção pela forma multilateral,
particularmente na resolução de conflitos; e práticas de política externa centradas na
negociação e na negação do uso da força.
Boa parte dessas máximas do contexto sul-americano resultam da interferência
repetida nos assuntos internos dos países da região pelos Estados Unidos, assim como
da posição periférica da região no sistema internacional e da relativa fraqueza militar
de seus Estados. Esses princípios se orientam para a limitação, por meios pacíficos do
preponderante poderio militar externo, sobretudo por meio de “[the]juridical equality
2Para mais, ver Kai Michael Kenkel, “Brazil and R2P: Does taking responsibility mean using force?” Global
Responsibility to Protect 4:1 (2012), 5-32; e “Out of South America to the Globe: Brazil’s Growing Stake in Peace Operations”, em Kai Michael Kenkel, org., South America and Peace Operations: Coming of Age. London: Routledge, 2013; pp. 85-110.
3 Monica Serrano, “Latin America: the dilemmas of intervention”, em Albrecht Schnabel e Ramesh Thakur, orgs., Kosovo and the challenge of humanitarian intervention: selective indignation, collective action, and international citizenship. Tokyo: United Nations University Press, 2000, pp. 223-244.
4 Arie Marcelo Kacowicz, The impact of norms in international society: the Latin American experience, 1881-2001. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2005.
3
of states, the prohibition of war as a political instrument, the peaceful settlement of
controversies, arbitration and non-intervention”. 5 Desprovidos de significativa
capacidade defensiva relativa para defender sua autonomia, os Estados da América do
Sul buscaram a proteção de estruturas jurídicas internacionais que limitaram o uso da
força e garantiram a sua liberdade da influência alheia.Desta forma, existe tanto uma
determinante corrente de desconfiança em relação às motivações norte-americanos (e,
por extensão, ocidentais) no que diz respeito às intervenções, quanto o pleno
conhecimento da capacidade do vizinho setentrional de superar eventuais resistências
a essas. Visto assim, estes países mais têm enxergado a forma multilateral em termos
do que receberam dela—proteção contra as desigualdades do sistema internacional—
do que como modo de contribuir a um bem público internacional ou, mais
amplamente de exercer responsabilidade ao nível internacional.
As três funções tradicionalmente mais importantes do multilateralismo na
região são de prover garantias jurídicas de igualdade e autonomia a partir da não-
intervenção; proteção contra eventual ingerência de potências maiores; e—na
ausência de abertura para a concessão de poderes para formas transnacionais de
integração regional—a capacidade de avançar interesses nacionais em vez de criar um
feedback com instituições internacionais na definição desses. Ramesh Thakur
ressaltou, sucintamente o fato de esta postura revelar uma preocupação com “justice
among rather than within nations”, típica, em sua perspectiva, para o Sulglobal em
geral.6O fato de interpretar a soberania desta forma cria uma visão que coloca os
direitos (humanos) individuais do lado de fora do conceito de soberania e, assim, da
esfera da atuação apropriada dos Estados. Ademais, a compreensão do
multilateralismo como esfera voltada predominantemente para a proteção do próprio
Estado, em uma lógica historicamente defensiva, e razoavelmente anacrônica, resulta
na hesitação em participar de ações multilaterais de segurança coletiva – inclusive, em
operações de paz motivadas por situações puramente humanitárias.
Várias das pedras basilares “grotianas”7da política externa brasileira, como a
não-intervenção, pacifismo, apego ao positivismo jurídico (normativism), 8 e
5 Julio A. Lacarte, “The Latin American System”, Proceedings of the Annual Meeting (American Society of
International Law), 53 (1959), pp. 62-68. Aqui, p. 64-65. 6 Ramesh Thakur, The Responsibility to Protect: Norms, Laws and the Use of Force in International Politics. New
York: Routledge, 2011, p. 144. 7Ver Gustavo Sénéchal de Goffredo Jr., Entre poder e direito: A tradição grotiana na política externa
brasileira.Brasília: Instituto Rio Branco/FUNAG, 2005.
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multilateralismo,9derivam claramente desses elementos de uma cultura de segurança
regional compartilhada, e aparentam permanecer como pontos de partida para o futuro.
Todavia, na medida em que o país procura estender o seu alcance estratégico além do
regional parao nível global—onde o seu engajamento com a África ocupa um papel-
chave nos seus planos—encontrar-se-á confrontado, com crescente frequência, com
normas de conduta que colidem e desafiam esses preceitos de origem continental e
histórica. Este período de transição de um horizonte regional para um global—o
primeiro fomentado pelo status hegemônico continental, o segundo, pelo estonteante
crescimento econômico da década e meia passada—ecoa em mais uma mudança que
afeta o engajamento do Brasil com as operações de paz e com outras regiões do
mundo. O Brasil até bem recentemente era uma potência regional, estrategicamente
satisfeita e confrontada com problemas mais relacionados ao desenvolvimento
econômico do que com questões estratégicas. Desta forma, o presente momento
marca de certo modo o seu primeiro verdadeiro encontro com as responsabilidades e
as oportunidades inerentes a um engajamento plenamente global.
Um potência que emerge do casulo regional
Na medida em que assume seu novo papel como global player, o despertar da
política externa brasileira não está imune a questionamentos de tradições, incentivos e
valores que emanam desse novo status. O comportamento recente do Brasil não foge
aos traços descritos pelos autores que tratam de potências emergentes (ou médias)
como uma distinta categoria de análise dentre os atores internacionais. Nesse sentido,
participação em operações de paz, além de relações com o Sul Global como um todo,
e com a África em particular, têm relevância crucial no posicionamento desses
Estados em relação às estruturas internacionais de tomada de decisão em que visam a
impactar. De fato, para a diplomacia brasileira, o objetivo-chave transformou-se na
8 Jorge Heine, “The responsibility to protect: Humanitarian intervention and the principle of non-intervention in
the Americas”, em Ramesh Thakur, Andrew F. Cooper e John English, orgs., International Commissions and the Power of Ideas.Tokyo: United Nations University Press, 2005; pp. 221-245; aqui, p. 233.
9Ver, inter alia, Letícia Pinheiro, “Traídos pelo Desejo: Um Ensaio sobre a Teoria e a Prática da Política Externa Brasileira Contemporânea”, Contexto Internacional, 22:2 (2000); pp. 305-335, aqui p. 323, disponível em http://publique.rdc.puc-rio.br/contextointernacional/media/Pinheiro_vol22n2.pdf, acesso em01 de novembrode 2012; Gelson Fonseca Júnior, A legitimidade e outras questões internacionais—Poder e Ética entre as Nações.São Paulo: Paz e Terra, 1998; p. 359.
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rápida realização de seu antigo sonho de um assento permanente, com poder de veto,
em um Conselho de Segurança das Nações Unidas reformado.10
Ao auferir contornos analíticos à categoria de potências emergentes, é
pertinente que se interprete-as como um subconjunto no escopo das potências médias,
como diversas características em comum, mas outras deveras distintas da categoria
geral. 11 Basicamente, enquanto as tradicionais potências médias atingiram esse status
ao longo da Guerra Fria, com base, sobretudo, em elementos militares e estratégicos,
potências médias emergentes ganharam tal alcunha após a queda do muro de Berlim,
com base em seu poder econômico e comercial – outras distinções, ainda, serão
compreendidas ao longo desta contribuição.
O crescente autorreconhecimento do Brasil como potência emergente segue
aquilo que Adam Chapnick, autor canadense, destacou como a abordagem funcional
(ou instrumental) do pertencimento à categoria de potências médias12. Pequenos
demais para determinarem, sozinhos, o fluxo da política e grandes demais para
simplesmente segurem tendências estabelecidas por outros, um poder com
capacidades médias necessitaria tornar-se um seletivamente ativo; a função
determinaria que o critério sobre quando se tornar ativo seria a identificação de áreas
(ou funções no sistema internacional) em que suas vantagens comparativas
permitiriam o maior reconhecimento possível em troca do investimento de seu capital
econômico e diplomático. 13 Essas esferas de esforços concentrados são
compreendidas como nichos diplomáticos em que potências médias e outros
concentraram a construção de sua identidade internacional. 141516
A conduta típica de potências médias incluiria sua tendência de perseguir
soluções multilaterais para problemas internacionais, de adotar posições
intermediárias diante de disputas internacionais e noções de ‘boa cidadania
internacional’ como guia de sua diplomacia, 17 com base no interesse pelo
10Ver Daniel Flemes, “Brazilian Foreign Policy in the Changing World Order”, South African Journal of
International Affairs 16: 2 (2009); pp. 161-182. Aqui, p. 176. 11 Edouard Jordaan, E., “The concept of a middle power in international relations: distinguishing between
emerging and traditional middle powers”, Politikon (Pretoria) 30:2 (2003); pp. 165-181. 12 Adam Chapnick, “The Middle Power”, Canadian Foreign Policy 7: 2 (1999); pp. 73-82. 13 Ibid., p. 75. 14 Ibid., p. 75. 15 Andrew Fenton Cooper, “Niche Diplomacy: A Conceptual Overview”. Em Andrew F. Cooper, Richard A.
Higgott and Kim Richard Nossal, orgs., Relocating Middle Powers: Australia and Canada in a Changing World Order. Vancouver: UBC Press, 1993.
16Ver Maxi Schoeman, “South Africa as an Emerging Middle Power: 1994-2003”. Em J. Daniel, A. Habib and R. Southall, orgs., State of the Nation: South Africa 2003-2004. Cape Town: HSRC Press, 2003; pp. 349-367, esp. p. 350.
17 Cooper et al., Relocating, p. 19.
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desenvolvimento de uma organização internacional 18e na manutenção de um status
quo ante institucional. Resumidamente, as potências médias seriam estabilizadores e
legitimadores da ordem global. 19
O comportamento de potências médias tradicionais é interpretado como algo
que supera o mero autointeresse, 20por meio do protagonismo na solução de conflitos
internacionais.21Além disso, essas potências médias tenderiam a ser atores-chaves em
suas regiões, em decorrência de estruturas normativas ou militares, participando
ativamente da administração de conflitos, resistindo à dominação por potências
maiores e buscando maximizar seu status político.22O conceito de soft power de
Joseph Nye, por sua vez, tem sido cada vez mais incluído em análises que ressaltam
as semelhanças no comportamento desses Estados.23Como consequência lógica da
confluência dessas preferências, as potências médias formadas ainda na Guerra Fria
constituem o núcleo duro dos partícipes ativos em operações de paz das Nações
Unidas, como Laura Neack e outros apontam.24
No que diz respeito às potências médias emergentes do pós-Guerra Fria, o
analista sul-africano Eduard Jordaan identificou diferenças essenciais em relação a
suas contrapartes tradicionais, dividindo-as em seis eixos: instituições democráticas
em potências emergentes tendem a estar menos consolidadas; potências emergentes
atingiram o status de potência média mais tardiamente; potências emergentes encaram
maiores distinções sociais que aquelas potências médias tradicionais; há distinção
valorativa sociopolítica entre ambos os grupos, sendo as potências emergentes
compreendidas, usualmente, como periferia da economia política global; e as duas
categorias possuem vastas diferenças no que diz respeito ao relacionamento com seu
entorno regional.25
Essas diferenças têm notáveis consequências perceptíveis, quando se
comparam os comportamentos das potências médias tradicionais e daquelas
18 Robert Cox, “Middlepowermanship, Japan, and Future World Order”, International Journal, 44 (1989); pp. 823-
862. Aqui, pp. 826-827. 19 Jordaan, “Concept”, 167. 20 Jordaan, “Concept”, p. 166. 21 Janis van der Westhuizen, “South Africa's Emergence as a Middle Power”, Third World Quarterly 19 (1998);
pp. 435-455. Aqui, p. 436. 22 Chapnick, “Middle Power”, p. 76. 23Por Joseph S. Nye, ver “Soft Power”, Foreign Policy, 80 (1990); pp. 153-171; Soft Power: The Means to Success
in World Politics. New York: PublicAffairs, 2004; Bound to Lead: The Changing Nature of American Power. New York: Basic Books, 1990.
24 Laura Neack, “UN Peace-keeping: In the Interest of Community or Self?”, Journal of Peace Research, 32 (1995); pp. 181-196.
25 Jordaan, “Concept”, p. 173.
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emergentes. Aquelas tendem a focar em assuntos militares e estratégicos, enquanto
estas atingiram seu status com base em seu poder econômico e, frequentemente, na
ausência de significativo poderio militar. Potências emergentes são, usualmente,
hegemônicas em suas regiões e, portanto, enfrentam tensões entre seus papéis
regionais e suas aspirações globais. 26
Essencial para o entendimento acerca da atitudedas potências emergentes em
relação a operações de paz, a normas de intervenção e à paz liberal é a ambiguidade
que caracteriza sua posição no escopo das estruturas internacionais de tomada de
decisão: se, por um lado, elas buscam sustentar uma ordem internacional geral que as
privilegie em relação a seus vizinhos mais fracos; por outro, elas lutam por reformar a
ordem em que sua posição é desfavorável vis-à-vis aquela de potências determinantes. 27No entanto, o mesmo elemento que os impulsiona a buscar maior influência –
prevalência regional – pode ser enfraquecido pela tentativa de institucionalizá-la
como papel global. Ademais, é mister que se perceba ocomponente moral do perfil
internacional das potências emergentes e sua atração por uma liderança normativa.
O Brasil e as normas de intervenção
Corolário lógico aos princípios históricos de sua política externa, até o
advento da MINUSTAH, em 2004, a política brasileira em torno de intervenções e de
operações de paz era conservadora. Brasília apegava-se de maneira restritiva a sua
interpretação do princípio de não intervenção, tanto na retórica, quanto na prática. O
país comprometia-se a participar de missões que se encontravam somente no âmbito
do Capítulo VI, com uso limitado da força, enquanto, como membro não permanente
do CSNU, em 1994, não endossava nada além de missões estritamente baseadas no
Capítulo VI nem para lidar com o genocídio em Ruanda, nem para enviar uma força
multinacional para o Haiti, em meio a problemas políticos no país
caribenho.28Missões sob a égide do Capítulo VII eram interpretadas como violações
ao princípio sacrossanto da não intervenção que teria mantido a paz na América do
Sul pelos últimos 150 anos, além de tê-la libertado da influência de grandes potências.
26 Schoeman, “South Africa”, p. 353-4. 27 Jordaan, “Concept”, pp. 170, 176. 28Ver Eugênio Diniz, “Brazil: Peacekeeping and the Evolution of Foreign Policy”, em John T. Fishel e Andrés
Sáenz, orgs., Capacity Building for Peacekeeping: The Case of Haiti. Washington: National Defense University Press, 2007.
8
Essa interpretação, não entanto, cria um ponto cego entre a América do Sul e a
África em termos da relação entre soberania e intervenção. Mutatis mutandis, de
maneira semelhante ao contexto africano, enquanto uma concepção absolutista do
conceito de soberania e de inviolabilidade manteve um prolongado período de relativa
paz entre Estados, recentemente, trouxe, também, contestação política e violência
armada como problemas significativos no âmbito doméstico. Somente o Brasil perdeu
mais de milhões de cidadãos à violência armada nos últimos trinta anos; e estabelecer
essa questão como um problema doméstico é abordagem que se relaciona com a
hesitação do país em intervir internacionalmente, mesmo em face de crises
humanitárias das mais graves.
A reação brasileira à emergência da responsabilidade de proteger representa
excelente barômetro das mudanças de atitude, na medida em que o país encarava
interpretações divergentes acerca de normas de intervenções como, supostamente, um
ator global. De alguma maneira, o autorreconhecimento do Brasil está progredindo
lentamente daquele de um ator marginalizado que necessitava de proteção do
princípio de não intervenção para outro de um ator global que pretende assumir
responsabilidades e está preparado para prezar por princípios universais além de
fronteiras de Estados. A mudança consequência é de ver-se reflexivamente como um
alvo potencial de uma intervenção no escopo da R2P para pesar os méritos da própria
participação e tais missões.
Até 2004, em um padrão típico a países Sul Americano, 29 a participação
brasileira em operações de paz e outras intervenções foi bastante limitada30, sobretudo,
em decorrência da discordânciaem relação a qualquer ação do CSNU sob a égide do
Capítulo VII da Carta ONU. O não uso da força tem sido uma forte tendência ao
longo do engajamento do país no tema dos capacetes azuis. Historicamente, a exceção
que o Capítulo VII estabelece em seu art. 2o (7) é tida como uma violação ao
princípio sagrado, apesar da implementação via CSNU. Por conseguinte, antes da
participação do Brasil nos esforços onusianos no Haiti de 2004, o país, sem titubear,
29Ver as contribuições na International Peacekeeping 17:5 (2010). 30Para uma análise pré- MINUSTAH, ver Paulo Roberto Campos Tarrisse da Fontoura, O Brasil e as Operações
de Manutenção da Paz das Nações Unidas. Brasília: FUNAG, 1999; e Afonso José Sena Cardoso, O Brasil nas Operações de Paz das Nações Unidas. Brasília: FUNAG, 1998. Mais recentemente, ver Kai Michael Kenkel e Rodrigo Fracalossi de Moraes, orgs., O Brasil e as operações de paz em um mundo globalizado: entre a tradição e a inovação. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2012; Sérgio Luiz Aguiar, ed., Brasil em Missões de Paz. São Paulo: Usina do Livro, 2005; e, sobre a relação entre poder econômico e poder militar, João Paulo Soares Alsina Junior,Política externa e poder militar no Brasil.Rio de Janeiro: FGV, 2009.
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rejeitava participar de missões que estivessem incluídas no Capítulo VII. Com
exceções do Batalhão de Suez (UNEF I, 1956-1967) e da UNAVEM em Angola
(UNAVEM III, 1995-1997), além do significativo contingente policial para a
UNTAET no Timor Leste (1999-2002), as contribuições brasileiras pré-MINUSTAH
para operações de paz onusianas eram consistidas por irregulares envios de
observadores militares e funcionários civis.
A primeira resposta à responsabilidade de proteger foi de forte repúdio
esposado, particularmente, pelo Chanceler da época, o Ministro Celso Amorim, que,
inicialmente, descartou a R2P como nada mais que ‘o direito de ingerência ... em
nova roupagem”. 31 Amorim estabeleceu o tom que seria utilizado pelos céticos
brasileiros a respeito da utilidade do uso da força desde as primeiras reações ao
conceito de R2P:
We have been called upon to deal with new concepts such as "human security" and "responsibility to protect". We agree that they merit an adequate place in our system. But it is an illusion to believe that we can combat the dysfunctional politics at the root of grave human rights violations through military means alone, or even economic sanctions, to the detriment of diplomacy and persuasion.32
No entanto, na medida em que o conceito se desenvolvia e se arraigava na
prática das Nações Unidas – e era endossado por órgãos onusianos tão caros às
tendências multilaterais de Brasília – os oficiais brasileiros quebraram seu silencio
não voluntário e engajaram-se seriamente no conceito. Enquanto começavam a aceitar
as bases morais da necessidade de atuar além das fronteiras, em face de graves
violações dos direitos humanos e do direito internacional, diplomatas brasileiros ainda
não deixaram suas reservas quanto à utilidade do uso de força militar para atingir tal
objetivo. Esse contexto posicionou os tomadores de decisão brasileiros diante de um
dilema fundamental entre necessitar demonstrar responsabilidade internacional como
uma potência em ascensão, sem recorrer ao uso da força militar, em um palco
31 Celso Amorim, “Conceitos de Segurança e Defesa—implicações para a ação interna e externa do governo”. Em
J. R. de Almeida Pinto, A. J. Ramalho da Rocha e R. Doring Pinho da Silva, orgs., Reflexões sobre defesa e segurança: uma estratégia para o Brasil.Brasília: Ministry of Defence, 2004; pp. 135-157. Aqui, p. 140.
32 Brasil, Ministério de Relações Exteriores. Statement by H. E. Ambassador Celso Amorim, Minister of External Relations of the Federative Republic of Brazil, at the Opening of the General Debate of the 60th Session of the United Nations General Assembly, 17 de setembro de 2005, disponível em www.un.org/webcast/ga/60/statements/bra050917eng.pdf, acesso em 28 de fevereiro de 2011. Ver também Celso Amorim, Discurso… da abertura do Seminário de Alto Nível sobre Operações de Manutenção da Paz, Brasília, 5 February 2007, emBrasil, Ministério de Relações Exteriores, org., Resenha de Política Exterior do Brasil,100 (2007);pp. 63-66.
10
internacional em que as potências ocidentais dominantes continuam dispostas e
capazes de utilizar-se de medidas militares para garantir da segurança coletiva.
Na vaga dos esforços dos formuladores da R2P para atender a essas
preocupações, 33— também fortemente expressadas por outras potências do Sul global,
como a Índia — o Brasil começou a identificar espaços para participar nas conversas
sobre a R2P. Isso satisfez o desejo do país de não ser percebido meramente como um
receptor de normas, mas como um participante ativo em sua formulação na esfera
internacional – elemento-chave na busca pelo status de potência emergente. 34 O
resultado desse processo foi a apresentação, em Novembro de 2011, de um conceito
intitulado ‘responsabilidade ao proteger’ (RwP) 35 , por meio do qual diplomatas
brasileiros lutam por atingir um meio termo entre a desconfiança do Sul a respeito da
agenda da R2P, em vista da intervenção na Líbia, e os guardiões Ocidentais do acordo
global acerca da necessidade de agir quando os quatro crimes relacionados à R2P
forem cometidos. Depois de um ceticismo ocidental inicial, a RwP foi recebida
calorosamente pelos propositores da R2P, como maneira de reformar a imagem do
conceito depois da Líbia e de ganhar a aceitação do conceito pelo Sul global. Essa
proposta e sua aceitação marcam um exemplo significante da mudança na política
brasileira a respeito de questões relacionadas à intervenção e à clara identificação de
um tema em que o país poderia obter papel protagônico internacionalmente.
A participação brasileira em operações de paz
Um processo algo similar ocorreu no que concerne a participação concreta do
Brasil em operações de paz, por meio de contribuições financeiras e de capital
humano. A MINUSTAH é um explícito divisor de águas na participação do Brasil em
operações de paz, em que o país, ao lado de seus vizinhos sul-americanos, liderou
uma missão de imposição do capítulo VII, o que anteriormente seria impensável. O
país começou seu envolvimento em operações de paz, como membro da Comissão
33 Thomas G. Weiss, “The Sunset of Humanitarian Intervention? The Responsibility to Protect in a Unipolar Era”
Security Dialogue. 35:2 (2004); pp. 135-153. Aqui, p. 138; United Nations Department of Public Information. Secretary-General defends, clarifies “Responsibility to Protect” at Berlin Event on “Responsible Sovereignty: International Cooperation for a Changed World”. UN Document SG/SM/11701. Disponível emhttp://www.un.org/News/Press/docs/2008/sgsm11701.doc.htm. Acesso em 15 de maio de 2013.
34The Economist, “Brazil and peacekeeping: Policy, Not Altruism”, emThe Economist, 25 de setembro de 2010. Disponível emhttp://www.economist.com/node/17095626.Acesso em 8 de agosto de 2012.
35 Brasil, Missão Permanente às Nações Unidas, “Responsibility while protecting: elements for the development and promotion of a concept”, 9 de novembro de 2011, UN Document A/66/551-S/2011/701. Disponível em http://www.globalR2P.org/media/pdf/Concept-Paper-_RwP.pdf. Acesso em 24 de outubro de 2012.
11
para a Questão de Letícia, no âmbito da Liga das Nações, em 1933. Entre 1957 e
1999, o Brasil enviou mais de 11.000 tropas e mais do que 300 policiais, como
pessoal participante de operações de paz das Nações Unidas. Anteriormente à
MINUSTAH, o padrão tradicional brasileiro era o de enviar observadores militares
individuais, sob forma de oficiais de Estado-Maior ou de ligação.
Houve quarto exceções notáveis e altamente indicativas desse modelo, antes
da MINUSTAH, contando com mais de 10.000 das referidas tropas: a contribuição do
Brasil na UNEF I, o Batalhão de Suez (1956-1967) era composto por
aproximadamente 600 homens; de Janeiro de 1993 a Dezembro de 1994, um
contingente de por volta de 200 homens, incluindo infantaria, 26 observadores, 67
policiais e unidades médicas, serviram na Missão das Nações Unidas em
Moçambique (UNOMOZ); um batalhão de 800 homens serviram, ainda, a Missão de
Verificação das Nações Unidas em Angola (UNAVEM III) entre 1995 e 1997, e um
amplo contingente policial foi enviado à Administração Transitória do Timor Leste
(UNTAET – 1999-2002). O Brasil forneceu forças de comando para a UNEF I (1964),
UNOMOZ (1993-1994) e forças militares observadoras para a UNAVEM I (1988-
1991) 36 . Majoritariamente, as tropas brasileiras exerciam papéis não combativos,
como assistência médica, com base em regras de engajamento restritas ao Capítulo VI
da Carta ONU. 37
Com exceção das embrionárias missões na Península de Suez, que gerou uma
oportunidade de uma contribuição claramente neutra para a manutenção da ordem
internacional, sob diretrizes das mais rígidas, relacionadas ao uso da força, as
contribuições para operações de paz estavam sujeitas à participação brasileira em
regiões em que havia claro interesse ou afinidade nacional. Moçambique e Angola são
ex-colônias portuguesas e membros da CPLP, que passou a ter significativa
relevância na política externa brasileira àquela altura. Essa situação mudaria
radicalmente com a aceitação, pelo Brasil, da liderança da MINUSTAH.
36Ver Fontoura; Cardoso. Sobre a participação brasileira em operações de paz ver também Eduardo Uziel, O
Conselho de Segurança, as operações de manutenção da paz e a inserção do Brasil no mecanismo de segurança coletiva das Nações Unidas, Tese, Curso de Altos Estudos, Instituto Rio Branco, Brasília: MRE, 2009; Filipe Nasser, Pax Brasiliensis: solidariedade e projeção de poder na construção de um modelo de engajamento do Brasil em operações de paz da ONU, Brasília: Instituto Rio Branco/MRE 2009; e as contribuições em Kenkel e Moraes, e Aguilar.
37Ver Kai Michael Kenkel, South America's Emerging Power: Brazil as Peacekeeper, International Peacekeeping, 17:5 (2010); pp. 644-661; e “New missions and emerging powers: Brazil's involvement in MINUSTAH”,em Christian Leuprecht, Christian, Jodok Troy e David Last, orgs., Mission Critical: Smaller Democracies’ Role in Global Stability Operations. Montréal/Kingston: McGill-Queen's University Press, 2010; pp. 125-148.
12
A contribuição brasileira para a MINUSTAH, a Missão das Nações Unidas
para a Estabilização do Haiti, represente uma ruptura clara com o padrão prévio.
Embora o Ministério das Relações Exteriores esteja correto ao insistir que o maior
envolvimento na MINUSTAH é uma expressão da continuidade do compromisso
brasileiro com instituições internacionais, a natureza da mudança, principalmente em
uma missão que, apesar da sofisticação semântica, claramente pertinente à categorias
sob a égide do Capítulo VII, esconde mudanças fundamentais tanto na maneira como
o país aborda sua identidade, quanto em como ela é percebida. Como demonstra a
MINUSTAH, o Brasil não mais se enxerga meramente como um líder em uma região
particular, e relativamente periférica, do mundo, mas como um legítimo global player.
Como consequência de seu forte compromisso com as Nações Unidas e com outras
instituições multilaterais, tem havido uma percepção de que esta mudança está
acompanhada de uma mudança nos custos e nos benefícios das ações.
De maneiras relevantes, a percepção sul-americana a respeito da intervenção
tem sido um obstáculo em Nova York, enquanto, aos olhos dos observadores de
diversos atores importantes para uma eventual reforma do CSNU, esta hesitação
acinzenta a habilidade do país de projetar disponibilidade para arcar com crescentes
responsabilidades internacionais. De fato, o Presidente Lula da Silva reconheceu esta
questão como uma motivação para a assunção do papel brasileiro na MINUSTAH: “É
assim que respondemos, o Brasil e a América Latina, ao chamado das Nações Unidas
para contribuir para a estabilização do Haiti. Aquele que defende novos paradigmas
nas relacionais internacionais não pode estar ausente de situações
concretas.”38Inclusive, o Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, afiliou-se
a essa perspectiva:
Our participation in the UN mission in Haiti also arises from the principle that peace is not a free international good: the maintenance of peace has a price. That price is participation. To be absent from or to evade giving an opinion or to act in a crisis situation can signify exclusion from the decisionmaking process or worse, dependency in relations to other states or regions.39
38 Celso Amorim, “Conceitos e estratégias da diplomacia do Governo Lula” s. d. Disponível
emhttp://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/embaixador-celso-luiz-nunes-amorim/artigo-conceitos-e-estrategias-da-diplomacia-do. Acesso em 24 de outubro de 2012.
39 Ibid.
13
Por conseguinte, a partir de sua inserção em 2004, o Brasil tem assumido papéis
de liderança na construção do Haiti dentro e for a da MINUSTAH. O país tem sido,
de maneira consistente, o maior fornecedor de pessoal para a missão, além de
rompendo, inclusive, com a prática padronizada nas Nações Unidas, sempre engajar
seu comando militar. Antes do terremoto de 2010, o país mantinha um contingente de
1.300 homens e mulheres em Port-au-Prince, cobrindo uma área de responsabilidade
sobre 1,5 milhão de habitantes. O segundo batalhão foi enviado após o terremoto,
levando um total de 2.200 funcionários do Exército e da Marinha, incluindo uma
companhia de engenharia essencial para o provimento de infraestrutura tanto para o
pessoal das Nações Unidas, quanto para a população do Haiti.
Diante desse contexto, os gastos do Brasil no Haiti atingiram 1.075 bilhões de
reais (US$500-510 milhões) ao longo de 2011; 40 ou até mais, de acordo com o
Ministério da Defesa, que afirma ter gasto 1.670 bilhões de reais (US$850 milhões)
até Junho de 2012. 41Esse custos refletem um compromisso sólido do Brasil com o
envolvimento em operações de paz e o desejo de desenvolver uma abordagem
explicitamente brasileira para operações de construção da paz, cujo lócus natural de
ação seria o continente Africano. Enquanto consolida sua experiência no Haiti e
aperfeiçoa esforços em geral a respeito de ajuda para o desenvolvimento e de
cooperação, o Brasil cultivou uma abordagem incipiente para missões de construção
da paz cujas inovações e especificidades serão discutidas no decorrer deste artigo, no
que diz respeito a suas relações especificamente com a África.
O investimento brasileiro, particularmente em operações de construção da paz,
tem claras origens em seu status de potência emergente e em seus objetivos de
política externa. Essencialmente, como será descrito, o país deve transpor sua força
em políticas socioeconômicas e em outras áreas, como saúde e agricultura, no âmbito
doméstico, para nichos de relevância para o domínio da Segurança, em que deve
demonstrar capacidade e responsabilidade, para ter reconhecida a influência
estratégica que deseja.
40 “Especialistas questionam retorno geopolítico de presença brasileira no Haiti”. O Estado de São Paulo. 21 de
janeiro de 2012. Disponível em http://www.estadao.com.br/noticias/internacional,especialistas-questionam-retorno-geopolitico-de-presenca-brasileira-no-haiti,825494,0.htm. Acesso em 24 de outubro de 2012. O Artigo enfatiza o feedbackentre experiências brasileiras no Haiti e nas UPPS no Rio de Janeiro.
41 Brasil, Ministério de Defesa, Livro Branco de Defesa Nacional Brasília: MD, 2012. Disponível emhttp://www.camara.gov.br/internet/agencia/pdf/LIVRO_BRANCO.pdf. Acesso em 24 de outubro de 2012; p. 163.
14
A chave para o envolvimento future do Brasil em operações de paz, na África
e em outras regiões, reside na questão do uso da força como meio para atingir
resultados na resolução de conflitos. O dilema brasileiro reside no fato de que, para
aumentar seu perfil internacional, o país deve romper com suas tradições históricas –
e participar de missões no escopo do Capítulo VII – e, ainda mais frequentemente,
engajar-se em contextos não lusófonos na África, cenários que não são primordiais
para sua geopolítica – ou, ainda, deve, o país, encontrar maneiras de demonstrar que a
responsabilidade na resolução de conflitos pode ser avançada sem o recurso ao uso da
força.
Inovações Brasileiras noPeacebuilding
A construção da paz, em seu casamento entre segurança e desenvolvimento,
ou entre hard e soft power, emergiu como um nicho diplomático para potências
emergentes42em que seus objetivos podem ser alcançados. 43 Consequentemente, o
Brasil tomou a frente em consideráveis tentativas de desenvolver uma forma peculiar
de construção da paz que avançaria seus próprios interesses e que melhoraria a prática
geral das operações de construção da paz, em termos dos efeitos para a população-
alvo. No entanto, enquanto esse paradigma está claramente assentado em uma posição
revisionista a respeito das estruturas globais de poder e, portanto, tende a criticar o
paradigma dominante de imposição de uma paz liberal pelo Ocidente, os esforços
brasileiros ainda não avançaram, de fato, além de melhoras pontuais embasadas em
experiências domésticas, rumo ao desenvolvimento de uma real contraproposta no
nível, por exemplo, daquela que a Venezuela expõe. 44
O Brasil considera como particularidades de seu modelo incipiente: contato
próximo com a população local; semelhanças culturais como maneira de supercar
obstáculos de comunicação em alguns contextos de reconstrução; a exportação de
políticas socioeconômicas domésticas bem sucedidas, como o combate à fome e à
pobreza e ao subdesenvolvimento; o uso do soft power45; e o enfoque sobre aspectos
42Ver Cooper et al. acima. 43Sobre o importante papel do Brasil nos esforços onusianos de consolidar sua experiência no peacebuilding, ver o
trabalho da diplomata Gilda Motta Santos Neves, Comissão das Nações Unidas para Consolidação da Paz – Perspectiva Brasileira [The UN Peacebuilding Commission: a Brazilian perspective]. Brasília: FUNAG/MPRE, 2010. Disponível emhttp://igepri.org/pesquisa/index.php?option=com_docman&task=doc_download&gid=1729&Itemid=60; acesso01 de novembrode 2012.
44Ver e.g. Julia D. Buxton, “Swimming Against the Tide: Venezuela and Peace Operations”, em Kenkel, Coming of Age.
45Ver Nye acima.
15
de desenvolvimento, ao invés daqueles de Segurança, utilizando-se de uma retórica
típica à Cooperação Sul-Sul, além de uma diplomacia solidária46, como meios de
diferenciar-se do modelo liberal ocidental.
Ademais, dizer-se diferente, frequentemente, resulta em argumentos
essencialistas, como a natureza pacífica e conciliatória da personalidade do brasileiro,
ou a noção de calor humano e agregação, como qualidades particulares do brasileiro.
Entretanto, os referidos elementos carregam simbolismos romanceados a respeito da
implementação da paz no Haiti (e em outras regiões), tanto no âmbito, quanto fora da
missão dos capacetes azuis. Por exemplo, o Brasil tem sido grande defensor de auferir
à MINUSTAH fundos de contingenciamento para projetos de impacto imediato que
beneficiem a população local, e os tem oferecido, de maneira geral, com o objetivo de
conquistar corações e mentes da população local.
Da perspectiva dos contingentes militares brasileiros, suas inovações residem
no emprego de distribuição de alimentos e de outros projetos de pequena escala para a
reconstrução do país que arrefeçam a insatisfação popular, após o robusto uso da
força em uma determinada área, além de oferecer à população – o que diverge das
regras das Nações Unidas – infraestrutura como estradas, pontes e poços elaborados
pela companhia de engenharia. Brasileiros, e outros sul-americanos, trabalham,
também, em lógicas instrumentais, ao auferir à MINUSTAH um papel maior ao
desenvolvimento, em detrimento do foco no uso da força – o que seria coerente com
suas vantagens comparativas e seus objetivos.47O traço apresentado como o mais
distintivo da ação brasileira, no entanto, ainda é a concomitância entre contribuições
militares à MINUSTAH e projetos de ajuda no âmbito bilateral e regional.
O Brasil estabelece sua retórica a respeito de assistência no cooperação Sul-
Sul, enfatizando a solidariedade entre Estados em desenvolvimento pós-coloniais.
Essa abordagem basear-se-ia numa sinergética promoção de um bem comum, em
detrimento do objetivo de avançar interesses nacionais.48De maneira semelhante, fruto
46Ver, por exemplo, Ricardo Antônio da Silva Seitenfus, Cristine Koehler Zanella ePâmela Marconatto Marques,
“O Direito Internacional repensado em tempos de ausências e emergências: a busca de uma tradução para o princípio da não-indiferença” [. Revista Brasileira de Política Internacional, 50:2 (1997).
47 Breno Hermann, Soberania, não intervenção e não indiferença: reflexões sobre o discurso diplomatico brasileiro.Brasília: FUNAG, 2011; p. 23.
48Ver, por exemplo, Celso Amorim, “Audiência do Ministro das Relações Exteriores em Sessão Conjunta das Comissões de Relações Exteriores e de Defesa Nacional do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, 2 de dezembro de 2004; e Celso Amorim, “Discurso do Ministro des Estado das Relações Exteriores por ocasião de abertura do “Seminário de Alto Nível sobre Operações de Manutenção da Paz, 5 de fevereiro de 2007. Ambos disponívels através de busca na página http://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/discursos-artigos-entrevistas-e-outras-comunicacoes/ministro-estado-relacoes-exteriores/.
16
de limites legais domésticos para o provimento de assistência para o exterior, a ajuda
para o desenvolvimento é tratada como cooperação técnica e, de fato, são
empenhados esforços para estabelecer uma relação de igualdade entre os receptores
de ajuda e o Brasil, como doador. Isso é, usualmente, apresentado discursivamente
como uma diferença explícita, e implicitamente mais legítima, em relação à estratégia
avançada pelo norte global, especialmente, pelos Estados Unidos49. Esses projetos
representam a manifestação da prioridade que o Estado brasileiro empresta ao
desenvolvimento nacional e internacionalcomo meio de resolver as raízes dos
conflitos, o que constitui a contribuição conceitual de maior peso que o Brasil tem a
oferecer para a construção de uma paz sustentável. A ideia é que o enfoque em
questões de desenvolvimento e o estabelecimento de relações positivas com a
população local reduzem a necessidade de recorrer ao uso da força.
A ajuda externa brasileira é, frequentemente, descrita como movida pela
demanda. Isso significa que, ao invés de subordinar a ajuda externa aos objetivos dos
Estados doadores – uma característica enfatizada, sobretudo, na ação de doadores da
OCDE – a assistência Sul-Sul, e mais especificamente a brasileira, estaria baseada
naquilo que os países receptores solicitassem, com base em necessidades e
características locais. Na medida em que a lei brasileira proíbe a doação de fundos
federais para outros Estados, os esforços do Brasil nessa área, que incluem mais do
que o termo poderia evocar – são sistematicamente nomeados como cooperação
técnica. Essa prática, aparentemente, contribui para que a população local seja atuante
e dona dos projetos, aumentando sua efetividade. No entanto, fica claro, também, que
a ajuda brasileira, assim como aquela dos outros BRICS, está alinhada com a
inclinação política desses doadores, incluindo seus objetivos geopolíticos, como um
assento permanente no CSNU e a satisfação da necessidade de demonstrar
responsabilidade internacional por esses meios – além de elementos como
semelhanças culturais. 50
Sendo o objetivo final dessa estratégia solidário e altruísta ou baseado em
motivações geopolíticas, nota-se que a assistência externa brasileira é desenhada para
construir vantagens para o Brasil, particularmente no que diz respeito a políticas e
49Paulo Gustavo Pellegrino Correa, MINUSTAH e diplomacia solidária: criação de um novo paradigma nas
operações de paz?Tese de mestrado, Universidade Federal São Carlos, 2009, disponível em www.progp.ufscar.br/progp/ppgpol/arquivos/File/paulo.pdf; acesso em 21 de outubro de 2012; p. 65.
50 Alcides Costa Vaz e Cristina Yumie Aoki Inoue. Emerging Donors in International Development Assistance: The Brazil Case. Ottawa: IDRC Partnership and Business Development Division, 2007; p. 10. Disponível emweb.idrc.ca/uploads/user-S/12447281201Case_of_Brazil.pdf. Acesso em 22 de outubro de 2012.
17
programas que se provaram bem-sucedidos domesticamente. O orçamento doméstico
brasileiro para ajuda triplicou nos últimos anos e atingiu níveis semelhantes ao de
doadores tradicionais, como o Canadá e a Suécia.51Diversos analistas sublinham a
base para a ajuda brasileira como resultante de experiência direta, o que representaria
uma vantagem comparativa em relação à assistência de países do Norte. O essencial
do incipiente modelo brasileiro seria a coordenação de numerosas agências estatais
com a experiência doméstica em combater subdesenvolvimento, a Agência Brasileira
de Cooperação (ABC), a Embrapa, 52o SENAI, Ministérios como o da Saúde, da
Agricultura e da Educação e, sobretudo, organizações da sociedade civil como ONGs
a exemplo do Viva Rio, que contribui com sua experiência na redução de conflitos em
favelas no Rio de Janeiro.
Como resultado da natureza da ajuda brasileira como movida pela demanda, a
assistência, frequentemente, toma a forma desenhada pelas vantagens do país, da
maneira como são manifestadas no escopo das referidas organizações. Assim, a
ênfase reside em inovação agrícola, políticas de saúde e de proteção social,
promovidas por ações de prevenção da fome e de redução da pobreza53.
Usualmente, essa ajuda é canalizada por meio de cooperação trilateral, como
em projetos com a Espanha e os Estados Unidos, no Haiti, além de acordos assinados
com Japão, Itália, Espanha, Israel, Alemanha, Austrália e Egito, entre 2000 e
2010.54Outras cooperações são avançadas a partir do Fundo IBAS e, crescentemente,
por iniciativas dos BRICS, como manifestação no sentido de enfocar as características
das relações Sul-Sul. No contexto Haitiano, a ABC, por exemplo, engajou-se em 30
projetos, antes de sua retirada decorrente da epidemia de cólera de 2010. 55 A
coordenação entre esses atores permanece, no entanto, altamente casuística, embora
haja esforços no sentido de estabelecer um cadastro de especialistas civis. Apesar do
progresso desigual no desenvolvimento dessa abordagem da construção da paz, o
51 Conor Foley, “Brazil's poverty makes its aid donations both natural and surprising”, guardian.co.uk,
http://www.guardian.co.uk/commentisfree/2010/jul/21/brazil-aid-donations-poverty-development. 52Sobre a natureza específica das significativas contribuições da EMBRAPA’s significant contributions, verThe
Economist, “The miracle of the cerrado”. 26 de agosto de 2010. Disponível em http://www.economist.com/node/16886442. Acesso em 22 de outubro de 2012.
53Para amplos detalhes, ver World Bank/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Bridging the Atlantic: Brazil and Sub-Saharan Africa-- South-South Partnering for Growth. Brasília: World Bank/IPEA, 2011. Disponível emhttp://siteresources.worldbank.org/AFRICAEXT/Resources/africa-brazil-bridging-final.pdf. Acesso em 22 de outubro de 2011.
54 Agência Brasileira de Cooperação. Ministério de Relações Exteriores.Cooperação Brasil-Haiti. Disponível em http://www.abc.gov.br/download/txtCooperacaoBrasilHaiti_9.pdf. Acesso em 22 de outubro de 2012; p. 15.
55 “Haiti é um cemitério de projetos, diz embaixador brasileiro.” Terra notícias. 4 December 2010. http://noticias.terra.com.br/mundo/noticias/0,,OI4825936-EI8140,00-Haiti+e+um+cemiterio+de+projetos+diz+embaixador+brasileiro.html.
18
“modelo brasileiro” é percebido como um elemento que ampliaria o perfil do Brasil e
que demonstraria suas capacidades e seu êxito. O atrelar de sua ascensão no cenário
internacional como uma política externa robusta que focou no continente Africano,
durante o Governo Lula, aumentou significativamente a presença do país como
doador e como ator estratégico no continente negro nos últimos anos.
A política externa brasileira para a África
Como Yvonne Captain salienta, “it is easy to forget that the current practice of
engaging fellow developing countries is not the beginning of relationships among
nations of the Global South.”56Brasil e África estão ligados por laços que começam
com o comércio de escravos e que acompanhou o processo de colonização europeia.
Desde então, sua interação pode ser dividida em seis fases. 57 A escravidão criou
intensos ligações culturais e econômicas entre o Brasil, cuja população é composta
por entre 40 e 50% de descendentes de escravos, e seu continente-natal. Com a
independência brasileira, as ligações próximas com a África começaram a rumar em
favor de uma concentração para o estabelecimento de laços regionais com a América
do Sul e para a reformulação das relações com as ex-metrópoles. Enquanto as
relações com Portugal continuam fortes, o Brasil posicionou-se como a metrópole,
demonstrando pouco interesse na descolonização que começou na década de 1950.
Já em 1961, essa postura mudou de alguma maneira, embora nos anos iniciais
da ditadura militar tenha havido ligações danosas no âmbito do Atlântico Sul. Entre a
década de 1970 e de 1980, todavia, as relações econômicas afro-brasileira estavam
florescendo: em 1985, a África representava 13% das importações brasileiras58 e o
país consumia mais exportações nigerianas, sobretudo, petróleo, do que o Reino
Unido59. Na onda da redemocratização no Brasil, as relações mantiveram-se estreitas,
mas as atenções brasileiras se voltaram para as grandes potências do Norte. Com a
chegada ao poder de Lula da Silva, na presidência brasileira a partir de 2003, as
relações brasileiro-africanas mudariam dramaticamente. Ao adotar um
56 Yvonne Captain, “Brazil's Africa Policy under Lula”. The Global South, 4:1 (2010); pp. 183-198. Aqui, p. 186. 57 Baseado emAnalúcia Danilevicz Pereira e Luísa Calvete Portela Barbosa, “O Atlântico Sul no contexto das
relações Brasil-África”. Século XXI, 3:1 (2012); pp. 59-77. Aqui, p. 63. 58Anderson Matias Cardozo e Jan Marcel de Almeida Freitas Lacerda, “Brasil: na contramão da globalização a
partir das relações Sul-Sul”. Revista de Geopolítica (Natal), 3:2 (2012); pp. 195-207. Aqui, p. 200. 59 Cláudio Oliveira Ribeiro, “Brazil’s New African Policy: The Experience of the Lula Government (2003-
6).World Affairs, 13:1 (2009); pp. 84-93. Aqui, p. 92.
19
posicionamento internacional revisionista, com o intuito de transformar poder
econômico em influência estratégica, Lula engajou-se em uma estratégia de política
externa focada em constituir uma unidade entre o Sul, como maneira de desafiar a
dominância do Norte.60
Lula explicitamente enfatizou o continente africano na política externa
brasileira, o que pode ser evidenciado pelo aumento no número de Embaixadas do
país na África, que saltou de 17, em 2002, para 37 em 2010, quantidade que supera as
de Alemanha e de Reino Unido. Esse impulso obteve resultados no que diz respeito
ao comércio: as exportações brasileiras para a África cresceram 587% entre 1996 e
2006 e o comércio em geral triplicou no mesmo período. Entre 2002 e 2006, o salto
foi de 2.6 para 8 bilhões de dólares no intercâmbio comercial, em termos absolutos; o
continente como um todo encontra-se como quarto parceiro comercial do Brasil, atrás,
somente, de China, Estados Unidos e Argentina. 61 Juntas, retórica e ação
centralizaram-se na ideia de cooperação Sul-Sul, pertinente em relação às aspirações
revisionistas de uma potência emergente do Sul.
Ao lado de suas novas independência energética e segurança alimentar, isso
encetou uma presença brasileira na África que difere daquela de outros países
emergentes. O Brasil não está envolvido em competição por recursos naturais no
continente; ao contrário, o país busca mercados para suas exportações, com a
internacionalização de sua economia, além de oportunidades para o estabelecimento
de maior influência internacional. No que diz respeito à internacionalização da
economia, as maiores empresas multinacionais brasileiras, como a mineradora Vale, a
construtora Odebrecht e a gigante do petróleo, Petrobras tornaram-se grandes players
na África, particularmente, em países lusófonos, oferecendo emprego para a força de
trabalho local, o que se difere, por exemplo, dos projetos chineses, e investindo em
projetos cruciais para a infraestrutura dos países.
Nota-se, nesse sentido, que a abordagem brasileira a suas relações políticas
com a África, especialmente, no que tange a cooperação Sul-Sul que empresta forma
à ajuda para o desenvolvimento, é significativamente diferente daquele
comportamento avançado tanto por tradicionais doadores, quanto por países
emergentes, como Índia e China, que também interagem com o continente negro. As
principais distinções acerca da Cooperação Sul-Sul residem na natureza horizontal,
60 Cardozo and Lacerda, p. 196. 61 Ribeiro, p. 88.
20
percebida como menos paternalista do que os padrões de interação anteriores; na
natureza voltada para o atendimento de demandas e não na imposição de ofertas para
ajuda para o desenvolvimento que respondam a interesses dos próprios doadores,
permitindo que os africanos determinem quais os principais problemas, ao invés de
vê-los ditados pelo exterior; no fato de que a cooperação brasileira não é unidirecional,
mas um intercâmbio entre especialistas;62e na percepção de que ela não é baseada em
interesses nacionais ou comerciais, não impõe condicionalidades e está enraizada na
identificação de interesses comuns.
Isso leva à ênfase em sinergias entre os êxitos domésticos brasileiros e os
problemas vividos pela África. Essas semelhanças levaram ao envolvimento de uma
série de agências governamentais brasileiras no processo de cooperação, com ênfase
para a Embrapa, o Senai e a Fundação Osvaldo Cruz, dentre outras63. Muitos projetos
se inspiram em políticas socioeconômicas de sucesso como transferências de renda
condicionadas à frequência de crianças na escola e a atendimento médico, como
oBolsa Família, e ações de combate à fome e à pobreza.
É interessante destacar que, na aplicação desses projetos, o Brasil engajou-se
muito mais amplamente com países da região Subsaariana, transcendendo seu foco
tradicional em nações lusófonas. Países africanos, hodiernamente, representam 60%
de todos os projetos administrados pela ABC. 64 Diante desse contexto, embora
também seja receptor de ajuda, a assistência brasileira para o desenvolvimento está na
casa de 1 bilhão de dólares por ano, aproximadamente o mesmo nível empregado pela
Índia e pela China65. Por volta de 75-90% dessa assistência é canalizada por meio de
instituições multilaterais e de bancos regionais, enquanto o restante está concentrado
em ajuda humanitária, bolsas de estudo e cooperação técnica.
Esse paradigma tem sido testado, desde 2004, no Haiti, no decorrer da
liderança brasileira no MINUSTAH. A assistência da ABC ao Haiti está centrada nas
seguintes prioridades concretas, com forte ênfase no setor agrícola:
a. Introdução de técnicas agrícolas para a produção de alimentos e de
energia;
62 Robert Muggah e Ilona Szábo de Carvalho, “O Efeito Sul: reflexões críticas sobre o engajamento do Brasil com
Estados frágeis”. Revista Brasileira de Segurança Pública, 5:9 (2011); pp. 166-176. Aqui, p. 170. 63Sobre EMBRAPA e FIOCRUZ verEconomist, “Miracle”; Melina Moreira Campos Lima, “Horizontalização da
política externa brasileira no século XXI: um estudo das atuações da EMBRAPA e da FIOCRUZ na África. Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2011.
64Ver Pereira e Barbosa, p. 68. 65 Overseas Development Institute. ODI Briefing Paper 64: Brazil: an emerging aid player.Outubro 2010.
21
b. Acesso a conhecimento e tecnologia para a produção de frutas e vegetais;
c. Controle de pragas;
d. Racionalização do uso da água na produção agrícola;
e. Produção adicional em cooperativas rurais;
f. Assistência para ensino, pesquisa e assistência técnica em áreas rurais;
g. Formulação de políticas para a promoção da agricultura familiar;
h. Segurança nutricional e alimentar.66
Um exemplo da exportação de políticas domésticas é o combate à fome por
meio de programas de merenda escolar, política que se espraiou pelo Brasil sob a
égide do Programa Fome Zero; desde 2009, 244 mil dólares foram investidos no
sentido de garantir a crianças haitianas ao menos uma refeição por dia.67Programa
similar foi também lançado no Mali.68Outro exemplo, citado pela The Economis, é o
Lèt Agogo, com base na transferência direta de leites para escolas no âmbito do
programa Fome Zero. 69 A vantagem de projetos inspirados em experiências
domésticas é clara: sua adaptação ao país de origem amplia tanto sua efetividade
quanto sua aceitabilidade. A desvantagem também é clara, embora mitigada por uma
ligação próxima entre a eleição do para aplicação de programas e a presença de tropas
brasileiras: precisamente, por estarem imiscuídos a contextos haitianos específicos,
em decorrência de semelhanças socioeconômicas, há limites para a exportação de seu
padrão para contextos diversos de construção da paz.70
Dos 81 países que se beneficiaram da cooperação técnica brasileira em 2010,
38 encontravam-se na África. 71 Prioridade foi auferida a lusófonos, sendo Guiné
Bissau, em especial, um beneficiário frequente de assistência, incluindo grande
projeto para criação e treinamento de uma academia de polícia guineense. 72Outro dos
maiores projetos no contexto africano tem sido com o Cotton-4, cujo objetivo é
ampliar a produtividade do setor algodoeiro no Benin, Burkina Faso, Chad e Mali.73
66Agência Brasileira de Cooperação. Ministério de Relações Exteriores. Cooperação Brasil-
Haiti.http://www.abc.gov.br/download/txtCooperacaoBrasilHaiti_9.pdf;p.14. 67 Fabiana Frayssinet. “Brazil: Haiti is here”. 2011. Disponível em
http://www.globalissues.org/news/2011/06/09/10017.Acesso em 21 de outubro de 2012. 68 Envolverde Jornalismo e Sustentabilidade. “África usará experiência do Brasil”. 16 December 2011. Disponível
emhttp://envolverde.com.br/educacao/mundo-educacao/africa-usara-experiencia-do-brasil-na-educacao/?utm_source=CRM&utm_medium=cpc&utm_campaign=16. Acesso em 21 de outubro de 2012.
69The Economist. “Speak softly and carry a blank cheque”. 15 de julho de 2010. Disponível emhttp://www.economist.com/node/16886442. Acesso em 21 de outubro de 2012.
70Para mais detalhes ver Correa. 71 Ibid., p. 14. 72Ver Muggah e Carvalho acima. 73Verhttp://www.abc.gov.br/projetos/cooperacaoPrestadaAfricaCotton4.asp. Acesso em 01 de novembro de 2012.
22
O Brasil e a crítica à paz liberal
Nesta seção de conclusão, a natureza das iniciativas de construção de paz pelo
Brasil e sua cooperação técnica no continente Africano e no Haiti são sintetizadas e
compreendidas em relação às deficiências centrais da paz liberal, destacadas pela
literatura crítica. Nesse esforço, é útil basear-se no inventário de argumentos trazidos
por Roger Mac Ginty e adaptados à análise crítica do contexto brasileiro, por Francine
Rossone:
(1) o etnocentrismo da paz liberal e sua associação com o Norte global;
(2) a concentração de poder nas mãos das elites nacionais e internacionais;
(3) seu foco em segurança, em detrimento da diversidade e da
emancipação;
(4) o foco em sintomas superficiais de conflito direto, ao invés de abordar
as causas profundas, o que a torna menos sustentável;
(5) a redução da construção da paz a uma série de tarefas tecnocratas;
(6) a impenetrabilidade da paz liberal e a ausência de adaptação de um
modelo preconcebido a circunstâncias locais;
(7) a adoção de um foco de curto prazo sujeito a políticas cíclicas;
(8) políticas neoliberais frequentemente negligenciam o custo social de
sua implementação;
(9) a paz soa ilusória, quando são modificadas estruturas de poder no
âmbito da sociedade local;
(10) há uma inabilidade para responder a expectativas locais, arriscando a
legitimidade dessas operações74.
No que diz respeito às acusações de etnocentrismo à paz liberal e à sua
associação ao Norte global, a abordagem brasileira à construção da paz, no âmbito
dos contingentes das Nações Unidas e em projetos em pequena escala no continente
africano, há um desafio explícito. A ênfase é dada à cooperação Sul-Sul e à troca de
técnicas específicas do Sul para o desenvolvimento e a estabilização. Projetos da
Embrapa e da ABC, particularmente, enfocam tecnologias e avançam conhecimento
74 Roger MacGinty, International Peacebuilding and Local Resistance: HybridForms of Peace. New York:
Palgrave Macmillan, 2011; pp. 41-42. As categorizações são de Francine Rossone da Silva, A Paz Liberal nas Operações de Peacebuilding: O ‘local’ e os limites da crítica.Dissertação de mestrado, IRI/PUC-Rio, 2012; pp. 54-55.
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produzido no Brasil, com base em experiências locais, o que ocorre em combinação
com uma retórica de política externa que abertamente desafia estruturas globais de
poder que são dominadas pelo Norte.
A respeito do controle das elites e dos indivíduos que se beneficiam dos
projetos de construção de paz, também há diferenças entre a abordagem brasileira e a
liberal.Com base em uma política adotada domesticamente, decorrente de corrupção
endêmica, os projetos brasileiros afastam o cidadão médio, avançando análises de
campo de locais onde os projetos são mais necessários e onde seriam mais
sustentáveis. Os pagamentos são feitos somente àqueles diretamente envolvidos e
somente para os trabalhadores e as partes.Essa estratégia implicitamente diminui a
possibilidade de as elites sequestrarem projetos, cuja atratividade como fonte de lucro
e de influência e assumidamente limitada, em decorrência de seu tamanho restrito.
Os projetos brasileiros, como resultado da mistura de forças e de fraquezas do
próprio país, preferem, inerentemente, focar não no lado da segurança da equação,
mas no lado do desenvolvimento. De fato, o país tem sido protagonista no
fortalecimento da Comissão para Construção da Paz, das Nações Unidas, e, ao mover
o mandato da MINUSTAH na direção de um documento mais embasado no
desenvolvimento. A negação retórica, se não prática, do uso da força e a ênfase nas
raízes socioeconômicas dos conflitos naturalmente distanciam a abordagem brasileira
do setor de segurança em que é menos provável que o país atinja maiores ganhos em
seus investimentos em recursos de política externa. Nesse sentido, a estratégia
brasileira está também menos sujeita à crítica que Ginty destaca a respeito da
superficialidade da paz liberal, em seu 4º ponto.
Com isso, faz-se mister destacar que uma abordagem tecnocrata não parece
ser a característica universal de projetos de construção da paz que sejam calcados em
desenvolvimento, o que é sutilmente diferente no caso brasileiro. Enquanto
benchmarks estão menos relacionadas à expectativa dos doadores e derivam, com
mais frequência, de um intercâmbio de perspectivas levado a cabo com as
contrapartes locais, os projetos estão ainda reduzidos a objetivos materiais
específicos. No entanto, ao construir sua dinâmica de assistência na lógica de
intercâmbio horizontal de capacidades e em um processo de aprendizado de mão-
dupla, a ajuda brasileira – ou a cooperação técnica, para usar os termos privilegiados
pelo discurso oficial –é mais capaz de se adaptar às necessidades locais e de
desassociá-las de objetivos de assistência que derivem de suas metas globais pouco
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ligadas à África em si, e ainda mais conectadas às do Norte, como a promoção de
comércio. Essa perspectiva aborda diversos pontos de Ginty, incluindo a atenção às
expectativas locais, em cujo caso são explicitamente a fonte dos objetivos dos
projetos.
Os projetos brasileiros permanecem relativamente ligados ao curto prazo, em
sua natureza, e não estão menos sujeitos a ciclos políticos e a troca-troca partidário do
que outra iniciativa de outro país. De fato, a subinstitucionalização emblemática do
sistema político brasileiro tende mais a arriscar a longevidade dos projetos, assim
como a aumentar a probabilidade de cancelamento dos mesmos, quando condições de
segurança se agravam. Políticos brasileiros, por sua vez, têm sido bastante cautelosos,
frequentemente suspendendo projetos diante do primeiro sinal de deterioração.
Dessa maneira, por um lado, assimilados, esses fatores fortemente servem para
aproximar a abordagem brasileira a de seus parceiros em desenvolvimento;
particularmente, há a redução da natureza de imposição de cima para baixo dos
projetos dos receptores e dos doadores; a horizontalidade e a mutualidade da
estratégia brasileira parecem aumentar a atratividade, como maneiras de erguer um
desafio para a paz liberal; por outro, os projetos permanecem pequenos por
necessidades, inconstantes e, na maior parte das situações, incapazes de lidar com o
protuberante componente da Segurança, quando a necessidade se aproxima. Diante
dessas tendências, a abordagem brasileira aparece como uma mistura entre desafios
significativos à lógica da paz liberal e remanescentes da dinâmica liberal que são
burilados com base em êxitos domésticos. Enquanto ainda encontra desafios como
aquele à sua exportabilidade e ao potencial de crescimento, a evolução da abordagem
das potências emergências à construção da paz e ao casamento entre segurança e
desenvolvimento é digna de considerável atenção.