o património perto de si (ii) - cresacor.pt · tro é a de raúl brandão, em ilhas desconhecidas....

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O Património perto de si (II) Apoio: Direção Regional da Cultura Entidade Promotora: Cresaçor Entidades Parceiras: Instituto Cultural de Ponta Delgada | Instituto Histórico da Ilha Terceira | Núcleo Cultural da Horta Conselho Editorial: Pedro Pascoal de Melo Conselho de Redação: Pedro Pascoal de Melo, Célia Pereira, Marta Bretão e Guilherme Pinto de Sousa Dizia-se, quando era rapaz, que na ilha do Pico nin- guém nascia no dia 25 de Abril. Ainda a data não tinha o significado que a Revolu- ção dos Cravos lhe deu, como dia marcante do nascimento da democracia em Portugal. E se alguém nascesse mesmo nesse dia, era mudada a data no registo, para o dia seguinte. Os tempos mudaram e tam- bém o 25 de Abril, como o dia dos cornos, também perdeu a sua pujança e apenas algum valente mais saudoso ou cio- so das velhas tradições teima em mantê-lo, mas pouco ou quase nada já damos pela sua existência. Se em São Mateus, como reza a tradição e alguns registos o confirmam, embora o façam em forma de ficção, havia al- guma ligação entre o profano e o religioso, nos outros luga- res não consta que houvesse qualquer ligação do dia dos cornos com a celebração do dia de São Marcos. Depois de muito ter ouvido falar, na escola, na festa dos cornos, resolvi, na companhia de um colega, ir assistir à festa. Com algum receio, colocámo- -nos atrás de uma parede e atra- vés dos buracos da mesma ficá- mos a ver todo o espectáculo. Já estava montado o material da fogueira para a folia. No meio do largo da «pedreira», erguia- -se um monte de lenha seca e alguma verdura e em cima uma considerável quantida- de de cornos de vaca e de boi. Um pau enorme e enfeitado era encimado por uma fan- tástica coroa, um monumen- tal par de cornos de um boi que terá feito a inveja a muita vaca mais atrevida daqueles tempos. Havia uma coroa, feita com umas folhas de louro e alguns cornos, colo- cada em cima de uma mesa, onde também estavam algu- mas garrafas de aguardente. Começou a festa. Dois ho- mens, recentemente casa- dos, presidiam à cerimónia. O dia dos cornos na ilha do Pico Largaram o fogo e foram ateando a fogueira. O baru- lho, ou melhor, a gritaria, ia acontecendo. E quando pas- sava algum homem casa- do, obrigavam-no a parar, a deixar-se coroar e depois era compensado com um copo de aguardente. Lembro-me de ver um tio meu a chegar, ser obrigado a descer da bi- cicleta e como quisessem coroá-lo e ele não estivesse de acordo, sempre agarrado à bicicleta, deu um grande pontapé na fogueira, o que fez com as guardas se abris- sem e assim lá fugiu ele, la- deira abaixo, mas sem levar com o par de galhadura que o esperava. Em contraparti- da, um conhecido figurante do lugar, amante profundo da aguardente e muito experien- te em matéria de cornos e co- roações frequentes e afama- das, estava sempre disposto, à falta de clientes, a ser coroa- do, pois tal lhe garantia mais um copinho de aguardente. Anoitecia, embora já fosse Abril adiantado, e tinha de regressar a casa. Ainda vi os mordomos da festa carrega- rem as cinzas para dentro de umas vasilhas e colocá-las em cima de um carrinho de mão. No dia seguinte, disseram-me que tinha havido procissão e do lado de dentro de cada portão de homem casado ti- nha sido depositado um pou- co da cinza dos cornos, para que nenhum se esquecesse da sua condição. Recordo a zara- gata que o professor fez no dia seguinte, quando chegámos à escola, porque vira algum de nós na procissão das cinzas e isso foi muito mau, porque a vara de castanheiro, guarda- da debaixo da secretária, saiu fora e certo desgraçado levou pela alma da caixa velha. Vou à procura de registos destas festas, mas a melhor e mais pitoresca que encon- tro é a de Raúl Brandão, em Ilhas Desconhecidas. Apesar de a data dedicada ao Pico ser a do dia 26 de Julho, al- guém lhe terá contado a his- tória e depois completou-a com o recurso ao coronel Afonso Chaves e à sua obra, As festas de São Marcos em algumas ilhas dos Açores e a sua origem provável. O livro foi publicado em 1926 e em nota de rodapé, ci- tando Afonso Chaves, diz-se que «Hoje em dia já não é grande o número de locali- dades onde se celebra esta festa, sendo evidente que o brilhantismo dela depende principalmente dos dirigen- tes da confraria.» Atribui-se a origem da festa dos cornos à colonização fla- menga e assim se explicaria que fosse no antigo distri- to da Horta onde pontuava a festa. Há dias confrontei um homem de 90 anos que não fazia a menor ideia des- tas festividades, pois sempre tendo residido na freguesia de São Caetano, contígua a São Mateus, onde se celebra- va com entusiasmo a festa dos cornos, não se lembrava de alguma vez tal ter aconte- cido lá pelos seus lados. Em São Mateus, no interes- sante e vivo relato de Renato Ávila, em Recios, edição de 2004, é-nos narrado, por- menorizadamente, a festa dos cornos, em tarde de São Marcos e com a participação alegre da rapaziada da esco- la, coisa que não vi acontecer na minha freguesia e no meu lugar das Sete Cidades. É des- se livro, esta saborosa prosa: «– Ó corno, ó irmão! Salta cá p’ra fora! – se os tens grandes, manda alargar a porta! – Não t’escondas qu’eles saem-te p’lo telhado! Os batedores, os casados mais novos, adiantavam-se na mira de algum fugitivo. E a miudagem delirava, to- cava com toda a força ferri- nhos, tambores, latas... tudo o que fizesse barulho.» Em tempos remotos, diz-se que teria havido a permissão de entrada na igreja, onde a coroa dos cornos era benzida com INFORMAÇÃO ÚTIL FREGUESIA DE SÃO MATEUS LOCALIZAÇÃO: Concelho da Madalena, ilha do Pico. COORDENADAS GPS: 38°25’59”N – 28°27’31”O OUTROS LOCAIS DE INTERESSE NAS REDONDEZAS: Igreja de São Mateus (séc. XIX); Ermida de N. S. da Conceição (séc. XVIII); Império do Espírito Santo (1914); porto de São Mateus (rampa de varadouro e edifícios relacionados com a caça à baleia, séc. XIX–XX). água benta, mas já não encon- trei ninguém que me pudesse corroborar nesta hipótese. E foi assim que antes do 25 de Abril em Portugal, já essa data era celebrada no Pico, mas por outras razões. MANUEL TOMÁS GASPAR DA COSTA Núcleo Cultural da Horta

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O Património perto de si (II)Apoio: Direção Regional da Cultura Entidade Promotora: Cresaçor Entidades Parceiras: Instituto Cultural de Ponta Delgada | Instituto Histórico da Ilha Terceira | Núcleo Cultural da Horta Conselho Editorial: Pedro Pascoal de Melo Conselho de Redação: Pedro Pascoal de Melo, Célia Pereira, Marta Bretão e Guilherme Pinto de Sousa

Dizia-se, quando era rapaz, que na ilha do Pico nin-guém nascia no dia 25 de Abril. Ainda a data não tinha o significado que a Revolu-ção dos Cravos lhe deu, como dia marcante do nascimento da democracia em Portugal. E se alguém nascesse mesmo nesse dia, era mudada a data no registo, para o dia seguinte.Os tempos mudaram e tam-bém o 25 de Abril, como o dia dos cornos, também perdeu a sua pujança e apenas algum valente mais saudoso ou cio-so das velhas tradições teima em mantê-lo, mas pouco ou quase nada já damos pela sua existência.Se em São Mateus, como reza a tradição e alguns registos o confirmam, embora o façam em forma de ficção, havia al-guma ligação entre o profano e o religioso, nos outros luga-res não consta que houvesse qualquer ligação do dia dos cornos com a celebração do dia de São Marcos.Depois de muito ter ouvido falar, na escola, na festa dos cornos, resolvi, na companhia de um colega, ir assistir à festa. Com algum receio, colocámo--nos atrás de uma parede e atra-vés dos buracos da mesma ficá-mos a ver todo o espectáculo. Já estava montado o material da fogueira para a folia. No meio do largo da «pedreira», erguia--se um monte de lenha seca e alguma verdura e em cima uma considerável quantida-de de cornos de vaca e de boi. Um pau enorme e enfeitado era encimado por uma fan-tástica coroa, um monumen-tal par de cornos de um boi que terá feito a inveja a muita vaca mais atrevida daqueles tempos. Havia uma coroa, feita com umas folhas de louro e alguns cornos, colo-cada em cima de uma mesa, onde também estavam algu-mas garrafas de aguardente. Começou a festa. Dois ho-mens, recentemente casa-dos, presidiam à cerimónia.

O dia dos cornos na ilha do Pico

Largaram o fogo e foram ateando a fogueira. O baru-lho, ou melhor, a gritaria, ia acontecendo. E quando pas-sava algum homem casa-do, obrigavam-no a parar, a deixar-se coroar e depois era compensado com um copo de aguardente. Lembro-me de ver um tio meu a chegar, ser obrigado a descer da bi-cicleta e como quisessem coroá-lo e ele não estivesse de acordo, sempre agarrado à bicicleta, deu um grande pontapé na fogueira, o que fez com as guardas se abris-sem e assim lá fugiu ele, la-deira abaixo, mas sem levar com o par de galhadura que o esperava. Em contraparti-da, um conhecido figurante do lugar, amante profundo da aguardente e muito experien-te em matéria de cornos e co-roações frequentes e afama-das, estava sempre disposto, à falta de clientes, a ser coroa-do, pois tal lhe garantia mais um copinho de aguardente.Anoitecia, embora já fosse Abril adiantado, e tinha de regressar a casa. Ainda vi os mordomos da festa carrega-

rem as cinzas para dentro de umas vasilhas e colocá-las em cima de um carrinho de mão. No dia seguinte, disseram-me que tinha havido procissão e do lado de dentro de cada portão de homem casado ti-nha sido depositado um pou-co da cinza dos cornos, para que nenhum se esquecesse da sua condição. Recordo a zara-gata que o professor fez no dia seguinte, quando chegámos à escola, porque vira algum de nós na procissão das cinzas e isso foi muito mau, porque a vara de castanheiro, guarda-da debaixo da secretária, saiu fora e certo desgraçado levou pela alma da caixa velha.Vou à procura de registos destas festas, mas a melhor e mais pitoresca que encon-tro é a de Raúl Brandão, em Ilhas Desconhecidas. Apesar de a data dedicada ao Pico ser a do dia 26 de Julho, al-guém lhe terá contado a his-tória e depois completou-a com o recurso ao coronel Afonso Chaves e à sua obra, As festas de São Marcos em algumas ilhas dos Açores e a sua origem provável. O livro foi publicado em 1926 e em nota de rodapé, ci-tando Afonso Chaves, diz-se que «Hoje em dia já não é grande o número de locali-dades onde se celebra esta festa, sendo evidente que o brilhantismo dela depende principalmente dos dirigen-tes da confraria.»

Atribui-se a origem da festa dos cornos à colonização fla-menga e assim se explicaria que fosse no antigo distri-to da Horta onde pontuava a festa. Há dias confrontei um homem de 90 anos que não fazia a menor ideia des-tas festividades, pois sempre tendo residido na freguesia de São Caetano, contígua a São Mateus, onde se celebra-va com entusiasmo a festa dos cornos, não se lembrava de alguma vez tal ter aconte-cido lá pelos seus lados. Em São Mateus, no interes-sante e vivo relato de Renato Ávila, em Recios, edição de 2004, é-nos narrado, por-menorizadamente, a festa dos cornos, em tarde de São Marcos e com a participação alegre da rapaziada da esco-la, coisa que não vi acontecer na minha freguesia e no meu lugar das Sete Cidades. É des-se livro, esta saborosa prosa:«– Ó corno, ó irmão! Salta cá p’ra fora! – se os tens grandes, manda alargar a porta! – Não t’escondas qu’eles saem-te p’lo telhado!Os batedores, os casados mais novos, adiantavam-se na mira de algum fugitivo. E a miudagem delirava, to-cava com toda a força ferri-nhos, tambores, latas... tudo o que fizesse barulho.»Em tempos remotos, diz-se que teria havido a permissão de entrada na igreja, onde a coroa dos cornos era benzida com

INFORMAÇÃO ÚTIL

FREGUESIA DE SÃO MATEUS

LOCALIZAÇÃO:

Concelho da Madalena, ilha do Pico.

COORDENADAS GPS:

38°25’59”N – 28°27’31”O

OUTROS LOCAIS DE INTERESSE NAS REDONDEZAS:

Igreja de São Mateus (séc. XIX); Ermida de N. S. da Conceição (séc. XVIII); Império do Espírito Santo (1914); porto de São Mateus (rampa de varadouro e edifícios relacionados com a caça à baleia, séc. XIX–XX).

água benta, mas já não encon-trei ninguém que me pudesse corroborar nesta hipótese.E foi assim que antes do 25 de Abril em Portugal, já essa data era celebrada no Pico, mas por outras razões.

MANUEL TOMÁS GASPAR DA COSTANúcleo Cultural da Horta