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O PATRIMONIALISMO SUL-RIO- GRANDENSE NA OBRA DE ÉRICO VERÍSSIMO RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ, Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Coordenador do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da UFJF. [email protected] Érico Veríssimo, certamente, é o escritor gaúcho que, de uma forma mais clara e completa, caracterizou, nos seus ensaios e romances, a feição patrimonialista da sociedade sul-rio-grandense. Pretendo ilustrar os aspectos mais importantes dessa caracterização, centrando a minha atenção, primordialmente, no romance O Tempo e o Vento que constitui, no meu entender, uma epopéia do homem dos pampas. O gaúcho, para o nosso escritor, tem uma personalidade especial, bem definida em face dos outros grupos sociais que povoaram o Rio Grande do Sul. Rude, visceralmente ligado ao pastoreio, possuidor de um conceito de coragem que se deveria definir na luta de peito aberto contra os seus inimigos, desconfiado em face do progresso trazido pelos estrangeiros, inserido num tipo de democracia telúrica sui generis constituída pela estância, o tipo humano apresentado por Érico foi burilado pela história ao longo dos séculos, desde a ocupação da antiga Província de São Pedro pelos bandeirantes vicentistas no século XVII, até os dias de hoje. Não que o gaúcho se reduza ao estancieiro e ao peão. Mas esse tipo rude é como que o centro a partir do qual foi se formatando, de maneira dialética, o conjunto de valores da alma do Rio Grande do Sul. Os imigrantes estrangeiros,

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O PATRIMONIALISMO SUL-RIO-GRANDENSE NA OBRA DE ÉRICO

VERÍSSIMO

RICARDO VÉLEZ RODRÍGUEZ,

Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. Coordenador do Núcleo de Estudos Ibéricos e Ibero-Americanos da UFJF.

[email protected]

Érico Veríssimo, certamente, é o escritor gaúcho que, de uma forma mais clara e completa,

caracterizou, nos seus ensaios e romances, a feição patrimonialista da sociedade sul-rio-grandense.

Pretendo ilustrar os aspectos mais importantes dessa caracterização, centrando a minha atenção,

primordialmente, no romance O Tempo e o Vento que constitui, no meu entender, uma epopéia do

homem dos pampas.

O gaúcho, para o nosso escritor, tem uma personalidade especial, bem definida em face dos

outros grupos sociais que povoaram o Rio Grande do Sul. Rude, visceralmente ligado ao pastoreio,

possuidor de um conceito de coragem que se deveria definir na luta de peito aberto contra os seus

inimigos, desconfiado em face do progresso trazido pelos estrangeiros, inserido num tipo de

democracia telúrica sui generis constituída pela estância, o tipo humano apresentado por Érico foi

burilado pela história ao longo dos séculos, desde a ocupação da antiga Província de São Pedro

pelos bandeirantes vicentistas no século XVII, até os dias de hoje. Não que o gaúcho se reduza ao

estancieiro e ao peão. Mas esse tipo rude é como que o centro a partir do qual foi se formatando, de

maneira dialética, o conjunto de valores da alma do Rio Grande do Sul. Os imigrantes estrangeiros,

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veremos no romance de Érico, foram se integrando. Mas fizeram isso ao redor do “homem dos

pampas”, originário colonizador dessas terras.

Eis a forma em que é descrito o tipo gaúcho pelo tropeiro José Fandango, em contraposição

aos denominados “gringos”, açorianos, italianos e alemães que foram chegando em ondas ao Rio

Grande, já desde o final do século XVIII:

Uma coisa, patrícios, eu lhes garanto: pra meu gosto o verdadeiro Rio Grande fica da margem direita do

Jacuí, pros lados de São Borja e pra baixo na direção de Uruguaiana, Santana do Livramento, Dom Pedrito e

Bagé principalmente na Campanha, onde sempre terçamos armas com os castelhanos. Da margem esquerda

pro norte e pro mar tem gringo demais. Não gosto de alemão. Falam uma língua do diabo, olham pra gente

com um olhar de pouco caso. Tudo neles é diferente: as roupas, as danças, as comidas, as casas, até o cheiro.

Quando vejo um homem de pele muito branca, cabelo de barba de milho e olho de bolita de vidro, até me dá

nojo. (...) Não é que seja mesquinho, somítico ou malevo: estrangeiro também é filho de Deus. Mas cada qual

deve ficar sossegado na sua terra com seus parentes e amigos, seus costumes e cacoetes. Duns anos pra esta

parte, tem chegado também muito italiano. Se empoleiraram na Serra, porque a alemoada, que chegou

primeiro, pegou os melhores lugares na beira dos rios. Já andei por essas colônias da região serrana. A fala

deles tem música e é doce como laranja madura e meio parecida com a nossa. (...) Vassuncês são muito moços,

não pegaram a Guerra dos Farrapos. Pois o velho Fandango teve a honra de servir com José Garibaldi1, que

também era gringo, mas gringo de senhoria. Sabem que foi que ele disse na sua língua atrapalhada? Que com a

nossa cavalaria era capaz de conquistar o mundo (...). Na vida do continente tudo anda demudado, quase

ninguém usa chiripá, agora é só bombachas. Nos fandangos já não dançam tanto a chimarrita, o tatu e a meia-

canha: o que querem é valsa, chotis, mazurca, polca, essas bobagens estrangeiradas. Se há coisa que me dá

quizília é ver esses tais postes do telégrafo, quando ando viajando pela campanha. Se eu fosse governo

mandava derrubar tudo. Onde se viu a gente passar bilhete pra outra pessoa por um arame? Isso até é uma

pouca vergonha, porque se quero dar algum recado, justo um chasque, arranjo um próprio ou vou eu mesmo.

(...) Pois é como estou dizendo, com tanto gringo, tanto estrangeiro com tanta moda morando em cidade nossos

homens estão ficando mui frouxos. E se não hai logo uma guerra ou alguma revolução vai tudo acabar maricas.

Nesse dia a castelhanada cruza a fronteira brincando e toma o continente a grito.2

A caracterização do núcleo duro da sociedade sul-rio-grandense ao redor do gaúcho das

estâncias coincide, a grandes traços, com a que foi desenvolvida, no terreno da sociologia, por

Oliveira Vianna (1883-1951)3. Para este autor, efetivamente, a colonização do Rio Grande do Sul

ensejou um tipo específico de bandeirismo, diferente daquele que prevaleceu em outras regiões

brasileiras (Minas Gerais, Província Fluminense, oeste paulista e do Paraná). Efetivamente, ao

1 Giuseppe Garibaldi (1807-1882) herói italiano, lutou ao lado das tropas dos rebeldes gaúchos na Guerra dos

Farrapos (1830-1840). Depois teve papel importante na unificação da Itália. 2 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento. O Continente, 2o. Tomo. Porto Alegre: Globo, 1948, p. 545-546. 3 Francisco José de Oliveira Vianna, o grande sociólogo fluminense que, como veremos, influenciou diretamente na

concepção patrimonialista (modernizadora) do Estado que empolgou aos gaúchos que tomaram o poder em 1930.

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passo que nestas regiões prevaleceu o bandeirismo predatório e o bandeirismo minerador, no Rio

Grande do Sul vingou, como atividade básica, o bandeirismo pastorial ou pastoril (com dois

momentos bem definidos: preia do gado vacum e eqüino, no final do século XVII, e colonização a

partir da consolidação de currais pastoris e do comércio do gado com a Província de S. Paulo, nos

séculos XVIII e XIX).4

As características heróicas dessa sociedade decorrem, no sentir de um outro sociólogo, Simon

Schwartzman5, do fato de o Rio Grande do Sul constituir uma fronteira móvel, no contexto do país-

continente, cujas outras regiões encontram-se naturalmente isoladas pelos contra-fortes dos Andes,

ao ocidente, pelo oceano, ao leste, e pela imensa floresta amazônica ao norte. Destarte, os gaúchos

tiveram de incorporar elementos característicos das regiões que se situam nas fronteiras da Ilha

européia (Rússia e Península Ibérica): espírito guerreiro aliado a uma forte ortodoxia em matéria

cultural (o que se traduziu, no Rio Grande do Sul, na ortodoxia castilhista, doutrinariamente

desenvolvida como ideologia de cruzada).

O escritor Érico Veríssimo, uma das maiores expressões das letras gaúchas.

Uma última anotação do ângulo sociológico: os gaúchos defrontaram-se, desde muito cedo, já

no século XVIII, com um repto de eficiência no seu esforço para organizar a sociedade. Essa

característica decorreu, no sentir de Oliveira Vianna, do ambiente de guerras constantes em que se

movimentavam, o que levou aos seus dirigentes a elaborarem instituições que respondessem a

necessidades vitais da sociedade. A propósito, escreve o sociólogo fluminense:

Os gaúchos movimentaram [os aparelhos de governo] com familiaridade e segurança: os atos de

governo que praticaram traziam todos um cunho de oportunidade social e atendiam necessidades reais – e não

teóricas – do povo. É que o poder público, o governo, se formara ali sob a pressão de circunstâncias muito

graves – e os que manobravam os aparelhos da administração agiam como quem sabiam, madura e

lucidamente, o que deviam fazer e o que era preciso fazer. Tinham educação prática das guerras, em que se

4 Cf. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – Volume 2: O Campeador Rio-

Grandense. 3a. Edição. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987, p. 16 seg.

5 Cf. SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 1a. Edição. Rio de Janeiro: Campus, 1982.

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viram envolvidos e batalharam. 6

Quatro itens desenvolverei: 1 – Breve síntese biobibliográfica do autor. 2 - O Estado

Patrimonial na narrativa de Érico Veríssimo. 3 – Os liberais sul-rio-grandenses segundo Érico

Veríssimo e posição crítica em face do Estado Patrimonial. 4 – Dimensões da religiosidade na

cultura gaúcha, em face do Estado Patrimonial.

1 – BREVE SÍNTESE BIOBIBLIOGRÁFICA DO AUTOR.

Érico Veríssimo nasceu em Cruz Alta, Rio Grande do Sul, no ano de 1905 e veio falecer em

Porto Alegre, em 1975. Nos seus anos juvenis exerceu a profissão de bancário, tendo sido, depois,

sócio de uma farmácia. Em 1931 casou-se com Mafalda Halfen von Volpe. Teve dois filhos,

Clarissa e Luís Fernando. Radicado em Porto Alegre a partir dos anos 30, trabalhou como reator da

Revista do Globo, tendo permanecido ligado à Editora da Livraria do Globo até os seus últimos

anos de vida, como secretário do Departamento Editorial e como conselheiro editorial. No decorrer

da década de 30 Érico Veríssimo consolidou a sua vocação literária, tendo publicado, em 32, o seu

primeiro livro de contos sob o título de Fantoches e, em 33, o seu primeiro romance, que saiu à luz

com o título de Clarissa. Alguns anos depois, em 1938, obteve um grande sucesso literário com a

obra intitulada Olhai os Lírios do Campo.

Em 1941, a convite do Departamento de Estado, realizou uma gira de três meses pelos

Estados Unidos, tendo visitado, entre outras, as cidades de Washington, Baltimore, Filadélfia, Nova

York, Boston, Chicago, Nova Orleans, São Francisco e Hollywood. Teve encontros com expoentes

do mundo das letras e da cultura européia e norte-americana como Hendrik W. Van Loon (1882-

1947), Pearl S. Buck (1892-1973), Robert Nathan (1894-1985), Thornton Wilder (1897-1975),

David Daiches (1912-2005), William Somerset Maugham (1874-1965), James Feibleman (1904-

1987), Thomas Mann (1875-1955), James Hilton (1900-1954), Walter Wanger (1894-1968) e

Aldous Huxley (1894-1963). Dessa sua primeira experiência norte-americana, o nosso autor legou-

nos um livro em que recolhe as suas impressões: Gato preto em campo de neve. Entre 1943 e 1945

voltou aos Estados Unidos, desta vez para lecionar cultura e literatura brasileiras na Universidade

de Berkeley. Dessa sua segunda viagem a terras estadunidenses, o nosso autor deixou memória no

livro intitulado A volta do gato preto. No ano de 1953, Érico Veríssimo voltou de novo aos Estados

Unidos, tendo desempenhado, nessa oportunidade, as funções de diretor do Departamento de

6 VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – Volume 2: O Campeador Rio-

Grandense. Ob. Cit., p. 136.

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Assuntos Culturais da Organização dos Estados Americanos.

O Tempo e o Vento, a trilogia que constitui a máxima obra do nosso autor, começou a ser

escrita em 1947, tendo sido terminada em 1962. Esta grandiosa obra recebeu importantes prêmios

da crítica brasileira, como o Jabuti e o Pen Club. Os romances de Érico Veríssimo encontraram

ampla divulgação pelo mundo afora, tendo sido publicados nos Estados Unidos, na Inglaterra,

França, Itália, Argentina, Espanha, México, Alemanha, Holanda, Noruega, Japão, Hungria,

Indonésia, Polônia, Romênia, Rússia, Suécia, Tchecoslováquia e Finlândia. O nosso autor destacou-

se, também, como escritor de livros infantis, tais como Os três porquinhos pobres, O urso com

música na barriga, As aventuras do avião vermelho e A vida do elefante Basílio. Dentre as suas

últimas obras destacam-se O senhor embaixador (1965), cuja narrativa se passa num país

caribenho – uma velada referência a Cuba -, O prisioneiro (1967), onde focaliza a problemática da

guerra do Vietnã, Incidente em Antares (1971), crítica bem-humorada do regime militar, na qual o

autor desmistifica o princípio positivista de que “os vivos são governados pelos mortos” e Solo de

clarineta (primeiro volume, 1973), que constitui as suas memórias. Ao morrer, em 1975, Érico

Veríssimo estava a escrever o segundo volume dessa obra, que foi publicado postumamente.

Uma simples enumeração da obra completa do nosso autor revela a sua enorme criatividade.

Seguindo a apresentação feita para a edição de Gato preto em campo de neve pela editora

Companhia das Letras (2005), os escritos de Érico Veríssimo podem ser agrupados em torno a três

grandes eixos: narrativas avulsas, o ciclo de romances que integram O Tempo e o Vento e as obras

de inspiração infanto-juvenil.

As narrativas avulsas abarcam as seguintes obras: Fantoches (1932), Clarissa (1933),

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Música ao longe (1935), Caminhos cruzados (1935), Um lugar ao sol (1936), Olhai os lírios do

campo (1938), Saga (1940), Gato preto em campo de neve (narrativa de viagem, 1941), O resto é

silêncio (1943), Breve historia da literatura brasileira (ensaio, 1944), A volta do gato preto

(narrativa de viagem, 1946), As mãos do meu filho (1948), Noite (1954), México (narrativa de

viagem, 1957), O senhor embaixador (1965), O prisioneiro (1967), Israel em abril (narrativa de

viagem, 1969), Um certo capitão Rodrigo (1970), Incidente em Antares (1971), Ana Terra (1971),

Um certo Henrique Bertaso (biografia, 1972), Solo de clarineta (memórias, 2 volumes, 1973 e

1976).

O Tempo e o Vento é, certamente, a magna obra de Érico Veríssimo e constitui, como foi

destacado na parte inicial deste ensaio, uma verdadeira epopéia do homem e da sociedade gaúcha.

A obra é integrada pelos seguintes romances: Parte I: O Continente, (2 volumes, 1949), Parte II:

O Retrato (2 volumes, 1951) e Parte III: O Arquipélago (3 volumes, 1961-1962). A nossa análise

do pensamento do escritor gaúcho acerca do Estado Patrimonial centraliza-se preferencialmente

nessa obra.

Mas Érico Veríssimo caracterizou-se, também, pelo fato de ter escrito farta narrativa

infanto-juvenil, se tornando assim, sem dúvida, um dos grandes dessa área da criação literária,

digno de estar ao lado de Monteiro Lobato (1882-1948) e Maria Clara Machado (1921-2001). As

obras que integram essa faceta da criação de Érico são as seguintes: A vida de Joana d´Arc (1935),

Meu ABC (1936), Rosa Maria no castelo encantado (1936), Os três porquinhos pobres (1936), As

aventuras do avião vermelho (1936), As aventuras de Tibicuera (1937), O urso com música na

barriga (1938), Outra vez os três porquinhos (1939), Aventuras no mundo da higiene (1939), A

vida do elefante Basílio (1939), Viagem à aurora do mundo (1939) e Gente e bichos (1956).

2 – O ESTADO PATRIMONIAL NA NARRATIVA DE ÉRICO VERÍSSIMO.

Autoritarismo. Essa é a característica fundamental dos governantes gaúchos flagrada pelas

personagens do romance de Érico Veríssimo. Um dos jovens rebentos republicanos, Terêncio

Prates, castilhista pelas suas origens familiares, mas crítico pela formação sociológica recebida na

Europa, em cena que o autor situava nos anos 30 do século passado, fazia o seguinte balanço dos

governantes gaúchos, do ângulo do temperamento político:

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Eu às vezes penso nos condutores de homens que o Rio Grande tem produzido, e como eles se parecem

em matéria de temperamento. Júlio de Castilhos7 gerou Borges de Medeiros8, que por sua vez gerou Getúlio

Vargas9. O que essas três figuras têm em comum, como um traço de família, é o caráter autoritário, a par duma

certa frieza nas relações humanas. 10

O Estado Patrimonial, para Érico Veríssimo, prima pela sua incompetência. O que depende

dele não funciona. Se os fenômenos naturais fossem da alçada da pachorrenta burocracia, haveria

uma subversão no estado do tempo. Eis o que afirmava um dos representantes da última geração

dos Cambará, Floriano, numa cena que se passa na Porto Alegre de 1945, ao observar, junto com o

seu amigo Roque Bandeira, o belo entardecer:

É uma sorte o pôr do sol não depender do governo e de nenhuma autarquia, porque, se dependesse, o

trabalho cairia nas garras de funcionários incompetentes e desonestos, haveria negociata na compra do

material, acabariam usando tintas ordinárias... e nós não teríamos espetáculos como este. 11

Ao lado da incompetência, o Estado patrimonial caracteriza-se pelo clientelismo e por uma

estrutura familística e anárquica. Não há espaço público. É tudo uma emanação da Casa Grande dos

poderosos. As instituições pouco importam. Império ou República, tudo depende das pessoas que

mandam, dos Donos do Poder. O Império, para o povinho – simbolizado no personagem Fandango,

na narrativa do Érico – é bom porque o Velho (o Imperador) é uma pessoa boa. Para que a

República? A sua proclamação seria um ato puramente formal. O que importa são as pessoas de

prol e as suas clientelas. Cidades, regimes, tudo pode ser proclamado na lei, mas as coisas ficam

como estão. Eis o ponto de vista do matuto (que termina sendo também o do patrão Licurgo), na

narrativa do nosso autor, que situa a cena nas vésperas da proclamação oficial do distrito de Santa

Fé como Vila, lá pelos idos de 1880:

- Chô égua! Não nasci ontem. Essa história de cidade é a mesma coisa. Dias atrás não se sabia de nada,

Santa Fé era vila. Muito bem. De repente chega um desses tais de telegramas e começa a folia. A Assembléia

resolveu que agora Santa Fé é cidade. Todo mundo fica louco, a festança começa, é sino, viva e foguete. Mas,

me diga, cambiou alguma coisa? Nasceu alguma casa nova, alguma rua nova, alguma árvore nova só por causa

7 Júlio de Castilhos (1860-1903), primeiro presidente do Estado do Rio Grande do Sul, instaurou a Ditadura

Republicana, dando ensejo à corrente política do Castilhismo e à Revolução Federalista de 1892. 8 Antônio Augusto Borges de Medeiros (1863-1961), líder do Partido Republicano Rio-grandense e segundo

presidente do Estado do Rio Grande do Sul, reelegeu-se por cinco vezes, dando ensejo à Revolução Liberal, que culminou com o Tratado de Paz de Pedras Atas de 1923.

9 Getúlio Dorneles Vargas (1883-1954), quarto presidente do Rio Grande do Sul e líder da Revolução de 1930, que o guindou à Presidência do Brasil.

10 VERÍSSIMO, Érico, O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Porto Alegre: Globo, 1962, p. 719. 11 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. Ob. cit., p. 699.

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do decreto? Não. Pois é... Pura conversa fiada, hombre! Licurgo sorria. - Se é assim, vassuncê deve ser também

contra a república. - Aí está outra bobagem. Se vier a república a gente vai ver como não cambia nada. Pode

cambiar a posição das pessoas. Quem está por baixo sobe, quem está por cima desce. Mas as coisas ficam no

mesmo, e o povinho continua na merda. - A república há de vir seja como for. Mas tome esse mate – disse

Licurgo, estendendo para o velho a cuia que Lindóia lhe entregara. Fandango, porém, sacudiu negativamente a

cabeça: - Não. Gracias. Nada de primeiros comigo. Nem com mulher nem com mate. Licurgo começou a

chupar na bomba e a cuspir o líquido esverdeado no chão. - Na próxima eleição – disse ele - vassuncê vai votar

com os republicanos. - Posso votar com o Curgo, que é meu amigo. O resto é bobagem. - Dessa vez havemos

de eleger os nossos candidatos. - Pode ser. Mas na última eleição esse tal de Assis Brasil12 não fez nem pro

fumo... - Espere, Fandango, que no ano que vem a coisa muda. O capataz encolheu os ombros. - O Velho é

bom. Certos apaniguados dele é que não prestam. Referia-se ao Imperador. - Mas pra derrubar essa cambada é

preciso derrubar também o Velho e o regime, substituindo esses figurões por gente nova como Júlio de

Castilhos, Rui Barbosa13, Venâncio Aires14 e outros. - Conversas! São todos uns bons filhos da mãe. Licurgo

tornou a encher a cuia d´água e passou-a a Fandango. Enquanto o velho ficou entretido a chupar na bomba, ele

falou com entusiasmo nos festejos do dia. Tinha a impressão – disse – de que o baile de gala do Paço

Municipal, com suas formalidades e seus medalhões, ia ficar apagado diante da festa do Sobrado, onde reinaria

a verdadeira democracia: negros e brancos, ricos e pobres, todos misturados e irmanados no ideal abolicionista

e republicano. Mas no momento mesmo em que dizia essas coisas, Curgo percebeu que não estava sendo

sincero, que não estava dizendo o que sentia. Era-lhe inconcebível a idéia de que aqueles negros sujos

pudessem vir dançar nas salas de sua casa, em íntimo contato com sua família. Sabia também que pouca, muito

pouca gente em Santa Fé compreendia o sentido da palavra república. 15

O chefe político apresenta-se, na narrativa de Érico Veríssimo, como dono da verdade, dono

do poder, dono da vida e da morte. Os chefes dos clãs em que se dividia a sociedade sul-rio-

grandense, Maragatos (monarquistas liberais) e Pica-Paus (republicanos positivistas), no belicoso

contexto do fim do Império, não dissimulavam o seu domínio sobre a informação. Somente podiam

circular as notícias que eles permitissem e que, evidentemente, favorecessem os seus interesses

políticos. Eis o primoroso relato que faz Érico acerca do comportamento do patriarca dos Maragatos

de Santa Fé, o velho coronel Bento Amaral, lá pelos idos de 1880:

A redação e as oficinas de O Arauto ficavam numa meia-água quase em ruínas, apertada entre o Paço

Municipal e o casarão dos Amarais. Toda a gente em Santa Fé sabia que o jornal dirigido por Manfredo Fraga

12 Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938), líder liberal gaúcho, cunhado de Castilhos e oposicionista da

Ditadura Científica Castilhista, foi deputado pelo Rio Grande do Sul no Congresso Nacional, diplomata e ministro da Agricultura. A sua crítica ao positivismo inspira-se na filosofia francesa liberal conhecida como “pensamento doutrinário”.

13 Rui Barbosa (1894-1923), líder liberal, foi deputado pela Província da Bahia no Parlamento Imperial e, no período republicano, ministro da Fazenda e candidato à Presidência. Crítico ferrenho das idéias de Júlio de Castilhos no Parlamento do Império e no Congresso Constituinte da República, em 1891.

14 Venâncio Aires (1841-1885). Seguidor de Castilhos. Primeiro redator-chefe de A Federação, órgão do Partido Republicano Rio-Grandense.

15 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Porto Alegre: Globo, 1948, p. 568-570.

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se mantinha graças ao apoio financeiro que lhe dava o Coronel Bento, o qual da janela lateral de sua residência

costumava berrar sugestões para os artigos de fundo: Ataque esses republicanos duma figa. Diga que são uma

corja de traidores! Ou então: Responda ao artigo de Júlio de Castilhos e conte que A Federação16 é

financiada pela Maçonaria. Ou ainda: Ameace que vamos contar donde saiu o dinheiro para construir o

sobrado dum certo republicano de Santa Fé. Dê a entender que vamos desenterrar cadáveres, e que muita

roupa suja vai ser lavada em praça pública! Aos oitenta e um anos de idade era ainda Bento Amaral um

homem cheio de energia. Caminhava lentamente, arrastando os pés, mas recusava-se a usar bengala, mantinha

uma postura ereta e detestava ser tratado como velho. (...) Ultimamente deixara de fumar, mas adquirira o

hábito de mascar fumo, de sorte que muitas vezes quando da janela de seu quarto gritava ordens para o

salafrário do Fraga – que lhe era útil, mas que no fundo ele detestava – as palavras lhe saíam da boca junto

com um chuveiro de saliva parda. Da outra casa, com a mão em concha atrás da orelha – pois era meio surdo –

o diretor de O Arauto escutava-lhe as ordens num silêncio servil e depois ia sentar-se à mesa de trabalho,

molhava a pena na tinta e com caligrafia caprichada traçava o artigo de fundo, de acordo com as instruções do

Chefe. Nunca publicava nada em seu jornal sem primeiro pedir a aprovação do Coronel Bento. 17

O chefe como dono da verdade. No contexto do Castilhismo ou no arraial dos Maragatos, a

palavra dele era a última. É o que Érico Veríssimo destaca neste trecho, que traduz o desabafo de

um importante republicano castilhista, o Dr. Terêncio Prates, em face da situação eleitoral de 1930,

quando a candidatura de Getúlio à Presidência da República tinha sido derrotada (o que daria ensejo

à ulterior Revolução de outubro desse ano), e diante da decisão de Borges de Medeiros (1863-

1961), no sentido de acatar o resultado eleitoral. Nessa circunstancia, Borges tinha externado a sua

decisão em Editorial publicado em A Federação, redigido com mesmo título (“Pela Ordem”) do

memorável texto, da lavra de Lindolfo Collor,18 contra as revoltas tenentistas dos anos vinte. Eis as

palavras de Terêncio:

... De sorte que estamos nessa situação ridícula. Perdemos a eleição, ameaçamos céus e terras...

Acabamos acovardados. O Dr. Borges de Medeiros acha que a questão ficou encerrada com a decisão das

urnas e deu um novo Pela Ordem que eu não aprovo mas acato, como soldado disciplinado do Partido. Se

havia alguma articulação revolucionária, essa foi águas abaixo depois do pronunciamento do chefe. 19

A mesma tendência a cerrar fileiras ao redor do chefe, quando este se pronuncia ou toma a sua

decisão, encontramos no seguinte texto, que se refere à atitude dos castilhistas e borgistas – que

16 A Federação foi o órgão do Partido Republicano Rio-Grandense. Nesse jornal Júlio de Castilhos comandou a

propaganda republicana no Rio Grande do Sul. 17 VERÍSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Porto Alegre: Globo, 1948, p. 559-560. 18 Lindolfo Leopoldo Boeckel Collor (1890-1942) foi o estrategista da Plataforma da Aliança Liberal (1929), que

Getúlio pôs em execução em 1930, ao assumir o Governo Provisório da República. Primeiro ministro do Trabalho, Collor elaborou as bases da legislação trabalhista getuliana.

19 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo, ob cit., p. 617.

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criticavam Getúlio pela sua aparente dilação em face da revolução em andamento, em outubro de

1930 -. Uma vez conquistado o poder nacional pelo líder gaúcho, todos têm de segui-lo, esquecendo

as diferenças de ontem:

Naquela manhã de segunda-feira os jornais trouxeram o manifesto de Getúlio Vargas à nação.

Terminava assim: Rio Grande, de pé pelo Brasil. Não poderás faltar ao teu destino glorioso! Tio Bicho leu o

documento, sorriu e ia fazer uma de suas observações mordazes quando Rodrigo o reduziu ao silêncio com um

olhar duro e estas palavras: - Cala a boca! Nesta hora não há lugar para céticos nem para maldizentes

profissionais. Maragatos e pica-paus enterraram suas diferenças para o bem do Brasil. Eu já esqueci as

indecisões e fraquezas do Getúlio: ele é agora o chefe de todos nós. Quem não está com a Revolução está

contra ela. Toma cuidado. Tu e o Arão [Stein]. Quem avisa amigo é. 20

Esse poder para controlar a informação traduziu-se, no Rio Grande do Sul, num estatismo

crescente, que terminou evoluindo, com o Estado getuliano, para uma estatização da economia,

pondo todas as Unidades da Federação a pedir esmola ao Centro do Poder. O autor desse perverso

fenômeno foi Getúlio Vargas, o último rebento do Castilhismo. Eis a forma em que Érico deixava

explícito esse processo, no diálogo que se passa entre três personagens da última saga de Pica-paus,

Terêncio (filho de estancieiros e sociólogo), Rodrigo Cambará, simpático ao getulismo e Floriano

(que exprime os interesses do gaúcho comum), numa espécie da avaliação do processo centralizador

praticado por Getúlio ao longo dos anos 30. Note-se, no texto a seguir, a dialética entre estatismo e

surgimento de hábitos de dependência dos estancieiros (que simbolizam a iniciativa privada) em

face do Governo:

Sim – retruca Terêncio - (...) a política econômico-financeira foi centralizada de tal modo que os

Estados passaram a depender do governo federal, perdendo praticamente sua autonomia política. Com o nosso

absurdo sistema fiscal e mais as arrecadações dos Institutos de Previdência, o governo central engorda à custa

da sangria dos Estados. Todo o dinheiro da nação se concentra no Rio. E os negocistas corvejam em torno dos

ministérios e das autarquias. - O Banco do Brasil tem exercido o que se poderia chamar de imperialismo

interno – diz Floriano. - É um Estado dentro do Estado. Rodrigo toma um gole de cerveja e, olhando para

Terêncio, sorri: - Vocês, estancieiros, são muito engraçados. Têm um sagrado horror a qualquer coisa que

cheire a intervenção estatal na economia particular, mas sempre que estavam em dificuldades financeiras iam

de chapéu na mão bater à porta do Governo, suplicando-lhe que interviesse nos negócios de vocês com

medidas providenciais, como empréstimos, moratórias, reajustamentos... Além de incoerentes, são uns

ingratos! - Seja como for – diz Terêncio – isso que aí está, essa desmoralização dos costumes, essa indecência

administrativa que se comunicou à nossa maneira de ver o mundo: tudo isso devemos a Getúlio Vargas. Tudo

20 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob. Cit., p. 688.

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isso aconteceu, começou ou se agravou durante o seu governo...21

O centralismo econômico do varguismo veio substituir um outro centralismo, que privilegiava

São Paulo sobre as outras regiões do Brasil. Na República Velha, o país foi loteado pelas

oligarquias estaduais, sendo que a elite paulista foi a mais privilegiada pelo governo central. Um

centralismo, o getuliano, de caráter nacional, veio se sobrepor a um outro centralismo, oligárquico,

exercido por São Paulo e girando em torno à economia cafeeira. A riqueza dos paulistas explica-se

pelas benesses que recebiam do governo. Raciocínio tipicamente patrimonialista, à maneira

pombalina: O Estado-empresário garante a riqueza da Nação22... Eis a descrição dessa realidade,

que constitui uma modalidade de dominação patrimonial, do governo central e de São Paulo, sobre

o resto do país, com privatização dos recursos públicos por parte de uma oligarquia. Érico

Veríssimo coloca essa caracterização na boca de um castilhista ilustrado, o Dr. Terêncio Prates, que

estudou sociologia em Paris:

Terêncio Prates ergueu-se, os músculos faciais retesados, e por um momento pareceu que ia esbofetear

o interlocutor. Depois, com uma voz que a emoção tornava gutural e baça, mas sem perder o ar didático e

autoritário, disse: - Sabe por que São Paulo é hoje o Estado mais rico da Federação? É porque sempre foi a

menina dos olhos do governo central, que sacrifica o resto do país para proteger a lavoura cafeeira paulista e

seu arremedo da indústria. Os fazendeiros de café recebem dinheiro adiantado do Banco do Estado têm sua

safra garantida a preços artificialmente elevados. Por isso sempre nadaram em dinheiro, viveram à tripa forra,

com automóveis de luxo, grandes casas, viagens freqüentes à Europa, ao passo que nós aqui no Rio Grande

levamos uma vida espartana, esquecidos do Centro, envolvidos em crises financeiras e econômicas crônicas...

Stein sorriu. - É o regime latifundiário, doutor. Essa situação vem do Império. Vem do período colonial,

quando começaram os privilégios da aristocracia rural, que governava o país e fazia as leis de acordo com as

conveniências. No princípio eram os senhores de canaviais e engenhos. Hoje são os fazendeiros de café. Mas

estão todos enganados se pensam que essa prosperidade inflacionária é a solução para a economia nacional. O

Brasil nunca teve lastro para garantir essas operações de crédito feitas no estrangeiro. E o resultado está aí. O

crash da Bolsa de Nova York precipitou a degringolada. Os preços do café caíram. O pânico começou. 23

21 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo, ob cit., p. 742-743. 22 Cf. PAIM, Antônio. (Organizador). Pombal e a cultura brasileira. Rio de Janeiro: Fundação Cultural

Brasil/Portugal – Tempo Brasileiro, 1982. 23 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p. 622-623.

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Getúlio Vargas, certamente, para Érico Veríssimo, constituía a súmula do autoritarismo

republicano. Ele foi o mais decidido herdeiro da tradição castilhista, e conduziria essa tendência até

formatar, ao redor dela, o processo modernizador e unificador do Brasil, efetivado ao longo dos

mais de quinze anos que esteve à frente dos destinos da República. Getúlio herdou o sentido da

ordem autoritária do Castilhismo. Mas, alicerçado nesse legado, ampliou o âmbito da ação

organizadora do Estado centralizador ao plano nacional. Fê-lo de maneira decidida, mas sem

aparentar açodamento, angústia ou desconforto. O seu comportamento, diante da conquista do

poder, não foi de espadachim arrojado (como o do Flores da Cunha24), nem de orador ardente

(como o do Oswaldo Aranha25); foi, sim, o do jogador que espera pacientemente a sua vez, para dar

a cartada final, sem perder a compostura e conservando aquele fleuma que levava os seus

correligionários a denomina-lo de “A Esfinge”. Uma “Esfinge” que, em face da desonra de se ver

privado do poder pelo qual lutara, não recuaria nem diante da morte. No seguinte trecho, fica

patente essa paradoxal característica do líder são-borjense:

Afinal de contas, - pergunta Rodrigo - de que pecado acusas o Getúlio? De não ter a simpatia de bom

moço, a palavra brilhante, a rica fantasia do Oswaldo Aranha? Ou as atitudes de espadachim e os impulsos

epileptiformes do Flores da Cunha? Discípulo de Castilhos, Getúlio foi sempre o homem da ordem. Não queria

lançar o Rio Grande numa luta perigosa. E depois, falemos com toda a franqueza, não conheço ninguém

dotado dum amor-próprio mais acentuado que o dele. É natural que tenha sempre procurado evitar situações

constrangedoras ou desmoralizadoras para seus brios de homem. Pode alguém censura-lo por isso? - O que ele

queria com suas negociações por baixo do poncho – insiste Terêncio, inflexível – era, repito, inculcar-se como

candidato oficial. Lutou por isso até a última hora, à revelia de amigos e correligionários. Em 1930, já havia 24 José Antônio Flores da Cunha (1880-1959) acompanhou Getúlio na Revolução de 30 e depois foi Interventor no Rio

Grande do Sul, durante o Estado Novo. 25 Oswaldo Aranha (1894-1960) seguiu Getúlio na Revolução de 30 e depois foi embaixador do Brasil em Washington

e chanceler, tendo acompanhado a criação da Organização das Nações Unidas, após a Segunda Guerra Mundial.

Getúlio Vargas, a bordo do trem que o conduziu de Porto Alegre ao Rio de Janeiro,

na Revolução de 1930.

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começado o tiroteio da revolução e ele se encontrava no Palácio, seguindo em calma a sua rotina, como se nada

de anormal estivesse acontecendo.... Com os olhos enevoados de sono, a voz pastosa, Tio Bicho conta: - Sei de

uma historiazinha pouco divulgada que ilustra muito bem o caráter do amigo do Dr. Rodrigo. Na tarde de 3 de

outubro de 1930, o momento exato em que Flores da Cunha, Oswaldo Aranha e um punhado de paisanos e

elementos da Guarda Civil atacavam de peito descoberto o Quartel-General da Região, uma dama, esposa de

um dos líderes que naquela hora arriscavam a vida no assalto, entrou no gabinete de Getúlio Vargas, no Palácio

do Governo, e encontrou o nosso homem fumando serenamente um charuto e brincando com o seu angorá

branco. Indignada diante daquela atitude de indiferença, explodiu: O senhor já pensou, Dr. Getúlio, que se essa

revolução fracassar estamos todos perdidos? Ele ergueu os olhos plácidos para a dama e respondem sem altear

a voz: Já. Tanto pensei, que trago aqui no bolso um revólver. Vivo, eles não me pegam. - O Getúlio não é

homem de suicidar-se! - exclama Terêncio. - Barganhará com a morte até o fim, como tem barganhado com os

homens e com a vida. 26

Vale a pena cotejar o texto que acabo de citar, com este outro extraído do Diário de Getúlio

Vargas, a fim de percebermos a fidelidade de Érico Veríssimo na exposição do arrazoado varguista.

Efetivamente, no dia em que estoura a Revolução, em 3 de outubro de 1930, Getúlio escreveu nesse

precioso documento:

Quatro e meia. Aproxima-se a hora. Examino-me e sinto-me com o espírito tranqüilo de quem joga um

lance decisivo porque não encontrou outra saída digna para seu estado. A minha sorte não me interessa e sim a

responsabilidade de um ato que decide do destino da coletividade. Mas esta queria a luta, pelo menos nos seus

elementos mais sadios, vigorosos e ativos. Não terei depois uma grande decepção? Como se torna

revolucionário um governo cuja função é manter a ordem? Eu serei depois apontado como o responsável, por

despeito, por ambição, quem sabe? Sinto que só o sacrifício da vida poderá resgatar o erro de um fracasso.27

Um pouco mais adiante, nas anotações que correspondem aos dias 6 e 7 de outubro do mesmo

ano, escrevia Getúlio:

Começo a fazer meus preparativos a fim de seguir para o teatro de operações, no Paraná. Desejo fazê-

lo, porque esse é o meu dever, decidido a não regressar vivo ao Rio Grande, se não for vencedor. Em Oswaldo

Aranha encontro apoio decidido a essa idéia.28

Peça-chave do autoritarismo castilhista era a tendência a legislar por decreto, que tinha sido

26 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob. Cit., p. 715. 27 VARGAS, Getúlio. Diário, Volume I – 1930-1936. (Apresentação de Celina Vargas do Amaral Peixoto; edição de

Leda Soares). São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1995, p. 4-5. 28 VARGAS, Getúlio. Diário, Volume I – 1930-1936. Ob. Cit., p. 8.

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consolidada pela Constituição Estadual de 1891, da lavra de Castilhos29. Essa tendência foi

longamente praticada por Borges de Medeiros e por Getúlio, no plano estadual. Chegado ao poder

federal, Vargas repetiu a prática da legislação por decreto do Executivo, ao pôr em execução a

política de equacionamento técnico dos problemas, que funcionava assim: perante uma questão a

ser resolvida, o Executivo pedia a opinião dos seus técnicos, especialistas em cada área (modelo

inspirado no famoso Conseil d´État napoleônico); uma vez apresentadas, pelos técnicos, as várias

alternativas possíveis, o Presidente da República, soberano, escolhia a variável que melhor lhe

parecesse. Tudo isso, evidentemente, à margem da deliberação política. Eis a forma em que Érico

colocava sobre o tapete este tema, pela boca de dois dos seus personagens, Rodrigo e Terêncio, que

dialogam acerca da Constituição de 1934, de inspiração liberal (fato que é apontado, pelos amigos

de Getúlio, como responsável pela impossibilidade de governar sob tal estatuto legal):

A Constituição de 1934 – diz Rodrigo – a carta pela qual vocês democratas tanto suspiravam, não

passou dum aborto, um mostrengo híbrido. Aqui esquerdizante, mais adiante fascistizante (para acompanhar a

moda), e ainda mais além reacionária, recebeu no fim uma leve e vistosa camada do açúcar cristalizado do

liberalismo. Não tinha unidade doutrinária nem técnica. Ora parecia uma constituição feita para povos

verdadeiramente civilizados, como os escandinavos, ora dava a impressão dum estatuto destinado a reger uma

comunidade colonial de botocudos. Uma verdadeira salada mista...e com azeite rançoso! Como muito bem

disse o Getúlio, a nova carta deixava o Presidente da República sem recursos para defender-se diante da

desenfreada disputa dos Estados. Terêncio ergue a mão em cujo anular brilha também um rubi: - A coisa é

mais simples. O Getúlio não sabia mais administrar dentro dum regime legal. Estava viciado em governar por

decretos. 30

Getúlio, no sentir de Érico Veríssimo, preparou a sua ascensão ao plano nacional, já quando

passou a desempenhar as suas funções de Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, após ter

participado do gabinete de Washington Luís (1869-1957) como Ministro da Fazenda. Poderíamos

dizer, à luz dos estudos desenvolvidos mais recentemente, que Vargas descobriu a dimensão

nacional dos problemas brasileiros muito tempo atrás, quando, a partir de 1923, passou a presidir a

bancada gaúcha no Congresso Nacional, como Deputado pelo Rio Grande do Sul. Duas coisas

aprendeu o jovem parlamentar: o Brasil não se resume ao Rio Grande e, para conquistar o poder, é

necessário saber se mimetizar sem contrariar os processos históricos, optando pelo reformismo,

mais do que pelos golpes revolucionários que desconheçam a tradição das nações.

29 Cf. a minha obra Castilhismo, uma filosofia da República. (Apresentação de Antônio Paim). 2a. Edição corrigida e

acrescida. Brasília: Senado Federal, 2000, p. 95 seg. 30 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo, ob cit., p. 729-730.

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A leitura da obra de Oliveira Vianna (1883-1951),31 certamente, acordou Getúlio para a

dimensão nacional dos problemas. E o convívio com o universo parlamentar da época tornou-o um

homem de mundo. De posse de uma visão mais ampla do país, Getúlio estava armado com

instrumentos suficientes para encarar os grandes problemas nacionais. No seguinte texto fica clara

essa nova visão do líder são-borjense, bem como a sua política de composição com as várias forças

políticas, típica da sua concepção saint-simoniana – que o levava a entender o corpo social não

como uma máquina (à maneira positivista), mas como um organismo (do jeito saint-simoniano).

Consta que Getúlio, assíduo leitor de Émile Zola (1840-1902), assimilou os princípios saint-

simonianos nos romances do grande escritor francês. A seguir, o texto de Érico Veríssimo em que o

nosso autor, liberal de coração, não deixa de reconhecer que o Rio Grande se transformou, também,

por obra da luta dos idealistas seguidores de Silveira Martins32 (1834-1901) e Assis Brasil, que

derrotaram o borgismo em 23:

No entanto – interrompe-o Rodrigo – depois de eleito Presidente do Rio Grande, quando o Dr.

Borges de Medeiros lhe apresentou uma lista de sugestões para a formação de seu secretariado, o

Getúlio teve um belo gesto de independência, dizendo: Já convidei meus secretários. E todos

aceitaram. Terêncio quer retomar o discurso, mas Rodrigo fala mais alto: - Depois de assumir o poder,

transforma por completo a vida política e social do Rio Grande. É preciso que vocês não esqueçam isso.

Pela primeira vez na história de nosso Estado, as vitórias eleitorais da oposição eram reconhecidas.

Getúlio governou com imparcialidade, à revelia de seu Partido. Chegou ao extremo de nomear para

postos importantes adversários políticos, libertadores e gasparistas. Era um vento novo e sadio a soprar

sobre as coxilhas. A coisa era tão subversiva e inesperada, que chegou a causar uma espécie de pânico

entre a velha guarda republicana. Se isso não é ter personalidade, então não sei mais nada.... - Ora -

replica Terêncio - Getúlio fez todas essas coisas com um olho frio e calculista na presidência da

República, esperando congregar republicanos e maragatos num bloco unido que amparasse sua

candidatura. - E quem o pode censurar por isso? - pergunta Rodrigo, inclinando o busto para frente. - Já

viste alguém ganhar eleição sem votos? E o que importa, Terêncio, é que a situação do Rio Grande

melhorou. Todos aqueles intendentes e delegados de polícia façanhudos e bandidotes que, à sombra da

indiferença ou da cegueira do borgismo, viviam fraudando eleições, espaldeirando e assassinando

membros da oposição, todos esses cafajestes se aplacaram... ou foram destituídos de seus postos. Com o

governo de Vargas começou o declínio do caudilhismo e do banditismo oficial no nosso Estado. - Mas

não se esqueça – intervém Floriano – que nada disso teria sido possível sem a Revolução de 23. - Como

31 A obra de Oliveira Vianna que primeiro influiu em Getúlio foi Populações meridionais do Brasil – Volume I:

Populações rurais do Centro-Sul, publicada em primeira edição em 1920. Cf. do citado autor, Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras. (Introdução de Antônio Paim). Primeira edição num único volume. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.

32 Junto com Assis Brasil, Gaspar da Silveira Martins foi a grande figura representativa do Liberalismo no Rio Grande do Sul. Pertenceu ao Conselho de Estado no decorrer do Segundo Reinado e foi Presidente da Província sul-rio-grandense.

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é que vou esquecer essa revolução, menino, se andei metido nela? 33

A Revolução de 30 somente poderia vingar, no sentir de Érico, se os Castilhistas da Segunda

Geração, à cuja testa estava Getúlio, não tivessem cooptado o elemento militar. Diferentemente do

que aconteceu na Argentina, onde os militares, já após as guerras de Independência, passaram a

exercer muitas vezes o poder, dando ensejo ao caudilhismo armado do tipo de Juan Manuel de

Rosas34 (1793-1877), os Castilhistas, no Rio Grande do Sul, constituíram, sob o rigoroso controle

de Castilhos e de Borges de Medeiros, uma liderança civil, que terminou, habitualmente, cooptando

os militares. Não foi diferente quando da tomada do poder nacional pelos gaúchos em 30. O autor

coloca o seu pensamento neste trecho, em que Rodrigo, getulista entusiasta, reflete a partir das

notícias que comenta com um conterrâneo seu, Juquinha Macedo. A cena se passa na véspera da

Revolução de 1930:

Rodrigo quis saber de pormenores da revolução argentina. O judeu mostrou-lhe os jornais. Uma junta

presidida pelo general Uriburu35 tinha assumido o governo do país vizinho. No manifesto que os militares

haviam lançado à nação, Rodrigo descobriu um trecho que se poderia aplicar, sem mudar sequer uma vírgula, à

situação brasileira. Declaravam os militares que se haviam rebelado para intimar os homens que atraiçoaram

no governo a confiança do povo e da República, ao abandono imediato dos cargos que não exerceram para o

bem comum, mas em exclusivo proveito de seus apetites pessoais. Rodrigo, porém, não se mostrou

entusiasmado com a queda de Irigoyen.36 Quando Juquinha Macedo lhe perguntou por que, explicou: - Seria

um desastre se nosso Exército, seguindo o exemplo do argentino, depusesse Washington Luís. Teríamos então

33 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit, p. 712-713. 34 Caudilho argentino, realizou, na base da violência indiscriminada, a unificação das Províncias ao redor da capital

federal, Buenos Aires. 35 General José Félix Uriburu (1868-1932). 36 Hipólito Irigoyen (1852-1933).

Posse de Getúlio como Presidente da República, em 1930, no Rio de Janeiro.

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uma ditadura militar e a situação ficaria ainda pior. Nossa revolução tem de ser feita por nós com a

participação do Exército. Tem de ser uma revolução civil e popular. 37

O getulismo, certamente, cooptou o elemento militar, tendo-se explicitado esse fenômeno no

apoio que o Clube 3 de Outubro, integrado por oficiais do Exército, deu constantemente a Getúlio

ao longo da sua permanência no poder. A expressão burocrática desse apoio traduziu-se na

instituição dos Interventores Militares que o ditador espalhou pelos quatro cantos do país, ao lado

dos Interventores Civis. Dessa presença habitual e ativa do Exército emergiu, na nossa realidade

social, o fenômeno do patrimonialismo estamental38 que, completado pelos Conselhos Técnicos

Integrados à Administração, constituiu uma das marcas registradas do tecnocratismo autoritário

getuliano, cujas raízes se prolongam até os dias de hoje, com a presença decisiva dos tecnocratas (e

dos militares, no ciclo 1964-1985) ao redor do Executivo hipertrofiado. Essa participação do

Exército como quadro estamental de sustentação do poder terminou entregando, no período

getuliano, a política de segurança interna aos militares, com os desmandos que se tornaram

habituais entre os membros da Força Pública. Uma primeira revelação desse estado de coisas é dada

por Érico, nas palavras que põe em boca de Rodrigo, o fiel getulista, numa cena que se passa nos

anos 30; a repressão brasileira não deixava nada a dever à que se praticava na União Soviética:

Cala essa boca, Arão [Stein] – exclamou Rodrigo com uma agressividade paternal. - Tua panacéia

bolchevista não vai resolver nossos problemas. E uma coisa te digo: se te prenderem de novo, não contes mais

comigo pra te tirar da cadeia. Tens a língua solta demais. - Não se pode falar nem academicamente? -

perguntou o judeu, com um sorriso contrafeito. - Academicamente ou não – replicou o dono da casa – levaste

várias sumantas de borracha na Polícia, não foi? Uma vez te quebraram três costelas, te deixaram sem sentidos,

quase te liquidaram. Se eu não interviesse terias morrido e ninguém ficava sabendo... Já vês que nossa Polícia

não compreende a linguagem acadêmica, e nisso ela se parece muito com essa GPU que vocês têm na União

Soviética. Stein passou a mão perdidamente pelos cabelos. - Eu sei... - murmurou, como a recordar-se das

torturas sofridas e passadas. - Acontece que as costelas são minhas, doutor, e minha vida é minha. 39

Anos mais tarde, ao fazer o balanço das violências policiais do período getuliano, já

derrubado o Estado Novo, em meados da década de 40, o nosso autor põe em boca dos seus

personagens a seguinte avaliação da violência do período ditatorial, destacando a ausência de

valores morais que se tornou habitual entre os detentores do poder, de um lado, e dos que foram

37 VERISSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p. 648. 38 Nesta forma de dominação, o líder patrimonial administra o poder como extensão da sua casa, mas possui, ao seu

serviço, um rudimentar serviço burocrático integrado por servidores fiéis, que podem constituir uma casta ou estamento. Cf. a respeito, WEBER, Max. Economía y sociedad. (Tradução ao espanhol de José Medina Echavarría et alii), 1a. Edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, IV Volume, p. 123 seg.

39 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p. 623.

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vítimas dele, como Luís Carlos Prestes40 (1898-1990):

Acusam o ditador – diz Floriano – de muitos pecados que me parecem apenas veniais. A meu ver o seu

pecado mortal, o maior de todos, foi o de ter feito vista grossa aos banditismos de sua Polícia. Rodrigo retesa o

busto e exclama: - Te asseguro que ele não sabia de nada! - Como podia não saber? - replica Terêncio. - É

inadmissível. - Uma vez – improvisa o dono da casa, absolvendo-se ao mesmo tempo da mentira – cheguei a

perguntar a Getúlio se havia algum fundamento nas negras histórias que corriam sobre a Polícia, e ele me

respondeu que tinha mandado fazer uma investigação, mas que nada fora apurado de positivo. Disse mais: que

tinha entregue inteiramente o setor policial aos tenentes... - E depois disso naturalmente lavou as mãos.... -

murmura Tio Bicho. - Não vais me dizer também diz Terêncio – que teu amigo não ficou sabendo que seu

governo entregou a esposa de Prestes,41 grávida de muitos meses, à Gestapo, que a mandou para a morte num

campo de concentração. Rodrigo pensa em replicar: Tratava-se dum complicado caso de direito internacional,

mas cala-se, lembrando-se de quanto ele próprio havia ficado revoltado ante o fato. - A insensibilidade moral

de Getúlio Vargas – e ao dizer isto a voz de Terêncio está cheia dum surdo rancor – só encontra par na de Luís

Carlos Prestes, que, ao sair da prisão, não hesitou em estender a mão e oferecer uma aliança política ao homem

que foi seu carcereiro durante nove anos e, pior ainda, ao homem que havia entregue sua esposa aos carrascos

nazistas, tornando-se assim seu co-assassino. Encontraram-se os dois monstros num palanque de comício

político. O chefe comunista lívido e grave, o Ditador rosado e sorridente. Prestes aceitava a situação como um

sacrifício imposto pelo seu Partido, em nome duma ideologia, dum programa político definido. E Getúlio? Por

que se sujeitava à situação constrangedora? Por puro desejo de continuar no poder? Ou apenas como uma

conseqüência da sua supina descrença dos homens e dos valores morais? 42

Mas se a violência policial era marca registrada do regime de Patrimonialismo Modernizador

instaurado pelo getulismo, também formava parte dessa cultura política o carisma do chefe,

indiscutível para o nosso escritor que coloca em boca de um membro do clã dos Cambarás, o

simpático Rodrigo, o reconhecimento dessa qualidade do líder da Revolução de 30. Eis o relato

acerca do carisma getuliano, inserido no contexto da viagem empreendida por Getúlio, em 1930, de

Porto Alegre até o Rio de Janeiro, para tomar posse do poder:

Cerca das dez horas da manhã, o trem presidencial chegou sob aclamações à estação de Santa Fé. A

plataforma estava atestada de povo e o entusiasmo atingia as raias do delírio. Empurrado pela multidão que

queria ver o Presidente de perto, um velho caiu entre as rodas do trem, que felizmente estava parado, e em

poucos segundos foi içado para a plataforma, pálido, escoriado e trêmulo, mas já dando vivas à Revolução.

Getúlio Vargas apareceu na parte traseira do último carro, sorriu, acenou para a multidão, que prorrompeu em

40 Luís Carlos Prestes foi inicialmente um dos tenentes das revoltas dos anos 20 e terminou se radicalizando, tendo

ingressado no Partido Comunista Brasileiro, passando a residir, durante vários anos, na extinta União Soviética. 41 Olga Benário Prestes (1908-1942), alemã e membro do Partido Comunista da União Soviética, terminou morta pela

polícia nazista num campo de concentração. 42 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob. Cit, p. 740.

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vivas, aplausos e gritos. Estava metido num uniforme militar caqui e tinha no pescoço uma manta com as cores

da bandeira do Rio Grande que uma dama lhe dera o dia anterior no Rio Pardo. O primeiro membro da

comitiva presidencial que Rodrigo abraçou foi João Neves da Fontoura43. Caiu depois nos braços de Flores da

Cunha. Por fim conseguiu subir para o carro e foi abraçado pelo Presidente, que lhe perguntou: Que é isso no

braço? - Um recuerdo da noite de 3 de outubro – murmurou Rodrigo. E ante o sorriso aberto, de bons dentes,

de Getúlio Vargas, pensou: Eu não me lembrava como este patife é simpático! 44

Um outro traço de cultura patrimonialista que assoma na caracterização que Érico tece da

liderança de Getúlio, é o relativo à corrupção no seu governo. Embora não conste que o líder são-

borjense tivesse se enriquecido pessoalmente com os dinheiros públicos – pelo menos, nesse

aspecto, Getúlio manteve-se fiel à velha tradição castilhista de respeito ao tesouro do Estado – no

entanto, os seus colaboradores e amigos tiveram longo sucesso financeiro, haurido às expensas dos

cargos oficiais. O nosso escritor não põe meias palavras na constatação dessa realidade, que é

denunciada pelo intelectual e estancieiro Terêncio, em que pese os panos quentes que o seu amigo

Rodrigo Cambará tenta pôr no assunto:

Com o rancor verde nos olhos, o estancieiro [Terêncio] continua: - Jamais se roubou tanto e tão

descaradamente nas esferas governamentais do Brasil como na era getuliana, em que imperou, como nunca em

toda a nossa História, o empreguismo, o nepotismo, a advocacia administrativa, o peculato, o suborno, a

malversação de fundos públicos... E a imoralidade dos homens de governo e de seus sócios nas negociatas ao

fim de algum tempo acabou por contaminar irreparavelmente quase todas as classes sociais. Rodrigo olha para

Terêncio e sorri com indulgência, como se estivesse diante duma criança ou dum débil mental. - A atitude do

Ditador, que permaneceu apático, sorridente ou omisso diante de todo esse descalabro moral – continua o outro

– conseguiu anestesiar a opinião pública, que passou a rir do que lhe devia provocar choro e ranger de dentes,

aceitando o regime da safadeza e do golpe como norma, de tal modo que hoje em dia a palavra honesto tem

entre nós um sentido pejorativo. Rodrigo fez um gesto de impaciência: - Que idéia fazem vocês do Presidente

da República? A de que ele é um guarda-noturno? Um ecônomo de sociedade recreativa? Um fiscal? Um

mestre-escola de palmatória em punho a castigar os maus alunos? Ou um feitor com um chicote na mão?

Como pode um homem sozinho, fechado no Catete, ser responsável por tudo quanto acontece num país do

tamanho do nosso? Ora, vocês estão exigindo de Getúlio qualidades de mago, de demiurgo. - Não, Rodrigo –

replica Terêncio – eu me refiro também à patifaria, aos desmandos e às negociatas que se processaram debaixo

do nariz do Ditador, e que foram praticadas por amigos, parentes e áulicos. Eu não acuso, e ninguém até hoje

acusou Getúlio de desonestidade pessoal, no que toca aos dinheiros públicos. Mas eu o acuso, isso sim, de ter

sido tolerante com os ladrões, de se haver acumpliciado com eles pelo silêncio ou pela indiferença. 45

43 João Neves da Fontoura (1887-1963) deputado castilhista, grande orador e autor do clássico livro de Memórias, 1o.

Volume - Borges de Medeiros e seu tempo. (Porto Alegre: Globo, 1958). 44 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p. 695. 45 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p. 741-742.

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Na trilha da generosidade para com os dinheiros públicos, fartamente utilizados como

instrumento político, Érico destaca um outro aspecto que caracterizou o Getulismo: o

desenvolvimento da imagem do líder como “Pai dos Pobres”. Num diálogo entre os gaúchos

próximos do poder, o nosso autor ilustra esse aspecto do populismo varguista. Falam do Presidente,

em meados dos anos 40, Rodrigo Cambará, o seu filho Floriano e o amigo Roque Bandeira:

Dizem que ele suprimiu as liberdades civis, fechou a Câmara e o Senado, instituiu a censura, deu força

ao DIP, e mais isto e mais aquilo... Floriano, vai me buscar uma toalha lá no quarto de banho... Quando o filho

lhe traz a toalha, Rodrigo põe-se a enxugar as costas e o peito por onde o suor escorre em grossas bagas. -

Vocês intelectuais vivem enchendo a boca com a palavra liberdade. Agora eu pergunto: para que as massas

hão de querer liberdade? Para que querem imprensa livre os favelados? O que essa pobre gente deseja mesmo é

ter o que comer, o que vestir e onde morar. - Luís Carlos Prestes falou pela sua boca... - diz Bandeira. - Espera,

Roque. Me deixa continuar. Este país precisava e ainda precisa dum homem como o Getúlio, dum governante

paternal capaz de descer ao nível do povo e dar-lhe exatamente o que ele necessita. Reconheço que ao assumir

o governo provisório em fins de 30 o Getúlio não tinha programa definido, não sabia que fazer, mas depois

encontrou duas grandes metas, dois grandes objetivos: melhorar as condições de vida do povo e proclamar a

independência econômica do Brasil. Olhem para trás e vejam quanta coisa esse homem extraordinário

realizou....46

Talvez o aspecto que mais chamou a atenção do nosso autor em relação ao Estado patrimonial

getuliano foi a volúpia do poder que animava ao líder são-borjense. Volúpia, mas também índole

racional e fria, que o levava a esperar o desenrolar dos acontecimentos sem se precipitar, nem por

paixão, nem por medo. O quadro que emerge dos diálogos entre os personagens de Érico é o de um

novo Bonaparte, seguro de si mesmo, corajoso, intuitivo, aglutinador dos seus seguidores, capaz de

atrair os possíveis contendores para depois elimina-los, um a um. Em síntese, é a figura de um

Maquiavel caboclo. Eis uma primeira caracterização desse aspecto, num diálogo entre Rodrigo

Cambará, Tio Bicho, Florêncio e Terêncio Prates:

Há um silêncio, que Rodrigo quebra com uma risada. - O Getúlio merece um livro! - exclama. - Acho

que sou eu quem vai escreve-lo – ameaça Terêncio. - E por que não? Só te peço uma coisa. Trata primeiro de

conhecer bem o homem. - Tu o conheces bem? - Bem, bem mesmo não posso dizer que o conheça. Ninguém

conhece... Só Deus. Mas melhor que tu, ah!, disso tenho a mais absoluta certeza. E se queres, posso desde já te

dar umas notas psicológicas sobre o nosso herói... - Considero-te suspeitíssimo no assunto. - Mas escuta.

Escutem todos vocês. Antes de mais nada o biógrafo de Getúlio Vargas terá de levar em conta certos traços de

seu caráter que o tornam uma figura singular neste país, dando-lhe vantagens muito grandes sobre os outros

políticos. É um homem calmo numa terra de esquentados. Um disciplinado numa terra de indisciplinados. Um

46 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p 735.

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prudente numa terra de imprudentes. Um sóbrio numa terra de esbanjadores. Um silencioso numa terra de

papagaios. Domina seus impulsos, o que não acontece com o Flores da Cunha. Controla sua fantasia, coisa que

o Oswaldo Aranha não sabe fazer. Se o João Neves usa da sua palavra privilegiada para dizer coisas (e coisas

que às vezes o comprometem), Getúlio é o mestre da arte de escrever e falar sem dizer nada. - E tu consideras

isso uma virtude? - Pergunta Terêncio. - Num país imaturo como o nosso, considero. Muitas vezes não dizer

nada para um político é um gesto de defesa comparável ao de certos animais que por mimetismo conseguem

tornar-se da cor do terreno, para ficarem invisíveis e para salvarem a pele. - Não esqueças que o Getúlio se tem

revelado o maior corruptor da nossa História... - interrompe-o Terêncio. - Só se corrompe aquilo e aqueles que

são corruptíveis. Como dizia Machado de Assis47, a ocasião faz o furto e não o ladrão, porque este já estava

feito. Não queiras culpar o meu amigo da vulnerabilidade dos outros políticos brasileiros. Vítimas de suas

paixões: mulheres, jogo, cavalos de corrida, luxo e outras fraquezas e vaidades, ficam às vezes à mercê de

quem tem a chave do Banco do Brasil e dos grandes empregos. - Mas o que estás dizendo é algo

monstruosamente cínico! - Perdão. Eu não inventei este mundinho em que vivemos. Ele existiria mesmo que

eu não existisse. Faz-se um silêncio, ao cabo do qual Floriano se dirige ao pai: - O senhor afirma então que

Getúlio é um homem absolutamente sem paixões? Rodrigo hesita um instante. Depois: - Não – diz. - Acho que

sua grande, talvez a sua única paixão é a do poder. - Poder para que? - pergunta Terêncio. - Para nada? - Talvez

poder pelo poder – intervém o Tio Bicho: - Ars gratia artis. - Mas cinqüenta milhões de brasileiros não podem

ficar na dependência desse capricho pessoal! - exclama Terêncio. 48

A volúpia do poder getuliana enraizava-se não apenas numa natureza burilada para o mando,

mas também na profunda convicção do líder são-borjense de que era necessário, para sobreviver na

luta política (um combate pela vida, como o das espécies), saber se mimetizar no contexto dos

concorrentes, a fim de não se desgastar com agressões gratuitas, mantendo incólume a capacidade

de combate para os grandes enfrentamentos. Lição de sobrevivência que, como já foi destacado

anteriormente, Getúlio aprendeu do darwinismo social que empolgava a visão de mundo de Émile

Zola, seguidor das idéias da fisiologia social do conde Henri-Claude de Saint-Simon 49 (1760-

1825). A respeito dessa feição getuliana, Érico deixou-nos o seguinte texto, que resume um diálogo

tardio (já tinha acontecido a derrubada do Estado Novo e Getúlio, após o retiro na sua fazenda de

Itu, no Rio Grande, já tinha voltado, pelo voto popular, à cena parlamentar). O diálogo se passa

entre Terêncio Prates e Floriano Cambará:

Floriano prossegue: - Quanto a Getúlio Vargas... acho que, vendo-se perdido numa floresta amazônica,

cheia de bichos ferozes ou venenosos, de todos os tamanhos, procedeu como o jabuti das nossas lendas

indígenas. Descobriu que para sobreviver em meio dos animais maiores que ameaçavam devora-lo, tinha de

47 Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908), a figura mais importante da literatura brasileira do final do século

XIX. 48 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p. 731-732. 49 Henri-Claude de Saint-Simon nobre, filósofo e pensador social francês, autor de clássicos da sociologia e da

filosofia política como La Physiologie sociale e Le Nouveau Christianisme.

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usar a astúcia e a paciência e jogar com o fator tempo. Começou a lançar um bicho grande contra outro bicho

grande, uma cobra venenosa contra outra cobra venenosa, raciocinando assim: Enquanto eles se entredevoram

eu continuo vivo tocando a minha flauta. Terêncio ergue vivamente a cabeça: - Ninguém estava interessado na

sobrevivência ou na flauta do Getúlio. E a função dum chefe de governo não é essa. Repito que ele é

responsável pelo clima de imoralidade que reinou no país durante o tempo em que foi Ditador e Presidente.

Floriano passa a mão pelos cabelos, com o ar de quem está perdido. - Bom – replica se o senhor insiste nesse

problema da culpa, acho que todos somos culpados em menor ou maior grau. Fomos cúmplices do Estado

Novo por comissão ou omissão. Quando os carrascos da Polícia queimavam com a brasa dum charuto os bicos

dos seios da companheira de Harry Berger50, eu estava estendido na areia de Copacabana, lendo Aldous

Huxley. E havia outros em situações e posições ainda mais comprometedoras. - Se te referes a mim – diz

Rodrigo – perdes o teu tempo. Tenho a consciência tranqüila. Não pertenço à súcia dos moralistas ausentes

como tu e outros intelectuais. Ninguém faz omeleta sem quebrar ovos. E quem não quer se molhar, que não

saia pra chuva... Terêncio levanta-se, abafando um bocejo. - Seja como for – diz Rodrigo, erguendo os olhos

para o estancieiro e empunhando um exemplar do Correio do Povo51 – o eleitorado deu a última palavra. O

Getúlio está eleito deputado e senador. Não há remédio... Vocês o terão de volta à vida pública, queiram ou

não queiram. E, num gesto de terceiro ato, atira o jornal aos pés de Terêncio Prates. 52

Vale a pena destacar um aspecto que aparece mencionado na última parte do texto que acaba

de ser citado: todos os brasileiros foram responsáveis, de uma forma ou de outra, pelo advento do

Estado Novo, com a sua coorte de crueldades e atos autoritários. Todos, na medida em que ninguém

se prontificou para tomar parte ativa na vida pública, tendo preferido se entregar aos prazeres e

afazeres da vida privada. Érico chama a atenção, aqui, para o complexo de insolidarismo clânico

que afeta ao brasileiro, como destacou Oliveira Vianna em Populações Meridionais do Brasil e em

Instituições Políticas Brasileiras. Não fomos formados para o espírito público! Encastelamo-nos na

nossa patota. Getúlio, de outro lado, reforçou essa tendência atávica do brasileiro, propalando, ao

longo do Estado Novo, o preconceito de que fazer política é “sujar as mãos”.

A arte da sobrevivência política estava acompanhada, no comportamento getuliano, por uma

atitude que os personagens de Érico qualificavam de gelada. O Chefe da Revolução de 30 não

perdia a frieza de espírito, o que o conduzia a agir no momento oportuno, sem se incomodar com o

que passava à sua volta. O texto a seguir flagra uma animada conversa entre vários personagens,

dentre os quais se destaca o advogado Rodrigo Cambará. A cena se passa às vésperas da Revolução

de outubro de 1930, em Porto Alegre, no momento em que é conhecida a notícia do assassinato de

50 Harry Berger, cujo nome verdadeiro era Arthur Ewert (morto em 1959), era militante comunista a serviço da União

Soviética, juntamente com a sua companheira Elisa Ewert (Auguste Elise Saborowski). 51 Junto com Zero Hora, um dos grandes jornais diários de Porto Alegre. 52 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob. Cit., p. 744-745.

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João Pessoa53 (1878-1930):

E o Getúlio? - Indagou Juquinha Macedo. Rodrigo olhou em torno. Achavam-se no escritório, sentados

e atentos às suas palavras - além do homem que fizera a pergunta – Toríbio, Terêncio Prates, Alvarino Amaral

e José Lírio. - A atitude do Getúlio, ao que parece, é a mesma que ele patenteou na noite em que mataram o

João Pessoa. Gelada, é o adjetivo que encontro para ela. E isso me dá arrepios... (...) - Terminado o banquete –

prosseguiu Rodrigo - os convivas saíram e encontraram na frente do clube uma verdadeira multidão. A notícia

do crime se espalhara e o povo estava indignado, comovido e agitado. Havia gente com lágrimas nos olhos. Ao

avistarem o Oswaldo e os outros políticos, começaram a gritar: Fala Oswaldo Aranha! Fala Oswaldo Aranha!

Eu sei dizer que se improvisou um comício. (...) O Aranha chama seu irmão mais novo, o Zê Antônio54, um

rapaz de seus dezessete anos, e manda-o ir correndo avisar o Getúlio de que o povo estava a caminho do

Palácio e que esperava dele um pronunciamento... O jovem Aranha chegou esbaforido aos aposentos do

Presidente, e encontrou-o sentado a afagar a cabeça do angorá que tinha no colo. Despejou-lhe a notícia, que

Getúlio escutou sorridente e sereno. Já a essa hora o povo estava na frente do Palácio e gritava: Getúlio!

Getúlio! Vocês pensam que o homenzinho se afobou? Qual! Pôs o gato em cima da escrivaninha, encaminhou-

se para a janela, abriu-a e ficou olhando para a multidão, que prorrompeu numa ovação, talvez a mais vibrante

que ele tenha recebido em toda a sua vida. E quando a massa silenciou e todos ficaram esperando um discurso,

um pronunciamento definitivo, um incitamento à revolução, a Esfinge de São Borja limitou-se a sorrir e não

disse patavina! 55

Essa atitude gelada fazia com que Getúlio conseguisse manter a cabeça fria nos momentos de

maior ebulição social, como quando eclodiu a Revolução Paulista em 1932. A confusão reinante foi

a oportunidade que o Presidente escolheu para devorar os seus dois principais adversários dentro da

situação: Flores da Cunha e Oswaldo Aranha. Eis o relato do maquiavelismo da Esfinge de São

Borja, enquadrado numa conversa entre Rodrigo Cambará e Terêncio Prates:

Conversas! - exclama Rodrigo. - Fantasias! A coisa é mais simples. O que São Paulo queria era recuperar

a hegemonia política nacional que lhe escapou das mãos em 30. E vocês já pensaram que, se essa revolução

tivesse sido vitoriosa, o país seria obrigado a adotar a famigerada ortografia do General Bertoldo Klinger? 56 -

Seja como for – diz Terêncio – foi um belo movimento em que os paulistas deram provas admiráveis de

coragem física e moral. - De acordo – replica Rodrigo – mas foi uma revolução de grã-finos. A massa operária

permaneceu indiferente. - Houve um momento – intervém Floriano – em que a vitória de São Paulo dependeu

do Rio Grande. Até hoje não compreendo como e por que o General Flores da Cunha faltou com o seu apoio

aos paulistas... - Muito simples – tenta explicar Terêncio. - O Flores e o Aranha sempre viveram fascinados,

hipnotizados pelo Getúlio. Na hora da decisão, nosso general ficou com o Bruxo. E com o correr do tempo o

53 Presidente da Paraíba, foi assassinado em 1930, dando ensejo ao levante de Getúlio Vargas no Rio Grande do Sul. 54 José Antônio Aranha foi prefeito de Porto Alegre no período de 1952-1954. 55 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p. 642-643. 56 General Bertoldo Klinger (1884-1969) participou das revoltas tenentistas e, posteriormente, aderiu à Revolução

Constitucionalista de S. Paulo, em 1932.

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Getúlio os triturou e devorou a ambos. Tirou o Flores da interventoria e forçou-o a exilar-se. E quando parecia

que o Aranha começava a impor-se como um candidato natural à presidência da República, Getúlio mandou-o

para Washington como embaixador. 57

Atitude semelhante teve Getúlio Vargas às vésperas do Estado Novo, num complicado

cenário nacional e internacional em que prevaleciam as posições extremadas e os golpes de força. A

Esfinge de São Borja voltou a jogar um paciente xadrez em que esperou pelo desenrolar dos

acontecimentos, somente intervindo quando as circunstâncias o favoreciam claramente, na sua

empreitada de centralização absoluta do poder em sua mão. Para Érico, a atitude getuliana teve

tintes de malandragem macunaímica, como podemos observar no texto a seguir, que revela uma

conversa desenvolvida entre Rodrigo Cambará, Tio Bicho, Floriano e Terêncio Prates:

Floriano quer desviar a conversa para outro assunto, mas Terêncio inicia nova catilinária contra o golpe

de 10 de novembro de 1937. Rodrigo escuta-o agora com uma paciência meio aborrecida e, aproveitando uma

pausa do outro, diz: - Eu explico esse golpe de Estado de outro modo. Escutem. Quando se aproximava o fim

do período presidencial iniciado em 34, o Brasil, vocês se lembram, apresentava um quadro alarmante. O

Armando Salles era o candidato da plutocracia paulista saudosa do poder. Plínio Salgado 58 candidatava-se em

nome dos integralistas, com um programa totalitário. O Dr. Goebbels 59 lançava suas redes de espionagem e

intriga sobre o Brasil, articulando camisas-verdes com camisas-pardas. Escolhido como candidato oficial à

sucessão, José Américo 60 procurava atrair as esquerdas com frases e promessas avermelhadas, e os comunistas

já se aninhavam à sua sombra. O Flores da Cunha, que apoiava o Armando Salles61, tinha no Rio Grande uns

20.000 homens em armas. Havia até quem pressionasse o Getúlio para que ele entregasse o governo aos

integralistas, ficando com relação ao Plínio Salgado assim como o General Hindemburg 62 estava com relação

57 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob. Cit., p. 726. 58 Plínio Salgado (1895-1969). Fundador e Líder do Movimento Integralista Brasileiro. 59 Joseph Goebbels (1897-1945). Ministro da Propaganda do governo alemão à época do Nazismo. 60 José Américo de Almeida (1887-1980). 61 Armando Salles de Oliveira (1887-1945). 62 General Ludwig von Hindemburg (1847-1934) presidente da Alemanha à época da ascensão do nazismo.

O escritor francês Émile Zola, em cuja narrativa inspirou-se Getúlio Vargas para adotar a concepção organicista e evolucionista da sociedade.

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a Hitler63. De Washington, preso aos encantos desse outro bruxo que era o Presidente Roosevelt 64, Oswaldo

Aranha puxava a sardinha brasileira para a brasa americana... A confusão era geral. - E nesse mar revolto e

incerto – diz Tio Bicho -seu amigo Getúlio navegava no seu barquinho de papel, ao sabor do vento e das

correntes... - E como solução para a grande crise – ironiza Terêncio – inventou-se o Plano Cohen 65. - Hoje se

sabe – diz Rodrigo – que esse documento foi forjado pelos integralistas. O Góis 66 fingiu que acreditava nele...

- O Góis e o Getúlio – completa Tio Bicho. Rodrigo sorri. - Não. O Getúlio deixou que o Góis fingisse por ele.

E lavou as mãos. - Não fez outra coisa durante todo o seu governo senão parodiar Pilatos – diz o estancieiro. -

E esse plano fantástico, essa conspiração inexistente foi o pretexto para o golpe de 1937 e para o famigerado

Estado Novo! - O curioso – intervém Floriano – é que já por essa época a atitude e a filosofia getulianas, essa

sua neutralidade, essa capacidade de omitir-se diante dos acontecimentos, essa espécie de fatalismo cínico-

gaiato do vamos deixar como está para ver como fica tinham de tal maneira contaminado o pais, que o próprio

Presidente quase acabou vítima dela. Eu me refiro ao assalto ao Palácio Guanabara em maio de 38. Ninguém

pareceu muito interessado em salvar a vida do Ditador e de sua família... 67

Embora muitos dos críticos da longa ditadura de Getúlio Vargas tenham dito que o que

impulsionava ao líder são-borjense era apenas o poder pelo poder, Érico Veríssimo põe de relevo,

no seu romance O Tempo e o Vento, que a presença de Getúlio na Presidência da República

obedeceu a imperativo de estadista: garantir a unidade nacional, evitar a privatização do Estado por

oligarquias ou por minorias fanatizadas, modernizar o Brasil e prepara-lo para os reptos da

industrialização no século XX. Getúlio, em que pese o seu autoritarismo e apesar dos conchavos

que povoaram a sua longa permanência no cenário político brasileiro, foi o grande estadista do

século que passou, assim como Dom Pedro II 68 foi, sem sombra de dúvidas, para o escritor gaúcho,

o grande estadista do século XIX – e nisto deter-nos-emos em item que será desenvolvido mais

adiante -. Mas o líder de São Borja não agiu sozinho. Teve, no que tange à formulação das leis

sociais, um auxiliar inestimável, o gaúcho de São Leopoldo, Lindolfo Boeckel Collor. Eles dois

integraram a cabeça da denominada “Segunda Geração Castilhista”, que pensou os projetos de

modernização do Brasil superando o provincianismo dos castilhistas históricos, já a partir da

campanha da Aliança Liberal, em 1929. Em relação à avaliação da política getuliana sob esse

prisma, Érico colocou na voz de Rodrigo Cambará e de Roque Bandeira a exposição do arrazoado

justificativo:

63 Adolf Hitler (1889-1945), chanceler da Alemanha e chefe do Estado alemão ao longo da Segunda Guerra Mundial. 64 Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), Presidente dos Estados Unidos à época da Segunda Guerra Mundial. 65 O Plano Cohen, que revelava uma suposta conjuração comunista para a tomada do poder no Brasil., foi um

documento falso elaborado pelo então capitão do Exército Olímpio Mourão Filho (1900-1972) e serviu como motivo imediato para a decretação, por Getúlio, da Ditadura do Estado Novo, em novembro de 1937.

66 O general Pedro Aurélio de Góes Monteiro (1889-1956), natural de Alagoas, foi Chefe de Gabinete de Getúlio Vargas a partir da Revolução de 1930. Defendia o alargamento da Ditadura Castilhista ao Brasil.

67 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p. 733-734. 68 Dom Pedro de Alcântara de Orleans e Bragança (1825-1891), coroado Imperador do Brasil como Pedro II.

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Terêncio mira fixamente a ponta dos próprios sapatos, os lábios encrespados numa expressão de

cepticismo. - Manteve a unidade nacional – continua Rodrigo. - Evitou o caos e a ruína. Se não fosse a

coragem e a habilidade do Getúlio, o Brasil hoje estaria nas mãos dos comunas do Prestes ou dos galinhas-

verdes69 do Plínio. - Diz o Eduardo – interrompe o Tio Bicho – que está nas mãos dos americanos. - Não sejam

bobos. Virem esse disco batido. O país seria vendido aos americanos se o candidato da U. D. N.70 fosse eleito,

o que felizmente não aconteceu. Mas não me interrompam. O Getúlio dotou o país duma indústria siderúrgica

que faz inveja ao resto da América Latina. Deu aos trabalhadores leis sociais mais avançadas que as da própria

União Soviética! Mas de que é que estás rindo, Roque? - Estou rindo das leis sociais. - Tu sempre com teu

espírito de contradição. Negarás acaso que devemos a nossa legislação trabalhista ao Getúlio? Bandeira depõe

o copo no chão ao lado da garrafa. - Devagar com o andor – diz ele. - Quem inventou essas leis sociais foi o

Lindolfo Collor, e por sinal custou-lhe muito impingi-las ao Getúlio. - Quem te contou essa mentira? - Espere e

escute. Vou mais longe. O seu Presidente relutou muito em criar o Ministério do Trabalho. Foi o Oswaldo

Aranha quem a duras penas o convenceu disso. E sabem que foi que o Dr. Getúlio disse, depois de assinar o

decreto? Queira Deus que esse “alemão” (referia-se ao Collor) não vá nos incomodar. - Mais uma fantasia

das muitas que se inventaram em torno do Presidente! - Foi o Marcondes Filho71 – reforça Terêncio – quem

mais tarde abriu os olhos do Getúlio para o valor demagógico, a força política desse ministério e das leis do

Collor. E assim o seu amigo foi empurrado para o trabalhismo... Quando minutos depois, Terêncio põe-se de

pé, murmurando Bom, são horas..., Rodrigo segura-lhe a aba do casaco e diz: - Senta, homem. Agora é que a

conversa está ficando boa. Senta ou então tomo a tua retirada como uma confissão de derrota. Como Napoleão

Bonaparte72, Getúlio Vargas é um assunto inesgotável. Terêncio volta ao seu lugar. E Floriano, que sente a

camisa ensopada de suor – pois o calor aumentou sensivelmente nesta última meia hora – olha para o

estancieiro e pensa: Esse homem não sua. Jamais se despenteia. Suas calças nunca perdem o friso. O

colarinho nunca se enruga. A gravata não sai do lugar. Seu hálito recende a Odol. Seu lenço, a lavanda.

Aposto como tem em casa a Enciclopédia do Larousse. E um binóculo francês. E uma “epée de combat”. Seus

livros, bem encadernados, cheiram a naftalina. Coitos conjugais semanais, com a luz apagada. 73

3 – OS LIBERAIS SUL-RIO-GRANDENSES SEGUNDO ÉRICO VERÍSSIMO E

POSIÇÃO CRÍTICA EM FACE DO ESTADO PATRIMONIAL.

O nosso autor era decididamente um liberal. Considerava que da Revolução Francesa restou

uma herança de luz, em que pese as atrocidades do Terror jacobino e o absolutismo do ciclo

napoleônico, que para arrumar a casa “atrasou o relógio da História”. Os ideais liberais, em O

Tempo e o Vento, são geralmente expostos nos diálogos que o médico de Santa Fé, o Doutor

Winter, mantém com os seus concidadãos. Ou na correspondência que o mesmo cruza com um dos

69 Galinhas Verdes: nome popular dado aos Integralistas. 70 União Democrática Nacional, partido de inspiração liberal, liderou a oposição a Getúlio Vargas no período de 1951

a 1954. 71 Alexandre Marcondes Filho (1892-1974). 72 Napoleão Bonaparte (1769-1821). 73 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob cit., p. 735-736.

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ícones das liberdades gaúchas no ciclo inicial do Castilhismo, o jornalista Karl von Koseritz 74, mais

uma das incontáveis vítimas da prepotência dos Pica-paus. Eis o teor de um desses diálogos,

mantido com um representante do stablishment, o Major Graça:

Em suma – e neste ponto o Dr. Winter abriu ambos os braços – descontados erros, violências, matanças

inúteis, vinganças e ódios pessoais, dessa Revolução [Francesa] sobrou alguma coisa. E essa alguma coisa

sobreviveu também às guerras napoleônicas. - E se me faz favor – perguntou Nepomuceno, olhando

significativamente para o Major Graça – que vem a ser essa alguma coisa? Winter esclareceu: - Os Direitos do

Homem, as liberdades inalienáveis do indivíduo, o direito que cada cidadão tem à liberdade, à propriedade e à

segurança. A liberdade de imprensa, de culto e de palavra para todos, sem nenhuma distinção. (...) Napoleão

atrasou o relógio da História. Ainda há países que não saíram de todo das sombras da Idade Média. Mas em

certos círculos do mundo floresce o pensamento liberal. A semente foi lançada. Não resta a menor dúvida. 75

A admiração de Érico pelos valores do Liberalismo encontrou nos liberais gaúchos belos

exemplos de devoção à causa das liberdades. O maior deles, sem dúvida, era o Conselheiro Gaspar

da Silveira Martins, um dos líderes do Partido Liberal do Império. Eis a forma em que o escritor

gaúcho relata a visita que o ilustre homem público fizera à casa do líder castilhista da cidade de

Santa Fé, Licurgo Cambará:

Havia algum tempo, Gaspar da Silveira Martins passara por Santa Fé, onde realizara uma conferência,

após a qual – para surpresa de todos – em vez de ir ao casarão dos Amarais, visitara o Sobrado, onde ficara até

altas horas da noite a conversar com Bibiana, Licurgo e o Dr. Rezende. Tinha sido uma noitada memorável, e a

casa ficara toda cheia da voz trovejante daquele extraordinário orador cuja legenda o país inteiro conhecia. O

Conselheiro deixara a gente do Sobrado impressionadíssima. Era um homem alto, de largo peito, e postura

atlética; tinha um olhar magnético e uma irresistível capacidade de sedução. O Dr. Toríbio, que quase não

tivera a coragem de abrir a boca na presença do estadista, dissera dele mais tarde: É um misto de Sansão e

Demóstenes. E se me pedissem para pintar Júpiter, barbudo e formidável por entre nuvens de tempestade, com

um feixe de raios nas mãos eu o representaria na figura do Conselheiro! Depois que Silveira Martins se

retirara, avó e neto ficaram ainda por mais duma hora a conversar, entusiasmados, sobre a personalidade do

visitante da noite. Comentara Licurgo: É um grande tribuno. Pena que não seja dos nossos. Fandango, que

durante todo o tempo da visita ficara de longe, bombeando e escutando o Conselheiro, resumira sua admiração

numa frase: Bichinho mui especial. Bibiana dissera simplesmente: Tem o jeito do Capitão Rodrigo. É um

homem.76

74 Karl von Koseritz (1830-1940), empresário e jornalista de origem alemã, de inspiração liberal, foi um dos grandes

críticos do Castilhismo no Rio Grande do Sul. 75 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 527. 76 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob cit., p. 589.

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A admiração de Érico pelo grande Silveira Martins salta à vista, também, no poema com que

o escritor abre o 2o. Tomo de O Continente, e que põe em boca do poeta popular, o major Maneco

Lírio, ex-combatente da Guerra do Paraguai:

(...) Só existe um homem no mundo Capaz de salvar o país

O Conselheiro Gaspar Martins, honra e glória da nação gigante no físico e no moral, no saber e na inteligência

Conhecedor de quinze línguas entre vivas e mortas Mais eloqüente que Gambetta77, Demóstenes78 ou Mirabeau79 E até a grande Eleonora Duse80, quando viu o Conselheiro

Disse lá na sua língua dela Que magnífico Otelo ele não faria!

E quando Gaspar Martins solta o verbo de fogo Com sua voz de trovão

Os pigmeus da República se encolhem. Pois o nosso Conselheiro é contra esta situação

E nas campinas do Rio Grande deu o grito de revolução E de todos os quadrantes surgiram federalistas e gasparistas

De lenço colorado no pescoço E meu filho José Lírio foi o primeiro a se apresentar.

Os dias do Castilhismo estão contados! 81

Se Gaspar da Silveira Martins era o grande herói a ser admirado, a fonte de toda essa

grandeza cívica era, no entanto, não apenas a individualidade dele, mas a personalidade do

Imperador Dom Pedro II, que dava vida às Instituições Imperiais. Interessante destacar o caráter

eminentemente personalista da abordagem que Érico Veríssimo faz da nossa realidade política, uma

característica bem típica da cultura patrimonialista, que tudo reduz à dimensão das pessoas, sem se

tomar o cuidado de analisar as Instituições. O nosso escritor colocou na boca do Pe. Otero, vigário

de Santa Fé lá pelos anos 80 do século XIX, as seguintes palavras que destacam a figura ímpar do

77 Léon Gambetta (1838-1882) líder francês. 78 Demóstenes (384 a C. - 322 a C) grande orador e líder ateniense. 79 Conde Honoré de Mirabeau (1749-1791) parlamentar francês. 80 Eleonora Duse (1858-1924), uma das mais importantes atrizes do teatro italiano. 81 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 659-660.

O grande tribuno e estadista liberal Gaspar da Silveira Martins, uma das personalidades gaúchas mais admiradas por Érico Veríssimo.

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Imperador:

O Pe. Otero interveio: - Política e decência nunca andam de mãos dadas. São inimigos mortais. O

oficial voltou-se para o sacerdote: - Mas o nosso Imperador sabe fazer uma política com uma decência

indiscutível. - O nosso Imperador é um homem excepcional... observou o padre. Winter simpatizava com

aquele Imperador barbudo e paternal a respeito de quem se contavam tantas histórias e anedotas. Havia ao

redor dele uma aura de lenda. O médico observara também como a reputação da integridade de caráter do

soberano influía poderosamente na vida social da nação. Era um exemplo de honradez e bondade a ser seguido.

D. Pedro II como que dava a nota tônica ao ambiente moral do país. De certo modo – refletiu ainda Winter –

Sua Majestade já fazia parte do folclore nacional como uma espécie de anti-Malazarte. 82

Assim como Érico cantou as virtudes do Conselheiro Silveira Martins, dedicou também, ao

Imperador Dom Pedro II, longo poema em que traça as linhas mestras do que constituiu o

significado desse grande homem para o imaginário social brasileiro. Novamente, o nosso escritor

coloca as suas palavras nos versos cantados pelo major Maneco Lírio, o poeta popular:

Diacho! Hoje é 15 de novembro.

Arranca a folhinha e lê a efeméride 1889. O Marechal Deodoro83 proclama a República.

Chô mico! Antes não tivesse proclamado coisa alguma e ficasse Em casa quieto, deixando a nação em paz

(...) O major volta a cabeça pra dentro da sala e olha com ternura

O retrato do Imperador. Expulsarem do país um homem como esse

Verdadeiro neto de Marcos Aurélio!84 (....)

Amigo de grandes homens como o Papa, Lamartine85, Pasteur86 e outros Soberano democrata pai dos necessitados Sábio como poucos.

(...) E apesar de tudo isso era a modéstia em pessoalmente

O grande Victor Hugo87, o vate de “Os Miseráveis”, recebeu o Imperador em sua casa de Paris. Chamou o netinho e disse

Beije a mão de Sua Majestade Vai então o nosso Monarca, aponta para o poeta e exclama:

Esta sala, mon enfant, agora só tem uma majestade: Vosso avô.

Expulsaram do país um homem como esse! (...)

Doutra feita, na América do Norte, sem cortejos nem fanfarras Como um simples viajante

Nosso Dom Pedro II visitou a Exposição do Centenário na cidade de Filadélfia88

82 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 520. 83 Marechal Deodoro da Fonseca (1827-1892) proclamou a República em 1889 e foi o primeiro presidente. 84 Imperador Marco Aurélio (164-180) grande pensador, além de excelente estrategista. A sua obra Pensamentos é um

clássico da filosofia estóica. 85 Alphonse Lamartine (1790-1869) poeta e parlamentar francês. 86 Louis Pasteur (1822-1885) cientista francês. 87 Victor Hugo (1802-1885), grande romancista francês, autor do clássico Os Miseráveis.

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Falou com Alexandre Graham Bell89, mas não se deu a conhecer Só perguntou

Que diabo de aparelho é esse que vosmecê tem na mão? (...)

Santo Deus! Esta coisa fala (...)

Quero fazer uma encomenda desses tais de telefones pro governo do meu país Mas final de contas quem é o senhor?

- Imperador do Brasil. O outro quase caiu para trás.

E foi um homem como esse que os republicanos mandaram embora. 90

A Monarquia é, no Brasil, uma instituição profundamente enraizada na alma popular. Essa é

uma convicção que se sedimentou no pensamento de Érico Veríssimo. Convicção, aliás, que eu

compartilho firmemente. O povinho, quando quer dizer que algo é excelente, relaciona-o com a

Monarquia: Rei das tintas, Rei do futebol, Rei legítimo das peixadas, Rei do Carnaval... Ninguém

ousaria pensar em Presidente das Tintas, Presidente do futebol, Presidente legítimo das peixadas,

Presidente do Carnaval... A idéia republicana ficou na periferia, ao passo que a imagem do

Monarca se entranhou fundo no espírito do povo. Esta é a idéia que achamos presente no seguinte

diálogo entre Licurgo, Florêncio, Toríbio e o Dr. Winter (que encarna a opinião liberal), quando

todos estão a discutir a conveniência de ser proclamada a República em substituição ao Império:

Um homem tem de ter opinião! - exclamou Curgo, partindo com desnecessária fúria um pedaço de carne.

- Eu cá tenho as minhas. Só acho que não preciso andar gritando na rua o que é que penso... - Estou falando de

política – tornou Curgo. - Nesta hora não é possível ser neutro! Florêncio deu-lhe uma resposta indireta: - O

Imperador é um homem de bem. Eu só queria saber onde é que vassuncês vão arranjar outro melhor que ele pra

botar no governo. Curgo lançou um olhar cálido para Toríbio. - Está ouvindo, Toríbio, está ouvindo? - Como

esse há milhares e milhares em todo o Brasil – exclamou o advogado. - É por isso – interveio o Dr. Winter –

que eu digo que não se pode contar com o povo para derrubar a monarquia. 91

Para Érico, a República piorou a situação do povo brasileiro, na medida em que ficou presa a

um modelo autoritário, do qual jamais conseguiu se ver livre, salvo em pequenos momentos de vida

democrática plena. De novo é o poeta que explicita essa frustração, nos seguintes versos do

trovador Maneco Lírio:

Tudo foi obra desses moços da propaganda republicana. Viviam com a cabeça cheia de idéias da estranja.

Queriam a abolição Tiveram

88 Exposição de Filadélfia (1876). 89 Alexandre Graham Bell (1847-1922), cientista norte-americano, inventor do telefone. 90 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 655-657. 91 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 592.

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E pioraram a sorte dos negros. Queriam a república

Tiveram Derrubaram a monarquia Instituíram a anarquia

Mandaram embora o Imperador Que morreu, coitado, no exílio.

Mudaram a nossa bandeira Que agora é ordem e progresso

Só por milagre não mudaram o hino nacional O país está entregue à camarilha positivista. 92

A República foi instaurada, no sentir de Érico Veríssimo, na contra-mão do Rio Grande do

Sul e do país em geral. Não foi uma opção democrática, que consultasse os interesses de todas as

pessoas. Foi fato vertical, que terminou privilegiando o Centro sobre as outras partes da nação. O

Rio Grande do Sul sempre foi considerado Província fronteiriça, para defender o Brasil dos

castelhanos, mas somente isso. A instauração do novo regime só fez piorar as coisas, em

decorrência da inspiração autoritária do mesmo. O nosso autor coloca estes arrazoados em boca de

dois personagens, Rodrigo Cambará e Tio Bicho, que encarnam uma cena que se passa em Porto

Alegre, em julho de 1930:

De pé, na frente do sofá, Rodrigo estava com a palavra: - Em mais de quarenta anos de república nunca

tivermos um Presidente gaúcho. Os paulistas sempre nos boicotaram. Em 1910 impugnaram o nome do

senador Pinheiro Machado93. O governo federal nada mais tem feito senão fomentar as lutas partidárias do Rio

Grande. - Por que? - perguntou o Tio Bicho, incrédulo. - Ora, porque querem nos dividir, nos enfraquecer! Em

35 a Corte considerava os Farrapos bandoleiros, bandidos que estavam pondo em perigo o resto do país, gente

xucra de pé no chão, faca e pistola na cintura, ásperas verdades na ponta da língua. É que sempre fomos

homens do frente-a-frente e não das conspiratas e intriguinhas de bastidores. A nossa franqueza rude assusta os

nossos compatriotas lá de cima. O que o Governo Federal quer é que o Rio Grande continue sendo o que foi no

princípio da sua História: um acampamento militar. Acham que para guardar a fronteira e conter os castelhanos

somos bons. Para governar o país, não! 94

Os Castilhistas históricos (chefiados por Borges de Medeiros) representaram, no sentir de

Érico, uma versão tacanha de República positivista. Os gaúchos da Segunda Geração Castilhista,

chefiados pelo Getúlio, pretendiam sacudir a poeira do marasmo borgista, mas os elementos mais

ardentes como Oswaldo Aranha e Flores da Cunha encontravam-se reféns das indecisões getulianas.

92 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob cit., p. 658. 93 José Gomes Pinheiro Machado (1851-1915), o mais importante representante do Castilhismo no Congresso, nos

primeiros anos da República. Exercia sobre a República Velha, como dizia Rui Barbosa, uma “ditadura branca”, em defesa dos interesses do Rio Grande do Sul.

94 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob. Cit., p. 619.

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Indecisões que, como temos visto ao longo destas páginas, foram mais táticas do que provenientes

da inspiração anti-mudança do líder são-borjense, que entendia os câmbios mais como reformas

técnicas do que como revoluções românticas. Vale a pena registrar as reflexões do nosso autor a

respeito, colocadas em boca do Terêncio Prates e do Rodrigo Cambará, que falam às vésperas da

Revolução de 30:

Rodrigo voltou-se para Terêncio: - Tu vais me desculpar, mas o principal responsável por esta situação

de acovardamento é o chefe do teu partido, que era também o partido de meu pai e já foi o meu. O Dr. Borges é

o campeão do pé-frio, o profissional da água fria. O João Neves faz o que pode na Câmara para salvar a honra

do Rio Grande. Mas a hora não é mais de oratória e sim de ação. O Dr. Terêncio Prates fitou no dono da casa

os olhos mosqueados. - Pensa bem, Rodrigo, pensa sem paixão. Os mineiros também estão encolhidos. O Dr.

Antônio Carlos95 chegou à conclusão que o movimento revolucionário está desarticulado. As guarnições

federais do Norte e até as de Minas parecem estar todas do lado do governo. Seria criminoso lançar o país

numa guerra civil que poderá custar milhares de vida. Não deves ser tão severo para com o Dr. Borges de

Medeiros. Hás de concordar comigo em que não é muito fácil para um castilhista transformar-se duma hora

para outra em revolucionário... Qual! - replicou Rodrigo. - Não se trata agora de idéias, mas de ter caracu. O

Oswaldo Aranha tem. O Flores da Cunha também. - Tu sabes que o Dr. Getúlio não é nenhum covarde... - Pois

olha que começo a ter as minhas dúvidas. O homenzinho não arrisca nada, só quer jogar na certa. Entrou na

corrida presidencial meio empurrado. Até a última hora negociou com o Washington Luís por baixo do

poncho, à revelia dos companheiros, na esperança de vir a ser o candidato oficial. Eu estava em Porto Alegre

quando o Aranha abandonou a Secretaria do Interior. Sabes o que foi que ele me disse? Olha, Rodrigo, estou

farto desta comédia, desta mistificação. Com um chefe fraco como o Getúlio, a revolução está liquidada. 96

O nosso autor não deixava de cultuar uma visão romântica de República, uma espécie de

arquétipo do país ideal, constituído por uma grande variedade de raças e com liberdade e progresso

para todos. Uma verdadeira utopia liberal, da qual o Rio Grande foi, nos seus primórdios de vida

independente, um prenúncio que não deve ser esquecido. O escritor coloca esse sonho na boca de

um imigrante italiano, o padre Atílio Romano, que evoca o sonho libertário de Garibaldi97 (1807-

1882) no seu entusiasta sermão, que tem lugar nos remotos tempos do fim do Império:

Mas por que falei em Garibaldi, que aparentemente nada tem a ver com o debate de hoje? - Fez uma breve

pausa, como se esperasse de alguém resposta à sua pergunta retórica. Ergueu o braço direito, com o indicador

enristado. - É porque quem vos fala é um sacerdote italiano de nascimento que começa a ser brasileiro de

coração; porque nesta mesma igreja hoje, sentados no meio de brasileiros, acham-se imigrantes italianos que há

95 Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1870-1946), Presidente de Minas Gerais e líder da Aliança Liberal no seu

Estado. Foi de sua lavra a famosa frase: “Façamos a Revolução antes que o povo a faça!”. 96 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob. Cit., p. 620. 97 Giuseppe Garibaldi, revolucionário italiano que ajudou os Farrapos na sua luta contra o Império (1835-1845).

Posteriormente teria grande papel na unificação italiana.

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quase dez anos chegaram a esta província e fundaram neste mesmo município de Santa Fé uma colônia que se

chama Garibaldina, em homenagem ao herói. E é porque esses colonos italianos, bem como os alemães de

Nova Pomerânia, estão trabalhando juntamente com os brasileiros pela grandeza deste município, desta

província, deste grande país. E nesta terra cujos conquistadores primitivos tinham nomes como Magalhães,

Pereira, Fagundes, Xavier, Terra, vivem hoje homens que se chamam Bernardi, Nardini, Sorio, Conte,

Bauermann, Schultz, Schneider, Schmitt, Kung. E nesta igreja espero um dia com a graça de Deus unir em

matrimônio uma Dela Mea com um Pinto ou um Spielvogel! - Filho meu não casa com gringa – declarou

Bibiana mentalmente. Atílio Romano abriu os braços e por alguns momentos ficou numa atitude de

crucificado. 98

Érico Veríssimo contrapunha a essa versão libertária de República, a ordem política que

emergiu da propaganda republicana. Embora formalmente fossem denominadas de República, as

instituições que os Castilhistas organizaram aproximavam-se mais de uma Igreja com a sua religião,

seus dogmas e o seu culto, além, evidentemente, da paixão dos que defendem uma fé não

compartilhada por outros. É do convívio com os propagandistas – entre os quais o autor salienta os

nomes de Júlio de Castilhos e do seu propagandista em Santa Fé, Toríbio Rezende – que surge esse

culto republicano, que terminou transformando o patriarca do Sobrado, Licurgo Cambará, em um

fanático da nova ideologia:

O convívio com Toríbio Rezende, a leitura dos artigos que Júlio de Castilhos publicava na imprensa

atacando o Império e fazendo a propaganda da abolição e da república – tudo isso tinha feito de Licurgo

Cambará um republicano e um abolicionista. Ficara de tal modo dominado por essas idéias que acabara quase

fanatizado por elas. Fandango observara um dia: O Curgo tem três amantes: a República, a Abolição e a

Ismália; às vezes vai pra cama com as três ao mesmo tempo. 99

A República apregoada pelos Castilhistas revestia-se de uma proposta salvífica, era como

passar uma borracha no regime de autoritarismo e injustiça encarnado no Império, para abrir as

portas a uma Nova Ordem em que favoritismos e arbitrariedades seriam banidos da face da terra.

Licurgo Cambará deveria ser o novo líder de Santa Fé, em substituição ao clã dos Amarais. Todo

mundo seria salvo só mudando os articuladores da política local. O Licurgo, abolicionista,

republicano e castilhista, completaria a obra que tinha sido iniciada pelo seu antepassado, o Capitão

Rodrigo, que em duelo com o chefe dos Amarais, o velho Bento, tinha deixado parte do seu nome

marcado no rosto do líder Maragato. É a eterna luta entre liberais e pica-paus, que passa de geração

em geração. Eis a forma em que o nosso escritor expõe o cardápio salvador do propagandista

98 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 584. 99 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 570-571.

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republicano de Santa Fé:

(...) Tinha razão Toríbio Rezende quando afirmava que a idéia republicana podia ser comparada com

uma onda que ia aos poucos crescendo e que acabaria não só lavando a mancha da escravidão como também

derrubando o trono! Proclamada a República, Santa Fé ficaria livre dos Amarais e homens como Toríbio e ele,

Licurgo, iriam dirigir a política municipal, eliminando o favoritismo, as injustiças e as arbitrariedades. Em

pensamento Licurgo via Toríbio a falar e gesticular: O Capitão Rodrigo botou sua marca no rosto do velho

Bento: só ficou faltando o rabinho do R. Pois bem, Curgo. Quem vai completar o serviço (...) é você, não com

uma adaga, mas simbolicamente, levando para diante a campanha abolicionista e republicana, e livrando

Santa Fé de um sátrapa. Como Toríbio falava bem, com que eloqüência, com que facilidade! Na mente de

Licurgo a imagem do amigo desapareceu para dar lugar à de Júlio de Castilhos, cuja mão ele apertara

comovidamente por ocasião do último congresso republicano de Porto Alegre. Era incrível que aquele moço

retraído e de poucas palavras estivesse abalando o trono com seus artigos políticos, escritos e publicados na

Província. 100

O nosso autor tinha uma atitude crítica em face dessa proposta salvífica. Valia mais pensar no

tipo de homens que dirigiriam o novo empreendimento. Já que se tratava de mudar o Império, que

pelo menos se tratasse de pessoas de bem, como o Velho Imperador. Mas, quem garantiria que as

coisas iriam melhorar? As questões atinentes à vida e à morte, os grandes dramas da existência

humana escapavam à pletora de soluções salvíficas da propaganda republicana. O nosso autor,

certamente, concordaria com Benjamin Constant de Rebecque 101 (1767-1830) quando, na crítica ao

pensamento de Rousseau (1712-1778)102, destacava que o problema do filósofo de Genebra era ter

absolutizado o conceito de soberania, como se esta pudesse se estender a todas as esferas da vida

humana. Ora, há coisas como a vida interior, o nosso pensamento, as nossas preocupações

metafísicas, os nossos amores, que escapam ao poder dos governos, mesmo que sejam legítimos. O

problema dos pregadores de soluções ideológicas consiste, justamente, em que absolutizam a

dimensão do poder político, como se da alçada dele fossem todos os aspectos da vida humana. A

soberania popular é limitada. Refere-se, exclusivamente, aos fundamentos do pacto político, que

gira ao redor da defesa dos interesses materiais dos cidadãos. Nem mais nem menos. A posição de

Érico é de ceticismo em face de receitas salvíficas. O diálogo que se passa entre Licurgo Cambará,

o pachorrento Florêncio e o seu sobrinho Licurgo, é deliciosamente entremeado pelas considerações

concretas – vivenciais – do velho tio e pelas perguntas de Bibiana, que representa aquilo que escapa

ao reino da política, tudo quanto se refere ao dia a dia e ao além:

100 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 571. 101 Benjamin Constant de Rebecque foi um dos precursores do movimento liberal conhecido na França com o nome de doutrinários, que influiu decididamente no pensamento dos estadistas do Império. 102 Jean-Jacques Rousseau, filósofo originário de Genebra, deitou as bases do denominado democratismo.

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Florêncio meneou a cabeça. - Estou muito velho para acreditar em conversas – observou ele, de olhos

baixos, como se estivesse se dirigindo ao próprio prato e não aos outros. - Tenho visto muita mudança de

governo na minha vida e tenho lido e ouvido muita promessa de políticos. Acho que as coisas não vão mudar

se vier a república. Curgo olhou vivamente para o tio e, quase agressivo, replicou: - É por essa e por outras que

o Brasil não vai pra frente. Se homens como o senhor acham que não há diferença entre república e monarquia,

o que é que a gente pode esperar dum gaúcho bronco, dum peão, dum... dum.... domem da rua? - Olhou para o

advogado e pediu: - Toríbio, conte ao primo Florêncio o que é que a República quer. Toríbio cruzou os

talheres, fincou os cotovelos na mesa, trançou as mãos à altura do queixo e principiou: - Para não fazer uma

dissertação muito comprida, direi, primeiro, que com a República, as províncias ficarão transformadas em

estados autônomos e confederados, mas politicamente unidos. Esfregou as mãos e fez uma pausa. Bibiana

aproveitou o breve silêncio para perguntar: - Mais carne, Dr. Winter? - Não, muito obrigado. - Teremos

também um poder legislativo central; um tribunal superior de justiça, colaboração proporcional de todos os

Estados para as despesas da nação... Winter sabia que Florêncio não estava entendendo nada. Como ele havia

no país milhões de pessoas para as quais palavras não tinham sentido. A enumeração continuava. O senado

seria temporário. O voto, alargado. Todos teriam liberdade de associação e de culto. Os cemitérios seriam

secularizados.... Neste ponto Bibiana interveio: - E os defuntos vão continuar mortos, sem saber de nada...

Curgo fuzilou para a avó um olhar de censura. - Teremos o casamento civil obrigatório – prosseguiu Toríbio. -

A Igreja será separada do Estado. Os ministros, responsabilizados. Não só os ministros mas também todos os

agentes da administração. Acabaremos com o poder moderador e com o conselho dos Estados. Ah! E haverá a

mais ampla liberdade de ensino... De repente o advogado calou-se. Florêncio fez apenas este comentário: -

Tudo isso é muito bonito. Mas o Imperador é um homem de bem. Curgo deixou escapar um suspiro de

impaciência. - É um caixeiro viajante! - explodiu. - Vive passeando na Europa, fazendo versos e visitando

museus, enquanto o país aqui se vai águas abaixo! Florêncio não respondeu. Continuou a comer serenamente.

Toríbio retomou a palavra: É um Imperador para uso externo, cujo principal motivo de orgulho é ser amigo

íntimo de Victor Hugo! Florêncio repetiu simplesmente: - O Imperador é um homem de bem. 103

5 – DIMENSÕES DA RELIGIOSIDADE NA CULTURA GAÚCHA, EM FACE DO ESTADO

PATRIMONIAL.

103 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 596-597.

O parlamentar, ministro e diplomata gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil, figura admirada por Érico Veríssimo.

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A religiosidade gaúcha, para Érico Veríssimo, tem uma dupla dimensão: doméstica e política.

Ambas as formas encontram-se entrelaçadas no imaginário social. Na dimensão doméstica,

prevalece o relacionamento com os santos como se fossem familiares das pessoas. Quanto mais

profunda a fé, maior a familiaridade com o universo sobrenatural, como se este se confundisse com

o âmbito da casa e da família. Relações sobrenaturais e relações políticas solidificam-se sobre o

mesmo chão: o âmbito familiar. Verdadeiro pano de fundo culturológico, sobre o qual se assenta,

sem dúvida, o patrimonialismo gaúcho. Eis a forma em que o nosso autor ilustra essa primeira

dimensão da religião, ao aprofundar na religiosidade da vó Bibiana:

O sino começou a badalar. Eram quase dez horas da manhã, e o rosto da velha imagem da Nossa

Senhora da Conceição resplandecia à luz do morno sol de inverno que entrava pelas janelas do templo. Para

Bibiana a santa tinha uma fisionomia familiar, pois desde menina ela se habituara a vê-la ali, no altar com as

mesmas roupas, a mesma postura e o mesmo sorriso bondoso. Vezes sem conta, quando moça, Bibiana viera

ajoelhar-se ao pé da imagem da padroeira de Santa Fé, confiar-lhe suas dificuldades e fazer-lhe promessas.

Fora por obra e graça de Nossa Senhora que Bibiana casara com o Cap. Rodrigo. Quando aos três anos Bolívar

caíra na cama com um febrão medonho, ela viera um dia à Igreja e dissera à santa: Se vosmecê faz o Boli

melhorar, prometo mandar rezar dez missas e dar cinco patacões pra Igreja. Ao chegar à casa encontrara já o

menino com as roupas úmidas de suor e a testa fresquinha. Depois, com o passar do tempo, e à medida que a

Bibiana perdia a sua fé nos homens e nos santos, suas relações com Nossa senhora foram deixando de ser de

santa para crente para serem quase de mulher para mulher. E agora o olhar que a velha ao sentar-se lançara

para a imagem parecia querer dizer: Bom dia, comadre como vão as coisas? Eram ambas donas de casa e

tinham grandes responsabilidades. Durante mais de cinqüenta anos Bibiana não tivera segredos para com a

santa. Eram velhas amigas e confidentes: entendiam-se tão bem que nem precisavam falar...104

A dimensão religiosa presente na política traduz-se, no sentir de Érico, em messianismo

populista. O Povão gosta de santos barbudos em quem acreditar, como o Antônio Conselheiro105

(1830-1897) ou o próprio Prestes. Essa é a base de legitimação do poder mais rápida e eficaz,

porque deita raízes na alma popular. Eis a forma em que o nosso autor ilustra essa dimensão, num

diálogo que se passa entre Tio Bicho, típico representante do homem comum gaúcho, e Roque

Bandeira, o intelectual; o tema do diálogo é a notícia das manifestações populares – verdadeiras

romarias - ocorridas na Paraíba e no Rio de Janeiro, para saudar o féretro de João Pessoa,

assassinado em 1930, fato que fez deslanchar a Revolução de Outubro:

Tio Bicho encolheu os ombros e, mal movendo os lábios pardacentos, gretados pelo frio, balbuciou: -

104 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 575-576. 105 Antônio Vicente Mendes Maciel, líder da Revolta de Canudos (1893-1897), que terminou sendo esmagada

pelo exército da República.

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Digo que tudo acaba virando religião. - Mas isso é civismo, animal, puro civismo! [replicou Roque]. -

Confirma-se mais uma vez a minha teoria de que o povo precisa de uma mística, de mitos, mártires e santos...

As massas amam os profetas barbudos como Antônio Conselheiro e Luís Carlos Prestes. Isso que fizeram com

o cadáver de João Pessoa foi um ato de religião e de superstição. Um simulacro de Procissão do Senhor Morto.

Não me admirarei se aparecer por aí a história da Vida, Paixão e Morte de João Pessoa, o Cristo do Nordeste.

Washington Luís seria comparado com Pilatos, mas um Pilatos teimoso que reluta até em lavar as mãos...106

Embora a religiosidade popular pendesse para o populismo que dá sustentação ao Estado

Patrimonial, o nosso autor, liberal de coração e de idéias, preferia que religião e política não se

misturassem. Érico defendia a tese liberal clássica de independência de poderes, da Igreja livre em

face do Estado livre. A sua posição é colocada em boca do padre Romano, vigário de Santa Fé que,

como fiel sacerdote católico defendia, em posição progressista, a idéia republicana, mas

desvinculada de uma submissão do poder espiritual ao temporal. Eis a narrativa do nosso autor a

respeito:

O médico inclinou o busto para frente e voltou a cabeça para o vigário. - Padre Romano – disse ele em

voz muito alta para ser ouvido no meio da balbúrdia – ainda não compreendi como é que, sendo o senhor um

sacerdote católico pode simpatizar com a idéia republicana... - Por que não? Por que não belo? Acha que um

padre não deve ou não pode ter emoção cívica? - Não é isso. Um dos pontos do programa republicano é a

separação da Igreja do Estado... O Padre Romano ergueu-se. - E então! E daí? - exclamou, aproximando-se do

outro, como se o quisesse agredir. Segurando o médico pelos ombros com suas manoplas peludas, perguntou: -

Pensa o doutor que a Igreja para sobreviver precisa do amparo do Estado? - Soltou uma risada gostosa. - Essa é

magnífica! O Estado é que não poderá viver se não se amparar espiritualmente na Igreja! 107

Separação dos poderes espiritual e temporal no plano das instituições; separação das

dimensões cognitiva e de fé, no terreno pessoal. É o Padre Romano quem ainda, no seguinte trecho,

deixa clara a sua posição tipicamente liberal: razão e fé não se atrapalham porque tratam de objetos

diferentes. São “duas verdades”, como diriam os averroístas108 da Universidade de Paris nesse

brilhante século XII, em que tudo podia ser discutido pela razão, sem que a fé atrapalhasse o livre

esclarecimento e sem que esta perdesse o lugar importante que lhe foi assinalado pelo Criador na

vida humana: iluminar os homens no que diz respeito às verdades transcendentes, deixando este

mundo ao controle da razão. O nosso escritor ilustrou a sua posição, no diálogo travado entre o

padre e o médico da cidade:

106 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Ob. Cit., p. 639-640. 107 VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 629. 108 Corrente filosófica inspirada no filósofo mourisco-espanhol Averróis (1126-1198), para quem há duas

verdades: teológica e racional, independentes uma da outra.

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Winter brandia ainda o garfo. - A Bíblia é obra de homens ignorantes; a história da criação é um mito e

Laplace109 tinha razão quando Napoleão I lhe perguntou por que não falara em Deus ao expor o seu sistema

de mecânica celeste: “Sire, Je n´avais pas besoin de cette hypothèse!”110 - Quos Deus vult perdere, prius

dementat111 – citou o Padre, soltando um arroto feliz. - O estudo das camadas terrestres demonstra à evidência

que o homem é simplesmente fruto da evolução da matéria como a própria Terra, como são os mundos todos

que povoam o espaço do Universo. Atílio Romano bebericava o seu vinho, fazendo-o demorar sobre a língua e

depois engolindo-o com um vagar sensual. Tornou a encher o cálice. - Nada disso é novidade para mim, doutor

- disse ele. - Todos esses autores ateus seus amigos são também os meus conhecidos. Tenho seus livros à

minha cabeceira e isso é um sinal de que não os temo (...). A razão não tem nada a ver com a fé. (...) - Vosmecê

leu Darwin112 e Lamarck113, não leu? - Li. E talvez melhor que o doutor. - Aceita as leis da evolução e da

seleção? - Aceito. - Então? - Então o que? - Como pode reconhecer ao mesmo tempo a autoridade da Bíblia? -

Mas a Bíblia fala uma linguagem simbólica, belo! (...). A hipótese evolucionista não exclui necessariamente

Deus. Ela é antes uma prova da suprema, da incomparável, da sutil e imaginosa inteligência do Todo-

Poderoso. 114

A inspiração liberal de Érico Veríssimo levou-o, certamente, a tecer críticas ao

Patrimonialismo gaúcho e à forma populista de fazer política no Brasil. Mas a sua atitude crítica

não se limitava à avaliação das nossas instituições e costumes políticos. Abarcava, também, o

confuso mundo de sua época, envolvido no terror da Segunda Guerra Mundial. O aspecto que mais

preocupava a Érico era a perda de sensibilidade dos países em face do ser humano, notadamente no

terreno da gestão econômica. Em 1941, em viagem realizada aos Estados Unidos a convite do

Departamento de Estado, eis o que escrevia o nosso autor, ao se defrontar com a mentalidade dos

produtores de cinema de Hollywood, que unicamente enxergavam para os maiores lucros que

pudessem auferir da sua atividade:

Como bons homens de negócio, procuram os magnatas do cinema contentar a todos sem prejudicar os

próprios interesses pecuniários. Acontece, porém, que estamos num mundo que já provou – sangrenta e

dolorosa prova! - que o erro de nossa civilização tem sido justamente esse de seus pró-homens transigirem em

tudo: toleram e até provocam guerras, misérias e crimes, contanto que seus bolsos não sejam atingidos,

contanto que cada um deles possa continuar tendo os seus iates, um palacete em cada ponto de veraneio e uma

renda mensal de milhões. 115

109 Pierre Simon de Laplace (1749-1827), matemático, astrônomo e físico francês, mestre de Napoleão na Escola

Militar de Paris e um dos seus ministros no período imperial. 110 Sire, eu não tinha necessidade dessa hipótese. 111 Deus enlouquece primeiro aqueles que deseja perder. 112 Charles Darwin (1809-1882) cientista inglês que formulou a hipótese da evolução das espécies. 113 Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829) cientista francês, formulou a hipótese da seleção natural. 114 VERÍSSIMO, Érico. O tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Ob. Cit., p. 634-635. 115 VERÍSSIMO, Érico. Gato Preto em Campo de Neve. (Ilustrações de Rodrigo Andrade; prefácio de Luís

Fernando Veríssimo). São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 396.

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Ao ensejo de nova viagem aos Estados Unidos, para lecionar na Universidade de Berkeley

entre 1943 e 1945, o nosso autor fazia uma original análise da situação internacional, do ângulo

econômico – lembrando as críticas que John Maynard Keynes116 (1883-1946) tinha feito, nos anos

vinte -. Novamente o nosso autor focalizava a dimensão desumana do lucro selvagem na própria

Meca do capitalismo. O lucro selvagem era, em primeiro lugar, o pecado do Estado getuliano que,

insensível ao clamor popular, num momento de penúria e de fome, mandou queimar grandes

estoques de café, apenas para “regular preços”, tudo com o aval da tecnocracia tupiniquim e sem ter

sido feita consulta aos interessados, os cidadãos do país. Mas o nosso autor também se debruçava

sobre o lucro desumano dos agentes econômicos que, a nível mundial, esqueceram-se do homem

para apenas apostar num lucro que se tornou suicida, no contexto de uma maluca ciranda financeira

que somente encontraria limites nas políticas do New Deal (postas em prática após 1946), que

adotaram as recomendações keynesianas. Eis as esclarecidas e humanísticas críticas do nosso autor:

Menciono o problema do lucro, que me parece um dos pontos nevrálgicos da questão. Em países onde

populações inteiras vivem ou, antes, vegetam num estado de subnutrição, gêneros de primeira necessidade são

queimados ou jogados ao mar. Os técnicos explicam friamente: é uma questão de preços. Concluo: Um mundo

que coloca o lucro acima das vidas humanas é um mundo perdido, corrupto e hediondo. Posso falar nos

idealistas que se recusam a examinar a crise dos tempos modernos à luz da economia. Por que? Vêem a

tremenda luta pelo petróleo, pelo trigo, pelo carvão, pelo algodão, pelos mercados e por maiores lucros e

continuam a proceder como se os homens fossem anjos. Nações inteiras têm sido conduzidas como casas

comerciais com um olho nos lucros. Mais uma vez confundiram-se os meios com os fins. Esqueceram que o

Estado deve servir ao povo, e não o povo ao Estado. Não compreenderam que os interesses do homem comum,

isto é, da maioria, devem ser colocados acima das corporações privadas, dos cartéis e dos trustes. Esta guerra –

prossigo, fazendo o possível para não assumir ares proféticos – é até certo ponto uma guerra ideológica, mas é

principalmente uma guerra econômica. E se quisermos descobrir um remédio eficaz para esse horrível flagelo

periódico, não devemos ignorar a sua verdadeira natureza. Há um fato que ilustra de maneira dramática o

que estou dizendo. Os aviões japoneses que bombardearam Pearl Harbor empregaram, ao que se diz, gasolina

americana, e as bombas que lançaram eram provavelmente feitas de ferro-velho também americano. 117

Érico Veríssimo caracterizou-se pela coragem e pela atitude bem gaúcha de luta de peito

aberto em defesa das liberdades. Em mesa-redonda transmitida pelo rádio, numa Universidade

americana em 1943, o nosso autor teve uma experiência no mínimo paradoxal, num país que

sempre se destacou pela defesa da liberdade de expressão. Vale a pena citar esse incidente, no relato

116 A obra de John Maynard Keynes intitulada O fim do laissez-faire (1926) constituiu o novo marco do

capitalismo mundial, abrindo as portas para a política do New Deal posta em prática pelos Estados Unidos no segundo pós-guerra.

117 VERÍSSIMO, Érico. A Volta do Gato Preto. (Ilustrações de Rodrigo Andrade; prefácio de Clarissa Jaffe). São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 149.

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do próprio Érico, a fim de ilustrar essa sua defesa quixotesca – eminentemente liberal – das

liberdades:

Quando chega a minha vez, a pergunta que me toca é: - Os brasileiros gostam dos americanos?

Resposta: - É muito difícil responder com um sim ou com um não. Nossa tendência, no Brasil, é de gostar das

pessoas. Mas para não cair em nenhum otimismo convencional preciso dizer que há no meu país várias fontes

de propaganda antiamericana. - E quais são elas....pode dizer? - Em primeiro lugar, temos os integralistas, ou

seja, os fascistas brasileiros, que gostariam de ver seu país do lado do Eixo. Depois, temos os próprios alemães

que residem no Brasil... Refiro-me apenas aos nazistas... - Muito bem. Continue. - Há ainda alguns membros

influentes da Igreja Católica que baseiam seus sentimentos antiamericanos na idéia de que os Estados Unidos

são um país protestante, que manda missionários para o Brasil, e cuja influência lhes parece indesejável. Esses

membros... O moderador ergue a mão: - Espere um momento. O senhor não deve discutir religião... - Quem é

que está discutindo religião? Estou apenas dizendo... O homem me interrompe de novo: - Se o senhor

conhecesse as leis dos Estados Unidos nem mencionaria esses fatos... - Perdão. O senhor me fez uma pergunta

e eu estou tratando de responder honestamente, e o que ia dizer não envolvia nenhuma crítica ao catolicismo

brasileiro ou americano... - Bom. Vou passar adiante... - Pois passe adiante, já que não quer ouvir a verdade...

O moderador está vermelho. De meu lugar posso ver o controlador do som, lá do outro lado do vidro, como um

peixe de aquário. E o peixe sorri, divertindo-se com a discussão. Mas estou perturbado. Nunca esperei que me

cortassem desse modo a palavra. Eu ia fazer pelo rádio um apelo aos católicos dos Estados Unidos, pedir-lhes

que tratassem de explicar aos católicos brasileiros que a Igreja é forte e influente neste país, e que a liberdade

de culto que aqui existe e a tolerância religiosa que aqui se exerce deviam servir de modelo para os países da

América do Sul. O moderador de novo se prepara para me fazer uma pergunta: - Agora, meu amigo brasileiro,

quer me dizer...? Interrompo-o: - Eu não quero dizer nada. Não acredito que o senhor esteja interessado numa

resposta sincera. 118

BIBLIOGRAFIA

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Tempo Brasileiro, 1982. SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 1a. Edição. Rio de Janeiro: Campus, 1982. VARGAS, Getúlio. Diário, Volume I – 1930-1936. (Apresentação de Celina Vargas do Amaral Peixoto; edição de

Leda Soares). São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1995. VÉLEZ RODRÍGUEZ, Ricardo. Castilhismo, uma filosofia da República. (Apresentação de Antônio Paim). 2a.

Edição corrigida e acrescida. Brasília: Senado Federal, 2000. VERÍSSIMO, Érico. A Volta do Gato Preto. (Ilustrações de Rodrigo Andrade; prefácio de Clarissa Jaffe). São Paulo:

Companhia das Letras, 2005. VERÍSSIMO, Érico. Gato Preto em Campo de Neve. (Ilustrações de Rodrigo Andrade; prefácio de Luís Fernando

Veríssimo). São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

118 VERÍSSIMO, Érico. A Volta do Gato Preto. Ob. Cit., p. 153-154.

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VERÍSSIMO, Érico. O Tempo e o Vento I. O Continente, 2o. Tomo. Porto Alegre: Globo, 1948. VERÍSSIMO, Érico, O Tempo e o Vento III. O Arquipélago, 3o. Tomo. Porto Alegre: Globo, 1962. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras.

(Introdução de Antônio Paim). Primeira edição num único volume. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações Meridionais do Brasil – Volume 2: O Campeador Rio-Grandense.

3a. Edição. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense, 1987. WEBER, Max. Economía y sociedad. (Tradução ao espanhol de José Medina Echavarría et alii), 1a. Edição em

espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944, IV Volume.