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GESTÃO DO CONHECIMENTO NA MODERNIDADE - BARUCH ESPINOSA (1632-1677) E O RACIONALISMO Ricardo Vélez Rodríguez Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. [email protected] A meditação de Baruch Espinosa é, no sentir de Hegel (1770-1831), o “ponto alto da Filosofia Moderna”. Tamanho elogio, feito pelo fundador da História da Filosofia, não é gratuito. A metafísica do pensador judeu-holandês corresponde, junto com a de Leibniz (1646-1716), à mais acabada síntese filosófica do século XVII, ao pretender resolver os problemas do dualismo cartesiano e da contraposição razão / tradição. No caso da meditação luso-brasileira, o aprofundamento na filosofia espinosana é especialmente proveitoso, porquanto ela representa uma vertente que permanece imanente à cultura portuguesa, como acuradamente tem sido mostrado por estudiosos da talha de Joaquim de Carvalho (1892-1958), Jesué Pinharanda Gomes (nasc. 1939) e Alcântara Nogueira (1918- 1989). Dividirei esta exposição em dois itens: em primeiro lugar, analisarei os aspectos biográficos e o contexto histórico de Baruch Espinosa; em segundo lugar, centrarei a atenção nos aspectos essenciais do seu pensamento filosófico. I - Aspectos biográficos e contexto histórico de Baruch Espinosa. Baruch Espinosa nasceu em 1632, na cidade de Amsterdã e morreu em 1677 em Haia. Em novembro desse mesmo ano foi publicada a maior parte dos seus escritos, sob o título de Obras Póstumas. Joaquim de Carvalho esclareceu com precisão as origens judaico-portuguesas de Baruch Espinosa. Filho de Miguel Espinosa (natural de Vidigueira, Portugal) e de Hanna Debora Espinosa, segunda mulher de Miguel. Hanna Debora muito provavelmente era portuguesa. Tendo falecido quando Baruch tinha apenas cinco anos de idade, a educação da criança ficou a cargo da madrasta, Ester Espinosa, natural de Lisboa. Embora o nosso autor conhecesse vários idiomas, foi o português a sua língua familiar. A

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GESTÃO DO CONHECIMENTO NA MODERNIDADE - BARUCH ESPINOSA

(1632-1677) E O RACIONALISMO

Ricardo Vélez Rodríguez

Coordenador do Centro de Pesquisas Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF. [email protected]

A meditação de Baruch Espinosa é, no sentir de Hegel (1770-1831), o “ponto alto da Filosofia Moderna”. Tamanho elogio, feito pelo fundador da História da Filosofia, não é gratuito. A metafísica do pensador judeu-holandês corresponde, junto com a de Leibniz (1646-1716), à mais acabada síntese filosófica do século XVII, ao pretender resolver os problemas do dualismo cartesiano e da contraposição razão / tradição. No caso da meditação luso-brasileira, o aprofundamento na filosofia espinosana é especialmente proveitoso, porquanto ela representa uma vertente que permanece imanente à cultura portuguesa, como acuradamente tem sido mostrado por estudiosos da talha de Joaquim de Carvalho (1892-1958), Jesué Pinharanda Gomes (nasc. 1939) e Alcântara Nogueira (1918-1989).

Dividirei esta exposição em dois itens: em primeiro lugar, analisarei os aspectos biográficos e o contexto histórico de Baruch Espinosa; em segundo lugar, centrarei a atenção nos aspectos essenciais do seu pensamento filosófico.

I - Aspectos biográficos e contexto histórico de Baruch Espinosa.

Baruch Espinosa nasceu em 1632, na cidade de Amsterdã e morreu em 1677 em Haia. Em novembro desse mesmo ano foi publicada a maior parte dos seus escritos, sob o título de Obras Póstumas. Joaquim de Carvalho esclareceu com precisão as origens judaico-portuguesas de Baruch Espinosa. Filho de Miguel Espinosa (natural de Vidigueira, Portugal) e de Hanna Debora Espinosa, segunda mulher de Miguel. Hanna Debora muito provavelmente era portuguesa. Tendo falecido quando Baruch tinha apenas cinco anos de idade, a educação da criança ficou a cargo da madrasta, Ester Espinosa, natural de Lisboa. Embora o nosso autor conhecesse vários idiomas, foi o português a sua língua familiar. A

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respeito, escreve Joaquim de Carvalho: “O hebreu, o latim e o holandês foram sem dúvida os instrumentos da sua formação filosófica e científica; mas temos por certo que a língua familiar da puerícia e adolescência foi o português” 1.

A situação dos judeus da Península Ibérica manteve-se num clima de relativa tolerância até o final do século XIV. Os reis, de origem visigótica, toleraram a presença deles, com alguns momentos de constrangimento, em que os israelitas eram forçados à conversão, dando ensejo à praxe do “criptojudaísmo”. Um exemplo desses momentos de constrangimento foram, sem dúvida, os massacres de 1391. Mas, em que pese o clima negativo desses momentos de perseguição, o ambiente vivido pelos judeus da Península Ibérica era bem diferente do enfrentado por eles nas regiões banhadas pelo rio Reno, nos principados alemães notadamente, onde a perseguição contra os descendentes do Povo de Israel eram constantes. Essa relativa tolerância talvez explique o fato de os judeus espanhóis e portugueses se considerarem cidadãos dos seus respectivos países, bem como o fato, também indiscutível, da participação deles em altos escalões da administração. Os Reis Católicos, no entanto, complicaram a situação dos judeus peninsulares, ao obrigá-los a adotar a conversão ou a optar pelo exílio. Alguns judeus espanhóis se refugiaram em Portugal, mas essa opção tornou-se breve, em decorrência do fato de que, em 1497, medidas semelhantes foram adotadas neste reino, embora com maior tolerância em face dos judeus conversos. Estes, na Espanha, enfrentavam crescentes preconceitos que os isolavam da vida pública, sendo comuns, no decorrer do século XV (a partir da legislação conhecida como Sentencia Estatuto de 1449), as inquirições genealógicas em busca da “pureza racial” de um candidato a cargos públicos ou às universidades 2.

O filósofo judeu-holandês Baruch Espinosa

A dinastia dos Áustrias chegou ao poder na Espanha, em 1520, com Carlos V

(1500-1558), inspirada num projeto de império católico que fez frente ao protestantismo, ao islamismo e ao judaísmo. Em 1556, herdou o trono espanhol Filipe II (1527-1598). Com a anexação à Espanha do Reino de Portugal (que se estendeu ao longo do período compreendido entre 1580 e 1640), as perseguições contra os judeus peninsulares se exacerbaram. Tendo sido publicado por Henrique IV da França o Edito de Nantes em 1598, os judeus espanhóis e portugueses refugiaram-se nessa e em outras cidades francesas. Com o fim da vigência do Edito de Nantes em 1685, revogado por Luís XIV, os protestantes e os judeus que tinham se acolhido a essa trégua, passaram a se refugiar, maciçamente, na Holanda.

1 CARVALHO, Joaquim de. “Sobre o lugar de origem dos antepassados de Baruch de Espinosa”, in: Obra completa de Joaquim de Carvalho, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1978, vol. I, p. 372. 2 Cf. MÉCHOULAN, Henry. Être Juif a Amsterdam au temps de Spinoza. Paris: Albin Michel, 1991, p. 12-18.

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Convém destacar que as Províncias do Norte da coroa espanhola – Bélgica e os Países Baixos – tinham-se rebelado contra o jovem rei Filipe II em 1556, tendo adotado o calvinismo e proclamado a liberdade religiosa. Essa rebelião foi se estendendo e ganhando vulto até a proclamação da República das Províncias Unidas, em 1579. A cidade de Amsterdã passou a constituir o centro desse espaço de liberdade e de progresso mercantil e científico, que conheceu grandes investigadores da natureza, como Christian Huygens (1629-1695). A pequena república da Holanda acolheu os cientistas perseguidos como foi o caso de Galileu Galilei (1564-1642) e de todos aqueles que, pelas suas idéias, eram discriminados na sua pátria de origem. Entre esses beneficiados pela liberalidade holandesa contava-se John Locke (1623-1704), o ideólogo da burguesia inglesa, capitaneada, no Parlamento, pelo primeiro conde de Shaftesbury, lorde Antony Ashley Cooper (1621-1683), de quem Locke era secretário e a quem acompanhou no exílio.

Os judeus portugueses encontraram em Amsterdã, certamente, o seu novo lar. Nas autoridades holandesas eles reconheciam os seus salvadores. Eis o que um desses judeus escrevia, se referindo ao príncipe Guilherme de Orange (1626-1650), líder da nascente República: “É graças à virtude dos pais da vossa pátria que o céu forçou esses tiranos [os espanhóis] a reconhecer como soberanos aqueles que eles pretendiam tratar como escravos. É graças a eles, como novos Moisés e Josués, que o céu faz ver o povo de Deus passando por meio do mar, enquanto as ondas tragaram os exércitos e inundaram as terras desses faraós. É assim que se vê o novo Israel triunfar sobre um número infinito de seus inimigos e se multiplicar, na pequena Canaã, como as estrelas do céu” 3.

O pai de Baruch emigrou de Portugal e se estabeleceu em Amsterdã desde fins de 1623, tendo falecido em 28 de Março de 1654. Baruch teve duas irmãs, Rebeca e Miriam, sendo que esta, a mais nova, casou com Samuel Cárceres, judeu português, com quem teve um filho, Daniel Cárceres, que se apresentou, junto com a sua tia Rebeca, como herdeiro do espólio do filósofo, segundo foi informado por Johann Köhler. Era grande o ramo dos Espinosas portugueses (os havia também espanhóis): ao longo dos séculos XVI e XVII encontravam-se famílias com esse sobrenome em Viana do Castelo, Guimarães, Lamego, Leiria, Faro, Açores, Porto, Lisboa e Évora.

Cristãos-novos, os Espinosas portugueses foram sempre acusados de cripto-judaísmo, conforme escreve Joaquim de Carvalho: “Em todas as províncias de Portugal viveram nos séculos XVI e XVII indivíduos de apelido Espinosa – apelido este que caiu em desuso do século XVIII em diante, talvez porque os impérios contra o Maledictus importassem para os seus portadores a suspeita de cripto-judaísmo. Se alguns se apresentavam como cristãos- velhos, e até enobrecidos pela prosápia dos Espinosas castelhanos, a maioria, porém, mal pôde velar a ascendência israelita e a prática secreta do judaísmo. Miguel de Espinosa pertencia, sem dúvida, a uma família de marranos, porque só demandavam Amesterdão os corajosos a quem a forçada dissimulação interiormente vexava e publicamente aspiravam a invocar o Eterno e a viver segundo a Lei” 4.

3 Apud MÉCHOULAN, Henry. Être Juif a Amsterdam au temps de Spinoza, ob. cit., p. 19. 4 CARVALHO, Joaquim de. “Sobre o lugar de origem dos antepassados de Baruch de Espinosa”, in: Obra completa de Joaquim de Carvalho, ob. cit., vol. I, p. 398.

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Os biógrafos de Espinosa concordam em afirmar as suas origens judaico-portuguesas, bem como a sua naturalidade holandesa (Amsterdã), desde os mais antigos, Jean Maximilien Lucas e o pastor Johann Köhler (Colerus), passando por Wilhelm Meijer, Pierre Bayle, Freundenthal, Meinsma, Dunin-Borkowsky e chegando até os portugueses António Ribeiro dos Santos, José Agostinho de Macedo e Inocêncio Francisco da Silva. Maximilien Lucas, na Vie de Feu Monsieur de Spinoza (1677) esclarece que Baruch era versado nos idiomas hebreu, italiano, espanhol, alemão, flamengo e português. Johann Köhler, por sua vez, apresenta Baruch de Espinosa como “(...) descendente de honrados judeus portugueses, os quais viviam com certa largueza, habitando uma linda casa, onde tinham o seu comércio, no Burgwall, perto da velha sinagoga portuguesa” 5.

O filósofo freqüentou a Escola da Sinagoga de Amsterdã, cuja língua oficial era o português, se bem que o espanhol era também usado. A influência das obras da literatura espanhola revela-se na Ética (onde Espinosa faz uma velada referência a Góngora6) e no inventário da sua biblioteca (entre os 161 livros inventariados, encontraram-se dezesseis em espanhol e nenhum em português, o que confirma o caráter exclusivamente familiar e religioso desta língua). Quanto às obras filosóficas constantes do inventário, é digna de menção a do judeu português Jehuda Abravanel (Leão Hebreu), Diálogos de amor 7, em espanhol.

O jovem Baruch tinha uma mentalidade aberta ao mundo moderno. Embora fiel seguidor da Torah e do Talmude, a sua religiosidade, no entanto, não apagou as luzes da inteligência. Ele não poderia deixar de entender a modernidade, tanto no que se refere às ciências, quanto no relativo à economia e à filosofia. Testemunho dessa abertura à compreensão da época e ao que a República Holandesa significava em termos de liberdade econômica e política, é o seguinte trecho, tirado do capítulo XX do seu Tratado Teológico-político: “Não experimentou, por acaso, a cidade de Amsterdã os progressos de uma grande liberdade? Isso não a impede, certamente, de se desenvolver sem parar, em todos os domínios, sob os olhares de admiração de outros povos. Nessa florescente república e nessa cidade esplêndida, os homens – de todas as origens nacionais e pertencendo a todos os tipos de seitas religiosas - vivem na concórdia mais perfeita! No momento de fazer um negócio, os cidadãos preocupam-se unicamente em saber se o homem com o qual tratam é rico ou pobre, se é confiável ou se a sua reputação é a de um trambiqueiro. Uma vez esclarecidos estes aspectos, não lhes interessa saber qual é a sua religião ou a qual seita pertence a contraparte, pois, supondo que algum dia forem todos parar diante do juiz, essa consideração não teria nenhuma serventia, no que tange a ganhar ou a perder um processo”8.

5 Apud CARVALHO, Joaquim de, “Sobre o lugar de origem dos antepassados de Baruch de Espinosa”, in: Obra completa de Joaquim de Carvalho, ob. cit., vol. I, p. 369. 6 Don Luis de Góngora y Argote (1561-1627), famoso poeta e dramaturgo espanhol, fundador do estilo denominado de “gongórico”. 7 HEBREU, Leão (Iehuda Abravanel). Diálogos de amor, (texto fixado, anotado e traduzido do italiano por G. Manupella), Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983, v. I: texto italiano, notas, documentos; v. II: versão portuguesa, bibliografia. 8 Cit. por MÉCHOULAN, Henry. Être Juif a Amsterdam au temps de Spinoza, ob. cit., p. 21.

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A língua portuguesa era a oficial na Sinagoga de Amsterdã. Testemunho esclarecedor acerca da importância que tinha o português na comunidade judaica de Amsterdã é fornecido por Joaquim Mendes dos Remédios (1867-1932), para quem “(...) a língua portuguesa perdurou durante largo período, não só como a língua usada pelos literatos e homens cultos, mas ainda no seio das famílias como a língua própria e habitual. Nos livros, como nos seus cartões para não importa que convite de festa ou de cerimônia, nas inscrições epigráficas dos seus monumentos tumulares, a língua que empregavam era, de facto, a portuguesa” 9. A respeito do mesmo ponto, Joaquim de Carvalho frisa: “Nas lápidas tumulares do cemitério Ouderkerk, nas participações de casamento, nas resoluções e avisos da comunidade, nos sermões, nas numerosas apologias do Judaísmo e nos escritos destinados a fortalecer a fé dos emigrados. empregava-se comumente a língua portuguesa, e foi em português, que não castelhano, que em 1656 foi posto no Herem pelos senhores de Mahmad, nessa sentença que se não lê sem um estremecimento de horror” 10.

É realmente de arrepiar o tom inquisitorial da excomunhão de que foi vítima o grande pensador, em 27 de Julho de 1656. Eis o teor da mesma, segundo Van Vloten: “Os Chefes do Conselho Eclesiástico fazem saber por meio da presente que já tendo se certificado das opiniões e atos maléficos de Baruch de Espinosa, tentaram de diversos modos e por variadas promessas desviá-lo de sua conduta maléfica. Mas não tendo conseguido convencê-lo a abraçar uma melhor forma de pensamento, e, pelo contrário, tendo se conhecido ainda mais das terríveis heresias sustentadas e confessadas por ele e da insolência com a qual essas heresias são promulgadas e espalhadas no exterior, e tendo muitas pessoas dignas de crédito prestado testemunho disso em presença do dito Espinosa, foi ele considerado plenamente culpado das mesmas. Feito portanto um relatório de todo o assunto diante dos Chefes do Conselho Eclesiástico, decidiu-se, concordando os Conselheiros com isso, anatematizar o dito Espinosa e desligá-lo do povo de Israel, com a seguinte maldição: Com o julgamento dos anjos e a sentença dos santos, anatematizamos,

execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Espinosa, estando de acordo toda a

sagrada comunidade, reunida diante dos livros sagrados, contendo seiscentos e treze

preceitos, e pronunciamos contra ele a maldição que Elias lançou sobre os filhos rebeldes

e todas as maldições escritas no Livro da Lei. Que ele seja execrado durante o dia e

execrado à noite; seja execrado ao deitar-se e execrado ao levantar-se; execrado ao sair e

execrado ao entrar. Que o Senhor nunca mais o perdoe ou aceite; que a ira e o desfavor do

Senhor, de agora em diante, recaiam sobre este homem, carreguem-no com todas as

maldições escritas no Livro do Senhor e apaguem seu nome de sob o firmamento; que o

Senhor o aparte de todas as tribos de Israel e o marque para o mal; oprima-o com todas as

maldições do firmamento contidas no Livro da Lei; e que todos vós que obedeceis ao

Senhor vosso Deus sejais salvos nesse dia. Por meio desse documento ficais, portanto,

todos avisados de que ninguém poderá manter conversação com ele pela palavra oral, ter

comunicação com ele por escrito; de que ninguém poderá lhe prestar nenhum serviço,

9 REMÉDIOS, Joaquim Mendes dos, Os judeus portugueses em Amesterdão, Coimbra, 1911, p. 169-170, apud CARVALHO Joaquim, “Sobre o lugar de origem dos antepassados de Baruch de Espinosa”, ob. cit., p. 373. 10 CARVALHO, Joaquim de, “Sobre o lugar de origem dos antepassados de Baruch de Espinosa”, ob. cit., ibid.

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habitar sob o mesmo teto que ele, aproximar-se dele a uma distância de quatro cúbitos e de

que ninguém poderá ler qualquer papel ditado por ele ou escrito por sua mão”11.

Não podemos deixar de registrar, aqui, o paradoxo da intolerância dos dirigentes da Sinagoga de Amsterdã, justamente numa cidade e numa cultura que prevaleciam pela sua liberalidade, que lhes garantiu, aliás, a eles, judeus, a possibilidade de prestarem livremente culto à divindade, preservando as suas tradições. Fenômeno que talvez nos remeta à preservação, na mentalidade judaica portuguesa, de uma atitude de seita e de defesa acirrada dos seus princípios, esquecendo que era outro o contexto em que viviam. Já não estavam mais no meio peninsular, caracterizado pela mentalidade de “cruzada” contra todo aquele que divergisse! Cruel paradoxo que terminou colocando fora da comunidade judaica o mais promissor dos seus membros, nesse conturbado século XVII.

O ponto de partida do pensamento filosófico espinosano deve ser entendido à luz do fato marcante da excomunhão sofrida pelo jovem Baruch. Nada de mais essencial, para a mentalidade judaica, do que a salvação prometida pela Torah. Tolhida a via da inserção na comunidade para dar ensejo a esse desideratum, somente restava a Espinosa o caminho da razão. A grande preocupação do pensador é com a questão da bem-aventurança, que repousa no fundo da idéia de salvação. Ora, essa vivência, que poderíamos chamar, hodiernamente, de existencial, está ligada a uma comoção interna profunda. Joaquim de Carvalho identificou, nestes termos, a problemática vivida pelo jovem pensador judaico: “É que o problema primário e fundamental que Espinosa se propôs, pode formular-se da seguinte maneira: como proceder por forma que eu tenha a certeza de que serei feliz? Os problemas desta natureza, quando sentidos e pensados com a intensidade com que Espinosa viveu o que foi objecto constante de sua meditação, estão ligados à vivência de uma comoção profunda. É legítimo, por isso, admitir que ele está ligado à excomunhão que em 1656, aos vinte e quatro anos, o expulsou da comunidade israelita (...). No terrível transe, para o qual é crível que tivessem concorrido pensamentos e ditos inspirados em opiniões de Uriel da Costa e Juan do Prado, a consciência de Espinosa não foi pedir amparo a qualquer outra confissão religiosa. Expulso de Israel, morto para a família, somente se encontrou consigo mesmo, pedindo à sua razão e só à sua razão – a lei certa e o norte infalível do pensamento e de conduta. Teoria e prática de vida irrompe, assim, como imperativo vital da consciência solitária e amargurada; por isso, quaisquer que hajam sido os sulcos dos Principes de Philosophie e das Méditations Métaphysiques no pensamento do autor da Ética, o impulso que conduziu Espinosa à filosofia é independente da problemática puramente teorética do fundamento incontrovertível do saber, que excitou o gênio de Descartes” 12.

Isso posto, é lógico que também devamos inquirir acerca das influências filosóficas recebidas, além do cartesianismo, pelo nosso autor. Pois se bem é certo que a problemática existencial acima apontada é o ponto de partida da sua meditação metafísica, no entanto, também é igualmente certo que toda a problemática suscitada pelo jovem Espinosa junto à

11 Apud DURANT, Will. A filosofia de Espinosa, (tradução de Maria Teresa Miranda), Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d, p. 24-26. 12 CARVALHO, Joaquim de. “Introdução à Ética de Espinosa”, in: Obra completa de Joaquim de Carvalho, ob. cit., vol. II, p. 236-237.

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comunidade judaica de Amsterdã decorreu, como provam as fontes biográficas, do interesse do pensador pela problemática da filosofia e da ciência modernas. Essa sua insaciável curiosidade levou-o a entrar em atrito com os conservadores dirigentes da comunidade judaica. É indubitável a inspiração que Espinosa recebeu do neoplatonismo judaizado de Leão Hebreu, cujos Diálogos de Amor integravam, como vimos, a sua biblioteca. A concepção unificadora do Universo à luz do princípio do amor, que empolgava o pensamento de Jehuda Abravanel, encontrou repercussão, sem dúvida, na busca de um princípio imanente de união dos fenômenos, que aparece no pensamento do filósofo de Amsterdã. Dos filósofos escolásticos Espinosa aproveitou a terminologia e o método geométrico da exposição (axioma, definição, proposição, prova, escólio e corolário). A concepção metafísica, que em Espinosa tenta superar o dualismo cartesiano da res extensa e da res cogitans, mediante a postulação de uma única substância infinita, cujos modos se manifestam na dualidade pensamento e extensão, insere-se numa intuição metafísica próxima do Ser Essente de Parmênides. Insere-se, outrossim, numa concepção próxima do curso eterno da fenomenalidade do Universo de Heráclito, da concepção estóica do Cosmo, do panteísmo de Plotino e da idéia da Natureza una e infinita de alguns filósofos renascentistas, notadamente Giordano Bruno. Como afirma Joaquim de Carvalho, Espinosa está perto “(...) de uma atitude perante a Vida, que se nutre de anelos e de sentimentos que propendem para o enlevo teopático dos místicos de todos os credos” 13. Nessa trilha, Henry de Lubac descobriu influências do imanentismo escatológico de Joaquim de Fiori no pensamento espinosano 14.

Mas a influência de autores ocidentais fora precedida, na formação de Espinosa, pelo conhecimento sistemático dos filósofos judaicos, que o jovem estudante assimilou antes da excomunhão. Além de Leão Hebreu, o nosso pensador conheceu os escritos de Moisés Maimônides 15, (Guia dos perplexos notadamente), Hasdai Crescas, Levi Bem Gerson,, Ibn Ezra,, etc. O estudo dos autores judaicos ensejou, no espírito do jovem pensador, mais dúvidas do que respostas, o que no sentir de Will Durant levou Espinosa ao conhecimento dos autores ocidentais.16 De outro lado, a situação política e econômica da Holanda, na segunda metade do século XVII, foi o cenário imediato em que se desenvolveu o trabalho filosófico de Espinosa. Mais adiante, ao desenvolver as teses fundamentais da filosofia política de Baruch Espinosa, voltarei sobre este ponto

Mencionemos as principais obras deste pensador: Breve tratado (1660), Tratado da correção do entendimento (1660), Ética demonstrada à maneira dos geômetras (1663), Tratado teológico-político (1670) e Tratado político (1677) .

13 CARVALHO, Joaquim de, “Introdução à Ética de Espinosa”, in: Obra completa de Joaquim de Carvalho, ob. cit., vol. II, p. 225. 14 LUBAC, Henry de. La posterité spirituelle de Joachim de Flore: I – De Joachim à Schelling; II – De Saint-Simon à nos jours. Namur: Lethielleux, 1979-1981, Culture et Vérité. 15 MAIMÔNIDES, Moshe Ben Maimon. Mishné Torá: O livro da Sabedoria. (Tradução ao português de Y. I. Blumenfeld). Rio de Janeiro: Imago, 1992. 16 DURANT, Will. A filosofia de Espinosa, (trad. de Maria Teresa Miranda), ob. cit., p. 18 seg.

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II - Teses fundamentais da Filosofia de Baruch Espinosa.

1 – A Razão, caminho da salvação: Expulso da Sinagoga de Amsterdã, Baruch Espinosa viu se fechar a via da Tradição Religiosa, que lhe garantia, como judeu, a salvação. Somente lhe restou um caminho: o de procurar a salvação na Razão. E dedicou-se, com afinco, a buscá-la na sua meditação filosófica.

2 – Espinosa partiu da radicalização da noção de Substância, que passou a definir, na sua Ética demonstrada à maneira dos geômetras, como: “O que existe em si e por si é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não carece do conceito de outra coisa do qual deva ser formado” 17. Ora, radicalmente só pode haver uma substância: Deus, que se dá a si mesmo a existência, sem depender de outrem. Essa substância, a única que existe, é denominada por Espinosa de “natura naturans”, ou “natureza naturante”.

3 – O que são o Homem (Pensamento) e o Mundo (Extensão)? Eles são, segundo Espinosa, “afecções da substância infinita” ou “natura naturata” (“natureza naturada”). “Afecções” ou “modos” são entendidos por Espinosa como “o que existe numa outra coisa pela qual também é concebido” 18. Assim, para o filósofo, Pensamento e Extensão não seriam nada mais do que afecções (ou acidentes, na terminologia aristotélica) da Substância Divina. Nela, como dizia São Paulo se referindo a Cristo, nós e o Cosmo “vivemos, nos movimentamos e existimos”. Poderíamos dizer que o Homem e o Mundo, para Espinosa, “navegam em Deus”. O Mundo é manifestação finita dos infinitos atributos divinos. O Homem, idem. Não são duas substâncias antagônicas, apenas “afecções” ou acidentes da única realidade plenamente existente, a Substância Divina. Está, portanto, superado o problema do dualismo metafísico cartesiano. O sistema espinosano não é propriamente um panteísmo (pois, nele, Deus e Mundo se identificam), mas um panenteísmo (pois, para o filósofo, o Homem e o Cosmo “navegam” em Deus, como acidentes da Substância Divina, sem se identificarem com ela).

4 – Conseqüência no terreno do conhecimento: “Tudo o que existe, existe em Deus, e sem Deus nada pode existir nem ser concebido”. A verdade consiste em enxergar tudo o que existe em Deus, que é a sua condição de presença no Ser. O pensador elabora uma filosofia radicalmente monista, como fizera Parmênides. Fora do Ser, nada há. Tudo deve ser referido a ele. Essa radicalidade inspirará a outros pensadores, notadamente a Hegel, com o seu conceito arquetípico de Idéia.

5 – Conseqüência no terreno da liberdade: Ser livre consiste, para Espinosa, em existir exclusivamente pela necessidade de sua natureza. Plenamente livre, em sentido rigoroso, somente é Deus, que “existe exclusivamente pela necessidade de sua natureza e por si só é determinado a agir” 19. Podemos dizer que o homem é livre, não no sentido do

17 ESPINOSA, Baruch. Ética demonstrada à maneira dos geômetras. (Tradução e notas de Joaquim de Carvalho), 2ª edição, São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 76, coleção “Os Pensadores”. 18 ESPINOSA, Baruch. Ética demonstrada à maneira dos geômetras, ob. cit., p. 76. 19 ESPINOSA, Baruch, Ética demonstrada à maneira dos geômetras, ob. cit., p. 76.

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livre arbítrio, mas no sentido ontognosiológico 20, ou seja, quando se reconhece como necessariamente existindo e agindo em Deus. Liberdade, para Espinosa, seria, portanto, do ângulo antropológico, “reconhecimento da necessidade”. Marx aderiu a essa noção na sua obra A Ideologia alemã 21. O homem é concebido por Espinosa não como indivíduo capaz de elaborar o seu próprio projeto existencial, nem como natureza individuada a partir da qual se legitimasse uma autenticidade. Espinosa pretende transformar o homem a partir da sua proposta racional-salvífica. O homem pode, pela razão, apreender a racionalidade que pauta o universo e que aponta para a descoberta do Deus imanente no mundo. Esta descoberta e a plena inserção, pela razão, em Deus, que é o fundamento de tudo, em quem “vivemos, nos movimentamos e existimos”, constitui a salvação, tema-chave da filosofia espinosana.

Referindo-se às relações entre experiência sensível e liberdade de espírito, F. Alquié explica assim o sentido imanentista da libertação-salvação espinosana: “Ora, Espinosa crer transformar o homem e, de um ser que sofre os acontecimentos do mundo, fazer um ser livre e, por conseqüência, feliz. Tendo sido rejeitado o livre-arbítrio e tendo sido definida a liberdade pelo fato de não ser determinada a agir senão por si mesma, este projeto só se pode realizar no nível de alguma coincidência entre o conhecimento de Deus, que é essencialmente ativo, e o conhecimento humano: de mim, então, parecerá decorrer tudo quanto me acontecer. Não se trata, no entanto, para Espinosa, de nos conduzir à resignação, à aceitação passiva da necessidade. Esta necessidade, pelo contrário, deve ser recriada livremente e querida, da forma como Deus se quer a si mesmo. Enquanto eu penso por intermédio de idéias adequadas, não experimento a necessidade: eu a faço, eu coincido com ela e, nesse sentido, pode-se dizer que Deus pensa na minha alma. Pois a necessidade é a lei mais íntima da minha razão ativa, daquilo que, no meu espírito, é a razão mesma de Deus” 22.

6 – Conseqüência no terreno da antropologia: corpo e alma são duas manifestações acidentais da substância divina, sendo um a idéia do outro: o corpo é a idéia da alma, a sua representação. Está superado, destarte, o dualismo antropológico cartesiano. Espinosa funda, de outro lado, a teoria do psicossoma, que tanta importância terá no desenvolvimento da psicologia e da psicanálise, ao longo do século XX. O controle das nossas paixões advirá do fato de projetarmos a luz da inteligência sobre a vivência primordial que deu ensejo a elas. Sigmund Freud (1856-1939), evidentemente, inspirou-se neste aspecto da filosofia espinosana.

20 O termo ontognosiológico foi elaborado por Miguel Reale, na sua obra Experiência e cultura (1ª edição, São Paulo: Saraiva, 1977), para identificar o reconhecimento, pela razão, de características ontológicas presentes num determinado ser. 21 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Crítica da mais recente filosofia alemã representada por Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão representado por seus diferentes profetas, 6ª edição, (tradução de J. Carlos Bruni e M. A. Nogueira), São Paulo: Hucitec, 1978. A inspiração de Marx em Espinosa foi estudada detalhadamente por Freddy SALAZAR, na sua obra intitulada: Marx y Spinoza: problemas del método y del conocimiento, Medellín: Universidad de Antioquia, 1986. 22 ALQUIÉ, Ferdinand. Le rationalisme de Spinoza. Paris: Presses Universitaires de France, 1981, p. 198-199.

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7 - No terreno da filosofia política, Espinosa formulou o ideal da democracia radical, que poderia ser sintetizado assim: o melhor regime político é aquele no qual todos os seres humanos (cada um deles sendo manifestação acidental da Substância Divina), sem exceção, possam ver defendidos os seus interesses. Não há interesses espúrios, pois cada um de nós é manifestação da Substância Divina. O único limite para a defesa dos nossos interesses consiste no desconhecimento, por nós, dos interesses dos outros. O meu direito termina onde começa o direito do outro. Levando em consideração que a política é uma ciência prática, os homens devem ser tomados como são e não como gostaríamos que fossem: Espinosa retoma, aqui, de um lado o realismo aristotélico e, de outro, a feição moderna de política apregoada por Maquiavel, em contraposição ao utopismo medieval cristão.

O homem, na concepção espinosana, insere-se estritamente numa concepção naturista. As paixões levam o ser humano a perseguir necessariamente os seus desejos. A liberdade é entendida como livre necessidade, que consiste em se adaptar à ordem necessária pré-fixada e não em se contrapor a ela. Em que pese o fato de direito e poder se identificarem no homem, o poder do indivíduo é limitado pelo poder que exercem os demais homens. Destarte, os direitos individuais pressupõem o direito social, que os garante. A respeito, Espinosa escreveu no seu Tratado político: “No estado natural, cada indivíduo é autônomo enquanto puder evitar ser oprimido por outrem (...). De onde se deduz que, na medida em que o direito humano natural de cada indivíduo se determina pelo seu poder e é o de um só, não é direito algum; consiste numa opinião, mais do que numa realidade, posto que a sua garantia de sucesso é nula” 23.

Esse direito social, definido pelo poder da multidão e que garante o direito individual é o Estado. A respeito, Espinosa frisa lembrando a teoria política aristotélica: “Esse direito que se define como poder da multidão costuma ser chamado de Estado. Possui esse direito, sem restrição alguma, quem, por acordo unânime, é encarregado dos assuntos públicos, ou seja, de estabelecer, interpretar e abolir os direitos, de fortificar as cidades, de decidir sobre a guerra e a paz, etc. Se essa função incumbe a um conselho que é formado pela multidão toda, então o Estado chama-se democracia; se só é formado por alguns escolhidos, aristocracia; e se, finalmente, o cuidado dos assuntos públicos e, portanto, o Estado, estiver a cargo de um, chama-se monarquia” 24. Somente o Estado é verdadeiramente autônomo, pois só ele determina o que é bom e o que é mau, o justo e o injusto. A única alternativa dos súditos é obedecer, mesmo que a legislação pareça absurda. Esta alternativa é aceitável, para o nosso pensador, à luz do princípio utilitarista: “ruim como Estado, pior sem ele” 25.

As relações entre os Estados determinam-se a partir da feição absoluta do direito natural. A respeito, Espinosa frisa que “(...) dado que o direito da potestade suprema (...) não é senão o mesmo direito natural, segue-se que dois Estados relacionam-se entre si

23 ESPINOSA, Baruch. Tratado político, (tradução ao espanhol e introdução de Atilano Domínguez), Madrid: Alianza Editorial, 1986, p. 92. 24 ESPINOSA, Baruch. Tratado político, ob. cit., p. 93-94. 25 ESPINOSA, Baruch. Tratado político, ob. cit., p. 102-103.

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como dois homens no estado natural” 26. O nosso pensador encarava as relações internacionais com certa dose de pessimismo, fato que o coloca numa perspectiva realista de inegável atualidade. Em relação a este ponto, Atilano Domínguez escreve: “Em que pese o fato de Espinosa saber bem que as alianças são tanto mais sólidas quanto mais numerosas forem as nações aliadas; que as diferenças entre as nações não são raciais, mas puramente históricas e estruturais; que o comércio exterior é vital para a vida de todo o Estado; e que é melhor limitar-se a conservar os próprios territórios que intentar conquistar outros, o seu realismo político o faz mostrar-se bastante receoso perante a verdadeira eficácia do chamado direito internacional. E, infelizmente, a história lhe dá a razão” 27.

O Estado, segundo Espinosa, possui a sua própria natureza e age de acordo com ela. Se errar, age contra a razão. Espinosa considerava que a forma de evitar os erros do Estado consistia no controle que sobre ele exercesse a sociedade. O bom governo, pensava o filósofo, é aquele estabelecido por meios humanos e aceitos pela maioria. A questão das várias formas de governo (monarquia, aristocracia, democracia), decorre fundamentalmente do seguinte princípio enunciado pelo autor: “É necessário organizar de tal forma o Estado que todos, tantos os que governam quanto os governados, queiram ou não queiram, façam o que exige o bem-estar comum” 28. Neste ponto, o nosso pensador revela-se seguidor da teoria aristotélica.

O princípio fundamental que pauta o pensamento político de Espinosa consiste na valorização da democracia como ideal supremo do convívio social. Atilano Domínguez exprimiu, com propriedade, este aspecto do pensamento espinosano, assim: “Espinosa está convencido de que o bem-estar público só se atinge mediante um acordo da multidão em relação às leis. Mais do que ciência e honestidade nos governantes exige, pois, um número elevado em todos os conselhos. Consoante com essa convicção teórica, sustenta que a primeira forma histórica de Estado foi a democracia. Pois como todos os homens são iguais por natureza e todos preferem mandar a serem mandados, somente por circunstâncias históricas terão sido impostos regimes não-democráticos” 29. O verdadeiro teor da democracia espinosana é pautado pela idéia de igualdade de direitos entre todos os cidadãos. Somente o crime ou a infâmia podem afastar alguém do convívio democrático. A propósito, afirmava o filósofo: “No Estado democrático, todos os que nasceram de pais cidadãos ou no solo pátrio, ou os que são beneméritos do Estado, ou que devem ter direito de cidadania por causas legalmente previstas, todos eles, repito, com justiça reclamam o direito de votar no Conselho Supremo e de ocupar cargos no Estado, e não se lhes pode negar, a não ser por um crime ou infâmia” 30.

Somente a democracia é compatível com a busca da paz. A sua negação acarretará, portanto, o risco da violência e da guerra. Eleger alguém para fazer a guerra é uma tolice. Nesse sentido o pensamento de Espinosa diverge do de Maquiavel. A característica

26 ESPINOSA, Baruch. Tratado político, ob. cit., p. 107-108. 27 DOMÍNGUEZ, Atilano. “La política em la vida y em la obra de Espinosa”. In: ESPINOSA, Baruch, Tratado político, ob. cit., p. 33. 28 ESPINOSA, Baruch de. Tratado político, ob. cit., p. 220. 29 DOMÍNGUEZ, Atilano. “La política en la vida y en las obras de Spinoza”, in: ESPINOSA, Baruch, Tratado político, ob. cit., p. 46. 30 ESPINOSA, Baruch. Tratado político, ob. cit., p. 220.

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fundamental do Estado democrático consiste em que sua força é muito mais eficaz na paz do que na guerra 31.

O ideal democrático espinosano deitou indubitavelmente os alicerces para a formulação da teoria do governo representativo, feita inicialmente por Locke durante o seu exílio na Holanda, no final do século XVII, e aperfeiçoada pelos pensadores ingleses e pelos doutrinários franceses ao longo dos séculos XVIII e XIX. Somente o ideal democrático garante o gozo, pelos cidadãos, dos seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses. Somente esse ideal é compatível, outrossim, com a insaciável busca da felicidade. E deve abarcar a totalidade dos cidadãos.

Não há dúvida quanto ao fato de que o Tratado político de Espinosa espelha o problema político sofrido pela Holanda, no decorrer do século XVII. Tal problemática, ao nosso entender, abarcava as seguintes variáveis: em primeiro lugar, a luta contra o absolutismo e a intolerância, que tinha levado à Holanda milhares de refugiados (judeus portugueses e espanhóis; judeus provenientes dos principados alemães e da Europa central; ingleses perseguidos pelos soberanos absolutistas da dinastia Stewart, etc.). Essa luta travou-se no interior do próprio país, mais especificamente no seio da comunidade judaica. Dois episódios de intolerância marcaram profundamente a vida de Espinosa: a condenação e posterior suicídio do seu correligionário e “(...) sem dúvida conhecido da família” 32, Uriel da Costa (1640) e a sua própria excomunhão - à qual já foi feita referência – (em 1656). Em segundo lugar, a problemática política vivida por Espinosa abarca a busca de um princípio de ordem que garantisse a liberdade dos cidadãos. Neste aspecto, o assassinato do líder liberal e republicano holandês Jan de Witt (1672) e sua substituição pelo militar Guilherme III de Orange (1650-1702), colocaram o nosso autor diante de um grave impasse: como conciliar autoridade forte e liberdade?

8 – Síntese da espiritualidade judaica moderna na versão de Espinosa. Para o nosso pensador, em face da vivência religiosa vale o seguinte princípio semelhante: todas as manifestações são válidas, na medida em que cada crente espelha uma manifestação finita da essência infinita. A tolerância religiosa será o corolário natural deste princípio.

O entroncamento do pensamento espinosano com a tradição judaica foi sistematizado pelo filósofo no Tratado teológico-político 33. A obra consta de duas partes: a primeira, de cunho teológico, em que o autor defende a liberdade de interpretar a Sagrada Escritura; a segunda, de caráter político, em que é defendida a liberdade de expressão no Estado. No que diz respeito à primeira parte, estas são as idéias fundamentais de Espinosa: levando em consideração que, nos nossos dias, já não existem profetas, a Escritura é o único meio para conhecermos o que é a Religião. Ora, a Escritura, na sua essência, é um fato histórico que deve ser examinado com instrumento adequado: o conhecimento da língua e da história hebraicas. Tornou-se Espinosa, mediante esta tese, o precursor do

31 ESPINOSA, Baruch. Tratado político, ob. cit., p. 144. 32 DOMÍNGUEZ, Atilano. “La política en la vida y en la obra de Spinoza”. In: ESPINOSA, Baruch, Tratado político, ob. cit., p. 10. 33 ESPINOSA, Baruch. Tratado teológico-político, (tradução, introdução e notas de Atilano Domínguez), Madrid: Alianza Editorial, 1983.

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Método da Escola das Formas (Formgeschichtemethode), proposto pelos fundadores da ciência da exegese, os irmãos Davi e Bruno Bauer, discípulos de Hegel. Esse método foi assumido pelos exegetas bíblicos no decorrer dos séculos XIX e XX (a Bíblia de Jerusalém, publicada na segunda metade do século passado, é exemplo claro da posta em prática dessa metodologia hermêutica).

9 – Papel hermenêutico da Razão Humana em face das Religiões: diante de qualquer Tradição Religiosa (o filósofo pensava, inicialmente, na Tradição Judaica encarnada na Torah e no Talmude), o papel do filósofo consiste em se perguntar em virtude de quais vivências das comunidades e dos indivíduos foram se formatando as Tradições Religiosas. Assim, por exemplo, a crença dos cristãos na ressurreição de Cristo, deveria conduzir os estudiosos a mergulharem nas razões que teriam levado os primitivos cristãos a postularem, como fato revelado, a Ressurreição do Mestre. Baruch Espinosa situa-se, assim, nas origens da ciência da hermenêutica.

10 – O homem, na concepção política espinosana, insere-se estritamente numa concepção naturista. As paixões levam o homem a perseguir necessariamente os seus desejos. A liberdade é entendida como livre necessidade, que consiste em se adaptar à ordem necessária pré-fixada e não em se contrapor a ela.

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