o papel e o lugar do afeto

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Universidade Católica de Pernambuco - 60 Ciências, Humanidades e Letras O papel e o lugar do afeto (à luz da psicanálise) no fazer clínico interacionista: atravessamento possível ou utopia ? Carlos Brito “Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes... Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas”. Marilena Chaui. Resumo O presente trabalho tem como objetivo refletir so- bre um possível atravessamento entre a psicanáli- se e o interacionismo brasileiro, enquanto áreas de conhecimento científico, visando a repensar o pa- pel do afeto nos distúrbios de comunicação. Par- tindo da premissa de que, o interacionismo brasi- leiro (DE LEMOS) é uma perspectiva oriunda da lingüística (análise do discurso), preocupada basi- camente com o funcionamento da linguagem, onde e como transversalizá-lo com o papel e o lugar do afeto (via psicanálise) na situação terapêutica, para poder compreender melhor as variáveis inconsci- entes envolvidas no funcionamento da linguagem da criança, e assim tentar ter acesso mais verda- deiro, mais científico de suas dificuldades de apren- dizagem? Palavras-chave: interacionismo brasileiro, psica- nálise, afeto. ___________________ Psicólogo, Fonoaudiólogo, Professor-assistente do Departamento de Psicologia, mestrando em Fonoaudiologia pela Puc-SP Endereço para correspondê ncia: Rua Arnóbio Marques, 235, Boa Vista Recife- PE, Tel.: 4215497/2225928 Abstract This paper aims at reflecting on a possible cross- over point between psychoanalysis and Brazilian interactionism as areas of scientific knowledge in order to rethink the role of affection in communi- cative disturbance. Starting from the premise that Brazilian interactionism (DE LEMOS) is a perspec- tive that comes from linguistics (discourse analy- sis), as it focuses basically on language function- ing, it is important to question: ?Where and how crossover takes place using the role and place of affection (via psychoanalysis) in therapeutic situa- tion in order to have a better understanding of the unconscious variables involved in how the child’s language functions and therefore to try to have a more accurate and more scientific knowledge of the child’s difficulties in learning ? Key words : Brazilian interactionism, psycho- analysis, affection. I – INTRODUÇÃO: OU SOBRE O DILEMA DO QUESTIONAMENTO. Enquanto psicólogo e fonoaudiólogo, sem- pre me vi envolvido com o fenômeno da fala e aten- to a ele, enquanto expressão de significações, no discurso de minha clientela, caracterizada por cri- anças em fase de educação infantil, que apresen- tavam dificuldades de aprendizagem (leitura – es- crita). Toda uma leitura psicopedagógica em rela- ção à questão da aprendizagem sempre me levou a procurar entender e desvelar as determinações inconscientes envolvidas nesse processo (aprendi- zagem) e como poderiam estar sendo identificadas na fala das crianças. Em minha prática clínica, a questão do conhecimento e também do “desconhecimen- to” bem como sua sintomatologia (via verbalização) parece se mostrarem, principalmen- te, a partir do que não se dizia, do não-dito, daqui- lo que não era verbalizado, do que, por razões vá- rias, não estava sendo “nomeado”.

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O Papel e o Lugar Do Afeto

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Universidade Católica de Pernambuco - 60

Ciências, Humanidades e Letras

O papel e o lugar do afeto(à luz da psicanálise) no

fazer clínico interacionista:atravessamento possível

ou utopia ?Carlos Brito

“Não é a fome ou a sede, mas o amor ouo ódio, a piedade, a cólera que aos primeiroshomens lhes arrancaram as primeirasvozes... Eis por que as primeiras línguasforam cantantes e apaixonadas antes deserem simples e metódicas”.

Marilena Chaui.

ResumoO presente trabalho tem como objetivo refletir so-bre um possível atravessamento entre a psicanáli-se e o interacionismo brasileiro, enquanto áreas deconhecimento científico, visando a repensar o pa-pel do afeto nos distúrbios de comunicação. Par-tindo da premissa de que, o interacionismo brasi-leiro (DE LEMOS) é uma perspectiva oriunda dalingüística (análise do discurso), preocupada basi-camente com o funcionamento da linguagem, ondee como transversalizá-lo com o papel e o lugar doafeto (via psicanálise) na situação terapêutica, parapoder compreender melhor as variáveis inconsci-entes envolvidas no funcionamento da linguagemda criança, e assim tentar ter acesso mais verda-deiro, mais científico de suas dificuldades de apren-dizagem?

Palavras-chave: interacionismo brasileiro, psica-nálise, afeto.

___________________Psicólogo, Fonoaudiólogo, Professor-assistente do Departamento dePsicologia, mestrando em Fonoaudiologia pela Puc-SPEndereço para correspondê ncia: Rua Arnóbio Marques, 235,Boa VistaRecife- PE, Tel.: 4215497/2225928

Abstract

This paper aims at reflecting on a possible cross-over point between psychoanalysis and Brazilianinteractionism as areas of scientific knowledge inorder to rethink the role of affection in communi-cative disturbance. Starting from the premise thatBrazilian interactionism (DE LEMOS) is a perspec-tive that comes from linguistics (discourse analy-sis), as it focuses basically on language function-ing, it is important to question: ?Where and howcrossover takes place using the role and place ofaffection (via psychoanalysis) in therapeutic situa-tion in order to have a better understanding of theunconscious variables involved in how the child’slanguage functions and therefore to try to have amore accurate and more scientific knowledge ofthe child’s difficulties in learning ?

Key words : Brazilian interactionism, psycho-analysis, affection.

I – INTRODUÇÃO: OU SOBRE O DILEMA DOQUESTIONAMENTO.

Enquanto psicólogo e fonoaudiólogo, sem-pre me vi envolvido com o fenômeno da fala e aten-to a ele, enquanto expressão de significações, nodiscurso de minha clientela, caracterizada por cri-anças em fase de educação infantil, que apresen-tavam dificuldades de aprendizagem (leitura – es-crita).

Toda uma leitura psicopedagógica em rela-ção à questão da aprendizagem sempre me levoua procurar entender e desvelar as determinaçõesinconscientes envolvidas nesse processo (aprendi-zagem) e como poderiam estar sendo identificadasna fala das crianças.

Em minha prática clínica, a questão doconhecimento e também do “desconhecimen-to” bem como sua sintomatologia (viaverbalização) parece se mostrarem, principalmen-te, a partir do que não se dizia, do não-dito, daqui-lo que não era verbalizado, do que, por razões vá-rias, não estava sendo “nomeado”.

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A minha escuta psicanalítica do “setting”terapêutico sempre me apontou (o) e (no) afeto,(o) e (no) desejo, o possível acesso e a provávelelucidação das questões não-ditas, não-verbalizadas na fala das crianças, embrenhadasà própria problemática de aprendizagem apre-sentada, como também a questionar os referenciaisteóricos sobre a linguagem numa perspectivacognitiva.1

Esses referenciais, quase sempre assen-tados na dialética pensamento-linguagem, en-quanto funções cognitivas, não me davam umreal suporte para poder compreender a lingua-gem, a fala infantil, em sua funcionalidade bemcomo em sua possibilidade de tradução do proces-so de aprendizagem.

No momento em que me deparei com aperspectiva interacionista de De Lemos, “com umaconcepção de linguagem que lhe permitia ver alinguagem em seu funcionamento, ou ainda emsua singularidade” (FREIRE, 1996, p. 3), come-cei a acreditar na necessidade de aprofundamentonesse referencial teórico, como um canal de ama-durecimento de meu fazer clínico em busca de umainterdisciplinaridade.

Esse encontro e sua possível aplicaçãoem minha prática, alicerçada por uma escuta psi-canalítica, colocou-me em frente de um dilemade natureza epistemológica e científica.

Sendo o interacionismo brasileiro (De Le-mos) uma perspectiva oriunda da área da lin-güística (análise do discurso) preocupadabasicamente com o funcionamento da lingua-gem, onde e como transversalizá-lo com o papele o lugar do afeto (via psicanálise) na situaçãoterapêutica, para poder compreender melhoras variáveis (inconscientes) envolvidas no funci-onamento da linguagem da criança, e assimtentar ter um acesso mais verdadeiro, mais ci-entífico de suas dificuldades de aprendizagem?

O objetivo deste trabalho é discutir, re-pensar o papel e o lugar do afeto numa leiturapsicanalítica, a partir de uma clínicainteracionista com crianças que apresentam difi-culdades de aprendizagem, visando a ver nãoapenas, na funcionalidade e / ou na singularidadedo discurso infantil, um meio para compreensãoda problemática e concomitante terapêutica dasdificuldades em aprender.

De fato, quero acreditar que essa funcio-nalidade e singularidade têm que ser interpretadase contextualizadas a partir de uma transcedênciado eminentemente lingüístico, indo ao encontrodo inconsciente infantil, local onde o afeto e odesejo repousam freneticamente enquanto lingua-gem e dinâmica constitutiva.

II – A questão da aquisição de linguagem nointeracionismo brasileiro: visitando a obra deLemos

“Interação é sem dúvida produção desentidos”.

De Lemos

Compreender a perspectiva teórica so-bre a aquisição de linguagem, de acordo comDe Lemos, é necessariamente ter que revisitartodos os seus escritos desde o início da décadade 80.

Penso que poderíamos iniciar esserevisitar, refletindo sobre a possibilidade deter sido a partir de uma ótica da análise dodiscurso, tendo como quadro epistemológico aarticulação de três áreas do conhecimentocientífico (materialismo histórico, lingüística eteoria do discurso) que ela dá início a suaproposta de compreensão do fenômeno deaquisição de linguagem, na criança, questionan-do as perspectivas teóricas de base inatista eestruturalista, por procurarem descrever estágios,no desenvolvimento lingüístico e não revelar rela-ções entre eles.

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Passa, assim, a se preocupar com a ques-tão da aquisição da linguagem por parte da criançaenquanto objeto sobre o qual ela vai operar.

É interessante observar todo o seupercurso de leituras e releituras da perspectivasocioconstrutivista, onde vai poder desvelar “umavisão de criança como um sujeito já constituídocujo acesso ao objeto lingüístico é direto e,portanto, não mediado pelo outro, isto é, por ummembro experiente de sua espécie, representanteda ordem simbólica que mediará, por sua vez, arelação da criança com estados de coisas do mun-do”. (DE LEMOS, 1989, p. 1)

Nessa linha de pensamento, demonstrainteresse pelos processos dialógicos na questãoda aquisição da linguagem, tomando o diálogo(mãe com criança) em sua funcionalidade, comofenômeno de natureza discursiva a partir de umaunidade de análise. Ao mesmo tempo, vislumbrao lugar de inserção da criança na própria lin-guagem, tentando ressaltar que, quando acriança começa a habitar o discurso do Outro,instala-se com “tudo de bagagem” e ressignifica odiscurso, que, no ato do diálogo, acaba pertencen-do-lhe.

Aqui, ela começa a elucidar a idéia de“linguagem enquanto efeito de sentidos” (REGI-NA FREIRE)2, quando chama a atenção dos trêsprocessos constitutivos do diálogo entre adulto ecriança (especularidade, complementaridade e re-ciprocidade).

Nesse momento de seu pensar, a criançavai começar a assumir o papel desempenhado peloadulto, passando, como ela diz, de interpretadopara intérprete de si próprio e de seu discurso.

A linguagem em seu funcionamento vai-se delineando como objeto de estudo, refletindosobre seu papel (linguagem) na passagem daatividade sobre o mundo para a atividade sobrelinguagem enquanto objeto.

É a partir de uma reflexão cada vezmais sistemática sobre o papel da criança, en-quanto autor de seu discurso, que vê, nela, opapel de agente capaz de espelhar, recortar edar sentido ao comportamento do Outro e, pos-teriormente, de si próprio, reconhecendo que acriança possui um saber sobre sua próprialíngua, implicando ver o discurso como local deexperimentar e confrontar hipóteses numa práti-ca reflexiva que toda aquisição conjuntiva exi-ge (observamos aqui uma certa mudança emseu pensar, não significando uma ruptura com suasidéias anteriores).

“Esse momento de transição não signi-fica uma descontinuidade em relação a meustrabalhos anteriores (De Lemos, 1981, 1982, 1985e outros). Neles, o que se via, ao tomar o diálogoadulto / criança como unidade de análise nas fa-ses iniciais da aquisição, era o efeito lingüístico-discursivo do adulto sobre a criança. O estudodos períodos posteriores traz à luz outros fenô-menos indicativos de que as relações entre ossignificantes da criança e do adulto, dentro de umespaço discursivo dado, acarretavam uma reorga-nização / resignificação no interior do próprioenunciado da criança”. (DE LEMOS, 1992, p.134)3

Revisitando Vygotsky (momento em quequestiona a natureza da mediação, não concor-dando em ver a linguagem enquanto instrumentodessa mediação, mas, sim, considerando a me-diação como relação constitutiva, como açãoque transforma) como também a obra deSAUSSURE, criticando sua idéia de transparên-cia lingüística (ao estabelecer uma relação entresignificado e significante) mas, de certa forma,aproximando-se da fala dele, acerca de relaçõesparadigmáticas e sintagmáticas, que passa porLACAN e por JAKOBSON, que, por sua vez,aprofunda essa questão dos dois eixos da lingua-gem.

Inicia seu trabalho de reflexão sobreos processos metafóricos e metonímicos nacompreensão do processo de assujeitamento da

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língua por parte da criança, ficando “mais clara”a sua idéia de opacidade do discurso lingüístico.Opacidade essa que seria desvelada ao longo dojogo dialógico adulto-criança.

Esse “desvelamento” implica ver umaproposta de aquisição / construção de lingua-gem a partir da passagem do discurso infantil noeixo paradigmático (metáfora) para o eixosintagmático (metonímia), atravessada pordeslizamentos propostos de forma a ocorrer siste-maticamente.

Como eixo paradigmático, entendemos olocal onde os elementos da língua aparecem emclasses, associados por um traço lingüístico queé denominador comum. À base desse traço, esta-belecem-se as diferenças e igualdades entre oselementos e as classes, entrando aqui a metáforacomo figura básica desse eixo.

Por outro lado, o eixo sintagmático abordaa dependência que existe entre dois elementosseqüenciais numa mesma cadeia, onde o valor decada um se define por relação ao valor do Outro.Aqui reside a metonímia e fala-se de contigüida-de, não se referindo à contigüidade de significantes,mas à contigüidade dos sentidos.

A relação entre esses dois eixos, semdúvida, vai propiciar uma mobilidade de subs-tituições de elementos equivalentes ao longodo eixo vertical (paradigmático). O elemento sele-cionado (atrevo-me a falar em intenção do senti-do) passa em seguida a ser transportado para oeixo horizontal (sintagmático) do discurso adulto-criança, onde, sem dúvida, vai poder entrar emcombinações com outros elementos ali coloca-dos. Isso acaba por acarretar a sintagmacidadeda fala como um discurso sem fim.

Acredito que tudo isso tem a ver como que De Lemos chama de reorganizações eressignificações no interior do discurso da cri-ança, a partir de uma relação dialógica. (Semdúvida, todo esse processo parece evidenciaro que se compreende num paradigma de

contemporaneidade por subjetivização).

“É nesse sentido, penso eu que vale a penainsistir em que, na aquisição, o que está literalmenteem jogo é a relação da criança com a linguagem. Sehá mudanças – e há mudanças – elas são dessa or-dem. Creio ter podido apontar aqui como a criançapode sair da posição de interpretada pela fala doOutro, atuante em sua própria fala, para uma posiçãoem que é a língua, enquanto Outro, que a desloca eressignifica. Na medida em que esses deslocamen-tos – e os erros que indicam – tendem a desapare-cer da superfície da fala, deixando em seu lugarpausas, hesitações e correções da fala, e rasuras naescrita, outras mudanças na relação com a lingua-gem deslocam a criança para outra posição”. (DELEMOS, 1995, p. 27)

III - Compreendendo o papel e o lugar do afetona linguagem em funcionamento da criança(à luz da psicanálise): a tentativa deatravessamento

“É fundamental que se dê maior atençãoàs relações entre o desenvolvimento da lin-guagem e as forças dinâmicas que atuam en-tre adultos e crianças no curso docrescimento infantil”.

Mauro Spinelli.

Tendo, no tópico anterior apresentado umasíntese da concepção interacionista de De Le-mos sobre a questão da aquisição e funcionalida-de da linguagem na criança, faz-se necessário, nestemomento, “concretizar” o objetivo do trabalho. Ouseja, partir para a “ousadia” em vislumbrar umatravessamento do acima exposto com a questãodo afeto à luz da psicanálise, tendo em mente ofazer clínico interacionista em crianças com difi-culdades de aprendizagem.

O caminho de acesso ao mundo da reali-dade, do conhecimento, ou seja, da passagemda experiência do mundo como caosindiferenciado à possibilidade de simbolizá-lo (vialinguagem) é, para o bebê humano, longo e tortuo-so.

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Esse caminho o leva à representaçãode si e da realidade através da aprendizagem,outorgando-lhe o direito de assujeitar-se emsua afetividade e desejo. Esse percurso leva-odo paraíso mágico, típico do narcisismo primá-rio, à assunção de sua realidade (via conheci-mento) pela incompletitude. E ele só se fazpossível para o sujeito humano, pela e na lin-guagem, que traz, em sua essência, a perda dacoisa simbolizada.

Essa trilha evidenciada acima parece sóser possível a partir da relação mãe-bebê, naquiloque se compreende por simbiose, onde o afeto eo desejo alimentam e caracterizam toda essaexperienciação.

“No primeiro tempo levam-se em contadois personagens, a criança e a mãe, e a relaçãoentre elas. Lacan nos diz que é pela dependênciade amor que a criança quer ser o objeto do desejoda mãe. Ela quer ser tudo para sua mãe, quer trans-formar-se naquilo que a mãe deseja. Pensa que épor causa dela que a mãe é feliz, sem saber querepresenta outra coisa em outra cena para amãe, ou seja, a sua plenitude narcísica. Assim, acriança é o falo, e sua mãe tem o falo”. ( BARONE,1993, p. 47)

Nota-se aqui que, desde muito cedo, narelação simbiótica mãe-bebê, o afeto e o desejoem suas matizes conscientes e inconscientes pa-recem ser a força motriz dos jogos interativos edas aquisições, do contato com a realidade.

De Lemos, a todo momento, em sua pers-pectiva, chama a atenção para a questão da rela-ção dialógica (mãe e criança) como fenômeno denatureza discursiva, onde, através da interação, acriança vai habitando o discurso do Outro(mãe) ressignificando-o, tornando-se mais tarde au-tor de seu próprio discurso.

Qual o papel do afeto nessa apropriação?Como ele é materializado nessa realidade? Qual aimportância de se desejar e sentir-se objeto dedesejo da mãe nessa apropriação por meio da fala

enquanto efeito de sentidos do mundo que a cir-cunda?

De Lemos, aprofundando suas idéias, vaidissertando sobre os três processos constitutivosdo diálogo mãe-criança (especularidade,complementaridade, reciprocidade), onde, aomeu ver, parece não se vislumbrar o papel “real”do afeto e do desejo enquanto forças propulso-ras e catalisadoras.

“O processo de constituição do eu, reali-za-se em dois momentos. Através da identifica-ção especular (que segue a identificação pri-mária) e, posteriormente, através da identifica-ção simbólica. Desse modo, a identificação espe-cular, no estágio do espelho de que fala Lacan, jáé um segundo tempo da dialética identificatória,que vem instaurar o registro imaginário como lu-gar das identificações do eu.

A identificação especular consiste emidentificar o visto (identificado) como idêntico asi mesmo por aquele que olha (identificante) ediferente de qualquer outro objeto (mãe)”.(VIOLANTE, 1994, p. 106)

Aqui reforça-se o papel do afeto, atravésdo desejo, como o responsável por esse desloca-mento.

No momento de transição teórica de suaobra, De Lemos começa a se adentrar no interiormesmo do discurso, vislumbrando cada vez maisum papel mais ativo da criança na reorganização /ressignificação de seu discurso.

Por outro lado, parece não se especular aquestão do afeto, do desejo, ou seja, osdeterminantes inconscientes não são apontadosenquanto catexia, como agentes dinamizadoresdessa mudança.

Mais adiante, quando vem falar sobre aquestão dos deslocamentos (eixoparadigmático-metáfora para o eixosintagmático-metonímia),onde, segundo ela, o discurso da criança vai reor-

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ganizando-se a partir do contato com o Outro, ficaclara a sua crença na importância de se ver a lin-guagem em sua funcionalidade.

Acredito que caberia, neste momento, ver,nesse Outro, um ser carregado de afeto e movidopor desejos, que se torna um agente motivador eimpulsionador da criança para um mundo alémdo simbólico. Funciona como um farol condutordo princípio do prazer (id) para o princípio da rea-lidade (ego).

“Nas primeiras fases do desenvolvimentoemocional do bebê humano, um papel vital é de-sempenhado pelo meio ambiente que, de fato, obebê ainda não separou de si mesmo.Gradativamente a separação entre o não-eu e o euse efetua. E o ritmo dela varia de acordo com obebê e com o meio ambiente. As modificaçõesprincipais realizam-se quanto à separação damãe como aspecto ambiental objetivamentepercebido.

Se ninguém ali está para ser mãe, atarefa desenvolvimental do bebê torna-se infini-tamente complicada”. (WINNICOTT, 1995, p.153)

Cabe lembrar que a psicanálise semprechamou a atenção a se considerar o desejo comodesejo do Outro (Lacan). É esse Outro que meimpele a desejar, que me orienta no sentido deentrar em contato com a realidade.

Se me falta esse Outro com seu afeto, como seu desejo, fica difícil para a criança desejar omundo, desejar a si própria, querer conhecer eexpressar esse conhecimento pela linguagem (tal-vez a explicação para a questão do “desconheci-mento” na aprendizagem).

Sua fala se cala no sentido metafó-rico e seu desejo adormece, acarretando, talvez,uma estagnação em sua tentativa de conhecera realidade como também uma lentificação eviscosidade em sua fala, nos aspectos da funcio-nalidade e singularidade.

Como não se seduzir por essas questões?Parece faltar à criança, nesse sentido, o

significado de confiança no Outro, acarretandoangústia na não-satisfação de necessidades bási-cas e projetando-se para um futuro onde dificil-mente o “desejo” em sua realização vai poder seradiado.

“Mães amorosas mas inseguras, confusas,contribuem para que a criança se desenvolva semparâmetros nítidos, sem diretrizes nas quais apoiaro seu desenvolvimento”. (SPINELLI, 1986, p. 171)

A criança, por falta de confiança no Ou-tro, acaba construindo inconscientemente defesasfrente ao mundo que lhe é ameaçador e perdendomesmo o desejo de ler esse mundo através de suafala e sua escuta.

Winnicott nos chama a atenção para aquestão de que a esquizofrenia parece ser umaorganização de defesa altamente sofisticadafrente a um mundo ameaçador.

Acredito já ter pontuado uma série dequestões sobre a importância e o valor do afeto narelação mãe-bebê e sua importância na compreen-são da linguagem em seu funcionamento. Conti-nuar dissertando sobre a temática do afeto e dodesejo acabaria por levar este trabalho para oâmbito da psicologia do desenvolvimento infan-til, fugindo assim da proposta original.

IV – Considerações finais: argumentos não-conclusivos

“Uma palavra ou uma imagem é simbóli-ca quando implica alguma coisa além doseu significado manifesto e imediato. Estapalavra ou imagem tem um aspecto‘inconsciente’ mais amplo, que nunca éprecisamente definido ou de todoexplicado”.

Carl G. Jung.

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Em uma primeira instância, espero terdeixado claro que, em nenhum momento, foi meuobjetivo – até mesmo por não me sentir capaci-tado teoricamente – questionar ou criticar nosentido de propor mudanças na teoriainteracionista de De Lemos sobre aquisição de lin-guagem. Como está explicitado no objetivo des-te trabalho, minhas inquietações a partir de meufazer clínico me cobravam um atravessamento deenfoques, para melhor compreender a realidade deminha clientela.

Acredito que procurei refletir sobre aquestão da funcionalidade da linguagem, vendo-a embebedada de afeto, sendo também expressãodo desejo da criança e do Outro com o qualinterage.

Procurei ver o papel da mãe na relaçãoprimordial com a criança, como o Outro, como olugar de onde se origina o código, as palavras quevão “moldá-lo”. Por não poder reconhecer suasnecessidades, é através da linguagem da mãe quea criança as reconhece de forma inconsciente. Amãe não apenas lê essas necessidades como tam-bém, por meio do desejo, de seu desejo as cons-trói. Assim, a mãe, além de ser o Outro (ima-gem de identificação com a qual a criança vai iden-tificar-se) vai ser também, sem dúvida, o Outro,lugar mesmo do código.

Como não considerar essas questões naclínica em crianças com dificuldades de aprendi-zagem? Como não acreditar que a leitura domundo, através da fala infantil, depende dessasdeterminações inconscientes? Não se pode em si-tuação clínica não pensar em atravessamentos. O“ecletismo” parece ser possível.

Sem dúvida, a linguagem só pode ser com-preendida em sua funcionalidade e singularidade,como nos aponta De Lemos. Porém, na clínica, háde se fazer uma escuta psicanalítica dessa funci-onalidade e dessa singularidade, para além do ma-nifesto, entendendo a sua mensagem em um nívelno qual ela é efetivamente elaborada (simbólico).

Há de se ir pelos caminhos da linguagemao lugar do afeto, dos atravessamentos dos dese-jos, que inconscientemente habitam essa realidade.

Um longo caminho ainda há de sertrilhado na tentativa de iluminação desseatravessamento, deixando sempre uma luz ace-sa, evitando, assim, os perigos da utopia sectarista...

NOTAS

1 Refiro-me às teorias de Piaget e Vygotsky.

2 Anotações de aula.

3 “Esto no significa, sin embargo, unadiscontinuidad respecto a mis trabajos anterio-res (De Lemos, 1981, 1982, 1985 y otros). Enellos, lo que se véia al tomar el diálogo adulto-niño como unidad de análisis en las fases inicialesde la aquisición, era el efecto lingüístico-discursivo, del adulto sobre el niño. El estudiode los períodos posteriores trajo a luz otros fenô-menos indicativos de que a las relaciones entrelos significantes del niño y los del adulto dentrode un espacio discursivo dado, le sucedían unareorganización / resignificación en el interior delpróprio enunciado del niño”. (tradução livre)

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