o papel do estado na materializaÇÃo das polÍticas sociais

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O PAPEL DO ESTADO NA MATERIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS Deneci Nascimento Secchim 1 Helio Pettene 2 RESUMO Este estudo enfatiza a importância de se compreender a concepção de Estado e sua relação na inserção de políticas públicas sociais concebidas como possibilidade de se promover a solidariedade social. Tem por objetivo analisar as literaturas existentes que abordam a temática das Políticas Sociais, cuja reflexão está focada no poder de Estado e na organização política da população. O crivo do Estado deve ser exercido pelas políticas originadas da sociedade civil e que se formam tendo em vista o exercício da cidadania. Há que se reconhecer, portanto, que a política social não pode ser concebida e administrada privadamente, mas deve o Estado fazer o que é função dele. Falar de políticas sociais nos remete à democracia participativa que favorece o advento necessário de uma sociedade, em que através de suas diferentes esferas e organismos, maximizem a probabilidade de garantir seus direitos sociais. Com esta pesquisa verificou-se que a política social tem se apresentado com uma política fundamental para o bem-estar dos cidadãos, o que requer a ampliação da participação popular nas decisões e controle dessas políticas. PALAVRAS-CHAVES: Políticas públicas - Poder estatal - Sociedade civil – Organicidade. ABSTRACT This study emphasizes the importance of having a design of the State and its relation in insertion of the public politics seen as a possibility of promoting the social solidarity. It has as a goal to analyze the works about the Social Politics, which reflection is focused in the power of the State and in the organization of the population. The mission of the state has to be made by the politics come from the civil society, which is formed to the exercise of citizenship. So, it’s important to know that the social politics can’t be seen and administered privately; the State has to do what is its mission. Talking about social politics refers to the participatory democracy that allows the necessary advent of a society to increase the probability of guarantying its socials rights. This search diagnosed that the social politics have been set as a fundamental politic to the wellness of the citizen and this fact requests a wide popular participation in decisions and control of this politics. Key-Word: Public politics; state power; civil society; organization. 1 Graduada em Pedagogia/FAFIC - Pós-Graduada em Planejamento Educacional; Pós Graduada em Didática no Ensino Superior/UNIVEN - Pedagoga da Superintendência Regional de Educação, da Secretaria Municipal de Educação de Nova Venécia e Professora da UNIVEN. 2 Graduado em Filosofia/ PUC do Paraná- Pós-Graduado em Planejamento Educacional; Pós- Graduado em Didática no Ensino Superior/UNIVEN, Diretor da EEEM Dom Daniel Comboni e Professor da UNIVEN.

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O PAPEL DO ESTADO NA MATERIALIZAÇÃO DAS POLÍTICAS SOCIAIS

Deneci Nascimento Secchim1

Helio Pettene2

RESUMO Este estudo enfatiza a importância de se compreender a concepção de Estado e sua relação na inserção de políticas públicas sociais concebidas como possibilidade de se promover a solidariedade social. Tem por objetivo analisar as literaturas existentes que abordam a temática das Políticas Sociais, cuja reflexão está focada no poder de Estado e na organização política da população. O crivo do Estado deve ser exercido pelas políticas originadas da sociedade civil e que se formam tendo em vista o exercício da cidadania. Há que se reconhecer, portanto, que a política social não pode ser concebida e administrada privadamente, mas deve o Estado fazer o que é função dele. Falar de políticas sociais nos remete à democracia participativa que favorece o advento necessário de uma sociedade, em que através de suas diferentes esferas e organismos, maximizem a probabilidade de garantir seus direitos sociais. Com esta pesquisa verificou-se que a política social tem se apresentado com uma política fundamental para o bem-estar dos cidadãos, o que requer a ampliação da participação popular nas decisões e controle dessas políticas. PALAVRAS-CHAVES: Políticas públicas - Poder estatal - Sociedade civil – Organicidade.

ABSTRACT This study emphasizes the importance of having a design of the State and its relation in insertion of the public politics seen as a possibility of promoting the social solidarity. It has as a goal to analyze the works about the Social Politics, which reflection is focused in the power of the State and in the organization of the population. The mission of the state has to be made by the politics come from the civil society, which is formed to the exercise of citizenship. So, it’s important to know that the social politics can’t be seen and administered privately; the State has to do what is its mission. Talking about social politics refers to the participatory democracy that allows the necessary advent of a society to increase the probability of guarantying its socials rights. This search diagnosed that the social politics have been set as a fundamental politic to the wellness of the citizen and this fact requests a wide popular participation in decisions and control of this politics. Key-Word: Public politics; state power; civil society; organization.

1 Graduada em Pedagogia/FAFIC - Pós-Graduada em Planejamento Educacional; Pós Graduada em Didática no Ensino Superior/UNIVEN - Pedagoga da Superintendência Regional de Educação, da Secretaria Municipal de Educação de Nova Venécia e Professora da UNIVEN. 2 Graduado em Filosofia/ PUC do Paraná- Pós-Graduado em Planejamento Educacional; Pós- Graduado em Didática no Ensino Superior/UNIVEN, Diretor da EEEM Dom Daniel Comboni e Professor da UNIVEN.

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1 INTRODUÇÃO Esta pesquisa tem por objetivo verificar os impactos da relação Estado e Políticas Sociais e, ainda, a importância da dinâmica e a forma de relações e interlocução estabelecidas com a sociedade civil. O Estado exerce neste campo relevante papel, devendo servir de instrumentação, apoio, motivação, não sendo empecilho nos processos democráticos. O espaço participativo revela que a formação de um sujeito social, consciente e organizado, capaz de estabelecer suas prioridades, de defesa da cidadania, que saiba dizer não ao desrespeito aos direitos humanos, pode aperfeiçoar a qualidade do Estado. Sabe-se que para a manutenção da ordem vigente sempre coube ao Estado a função de regular e de definir o cidadão. Entretanto, sendo o Estado inevitável e imprescindível, torna-se necessário o seu controle democrático, o que se efetiva por meio da mobilização das forças coletivas, que é capaz de dizer que Estado lhe convém, em torno de um conjunto de valores que propiciem condições para o novo reordenamento. É preciso compreender e restaurar a relevância do serviço público, como também, da cidadania organizada. O Estado é uma instância a serviço da sociedade, cuja magnitude está em seu caráter público. Dessa forma, há que se mudar a forma de viver e compreender o Estado, bem como defender uma concepção política pautada na intervenção estatal que obviamente assegure a construção de um novo projeto nacional que expressa o bem comum de um povo, gerando oportunidades e fontes de energia, esperanças e sonhos. Para o desenvolvimento deste estudo buscou-se a fundamentação teórica em literaturas que abordam a concepção de Estado e sua indissociável relação com as políticas sociais nos marcos da sociedade capitalista. Das fontes consultadas, cita-se Bobbio(2001) que aborda Estado, governo e sociedade; Coutinho(1996; 2003) que versa a dualidade de poderes enfocando o marxismo e política e também Gramsci e a sociedade civil; Demo(2002) que coloca em discussão a superação da pobreza política e a autenticidade da política social; Antunes(2001) que trata da reestruturação produtiva e mudanças no mundo do trabalho numa ordem neoliberal; Anderson(2000) que faz um balanço do neoliberalismo. 2 RELAÇÃO DE PODER, ESTADO E POLÍTICAS SOCIAIS A relação entre Estado e políticas sociais tem sido objeto de consideração de diversos analistas. A questão a ser destacada confere especificidade no que se trata à concepção de Estado no campo da política social, explicitando o modo pelo qual os conceitos de Estado se articularam e evoluíram. Neste enfoque o que se pretende é trazer elementos que contribuam com a compreensão desta relação versando autores que se inscrevem na abordagem marxista sobre o tema, pois

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enquanto vivemos num mundo dominado pelo capitalismo e pelas classes sociais exploradas, o marxismo continua sendo a forma mais debatida de ação e interpretação social. A teoria marxista identifica a gênese da questão social, ou seja, as condições materiais e as relações sociais que produzem e reproduzem a desigualdade entre as classes, condicionada pelo acúmulo de capital. Para Bobbio (2001), entre as teorias sociológicas do Estado, duas mantiveram-se em campo, frequentemente em polêmica entre si: a teoria marxista e a teoria funcionalista. A diferença essencial entre as duas refere-se à colocação do Estado no sistema social considerado em seu conjunto.

Enquanto a teoria funcionalista, especialmente, na sua versão parsoniana, é denominada pelo tema hobbesiano da ordem, a marxista é dominada pelo tema da ruptura da ordem, da passagem de uma ordem a outra, concebida como passagem de uma forma de produção a outra através da explosão das contradições internas ao sistema, especialmente da contradição entre forças produtivas e relações de produção. Enquanto a primeira se preocupa essencialmente com o problema da conservação social, a segunda se preocupa com a mudança social (BOBBIO, 2001, p. 59).

Do ponto de vista marxista os homens fazem a sua própria história e são historicamente determinados pelas condições em que produzem suas vidas, ou seja, as condições não são escolhidas por eles.

A produção e a reprodução das condições da existência se realizam, portanto, através do trabalho (relação com a Natureza), da divisão social do trabalho (intercâmbio e cooperação), da procriação (sexualidade e instituição de família) e do modo de apropriação da Natureza (a propriedade) (CHAUÍ, 2002, p.413).

Este conjunto de condições forma, em cada época, a sociedade e o sistema de produção que a regulam. Com as diferentes formas de propriedade, as diferentes formas de relação entre meios de produção e forças produtivas, as diferentes formas de divisão social do trabalho decorrentes das formas de propriedade e das relações entre os meios de produção e as forças produtivas, percebe-se a seqüência do processo histórico e as diferentes modalidades da sociedade.

As relações sociais de produção não são responsáveis apenas pela gênese da sociedade, mas também pela do Estado, que Marx designa como superestrutura jurídica e política, correspondente à estrutura econômica da sociedade (CHAUÍ, 2002, p.415).

Marx mostra que o Estado tem sua gênese nas relações sociais concretas e não pode assim ser compreendido como uma entidade em si. Para resolver os conflitos, as contradições dos proprietários com os não-proprietários, criam o Estado como poder separado da sociedade, portador do direito e das leis, dotado de força para usar a violência na repressão de tudo quanto pareça perigoso à estrutura econômica existente.

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Uma contribuição importante de Gramsci à teoria do pensamento marxista consiste na revisão do conceito de Estado. Se Marx o considerava momento exclusivo da coação e da violência, Gramsci propõe sua subdivisão em duas esferas: a sociedade política, na qual se concentra o poder repressivo da classe dirigente (governo, tribunais, exército, polícia) e a sociedade civil, constituída pelas associações ditas privadas (igreja, escolas, sindicatos, clubes, meios de comunicação de massa), na qual essa classe busca obter o consentimento dos governados, através da difusão de uma ideologia unificadora, destinada a funcionar como cimento da formação social (FREITAG, 1986, p.37).

Desta forma, a sociedade civil adquire um novo sentido. Enquanto Hegel confundia o conceito com o de Estado caracterizando nele ao mesmo tempo a dominação e hegemonia burguesa, Marx o situa na infra-estrutura como expressão da própria relação de produção capitalista. Gramsci constrói uma originalíssima noção de sociedade civil, que aparece como eixo articulador de uma nova teoria política marxista. Não toma o marxismo como doutrina abstrata, mas como método de análise concreta do real em suas diferentes determinações. Debruça-se sobre a realidade enquanto totalidade, desvenda suas contradições e reconhece que ela é constituída por mediações, processos e estruturas. Freitag (1986) remete à reflexão de que para Gramsci, a sociedade civil expressa o momento da persuasão e do consenso que, conjuntamente com o momento da repressão e da violência (sociedade política), asseguram a manutenção da estrutura de poder (Estado). Na sociedade civil a dominação se expressa sob a forma de hegemonia, na sociedade política sob a forma de ditadura. No contexto da luta contra a ditadura, sociedade civil tornou-se sinônimo de tudo aquilo que se contrapunha ao Estado ditatorial, o que era facilitado pelo fato de “civil” significar o contrário de militar, no Brasil. Resultou em problemática do conceito, uma vez que em Gramsci sociedade civil/Estado forma uma unidade na diversidade. Assim, ao contrário do que diz Gramsci, tudo o que provinha da ‘sociedade civil’ era visto de modo positivo, enquanto o que dizia respeito ao Estado aparecia marcado com sinal fortemente negativo. Essa situação complexificou-se decisivamente, quando a partir dos anos 1980, a ideologia neoliberal em ascensão apropriou-se dessa dicotomia para desmontar e fragilizar de vez tudo o que provém do Estado e para fazer a apologia acrítica de uma sociedade civil politizada, ou seja, convertida num mítico ‘terceiro setor’ falsamente situado para além do Estado e do mercado. Como afirma Coutinho (1996), em Marx e Engels, sociedade civil designa sempre o conjunto das relações econômicas capitalistas, o que eles também chamam de ‘base material’ ou de infra-estrutura. Para promover o resgate do verdadeiro conceito gramsciano de conceito ‘sociedade civil’, Coutinho (1996) afirma que, ao contrário, em Gramsci, o termo sociedade civil designa uma esfera da superestrutura.

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A distinção dessas esferas se dá pela função que exercem na organização da vida social e na articulação e reprodução das relações de poder. Ao lado da questão da origem do Estado, também o problema do fim do Estado é um tema recorrente. Para Bobbio (2001) é preciso antes de tudo distinguir o problema do fim do Estado do problema da crise do Estado. Afirma ser a crise do Estado uma crise de determinado tipo de Estado, não o fim do Estado. Muitos polemizaram a teoria marxista do Estado, porque mantiveram-se presos à visão restrita que dominou nos escritos de Marx e Engels entre 1848-1850, e muitos jamais se libertaram completamente, apesar de apontarem a necessidade de ampliar esta teoria. Foi com o italiano Antonio Gramsci que a ‘ampliação’ recebeu uma formulação mais sistemática. Para Coutinho, tradutor de Gramsci nos anos 1960, é a partir da crescente socialização da política verificada nas sociedades contemporâneas que Gramsci elabora sua teoria marxista ampliada de Estado, quando a esfera política ‘restrita’ cede progressivamente lugar a uma nova esfera pública ‘ampliada’, caracterizada pelo crescente protagonismo de amplas organizações de massa, ou seja, o poder estatal nesse novo contexto, não se expressa apenas através de seus aparelhos repressivos e coercitivos, mas também, através de uma nova esfera do ser social que é a sociedade civil. A originalidade da ampliação do conceito marxista de Estado de Gramsci aparece na definição do que ele entende por ‘sociedade civil’.

Trata-se de uma ampliação dialética: os novos elementos aduzidos por Gramsci não eliminam o núcleo fundamental da teoria “restrita” de Marx, Engels e Lênin (ou seja, o caráter de classe e o momento repressivo de todo poder de Estado), mas o repõem e transfiguram ao desenvolvê-lo através do acréscimo de novas determinações (COUTINHO, 1996, p. 53).

Este pensamento dialético funda-se na perspectiva da totalidade e da historicidade. Em seu conceito de Estado, Gramsci distingue duas esferas no interior da superestrutura que ele chama de ‘sociedade civil’ e ‘sociedade política’. Designa a sociedade política como o conjunto de aparelhos através dos quais a classe dominante detém e exerce o monopólio legal, trata-se dos aparelhos coercitivos do Estado, ligados às forças armadas e policiais e à imposição das leis. É exatamente o conhecimento que se venha a ter da natureza do Estado que subsidiará o tipo de leitura a ser feita da política social, da política pública, de responsabilidade do Estado, mas não pensada somente por seus organismos. É importante ressaltar a diferença entre Estado e governo. Para esta compreensão Höfling (2001) enfatiza que:

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[...] é possível considerar o Estado como o conjunto de instituições permanentes - como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não formam um bloco monolítico necessariamente – que possibilitam a ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um todo, configurando-se a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um determinado período.

Sendo o campo econômico que constitui-se no parâmetro maior de orientação das políticas públicas, em torno do qual se articula o social, é importante que se remeta ao sistema econômico, social e político denominado capitalismo. Com o desenvolvimento e fortalecimento do capitalismo, as relações de exploração se intensificaram, o processo expropria o homem dos meios de produção, segrega-o, destrói sua identidade, além de aprofundar as diferenças de classe, criando espaços desiguais e contraditórios, mas coerentes com as suas leis máximas. A sociedade, nas últimas décadas, presenciou fortes transformações na produção econômica onde a mudança de paradigma é evidente, com a substituição progressiva na ordem capitalista do modelo Taylor e Ford pelo de acumulação flexível. A implantação das idéias neoliberais e a reestruturação produtiva do capital da era da acumulação flexível apresentam conseqüências como o desemprego, precarização do trabalho, políticas de desregulação financeira, relação predatória homem-natureza e a abertura comercial que fragilizaram os Estados e criaram uma camisa de força que dificulta uma mudança de rumo. O neoliberalismo é uma doutrina político-econômica, veemente contra o Estado intervencionista, caracterizado com seus tortuosos caminhos de dependência internacional do grande capital, dita o ideário e os programas a serem implementados pelos países capitalistas, contemplando a reestruturação produtiva, privatização acelerada, enxugamento e desmontagem do Estado, das políticas públicas, da racionalização de recursos, o que leva às regressões sociais, arrocho salarial e do fomento da miséria de amplos setores sociais, e da intranqüilidade social junto aos organismos mundiais de hegemonia do capital. É regressivo em termos da institucionalização de direitos, fortalecendo muito mais como uma contra-reforma social, já que em termos de crescimento e eliminação da pobreza, as reformas neoliberais não conseguiram quase nada, afirma Edwards, citado por Therborn (2001), que acrescenta que o discurso modernizante do neoliberalismo é um discurso de exclusão implícita e explícita, onde não se apresentam alternativas para todos aqueles e aquelas que vão ficando definitivamente excluídos. Neste cenário, os organismos internacionais de desenvolvimento, como o Banco Mundial (BIRD), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ditam as diretrizes gerais que orientam e balizam as Reformas do Estado, reforçando as características de Estado mínimo e o estreitamento do Estado. As estratégias estabelecidas estão subjacentes a quatro grandes objetivos definidos como centrais nas orientações internacionais, como relata Souza (2002, p. 90) “a) melhoria da eficácia da

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atividade administrativa; b) melhoria na qualidade na prestação dos serviços públicos, c) diminuição das despesas públicas, d) aumento da produtividade na Administração do Estado. Os países periféricos, ao adotarem essa orientação política, utilizaram os mesmos padrões e critérios de produtividade e rentabilidade dos países ricos, sintonizando-se com a nova lógica produtiva e de mercado globalizado sob a ameaça de perderem o bonde da história. Com a nova organização, o Estado perde seu caráter público e cada vez mais submetido aos interesses da classe dominante, que detém sua posse e sua hegemonia. As regras provenientes das políticas neoliberais promovem “ajuste econômico”, privatizações e consequentemente a morte do Estado. É no interior desse discurso que se fortalece a dicotomia entre “público” e “privado”, caracterizando-se por público tudo o que é ineficiente, aberto ao desperdício e à corrupção, e por privado a esfera da eficiência e da qualidade. Referindo-se à esfera da influência do neoliberalismo Perry (2000, p.22) analisa:

Tudo que podemos dizer é que este é um movimento, em escala verdadeiramente mundial, como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição estrutural e sua extensão internacional.

No plano de balanço, este autor afirma que no neoliberalismo os sucessos ideológicos e políticos são visivelmente maiores que os êxitos econômicos. Portanto, o fator mais poderoso do neoliberalismo continua sendo sua dimensão político-ideológica. O fracasso das medidas neoliberais é explicado com o argumento de que foi o Estado quem paralisou a atividade econômica. O neoliberalismo não assume a paternidade dos desastres gerados por suas próprias políticas.

Creio que aqui se localiza a chave do problema: o impacto e a força que o discurso neoliberal tem tido na cabeça das pessoas provêm da nossa própria incapacidade de mudar a forma de viver e compreender o Estado (SALAMA, 2000, p.142)

Dessa forma, há que se defender uma concepção política nos marcos da qual a intervenção estatal deve efetivamente se basear na solidariedade social, e não somente na eficácia econômica. 3 SOCIEDADE CIVIL: A CIDADANIA E O BEM-ESTAR POSSÍVEL Demo (1987) nos adverte que em vários momentos do dia estamos ora no Estado, ora na sociedade civil. E acredita que entre o Estado e a sociedade civil deve haver uma dialética democrática e que este tipo de distância é fundamental, não podendo ser confundida a

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sociedade civil com o Estado e vice-versa, porque desaparece então esse ambiente do confronto democrático das alternativas. Fica difícil considerar um Estado que seja de todo bom ou de todo condenável. O que não pode se perder de vista é que a sociedade civil precisa controlar o Estado e de que o Estado tem a tendência de escapar à sociedade civil.

A democratização passa pela possibilidade de intervenção da sociedade civil, mas intervenção no poder do Estado e não pela intervenção do não-Estado, e não, pela transferência de poder desse Estado (NASCIMENTO, 1987, p.66).

O exercício do Estado deve ser pautado nas políticas originadas da sociedade civil e que se formam com a prática da cidadania que se postam frente ao Estado não o considerando um Estado tutelar, doador, assistencialista, compensatório, mas controlando o Estado, tentando colocar no Estado o que convém aos cidadãos. É problemática a desorganização da sociedade civil que Demo (1987) chama de pobreza política e alerta para a necessidade de sua superação histórica, para que ela seja forte e organizada, capaz de reivindicar e controlar o Estado. Gramsci alude também a preocupação com a cultura política, necessária à crítica da ordem das coisas. Para ele, crítica significa cultura e cultura não significa a simples aquisição de conhecimentos, mas, sim, tomar partido, posicionar-se diante da história, buscar a liberdade. E com a “conquista de uma consciência superior” cada qual consegue compreender seu valor histórico, sua própria função de vida, seus próprios direitos e deveres.

Nesta ação, não se trata apenas de conquistar o poder, de apoderar-se do Estado, de administrá-lo técnica e pragmaticamente melhor que a burguesia, mas de romper com a concepção de poder e de Estado capitalista, de superar a visão de política como esfera separada, estranha, acima do sujeito e das relações sociais (SEMERARO).

No pensamento gramsciano nada há de indiscutível e de inexorável no mundo que não possa ser enfrentado pela ação conjunta dos homens, mesmo expostos ao imponderável e às contradições. Sendo o Estado inevitável e necessário, o que importa é o seu controle democrático, o que obviamente se efetiva por meio do cidadão organizado, que é capaz de dizer que Estado lhe convém, que é capaz de reagir, quando o Estado denega um direito fundamental. Para Demo (1987) não podemos ter um Estado melhor do que a sociedade civil que está por trás dele, o que isso significa para nós um dos maiores desafios históricos em termos de qualidade da sociedade, e, consequentemente, de qualidade do Estado. Não poderíamos imaginar um Estado diferente do que somos historicamente. Ao tratar da especificidade da política social, não há como negar que é de grande valor e que é possível a sua concretude. Até porque não há como excluir do contexto histórico a desigualdade social, mas pode-se alcançar a sua restrição. O Estado detém papel relevante na

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política social, considerando uma instância de serviço público e um lugar importante de equalização de oportunidades. Um Estado democrático, pautado por valores humanísticos, não pode se eximir desta responsabilidade. É um dever do Estado dar forma e cor nesse desenho estratégico de aprimorar os critérios de eqüidade do atendimento às famílias e grupos vulneráveis da população. Nesse contexto, Demo (2002) enfatiza a figura do Estado como instância a serviço da sociedade, cuja magnitude está em seu caráter público, mantido por todos com o trabalho e a produção. Mesmo deixando, na prática, de prestar serviços e de ser público, não há como negar sua relevância. Defende, ainda, que a sua qualidade está na cidadania organizada que o sustenta. 4 POLÍTICAS SOCIAIS: PRESSUPOSTOS Para explicitar a sua natureza Demo (2002, p. 14) registra que “política social pode ser contextualizada, de partida, do ponto de vista do Estado, como proposta planejada de enfrentamento das desigualdades sociais”. Afinal, reduzir as disparidades sociais, protegendo e promovendo os direitos de cidadania são deveres constitucionais do Estado. Estas políticas são uma resposta à dívida social acumulada desde o início da história do País e que foi intensificado a partir dos anos de globalização neoliberal. E ainda, conforme Draibe (1987) política social é concebida com o objetivo de compensar a desigualdade social que é instaurada pela dinâmica do mercado e, portanto, também pela política econômica. Ressalta que a eficácia das políticas sociais funda-se numa análise do funcionamento do aparelho social do Estado e numa proposta de instauração de um triplo processo de desburocratização, descentralização e participação da sociedade. Neste mesmo pensamento, Höfling (2001) enfatiza que políticas sociais se referem a ações que determinam o padrão de proteção social implementado pelo Estado, voltadas, em princípio para a redistribuição dos benefícios sociais visando à diminuição das desigualdades estruturais produzidas pelo setor econômico. Portanto, estabelecer políticas sociais pressupõe ter percepção histórico-estrutural da desigualdade social, de modo que se possa enfrentá-la de forma planejada, convicto de que é possível intervir no processo histórico, num processo de conquista por parte dos interessados. Na atual conjuntura, a política social é absolutamente periférica, assistencialista, localizada e constitui uma regressão em termos de direitos sociais universais, postula Sader (1999). Neste processo de intervenção há que se superar a herança marcada por burocracia sofisticada e por volumes significativos de recurso, porém, produzindo políticas socialmente ineficazes, descontínuas e mal compostas no todo, inviabilizando qualquer definição de uma política social geral para o país.

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Garcia (1987) faz um alerta de que esta herança tem levado, junto aos segmentos organizados da sociedade, uma sensação de que os serviços públicos não prestam, que não funcionam bem e, portanto, deveriam ser substituídos por outros que funcionam. Tem o receio de que talvez não tenhamos forças suficientes para uma defesa dos serviços sociais públicos, à medida que existe, já embutida toda uma lógica de ineficiência e da impossibilidade de uma melhoria desses serviços e que estes se concretizem via privatização. Daí a importância de ter a assistência compreendida como direito à sobrevivência, muito além do assistencialismo que cultiva o problema social sob a aparência da ajuda, ou seja, das políticas sociais que acabam sendo “remendo em roupas velhas”. Demo (2002, p.31) argumenta que “[...] assim, enquanto o assistencialismo é estratégia de manutenção das desigualdades sociais, a assistência corresponde a um direito humano”. O que se defende é que mais do que ofertar serviços sociais, as ações de políticas públicas devem se voltar para a garantia de direitos sociais, já que a ordem democrática preconiza o direito fundamental de todos os cidadãos, o direito a ter direitos. Na feição brasileira, o direito à assistência incorpora-se aos direitos sociais prescritos na Constituição Federal, cabendo ao Estado a obrigação de fazer acontecer esse direito. O direito à assistência é estrutural a grupos populacionais que não se auto-sustentam e é conjuntural nos casos de emergências graves que incidem sobre pessoas ou grupos. A construção de um projeto nacional pautado na inclusão é uma responsabilidade do Estado e uma construção que efetivamente tenha a participação da sociedade. Logo, um planejamento e execução de políticas convenientes devem pactuar com estratégias emancipatórias e com metodologias produtivas e participativas.

Política social não é ajuda, piedade ou voluntariado. Mas o processo social, por meio do qual o necessitado gesta consciência política de sua necessidade e, em conseqüência, emerge como sujeito de seu próprio destino, aparecendo como condição essencial de enfrentamento da desigualdade sua própria atuação organizada. Política social emancipatória é aquela que se funda na cidadania organizada dos interessados (DEMO, 2002, p.25-26).

Ananias (2007) defende que é necessário compreender as políticas sociais na perspectiva evolutiva dos direitos de cidadania, para manter e consolidar a situação de justiça social. Ainda que numa sociedade haja justa distribuição de renda, assegure condições de igualdade e garanta os direitos básicos, haverá sempre cidadãos, famílias ou comunidades fragilizados que irão depender de apoio maior do Estado.

[...] as políticas sociais são permanentes. A erradicação da desigualdade não pode desconsiderar as singularidades dos diferentes grupos sociais no processo de inclusão e emancipação. [...] Os países mais avançados do ponto de vista social e econômico não eliminaram suas políticas sociais. Elas permaneceram, acompanhando as demandas da sociedade, no sentido de promover a igualdade social. (ANANIAS, 2007).

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para assegurar uma política social e com qualidade é imprescindível a defesa do Estado na esfera do direito, como serviço público necessário, resolutivo e equalizador. Entretanto, não será legitimado sem a consciência desse direito, sem a plena participação da sociedade civil retratada numa luta permanente. A lentidão dos avanços em matéria de política social é um indicativo de uma tímida mobilização social. Sua viabilidade requer conhecimento do direito, organicidade e o exercício da participação política na esfera das decisões, respeitando a dicotomia entre Estado e sociedade civil, mantendo uma relação dialética e democrática. O Estado se fortalecerá ao garantir as políticas públicas, mediante um tratamento com respeito e equidade, o que convém chamar de Estado cidadão e de todos. 6 REFERÊNCIAS 1. ANANIAS, Patrus. Políticas permanentes. www.mds.gov.br/notícias/artigo- políticas

permanentes-ministro patrus-ananias. 02 jul. 2007. 2. ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.; GENTILLI, P. (orgs).

Pós- neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

2 ANTUNES, Ricardo. Reestruturação produtiva e mudanças no mundo do trabalho numa

ordem neoliberal. In: DOURADO, L. F; PARO, V. H. (orgs). Políticas públicas & educação básica, São Paulo: Xamã, 2001.

3 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política.

Trad. Marco Aurélio Nogueira. 9.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. 4 CHAUI, Marilena. Convite à Filosofia. 12. ed. São Paulo: Ática, 2002. 5 COUTINHO, Carlos Nelson. Marxismo e política: a dualidade de poderes e outros

ensaios. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1996. 6 ______. Gramsci e a sociedade civil. http://www.gramsci.org/arquiv 93.htm. 07 set.

2003. 7 DEMO, Pedro. A política educacional no contexto das políticas públicas no Brasil. In:

Políticas públicas e educação. INEP: Fundação Carlos Chagas. UNICAMP. Campinas, 1987.

8 ______. Política Social, educação e cidadania. 5. ed. São Paulo: Papirus, 2002.

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9 DRAIBE, Sonia Miriam. O sistema brasileiro de proteção social: características e desafios na democratização. In: Políticas públicas e educação- INEP: Fundação Carlos Chagas/UNICAMP. Campinas, 1987.

10 FREITAG, Bárbara. Escola, Estado e Sociedade. 6. ed. São Paulo: Moraes, 1986. 11 GARCIA, Walter Estheves. Comentários. In: Políticas públicas e educação – INEP:

Fundação Carlos Chagas/UNICAMP. Campinas, 1987. 12 HÖFLING, Eloisa de Mattos. Estado e políticas (públicas) sociais.

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