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Universidade de Brasília – UnB Faculdade de Direito GABRIEL BOAVISTA LAENDER O papel do Estado na construção da economia e a possibilidade do direito como imaginação institucional Brasília Maio de 2014

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Universidade de Brasília – UnB

Faculdade de Direito

GABRIEL BOAVISTA LAENDER

O papel do Estado na construção da economia e a possibilidade do direito como

imaginação institucional

Brasília

Maio de 2014

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA FACULDADE DE DIREITO

O papel do Estado na construção da economia e a possibilidade do direito como imaginação institucional

Autor: Gabriel Boavista Laender Orientador: Prof. Dr. Marcus Faro de Castro

Tese a ser apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, área de concentração “Direito, Estado e Constituição”.

Brasília, 19 de maio de 2014.

GABRIEL BOAVISTA LAENDER

O papel do Estado na construção da economia e a possibilidade do direito como imaginação institucional

Tese a ser apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, área de concentração “Direito, Estado e Constituição”.

Aprovada em: 19 de maio de 2014.

BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Marcus Faro de Castro (Presidente – FD/UnB)

______________________________________ Prof. Dr. Paulo José Leite Farias (Membro externo - IDP)

______________________________________ Prof.ª Dr.ª Patricia Borba Vilar Guimaraes (Membro externo - UFRN) ______________________________________ Prof. Dr. Márcio Nunes Iorio Aranha Oliveira (Membro interno – FD/UnB) ______________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana de Oliveira Frazão (Membro interno – FD/UnB)

Aos amigos, aos amores, aos

sabores e dissabores, aos risos e

prantos, aos silêncios e cantos,

aos erros e ao aprendizado, a toda

essa vida de estudante,

maravilhosa, que a Universidade de

Brasília me proporcionou.

A minha mãe Tereza Christina, pela

lição primeira de sonhar com os

pés no chão.

À Daniele, por todo o resto, por

todo o encanto, por estar ao meu

lado, por tudo o que importa: o

amor.

Agradecimentos

Não é pouca minha dívida, e são inúmeros os credores de

minha gratidão. Passados dezesseis anos desde que ingressei no

curso de bacharelado em Direito da Universidade de Brasília, me

vejo aqui, em momento para mim improvável, de defesa de uma tese

de doutorado. Fosse essa uma jornada solitária, eu não teria

chegado até este ponto culminante de minha vida acadêmica. As

ideias que estão aqui são emprestadas – roubadas, na verdade –

das muitas almas que acompanharam meu caminho. Minhas energias

sozinhas não me carregariam até aqui. Como estudante, sinto-me

não um indíviduo, mas uma construção coletiva.

Como ocorreu com muitos antes de mim, a tentativa de

enumerar a quem sou grato é inglória. Não são poucos os

agradecimentos de trabalhos como este meu, em que os autores se

escusam pelas inevitáveis ausências. Confesso que me conforta

saber, ao menos, que nessa falha encontro a boa companhia dos

que me antecederam.

Começo meus agradecimentos pela primeira escola, a

família. Minha mãe, Tereza Christina. Meu pai, Laerte. Meu

segundo pai, Luiz Otávio. Meus irmãos, Pedro e João. Minha avó

Therezinha. Minha avó Eurydice. Minha avó emprestada, Nely.

Minha tia emprestada, Maria Cláudia. Meus primos Alexandre,

Daniel e Guilherme. Meu saudoso tio Marcos. Meus tios Alberto,

Roberto, Juliana e Teresa Helena. Meus muitos outros primos de

muitos graus e tios-avôs. Meus primos e tios emprestados. Meus

sogros, Maria Lígia e Vicente. Minha irmã-cunhada, Maria Lúcia.

Meu amor, Daniele. Obrigado por me acolher, por me fazer

crescer, por me dar uma infância, por me aguentar adolescente,

por me acompanhar adulto.

A outra escola que tive foi extensão da família, os

amigos que me acompanham e aguentam desde a infância e a

adolescência, e que buscaram e buscam fazer de mim uma pessoa

melhor – com limitado sucesso, é preciso reconhecer, apesar do

generoso esforço. Da Octogonal 7: Guilherme, Santiago, Dedé,

Tiago, Gueta, Fred, Marina, Tani, Iuri e todos que quartas e

sábados praticavam o ritual sagrado do basquete. Aos amigos que

a vida nos fez desencontrar, mas que muito construíram comigo:

Bruno Learth, Rafael, Maria Carolina, Natasha, José Bernardo,

Vladimir. A Szilvia, pelo primeiro amor, e a Mariánn, Adél,

Gábor e Marta. Aos amigos eternos, Vitor Lima, Gustavo Kaufmann,

Vinicius Goulart, Fernanda Quirino, Ricardo Pierre, Gierck

Medeiros, Artur Coimbra, Pedro Virgolino – vocês têm um lugar

especial no meu coração. Obrigado por me darem energia, por me

desafiarem, por estarem comigo.

Tive também a graça do estímulo imenso que foi conviver

com colegas brilhantes na graduação e pós-graduação da UnB.

Agradeço a todos os colegas pelo debate, pelo inconformismo,

pelas contradições e pela inspiração. Faço especial homenagem

aos colegas do Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações.

Vai aqui também o agradecimento aos colegas de trabalho

da Levy e Salomão, da Agência Nacional de Energia Elétrica, da

Agência Nacional de Telecomunicações e da Procuradoria-Geral do

Estado do Espírito Santo. Agradeço especialmente a experiência

inacreditável que foi trabalhar na Secretaria de Assuntos

Estratégicos – José Romão, Marcos Toscano, Pedro Lucas, Gustavo,

Ricardo, Daniel Vargas, ter trabalhado com vocês mudou tudo.

Agradeço ainda ao grupo fantástico que trabalhou no Plano

Nacional de Banda Larga comigo, quando eu estava na Casa Civil:

Cezar Alvarez, Elisa, José Gontijo, Nelson, Paulo Kapp, Ronald.

Obrigado por compartilharem sua sabedoria e serem generosos com

as minhas falhas.

Por fim, aos professores. Aos docentes de primeiro e

segundo grau (ainda se chamava assim), que me deram a base para

alçar voos mais longos. Aos docentes da UnB que mostraram um

mundo novo muito além do dogmatismo do vestibular. Ao saudoso

Carlos Eduardo Vieira de Carvalho, pela generosidade, pelo

exemplo, por abrir os caminhos que possibilitaram que eu

pesquisasse os temas que vieram a desaguar nesta tese. A Márcio

Nunes Iório Aranha de Oliveira, que não apenas me orientou na

graduação e no mestrado, mas fez de mim um humanista. E ao meu

orientador, Marcus Faro de Castro, que tornou este trabalho uma

realidade.

Obrigado a todos vocês.

“Tudo no mundo começou com um sim.

Uma molécula disse sim a outra

molécula e nasceu a vida. Mas

antes da pré-história havia a pré-

história da pré-história e havia o

nunca e havia o sim. Sempre houve.

Não sei o que, mas sei que o

universo jamais começou.”

(A hora da estrela. Clarice

Linspector)

Resumo

A atuação do direito na economia costuma se pautar pelo debate sobre se deve a política econômica propiciar a defesa ou a limitação da influência do Estado na economia. Mas na medida em que se considere que não há economia independente do Estado, o debate sobre a presença do Estado na economia necessita de reformulação. Este trabalho busca explorar como a reformulação desse debate impacta a forma como pensamos a atuação do direito na política econômica, para admitir a influência de manifestações jurídicas de cunho estatal na formação de mercados e de outras instituições econômicas. Inicialmente, o capítulo 1 busca uma genealogia do atual paradigma de atuação do direito na economia, com base na divisão proposta por Duncan Kennedy acerca de três modos globalizados de pensamento jurídico: o Clássico, o Social e o Contemporâneo. Caracterizamos o paradigma por duas pré-concepções centrais: a de que o "mercado" seria um fenômeno social espontâneo, e a de que relações privadas que compõem a economia se caracterizariam pela escolha racional individual. O capítulo 2 segue para criticar o fetichismo institucional do Pensamento Jurídico Contemporâneo, com base na proposição de Roberto Mangabeira Unger de que o direito deve servir para a construção das múltiplas possibilidades institucionais abertas pelas sociedades democráticas. Problematiza, em seguida, as duas pré-concepções do paradigma, que reputamos correspondentes às visões de mundo da Economia Clássica e da Economia Neoclássica. O trabalho faz referência à análise de Ronald Coase que evidencia o papel de instituições intramercados e extramercados na economia. Após, a tese aborda as ideias de autores ligados à Economia Comportamental para questionar a ideia de que relações econômicas dentro de mercados são necessariamente expressão de escolhas individuais racionais. Tais contrapontos às duas ideias pressupostas pela visão paradigmática servem para explorar as possibilidades de uma compreensão alternativa das relações entre direito e economia. O capítulo 2 então se encerra propondo que o direito serve de suporte às instituições econômicas intra e extramercados, ao que faz correspondência com os termos propostos pela Análise Jurídica da Política Econômica de Marcus Faro de Castro. O capítulo 3 segue com dois estudos de casos que ilustram a omissão da visão paradigmática quanto ao papel de atividades e instituições extramercado na alocação de recursos, a interdependência entre instituições extramercado e instituições de mercado na estruturação das relações econômicas, e ao importante papel de instituições jurídicas na formação e

modificação das instituições econômicas. Os casos estudados são a quebra do monopólio da AT&T (American Telephone and Telegraph Corporation) na telefonia de longa distância nos EUA e a criação e implementação da ARPANET, a rede de computadores que daria ensejo à Internet. Ao final, o trabalho conclui pela necessidade de dar nova dimensão ao papel do direito na economia, enfatizando a possibilidade desse servir de instrumento de imaginação institucional para viabilizar a inserção econômica de grupos de interesses até então alijados socialmente e excluídos do ponto de vista da fruição de direitos fundamentais.

Palavras-chaves: Direito e Economia. Direito Econômico. Direito Administrativo. Mercado. Instituições econômicas. Imaginação institucional.

Abstract

The role law plays in the economy is usually purviewed within the boundaries of the debate on whether economic policy should or should not provide for a greater influence of the State in the economy. But provided we consider that there is no economy independent of the State, it follows that the debate regarding the presence of the State in the economy requires reformulation. This thesis seeks to explore how such a reformulation affects the way we think about law and economic policy in order to consider the influence of legal manifestations of the State in the formation of markets and other economic institutions. At first, chapter one seeks a genealogy of the current paradigm regarding law’s operation in the economy based on Duncan Kennedy’s division of three modes of legal thought: Classical, Social and Contemporary. We characterize the paradigm by two central pre-conceptions: that the “market” is an espontaneous social phenomenom, and that the private relations that comprise the economy are characterized by individual rational choice. Chapter two follows to criticize Comtemporary Legal Thought´s institutional fetichism, based on the proposition made by Roberto Mangabeira Unger that law should uphold the creation of multiple institutional possibilities opened by democratic societies. This work then puts into question the two pre-conceptions of the paradigm, which we regard as correspondent to the world views of Classical and Neoclassical Economics. The thesis ensues by referencing the analysis by Ronald Coase that brings into light the role of intramarket and extramarket institutions in the economy. Later, this work explores ideas of authors related to Behavioral Economics so to question the idea that economic relations within markets are necessarily the outcome of rational individual choices. Such counterarguments to those two ideas assumed by the paradigmatic purview serve to explore the possibilities of an alternative understanding of the relations between law and the economy. Chapter two then wraps up by proposing that law acts as support of intra and extramarket economic institutions, thus agreeing with the general propositions of Marcus Faro de Castro’s Legal Analysis of Economic Policy. Chapter three ensues with two case studies that illustrate the paradigmatic purview’s omission regarding the role of extramarket activities and institutions in resource allocation, the interdependency of extramarket and intramarket institutions in structuring economic relations, and the important role of legal institutions in the formation and

transformation of economic institutions. Cases studied are the divestiture of AT&T (American Telephone and Telegraph Corporation) and the end of its monopoly on long distance telephony in the USA, and the creation and deployment of ARPANET, the computer network that preceded the Internet. At the end, this work concludes towards the necessity of a new dimension to law’s role in the economy, which emphasizes the possibility of law serving as instrument to institutional imagination in order to accomplish economic inclusion of interest groups that are hitherto socially hindered and excluded from the point of view of the fruition of basic rights. Keywords: Law and Economics. Economic Law. Administrative Law. Market. Economic Institutions. Institutional Imagination.

Lista de ilustrações

Figura 1 - Elementos conceituais de "instituição", segundo Avner

Greif (2005) .............................................. 27  

Figura 2 - Períodos da globalização do pensamento jurídico

segundo Duncan Kennedy .................................... 41  

Figura 3 - Principais narrativas brasileiras sobre direito e

economia no Pensamento Jurídico Contemporâneo ............. 91  

Figura 4 - Atuação do direito na economia segundo o Direito

Administrativo majoritário ............................... 101  

Figura 5 - A atividade econômica segundo Eros Grau ........... 108  

Figura 6 - Instituições econômicas identificadas em Coase (1960)

......................................................... 197  

Figura 7 - Exemplo visual do efeito do contexto na

acessibilidade ........................................... 216  

Figura 8 - Instituições econômicas segundo Marcus Faro de Castro

......................................................... 247  

Figura 9 - Estrutura institucional da telefonia de longa

distância em 1960 nos EUA ................................ 254  

Figura 10 - Estrutura institucional da telefonia de longa

distância em 1980 nos EUA ................................ 265  

Figura 11 - Estrutura institucional da telefonia de longa

distância em 1984 nos EUA ................................ 271  

Figura 12 - Redes em estrela (centralizadas e descentralizadas)

vs. redes distribuídas ................................... 282  

Figura 13 - Estrutura institucional envolvida na criação da

ARPANET .................................................. 288  

Lista de tabelas

Tabela 1 - Modos de pensamento jurídico e sua contribuição para

a visão paradigmática sobre direito e economia ........... 147  

Tabela 2 - Utilidade marginal em razão da riqueza (exemplo

hipotético) .............................................. 205  

Tabela 3 - Padrão quaternário da teoria da perspectiva ....... 208  

Tabela 4 - Dois sistemas cognitivos .......................... 213  

Sumário

Agradecimentos ................................................. 5  

Resumo ......................................................... 9  

Abstract ...................................................... 11  

Introdução .................................................... 19  

Capítulo 1 – O direito como interferência externa à economia:

genealogia e análise de um paradigma .......................... 35  

1.1. As três globalizações do pensamento jurídico segundo

Duncan Kennedy e as narrativas jurídicas brasileiras sobre

direito e economia .......................................... 35  

1.2. O Pensamento Jurídico Clássico (1850-1914) e a ideia de

racionalidade como delimitadora da divisão entre direito

público e direito privado ................................... 43  

1.3. O Pensamento Jurídico Social (1900-1968) e estruturação do

Direito Administrativo e do Direito Econômico brasileiros ... 68  

1.4. O Pensamento Jurídico Contemporâneo (1945-2000) e sua

apropriação pelo Direito brasileiro ......................... 87  

1.4.1. Direito Administrativo e Direito Econômico majoritários

............................................................ 91  

1.4.2. Constituição Dirigente .............................. 111  

1.4.3. Estado Regulador .................................... 118  

1.4.4. Análise Econômica do Direito ........................ 137  

1.5. As contribuições dos três modos de pensamento na formação

e consolidação da visão paradigmática sobre direito e economia

........................................................... 147  

Capítulo 2 - A construção jurídica da economia: releituras do

papel do direito ............................................. 153  

2.1. Fetichismo institucional e a oportunidade perdida da

imaginação de instituições: a crítica de Mangabeira Unger ao

Pensamento Jurídico Contemporâneo .......................... 158  

2.2. A fundamentação da Economia clássica e da Economia

neoclássica acerca dos pressupostos adotados pela visão

paradigmática sobre direito e economia ..................... 165  

2.3. A refutação da ideia de que mercados surgem

espontaneamente das relações privadas, segundo o

neoinstitucionalismo de Ronald Coase ....................... 181  

2.4. A refutação da ideia de que relações privadas se

caracterizam pela escolha racional individual, segundo a

Economia Comportamental (Behavioral Economics) ............ 200  

2.4.1. Teoria da perspectiva (Prospect theory): uma outra visão

sobre a racionalidade na tomada de decisões ................ 201  

2.4.2. O efeito dotação (endowment effect): invalidação do

teorema de Coase a partir da teoria da perspectiva ......... 209  

2.4.3. Os dois sistemas cognitivos e a influência do raciocínio

intuitivo na tomada de decisões ............................ 213  

2.4.4. Contraposição da Economia Comportamental à Economia

Neoclássica ................................................ 220  

2.4.5. O papel das instituções na distinção entre relações de

mercado e relações comunais ................................ 228  

2.5. A influência do direito nas instituições econômicas,

segundo a Análise Jurídica da Política Econômica de Marcus Faro

de Castro .................................................. 238  

Capítulo 3 - Estudos de casos: a influência do Estado na

telefonia de longa distância e na criação da Internet ........ 250  

3.1. Análise do papel do Estado na abertura do mercado de

telefonia nos EUA entre 1960 e 1996 ........................ 251  

3.2. Análise das relações de coordenação entre instituições

estatais e não estatais na implementação da ARPANET ........ 272  

3.3. Conclusões dos estudos de casos ....................... 290  

Conclusão .................................................... 293  

Bibliografia ................................................. 304  

Livros, periódicos e artigos ............................... 304  

Material audiovisual ....................................... 320  

19

Introdução

Há decerto uma multiplicidade de nuances no rico

debate político e teórico sobre a atuação do Estado na

economia. Não obstante, para os fins dessa exposição inicial,

arriscaremos uma síntese. O debate sobre política econômica1

costuma gravitar entre duas posturas. De um lado, advoga-se a

influência do Estado na economia como algo desejável e

necessário. De outro, defende-se o oposto: a limitação do

Estado como a opção mais desejável, como meio de evitar que a

liberdade individual sofra interferência estatal. Ambas

posturas trazem implícita a pré-concepção de que existe (ao

menos em possibilidade, ainda que não manifestada no mundo

real) uma economia que seria imune à influência estatal, e que

seria expressão da livre escolha individual. Assim, a questão

seria saber se seriam desejáveis ou não os resultados dessa

economia pautada unicamente pela livre escolha individual. O

Estado, nesse debate, aparece como um terceiro, que pode ou

não interferir nas escolhas individuais na economia. Desse

modo, a primeira postura – que defende a influência do Estado

– teria como fundamento a existência de resultados

indesejáveis de uma economia formada unicamente por escolhas

1 Adotaremos a definição de política econômica feita por Marcus Faro de Castro: “conjunto de regras politicamente instituídas que organizam a produção, a troca e o consumo na vida social” (CASTRO, 2009, p. 22). 2 A noção de paradigma aqui utilizada é a formulada por Kuhn: “In this essay, ‘normal science’ means research firmly based upon one or more past scientific achievements, achievements that some particular scientific community acknowledges for a time as supplying the foundation for its further practice. Today such achievements are recounted, though seldom in their original form, by science textbooks, elementary and advanced. […] Before such books became popular early in the nineteenth century (and until

20

individuais. Por sua vez, a segunda postura – que defende a

limitação do Estado – tomaria por base a ideia de que os

resultados de uma economia baseada unicamente em escolhas

individuais seriam os melhores possíveis. Ambas posturas, não

obstante advoguem prescrições opostas, compartilham uma mesma

ideia, a de que é possível, ainda que em tese, falar em uma

economia resultante unicamente de escolhas individuais. Mas -

seja na realidade, seja apenas como construção teórica - há

economia independente do Estado?

Essa pergunta leva a outro debate, diverso do

descrito no parágrafo anterior. Esse outro debate, que

entendemos obscurecido, é relevante para o pensamento sobre as

políticas econômicas. Pois se há de fato uma clara distinção

entre os âmbitos do Estado e da economia, o debate sobre maior

ou menor presença do Estado na economia faz sentido e é

relevante nos termos acima relatados. Mas se a distinção entre

Estado e economia não é tão clara, se não há economia

independente do Estado, o debate sobre a presença do Estado na

economia necessita de reformulação. Essa reformulação

impactaria a forma como pensamos a política econômica e

influenciaria tanto a prática, como o estudo, de temas e áreas

relevantes para a economia e suas relações com o Estado. Um

desses temas é atuação do direito na política econômica.

Esta tese busca explorar como uma tal reformulação

da visão sobre as relações entre Estado e economia implicaria

a necessidade de revisão da forma como o direito atua e

compreende sua atuação na economia. Nesses termos,

defenderemos no curso deste trabalho que, com efeito, existe

uma pré-concepção sobre as relações entre Estado e economia

21

que: 1) é paradigmática2 hoje no direito brasileiro; 2) limita

o surgimento de novas políticas econômicas e novos

instrumentos jurídicos baseados nas possibilidades decorrentes

da compreensão das interações entre Estado e economia; 3)

frustra a realização da democracia em seu objetivo de

libertação da condição humana frente ao determinismo social e

material, na medida em que constrange a imaginação política às

opções decorrentes do conjunto, contingente e transitório, de

instituições que hoje existem.

Todavia, alternativa à visão paradigmática acima

descrita, há a visão de que economia e Estado não são

independentes. Ao contrário, economia e Estado são resultado

de uma teia de instituições que, a cada época, em cada

sociedade, em cada país, assume configurações diversas. Nessa

visão, a atividade econômica não acontece no vazio

institucional. Instituições importam - pois contrangem,

delimitam e pautam uma dada economia. Do ponto de vista

institucional, o direito figura em posição diversa da de mero

instrumento de justificativa, ou limitação, da intervenção do

2 A noção de paradigma aqui utilizada é a formulada por Kuhn: “In this essay, ‘normal science’ means research firmly based upon one or more past scientific achievements, achievements that some particular scientific community acknowledges for a time as supplying the foundation for its further practice. Today such achievements are recounted, though seldom in their original form, by science textbooks, elementary and advanced. […] Before such books became popular early in the nineteenth century (and until even more recently in the newly matured sciences), many of the famous classics of science fulfilled a similar function. […] They were able to do so because they shared two essential characteristics. Their achievement was sufficiently unprecedented to attract an enduring group of adherents away from competing modes of scientific activity. Simultaneously, it was sufficiently open-ended to leave all sorts of problems for the redefined group of practitioners to resolve./§/ Achievements that share these two characteristics I shall henceforth refer to as ‘paradigms’, a term that relates closely to ‘normal science’.” (KUHN, 1996, posição 274/3697 – grifos ausentes no original - Obs: na edição utilizada, como em algumas outras edições para o Kindle, da Amazon, a paginação da edição original é substituída pela indicação de posição (position) própria do Kindle.)

22

Estado na economia. Seja pela ação de instituições jurídicas,

seja pela inação dessas instituições, o direito exerce função

relevante na construção, manutenção e modificação da teia de

relações institucionais que formam uma dada economia.

Falar do papel institucional do direito na economia

esbarra no fato que o vocábulo “instituição” não é poupado da

multiplicidade conotativa que sói acometer os termos

acadêmicos. Com efeito, as principais referências teóricas que

serão adotadas neste trabalho no que concerne à análise de

instituições partem de pontos de vista distintos em suas

análises sobre as instituições e seus papéis. Se nos

referirmos apenas ao chamado neoinstitucionalismo – termo que

designa abordagens representativas da Ciência Política a

partir dos anos 1980 -, podemos identificar, com base em Peter

Hall e Rosemary Taylor (2003), três correntes distintas:

institucionalismo histórico, institucionalismo de escolha

racional e institucionalismo sociológico. Cada uma dessas

correntes explica de maneira diversa o surgimento de

instituições, a mudança institucional e a influência de

instituições no comportamento humano.3

Os teóricos do institucionalismo histórico, segundo

Hall e Taylor, se caracterizam primeiramente por considerar

que as instituições afetam o comportamento de indivíduos não

apenas por fornecer “informações úteis de um ponto de vista

estratégico”4 para o tomador de decisão, mas também por

envolvê-los em um “mundo composto de símbolos, de cenários e

de protocolos que fornecem filtros de interpretação,

aplicáveis à situação ou a si próprio, a partir das quais se

3 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, p. 194. 4 HALL e TAYLOR, 2003, p. 198.

23

define uma linha de ação.”5 É ainda característica dessa

corrente a ênfase em como instituições repartem o poder de

maneira desigual entre grupos sociais, de forma a privilegiar

certos interesses ao conferir-lhes acesso privilegiado ao

processo de decisão. O institucionalismo histórico, assim,

enfoca a influência de instituições no processo de tomada de

decisões estratégicas de grupos de interesses – e não no

processo individual de escolha.6 Instituições, para essa

corrente, se modificam em cada contexto local, e a herança

institucional delimitaria e serviria de ponto de partida para

o desenvolvimento – formando assim um caminho ou trajetória de

que o caminhar histórico seria dependente (em inglês: path

dependency).7 Essa trajetória somente seria rompida por

situações críticas – em especial crises econômicas e guerras -

, que forçariam a mudança ou o surgimento de instituições e,

assim, gerariam novos caminhos a serem percorridos.8

Outra corrente identificada por Hall e Taylor é o

institucionalismo da escolha racional. Ao contrário do

institucionalismo histórico, o institucionalismo de escolha

racional enfatiza a influência das instituições nos processos

de escolha individuais. A vida política é considerada “uma

série de dilemas de ação coletiva.”9 Esses dilemas são,

contudo, resolvidos por escolhas individuais dos atores

envolvidos, que atuam para satisfazer suas preferências.10 Por

isso, têm o risco de produzir resultados sub-ótimos para a

5 HALL e TAYLOR, 2003, p. 198. 6 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, p. 200. 7 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, p. 201. 8 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, pp. 201-202. 9 HALL e TAYLOR, 2003, p. 205. 10 O institucionalismo da escolha racional usa, nesse sentido, pressupostos da Economia Neoclássica no que concerne ao comportamento de agentes individuais para a satisfação de suas preferências. Para um detalhamento desses pressupostos da Economia Neoclássica, ver o item 2.2 adiante.

24

coletividade – assim considerados como a situação em que seria

possível encontrar “outro resultado que satisfaria melhor um

dos interessados sem que qualquer outro saísse lesado.”11 Esses

resultados sub-ótimos seriam fruto especialmente de “custos de

transação”12 envolvidos em dilemas coletivos, assim

considerados como os pertinentes à coordenação de múltiplos

atores, à gestão da assimetria de informação, entre outros.

Instituições, nesse enfoque, são arranjos criados pelos atores

envolvidos em um dado processo decisório com o objetivo de

diminuir custos de transação em dilemas de ação coletiva.13

Finalmente, Hall e Taylor identificam o

institucionalismo sociológico. Como primeira característica,

teóricos dessa escola definem instituições de forma mais ampla

do que fazem os das outras duas correntes, “incluindo não só

as regras procedimentos ou normas formais, mas também os

sistemas de símbolos, os esquemas cognitivos e os modelos

morais que fornecem padrões de significação que guiam a ação

humana.”14 Esse enfoque considera cultura como sinônimo de

instituições, de modo a reputar que aquela é “uma rede de

hábitos, de símbolos e de cenários que fornecem modelos de

comportamento.”15 Sob esse viés, instituições influenciam o

comportamento não apenas quanto ao cálculo estratégico de

indivíduos para o atendimento de suas preferências – como

considera a corrente da escolha racional -, mas também quanto

à imagem de si e à identidade dos atores, “elas mesmas vistas

11 HALL e TAYLOR, 2003, p. 205. 12 Trataremos dos custos de transação adiante, no item 2.3. 13 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, pp. 206-207. 14 HALL e TAYLOR, 2003, p. 209. 15 HALL e TAYLOR, 2003, p. 209.

25

como sendo constituídas a partir das formas, imagens e signos

institucionais fornecidos pela vida social.”16

Não obstante as diversas correntes

institucionalistas, é possível identificar um conteúdo mínimo

comum às diversas definições sobre instituições, como afirma o

economista Avner Greif. Ao invés de tratar as diversas

definições de instituição como excludentes, a busca desse

conteúdo mínimo comum permite, tal como defende Greif, que as

diversas questões atinentes ao papel de instituições na

economia sejam abordadas por perspectivas multidisciplinares e

multidimensionais.17 Em outras palavras, uma abordagem

interdisciplinar deve superar, tanto quanto possível, a busca

de um conceito unívoco de instituição. Ao contrário, deve

contemporizar visões diferentes para que resultados mais

significativos possam ser alcançados.18 Nesse sentido, é

significativo que, nos textos que serão analisados nesta tese,

nenhum dos autores citados – exceto, como veremos, o próprio

Avner Greif - tenha se ocupado em definir formalmente o termo

“instituição”. Ao contrário, os autores preferiram se ocupar

da análise das consequências da presença de instituições nas

relações sociais em geral, e econômicas em particular. Não

obstante, afirmar o conteúdo mínimo de concordância de que

16 HALL e TAYLOR, 2003, p. 210. 17 GREIF, 2005, p. xii. 18 Essa visão converge com a de Hall e Taylor, que declaram que sua tentativa de identificar as diferentes correntes do neo-institucionalismo não visa a mantê-las estanques, mas sim a possibilitar trabalhos que as interrelacionem: “O presente artigo busca sugerir que é tempo de intensificar os intercâmbios entre essas diferentes escolas. No mínimo, sugerimos que um melhor conhecimento recíproco permitiria aos praticantes de cada uma delas perceber melhor as questões subjacentes ao seu próprio paradigma. [...] Nenhuma dessas escolas parece ir em má direção, ou ter em sua base postulados profundamente errôneos. No mais das vezes, cada uma parece suprir uma explicação parcial das forças ativas numa situação dada, ou exprimir dimensões diferentes do comportamento humano e do impacto das instituições.” (HALL e TAYLOR, 2003, pp. 219-220).

26

fala Greif é útil para evidenciar o propósito da análise que

pretendemos fazer.

Greif identifica inicialmente duas abordagens

distintas – a perspectiva de agência (agency perspective) e a

perspectiva estrutural (structural perspective). A perspectiva

da agência enfatiza o papel da ação individual na formação de

instituições, ao que considera que estas são “reflexos das

ações humanas e processos sociais e são postuladas para não

irem além das condições que levaram a seu surgimento.”19 A

perspectiva estrutural, por sua vez, enfatiza que instituições

não refletem necessariamente as necessidades e possibilidades

dos agentes, mas conformam essas necessidades e

possibilidades. Sob essa perspectiva, “instituições estruturam

interações humanas, moldam indivíduos e constituem os mundos

social e cultural em que aqueles interagem.”20 Essas duas

perspectivas enfatizam pontos de vista contraditórios, mas

Greif identifica pontos em comum:

Todas as definições acima se relacionam às implicações

comportamentais dos fatores sociais: fatores não-físicos

construídos pelo homem, que são exógenos a cada

indivíduo cujo comportamento aqueles influenciam.

Exemplos desses fatores incluem crenças compartilhadas

acerca das relações entre comportamento e resultados,

normas internalizadas, sistemas cognitivos, regras

socialmente articuladas e distribuídas, e organizações

formais e informais (estruturas sociais). [...] É

portanto apropriado definir uma instituição,

grosseiramente, como um sistema de tais fatores sociais

(“elementos institucionais”) que conjuntamente geram uma

regularidade de comportamento. Uma instituição motiva,

19 GREIF, 2005, p. xi. 20 GREIF, 2005, p. xi.

27

viabiliza e guia indivíduos com posições sociais

particulares a seguir uma regra de comportamento dentre

as muitas viáveis tecnologicamente.21

Há três elementos do conceito de Greif, ilustrados

na Figura 1 abaixo. Podemos, a partir desses elementos,

parafrasear Greif para construir a seguinte definição:

instituição é o conjunto de fatores construídos socialmente

pelo homem, mas exógenos aos indivíduos, que geram uma

regularidade de comportamento.

Figura 1 - Elementos conceituais de "instituição", segundo Avner Greif (2005)

Fonte: elaboração do autor.

A exposição de Greif evidencia que instituições são

tanto produto, como causa das ações humanas. Onde existe

atividade humana socialmente organizada, existem instituições.

Aplicada ao tema desta tese, falar em instituições econômicas

é falar que ações individuais ao mesmo tempo em que determinam

uma dada economia, são determinadas pelas instituições que

21 “All the above definitions relate to the behavioral implications of social factors: man-made, nonphysical factors that are exogenous to each individual whose behavior they influence. Examples of such factors include shared beliefs regarding the relationships between behavior and outcomes, internalized norms, cognitive systems, socially articulated and distributed rules, and forma an informal organizations (social structures). [...] Hence, it is appropriate to define an institution, roughly speaking, as a system of such social factors (“institutional elements”) that conjointly generate a regularity of behavior. An institution motivates, enables, and guides individuals with particular social positions to follow one rule of behavior among the many technologically feasible ones.” (GREIF, 2005, pp. xii-xiii – tradução livre, grifo ausente do original.)

Instituição é um conjunto de fatores sociais…

…construídos socialmente pelo homem (1)

…exógenos à vontade individual (2)

…que geram regularidade de comportamento (3)

28

caracterizam essa economia. Essa visão, evidentemente, é

radicalmente oposta à ideia que uma dada economia é, ainda que

apenas no plano teórico, fruto exclusivamente de escolhas

individuais. Nessa visão, o Estado é parte da teia de

instituições que influenciam as escolhas individuais. Não há

economia no vazio institucional. Por isso, diferentes

configurações institucionais resultam em diversos tipos de

Estado e em diversos tipos de economia.

Entre os diversos tipos possíveis de economia, as

chamadas economias de mercado possuem especial relevância, na

medida em que se tornaram predominantes desde o século

passado. As características típicas de economias de mercado

são destacadas no seguinte trecho de Karl Polanyi:

Todas as transações se tornam transações monetárias e

estas, a seu turno, requerem que um meio de troca seja

introduzido para cada articulação da vida industrial.

Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa

ou outra, e qualquer que seja a efetiva fonte de renda

de uma pessoa, ela deve ser considerada como produto de

uma venda. Nada menos se implica com o uso do termo

“sistema de mercado”, pelo que designamos o padrão

institucional descrito. Mas a peculiaridade mais

impressionante do sistema está no fato de que, uma vez

estabelecido, ele deve ser deixado funcionar sem

interferência externa. [...] Um tal sistema de mercados

auto-regulado é o que queremos designar por economia de

mercado.22

22 “All transactions are turned into money transactions, and these in turn require that a medium of exchange be introduced into every articulation of industrial life. All incomes must derive from the sale of something or other, and whatever the actual source of a person’s income, it must be regarded as resulting from sale. No less is implied in the simple term “market system”, by which we designate the institutional pattern described. But the most startling peculiarity of the system lies in the fact that,

29

Atente-se para a distinção que Polanyi faz entre

mercados e economia de mercado. Os mercados são, diz Polanyi,

“instituições bastante comuns desde a Idade da Pedra.”23 O fato

que marcadamente distingue a sociedade ocidental contemporânea

daquelas que a precederam não é a existência de mercados, mas

o fato de que relações econômicas autorreguladas com base no

ganho ocupam papel central na economia e nas relações sociais

como um todo.24 Segundo Polanyi, em uma economia de mercado as

relações econômicas têm a peculiaridade de se organizarem em

um sistema que, uma vez estabelecido, deve ser deixado

funcionar sem interferência externa. Essa “ausência de

interferência externa”, contudo, não é um fato natural,

tampouco o resultado inevitável da evolução sociedade

contemporânea. Ao contrário, é uma circunstância social e

cultural específica. Com isso se quer dizer que, fossem outras

as instituições contemporâneas, fossem outras as relações

entre essas instituições, a ausência do “sistema de mercados”

poderia nos parecer tão natural quanto é hoje sua existência.

E entre as instituições que ensejam a existência de economias

de mercados está o Estado. O Estado não é um elemento de

intervenção de uma economia de mercado que, de outro modo,

existiria sozinha. O Estado – ou melhor, uma configuração

específica de Estado – está entre as instituições cuja

once it is established, it must be allowed to function without outside interference. [...] Such a self-regulating system of markets is what we mean by a market economy.” (POLANYI, 2001, pp. 43-44 – tradução livre.) 23 POLANYI, 2001, p. 45. 24 Sobre a singularidade da sociedade ocidental contemporânea na organização sob uma economia de mercado, Karl Polanyi afirma: “Market economy implies a self-regulating system of markets; in slightly more technical terms, it is an economy directed by market prices and nothing but market prices. [...] No society could, naturally, live for any lenght of time unless it possessed an economy of some sort; but previosly to our time no economy has ever existed that, even in principle, was controlled by markets.” (POLANYI, 2001, p. 45.)

30

existência permite que uma economia de mercado se implemente

em uma dada sociedade. Diante dessas considerações, propomos

que é mais significativo evidenciar a relevância da ação

estatal na implementação de mercados e na viabilização da

autossuficiência atribuída a mercados nas relações econômicas,

do que evidenciar uma suposta titularidade – estatal ou

privada – das atividades econômicas, como faz a visão

paradigmática.

Todavia, para que se chegue a essa conclusão, é

preciso retomar a discussão quanto à existência no direito

brasileiro de um paradigma que enxergue as relações econômicas

com base em uma divisão entre âmbitos de atuação do Estado e

dos particulares. Para tanto, o capítulo 1 desta tese irá

tentar mapear as visões e correntes que compõem, no direito

brasileiro, o que chamamos de visão paradigmática. A forma

escolhida para tanto foi, com base na classificação de modos

de pensamento jurídico globalizados proposta por Duncan

Kennedy, buscar organizar uma genealogia das principais

correntes do pensamento jurídico. Ao invés de servir a uma

busca das origens do paradigma, a genealogia proposta visa a

organizar ideias centrais compartilhadas, analisar seus

fundamentos e identificar interrelações, de modo a evidenciar

pontos de transição entre novas e velhas compreensões sobre o

direito. Ao final desse capítulo, o objetivo é mostrar que há

efetivamente um paradigma compartilhado pelas principais

correntes em voga no direito brasileiro. O paradigma, o

descrevemos a partir de duas pré-concepções centrais: a de que

o "mercado" seria um fenômeno social espontâneo, e a de que

relações privadas que compõem a economia se caracterizariam

pela escolha racional individual. Esse paradigma,

defenderemos, é adotado tanto pelas correntes que advogam

caber ao direito assegurar a substituição da dita ordem

"natural” da economia por uma ordem estatal “interventiva”,

31

quanto pelas correntes que defendem o oposto - proteger tal

ordem "natural" contra a ingerência do Estado.

No capítulo 2, será apresentada e debatida a tese de

que o Estado é um dos elementos centrais de construção da

economia. Assim, ao contrário do que estabelece a visão

paradigmática, o capítulo explorará a visão de que as

instituições estatais constróem a economia e, por isso, podem

ser utilizadas para modificar as relações econômicas “por

dentro”. Sob essa perspectiva, se no capítulo 1 o objetivo foi

o mapeamento das principais correntes do pensamento jurídico

paradigmático, o capítulo 2 se concentra em criticar as duas

ideias centrais pressupostas pelo paradigma comum àquelas

correntes. Com essa crítica, buscamos dar nova dimensão ao

papel do direito na economia. Para tanto, o capítulo inicia

expondo a visão de Roberto Mangabeira Unger acerca do papel do

direito em sociedades democráticas. Mangabeira, tal como

Duncan Kennedy, é um autor ligado ao Critical Legal Studies e

que se posiciona de forma crítica ao que Kennedy denomina de

Pensamento Jurídico Contemporâneo. Com base em Mangabeira,

defenderemos que o direito possui papel de construção

institucional que é fundamental para que o projeto de

libertação social que representa a democracia contemporânea

seja efetivado. Adotando como parâmetro o papel proposto por

Mangabeira para o direito, serão problematizadas as duas

pressuposições do paradigma: a ideia de que mercados são

espontâneos, e a ideia de que relações privadas são fundadas

em escolhas racionais voltadas à satisfação de interesses

individuais.

Essas duas pressuposições correspondem a ideias

centrais defendidas pela Economia Clássica e depois

retrabalhadas pela Economia Neoclássica, e que serão

sintetizadas no capítulo 2. Essas ideias, as contraporemos

32

primeiramente a partir da proposição de Ronald Coase de que

mercados não são espontaneamente gerados, mas são criados pela

ação humana institucionalizada, e que em decorrência é

necessário estudar tanto as relações econômicas que ocorrem em

mercados, como as relações que ocorrem fora de mercados. Após,

com base em autores ligados à Economia Comportamental como

Amos Tversky, Daniel Kahnemann, Dan Ariely e Cass Sunstein,

questionaremos a ideia de que relações econômicas dentro de

mercados são necessariamente expressão de escolhas individuais

racionais. Essas duas contraposições, portanto, objetivarão

problematizar as ideias de “mercado” como ordem “espontânea”

oriunda das relações econômicas e de racionalidade das

escolhas econômicas realizadas em mercados. Os contrapontos a

essas duas ideias pressupostas pela visão paradigmática

servirão para explorar as possibilidades de uma compreensão

alternativa das relações entre direito e economia. Nesse

sentido, faremos referência aos termos propostos pela Análise

Jurídica da Política Econômica de Marcus Faro de Castro, com

ênfase para o papel atribuído ao direito de suporte das

instituições econômicas, e a decorrente possibilidade de

inserção econômica de grupos de interesses até então alijados

socialmente e excluídos do ponto de vista da fruição de

direitos fundamentais.

Em seguida, o capítulo 3 estudará dois casos que

ilustram a omissão da visão paradigmática quanto ao papel de

atividades e instituições extramercado na alocação de

recursos, a interdependência entre instituições extramercado e

instituições de mercado na estruturação das relações

econômicas, e ao importante papel de instituições jurídicas na

formação e modificação das instituições econômicas e dos

fluxos institucional e de circulação de bens e serviços que

caracterizam uma dada economia. O primeiro caso é a

progressiva quebra do monopólio da AT&T (American Telephone

33

and Telegraph Corporation) na telefonia de longa distância nos

EUA, e que veio a culminar com a cisão daquela companhia e a

implementação de um novo marco legal para as telecomunicações

americanas. O segundo caso é o processo de criação e

implementação da ARPANET, a rede de computadores que daria

ensejo à Internet. Ambos os casos ocorreram durante o mesmo

período (final da década de 1960) e – essencialmente – no

mesmo lugar (EUA). Sob os olhos da visão paradigmática, são

casos que poderiam ser reduzidos à ideia de intervenção do

Estado na economia, o que pode passar a impressão de que

seriam dois exemplos de um fenônemo semelhante (a intervenção

estatal). Veremos, porém, que no primeiro caso a atuação do

Estado, ao invés de substituir a ação de mercados, resultou na

criação de um novo mercado – o de serviços entre operadoras -

até então inexistente. No segundo caso – a criação da ARPANET

-, o resultado foi uma forma peculiar de organização e

alocação de recursos que, embora descentralizada, não era

pautada por mecanismo de preços - isto é, não era um mercado -

, mas tampouco era pautada por decisões dos agentes e

instituições estatais envolvidos na implementação e

funcionamento daquela rede.

Como conclusão desta tese, será afirmada a

oportunidade de atuação do direito na criação e modificação de

instituições econômicas. Essa atuação, pouco explorada, pode

servir tanto ao reforço de instituições de mercado, quanto a

sua substituição por instituições alternativas. A ausência de

uma fórmula definitiva a pautar essa atuação indica que o

direito não deve ter por função apenas assegurar a permanência

das instituições existentes, e tampouco buscar adaptar as

instituições a um conjunto pré-determinado de alternativas. A

atuação do direito na economia deve assegurar a possibilidade

de construção democrática das instituições econômicas, o que

significa tanto manter aquilo que for desejável, como também

34

abrir espaço para que novas alternativas institucionais sejam

imaginadas e implementadas.

35

Capítulo 1 – O direito como interferência externa à economia: genealogia e análise de um paradigma

1.1. As três globalizações do pensamento jurídico segundo Duncan Kennedy e as narrativas jurídicas brasileiras sobre direito e economia

Nos próximos três itens deste capítulo, procuraremos

identificar os elementos comuns às narrativas sobre direito e

economia no Direito brasileiro, agrupando-as em linhas de

pensamento jurídico (“legal thought”) na forma proposta por

Duncan Kennedy25:

Pensamento jurídico [...] é o aparato conceitual, as

técnicas de raciocínio, os ideais jurídicos e as

imagens-chaves que a elite dos profissionais do direito

- incluindo juízes, tratadistas e advogados importantes

– empregam quando se valem de argumentos jurídicos ou

emitem opiniões ou declarações acerca do que “é” o

direito ou o que este deveria ser.26

Kennedy proporá, como veremos a seguir, três

momentos de globalização do pensamento jurídico. Ao organizar

as narrativas do Direito segundo o conceito de pensamento

25 O conceito de legal thought foi central em The Rise and Fall of Classical Legal Thought, influente obra de Kennedy primeiro publicada em 1975 e que é considerada um dos principais textos do movimento Critical Legal Studies. Aquela obra foi republicada em 2006 com o acréscimo de um prefácio do autor – Thirty Years Later, em que Kennedy faz uma análise retrospectiva de seu texto e o confronta com suas ideias posteriores. O prefácio da reedição de 2006 será adiante utilizado por nós para contextualizar o artigo Three Globalizations of Law and Legal Thought: 1850-2000 (KENNEDY, 2006a), que, por sua vez, é utilizado a seguir nesta tese para organizar as narrativas brasileiras sobre direito e economia. 26 “Legal thought [...] is the conceptual apparatus, the reasoning techniques, the legal ideals and the key images that the elite bar, including judges, treatise writers and important lawyers, deploy when they make legal arguments or give opinions or declarations about what the law “is” or ought to be.” (KENNEDY, 2006b, p. ix – tradução livre.)

36

jurídico, Kennedy enfatiza o que chama de modo de pensar

(“mode of thought”) como elemento estruturante da divisão que

ele proporá entre aquelas narrativas. Esse elemento

estruturante, esse modo de pensar, é o que Kennedy afirma ter

sido objeto de globalização.

Por esse motivo, ao adotarmos a classificação de

Kennedy, estaremos organizando as narrativas do Direito

segundo modos de pensar. O modo de pensar não se confunde com

a adoção de uma ideologia política. Isso significa dizer, como

veremos, que sob um mesmo modo de pensar estarão tanto

narrativas liberais, como conservadoras; tanto de esquerda,

como de direita. O modo de pensar também não se confunde com

as escolas de Filosofia do Direito. Kennedy afirma que em cada

globalização de um modo de pensar é possível identificar

ideias que seriam típicas do positivismo jurídico, outras do

direito natural, além de uma diversidade teorias do direito e

de variedades de pragmatismo. Por fim, um modo de pensar não

corresponde a um conjunto típico de regras – para regular um

mesmo conjunto de situações, em cada período de globalização

de um modo de pensar, o direito positivo assume diversas

configurações distintas.27

27 Sobre a distinção entre modo de pensar – como objeto da globalização do pensamento jurídico – e ideologia, filosofia do Direito e direito positivo, Kennedy assim se manifesta: “The “thing” that was globalized was not, in any of the three periods, the view of law of a particular political ideology. Classical Legal Thought was liberal in either a conservative or a progressive way, according to how it balanced public and private in market and household. The Social could be socialist or social democratic or Catholic or Social Christian or fascist (but not communist or classical liberal). Modern legal consciousness is the common property of right wing and left wing rights theorists, and right wing and left wing policy analysts. /§/ Nor was it a philosophy of law in the usual sense: in each period there was positivism and natural law within the mode of thought, various theories of rights, and, as time went on, varieties of pragmatism, all comfortably within the Big Tent. And what was globalized was most

37

O modo de pensar é identificado por Kennedy com o

que o autor denomina de consciência e, mais especificamente,

de consciência jurídica (“legal consciousness”). Por diversas

vezes, o autor usa de forma intercambiada pensamento jurídico,

modo de pensar e consciência jurídica, de sorte que é possível

identificar uma relação de sinonímia, para Kennedy, desses

conceitos.28 Com efeito, a definição de consciência jurídica

feita abaixo por Kennedy tanto é semelhante à de pensamento

jurídico transcrita acima, como também é esclarecedora sobre a

função que esses conceitos têm na organização da história do

pensamento jurídico intentada pelo autor ao longo de sua obra:

A ideia de consciência jurídica é que pessoas que se

valem do raciocínio jurídico o fazem nos limites de uma

pré-existente estrutura de categorias, conceitos,

procedimentos aceitos convencionalmente, e argumentos

jurídicos típicos (“pedaços de argumento”29). [...]

definitely not a particular body of legal rules: each mode provided materials from which jurists and legislators could produce an infinite variety of particular positive laws to govern particular situations, and they did in fact produce an infinite variety, even when they claimed to be merely transplanting rules from milieu to milieu.” (2006a, p. 22). 28 O trecho transcrito na nota 27 exemplifica bem a sinonímia por nós identificada. A primeira globalização do pensamento jurídico é denominada por Kennedy “Classical Legal Thought”, e a terceira é referenciada como “modern legal consciousness”. Além disso, Kennedy afirma que “…in each period there was positivism and natural law within the mode of thought…” e, em seguida, “…what was globalized was most definitely not a particular body of legal rules: each mode provided materials…”. 29 No original em inglês: “argument-bites”. A expressão argument-bite é proposta por Kennedy em The Semiotics of Legal Argument (1994), em que o autor se dedica à analise da argumentação jurídica: “By legal argument, I mean argument in favour of or against a particular resolution of a gap, conflict, or ambiguity in the system of legal rules. In this form of argument, it is the practice to deploy stereotyped 'argument-bites', such as, 'my rule is good because it is highly administrable'. Argument-bites come in opposed pairs, so that the above phrase is likely to be met with, 'but your rule's administrability comes from such rigidity that it will do serious injustice in many particular cases'. /§/ Starting with the argument-bite as a basic unit, I propose a set of inquiries into legal argument, using language theory as a source of analogies. First, there is the lexicographical or 'mapping' enterprise of trying to identify the most

38

[...]

A história do pensamento jurídico, como eu tento

desenvolver nesses ensaios, não é a história das teorias

do direito que caracterizam diferentes períodos (e.g.

direito natural, direitos naturais, positivismo

jurídico, processo legal). Ou, mais propriamente, a

teoria jurídica ou filosofia do Direito de um período é

apenas um aspecto – e provavelmente um aspecto não muito

importante - da consciência jurídica do período,

entendida como o conjunto de categorias, conceitos,

argumentos típicos, técnicas argumentativas e outros;

que caracterizam o trabalho de advogados, juízes e

acadêmicos daquele período.30

Finalmente, ainda quanto à metodologia adotada por

Kennedy, o autor se vale de uma abordagem fenomenológica31 para

common bites. Second, there is an inquiry into the generation of pairs and their clustering into dialectical sequences, rituals of parry and thrust. The response above might be answered, 'there will be few serious injustices in particular cases because my rule is knowable in advance (unlike your vague standard) and parties will adjust their conduct accordingly'. Third, there is the second-order mapping task of identifying the major clusters (some candidates: formalities as a precondition for legally effective expressions of intent, compulsory contract terms, existence and delimitation of legally protected interests, liability for unintended injury).” (KENNEDY, 1994, p. 325). Nos moldes acima, as ideias de Kennedy se assemelham muito às de Viehweg (2008). Os argument-bites do autor americano se assemelham aos topoi (lugares-comuns) referidos pelo alemão. Viehweg, contudo, não é citado por Kennedy em sua obra, de modo que o paralelo entre os autores necessitaria de análise mais pormenorizada do que o escopo desta tese permite alcançar. 30 “The idea of legal consciousness is that people who practice legal reasoning do so within a pre-existing structure of categories, concepts, conventionally understood procedures, and conventionally given typical legal arguments ("argument bites").[…]/§/[…] The history of legal thought, as I try to do it in these essays, is not the history of the theories of law that characterize different periods (e.g., natural law, natural rights, legal positivism, legal process). Or rather, the legal theory or legal philosophy of a period is just one aspect, and likely not a particularly important aspect of the period’s legal consciousness, understood as the ensemble of categories, concepts, typical arguments, argumentative techniques, and so forth, that characterize the work of lawyers, judges and scholars of that period.” (KENNEDY, 2012 – tradução livre.) 31 Kennedy afirma categoricamente que se inspirou na fenomenologia de Marcuse, Hegel, Sartre e Husserl para construir e desenvolver a ideia de

39

poder identificar o modo de pensar que caracteriza um

determinado período analisado. Ao adotar a fenomenologia32,

Kennedy não apenas confere um caráter eminentemente descritivo

a seu trabalho33, como estabelece como objeto de sua descrição

a expressão das experiências percebidas pelas comunidades de

juristas dos períodos que analisa.34 Esse caráter descritivo

significa que a exposição das consciências jurídicas é feita

pela busca do modo como aqueles que compartilham a consciência

a experienciam, e não pelo modo como eles deveriam ter

consciência jurídica e aplicá-la como elemento articulador de sua construção da história do pensamento jurídico – cf. KENNEDY, 2006b, pp. xvii-xx. 32 Sobre a fenomenologia de Husserl como adotada por Sartre – duas das influências de Kennedy -, a nota de Paulo Perdigão é didática e esclarecedora acerca da dimensão descritiva a que aludimos acima: “Em linhas gerais, Husserl insurgiu-se contra um engano teórico que sempre predominou nas ciências humanas em geral: a separação radical entre a consciência do sujeito [...] e o mundo exterior [...], consideradas até então como entidades distintas e heterogêneas. Ou bem privilegiava-se a exterioridade das coisas, a chamada “realidade objetiva”, em detrimento da razão humana (postura dominante em geral no pensamento científico), ou bem, ao contrário, dava-se ênfase à interioridade da mente, a chamada “subjetividade” (posição frequente em filosofia). Daí as duas linhas básicas do pensamento humano: o Materialismo e o Idealismo. Para Husserl, contudo, acatar tal dualismo é ser unilateral e insuficiente, porque a realidade é outra: o ser humano vive em uma unidade indivisa de mente-corpo-mundo e assim deve ser estudado. /§/ Como Husserl, Sartre, em primeiro lugar, suprimiu todos os conceitos de antemão dados como “verdades estabelecidas” sobre as coisas. É preciso “voltar às próprias coisas”, ou seja, descrever os fatos em sua essência.[...] Com essa volta às essências, a fenomenologia quis fazer da filosofia uma ciência rigorosa e exclusivamente descritiva, evitando as “especulações metafísicas” comuns à maioria dos pensadores. Para Husserl, a filosofia deve expressar experiências que digam respeito a todos, e não simples (e sempre contestáveis) “visões de mundo” que apenas refletem as ideias de um único pensador.” (PERDIGÃO, 1995, pp. 31-33). 33 “...what I have to say is descriptive and descriptive only of thought. It means ignoring the question of what brings a legal consciousness into being, what causes it to change, and what effect it has on the actions of those who live it.” (KENNEDY, 1979, p. 220.) 34 “What makes this approach phenomenological is that it is not about whether there really “is” an analogy, but only about whether a legal reasoner “feels” or “sees” or “intuits” that there is one.” (KENNEDY, 2006b, p. xvii). No mesmo texto, mais adiante: “This is phenomenological criterion because we distinguish systems according to how the participants experience them rather than according to whether they really are or are not using deduction correctly.” (Idem, p. xviii).

40

construído intelectualmente o seu modo de pensar. Isso não

impede o próprio Kennedy de identificar sua obra com uma

agenda político-intelectual de esquerda voltada a atacar o

status quo35, ainda que a ênfase na descrição tenha sido objeto

de crítica por outros teóricos vinculados ao Critical Legal

Studies36.

Desse modo, a partir das ideias de pensamento

jurídico, modo de pensar e consciência jurídica Kennedy busca

construir uma narrativa fenomênica da história do pensamento

jurídico. O último resultado desse esforço intelectual – até o

momento em que esta tese foi escrita - está no artigo Three

Globalizations of Law and Legal Thought: 1850-2000 (KENNEDY,

2006a). Nesse artigo, Kennedy identifica três períodos de

globalização do pensamento jurídico – cada um veiculando um

modo de pensar característico. O primeiro período corresponde

à formação do Pensamento Jurídico Clássico (Classical Legal

Thought - CLT), e vai de 1850 a 1914. O segundo período

corresponde ao Pensamento Jurídico Social (Kennedy o chama de

“the Social”), ocorrendo durante os anos de 1900 a 1968. O

35 Sobre a intenção política do trabalho que inaugura seu esforço intelectual de organização da história do pensamento jurídico, Kennedy afirma que: “The Rise and Fall was to be part of a larger leftist political/intelectual attack on the status quo in American legal scholarship generally.” (2006b, p. xxvi). Uma formulação mais recente dessa declaração é menos enfática quanto ao escopo: “My own political agenda in doing this work is leftist but in a particular sense. I don’t think there is any necessary tendency for the teasing out of the politics of law to move people to the left (nor do I think, be it noted in passing, that it has a tendency to “demobilize”). But it is part of the historic agenda of the left to re-appropriate the role of human agency against all kinds of efforts to represent the merely actual as natural, necessary and just. For the modernist/post-modernist current within the left, it is just as important to do this within the left as against the right.”(KENNEDY, 2012). 36 Como relata Kennedy: “It was an important aspect of this narrative that it provided no explanation of why one subsystem triumphed over the others. […] This agnostic aspect of the project was sharply criticized by Mort Horwitz, among others, as both politically and methodologically retrograde.” (2006b, p. xvi e nota de rodapé nº 6.)

41

terceiro período corresponde ao Pensamento Jurídico

Contemporâneo e abrange os anos de 1945 a 2000. 37

Figura 2 - Períodos da globalização do pensamento jurídico segundo Duncan Kennedy

Fonte: elaboração do autor.

Nos três itens seguintes deste capítulo, buscaremos

descrever como Kennedy caracteriza o pensamento jurídico

típico de cada um desses períodos. Após, buscaremos

identificar como cada um desses modos de pensar se refletiu no

Direito brasileiro, especialmente na forma como é tratada a

atuação do Estado na economia. Seguindo a mesma ênfase

descritiva de Kennedy, a exposição das narrativas do Direito

brasileiro privilegiará a forma como essas foram construídas e

justificadas por defensores – embora, ao longo da exposição,

nos permitiremos indicar incongruências e inconsistências.

37 O artigo de Duncan Kennedy se articula com os demais autores de TRUBEK e SANTOS (2006) para construção de uma alternativa crítica ao pensamento contemporâneo, e tem por objetivo servir de base para a busca de um novo (quarto) pensamento jurídico global.

42

Espera-se, com isso, identificar uma genealogia38 da posição

paradigmática do Direito nacional sobre a ação do Estado na

economia, descrita no item 1.1 deste capítulo. Após, a

estruturação das narrativas nacionais segundo os modos de

pensar identificados por Kennedy servirá de mote para a

análise crítica a ser empreendida ao final deste capítulo, bem

como para identificar novas alternativas teóricas que deem

suporte à construção jurídica de políticas econômicas.

Quanto ao esforço que se buscará empreender, cabe,

antes, destacar que o próprio Kennedy ressalva que sua busca

por uma classificação dos modos de pensamento jurídico é um

trabalho inacabado e que necessita de muito aprimoramento e

debate, e por isso pode trazer reduções ou simplificações

inadequadas.39 A mesma ressalva cabe, com maior veemência, ao

nosso esforço de, a partir das ideias de Kennedy, buscar

analisar os modos de pensamento que no Brasil conduziram a

interseção do direito com a economia.

Diante disso, o esforço deve ser compreendido não

como uma formulação precisa da história do pensamento

jurídico, mas apenas como contextualização das ideas que

adiante serão exploradas. Isso se faz com a justificativa de

38 O termo genealogia é por nós utilizado com a conotação proposta por Duncan Kennedy: “to understand a modern idea that interests us as constituted by the confluence of a variety of earlier ideas, each of which was transformed at its moment of combination with another idea” (KENNEDY, 2010, p. 831). 39 Kennedy afirma que: “...it seems only fair to warn the reader that it is very much a version of a work in progress. It covers a very large amount of material, both in time and in space, and I am sure I’ve made significant errors both of detail and of substance. The sweeping assertions in the text are supported by a minimal footnote apparatus that reflects the vagaries of my interests and reading over the years rather than sustained research on each topic covered. I hope readers will challenge rather than dismiss me for this weakness, so that I can improve the next version.” (KENNEDY, 2006a, p. 21).

43

viabilizar que a proposta desta tese - de que o direito

constrói a economia - dialogue minimamente com as ideias

expostas pelos juristas brasileiros. Especialmente, buscar-se-

ão subsídios para sustentar que as ideias da visão

paradigmática brasileira não são o resultado natural e

necessário de um sistema coeso, mas o produto conjuntural da

adaptação de diversas formas de enxergar o direito e seu papel

na economia – é esta, em síntese, a genealogia que buscaremos

fazer. Ao se explicitar as divergências de pensamento e a

conjuntura de formação dessas narrativas abre-se espaço para

visões alternativas como a que exploraremos no capítulo 2.

1.2. O Pensamento Jurídico Clássico (1850-1914) e a ideia de racionalidade como delimitadora da divisão entre direito público e direito privado40

Como dito antes, a primeira globalização

identificada por Kennedy é o que este autor denomina

Pensamento Jurídico Clássico41. O Pensamento Jurídico Clássico,

segundo Kennedy, é por vezes identificado com “formalismo”,

“dedução” ou “jurisprudência dos conceitos”.42 Embora não se

contraponha à identificação do Pensamento Jurídico Clássico

com esses elementos, Kennedy afirma que a característica mais

importante desse pensamento jurídico é o que ele chama de

40 A descrição do Pensamento Jurídico Clássico feita neste e nos parágrafos seguintes é retirada de: KENNEDY, 2006, pp. 25-36. 41 O estudo do Pensamento Jurídico Clássico por Kennedy teve primeiramente como foco o pensamento jurídico dos EUA e remonta ao livro The Rise and Fall of Classical Legal Thought (KENNEDY, 2006b), cuja primeira publicação data de 1975. Apenas a partir da década de 2000, Kennedy passou a considerar que o Direito americano mais foi influenciado pelo pensamento jurídico global do que o influenciou, de modo que o Pensamento Jurídico Clássico passa a ser tratado pelo autor como um fenômeno global fortemente influenciado pelos pensadores da Europa Continental. 42 Cf. KENNEDY, 2010, pp.830-831.

44

“teoria da vontade” (will theory), a teoria de que o direito

deriva ou da vontade pública, ou da vontade privada - sendo a

distinção entre ambas de fundamental importância -, e cuja

principal ilustração é a de vontades como poderes absolutos em

suas respectivas esferas.43 Essa teoria da vontade enxergava o

direito como um sistema que possui forte coerência interna,

baseado em três traços principais: i) distinção entre direito

público e direito privado; ii) individualismo; iii)

compromisso com formalismo interpretativo.44 Combinando esses

traços distintivos, a teoria da vontade assim se afigurava:

A teoria da vontade foi uma tentativa de identificar as

regras que derivariam do consenso em favor do objetivo

de auto-realização individual. Não se tratava de uma

filosofia política ou moral justificando esse objetivo;

tampouco era uma teoria positiva histórica ou

sociológica sobre como aquele havia se tornado o

objetivo. Ao revés, a teoria oferecia uma interpretação

específica, baseada na vontade, e dedutiva, da

interrelação de dúzias ou centenas de normas

relativamente concretas das ordens jurídicas nacionais

existentes, bem como das instituições legislativas e

judicantes que geravam e aplicavam as normas.45

43 “…I have wanted to insist that the single most important characteristic [of CLT] was actually the will theory, i.e., the theory that law derives either from private of from public will, with the distinction between the two being of primary importance, and with the dominant imagery being that of wills as ‘powers absolute within their spheres.’” (KENNEDY, 2010, p. 831 – o trecho em itálico corresponde ao trecho parafraseado acima) 44 Cf. KENNEDY, 2006a, p. 25. 45 “The will theory was an attempt to identify the rules that should follow from consensus in favor of the goal of individual self-realization. It was not a political or moral philosophy justifying this goal; nor was it a positive historical or sociological theory about how this had come to be the goal. Rather, the theory offered a specific, will-based and deductive interpretation of the interrelationship of dozens or hundreds of relatively concrete norms of the extant national legal orders, and of the legislative and adjudicative institutions that generated and applied the norms” (KENNEDY, 2006a, p. 26 – tradução livre.)

45

Segundo Kennedy, as ideias de Savigny tiveram papel

estruturante e serviram de base para a formação da teoria da

vontade e, por conseguinte, na genealogia do Pensamento

Jurídico Clássico.46 Kennedy identifica uma peculiar estrutura

contraditória nas ideias de Savigny, estrutura essa que

adquire posição central no modo de pensar típico do Pensamento

Jurídico Clássico. Essa estrutura contraditória se manifesta

da seguinte forma. De um lado, o direito de uma nação era

visto como o reflexo do espírito de um povo, ou de sua

cultura, o que lhe dava aspecto de singularidade. De outro

lado, esse direito poderia ser sistematizado e desenvolvido

cientificamente por juristas que pressupusessem sua coerência

interna - o que conferia ao direito abstração e generalidade.

A estrutura contraditória da teoria da vontade

resulta em um paradoxo, cuja importância para o Pensamento

Jurídico Clássico é descrita por Kennedy:

O paradoxo de Savigny, e a provável fonte de sua

importância seminal, era a combinação - na singular

ideia de ciência do direito como elaboração do “sistema”

- de uma teoria da vontade universalizante e jurídico-

formalista com a ideia de que regimes particulares de

direito nacional refletiriam diversas ordens normativas

sociais não-jurídicas.47

46 Diz o autor: “The notion of genealogy I use derives from two classic texts of social theory, Nietzsche’s Genealogy of Morals, and Foucault’s Nietzsche, Genealogy, History. Nietzsche and Foucault are explicitly against the search for origins. Their genealogical method is to understand a modern idea that interests us as constituted by the confluence of a variety of earlier ideas, each of which was transformed at its moment of combination with another idea. […] In this view, Savigny is not the intellectual father of CLT [Classical Legal Tought], but one of the most important figures in its genealogy.” (KENNEDY, 2010, pp. 831-832.) 47 “The paradox of Savigny, and the probable source of his seminal importance, was the combination, in the single idea of legal science as elaboration of “the system”, of a universalizing legal formalist will

46

E ainda:

A ideia historicista (Savigny), como destaquei acima,

era dúbia, se não contraditória. O direito de uma nação

era reflexo do espírito ou da cultura de seu povo, e

neste sentido era inerentemente político, mas podia ser

desenvolvido de uma maneira científica por juristas que

pressupusessem sua coerência interna.48

A estrutura contraditória de Savigny e o decorrente

paradoxo foram decisivos para o sucesso da globalização do

Pensamento Jurídico Contemporâneo, pois permitiram acomodar a

pretensão generalizante de um Direito que se queria racional e

científico, com as tensões políticas localizadas em diferentes

nações. A difusão do Pensamento Jurídico Clássico se deu de

diferentes formas e, como veremos, a estrutura contraditória

serviu para abrigar particularidades de diferentes culturas

nacionais e diferentes modos de adoção ou imposição de um modo

de pensar jurídico típico.

A difusão dessa consciência jurídica, como dito, foi

variada. A origem do Pensamento Jurídico Clássico é a Europa

continental, especialmente Alemanha (Escola Histórica) e

França (Escola da Exegese). Nos países desenvolvidos, sua

expansão se deu sobretudo pela influência dos professores de

direito, que adotaram as ideias e a linguagem formuladas na

Europa continental. Nos demais países, houve um misto de

influência e imposição. Em alguns casos, a imposição se deu

theory with the idea that particular regimes of state law reflect diverse underlying nonlegal societal normative orders.” (KENNEDY, 2006a, p. 27 – tradução livre.) 48 “The historicist idea (Savigny), as I remarked above, was double, if not contradictory. The law of a nation was a reflection of the spirit or culture of its people, an in this sense inherently political, but could be developed in a scientific manner by jurists who pressuposed its internal coherence.” (KENNEDY, 2006a, p. 29 – tradução livre.)

47

pela relação de império entre metrópoles e colônias. Em outros

casos, pela pressão para a “abertura” ao direito ocidental,

como exigência para a integração comercial. Houve ainda a

influência mais sutil configurada pela criação de um sistema

único de direito público internacional, baseado no conceito de

soberania como um direito absoluto em sua respectiva esfera

(qual seja, a esfera territorial).

Em todos esses processos de difusão, a estrutura

contraditória serve de suporte para a adoção e acomodação do

Pensamento Jurídico Clássico. Por um lado, na medida em que se

considerava que os sistemas jurídicos eram reflexos de um

povo, se criaram as condições para que as elites intelectuais

locais se apropriassem dessa linguagem para criar o seu

direito. Com base nisso, por exemplo, um jurista brasileiro -

ou americano, ou japonês - poderia usar a própria linguagem do

Pensamento Jurídico Clássico para se defender da hegemonia do

Direito europeu. Por outro lado, a racionalidade presumida

sugeria a universalidade de alguns conceitos - centrados nas

noções de direito subjetivo, vontade e obrigação – que

supostamente seriam desenvolvidos cientificamente pelos

juristas. Assim, o mesmo jurista brasileiro – ou americano, ou

japonês – que se valeu do Pensamento Jurídico Clássico para

advogar a particularidade de seu Direito frente ao Direito

europeu, poderia se valer desse modo de pensar para também

adequar seu Direito (e seu direito) ao Direito continental

europeu. A conveniência desse pensamento para as elites

jurídicas locais é destacada por Kennedy:

O Pensamento Jurídico Clássico substituiu um anterior

modo de pensamento transnacional do Ocidente que

afirmava a existência de uma lei universal da razão,

seja católica ou baseada na teoria dos direitos

naturais, e de uma aguda distinção legal entre nações

civilizadas (partícipes do ius gentium) e bárbaras. O

48

Pensamento Jurídico Clássico ofereceu às recém-formadas

elites jurídicas de nações periféricas da Europa,

Américas do Norte e do Sul, e Ásia, algo ao menos na

superfície mais atraente. As elites nacionais poderiam

se identificar com seus respectivos “povos” e

radicalmente dissociar ingleses ou russos, ou também

argentinos, ou egípcios, ou japoneses, dos alemães e

franceses.

Eles poderiam empregar a teoria jurídica historicista

européia para se defender contra a hegemonia jurídica da

Europa – apenas juristas latino-americanos poderiam ser

“donos” de um Direito Latino-Americano...

[...]

Juntamente com a noção particularista de que cada povo

tem sua única ordem normativa, os juristas espalhados ao

largo da periferia de nações independentes e impérios

modernizantes poderiam afirmar sua participação nas

nascentes ciências da obrigação jurídica e do direito

internacional, baseadas que eram na análise de vontade,

direito e soberania, que não tinham nenhuma óbvia

particularidade nacional. Eles poderiam desenvolver suas

versões próprias e levemente modificadas dos Códigos

Civil e Comercial das potências européias dominantes

comercialmente, financeiramente e militarmente,

facilitando a integração ao mercado mundial, sem que

vissem a si próprios como traidores de seus

concidadãos.49

49 “CLT replaced na earlier Western transnational mode of thought that had asserted the existence of a universal law of reason, either Catholic or based on natural rights theory, and a sharp legal distinction between civilized (participant in the ius gentium) and barbarous nations. CLT offered the legal elites of the peripheral, newly formed nation states of Europe, North and South America, and Asia something at least more attractive. The national elites could identify themselves with their respective “peoples,” and sharply dissotiate, if they were English or Russian, or for that matter Argentinean, or Egyptian, or Japanese, from the Germans and French. /§/ They could deploy European historicist legal theory

49

Foi ainda sob influência da estrutura contraditória

do historicismo de Savigny que a teoria da vontade do

Pensamento Jurídico Clássico absorveu o individualismo,

elaborou exaustivamente a separação entre público e privado e

recorreu ao formalismo interpretativo. Na separação entre o

público e o privado – de particular interesse para este

trabalho -, a teoria da vontade se baseava no individualismo,

pois partia da noção de que o governo deveria proteger os

direitos das pessoas, o que significava ajudá-las a realizar

suas vontades, restringindo-as somente o necessário para

permitir que outros também realizassem suas vontades.50 Os

limites entre a vontade do governo e a vontade das pessoas

eram vistos como uma derivação racional dessa noção. Assim, o

Pensamento Jurídico Clássico enxergava o direito como um

sistema de esferas de autonomia para atores públicos e

privados, cujos limites seriam definidos a partir da razão, e

dentro dos quais esses autores teriam poder absoluto.51 É no

Pensamento Jurídico Clássico, portanto, que se consolida a

distinção entre direito público e direito privado como

categorias de sistematização do pensamento jurídico – e a

to defend themselves against European legal hegemony – only Latin American jurists could “own” a Latin American law… […] Along with the particularist notion that every people had its own unique normative order, the jurists scattered across the periphery of independent nations and modernizing empires could affirm their participation in the developing sciences of legal obligation and international law, based as they were on an analytics of will, right, and sovereignty that had no obvious national particularity at all. They could develop their own slightly modified national versions of the Civil and Commercial Codes of the commercially, financially, and militarily dominant European powers, facilitating integration into the world market, without seeing themselves as traitors to their national constituencies.” (KENNEDY, 2006a, pp. 29-30 – tradução livre.) 50 “The will theory was that the private law rules of the “advanced” Western nation states were well understood as a set of rational derivations from the notion that government should protect the rights of legal persons, which meant helping them realize their wills, restrained only as necessary to permit others to do the same.” (KENNEDY, 2006, p. 25 – o trecho em itálico corresponde ao trecho parafraseado no corpo do texto.) 51 Cf. KENNEDY, 2006, p. 26 e passim.

50

consequente divisão entre Direito Público e Direito Privado

como ramos do conhecimento jurídico.

Contudo, no Pensamento Jurídico Clássico, o foco dos

juristas estava na construção e sistematização do direito

privado. O direito público é visto como não-científico,

essencialmente político e, por isso, não passível de

racionalização.52 A essa noção se soma a ideia, também

articulada pela teoria da vontade, de que o Estado é soberano

e seu poder é ilimitado - pois esse poder seria a manifestação

da vontade pública. O resultado é que a limitação possível do

poder do Estado, âmbito do direito público, é a ampliação do

direito privado. Em outras palavras, o direito público é

limitado no Pensamento Jurídico Clássico pela racionalização

promovida pelo Direito Privado, e não pela racionalização

feita pelo Direito Público. Assim, o individualismo que marcou

o Pensamento Jurídico Clássico se fez presente pelo

desenvolvimento do direito privado e por sua proteção contra o

direito público (a vontade pública não poderia invadir a

esfera da vontade privada), e não pela autolimitação do

direito público.

Além da dicotomia público-privado, outras duas

dicotomias são relevantes no vocabulário do Pensamento

Jurídico Clássico. A primeira é a distinção entre direito

52 Conforme afirma Kennedy: “In CLT, everyone understood (and jurists often explicitly affirmed) that private law was the core of law. That distinguished not only international law, but public law as well, as not part of the core. […] Public law differed from private law because it was less scientific and more political than private law. […] International law had only sovereigns as subjects, so the jurist could not be called on to denounce, in the name of international law, the conduct of his sovereign toward his fellow citizens – indeed must resist the illegal efforts of other sovereigns to interfere. Public law was political rather than scientific, with the same result: science did not oblige the jurist one way or another…” (KENNEDY, 2006a, p.31.)

51

nacional e direito internacional, e a segunda, a dicotomia

mercado-família. Na dicotomia direito nacional e direito

internacional, este é visto como um direito entre soberanos, e

que por isso não vincula seus sujeitos. Os cidadãos dos países

não são sujeitos de direito internacional, e portanto não

participam da ordem jurídica internacional, nem podem pleitear

dela qualquer ação. Como visto53, isso abre espaço para a

harmonização global de normas sobre comércio e finanças, ao

mesmo tempo em que mantém para os governos nacionais a

prerrogativa de limitar a aplicação dessas normas em seus

territórios.

De seu turno, a dicotomia família-mercado também

ofereceu ao Pensamento Jurídico Clássico argumentos para

limitar a aplicação da racionalidade liberal. Segundo Kennedy,

havia uma grande diferença entre liberalismo na economia e

liberalismo acerca das relações entre marido e mulher, por

exemplo.54 O direito de família era campo em que a

racionalidade liberal deveria dar lugar a valores morais,

políticos e tradicionais. Com isso, por exemplo, foi possível

sustentar a falta de capacidade jurídica de mulheres e que o

casamento, por ser um status e não um contrato, não se

sujeitava à livre vontade no que concerne à sua dissolução por

divórcio.55

Essas três dicotomias - público-privado, nacional-

internacional, mercado-família - ao mesmo tempo que refletiram

a estrutura contraditória da teoria da vontade, segundo

53 Ver notas 49 e 52. 54 KENNEDY, 2006a, p. 32. 55 Esse modo de pensar, ainda que brevemente, permitiu até mesmo assimilar regimes escravocratas - considerado o escravo elemento da família (cf. KENNEDY, 2006a, p. 35).

52

Kennedy, permitiram ao Pensamento Jurídico Clássico

contemporizar a pretensão de universalidade típica do

racionalismo com as idiossincrasias de governos e elites

locais. Como visto, as regras que constituem o direito privado

seriam a tradução de uma ordem racional; as regras do direito

público, do direito internacional e do direito de família

seriam exceções à racionalidade, decorrentes ora da ideia de

vontade pública como manifestação absoluta de uma política

não-racionalizável, ora de soberania, ora de tradição, ora de

moral.

No Brasil, o Pensamento Jurídico Clássico orientou a

organização da propriedade liberal sob o direito civil. Nessa

época, a elite econômica era formada por fazendeiros, cuja

propriedade se havia formado no período colonial. Antes da

Independência e da promulgação da Constituição de 1824, a

atividade econômica do Brasil-Colônia era monopólio de

Portugal. Até a vinda da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808,

o País desconhecia por completo qualquer liberalismo

econômico. A exploração de atividades econômicas somente era

possível por meio do regime de monopólios atribuídos a

particulares, pelas concessões régias, ou a companhias de

comércio em que a participação da Coroa Portuguesa era

majoritária.56 Com base nesses instrumentos, Portugal forçou a

especialização econômica do Brasil-Colônia para assegurar que

este só produziria aquilo que na Europa não fosse produzido.

Somente se permitiam o cultivo de produtos agrícolas próprios

ao clima tropical, como açúcar, tabaco e algodão, e atividades

56 Cf. AGUILLAR, 2006, pp. 88 e ss.

53

de mineração. As demais, especialmente atividades industriais

e manufatureiras, eram proibidas.57

A vinda da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 mudou

em parte essa situação. O Alvará de 1º de abril de 1808

revogou toda e qualquer proibição ao estabelecimento de

manufaturas no País e no Mundo. Mas o comércio, por exemplo,

continuou limitado. Efetivamente, no período em que a Corte

Portuguesa permaneceu no Brasil, apenas a Província do Rio de

Janeiro - erigida à condição de Capital do Reino - conheceu

maior liberdade econômica.58 Somente com a Constituição de

1824, é que se estabeleceu juridicamente, no Brasil, a livre

iniciativa.

Contudo, as normas que regulavam a propriedade eram

ainda as das Ordenações Filipinas, que vigiam desde 1603.

Foram essas normas que organizaram o direito civil brasileiro.

Essa circunstância foi conveniente para os interesses da elite

política e intelectual da época, vinculada às grandes

propriedades fundiárias e ao agronegócio.59 A propriedade como

concebida pelas Ordenações Filipinas era derivada da situação

de privilégio entre metrópole e colônia, em um cenário de

repressão a quaisquer outras atividades. Embora o séc. XIX já

conhecesse as sociedades empresárias, as corporações, a

propriedade intelectual, a atividade industrial, os serviços

financeiros e bancários, todos esses foram excluídos do

direito civil brasileiro.

57 Exemplo relevante é o Alvará de 5 de janeiro de 1785, que bania qualquer forma de indústria no Brasil, sob pena de perdimento. Como incentivo para sua eficácia, previu o Alvará que os bens confiscados seriam repartidos entre denunciantes e inspetores. Vide: AGUILLAR, 2006, p. 89. 58 Cf AGUILLAR, 2006, p. 87. 59 Cf. CASTRO, 2013.

54

O direito civil assim ganhou escopo adequado aos

interesses da elite da época. Assim se verificou, por exemplo,

com as regras que orientam a organização e a exploração de

sociedades empresárias, que foram consideradas integrantes de

um direito comercial que, por definição, se diferenciava do

direito civil - situação que formalmente só se modificaria com

a edição do Código Civil de 2002. O Código Comercial de 1850

estabelecia que toda a sorte de associação mercantil seria

regulada tão somente pelas leis particulares do comércio, pela

convenção das partes sempre que não for contrária àquelas, e

pelos usos comerciais; não se podendo recorrer ao direito

civil para decisão de qualquer dúvida, senão na falta de lei

ou uso comercial (art. 291). Ao par do Código Comercial, o

Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, fixava

procedimentos próprios para a jurisdição sobre questões

comerciais. Sujeito a procedimentos próprios, o direito

comercial se separava não apenas do direito civil não apenas

quanto à formulação legislativa, mas quanto à aplicação

jurisprudencial.

O direito comercial que se criou no Brasil ainda

viabilizou a aplicação de regras transnacionais que regulavam

o comércio, o ius gentium que o Pensamento Jurídico Clássico

identificava como herança racional global da tradição

romanista.60 Privilegiavam-se as práticas comerciais correntes

e a ideia de lex mercatoria. Esse direito comercial era

liberal e buscava inserir o Brasil nas práticas comerciais

globais. Mas o liberalismo do direito comercial não podia

alcançar a esfera própria do direito civil. Em especial, o

60 Cf. KENNEDY, 2006a, p. 30.

55

direito civil abrigava a tradicional propriedade rural. E as

regras civis eram bem mais conservadoras e restritivas.

Para dar conta da influência das ideias liberais, a

estrutura contraditória do Pensamento Jurídico Clássico

mostrou então sua utilidade. Havia de um lado a estrutura

tradicional de propriedade, casuística e caótica, baseada na

política de controle da economia da colônia pela metrópole. De

outro lado, havia a ideia liberal de uma propriedade plena e

absoluta, e que se supunha não ser nem caótica, nem

casuística, mas sim algo que poderia ser alcançado

racionalmente pelos homens cultos da época. Essa contradição

entre diferentes concepções sobre a propriedade se fez

marcante quando a Constituição de 1824 trouxe nova disciplina

acerca da propriedade, garantindo-a em sua plenitude, mas a

legislação em vigor era ainda a das sesmarias das Ordenações

Filipinas. A Lei de Terras (Lei nº 601, de 1850) foi o

instrumento normativo que buscou articular a transição da

propriedade pré-moderna, caótica, para o ideal de organização

e racionalidade da propriedade liberal. A Lei de Terras,

contudo, não aplicou o regime liberal de propriedade de forma

ampla e irrestrita.61

Dois problemas centralizavam o debate político da

Lei de Terras. O primeiro era viabilizar as atividades rurais

diante da pretendida abolição progressiva da escravatura. O

segundo era lidar com o caos da propriedade fundiária, em que

havia: i) sesmarias demarcadas, confirmadas e aproveitadas

(cultura ou criação), que conferiam ao sesmeiro domínio sobre

a gleba; ii) sesmarias cujas obrigações de demarcação e

61 A análise do papel da influência da Lei de Terras sobre a noção de propriedade do direito brasileiro é derivada de: VARELA, 2005.

56

cultivo foram descumpridas total ou parcialmente, em que os

concessionários tinham só a posse; iii) glebas ocupadas por

simples posses de fato, sem título antecedente; iv) terras sem

ocupação (terras devolutas do império), no que se incluíam

sesmarias retomadas pela Coroa.62

A solução desses problemas seguiu um projeto

político de absolutização da propriedade63 e mercantilização da

terra, expressões da expansão global das economias de

mercado.64 A terra, sob a visão do liberalismo da época,

passaria a ser meio de obtenção de crédito e financiamento da

produção agropecuária, além de permitir ao proprietário sua

livre exploração e especulação. Essas novas fontes de riqueza

ao mesmo tempo em que compensariam a indisponibilidade da mão-

de-obra escrava, se beneficiariam da formação de um mercado

interno composto por trabalhadores livres. No caso brasileiro,

esse projeto político se converteu em um liberalismo seletivo,

favorável à elite formada pelos sesmeiros e grandes posseiros,

e que caracterizou a Lei de Terras.

62 VARELA, 2005, p. 117. 63 A expressão é utilizada por Varela: “Na maior parte dos ordenamentos da família romano-germânica, o processo de absolutização da propriedade é um processo de ruptura em relação a uma estrura hieraquicamente organizada de deveres, obrigações, honra e lealdade - características de uma propriedade de tipo feudal[...]. No direito luso-brasileiro, contudo, é uma ruptura em relação à propriedade pública, cuja veste é a sesmaria, privilégio ou concessão de domínio condicionada à sua exploração, com cláusula de reversibilidade.” (VARELA, 2005, p. 122.) 64 Conforme afirma Varela, a Lei de Terras teve como contexto a busca pela transformação da terra em mercadoria e em meio para a produção – em contraposição à anterior estrutura feudal em que a terra era também fonte de obrigações pessoais e de poder político: “A segunda metade do séc. XIX é tradicionalmente apontada como o período da gradativa instrodução das relações capitalistas de produção na América Latina, exigindo a adaptação da agricultura à produção de massa para o mercado. No Brasil, esse processo corresponde à expansão econômica do café, à pressão quanto ao fim do tráfico negreiro e à introdução da mão-de-obra assalariada. /§/ Entre outros, são pressupostos do sistema capitalista, quanto à terra: sua propriedade privada absoluta e a possibilidade de sua mercantilização.” (VARELA, 2005, p. 127.)

57

Assim, ao mesmo tempo em que serviu de instrumento

para a transição da propriedade pré-moderna para a propriedade

moderna, a Lei de Terras buscou garantir que haveria mão-de-

obra barata e em quantidade suficiente para explorá-la, o que

compensaria os prejuízos da elite fundiária de então com o já

antevisto fim da escravidão. Isso foi feito por dois

mecanismos. O primeiro foi limitar a validação da propriedade

a casos que beneficiavam os grandes agricultores da época. O

segundo foi adotar preço mínimo65 para a venda de terras

devolutas e negar qualquer direito de propriedade decorrente

da posse de terras públicas, com o declarado intuito de

assegurar que a mão-de-obra da época não se convertesse em

proprietária de terras.66 Foi essa propriedade, instituída por

65 Laura Beck Varela descreve de contexto que antecedeu a edição da Lei de Terras: “Surgem anteprojetos […] oferecendo detalhados planejamentos para a organização da propriedade privada no país, associada à organização da vinda de trabalhadores livres. São já legatários das teses de Wakefield, teórico inglês do neocolonialismo, que preconizava, fundamentalmente, o objetivo da extensão de mercado (ou ampliação do campo de emprego de capital e trabalho), mediante a emigração e a organização da propriedade e das relações de produção nas colônias. Tratava-se da exportação de capitais e a estruturação de relações capitalistas na colônia, como fórmula destinada a preservar o crescimento do capital. Sua teoria da colonização sistemática pressupunha necessariamente a intervenção estatal: o Estado não mais doaria terras, mas as venderia aos novos colonos; e com o valor obtido com as vendas custearia a vinda e a instalação dos colonos pobres, sem condições de arcar com os custos. Importante mecanismo é o do sufficient price, ou instituição do preço mínimo para as vendas, pelo qual o Estado impediria o acesso imediato do assalariado à propriedade da terra, criando a propriedade mercantil da terra, exogenamente ao mecanismo de mercado.” (VARELA, 2005, pp. 131-132.) 66 O propósito político fica claro na declaração feita pelo Conselho de Estado: “Um dos benefícios da providencia que a Secção tem a honra de propôr a Vossa Magestade Imperial é tornar mais custosa a acquisição de terras[…] Como a profusão de datas de terras tem, mais que outras causas, contribuido para a dificuldade que hoje se sente de obter trabalhadores livres é seu parecer que d`ora em diante sejam as terras vendidas sem excepção alguma. Augmentando-se, assim, o valor das terras e dificultando-se, consequentemente, a sua acquisição, é de esperar que o immigrado pobre alugue o seu trabalho effectivamente por algum tempo, antes de obter meios de se fazer proprietário” (Consultas do Conselho de Estado sobre Assumptos da Competência do Ministério do Império, colligidas e publicadas por ordem do governo por Joaquim José da Costa Medeiros e Albuquerque, citado em: VARELA, 2005, p. 133.)

58

uma política pública de expressa intervenção estatal, que se

se tornaria objeto do direito civil.

Portanto, a propriedade fundiária, objeto central da

sistematização promovida pelo direito civil da época, não foi

uma construção natural da sociedade da época. Ao contrário,

foi uma propriedade concebida no seio de uma política pública

estatal explicitamente criada para preservar a estrutura de

poder tradicional, de modo que o caminho de transição para o

liberalismo assegurasse condições favoráveis aos proprietários

tradicionais. Essa realidade contrasta de forma marcante com a

ideia de propriedade do direito civil da época, ideia esta que

correspondia à noção savigniana de racionalidade histórica dos

institutos civilistas. O direito privado – e o direito civil

no centro do direito privado – era concebido pelo Pensamento

Jurídico Clássico como o produto de uma racionalidade, e não

como uma construção política. Mas a universalização seletiva

permitida pela estrutura contraditória do Pensamento Jurídico

Clássico viabilizou a absorção desse quadro paradoxal pelo

direito civil brasileiro. A propriedade civil era tratada como

categoria universal e abstrata, ignorando-se que na sua origem

estava uma lei oriunda de uma política pública criada

especificamente para privilegiar os antigos donos de terras

segundo a anterior estrutura feudal, inclusive criando

mecanismos para assegurar-lhes mão-de-obra barata frente à

impossibilidade de, nos novos tempos, utilizarem escravos para

sua produção.

Com isso, o Pensamento Jurídico Clássico viabilizou

que o direito civil brasileiro adotasse a noção liberal de

propriedade, em seu sentido absoluto e universal, e ao mesmo

tempo que essa propriedade fosse alocada por uma política

pública específica voltada a assegurar disponibilidade de mão-

de-obra para os proprietários rurais. Os proprietários rurais

59

tinham plena liberdade para dispor de suas terras, mas os

proprietários foram legitimados e protegidos por uma escolha

política casuísta e arbitrária. Assim, os mercados de terras e

de produtos agropecuários nasceram como um jogo de cartas

marcadas, em que os antigos aliados da coroa – sesmeiros e

grandes posseiros – tinham larga vantagem. Desse vício de

origem, o direito civil da época não se ocupou.

Outro elemento importante nas relações entre direito

e economia desse período foi a apropriação pelo Brasil do

droit administratif francês. Ao contrário do que narra a

grande maioria dos atuais manuais67, esse direito

administrativo não era o produto da defesa dos cidadãos contra

o absolutismo francês. Em nome da Revolução Francesa,

instituições do Absolutismo, ao invés de rejeitadas, foram

incorporadas e se converteram em instrumento da ação estatal.

Do Governo Jacobino ao de Napoleão, as instituições que no

Ancien Régime serviam ao poder do Rei foram incorporadas pela

idéia de pouvoir de police. Esse poder de polícia serviu para

assegurar ao Chefe do Executivo a prerrogativa de conduzir os

assuntos públicos e de evitar a ingerência do Judiciário e do

Legislativo.68 Na França, a separação de poderes não se

converteu em um sistema de freios e contrapesos, como nos

Estados Unidos.69 Isso se refletiu na disciplina jurídica do

poder político e, em decorrência, deu origem ao pouvoir de

police francês, um poder do Executivo que – em sua concepção

francesa original - não era sujeito à limitação pelos outros

Poderes. Associada ao pouvoir de police estava a puissance

67 Por exemplo: MEIRELLES, 1989, p. 35; DI PIETRO, 2009, pp. 1-4; MELLO, 2012, pp. 38-42. 68 Cf. LOUREIRO (2010). 69 Cf. ARENDT, 2001, Capítulo Quarto.

60

publique, origem da chamada supremacia do interesse público

sobre o privado. O droit administratif depositava no Executivo

a exclusiva legitimidade na condução dos assuntos públicos. E,

com isso, a dita supremacia do interesse público sobre o

privado se converteu em justificativa para um Executivo que

tudo podia.

Essa qualidade autoritária da supremacia do

interesse público sobre o privado se reflete no direito

administrativo que então se construiu. Até hoje, a maior parte

das categorias de Direito Administrativo tem por objetivo

fixar poderes para a administração pública e assegurar sua

eficácia. Ideias tais como discricionariedade administrativa,

cláusulas contratuais exorbitantes, auto-executoriedade dos

atos administrativos, autotutela, entre outras, não veiculam

garantias dos cidadãos contra os poderes do Estado, mas sim

poderes do Estado de imposição de sua vontade frente ao

particular. A supremacia do interesse público sobre o

particular ocupa papel central na articulação desses

conceitos, assim como sua instrumentalização pela ideia de

poder de polícia.70

Foi esse Direito Administrativo que, em 1850, passou

a ser ensinado nas faculdades de Direito nacionais. Os

conceitos centrais, trazidos do droit administratif, traduziam

os valores que a Revolução Francesa colocou no Estado como

manifestação da vontade geral. Era um direito administrativo

70 Para uma crítica à visão romântica de formação de um direito administrativo garantista e ao papel da ideia de supremacia do interesse público, ver BINENBOJM (2008). Para crítica à ideia de poder de polícia como elemento central de articulação dos poderes administrativos, ver SUNDFELD (2003). Para uma narrativa da incorporação do princípio da supremacia do interesse público e outros elementos distintivos do Direito Administrativo nacional, ver CASTRO (2013).

61

concebido para ser aplicado pelo Executivo, não pelo

Judiciário. Mais do que isso, sua premissa era a não sujeição

do Executivo ao Judiciário – o que, inclusive, deu origem a

uma instância própria para esse controle: o Contencioso

Administrativo. Consoante a teoria da vontade, característica

do Pensamento Jurídico Clássico, o direito público em geral e

o administrativo em particular eram tradução de uma vontade

pública que, por sua vez, era absoluta em sua esfera de

atuação. Essa caracterização fica clara, por exemplo, na

seguinte exposição de Pimenta Bueno sobre a distinção entre

direito público e direito privado:

Desta importante classificação e dinsão dos dous

interesses, ou do Direito Publico e Particular, seus

reguladores distinctos, nasce desde logo a diversa

competencia, a dupla existencia do poder administrativo

e do poder judicial, e com ella a separação profunda de

suas attribuições, que não devem jamais ser confundidas.

Com effeito, é desde logo manifesto que a gerencia das

relações do cidadão com o Estado, daquellas em que a lei

deu o predomínio ao interesse collectivo, em que

collocou este debaixo da alçada e protecção do Direito

Publico ou Administrativo, que é ramo seu; é manifesto,

diziamos, que essa gerencia deve pertencer ao poder

executivo ou administrativo, pois que é o encarregado de

zelar desse dominio.

Semelhante e consequentemente, o que respeita ás

relações dos cidadãos entre si, a seus interesses, o que

é administração da justiça, deve pertencer a outro poder

distincto, aos tribunaes judiciários: aliás não haverá

liberdades ou direitos civis possíveis, pois que á

pretexto da ordem, ou interesse geral, o poder

62

administrativo escravisaria todas ellas, que vacillarião

incertas e pendentes de seu arbítrio e de seus erros.71

Nesse contexto, o direito administrativo era visto

como de fundamento político – era, afinal, um ramo do direito

público - ao que se distanciava do direito civil, de suposto

fundamento científico. Seu objeto era não apenas a organização

da burocracia, mas também dos serviços estatais. De um lado,

como dito, esse direito permitia, sob o fundamento da polícia

administrativa, a ingerência estatal das atividades comerciais

- exceto quando conflitasse com o direito civil. De outro

lado, abria espaço para a completa gestão estatal de

determinadas atividades, bastando para tanto justificar a

conveniência política de fazê-lo. Foi com essa justificativa,

por exemplo, que se considerou domínio exclusivo do Estado o

serviço de correios e as atividades de telegrafia e

telefonia.72 Essas atividades, uma vez consideradas de domínio

público (do Estado), poderiam ser delegadas a particulares,

sob condições que em tese permitiriam ampla gestão do serviço

pelo Executivo.73 Ao mesmo tempo, por serem atividades

71 BUENO, 1857, p. 9 – mantida a grafia original. 72 A justificativa usada foi: “Ora, si o governo, como todo o fundamento e ad instar do que tem feito as nações mais adeantadas poz fora de questão [...] que as linhas telegraphicas no Imperio pertencem ao dominio do Estado, e si neste sentido hão sido uniformes as decisões constantes de diferentes avisos, seria por certo contrario aos preceitos de boa hermeneutica qualquer resolução estatuindo diversa doutrina à respeito dos telephonos. /§/ Seria, alem disso, altamente incoveniente no conceito da secção deixar-se este novo meio de communicação inteiramente á livre disposição da indústria particular ou das assembleas provinciaes, quando está reconhecido que a collocação de linhas telephonicas conforme o modo por que foram estabelecidas, pode perturbar a regularidade do serviço telegraphico [...] /§/ Por outro lado há, ainda, a attenderem-se as razões de ordem e conveniencia publica, que fizeram considerar o correio, e, depois, o telegrapho electrico, como serviços da exclusiva competencia do governo geral.” (Parecer do Conselho de Estado, de 10/2/1881, apud: BRITO, 1975, p. 35 – mantida a grafia original). 73 No Império, além dos correios, do telégrafo e da telefonia (vide nota supra), foram ainda considerados de domínio público as ferrovias e a eletrificação urbana (CF. ARAGÃO, 2007, pp. 60 e 61).

63

delegadas, pressupunham exclusividade em sua prestação, o que

assegurava monopólio aos particulares que obtivessem do Estado

a delegação.

Contudo, considerável esforço teórico foi despendido

para delimitar o âmbito de aplicação do regime jurídico

administrativo. O resultado desse esforço se fundou na divisão

entre direito público e direito privado, característica do

Pensamento Jurídico Clássico. Aplicava-se a lógica da teoria

da vontade: naquilo que fosse concernente à esfera pública, a

vontade pública seria absoluta; naquilo que fosse concernente

à esfera privada, a vontade privada seria absoluta. Assim, do

lado do direito público, havia a supremacia do interesse

público sobre o privado – expressão da vontade pública que,

agindo nos limites de sua esfera, seria absoluta. No lado do

direito privado, em contraponto, haveria proteção frente à

interferência do Estado – a vontade privada, agindo nos

limites de sua esfera de atuação, seria absoluta.74 O direito

privado trataria da relação entre iguais, em que uma parte não

possui ascendência sobre a outra - logo, não haveria que se

falar em supremacia de um interesse sobre outro.75

O direito privado compreendia essencialmente o

direito civil e o direito comercial. Afirmava-se o direito

civil como essencialmente protegido da ingerência estatal,

dado que estruturado a partir daquilo que os homens livres

reputassem consistir em suas regras de convívio social.76 O

74 Vide a caracterização da teoria da vontade feita nas pp. 35 e ss. 75 Sobre as características do direito público frente ao direito privado, cf. SUNDFELD, 1998. 76 Pimenta Bueno, por exemplo, afirmava que o direito civil é “o domínio [...] em que o poder administrativo não tem entrada, senão por criminosa invasão. É o regimen especial da sociedade particular dos homens entre si...” (BUENO, 1857, p. 13 – mantida a grafia original).

64

direito comercial, contudo, não tinha a mesma proteção rígida

conferida ao direito e à propriedade civil. Ao contrário,

doutrinadores da época expressamente admitiam a que o Estado

impusesse limitações ao comércio:

As limitações podem ser incluídas nas seis classes

seguintes: 1ª, as que provêm de certos monopólios do

Estado; 2ª, as motivadas por considerações de

salubridade e segurança; 3ª, as que se fundam na

necessidade de tutelar os direitos de certos produtores

(patentes, marcas de fábrica etc.); 4ª, as que se

estabelecem para garantir a boa qualidade dos produtos;

5ª, as que se impõem para garantir o funcionamento

econômico de certas empresas (leis sobre sociedades

anônimas etc.); 6ª, as que se originam de fins

tributários, na aplicação dos impostos indiretos. [...]

Dentre as indústrias que, nas nações civilizadas, exigem

mais freqüentemente a intervenção do Estado, salientam-

se a agricultura e o comércio.77

Assim se deu a construção no direito do que podemos

chamar de um liberalismo de conveniência. Havia as atividades

de livre mercado abrigadas por um direito civil

convenientemente construído para contemporizar as contradições

e idiossincrasias da realidade política da época, e protegido

de interferência de políticas estatais. Havia o direito

comercial de viés indubitavelmente liberal, porém passível de

constrição pelo direito administrativo. E havia o direito

administrativo - originalmente concebido para, em seu âmbito

de atuação, não ter limites - que podia fundamentar a

instituição de monopólios nas atividades que se compreendessem

77 CASTRO, Augusto Olympio, 1914. p. 213-214.

65

fossem de sua esfera de atuação, e que podia ainda limitar a

propriedade e as atividades comerciais.78

Esse cenário reforça a conclusão acima exposta, com

base nas ideias de Duncan Kennedy, de que no Pensamento

Jurídico Clássico o direito público é limitado pela

racionalização promovida pelo Direito Privado, e não pela

racionalização feita pelo Direito Público. O que chamamos de

liberalismo de conveniência, assim, foi a possibilidade de

conferir maior ou menor liberdade de uso de propriedade

conforme se considerasse que se tratasse da esfera de

aplicação do direito civil, do direito comercial, ou do

direito administrativo. Não estamos, portanto, nos referindo à

inserção da ideologia liberal na formação política brasileira

– o que demandaria outra análise, sob outras premissas que não

a deste trabalho. Referimo-nos à conveniência para a elite

brasileira79 de um direito que, à guisa de exercício de uma

78 Esclarecedora, por exemplo, a opinião de um administrativista brasileiro da época: “De três modos pode o Estado intervir na ordem econômica; agindo diretamente, impulsionando e regulamentando. Age diretamente quando por si mesmo obra como produtor de um serviço, como quando se incumbe da instrução ou quando constrói uma estrada de ferro; intervém impulsionando quando anima e dirige a atividade individual em um certo sentido, premiando, subvencionando os esforços individuais; finalmente intervém regulamentando, quando, mediante regulamentos de polícia administrativa, previne males que podem ocorrer no trabalho, na indústria, no comércio. [...] O Estado simples sentinela, mero guarda do direito nunca existiu, nem existe em parte alguma.” (SOUZA, José Soriano de, 1893. p. 62 – grifos ausentes no original.) 79 A relação entre o direito civil que se construiu e os interesses da elite brasileira da época fica evidente na avaliação que Laura Beck Varela faz sobre a construção jurídica da propriedade fundiária com características modernas (em oposição à propriedade feudal): “A propriedade fundiária brasileira é, assim, fruto de um longo processo que marca a saída dos bens do patrimônio público régio, um esforço gradativo de delimitação da esfera privada, em oposição ao que era público – as terras do rei. A cristalização do direito de propriedade privada foi, certamente, o resultado de uma complexa “construção” forjada em meio às tensões sociais e às condicionantes da infraestrutura econômica. “Construção” de uma disciplina jurídica proprietária, conquista gradual de um espaço a salvo das ingerências mercantilistas da Coroa. Essa disciplina jurídica serviu,

66

racionalidade auto-evidente, distinguia entre uma propriedade

com maior proteção – a civil – e outra com maior possibilidade

de intervenção política – a comercial.

Instrumento desse liberalismo de conveniência,

portanto, foi a noção de que existe um âmbito privado típico

das relações sociais autorreguladas e espontaneamente

estabelecidas.80 A racionalização, pelos juristas da época,

acerca de dada atividade econômica pertencer ou não, no todo

ou em parte, a esse âmbito privado típico das relações

privadas seria o fiel para se permitir ou se afastar a

possibilidade de ingerência estatal.81 Se adequarmos essa

ideia ao que Kennedy descreve como teoria da vontade, podemos

afirmar que o direito civil e o direito comercial brasileiros

construiram as relações de produção, troca e consumo de bens e

serviços como um espaço singular de manifestação da vontade

privada.82 Essa ideia permeia, por exemplo, a análise feita por

Teixeira de Freitas sobre a fundamentação nas “relações

econômicas” da distinção civilística entre crédito pessoal e

crédito real:

fundamentalmente, à consolidação do poder da elite local, que se perpetuou sob a forma dos grandes latifúndios.” (VARELA, 2005, pp. 231-232). 80 Pimenta Bueno, por exemplo, afirmava que o direito civil “é o regimen especial da sociedade particular dos homens entre si; são as suas transações sanccionadas pelas leis civis, e mantidas sómente pelos seus magistrados; ou por outra, são seus próprios direitos devidamente reconhecidos, que lhes dão a faculdade de governar-se a si mesmos, em tudo que lhes não é expressamente prohibido; pois que nisso consiste a sua liberdade civil.” (BUENO, 1857, p. 13 – mantida a grafia original.) 81 A propriedade das jazidas minerais e a distinção do domínio do solo e do subsolo é exemplo bastante significativo dos efeitos da teoria da vontade no Pensamento Jurídico Clássico, em especial quanto à repercussão de se considerar ou não dada atividade econômica como inclusa no âmbito privado. Foi por considerar o subsolo fora do âmbito da propriedade civil sobre o solo que se justificou a ingerência estatal na atividade mineradora e a possibilidade de se conceder outorgas públicas a particulares outros que não os donos dos terrenos em que se localizavam as minas. A controvérsia da época é bem retratada em: BANDEIRA, 1885.

67

As relações humanas, que na esphera da Sciencia Jurídica

são consideradas factos, a que cabe applicar uma regra

de direito, mostram-se na esphera da Sciencia Econômica

como vehiculos de producção, distribuição, e consumo, de

riquezas; — como trocas de objectos da natureza physica,

sem as quaes não pôde o homem satisfazêr suas

necessidades, nem desenvolver as aspirações do seu

gênio. Nos rudimcntos do commercio essas transacções

começam por trocas do supérfluo, passam a ser depois,

pela divisão do trabalho, que as multiplica, trocas

directas de productos; convertem-se progressivamente,

com a introducção da moeda, em trocas indirectas; e

recebem finalmente um novo e soberano impulso com o

desenvolvimento da noção do credito, isto é, com a

expansão da confiança nas pessoas, e nas cousas,

elementos de todas as relações.

Se o credito pessoal presuppõe o vinculo individual das

obrigações, o credito real não se concebe sem direitos

reaes, que affectam immediatamente a propriedade

immovel.83

A exposição de Teixeira de Freitas fala das

relações econômicas como um processo evolutivo natural a que

corresponderia um direito específico. Essa ideia de economia

como processo evolutivo natural, e sua correlação com o

direito privado, está presente também em autores como Carlos

Augusto de Carvalho84 e José Antônio Pimenta Bueno.85 Assim, se

83 FREITAS, 1945, pp. CXXIII-CXXIV – mantida a grafia original. 84 Por exemplo, Carlos Augusto de Carvalho afirma que: “O dominio e os direitos reaes in re aliena seguem uma evolução puramente economica. O rigor das regras cede ás necessidades do credito moveI e do immoveI.” (CARVALHO, Carlos Augusto, 1899, p. CXV – mantida a grafia original). 85 Pimenta Bueno assim justifica o regime da propriedade civil: “A plenitude da garantia da propriedade não só é justa, como reclamada pelas noções economicas, e pela razão politica dos povos livres; na collisão antes o mal de alguma imprudência do proprietario do que a violação do seu livre domínio. Sem ella não haverá desenvolvimento de sacrificios ou forças industriaes e portanto muito menos incremento e expansão da riqueza e bem-

68

enxerga de um lado um direito próprio às relações econômicas –

o direito privado -, e de outro lado um direito próprio à

atuação do Estado – o direito público.

Nesse período, porém, ainda não havia preocupação

teórica com o papel do direito em mediar a atuação do Estado

na economia – ao contrário, quando se relacionavam ambos, se

considerava que o direito privado era mero espelho da economia

(entendida esta sob a óptica liberal).86 Essa situação se

modificaria no curso do séc. XX e seria acompanhada pela

emergência de uma nova linguagem jurídica global, aquela que

Kennedy chama de “the Social” e a que nos referiremos como

Pensamento Jurídico Social. Não obstante, a influência do

Pensamento Jurídico Clássico permanece até os dias atuais. Em

decorrência dessa influência, fixou-se a noção de que o

direito privado, especialmente o direito civil, seria composto

por regras ideologicamente neutras e que refletiriam o

funcionamento da economia de mercado segundo seus princípios

típicos. A fixação de regras de direito público,

coerentemente, seria estudada e categorizada como intervenção

no domínio econômico.

1.3. O Pensamento Jurídico Social (1900-1968) e estruturação do Direito Administrativo e do Direito Econômico brasileiros

A segunda globalização do direito descrita por

Kennedy, é a do Pensamento Jurídico Social como consciência

ser social; qual o homem que semearia trigo sem ter certeza de que a colheita e livre disposição seria sua?” (BUENO, 1857, p. 430 – mantida a grafia original). 86 Cf. AGUILLAR, 2006, pp. 32-36.

69

jurídica transnacional. Segundo esse autor, o início de sua

formulação se deu no final do séc. XIX e início do séc. XX,

mas sua força global passou a ser sentida a partir da I Guerra

Mundial, deflagrada em 1914. Embora seu declínio date do final

da II Guerra (1945), sua força foi sentida em estratégias de

desenvolvimento econômico adotada por organismos

internacionais e países em desenvolvimento na década de 60.87

O Pensamento Jurídico Social é uma crítica ao

Pensamento Jurídico Clássico, e também um projeto de

reconstrução social - em um ambiente marcado pela devastação

da primeira grande guerra (1919) e, posteriormente, pela

quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque (1929). Nesse

contexto, o direito passa a ser caracterizado pela ideia de

instrumentalidade para o bem-estar social.88 Como elemento

central desse modo de pensar está a ideia de função social do

direito.

Por isso, o Pensamento Jurídico Social contrapõe-se

ao Pensamento Jurídico Clássico ao abandonar a busca por uma

coerência sistemática e afastar a dedução como método de

implementação do direito. Além disso, é uma crítica tanto ao

individualismo típico da teoria da vontade, como ao que era

visto como abuso do uso da dedução como método de construção

do direito. Ao contrário de ser produzido pela sistematização

de conceitos abstratos, o direito deveria corresponder às

necessidades efetivas verificadas na sociedade, na forma como

apreendida pelas ciências sociais e, em especial, pela

Sociologia. O desenvolvimento racional do direito se daria,

logo, de modo vinculado às necessidades da sociedade,

87 Cf. KENNEDY, 2006a, p. 36 e passim. 88 KENNEDY, 2006a, pp. 36 e ss.

70

apreendidas pela compreensão dos fatos sociais. A partir da

compreensão dos fatos sociais é que seria possível a

construção da resposta jurídica adequada - ao contrário do

Pensamento Jurídico Clássico, em que o direito se

desenvolveria “racionalmente” como ordem jurídica autônoma,

distinta da moral e da política, calcada em conceitos

abstratos organizados segundo axiomas que serviriam de base

para aplicação do direito por dedução.

Em contraposição ao individualismo do Pensamento

Jurídico Clássico, o Pensamento Jurídico Social abraçou a

ideia de interdependência. Esta era representada pela noção de

que a vida no final séc. XIX era o reflexo de uma

transformação social promovida pela urbanização,

industrialização, estratificação social e globalização de

mercados. Para incorporar essa pluralidade de fatores, o

Pensamento Jurídico Social se contrapôs à teoria da vontade e

seu fundamento individualista, dado que um direito

individualista somente poderia produzir respostas às

necessidades individuais. Confome o Pensamento Jurídico

Social, era necessário um direito social, calcado na

interdenpendência, para que uma resposta coerente às

necessidades coletivas fosse possível.89

Como consciência jurídica, o Pensamento Jurídico

Social, segundo Kennedy, ensejou discursos variados. Tal como

ocorreu com o individualismo no Pensamento Jurídico Clássico,

89 “Because the will theory was individualist, it ignored interdependence, and endorsed particular legal rules that permitted antisocial behavior of many kinds. The crises of the modern factory […] and the urban slum, and later the crisis of the financial markets and the Great Depression, all derived from the failure of coherently individualist law to respond to the coherently social needs of modern conditions of interdependence.” (KENNEDY, 2006a, p. 38.)

71

a adoção da interdependência como ideia comum ao modo de

pensar do Pensamento Jurídico Social não significou unidade de

discurso. Ao contrário, o Pensamento Jurídico Social produziu

doutrinas de esquerda e de direita, progressistas e

conservadoras. Em todas elas, porém, a ênfase no deducionismo

do Pensamento Jurídico Clássico foi substituída pela ênfase na

instrumentalidade do direito para alcançar fins sociais.90

A partir dessa mudança de fundamentação frente ao

Pensamento Jurídico Clássico, o Pensamento Jurídico Social

estruturou-se como modo de pensar a partir de quatro

propostas: (1) o “deve-ser” (ought to) do direito deve ser

adaptado ao “é” (is) das circunstâncias sociais; (2) as normas

jurídicas devem ser formuladas com base em uma abordagem

instrumental, e não dedutiva; (3) a formulação de normas

jurídicas não compete somente à legislatura, mas também a

cientistas jurídicos, juízes e servidores públicos, a partir

do expresso reconhecimento de que a ordem jurídica formalmente

válida é incompleta; (4) a construção do direito deve ser

ancorada em práticas normativas (direito vivo) que grupos

intermediários entre o Estado e o indivíduo estariam

continuamente desenvolvendo em resposta às necessidades da

nova conjuntura social.91

90 “In other words, the social, like CLT, was initially a consciousness (though always in an embattled relationship with CLT, rather than straightforwardly hegemonic in the way CLT had been in the brief period between about 1850 and 1890) within which it was possible to develop different and confliction ideological projects. Regardless of which it was, the slogans included organicism, purpose, function, reproduction, welfare, instrumentalism (law is a means to an end) – and so antideduction, because a legal rule is just a means to accomplishment of social purposes.” (KENNEDY, 2006a, p. 39 – tradução livre.) 91 Parafreamos, com adaptações, o seguinte trecho: “The social people had four positive proposals: (1) from the social “is” to the adaptative ought for law, (2) from the deductive to the instrumental approach to the

72

Essas quatro características, conforme explicita

Kennedy, são refletidas em três formulações típicas do

Pensamento Jurídico Social: o pluralismo, o institucionalismo

e o corporatismo.

O pluralismo dá relevo ao direito vivo, visto como

aquele praticado por grupos não-estatais como resposta para

necessidades efetivas da sociedade – em oposição àquilo que é

visto com uma mera manifestação formal do aparato estatal, o

direito estatal.92 Os pluralistas, ao contrário, identificam

várias ordens normativas abaixo e acima do Estado, sujeitas a

diversos tipos de institucionalização formal e informal. Sob a

perspectiva do pluralismo, consideram-se, por exemplo, as

ordens normativas postas pelo direito canônico, pelas normas

das corporações medievais e sua adaptação pelo direito

mercantil, pelo direito internacional costumeiro e até mesmo

pelo código de conduta da Máfia italiana.

Outra formulação típica do Pensamento Jurídico

Social é o institucionalismo. A ideia de instituição tem parte

importante na estruturação do modo de pensar do Pensamento

Jurídico Social, especialmente em associação ao pluralismo.

Para a compreensão das ordens normativas não-estatais, era

necessário identificar as práticas sociais que configurariam

um direito não-estatal, distinguindo-as de meros costumes, e

conferir a essas práticas uma certa coerência conceitual. A

formulation of norms, (3) not only by the legislature but also by legal scientists and judges and administrative agencies openly acknowledging gaps in the formally valid order, and (4) anchored in the normative practices (“living law”) that groups intermediate between the state na the individual were continuosly developing in response to the needs of the new interdependent social formation.” (KENNEDY, 2006a, p. 40.) 92 KENNEDY, 2006a, p. 40.

73

ideia de instituição, concebida nos moldes que Kennedy

descreve abaixo, servia a esse propósito:

...[a instituição é concebida como] uma organização, um

conjunto de papéis [sociais], persistente no tempo, mas

variada quanto às pessoas que a integram, orientada a

partir de um momento de fundação para alcançar um grupo

(cambiável) de propósitos [ou finalidades] que vão além

dos interesses individuais daqueles que em dado momento

ocupam os papéis sociais.93

Ao lado do pluralismo e do institucionalismo, o

Pensamento Jurídico Social conhece e desenvolve o

corporativismo. Como dito, esse modo de pensar tem como raiz a

ideia de que o direito está vinculado a finalidades sociais.

As finalidades sociais, contudo, não seriam fruto da

manifestação política dos cidadãos em resultado de um processo

eleitoral – isto é, não seriam o produto formal do

Legislativo. As finalidades sociais estariam manifestas nas

instituições. E a democracia representativa não seria sequer o

meio mais adequado para regular e supervisionar as finalidades

sociais. Por ser baseada em um processo legislativo conduzido

por indivíduos eleitos, a democracia representativa era vista

como um improvável veículo para a supervisão racional do

funcionamento das instituições e, por conseguinte, para o

atingimento das finalidades sociais. A solução proposta era

conferir acesso direto pelas instituições (compreendidas

também no sentido de organizações da sociedade, como visto

acima) ao poder estatal:

93 “...an organization, a set of roles, persistent in time but with shifting personnel, oriented in a founding moment to some set of (changeable) purposes going beyond the individual interests of the role incumbents.” (KENNEDY, 2006a, p. 41 – tradução livre).

74

[O corporativismo] é a visão de que todas as

instituições plurais tinham propósitos que contribuíam

para a auto-preservação e evolução da sociedade como um

todo, e que somadas elas eram um melhor “representante”

da sociedade do que, digamos, um processo eleitoral

baseado na votação por indivíduos. Mais do que isso, um

processo legislativo que emergisse da votação individual

provavelmente seria incapaz de desempenhar racionalmente

a função de supervisionar as atividades auto-reguladas

das instituições.94

Pluralismo, institucionalismo e corporativismo são

mais ou menos incorporados no léxico dos diversos teóricos que

se influenciaram pelo Pensamento Jurídico Social. Como linha

comum, está a negação do formalismo conceitual do Pensamento

Jurídico Clássico e a afirmação das necessidades sociais como

fundamento para o direito. A negação do formalismo, porém, não

busca substituir uma visão objetiva de direito por uma visão

subjetiva. Para os teóricos do Pensamento Jurídico Social, de

acordo com Kennedy, a forma correta de se abordar

cientificamente o direito era pelo recurso às ciências

sociais, tais como a Sociologia, a Psicologia e a Economia.

Esse modo de pensar se voltava contra o fundamento da

pretensão científica do Pensamento Jurídico Clássico,

pretensão essa fundada na distinção e organização sistemática

de categorias95 a partir da técnica jurídica. Tal qual o

94 “This was the view that the plural institutions all had purposes that contributed to the self-preservation or reproduction and evolution of society as whole, and that taken together they were a better ‘representative’ of society than, say, an electoral process based on voting by individuals. Moreover, a legislative process that emerged from individual voting was unlikely to perform in a rational way the function of overseeing the self-regulating activities of institutions.” (KENNEDY, 2006, p. 41 – tradução livre). 95 Kennedy chama essa metologia de “aninhamento” (nesting): “Savigny builds the System by the method that is sometimes called “nesting”, according to which within a distinction there is another distinction, on each side, that

75

Pensamento Jurídico Clássico, o Pensamento Jurídico Social

aspirava igualmente objetividade científica, mas argumentava

que essa seria alcançável pelo estudo da realidade para se

obter a constatação daquilo que é, para que então se pudessem

projetar as corretas soluções e assim estabelecer aquilo que

deveria ser. O caminho entre ser e dever ser96 seria

estruturado pelo “estudo”, formulado a partir de investigação

empírica que indicaria de forma técnica e apartidária as

efetivas necessidades do interesse público e os mecanismos

para seu atendimento.97

Uma importante constatação que podemos fazer, e

diretamente relacionada à ideia exposta acima, é que, ao

contrário do que identificam diversos autores, as agências

reguladoras independentes têm sua origem no Pensamento

Jurídico Social (e não como uma manifestação do dito

neoliberalismo dos anos 9098). Foi a partir do New Deal de

Franklin Roosevelt que as agências reguladoras independentes

reproduces the initial distinction. At the same time, he arranges the contrasting entities at each level, beginning within private law but then at the levels of public law and international law, to construct a pyramid in which the organic collective side has a strong polically conservative valence.” (KENNEDY, 2010, pp. 821-822). Para uma visão mais aprofundada do “aninhamento” e sua função na consciência jurídica (especialmente do Pensamento Jurídico Clássico), ver: KENNEDY, 1994, pp. 357 e ss. 96 Nas palavras de KENNEDY (2006, p. 43), “is-to-ought context”. 97 Nesse sentido, afirma Kennedy: “A key element of is-to-ought was the “study”, beginning with industrial accidents at the beginning of the century. The premise of the “study” was that there was a politically powerful, centrist, middle-class audience, that tended to assume that things in general were going fine. When alerted by a study either to dangers to themselves (e.g. unsanitary food processing) or to sufficiently flagrant abuse of others (conditions in the mines), this group would support a regulatory regime on “public interest” rather than partisan political grounds.” (KENNEDY, 2006a, p. 43.) 98 Todavia, como veremos adiante, o papel das agências reguladoras na narrativa do Estado Regulador, dentro do Pensamento Jurídico Contemporâneo terá justificativa bastante diversa.

76

passaram a ser largamente adotadas nos EUA.99 Neste país, antes

de 1930, apenas duas agências reguladoras haviam sido

instituídas. Após 1930, sob Roosevelt, dezenas de agências

reguladoras foram criadas. A criação das agências reguladoras

desse período é descrita como “respostas não apenas à

percepção de problemas sociais que demandam solução do

governo, mas também à percepção de que as instituições

existentes não são adequadas para a tarefa.”100 As agências

reguladoras proliferaram nos EUA, portanto, como uma forma

nova de ampliar a ação estatal sobre a economia, em que a

expertise técnica seria supedâneo para resolver os problemas

sociais da época.

No Brasil, no mesmo período, foram criadas

organizações inspiradas nas características das agências

reguladoras independentes americanas, de que são exemplos o

Departamento Nacional do Café e o Instituto do Açúcar e do

Álcool.101 Além disso, em dois importantes projetos

encomendados pelo Governo Vargas, houve a intenção explícita

de adotar instituições similares às agências reguladoras

americanas. Trata-se, um deles, da previsão no Código de Águas

99 Corroborando nossa afirmação: “The creation of the ICC did not produce an immediate flood of new federal agencies on the same model. Indeed, the Progressive Era produced only one other major regulatory innovation between the Interstate Commerce Act and the Great Depression, the creation of the Federal Trade Commission. [...] The watershed period in the creation of new federal administrative agencies was the New Deal. Concerns of both practice and principle notwithstanding, the President and the Congress created a host of new entities, often with broad and vaguely described authority, to respond to the national economic emergency.” (MASHAW et. al., 1998, p. 5.). Para uma análise pormenorizada das agências reguladoras desse período, com extensa documentação dos debates legislativos da época, ver CUSHMAN, 1941. 100 Nesse sentido: “...agencies typically are resonses not only to the perception of social problems warranting government response, but also to the perception that existing institutions are inadequate to the task.” (MASHAW et. al., 1998, p. 5.) 101 Sobre as características do Departamento Nacional do Café e do Instituto do Açúcar e do Álcool e as semelhanças com o modelo americano de agências reguladoras independentes, ver MEDEIROS, 2005.

77

de criação da Comissão Federal de Forças Hidráulicas, no

anteprojeto de lei liderado por Alfredo Valladão.102 O outro

foi o projeto de regulamentação do art. 147 da Constituição de

1937103, em a comissão de juristas liderada por Bilac Pinto

recomendou que a regulamentação por comissões (nos moldes das

commissions americanas) fosse adotada como forma de controle

dos serviços públicos104.

Não obstante a Comissão Federal de Forças

Hidráulicas não tenha sido implementada, e nem o anteprojeto

de Bilac Pinto tenha tido seguimento, a mesma ideia de

independência técnica que justificou a proliferação das

agências reguladoras nos EUA durante o New Deal, serviu a

Francisco Campos para justificar a centralização

administrativa no Estado Novo de Vargas –inclusive, citando o

exemplo americano para reforçar seu argumento:

A legislação perdeu o seu caráter exclusivamente

político, quando se cingia apenas às questões gerais ou

de princípios, para assumir um caráter eminentemente

técnico. [...]

102 Lia-se na exposição de motivos do Código de Águas, feita por Alfredo Valladão: “Instituiu o projeto [do Código de Águas] as comissões, cercando-as das maiores garantias de idoneidade moral, de competência administrativa e de independência. /§/ A Comissão Fedral de Forças Hidráulicas (destinada a propulsionar o desenvolvimento da indústria hidroelétrica no país, regulamentá-la e fiscalizá-la), ficou instituída do modo a poder gozar entre nós daquele mesmo prestígio de que goza, nos Estados Unidos, Interstate Commerce Commission.” (VALLADÃO, 1980, p. 58.) 103 Art 147 - A lei federal regulará a fiscalização e revisão das tarifas dos serviços públicos explorados por concessão para que, no interesse coletivo, delas retire o capital uma retribuição justa ou adequada e sejam atendidas convenientemente as exigências de expansão e melhoramento dos serviços. /§/ A lei se aplicará às concessões feitas no regime anterior de tarifas contratualmente estipuladas para todo o tempo de duração do contrato. 104 Cf. PINTO, 1941.

78

Ora, um corpo constituído de acordo com os critérios que

presidem à constituição do parlamento é inapto às novas

funções que pretende exercer. Capacidade política não

importa capacidade técnica, e a legislação é hoje uma

técnica que exige o concurso de vários conhecimentos e

de várias técnicas. [...]

Daí, o movimento geral em todo o mundo para retirar do

parlamento a iniciativa da legislação e estender cada

vez mais o campo da delegação de poderes. Não há hoje

obra legislativa importante que não tenha sido

iniciativa do governo ou não seja o resultado de uma

delegaçaõ do Poder Legislativo. Quase toda a legislação

recente na Inglaterra é feita por Orders in Council e

Departmental Regulations, isto é, legislação pelo

Executivo, mediante delegação de poderes.

Nos Estados Unidos, país em que sempre existiu a

prevernção dos tribunais contra a delegação, a

legislação pelo Executivo, ou delegada, constitui hoje a

massa mais importante da produção legislativa. (CAMPOS,

2002, pp. 82-83.)

Portanto, o Pensamento Jurídico Social deu ensejo a

uma ampliação da atuação do direito sobre a economia. Manteve-

se a distinção entre direito público e direito privado, porém

este não era mais uma limitação à esfera daquele. A ação do

direito sobre a economia não era vista como um exercício da

política. Ao contrário, essa ação seria o produto da técnica,

compreendida de acordo com a racionalidade científica da

Economia, Sociologia e Psicologia de então.105 Essa a visão

dessa época.106

105 Por isso, Duncan Kennedy afirma: “The social was social scientific” (KENNEDY, 2006, p. 43). 106 Nesse sentido, por exemplo, Francisco Campos defendia que: “A legislação perdeu o seu caráter exclusivamente político, quando se cingia apenas às

79

Foi a partir dessa premissa que se passou a teorizar

a influência do direito sobre a economia, bem como a noção de

que compete ao Estado planejar a economia. Assim, foi no

Pensamento Jurídico Social que a política econômica passou a

ser compreendida como produto do Estado e como objeto de

tratamento jurídico e investigação pelo Direito. Mas,

paradoxalmente, a política econômica não era vista como

política. Ao invés de política, era compreendida como uma

resposta técnica aos problemas sociais. Essa visão, com

roupagem diversa, ainda ocupa papel central nos debates sobre

a regulação setorial e o papel das agências reguladoras no

Brasil, como veremos adiante.

Paralelamente a essa visão de intervenção técnica,

outra importante corrente construída segundo o Pensamento

Jurídico Social é a organização do Direito Administrativo em

torno da ideia de “serviço público” e do que se chama de

"intervenção (jurídica) sobre o domínio econômico”. Essas duas

ideias são centrais na visão ainda hoje paradigmática no

direito brasileiro, e por isso agora nos ocuparemos delas com

maior detalhe.

A primeira grande influência dessa corrente foi Léon

Duguit, considerado o pai da doutrina do serviço público

francês. Duguit propôs que a ideia de serviço público seria o

fundamento do direito público e teria a função específica de

legitimar a atividade estatal, adequando-a a uma realidade

social que, por ser pre-existente ao próprio Estado, ditaria

os seus limites. O que o autor francês buscava era um

questões gerais ou de princípios, para assumir um caráter eminentemente técnico. [...] Capacidade política não importa capacidade técnica, e a legislação é hoje uma técnica que exige o concurso de vários conhecimentos e de várias técnicas.” (CAMPOS, 2006, p. 82).

80

substituto para a noção de soberania (puissance) como

fundamento do direito, de forma a que a atuação estatal

encontrasse suporte outro que não no próprio Estado. Na

concepção de Duguit, o Estado de Direito se submeteria a uma

ordem subjetiva que não teria sido criada por ele próprio, e

cujo fundamento seria a solidariedade social. A partir dessa

proposta, Duguit formulou sua noção de serviço público: uma

obrigação que se impõe aos governantes e cujo cumprimento é a

própria justificação do governo e das prerrogativas que lhe

são inerentes.107

A ideia de serviço público de Duguit não traz a

distinção entre público e privado como elemento delimitador do

regime jurídico a ser aplicado. Isto é, ao contrário do droit

administratif do Pensamento Jurídico Clássico, não havia para

Duguit um regime público típico do direito público, nem um

regime privado típico do direito privado. Duguit enfatiza o

serviço público como uma função social justamente porque, para

ele, pouco importa o regime jurídico (conjunto de regras,

direitos e obrigações) a que se submete determinada atividade,

o que importa é se dada atividade é ou não necessária ao

interesse público. O regime jurídico não está vinculado ao

fato de uma atividade ser considerada ou não serviço público.

Segundo Duguit, se uma dada atividade é desempenhada pelo

Estado para assegurar seus fins, será serviço público,

independentemente da qualidade das regras que a regulem.

107 Afirma Duguit: “En effet, dès ce moment on a compris que certaines obligations s`imposaient aux gouvernants envers les gouvernés et que l`accomplissement de ces devoirs était à fois la conséquence et la justification de leur plus grande force. Cela est essentiellement la notion de service public.” (DUGUIT, 1913, p. 33.)

81

A concepção de Duguit foi, todavia, base para novas

formulações teóricas que serviriam para manter e consolidar a

distinção entre público e privado legada pelo Pensamento

Jurídico Clássico. Gaston Jèze, discípulo de Duguit na Escola

de Bordeaux (a Escola do Serviço Público), deu os primeiros

passos nesse sentido. Para Jèze, serviço público seria um

processo para satisfação do interesse geral.108 O que

caracterizaria esse processo seria a adoção de um regime

jurídico público - definido por ele como um conjunto de regras

especiais passíveis de modificação a qualquer instante.

Portanto, Jèze vincula seu conceito de serviço público a um

conjunto típico de regras. O que determinava esse conjunto não

era a natureza dessas regras – “natureza jurídica” remete ao

Pensamento Jurídico Clássico, modo de pensamento que não é

adotado por Jèze. O que determinava esse conjunto típico do

regime público era o fato de serem regras diferentes das

aplicáveis às coisas privadas, e a possibilidade de que a

qualquer instante essas regras fossem modificadas em prol do

interesse geral.109 Qualquer setor econômico – ou qualquer

coisa – poderia se submeter ao processo de serviço público,

bastando para tanto que os governantes de um país, no uso de

sua autoridade, assim o quisessem.110

Não obstante essa formulação, Jèze afirmava que o

serviço público seria um dentre os mecanismos de que disporia

108 Dizia Jèze: “... le service public est un procédé – et non pas le seul procédé – pour donner satisfaction à des besoins d`intérêt général.” (JÈZE, 1924, p. 273). 109 Cf. JÈZE, 1924, pp. 264-273. 110 O autor assim afirmava: “Sont uniquement, exclusivement, services publics les besoins d`intérêt général que les gouvernants, dans un pays donné, à une époque donnée, ont décidé de satisfaire par le procédé du service public. L`intention des gouvernants est seule à considérer.” (JÈZE, 1924, p. 274).

82

o Estado para satisfazer o interesse público.111 Logo, Jèze

conferiu ao conceito de serviço público um aspecto

instrumental diverso do que Duguit imaginara. Para Duguit o

serviço público serviria como fundamento para ação estatal,

era a razão e o limite para a intervenção do público sobre o

privado. Para Jèze, o serviço público era um instrumento –

entre outros – para a atuação do Estado.112 Essa distinção é

importante e, quanto ao regime jurídico aplicável ao Estado,

aproxima Jèze de Duguit. Significa o reconhecimento por Jèze

de que nem toda ação estatal se pautaria por um regime

jurídico caracterizado pela supremacia do interesse público

sobre o interesse privado.113 Portanto, ao mesmo tempo em que

amarra o serviço público a um regime jurídico público, Jèze

não vincula todas as atividades estatais à idéia de serviço

público.114

111 Com efeito, Jèze afirmava que o Estado poderia assumir atividades tanto se valendo de um regime jurídico especial, caso em que se cuidaria de serviço público, como se valendo do regime jurídico ordinariamente aplicado sobre a propriedade privada – vide: JÈZE, 1924, p. 266. 112 Ver citação na nota 108 acima. 113 No mesmo sentido de nossa conclusão sobre o pensamento de Jèze, Alexandre Santos de Aragão afirma que, para o autor francês: “Não haveria um dado único que determinasse se a atividade tem ou não o regime jurídico especial de serviço público, mas sim um conjunto de circunstâncias, como a imposição de cargas públicas aos particulares [...] e o poder de fixar taxas para assegurar a prestação do serviço. O autor releva também como um importante dado a atividade ser monopolizada pelo Estado, e, com base nisso, demonstrando não diferenciar serviço público de atividade econômica monopolizada pelo Estado, dá como exemplos de evidentes serviços públicos (“très certainment constituent des services publics”) a fabricação da pólvora, de cigarros e de fósforos, então monopolizados pelo Estado francês.” (ARAGÃO, 2007, p. 88). 114 Outro discípulo da Escola do Serviço Público, Luis Rolland, iria além de Jèze para, além de afirmar a vinculação do serviço público a um regime jurídico típico da supremacia do público sobre o privado, tentar enumerar as regras que seriam características desse regime. Rolland diferenciava entre serviços públicos em sentido amplo e serviços públicos propriamente ditos; apenas os últimos estariam sujeitos a um regime jurídico especial. Esse regime, segundo o autor, se pautaria por postulados como a continuidade, a igualdade e a mutabilidade (ou atualidade). A respeito da

83

Ainda na França, a Escola do Serviço Público foi

contraposta pela linha institucionalista de Maurice Hauriou.115

A visão deste autor se contrapôs especialmente à visão que

colocava o serviço público como fundamento da ação estatal.

Segundo Hauriou, seria a soberania (souveraineté) o meio pelo

qual a massa social era conduzida a aceitar e assimilar a

coisa pública, ou ainda o meio pelo qual o Estado toma

consciência de si.116 Mas a soberania, segundo Hauriou, não

seria ilimitada, mas seria o poder político supremo enquanto

livremente empregado para realizar a coisa pública.117 À coisa

pública (chose publique), Hauriou opunha a coisa privada

(chose privée) – o conjunto de situações que não interessam a

ninguém que não o círculo de pessoas envolvidas – e a coisa

corporativa – o conjunto de situações que, não obstante

públicas, não interessam igualmente a todos.118 Desse modo, a

coisa privada e a coisa corporativa seriam, em princípio,

limites à soberania. Haveria, em decorrência, um âmbito de

atuação próprio para puissance publique, o da chose publique,

em que haveria um direito especial – o direito administrativo.

Fora dos limites próprios à soberania, não teria lugar o

Escola do Serviço Público na França, ver a análise de: ARAGÃO, 2007, pp. 89-90. 115 Cf. ROLDÁN MARTIN, 2000, pp. 20-21. 116 Assim dizia Hauriou: “...l’État n’est pas seulement une chose publique, mais encore une personne souveraine ou une souveraineté; nous savons aussi que cette souveraineté est le moyen par lequel la masse sociale est conduite à accepter et à réaliser la chose publique, de telle sorte que la souveraineté est un moyen par lequel l’Etat se réalise lui-même.”(HAURIOU, 1903, p. 12). 117 Cf. HAURIOU, 1903, p. 13. 118 É o que afirmava Hauriou: “La chose publique n’englobe point toutes les situations sociales; elle laisse en dehors, d’une part la “chose privée”, c’est-à-dire l’ensemble des situation qui n’intéressent que le cercle des intimes, et d’autre part la “chose corporative”, c’est-à-dire l’ensemble de situations qui, tout en étant publiques, n’interessent pas également tous les membres du groupe, les situations qui, tout en étant publiques, restent différentielles.” (HAURIOU, 1903, p. 10).

84

direito administrativo, mas sim o direito comum – comercial ou

civil.

Para Hauriou, no âmbito privado, do direito comum,

estaria a economia. Em nome da coisa pública, Hauriou até

mesmo defendia que seria possível a intervenção do Estado na

economia, por meio da ampliação da competência do próprio

direito administrativo. Mas decerto havia para o autor um

regime jurídico para o âmbito público, e outro para o âmbito

privado, e a economia seria regulada e identificada com o

segundo.119

A distinção entre os âmbitos público e privado se

faria presente na própria administração pública, que, para

Hauriou, teria dois regimes jurídicos. De um lado, praticaria

os atos administrativos, aqueles que veiculariam exercício de

119 Fica evidente no trecho em que Hauriou defende a possibilidade de ampliação do âmbito de atuação dos direitos de puissance publique sobre a atividade econômica o fato de que o autor francês mantém a ideia do Pensamento Jurídico Clássico, que assimila o regime de direito comum ao âmbito privado, e identifica a ideia de economia apenas com este: “Quels sont les rapports sociaux que l’État souverain doit diriger ou, pour employer une expression consacrée, jusqu’à quel point l’État doit-il intervenir dans les affaires sociales para sa législation, par son administration, par sa justice? Spécialment, jusqu’à quel point doit-il intervenir dans les rapports économiques? telle est la question. Elle est dominée par cet autre: quel est le but de l’État? car sans doute l’État ne doit intervenir que dans la mesure où cela est nécessaire pour realiser sa fin. Mais la fin de l’État n’est point extérieure à lui, comme on semble le croire généralement, elle lui es intérieure, la fin de l’État est de se réalise lui-même; il doit se réaliser comme chose publique par le moyen de la souveraineté, et c’esten se réalisant ainsi lui-même qu’il travaille pour l’individu. La fin de l’État est donc en réalité illimitée dans le sens de la chose publique. Il est à croire que la compétence de la souveraineté l’est également. En d’autres termes, c’est la souveraineté que règle elle-même sa compétence et c’est ce que l’on entend lorsqu’on dit qu’elle est “la compétence des compétences”. Aucun rapport social ne lui échappe de droit du moment qu’il présent les éléments requis pour constituer une chose publique, les rapports économiques pas plus que les autres; seulement les rapports économiques étant essentiellment privés et différentiels fournissent peu à la chose publique, et par conséquent se prêtend peu à l’intervention de l’État.” (HAURIOU, 1903, p. 17).

85

direitos de poder público (droits de puissance publique). De

outro lado, praticaria atos comuns a qualquer pessoa privada,

em que exerceria direitos de pessoa privada (droits de

personne privée).120 A soberaria, a puissance publique, desse

modo, teria para o autor francês um regime jurídico típico, o

dos droits de puissance publique121, cuja principal

característica seria o privilège du préalable122 – que entre

juristas pátrios ganhou a tradução de princípio da

autoexecutoriedade.123

Hauriou, portanto, estabeleceu uma delimitação entre

público e privado fundada na natureza da atividade – se

pertinente à coisa pública ou não -, de forma similar à teoria

da vontade do Pensamento Jurídico Clássico. Ele não admitia a

atribuição do regime jurídico público a qualquer atividade –

120 Sobre a distinção entre os tipos de direito exercidos pela administração pública, dizia Hauriou: “Si l’on considère l’administration publique comme un exercise de droits, il convient de distinguer différents modes suivant lesquel ces droits sont exercés car, suivant les modes, les conséquences juridiques de l’exercise des droits sont très différents: 1º les droits peuvent être exercés soit au nom de la puissance publique, soit au nom du domaine ou du Fisc, c’est-à-dire au nom de la personnalité publique des administrations, ou au nom de leur personnalité privé; 2º les droits exercés au nom de la pussance publique peuvent l’etre soit par la voie d’autorité, soit par la voie de gestion.” (HAURIOU, 1903, p. 227). 121 Cf. HAURIOU, 1903, p. 796. 122 Assim afirma o próprio autor: “Les droits de puissance publique sont ceux que contiennent de la puissance, c’est-à-dire des privilèges exorbitant du droit commun, notamment le privilège du préalable...” (HAURIOU, 1903, p. 529). 123 A expressão em francês é usada nesse sentido inclusive pela jurisprudência, como se pode perceber no seguinte trecho do voto do Ministro Celso de Mello: “O atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos, que traduz expressão concretizadora do privilège du preálable, não prevalece sobre a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, ainda que se cuide de atividade exercida pelo Poder Público em sede de fiscalização tributária." (Habeas Corpus nº 82.788, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2/6/2006).

86

não admitia, logo, que a incidência da puissance publique

ocorresse livremente sobre a atividade privada. Para ele,

haveria um campo de atuação típico de Estado, e outro típico

do particular.124 Desse modo, a distinção público/privado em

Hauriou cumpre um papel de limitação da atuação estatal típico

do Pensamento Jurídico Clássico, e não de legitimação e

organização dessa atuação como é característico no Pensamento

Jurídico Social.

No Brasil, o Direito Administrativo adaptou a Escola

do Serviço Público na forma de um peculiar sincretismo125. Como

veremos adiante, as diferentes ideias de serviço público

desenvolvidas por Duguit, Jèze, Rolland e Hauriou foram

misturadas e assimiladas como se se tratassem de uma única e

uniforme concepção. O reflexo maior dessa assimilação

uniformizante de ideias antagônicas quanto ao serviço público

se dará no modo como o Direito Administrativo contemporâneo

entende ser o papel do Estado diante da atividade econômica da

sociedade, em que a ideia de serviço público como fundamento

para a ação estatal, defendida especialmente por Duguit, é

misturada com a ideia de Hauriou de que há um regime jurídico

próprio a um conjunto de atividades que, por natureza, seriam

públicas. Antes, porém, de tratarmos do Direito Administrativo

contemporâneo brasileiro, é necessário tratar do modo de

pensamento, segundo a exposição de Kennedy, que seria

característico daquela corrente: o Pensamento Jurídico

Contemporâneo.

124 A mesma conclusão, ao analisar Hauriou, é alcançada por ARAGÃO, 2007, pp. 13-14. 125 Ver LOUREIRO, 2013.

87

1.4. O Pensamento Jurídico Contemporâneo (1945-2000) e sua apropriação pelo Direito brasileiro

Ao Pensamento Jurídico Social, segundo Kennedy,

sucedeu o Modo Contemporâneo do Pensamento Jurídico Ocidental,

ou a consciência jurídica contemporânea126 (adiante referido

aqui como “Pensamento Jurídico Contemporâneo”), como modo de

pensar globalizado do Direito. Segundo o autor, trata-se do

atual pensamento hegemônico no Direito.

O Pensamento Jurídico Contemporâneo, ao contrário de

seus antecessores, não possui um conceito central estruturante

de seu modo de pensar, como eram a teoria da vontade no

Pensamento Jurídico Clássico, ou a interdependência, no

Pensamento Jurídico Social. Isso porque o Pensamento Jurídico

Contemporâneo é um sincretismo de ambos modos de pensar que

lhe antecederam.127

Do Pensamento Jurídico Clássico, o Pensamento

Jurídico Contemporâneo adapta o modo de pensar dedutivo e a

126 No original em inglês: Contemporary Mode of Western Legal Thought. Essa designação para a terceira globalização foi usada por Kennedy em sua obra anterior The Disenchantment of Logically Formal Legal Rationality, or Max Weber’s Sociology in the Genealogy of the Comtemporary Mode of Western Legal Thought (2004). No seu Three Globalizations of Law and Legal Thought: 1850-2000 (2006a), contudo, Kennedy abandona a nomenclatura acima e passa a se referir à “consciência jurídica contemporânea” (contemporary legal consciousness) ou, apenas, à “terceira globlalização”. Optamos, neste trabalho, por usar a denominação “Contemporâneo”, capitalizada, para designar a terceira globalização do pensamento jurídico identificada por Kennedy. 127 Conforme diz Kennedy: “The third globalization resembles the first two in that it is founded on a brutal critique of its predecessor, in this case, the social. But it differs from both CLT and the social in the respect that there is no discernible large integrating concept, parallel to the will theory or the notion of adaptation to interdependence, mediating between normative projects and subsystems of positive law. Rather I would descrive the structure of the consciousness globalized after 1945 as the unsynthesized coexistence of transformed elements of CLT with transformed elements of the social.” (KENNEDY, 2006a, p. 63.)

88

consequente pressuposição de que o direito positivo é um

sistema coerentemente formulado. O pensamento dedutivo

contemporâneo, porém, não se fundamenta nas categorias da

teoria da vontade, mas em uma leitura formalista de cartas de

direitos inseridas nas constituições e nos tratados

internacionais – e cujo ápice discursivo moderno é a ideia de

Direitos Humanos. Esse modo de pensar Kennedy chama de

neoformalismo.

Do Pensamento Jurídico Social, o modo de pensar

contemporâneo adapta a análise da realidade (empiricamente

verificável) como instrumento de justificativa e escolha de

normas jurídicas. Porém, o Pensamento Jurídico Contemporâneo

substitui a ênfase na análise técnica dessa realidade, pela

ponderação entre possibilidades conflitantes. Isto é, ao invés

de confiar à Sociologia (ou à Economia, ou à Ciência Política)

a descoberta daquilo que seria a adequada resposta normativa a

um dado problema da sociedade, o Pensamento Jurídico

Contemporâneo se vale de duas ou mais – e por vezes

conflitantes entre si - respostas possíveis, para então

escolher uma solução. Em contraste com o Pensamento Jurídico

Social, esse modo de pensar contemporâneo produz regras que

são acomodações ad hoc, ao invés de regras sociais que seriam

ditadas por propósitos sociais únicos em novos regimes

jurídicos coerentemente adaptativos.128 Kennedy chama essa

característica do Pensamento Jurídico Contemporâneo de policy

analysis – expressão de difícil tradução para o português, mas

128 “It [policy analysis] produces rules that are ad hoc compromises, rather than the social rules dictated by single social purposes in coherently adaptative new legal regimes.” (KENNEDY, 2006a, p. 63 – o trecho em itálico é o que foi parafraseado acima.)

89

que aqui será referida como “análise jurídica de políticas

públicas”.129

Ambos, análise jurídica de políticas públicas e

neoformalismo, caracterizam o Pensamento Jurídico

Contemporâneo. Do lado da análise de políticas, há um

instrumental de contemporização, de criação de acordos

específicos para administrar projetos políticos conflitantes a

pautar a formação da ordem jurídica. Essa ponderação terá como

critério as consequências racionalmente identificadas para as

opções políticas analisadas, como afirma Castro:

...a análise jurídica de políticas públicas adota como

pressuposto que é possível alcançar um ponto mediano de

equilíbrio, considerado “racional”, entre os interesses

conflitantes, de modo a maximizar globalmente os

benefícios sociais que podem decorrer de um tal

equilíbrio.130

Do lado do neoformalismo, o Pensamento Jurídico

Contemporâneo se apresenta como instrumento de ruptura social

– ao contrário do papel do formalismo no Pensamento Jurídico

Clássico. E, nesse aspecto, se mostra de forma oposta à

acomodação de conflitos que caracteriza a análise de

políticas. Nesse sentido, afirma Kennedy:

O neoformalismo de direito público [...] é um modo

disruptivo, ao invés de acomodatício, que por vezes se

faz valer de instituições que personificaram o Social, e

por vezes se faz valer de instituições que

personificaram o Pensamento Jurídico Clássico. Ele

apela, para além da mescla entre o Pensamento Jurídico

Clássico e o Social representado pela instituição em

129 A tradução é extraída de CASTRO, 2012, p. 206. 130 CASTRO, 2012, p. 206.

90

questão, a valores supostamente transcendentes, mas

também positivados em constituições e tratados, para ir

contra o status quo.131

No Pensamento Jurídico Contemporâneo, análise

jurídica de políticas públicas e neoformalismo são mediados

pela atuação do juiz, que surge como figura heróica seja para

aplicar direitos fundamentais que emergem de uma leitura

formalista da Constituição e dos tratados internacionais, seja

para ponderar opções políticas alternativas a partir das

consequências identificadas pela “racionalidade” jurídica.132

Neoformalismo e análise de políticas, logo, não são mutuamente

excludentes no modo de pensar contemporâneo. São, ao

contrário, combinados, pela ação do juiz, na busca de soluções

para os problemas jurídicos.

A apropriação do Pensamento Jurídico Contemporâneo

pelo Direito brasileiro se deu em variadas narrativas, ora com

ênfase na análise de políticas, ora com ênfase no

neoformalismo. Quanto às relações entre direito e economia,

identificamos quatro narrativas principais no Direito

nacional, que aqui denominaremos: i) Direito Administrativo e

Direito Econômico majoritários; ii) Constituição Dirigente,

iii) Estado Regulador e iv) Análise Econômica do Direito.

131 “Public law neoformalism [...] is a disruptive, rather than managerial mode, brought to bear sometimes on the institutions that embodied the social, and sometimes on the institutions that embodied CLT. It appeals, beyond the settlement between CLT and the social represented by the institution in question, to supposedly transcendent, but also positively enacted values in constitutions or treaties, against the status quo.” (KENNEDY, 2006a, p. 64 – tradução livre.) 132 Cf. KENNEDY, 2006, pp. 63 e ss.

91

Figura 3 - Principais narrativas brasileiras sobre direito e economia no Pensamento Jurídico Contemporâneo

Fonte: elaboração própria do autor

1.4.1. Direito Administrativo e Direito Econômico majoritários

No Brasil, as narrativas em torno da ideia de

serviço público foram incorporadas de modo peculiar, para

compor o Direito Administrativo nacional hoje adotado

majoritariamente pelos cursos de graduação e exames

públicos.133 As diferentes ideias de serviço público

desenvolvidas na França (ver item 1.3 acima) foram adaptadas

de forma a progressivamente misturar as premissas e conclusões

da Escola do Serviço Público, de Duguit e Jèze, com as da

Escola Institucionalista, de Hauriou. Essa mistura de

fundamentações que remontam ao Pensamento Jurídico Social

convive com a estruturação do Direito Administrativo em

categorias abstratas que, por sua vez, remetem à linguagem do

Pensamento Jurídico Clássico. Esse sincretismo de influências

se traduz em um involuntário paradoxo, que explicaremos nas

próximas linhas.

133 Como representantes do que aqui se chama Direito Administrativo hegemônico no Brasil, ver: DI PIETRO, 2009; MEIRELLES, 1989; MOREIRA NETO, 2009; MELLO, 2012; JUSTEN FILHO, 2012.

92

Os teóricos do Direito Administrativo no Brasil em

geral adotam a ideia da Escola do Serviço Público de que o

Estado, e o próprio direito, possuem função instrumental para

a sociedade. O Direito Administrativo, afirmam, teria

fundamento na realização do interesse público.134 Não se

descreve o Direito Administrativo como a organização de

categorias abstratas apreendidas pela racionalidade do

cientista jurídico. À primeira impressão, portanto, esses

doutrinadores constróem uma narrativa consoante a linguagem

funcionalista do Pensamento Jurídico Social, e em especial com

a Escola do Serviço Público de Duguit e Jèze.

Contudo, referidos autores organizam o Direito

Administrativo em conceitos abstratos ordenados

sistematicamente e que decorreriam do espírito, ou da natureza

jurídica, do direito nacional. É sintomático dessa constatação

que a noção de instituto135, formulada por Savigny, seja

empregada rotineiramente para se referir às categorias e aos

conceitos do Direito Administrativo. Os institutos, porém, não

servem apenas para definir e organizar sistematicamente um

direito administrativo nacional; servem sobretudo para

134 Por exemplo: “...o Direito Público se ocupa de interesses da Sociedade como um todo, interesses públicos, cujo atendimento não e um problema pessoal de quem os esteja a curar, mas um dever jurídico inescusável. Assim, não há espaço para a autonomia da vontade, que que substituída pela ideia de função, de dever de atendimento do interesse público. /§/ É o Estado quem, por definição, juridicamente encarna os interesses públicos. O Direito Administrativo é um ramo do Direito Público. Ocupa-se, então, de uma das funções do Estado: a função administrativa.” (MELLO, 2012, p. 27.) 135 Sobre a ideia de “instituto”, Castro afirma: “... a noção de “instituto” jurídico, que designa um conjunto de relações sociais orgânicas, isso é, relaçoes supostamente “espontâneas” e intrinsecamente boas, que se presumem presentes na sociedade e detectáveis pelos juristas (embora não articuláveis pelo povo e por ele livremente submetidas a exame crítico). O instituto jurídico pressupõe a presença espontânea, “intuitiva” de normas, não como um produto da razão, mas como um “sentimento” ou “convicção” – enfim, como um modo de consciência que permanece vinculado a normas cuja validade não pode ser posta em questão.” (CASTRO, 2012, p. 151.)

93

caracterizar um típico regime jurídico administrativo, cuja

aplicação seria delimitada pela distinção entre público e

privado. E nisso os autores do Direito Administrativo

majoritário parecem ter inspiração na Escola Institucionalista

de Hauriou.

Ou seja, a doutrina de Direito Administrativo que é

hegemônica no Brasil incorporou a visão de mundo da Escola do

Serviço Público, mas a instrumentalizou segundo um formalismo

que remete à Escola Institucionalista e que muito se aproxima

do Pensamento Jurídico Clássico. Este é o paradoxo a que nos

referimos: combinar uma estrutura de conceitos formalista com

uma fundamentação instrumental que objetivava negar o

formalismo.

Esse paradoxo se refletiu no tratamento do conceito

de serviço público pelo Direito Administrativo brasileiro. É

com base nesse conceito que autores daquela corrente dividem

público e privado. Na conceituação de serviço público, ora se

dá ênfase ao aspecto instrumental típico do Pensamento

Jurídico Social, ora se dá ênfase à natureza das atividades

que caracterizariam o serviço público, de forma similar ao

Pensamento Jurídico Clássico. Os doutrinadores que identificam

o serviço público pelo critério de essencialidade (“natureza”)

da atividade são chamados por Fernando Herren Aguillar de

essencialistas; ao passo que os que identificam o serviço

público a partir da atribuição de regime jurídico público pelo

direito positivo são chamados por aquele autor de

convencionalistas-legalistas.136

136 AGUILLAR, 2005, pp. 267 e ss.

94

Todavia, ao invés de reconhecer essa dicotomia na

definição de serviço público, e a resultante ambiguidade

semântica do conceito, os doutrinadores brasileiros de Direito

Administrativo passam por vezes a impressão de que se trata de

um conceito consolidado e sobre o qual se formou um seguro

consenso. Essa impressão de segurança conceitual se reflete na

falta de consciência, no Brasil, da distinção entre os

critérios essencialista e convencionalista-legalista, de modo

que por vezes ambos critérios são adotados por único autor.137

Inobstante, surgiu no Brasil aquilo que por vezes é

chamado de conceito tradicional de serviço público. Esse

conceito tradicional identifica o serviço público com

atividades reputadas essenciais, ou típicas de Estado (como

fez Hauriou), que devem ser retiradas da esfera particular de

modo a terem asseguradas pelo Poder Público sua prestação de

forma geral e contínua.138 Além disso, o serviço público é

identificado pela incidência de um regime jurídico público, ou

seja, argumenta-se que serão serviço público aquelas

atividades a que o direito positivo atribuiu um conjunto pré-

delimitado de regras, direitos e obrigações característico do

regime jurídico de direito público (como fez Jèze).139

137 Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, pp. 690-692), por exemplo, fala em substrato material para identificar o critério de essencialidade, e em elemento formal para identificar o critério de incidência do regime jurídico de direito público. 138 Por exemplo: “... assume o caráter de serviço público qualquer atividade cuja consecução se torne indispensável à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência social...” (GRAU, 2010, p. 134). 139 Por exemplo: “Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administratdos, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em

95

Em decorrência dessa dualidade de características

distintivas - regime jurídico e essencialidade -, instalou-se

uma situação em que argumentos conceitualmente contraditórios

são corriqueiramente usados em livros, pareceres e decisões

encadeadas, de modo a alimentar um estilo frequentemente

casuísta de administração. Se determinada atividade é

qualificada – pelo juiz, advogado, parecerista, etc. - como

essencial, trata-se de serviço público, sujeita a um regime

jurídico público pré-determinado. Se não for qualificada

essencial, trata-se de atividade privada, sujeita à livre

iniciativa e regime jurídico privado.

O critério para determinar a essencialidade de uma

atividade e considerá-la pública é outro tema sobre o qual a

doutrina administrativista hegemônica não alcançou um

consenso. De um lado, há doutrinadores que recorrem a critério

formal de essencialidade: aquilo que estiver atribuído pelo

direito positivo como competência de um dos entes da federação

será serviço público. Nesse grupo, há os que atribuem à

Constituição a prerrogativa exclusiva de ser veículo para a

designação de serviços públicos140; e há os que entendem que

lei ordinária é apta para tal.141 De outro lado, há os autores

que se contrapõem ao critério formal, e que buscam um critério

material de essencialidade, em que serviços públicos seriam

aqueles socialmente requeridos nesta condição.142

favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.” (MELLO, 2012, p. 687). 140 Por exemplo: “...os serviços públicos, bem como as respectivas competências para prestá-los, estão todos expressos como funções administrativas na Constituição de 1988...” (MOREIRA NETO, 2009, p. 474). 141 Por exemplo: “É realmente o Estado, por meio do Poder Legislativo, que erige ou não em serviço público tal ou qual atividade, desde que respeite os limites constitucionais.” (MELLO, 2012, p. 707). 142 Cf. GRAU, 2010.

96

As incertezas sobre o conceito de serviço público,

porém, não impediram que ele fosse adotado pelo Direito

Administrativo nacional como critério fundamental de distinção

entre público e privado. Mais do que isso, ao invés de

funcional, o critério mais adotado pelo Direito Administrativo

majoritário foi formal: a definição pelo direito positivo de

uma atividade como serviço a ser prestado pelo Estado. O

critério funcional, traduzido na noção de essencialidade,

quando muito serve apenas de parâmetro para a aplicação do

critério formal – isto é, de parâmetro para se posicionar

quanto à questão de competir à lei ou à Constituição a

definição de que atividades são consideradas serviço público.

Além das discrepâncias na construção do conceito de

serviço público, há também divergências quanto à fundamentação

da intervenção jurídica no domínio econômico – assim

considerada como a ação do Estado em atividades que não sejam

consideradas serviço público. Por exemplo, em obras

tradicionais como as de Hely Lopes Meirelles143 e Celso Antônio

143 O seguinte trecho é ilustrativo da posição de Meirelles: “Os Estados sociais-liberais, como o nosso, conquanto reconheçam e assegurem a propriedade privada e a livre empresa, condicionam o uso dessa mesma propriedade e o exercício das atividades econômicas ao bem-estar social (Const. Rep., art. 170). /§/ Para o uso e gozo dos bens e riquezas particulares, o Poder Público impõe normas e limites, e, quando o interesse público o exige, intervém na propriedade privada e na ordem econômica, através de atos de império tendentes a satisfazer as exigências coletivas e a reprimir a conduta antissocial da iniciativa particular. [...] Os fundamentos da intervenção na propriedade e atuação no domínio econômico, repousam na necessidade de proteção do Estado aos interesses da comunidade. Os interesses coletivos representam o direito do maior número, e, por isso mesmo, quando em conflito com os interesses individuais, estes cedem àqueles, em atenção ao direito da maioria, que é a base do regime democrático e do direito civil moderno.” (MEIRELLES, 1989, pp. 496-497). Nesta tese, optamos por utilizar a edição de 1989 desse conhecido administrativista paulista, por ter sido essa uma das últimas edições que o próprio Hely Lopes Meirelles atualizou. Após seu falecimento, em 1990, o seu bem sucedido manual continuou a ser atualizado por terceiros – o que, para os fins aqui pretendidos, é prejudicial para análise das ideias

97

Bandeira de Mello144, a intervenção na ordem econômica é tida

como instrumento para a satisfação do interesse público, em

detrimento dos interesses individuais.145 Mas outros teóricos

cujos manuais de Direito Administrativo são também de ampla

adoção, como Diogo de Figueiredo Moreira Neto146 e Marçal

daquele autor. Por isso a preferência por uma edição defasada em termos de atualização, porém fiel ao pensamento original do autor. 144 Celso Antônio Bandeira de Mello concebe o Direito Administrativo como um sistema coerente e lógico, ao que explica que: “Juridicamente, esta caracterização consiste, no Direito Administrativo, segundo nosso modo de ver, na atribuição de uma disciplina normativa peculiar que, fundamentalmente, se delineia em função da consagração de dois princípios: a) a supremacia do interesse público sobre o privado; b) a indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos.” (MELLO, 2012, pp. 55-56). É à luz desses princípios que o autor trata da intervenção na ordem econômica: “Considerando-se panoramicamente a interferência do Estado na ordem econômica, percebe-se que esta pode ocorrer de três modos; a saber: (a) ora dar-se-á através de seu “poder de polícia”, isto é, mediante leis e atos administrativos expedidos para executá-las, como “agente normativo e regulador da atividade econômica” – caso no qual exercerá funções de “fiscalização” e em que o “planejamento” que conceber será meramente “indicativo para o setor privado” e “determinante para o setor público”, tudo conforme prevê o art. 174 [da Constituição Federal]; (b) ora ele próprio, em casos excepcionais, como foi dito, atuará empresarialmente, mediante pessoas que cria com tal objetivo; e (c) ora o fará mediante incentivos à iniciativa privada (também supostos no art. 174), estimulando-a com favores fiscais ou financiamentos, até mesmo a fundo perdido. /§/ Em todos os casos, necessariamente, a interferência estatal terá que estar voltada à satisfação dos fins dantes aludidos como sendo os caracterizadores do Estado Brasileiro; e jamais – sob pena de nulidade – poderá expressar tendência ou diretriz antinômica ou gravosa àqueles valores.”(MELLO, 2012, p. 810). 145 Hely Lopes Meirelles e Celso Antônio Bandeira de Mello são representantes de pensadores que, a seguir, qualificaremos como influencidos pelo Pensamento Jurídico Social – um dos três modos globalizados de pensar o Direito descritos em KENNEDY (2006) e que adotaremos como referência nesta tese. 146 Diz esse autor: “O regime constitucional da economia de mercado parte de uma constatação extremamente simples: a de que os processos econômicos seguem uma ordem espontânea decorrente do livre jogo dos mercados; uma ordem que deve ser preservada, até mesmo por ser o corolário da liberdade das pessoas; mas reconhece, igualmente, que essa ordem espontânea não está imune a deformações e a distorções, endógenas e exógenas, razão pela qual cumpre também preservá-la e defendê-la pela intervenção de uma ordem impositiva paralela, contra os abusos que a comprometam e a deformem. /§/ Por isso, para a prevenção dessas inevitáveis disfunções e para a eventual correção dessas distorções, o Estado interfere na ordem econômica através de princípios, de normas e de instituições administrativas que conformam, em seu conjunto, um específico ordenamento econômico imperativamente imposto, cometendo, para este fim, à Administração Pública, sob a

98

Justen Filho147, justificam a intervenção como meio para suprir

eventuais disfunções ou falhas do mercado, ou para alcançar

objetivos sociais abrigados por direitos fundamentais.148

Em todos os casos, não obstante, está presente a

ideia de que a atuação do Estado na ordem econômica é a

influência de um elemento externo (o direito produzido pelo

Estado) ao que seria o ambiente natural do mercado. Esse

elemento externo poderia, por fundamentos diversos, interferir

na liberdade (pressuposta por essa visão) que os agentes do

mercado teriam de estipular suas regras de conduta e de se

organizar para produzir, fazer circular e consumir bens e

serviços. Mas permanece sempre a ideia central de que a

atuação do Estado na economia é uma influência externa a uma

ordem espontânea (ou natural). Logo, uma dada política

econômica estaria restrita a ser implementada por instrumentos

jurídicos aprioristicamente considerados externos à economia.

disciplina do Direito Administrativo, a correspondente função executiva desse ordenamento econômico.” (MOREIRA NETO, 2009, pp. 501-502) 147 A posição de Justen Filho é ilustrada pelo trecho a seguir: "Embora seja costumeira a alusão a regulação econômica, isso não significa que a regulação seja dotada de uma única dimensão. Toda regulação é concomitantemente econômica e social. Isso significa que a intervenção estatal no âmbito econômico corresponde sempre à promoção de valores sociais.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 637.) 148 Essa visão, adicionalmente, defende que a atuação do Estado na economia deve ser preferencialmente por intervenção indireta – ao que defende não apenas a existência de um princípio da subsidiariedade da atuação estatal na economia, mas também que a efetivação desse princípio implica a escolha preferencial por instrumentos que não envolvam a produção de bens e serviços por entes sob controle do Estado. Exemplo dessa perspectiva se encontra no trecho a seguir: “A regulação consiste na opção preferencial do Estado pela intervenção indireta, puramente normativa. Revela a concepção de que a solução política mais adequada para obter os fins buscados consiste não no exercício direto e imediato pelo Estado de todas as atividades de interesse público.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 639). Trata-se de abordagem típica do que adiante identificaremos como a corrente do Estado Regulador no pensamento jurídico contemporâneo.

99

Nesse sentido, a posição do Direito Administrativo

nacional sobre o papel do direito na economia se caracteriza

por converter em premissa a ideia de que a atuação do Estado é

externa a um mercado caracterizado como uma ordem espontânea,

ou, em outras palavras, de que os instrumentos jurídicos da

política econômica são externos ao campo das relações

econômicas. Essa premissa ganha, então, função axiomática na

análise do papel do direito na disciplina da ordem econômica.

Isto é, não se questiona se e como instituições jurídicas

ajudam a formar e moldar relações econômicas, mas apenas se

problematiza de que forma as instituições jurídicas

constrangem ou limitam as relações econômicas, e se esse

constrangimento é ou não justificado. Assim, o Direito

Administrativo majoritário não questiona se a atuação do

Estado, de fato, é externa à ordem supostamente espontânea do

mercado, e deixa de levar em consideração o caráter formativo

da política econômica estatal. Ao contrário, constróem-se

narrativas que derivam da suposta constatação de que a

política econômica é externa ao domínio econômico, para ora

defender, ora se opor, à atuação do Estado na economia.

Exemplo é a abordagem de Celso Antônio Bandeira de Mello:

... a Constituição estabeleceu uma grande divisão: de um

lado, atividades que são da alçada dos particulares – as

econômicas; e, de outro, atividades que são da alçada do

Estado, logo implicitamente qualificadas como

juridicamente não econômicas – os serviços públicos. De

par com elas, contemplou, ainda, atividades que podem

ser da alçada de uns ou de outro.

O primeiro discrímen tem supina importância, pois é por

via dele que, em termos práticos, se assegura a

existência de um regime capitalista no país. Com efeito,

ressalvados os monopólios estatais já

constitucionalmente designados (petróleo, gás, minérios

e minerais nucleares, nos termos configurados no art.

100

177, I-IV [da Constituição Federal]), as atividades da

alçada dos particulares – vale dizer, atividades

econômicas – só põem ser desempenhadas pelo Estado em

caráter absolutamente excepcional, isto é, em dois

casos: quando isto for necessário por um imperativo da

segurança nacional ou quando demandado por relevante

interesse público, conforme definidos em lei (art. 173)

[...].

Inversamente, as atividades previstas como da alçada do

Estado – ou seja, os serviços públicos – só podem ser

desempenhadas por particulares se o Estado os credenciar

a prestá-las (art. 175 e art. 21, XI e XII), por ato

explícito, sem prejuízo de lhes conservar a

titularidade. Ressalvam-se aqueloutras [...] em que a

atividade não é exclusiva do Estado (educação, saúde,

assistência social e previdência social), e por isto os

particulares são livres para exercê-las.149

O autor parte da ideia de que há um mercado que é

reflexo de uma ordem espontânea ou onde prevalecem meios

tendentes a realizar espontaneamente determinados fins. Uma

vez que se acomete ao Estado uma determinada atividade

149 MELLO, 2012, p. 809 – negritos ausentes do original. Essas premissas também norteiam a exposição de Di Pietro sobre o tema: “Ocorre que a atuação do Estado não se limita aos serviços públicos; ele às vezes sai da órbita de ação que lhe é própria e vai atuar no âmbito de atividade reservada essencialmente à iniciativa privada; trata-se da atividade de intervenção...”(DI PIETRO, 2009, p. 417). Essa narrativa do Direito Administrativo é também incorporada pelo Direito Econômico, como fica claro na exposição de Fernando Herren Aguillar: “O Direito Econômico tutela relações privadas em face de interesses públicos econômicos. Constitui espaço de interferência estatal no exercício de funções privadas, para o fim de influenciar a tomada de decisões em ambiente de mercado. Conota atividade e formatação positiva de mercado. Portanto a regulação que produz está intimamente relacionada à deliberada persecução de certos fins, em oposição ao que se passa no âmbito do direito privado, que se caracteriza antes pela preservação de meios tendentes a realizar espontaneamente determinados fins.” (AGUILLAR, 1999, p. 101 – grifos ausentes do original.) Adiante, esse autor ainda acrescenta: “Em conclusão, o Direito Econômico é veículo da ação estatal onde for necessário, segundo interesses do Estado, influenciar o conjunto das decisões econômicas individuais.” (p. 102).

101

mediante a caracterização de serviço público, o autor reputa

essa atividade como excluída daquela ordem espontânea. A opção

pelo serviço público não é opção pela criação ou pela

construção de um novo modo de produzir, transacionar ou

consumir bens e serviços. É uma opção de que a produção de

determinados bens e serviços seja atribuída ao Estado, em

detrimento dos particulares. É, portanto, a suposta

substituição da dita ordem espontânea da economia pelo

planejamento estatal.

Figura 4 - Atuação do direito na economia segundo o Direito Administrativo majoritário

Fonte: elaboração do autor.

São essas opções, sintetizadas na Figura 4 acima,

que o Direito Administrativo coloca à disposição de uma dada

política econômica. Portanto, também a política econômica é

vista como interventiva na ordem econômica – em outras

palavras, como limitação ou supressão do mercado pelo

planejamento estatal. Com efeito, nas palavras de Carvalho,

políticas econômicas são visualizadas como espaço de

interferência do Estado com o objetivo de geral de influenciar

102

a tomada de decisões dos agentes privados num ambiente de

mercado.150

Essa formulação do Direito Administrativo – que até

hoje caracteriza a posição hegemônica – foi incorporada pelo

Direito Econômico no Brasil.151 Os tratados clássicos de

Direito Econômico, e aqueles que ainda hoje seguem essa

tradição, se orientam a sistematizar os mecanismos de

“intervenção do Estado” na economia. Por ter, em sua origem,

forte influência de ideias de dirigismo econômico e

planejamento estatal da economia, esse Direito Econômico

inicialmente se estrutura como instrumento para justificar a

intervenção do Estado na economia.152 Sendo assim, o Direito

Econômico tem como um de seus temas centrais identificar qual

o âmbito de atuação típico do Estado. A definição do que é

esfera do Estado, e do que é esfera da economia, é justificada

a partir do marco determinado pela ideia de serviço público. A

partir dessa ideia, o Direito Econômico constrói um

referencial teórico para o planejamento econômico e para o

dirigismo estatal, ao mesmo tempo em que tenta fixar um mínimo

de proteção à iniciativa privada. As atividades consideradas

serviço público estariam imunes à proteção usualmente

conferida à livre iniciativa, pois estariam retiradas da

esfera privada.

No Direito Administrativo e no Direito Econômico

dominantes, a expansão ou retração do espectro de atividades

150 CARVALHO, Carlos Eduardo Vieira de, 2007, p. 33. 151 No mesmo sentido, Marcus Faro de Castro considera o Direito Econômico nitidamente uma especialização do Direito Administrativo (CASTRO, 2005, p. 2). 152 Cf. CASTRO, 2005, p. 2-3.

103

consideradas “serviço público”, por sua vez, é objeto de

intenso debate ideológico.153 Esse debate é polarizado entre

visões que ora remetem ao liberalismo do Pensamento Jurídico

Clássico – que privilegiam o livre mercado e exigem

absenteísmo estatal –, ora remetem à primazia da função social

do Pensamento Jurídico Social – que privilegiam o planejamento

estatal da economia e a direta produção por entes estatais de

bens e serviços reputados essenciais à coletividade. Essa

disputa se deflagra no campo do formalismo: de um lado, há a

visão de que a abstenção do Estado de ingerência no livre

mercado seria um mandamento das normas constitucionais. De

outro lado, opção oposta: a maior intervenção do Estado na

economia é que seria determinada pelas regras da Constituição.

Cada uma dessas duas opções é baseada em uma visão ideológica

particular. A defesa de que a ordem constitucional formalmente

positivada adotou uma determinada ideologia, por isso, torna-

se elemento de disputa entre teóricos do Direito Econômico.154

Nesse contexto, ganhou relevo no Direito Econômico a

noção de ideologia constitucionalmente adotada, inicialmente

adotada por Washington Peluso Albino de Souza.155 A

153 Nesta tese, ao falarmos em ideologia, nos referimos àquilo que Norberto Bobbio nomeiou de significado fraco do termo, conforme relata Mario Stoppino: “No seu significado fraco, Ideologia designa o genus, ou a species diversamente definida, dos sistmas de crenças políticas: um conjunto de ideias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos.” (STOPPINO, 1995, p. 585). 154 Como relata Carvalho: “A abordagem de um tema que envolve a disponibilização, pelo Estado, de serviços essenciais a seus cidadãos, mediante adequada formulação de políticas econômicas, levanta questões como: avaliar o espaço conferido à atuação estatal à vista do “sistema econômico” constitucionalmente consagrado e identificar o espaço (necessariamente) liberado à iniciativa privada quando se cuida do “modo capitalista de produção”. Essa linha demarcatória reflete uma conotação ideológica.” (CARVALHO, 2007, p. 78). 155 Cf. SOUZA, 2003, passim. Washington Peluso Albino de Souza é um dos pioneiros na instituição do Direito Econômico como ramo de estudos do

104

Constituição, segundo Peluso, seria ideologicamente mista, e

isso ao final lhe conferiria neutralidade frente a opções

ideológicas de conjuntura. Caberia ao intérprete

constitucional ponderar as ideologias já postas nas normas

constitucionais e, então, identificar os campos próprios de

atuação do Estado (serviço público) e dos particulares

(atividade privada).156 Eventual estatismo decorrente da

qualificação de atividades como serviço público se

justificaria como reflexo da ordem normativa pré-determinada

pela Constituição. Da mesma forma, também seria a Constituição

o local de proteção de um conjunto de atividades tipicamente

privadas, as quais somente poderiam ser constrangidas na

medida em que o Estado se valesse dos mecanismos legítimos de

intervenção da atividade econômica. A posição de Peluso é

assim resumida por Carvalho:

...a “ideologia constitucional” não guarda compromisso

com modelos puros de “ideologia” como o “liberalismo” ou

o “socialismo”, mas com aquele concretamente

recepcionado pelo texto constitucional. Desse modo,

naquelas constituições que correspondem aos modelos

“mistos” ou “plurais” recepcionam-se dispositivos

passíveis de “conflitos ideológicos” que dizem respeito,

primordialmente, à “liberdade de iniciativa”, à “atuação

estatal na área econômica”, ao “direito de propriedade”,

à “função social da propriedade”, à “justiça social”.

Veja-se que a evolução do sistema capitalista, com a

progressiva absorção de elementos ideológicos de caráter

socializante, veio a configurar um modelo híbrido ou

Direito brasileiro e como cadeira de ensino nos cursos de Direito nacional. O papel pioneiro de Peluso é relatado em Aguillar, 2006, pp. 33-34. 156 SOUZA, 2003, pp. 75-87.

105

composto a representar, conforme o contexto, uma maior

ou menor aproximação do Estado com a área econômica.157

A resolução do conflito ideológico, então, estaria

em uma leitura formal da Constituição, a partir do papel do

intérprete na mediação de diferentes opções políticas. O

intérprete encontraria no texto constitucional aquilo que

seria a “ideologia constitucionalmente adotada” – que seria

variável de acordo com dada caso, a depender da opção política

que teria dado origem à regra constitucional aplicável ao

caso. Essa ideia encontra paralelo na policy analysis que

Duncan Kennedy atribui ao Pensamento Jurídico Contemporâneo,

na medida em que também busca a construção de soluções ad hoc

para conflitos entre projetos políticos distintos.

Por sua vez, o recurso ao formalismo – a previsão no

texto constitucional – serve de parâmetro para se encontrar a

“ideologia constitucionalmente adotada”. Com esse recurso, o

Direito Econômico resolve – ao menos discursivamente - a

disputa formal entre maior ou menor intervenção do Estado no

mercado. A adoção das ideias de Peluso pelos tratadistas de

Direito Econômico158 serviu de mote para que também o então

novo ramo de estudo do Direito encampasse a postura formalista

desenvolvida pelo Direito Administrativo. O critério formal

adotado por ambos foi considerar serviço público aquelas

atividades assim designadas pelo direito positivo. E assim,

para essas atividades, justificar maior grau de ação do

Estado.

157 CARVALHO, 2007, p. 80. 158 São exemplos de tratados que adotam Peluso como referência: FONSECA, 2004; VAZ, 1993; e o próprio CARVALHO, 2007.

106

Posição um tanto diferente é a de Eros Roberto Grau.

Este autor merece destaque especial pela particularidade de

seu pensamento e pela influência de suas ideias.159 Eros Grau

defende que o mercado é uma instituição jurídica constituída

pelo direito positivo.160 Nesse aspecto, a concepção de mercado

defendida por Grau é contrária àquela partilhada pelo Direito

Administrativo e pelo Direito Econômico majoritários. Com

efeito, Eros Grau rejeita a ideia de que mercado seria uma

ordem espontânea, mas afirma:

(i) a sociedade capitalista é essencialmente jurídica e

nela o direito atua como mediação específica e

necessária das relações de produção que lhe são

próprias;

(ii) essas relações de produção não poderiam

estabelecer-se, nem poderiam reproduzir-se sem a forma

do direito positivo, direito posto pelo Estado;

(iii) este direito posto pelo Estado surge para

disciplinar os mercados, de modo que se pode dizer que

ele se presta a permitir a fluência da circulação

mercantil, para domesticar os determinismos

econômicos.161

Todavia, não obstante o autor reconheça o papel do

direito na formação do mercado (ou, ainda, dos mercados),

este, uma vez construído pelo direito positivo, seria um

espaço de fluência da circulação mercantil que reclama atuação

159 Além da enorme repercussão de seus estudos sobre Direito Econômico, Eros Roberto Grau foi ainda Ministro do Supremo Tribunal Federal entre 17 de junho de 2004 e 30 de julho de 2010. Entre outros temas, seus votos tiveram papel determinante na formação da jurisprudência daquele tribunal sobre a diferenciação entre serviço público e as demais atividades econômicas. 160 GRAU, 2010, pp. 27 a 33. 161 GRAU, 2010, p. 30.

107

estatal mínima.162 Assim, Grau acaba por conferir ao mercado a

mesma característica de espontaneidade dos demais autores

analisados – apenas atribui essa característica ao resultado

da existência de um direito positivo que a assegura.

Essa visão acaba também por limitar a política

econômica aos mesmos instrumentos jurídicos propagados pelos

demais autores do Direito Administrativo e do Direito

Econômico. Desse modo, para os fins deste trabalho, Grau pode

ser enquadrado dentro dessas correntes, apesar de se

diferenciar dos demais autores do Direito Econômico quanto à

forma como compreende o mercado e, em decorrência, a ordem

econômica.163 Tanto é assim que a forma como Eros Grau

162 Diz o autor: "Mercado deixa então de significar exclusivamente o lugar no qual são praticadas relações de troca, passando a expressar um projeto político, como princípio de organização social. [...] A noção de mercado como atividade – conjunto de operações econômicas e modelo de trocas; conjunto de contratos, convenções e transações relativas a bens ou operações realizadas no lugar/mercado – supõe a livre competição. /§/ Como o mercado é instituição jurídica, constituída pelo direito posto pelo Estado, deste se reclama, a um tempo só, que garanta a liberdade econômica e, concomitantemente, opere a sua regulamentação [=regulação]. Sendo atividade, as regras do mercado consubstanciam o seu substrato. [...] Dizendo de outro modo: o mercado exige, para satisfação do seu interesse, o afastamento ou a redução de qualquer entrave social, político ou moral ao processo de acumulação de capital. Reclama atuação estatal para garantir a fluência de suas relações, porém, ao mesmo tempo, exige que essa atuação seja mínima.” (GRAU, 2010, pp. 33-35 – grifo ausente do original.) 163 Cf. GRAU, 2010, pp. 58-89. Em síntese, Grau distingue entre três significados para a ordem econômica: i) modo de ser empírico de uma determinada economia concreta (GRAU, 2010, p. 64); ii) o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta), qualquer que seja sua natureza (jurídica, religiosa, moral, etc.), que respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos (Idem, p. 65); iii) ordem jurídica da economia (Idem, p. 65). A partir dessa distinção, Grau se dedica a analisar a utilidade de cada um dos significados acima para o Direito. A utilidade se daria pela possibilidade de se esclarecer o conteúdo normativo de uma ordem econômica e, assim, explicitar eventual programa de realização da Constituição Dirigente. A conclusão do autor é pela inutilidade da expressão, uma vez que não é possível identificar o que é pertencente de uma ordem econômica frente a normas constitucionais e infraconstitucionais que disciplinam diversos outros aspectos da vida econômica. A ordem econômica, assim, seria expressão de todo o Direito, e não apenas das disposições de uma Constituição Econômica.

108

compreende e classifica a atividade econômica164 (representada

na Figura 5 abaixo) é indistintamente utilizada por autores do

Direito Econômico e do Direito Administrativo majoritário, sem

que haja ressalva quanto às diferenças de compreensão do papel

do direito na formação da economia.

Figura 5 - A atividade econômica segundo Eros Grau

Fonte: elaboração do autor.

164 Nesse sentido, afirma Grau: “... como a expressão “ordem econômica”, no contexto do art. 170 do texto constitucional, é conversível nas expressões “relações econômicas” ou “atividade econômica”, cumpre-nos precisar, também, que atividade econômica é esta[...]. /§/ [...] Salientei, no próprio texto, o fato de, no trecho a seguir transcrito, utilizar-me da expressão atividade econômica em distintos sentidos: /§/ “Ao afirmar que serviço público é tipo de atividade econômica, a ela atribuí a significação de gênero no qual se inclui a espécie, serviço público. /§/ “Ao afirmar que o serviço público está para o setor público assim como a atividade econômica está para o setor privado, a ela atribuí a significação de espécie.” /§/ Daí a verificação de que o gênero – atividade econômica – compreende duas espécies: o serviço público e a atividade econômica. /§/ Estamos em condições, assim, de superar a ambigüidade que assume, no seio da linguagem jurídica e no bojo do texto constitucional, esta última expressão. Para que, no entanto, se a supere, impõe-se qualificamos a expressão, de modo que desde logo possamos identificar de uma banda as hipóteses nas quais ela conota gênero, de outra as hipóteses nas quais ela conota espécie do gênero. A seguinte convenção, então, proponho: atividade econômica em sentido amplo conota gênero; atividade econômica em sentido estrito, a espécie.” (GRAU, 2010, pp. 101-102.)

109

Adicionalmente, ao explicar a sua classificação da

atividade econômica, Grau faz referência à mesma distinção

entre mercado e Estado característica da visão majoritária do

Direito Administrativo e do Direito Econômico:

Pretende o capital reservar para sua exploração, como

atividade econômica em sentido estrito, todas as

matérias que possam ser, imediata ou potencialmente,

objeto de profícua especulação lucrativa. Já o trabalho

aspira atribua-se ao Estado, para que este as desenvolva

não de modo especulativo, o maior número possível de

atividades econômicas (em sentido amplo). É a partir

deste confronto – do estado em que tal confronto se

encontrar, em determinado momento histórico – que se

ampliarão ou reduzirão, correspectivamente, os âmbitos

das atividades econômicas em sentido estrito e dos

serviços públicos. Evidentemente, a ampliação ou

retração de um ou outro desses campos será função do

poder de reivindicação, instrumentado por poder

político, de um e outro, capital e trabalho. A

definição, pois, desta ou daquela parcela da atividade

econômica em sentido amplo como serviço público é –

permanecemos a raciocinar em termos de modelo ideal –

decorrência da captação, no universo da realidade

social, de elementos que informem adequadamente o

estado, em um certo momento histórico, do confronto

entre interesses do capital e do trabalho.

Não obstante as dificuldades que se antepõem ao

discernimento da linha que traça os limites entre os

dois campos, ele se impõe: intervenção é atuação na área

da atividade econômica em sentido estrito; exploração de

atividade econômica em sentido estrito e prestação de

110

serviço público estão sujeitas a distintos regimes

jurídicos (arts. 173 e 175 da Constituição de 1988).165

Ao falar em sujeição a distintos regimes jurídicos,

Grau estabelece não apenas que a assunção de determinada

atividade econômica pelo Estado a retira do mercado, como a

sujeita a regras próprias (um regime jurídico distinto e

específico) – o que, como vimos, é característico da visão

majoritária do Direito Administrativo e do Direito Econômico.

Dessa forma, também para Eros Grau, a política econômica é

essencialmente intervenção de um terceiro (o Estado) na esfera

de outrem (o particular).166

Em síntese, tanto para o Direito Administrativo,

como para o Direito Econômico, o conceito de serviço público

foi central para a construção de uma dicotomia público-privado

caracterizada pela associação entre privado e mercado como

ordem espontânea. Essa dicotomia, por sua vez, se tornou

equivalente da dicotomia Estado-Economia. Entre os autores

dessas correntes dominou a narrativa que parte da ideia de que

haveria um campo de atividades típico da iniciativa privada, e

outro campo típico da atuação estatal, e que em decorrência

haveria um regime jurídico (conjunto de direitos e deveres)

típico da esfera privada, e outro regime jurídico típico para

a esfera pública.

165 GRAU, 2010, pp. 108-109 – negrito ausente do original. 166 É o que Eros Grau defende a seguir: “Toda atuação estatal é expressiva de um ato de intervenção; de outra banda, relembre-se que o debate a propóito da inconveniência ou incorreção do uso dos vocábulos intervenção e intervencionismo é inútil, inócuo. Logo, se o significado a expressar é o mesmo, pouco importa se faça uso seja da expressão – atuação (ou ação) estatal – seja do vocábulo – intervenção. Aludimos, então, a atuação do Estado da esferea do público, ou seja, na esfera do privado (área de titularidade do setor privado). A intervenção, pois, na medida em que o vocábulo expressa, na sua conotação mais vigorosa, precisamente atuação em área de outrem.” (GRAU, 2010, p. 91.)

111

Essa visão, ainda extremamente influente, não

engloba todas as narrativas que o Pensamento Jurídico

Contemporâneo ensejou no Brasil. Outras visões - algumas

alternativas, outras complementares - ganharam relevo e

influência no Brasil, sobretudo a partir do final do séc. XX.

A seguir, abordaremos aquelas que, ao lado do Direito

Administrativo e do Direito Econômico acima caracterizados,

entendemos serem as mais influentes na doutrina brasileira

atualmente.

1.4.2. Constituição Dirigente

O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho é

figura central para essa corrente, sendo inclusive um dos que

popularizou o uso da expressão “Constituição Dirigente”.167

Segundo Canotilho:

O problema central da Constituição dirigente consistia

(e consiste) em saber se, através de “programas”,

tarefas e directivas constitucinais, se conseguiria uma

imediaticidade actuativa e concretizável das normas e

princípios constitucionais de fora a acabar com os

queixumes constitucionais da “constituição não cumprida”

ou da “não concretização da constituição”.168

Para chegar à imediaticidade a que alude Canotilho,

a corrente da Constituição Dirigente busca no texto

constitucional os arrimos jurídico-dogmáticos169 para afirmar

167 É preciso destacar, porém, que Canotilho reviu seu posicionamento teórico e hoje tem postura crítica quanto à Constituição dirigente. Ver: CANOTILHO, 2008, pp. 101-130. 168 CANOTILHO, 2008, p. 32. 169 Cf. CANOTILHO, 2008, p. 32.

112

quais seriam, ou deveriam ser, os limites materiais que

vinculariam os legisladores e que exigiriam do Executivo ações

concretas para assegurar a fruição de direitos sociais e

coletivos. Sendo assim, a Constituição Dirigente se estrutura

em moldes próximos à descrição que Kennedy faz do

neoformalismo do Pensamento Jurídico Contemporâneo:

O neoformalismo de direito público [...] é um modo [de

pensamento] disruptor, ao invés de conciliatório, que

abriga em alguns casos instituições que incorporavam o

[Pensamento Jurídico] Social, e em outros casos

instituições que incorporavam o PJC [Pensamento Jurídico

Clássico]. Ele apela [...] a valores supostamente

transcendentes, mas também positivamente legislados em

constituições e tratados, contra o status quo.170

No Brasil, a Constituição Dirigente se desenvolveu

tendo por base, primeiramente, o fato de a Constituição

brasileira - tal como em outras tantas constituições

elaboradas após a Segunda Guerra Mundial - conter em sua

declaração de direitos não apenas os direitos individuais

típicos das constituições do séc XVIII, mas também direitos

sociais e prestacionais.171 A inclusão desses direitos é

reflexo de uma específica intenção política de usar regras

constitucionais não apenas para organizar a estrutura

170 “Public law neoformalism [...] is a disruptive, rather than managerial mode, brought to bear sometimes on the institutions that embodied the social, and sometimes on the institutions that embodied CLT. It appeals [...] to supposedly transcendent, but also positively enacted values in constitutions or treaties, against the status quo.” (KENNEDY, 2006, p. 64 – tradução livre.) 171 Nesse sentido: “Enquanto os direitos de abstenção visam assegurar o status quo do indivíduo, os direitos a prestação exigem que o Estado aja para atenuar desigualdades, com isso estabelecendo moldes para o futuro da sociedade.”(MENDES et. al., 2007, p. 247.)

113

econômica existente, mas modificá-la.172 Coerente com a visão

de Kennedy sobre o neoformalismo no Pensamento Jurídico

Contemporâneo, a narrativa que se constrói a partir da

presença na Constituição de direitos sociais e prestacionais

visa a modificar o status quo, a alterar a ordem econômica. O

recurso a regras formais é, desse modo, meio para veicular a

pretensão de transformação social. Como narra Bercovici:

A diferença essencial, que surge a partir do

constitucionalismo social do século XX, e vai marcar o

debate sobre a Constituição Econômica, é o fato de que

as Constituições não pretendem mais receber a estrutura

econômica existente, mas querem alterá-la. As

Constituições positivam tarefas e políticas a serem

realizadas no domínio econômico e social para atingir

certos objetivos. A ordem econômica destas Constituições

é “programática”173, hoje diríamos “dirigente”.

As normas programáticas são identificadas pela

corrente da Constituição Dirigente com os direitos sociais e

172 Esse intuito fica evidente, por exemplo, no seguinte trecho de Fábio Konder Comparato: “As Constituições do moderno Estado Dirigente impõem, todas, certos objetivos ao corpo político como um todo – órgãos estatais e sociedade civil. Tais objetivos podem ser gerais ou especiais; estes últimos, obviamente, coordenados àqueles. Na Constituição brasileira de 1988, por exemplo, os objetivos indicados no art. 3º orientam todo o funcionamento do Estado e a organização da sociedade. Já a busca do pleno emprego é uma finalidade especial da ordem econômica (art. 170 VIII). No que diz respeito à política nacional de educação, que deve ser objeto de um plano plurianual, os seus objetivos específicos estão expostos no art. 214, e a eles deve ser acrescida a progressiva extensão dos princípios da obrigatoriedade e da gratuidade do ensino médio (art. 208 II). As finalidades próprias da atividade de assistência social, por sua vez, vêm declaradas no art. 203.” (COMPARATO, 1998, p. 45). 173 Bercovici, no trecho acima, faz equivalência entre a ideia de Constituição “dirigente” e a de Constituição “programática”. Efetivamente, a narrativa da Constituição Dirigente se ampara no conceito de “norma constitucional programática” e no debate doutrinário e jurisprudencial acerca da aplicabilidade imediata dessas normas, ou da necessidade de sua suplementação por meio da ação do Poder Legislativo. Sobre o debate em torno da aplicabilidade das normas programáticas no Direito Constitucional brasileiro, ver: BONAVIDES, 1999, pp. 244 e ss.; MENDES et. al., 2007, pp.247-255;

114

prestacionais, também chamados direitos fundamentais de

segunda e terceira gerações. A referência a direitos de

segunda e terceira gerações tem por base a ideia de que uma

dada constituição é reflexo de um processo histórico, tal como

transparece na caracterização desses direitos feita a seguir

por Norberto Bobbio - caracterização essa que é influente para

a corrente da Constituição Dirigente:

Pois bem, o que distingue o momento atual em relação às

épocas precedentes e reforça a demanda por novos

direitos é a forma de poder que prevalece sobre todos os

outros. A luta pelos direitos teve como primeiro

adversário o poder religioso; depois, o poder político;

e, por fim, o poder econômico. Hoje, as ameaças à vida,

à liberdade e à segurança podem vir do poder sempre

maior que as conquistas da ciência e das aplicações dela

derivadas dão a quem está em condição de usá-las. [...]

Os direitos da nova geração, como foram chamados [...]

nascem todos dos perigos à vida, à liberdade e à

segurança, provenientes do aumento do progresso

tecnológico.174

Segundo essa narrativa, a inserção de direitos

sociais e prestacionais no texto constitucional resultaria em

uma Constituição conflituosa. Conflituosa porque abrigaria o

choque potencial entre direitos individuais - mais afetos à

manutenção do status quo - e direitos sociais e prestacionais

- voltados a alterar a estrutura econômica existente. Mas se

esse potencial conflito é identificado por uma leitura

neoformalista da Constituição, ele se resolve (segundo essa

narrativa) pela técnica de ponderação de valores ou bens

174 BOBBIO, 2004, p. 96.

115

constitucionais175 – ou, ainda, pela aplicação do chamado

princípio da proporcionalidade:

O juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao

princípio da proporcionalidade, que exige que o

sacrifício de um direito seja útil para a solução do

problema, que não haja outro meio menos danoso para

atingir o resultado desejado e que seja proporcional em

sentido estrito, isto é, que o ônus imposto ao

sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende

obter com a solução.176

Por conseguinte, na medida em que assume a

ponderação de valores (ou o princípio da proporcinalidade), a

narrativa da Constituição Dirigente agrega ao pensamento

neoformalista a análise jurídica de políticas. Ao combinar

essas duas características, essa narrativa assume feições

típicas do modo de pensar contemporâneo, tal como descrito por

Kennedy.

Com essa configuração, a narrativa da Constituição

Dirigente foi incorporada por uma parte importante dos

doutrinadores de Direito Administrativo177 e de Direito

Econômico178. A ideia de Constituição Dirigente, nesses casos,

passou a ocupar o papel que a função social tinha no Direito

Administrativo do Pensamento Jurídico Social. No Direito

Administrativo e no Direito Econômico contemporâneos, a ideia

de Constituição Dirigente se identifica com um projeto

175 Nesse sentido: “Destaque-se, no domínio da interpretação da Constituição, o mecanismo denominado de ponderação de bens ou valores, utilizado para a solução de tensões ou conflitos entre normas. Busca-se com isso identificar, na hipótese de colisão entre pelo menos dois princípios constitucionais, qual bem jurídico deverá ser tutelado.” (CARVALHO, K., 2007, p. 355.) 176 MENDES et. al., 2007, p. 275. 177 Cf. MELLO, 2012, p. 98-140; BINENBOJM, 2008, pp. 49-80. 178 Cf. GRAU, 2010, pp.359-373; CARVALHO, 2007, pp. 90 e ss.

116

político típico daquilo que se convencionou chamar Estado do

Bem-Estar Social.179 Nesse sentido, por exemplo, se posiciona

Fábio Konder Comparato:

Mas é, obviamente, com o Estado Social de direito que a

reorganização da atividade estatal, em função de

finalidades coletivas, torna-se indispensável. A

atribuição prioritária dos Poderes Públicos torna-se,

nesse Estado, a progressiva constituição de condições

básicas para o alcance da igualdade social entre todos

os grupos, classes e regiões do país. O Estado Social é,

pois, aquela espécie de Estado Dirigente em que os

Poderes Públicos não se contentam em produzir leis ou

normas gerais, mas guiam efetivamente a coletividade

para o alcance de metas predeterminadas.180

A corrente da Constituição Dirigente, desse modo,

busca mediante outra racionalidade realizar projeto político

similar aos que nortearam o Pensamento Jurídico Social. Mas se

o Pensamento Jurídico Social tinha na interdependência a sua

principal fundamentação, a Constituição Dirigente recorre à

previsão no texto positivo da Constituição de direitos como

assistência social, saúde, educação, entre outros.181 Todavia,

ao identificar a realização do programa constitucional com o

Estado Social, as narrativas construídas com base na

Constituição Dirigente acabam por eleger as instituições

179 Cf. BONAVIDES, 2001, passim; Adiante, criticaremos a divisão incorporada pelo Direito nacional entre Estado Liberal e Estado do Bem-Estar Social, e também o uso que foi feito dessas classificações para justificar uma terceira categoria, a de Estado Regulador, como veremos a seguir. 180 COMPARATO, 1998, p. 43. 181 Nesse sentido, diz Comparato: “Escusa lembrar que tais objetivos são juridicamente vinculantes para todos os órgãos do Estado e também para todos os detentores de poder econômico ou social, fora do Estado. A juridicidade das normas que simplesmente declaram tais fins (as Zielnormen dos alemães), ou que impõem a realização de determinado programa de atividades – as normas propriamente programáticas –, já não pode ser posta em dúvida, nesta altura da evolução jurídica.” (COMPARATO, 1998, p. 45).

117

estatais como meio por excelência de se alcançar os objetivos

sociais plasmados nas normas constitucionais. Nesse sentido,

em revisão crítica à teoria da Constituição Dirigente,

Canotilho afirma:

...é indiscutível que os programas constitucionais

apontavam para uma decidida estatalidade, acreditando no

Estado produtor e redistribuidor. [...] Nesse contexto,

ainda se acreditava que a ordem política justa não é uma

ordem econômica espontânea que as mulheres e homens

tenham de aceitar de forma tranquila e passiva, desde

logo porque nada há a fazer.182

Em decorrência dessa visão, assim como aconteceu com

o Direito Administrativo e o Direito Econômico majoritários

descritos no item anterior, a corrente da Constituição

Dirigente assumia como premissa a ideia de que haveria uma

ordem econômica espontânea. Para se opor a essa ordem

espontânea, a Constituição Dirigente fixava um programa para o

Estado. Percebe-se, portanto, que também nas narrativas

baseadas na Constituição Dirigente, Estado se opõe a mercado

(compreendido como ordem econômica espontânea). Todavia,

justifica-se a expansão do Estado, em detrimento do mercado,

como meio de assegurar direitos sociais.

A busca pela efetivação de direitos sociais e a

ênfase do papel do Estado nesse mister contrapõem a

Constituição Dirigente a outra corrente, cujo ápice se deu nos

anos 90 do século passado, e que tem particular influência nos

debates sobre a regulação de setores de infraestrutura por

agências reguladoras. Trata-se da corrente do Estado

Regulador, que trataremos a seguir.

182 CANOTILHO, 2008, pp. 209-210.

118

1.4.3. Estado Regulador

As reformas do Estado brasileiro conduzidas nos anos

90183, de modo geral, foram desafiadoras para o Direito

Administrativo e o Direito Econômico majoritários. As novas

instituições econômicas que se buscavam implantar no Brasil184

provocaram perplexidade naquelas que eram, até então, as

principais doutrinas jurídicas empregadas para justificar a

atuação do Estado na economia. A visão de mundo correspondente

à forma como o Direito Administrativo e o Direito Econômico

estruturaram no Brasil seus conceitos e construíram suas

narrativas até a década de 1990 se mostrou incompatível com as

instituições econômicas que foram adotadas no Brasil em razão

das reformas supervenientes.

As principais incompatibilidades se configuraram na

crise do conceito de serviço público – pela inadequação do

conceito ao que passou a ocorrer na prática - e no surgimento

183 Para uma avaliação das reformas sob a óptica de seus principais formuladores, ver: PEREIRA e SPINK, 1998. 184 O processo de reforma do Estado brasileiro se insere em um contexto mais amplo de influência política de países desenvolvidos sobre os países em desenvolvimento, baseado no incentivo por organismos internacionais um modelo de desenvolvimento econômico identificado com as instituições econômicas típicas dos países ricos do Ocidente, em especial os de origem anglo-saxã (cf. TRUBEK, 2006, pp. 81-89). As características desse processo e sua influência nas instituições brasileiras são assim descritas por Marcus Faro de Castro: “A crise do “modelo constitucional do segundo pós-guerra” em economias ricas do Hemisfério Norte gerou, como reação, movimentos de cooperação Norte-Sul que tendem a promover: (a) a mudança no processo orçamentário dos países do Hemisfério Sul, conducentes à supressão das despesas não-financeiras do Estado (privatizações de serviços públicos, cancelamento de vinculações constitucionais de receitas, etc.); (b) a liberalização comercial, com a redução de tarifas comerciais e especialmente com pressões para o desemantelamento de políticas caracterizáveis como barreiras não-tarifárias ao comércio internacional, sob a incidência dos princípios da “nação mais favorecida” e do “tratamento nacional”; (c) a desregulamentação dos mercados financeiros; (d) a mercantilização – em boa parte por meio de avanços no campo da propriedade intelectual – de recursos naturais, inclusive a atmosfera (via criação de mercados de captura e sequestro de carbono), a água e o patrimônio genético consitutivo da biodiversidade.” (CASTRO, 2006, p. 56).

119

de doutrinas que se opunham às dos tratadistas tradicionais de

Direito Administrativo e Direito Econômico. Entre essas

doutrinas mais recentes, destacamos a tentativa de

reconstrução do Direito Administrativo e do Direito Econômico

e a emergência do chamado Direito Administrativo Econômico,

todos baseados na ideia de Estado Regulador e em uma

particular narrativa que se construiu em torno dela.

Como dito, o processo de reforma do Estado dos anos

90 trouxe para o Direito brasileiro a chamada crise da

doutrina do serviço público.185 Um dos principais aspectos das

reformas dos anos 90 foi a desestatização de diversas

atividades até então confiadas exclusivamente a entes

estatais. Até então, o Direito Administrativo e o Direito

Econômico entendiam que aquelas atividades, por serem

prestadas exclusivamente pelo Estado, haviam sido retiradas do

mercado (entendido como esfera de atuação econômica típica dos

particulares, tal como formulado desde o Pensamento Jurídico

Clássico). Porém as reformas fizeram com que grande parte

dessas atividades passasse a também ser prestada por

particulares, em regime de competição. Nesse regime de

competição, ao invés das regras características daquilo que se

compreendia como regime de direito público, essas atividades

passaram a atuar sob regras até então típicas do regime de

185 São identificadas duas crises do serviço público. A primeira ocorreu quando os Estados passaram, sob a influência keynesiana e após a Crise de 29, a exercer eles mesmos atividades antes delegadas a particulares, porém usando como mecanismo entes privados sob controle público: as empresas públicas e as sociedades de economia mista. A dita segunda crise ocorreu com a privatização de atividades tradicionalmente tidas como públicas, fruto em especial da disseminação da idéia de Estado mínimo em políticas econômicas que, no conjunto, são denominadas por esses mesmos autores como “neoliberais” (Cf. GONÇALVES, 1999, pp. 11-23; ROLDÁN MARTIN, 2000, pp. 19-28; ARIÑO ORTIZ, 2005, pp. 12-15). Para uma síntese da discussão e sua repercussão no Direito brasileiro, ver ainda: ARAGÃO, 2007, pp. 239-264.

120

direito privado (tais como livre iniciativa, livre

contratação, proteção à propriedade dos ativos empresariais,

etc.) – até porque um dos objetivos da reforma, senão seu

principal, era enfatizar o papel do mercado na produção e

alocação de riquezas.186 Isso trouxe perplexidade em especial

na aplicação prática do conceito de serviço público tal como

adotado pelo Direito Administrativo e pelo Direito Econômico,

pois, como visto, as atividades consideradas como serviço

público sob a égide de doutrinas anteriores deveriam ter um

regime jurídico característico, diferente por definição do

regime jurídico privado.187

Mas atividades até então consideradas serviço

público passaram a ser prestadas sob uma multipliciplicidade

de regimes jurídicos, alguns deles em tudo semelhantes ao

regime privado.188 O conceito de serviço público deixou de ter

um regime jurídico característico. A reação de alguns

doutrinadores tradicionais foi negar as mudanças, refutando as

novas instituições trazidas pelas reformas dos anos 1990, para

defender o regime jurídico típico do serviço público.189 Para

esses autores, submeter as atividades que antes eram

consideradas típicas de Estado a regime jurídico próprio do

setor privado seria uma ofensa ao modelo jurídico que divide

186 Cf. CARVALHO, Vinicius, 2010, pp. 57-70. 187 A essa perplexidade se refere, por exemplo, Áurea Roldán Martin, ao tratar dos reflexos da crise do serviço público no Direito espanhol: “Com el tiempo la quiebra del nexo entre servicio público y régimen público, derivada de la realización de determinadas actividades materiales por el Estado pero bajo la veste de personificaciones instrumentales de Derecho privado, abriría las puertas a la crisis del concepto.” (ROLDÁN MARTIN, 2000, p. 22.). 188 Sobre a repercussão dessa mudança não apenas na ideia de serviço público, mas também sobre a forma como o próprio Direito Administrativo é concebido, ver: ESTORNINHO, 1999. 189 Cf. DI PIETRO, 2009, pp. 27-39; GRAU, 2010, pp. 132 e ss.; MELO, 2012, pp.1083-1097.

121

atividades públicas e privadas. Nesse intuito, recorreram ao

formalismo, buscando na redação das normas de competências da

Constituição Federal a salvação para as formulações teóricas

que defendiam.190 Essas normas de competência foram por eles

lidas de modo a afirmar que a Constituição, ao atribuir a um

ente federado a incumbência de realizar determinada atividade,

a teria excluído da esfera privada. A atribuição de

competências pela Constituição191 denotaria a publicização de

dada atividade, transformando-a em serviço público. Em

decorrência, a essas atividades publicizadas se deveria

aplicar o regime jurídico público, que é próprio para o

serviço público. Essa defesa recorre a um argumento formal: a

redação do art. 175 da Constituição Federal, que associa

serviço público à concessão e à permissão.192 Essa posição,

porém, não esclarece qual seria esse regime jurídico

tradicional exigido pelo art. 175 - como vimos, nunca houve um

190 Esse raciocínio é adotado, entre outros, por: MELLO, 2012, pp. 702 e ss.; GRAU, 2010, pp. 117-124 191 Assim, seriam serviço público de competência federal as atividades enumeradas nos artigos 21 e 22, de competência concorrente entre os entes federados as atividades enumeradas no artigo 23, de competência estadual as atividades enumeradas no artigo 25, e de competência municipal as atividades listadas no artigo 30. Com destaque, a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “A Carta Magna do país já indica, expressamente, alguns serviços antecipadamente propostos como da alçada do Poder Público federal. Serão, pois, obrigatoriamente serviços públicos (obviamente quando volvidos à satisfação da coletividade em geral) os arrolados como de competência das entidades públicas.” (MELLO, 2012, p. 702). Para Celso Antônio Bandeira de Mello, porém, nem todos os serviços públicos são reputados privativos do Estado, pois haveria serviços que admitiriam prestação concomitante por particulares. Isto é, a qualificação de serviço público não necessariamente retiraria determinada atividade do âmbito privado. Quando prestadas pelo Estado, seriam serviço público. Quando prestadas por particulares, seriam atividades econômicas privadas. Porém, a vinculação entre regime público e serviço público remanesce. Cf. MELLO, 2012, pp. 702-711. 192 Constituição Federal: Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. /§/ Parágrafo único: A lei disporá sobre: /§/ I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; [...].

122

consenso sobre esse regime jurídico, ou sobre o modo como esse

regime se vincula ao serviço público.

As perplexidades provocadas pelas instituições

econômicas decorrentes das reformas dos anos 1990, todavia,

além da crise do serviço público, resultaram também em

alternativas teóricas formuladas em contraposição à narrativa

tradicional do Direito Administrativo e do Direito Econômico.

Parte importante dessas alternativas se estruturou uma nova

narrativa fundada na noção de “Estado Regulador”.193 Novos

tratadistas, defensores das reformas dos anos 90, passaram a

contrapor aquilo que seria a visão contemporânea do papel do

Estado na economia - o Estado Regulador - a outras visões

desse papel que lhe teriam antecedido na história – o Estado

Liberal e o Estado do Bem-Estar Social. Esse novo papel

exigiria um novo direito, o que por sua vez justificaria

abandonar algumas das construções doutrinárias precedentes -

em especial, a ideia de um regime jurídico típico das

atividades públicas.

O Estado Regulador, segundo esta mais recente

narrativa, teria sido antecedido pelo Estado do Bem-Estar

Social e pelo Estado Liberal. O Estado Liberal é definido como

o resultado das Revoluções Burguesas, em que a garantia da

propriedade contra a intervenção estatal seria elemento

central das relações entre Estado e economia, e cuja

referência econômica primordial seria o laissez-faire do

193 Como exemplo de representantes dessa narrativa, destacamos: MARQUES NETO, 2005; SALGADO, 2003; SUNDFELD, 2000b e 2000c; ARAGÃO, 2006 e 2007; JUSTEN FILHO, 2002 e 2012. Outro representante dessa narrativa é MOREIRA NETO, 2009 - apesar desse autor não usar a expressão “Estado Regulador” como os demais, ele defende a existência de um novo tipo de Estado, hoje ainda sem nome (p. 17), cujas características equivalem ao modelo de Estado Regulador pregado pelos demais autores citados acima.

123

liberalismo econômico de Adam Smith.194 O Estado do Bem-Estar

Social seria a resposta à Crise Econômica de 1929, que haveria

colocado o liberalismo puro em cheque. Sua referência

econômica seria a doutrina de Keynes, cujos preceitos seriam

conferir ao Estado o papel de executor de políticas de

assistência social e de atuação direta para assegurar o

desenvolvimento econômico de setores estratégicos.195 O Estado

Regulador, por fim, seria a resposta à falência do Estado do

Bem-Estar Social196 e ao processo de globalização econômica.

Sem dinheiro para executar todas as atribuições que lhe foram

incumbidas, o Estado teria de recorrer à iniciativa privada.

Esta não apenas possuiria os recursos necessários, como seria

mais eficiente na execução das tarefas antes atribuídas ao

Estado. Além disso, com a globalização, o Estado se veria

forçado a pautar suas políticas de acordo com padrões globais

194 Exemplo desse pensamento se extrai do seguinte trecho: “Sob o ângulo da atividade econômica privada os principais fundamentos do Estado liberal-burguês eram a propriedade, pela qual se assegurava a titularidade, o gozo e a fruição dos bens, e os contratos, veículos da circulaçaõ destes bens Sobre ambos à Administração Pública não competia impor qualquer restrição, salvo se necessária para que os direitos de outros cidadãos não fossem prejudicados. Acreditava-se que o mercado seria muito mais benéfico para o conjunto da sociedade se agisse livremente, não devendo ser funcionalizado por qualquer finalidade coletiva.” (ARAGÃO, 2006, p. 49.) 195 Nesse sentido: “...a partir do final do século XIX, também em razão do grande desenvolvimento material proporcionado pela Revolução Industrial, o Estado tomou a si a difícil tarefa de corrigir as distorções e deformações causadas à ordem econômica, bem com à ordem social, em razão do abuso de do poder econômico ou da carência de iniciativas produtivas da sociedade.[...] Esse estágio inicial do ordenamento econômico-social se prolongou até o Segundo Pós-Guerra, coincidindo com o fastígio do Estado-Nação, com a conturbada era das ideologias salvacionistas e as grandes conflagrações mundiais que provocaram, dando-se um remanejamento, em grande escala, dos componentes econômicos e sociais da sociedade, do qual resultou a configuração, à época, dos modelos dominantes do Estado do Bem-Estar Social e do Estado Socialista.” (MOREIRA NETO, 2009, pp. 133-134.) 196 É o que afirma, por exemplo, Marçal Justen Filho: “A crise fiscal do Estado de Bem-Estar conduziu a perspectivas de redução das dimensões do Estado e de sua intervenção direta no âmbito econômico. Passou-se a um novo modelo de atuação estatal, que se caracteriza preponderantemente pela utilização da competência normativa para disciplinar a atuação dos particulares.” (JUSTEN FILHO, 2002, p. 20.)

124

de governança, sob pena de afugentar do País os investidores

necessários ao desenvolvimento econômico. A narrativa acerca

do Estado Regulador, contudo, não é exclusiva da doutrina

nacional. Especialmente na Europa Continental, o dito modelo

do Estado Regulador foi e continua sendo apontado pela

doutrina jurídica como fundamento para novos regimes jurídicos

para a atividade econômica.197

Dentro desse contexto, a primeira característica

atribuída ao Estado Regulador seria a subsidiariedade, elevada

por alguns doutrinadores à categoria de princípio.198 A

característica da subsidiariedade denotaria limitação na forma

de atuação do Estado na atividade econômica. Esta, a atividade

econômica, seria primordialmente uma atividade livre, de

início imune à intervenção estatal. Por isso, na economia,

caberia ao Estado apenas atuar subsidiariamente à iniciativa

privada, e nunca em substituição a essa.

A segunda característica típica do Estado Regulador,

segundo a narrativa que aqui descrevemos, seria a chamada

intervenção indireta, aquela realizada mediante normas

abstratas editadas por entes da Administração Pública. A

interveção indireta seria contraposta à intervenção direta,

esta uma característica do Estado do Bem-Estar e qualificada

pela assunção de atividades econômicas por entes estatais -

197 Como representantes do debate europeu, ver: MAJONE, 2006; SCOTT, 2006; ARIÑO ORTIZ, 1993, 2004 e 2005. 198 É o que faz o já citado Justen Filho: “A atuação direta do Estado não é justificável mediante a mera invocação de algum interesse público que se considere relevante. É necessário providenciar que a intervenção direta do Estado é a solução adeuqada e imprescindível para a satisfaçaõ de necessidades determinadas. Aplica-se o princípio da proporcionalidade, o que significa que somente se legitimará a intervenção estatal se outra alternativa não for mais satisfatória. Sob esse prisma, o princípio da proporcionalidade se manifesta como princípio da subsidiariedade.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 808.)

125

especialmente empresas públicas e sociedades de economia

mista. A intervenção indireta, em oposição, seria realizada

por agências reguladoras independentes - é também chamada de

intervenção regulatória - e seria o meio precípuo de atuação

do Estado Regulatório na economia.199

Ao eleger a intervenção regulatória como forma

típica de atuação estatal na economia, a narrativa do Estado

Regulador advogava não apenas que as atividades até então

consideradas públicas fossem entregues a particulares, mas que

se lhes aplicassem regras típicas de mercado. As ditas regras

de mercado seriam as do regime jurídico das atividades

privadas. Com isso, atividades anteriormente qualificadas como

serviço público passariam a não mais se sujeitar a um típico

regime jurídico público. Não caberia mais ao Estado escolher

as atividades de sua prerrogativa, dado o seu caráter

subsidiário, e sobre essas atividades excepcionais tão somente

poderia ser aplicado um regime jurídico diferenciado. Aquelas

atividades que lhe tinham sido entregues deveriam sempre que

possível ser repassadas à iniciativa privada, sob regras tanto

mais próximas das regras de mercado quanto possível:

O modelo regulatório propõe a extensão também ao setor

dos serviços públicos de concepções aplicadas a

propósito da atividade econômica privada. Ou seja,

rejeita-se a concepção da atuação direta do Estado não

apenas a propósito da atividade econômica privada

199 Essa visão é refletida, por exemplo, na seguinte exposição de Marques Neto: “Temos, então, que a moderna regulação, no sentido que foi acima exposto, representa não uma sbutração do papel do Estado como ordenador da economia. Representa, sim, uma mudança no paradigma pelo qual a intervenção estatal na economia se dá, mudança fortemente marcada pela substituição ou complementação dos mecanismos de intervenção direta na ordem econômica por instrumentos de uma determinada modalidade específica de intervenção indireta que poderíamos designar de intervenção regulatória.” (MARQUES NETO, 2005, pp. 42-43.)

126

(propriamente dita) mas também no tocante aos serviços

públicos. Reconhece-se como desejável a substituição do

Estado-Prestador pelo Estado-Regulador dos serviços

públicos.200

Essa narrativa, assim, desvinculou regime jurídico

da dicotomia público-privado, deixando de atribuir ao âmbito

público um regime específico, e também ampliando a

possibilidade de incidência de regras extravagantes a

atividades reputadas como privadas. Sob esse viés, a crise do

serviço público, configurada pela impropriedade da

caracterização do serviço público em termos de um regime

jurídico próprio, é reafirmada pelos teóricos do modelo de

Estado Regulador:

O fenômeno de reestruturação dos serviços de

titularidade estatal (energia, telecomunicações,

saneamento, transportes, etc.) está produzindo uma

importante alteração do Direito Administrativo, cujos

modelos teóricos devem, em grande medida, ser

reinventados. Durante bom período o conceito de serviço

público serviu para razoavelmente sintetizar o regime

jurídico da exploração dessas diversas atividades. É bem

verdade que essa noção veio se modificando no tempo,

tornando-se pouco a pouco muito problemática: além

disso, por ter sido usada para englobar serviços os mais

distintos, com as respectivas especificidades, seu

conteúdo jamais foi suficiente para dar conta dos

problemas e características particulares de cada um

deles. Tratava-se, todavia, de noção útil. Hoje não o é

mais, ao menos da mesma forma que antes.201

Como alternativa, os teóricos do Estado Regulador

tentam aproveitar o conceito de serviço público sob uma nova

200 JUSTEN FILHO, 2002, pp. 23-24. 201 SUNDFELD, 2000b, p. 32.

127

roupagem. Ao invés de servir para caracterizar a atividade

pública, o conceito de serviço público serviria para que, nas

excepcionais situações em que fosse requerida intervenção

estatal mais pesada, um regime jurídico próprio diferenciado

pudesse incidir. Recorrendo a uma leitura formal da

Constituição, o serviço público seria apenas aquele prestado

por concessão ou permissão, como referido no art. 175 da Carta

Política de 1988. Nos demais casos, normas de mercado é que

deveriam regular a atividade econômica, mesmo as atividades

cometidas a União, Estados ou Municípios pela Constituição.

Neste caso, o instrumento jurídico que viabilizaria outro

regime jurídico (que não o do serviço público) seria a chamada

autorização.202 Nessa leitura, o regime jurídico aplicável

passava a ser definido pelo título (concessão, permissão ou

autorização) que intermediasse a relação entre o particular

que presta o serviço e o ente estatal que possui a

titularidade para prestá-lo (conforme as normas

constitucionais de competência).

Essa justificativa explora a dicção da Constituição

Federal acerca de atividades cominadas à competência de entes

federativos. O argumento formal usado na corrente do Estado

Regulador se estrutura nos termos seguintes. O texto

constitucional, ao atribuir competência para prestação de

202 “A Constituição Federal deu, então, certa margem de discricionariedade ao Legislador em relação às atividades enumeradas nos incisos X a XII do art. 21 para que, diante das evoluções tecnológicas propiciadoras da concorrência e do Princípio da Proporcionalidade na sua expressão de subsidiariedade, enquadre-as como serviços públicos ou como atividades privadas de interesse público sujeitas a uma regulação de natureza autorizativo-operacional. /§/ Adotando essa última alternativa, algumas das atividades previstas no art. 21 teriam sido, mais do que apenas desestatizadas (delegação à iniciativa privada de atividades titularizadas pelo Estado), realmente privatizadas, ou seja, teria saído da órbita público-estatal e passado para o mercado, para a livre iniciativa privada, sujeitas, naturalmente, à regulação exógena.” (ARAGÃO, 2007, pp. 226-227.)

128

determinadas atividades a um ente federado (como fazem os

artigos 21 e 22 da Constituição Federal, por exemplo), em

geral o faz segundo a fórmula: compete a [União, Estado ou

Município] prestar [a atividade em questão] diretamente ou

mediante concessão, permissão ou autorização. O art. 175 da

Constituição, por sua vez, diz que incumbe ao Poder Público

diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão a

prestação de serviços públicos. Logo, argumentam os teóricos

do Estado Regulador, os serviços prestados sob autorização não

seriam serviço público, pois não listados no art. 175. A

figura da autorização, em decorrência, surge como

justificativa formal para a criação de novos regimes jurídicos

que não o do serviço público e, até mesmo, para sujeição de

determinadas atividades ao regime privado. Para realizar essa

distinção entre regimes jurídicos (público e privado)203

atribuídos a atividades igualmente tidas como de

responsabilidade do Estado, serviu de inspiração a adaptação,

feita por teóricos do Estado Regulador na União Européia, da

noção de serviço público para os chamados serviços de

interesse econômico geral.204

203 Como faz, por exemplo, Ariño Ortiz, autor espanhol com grande influência nos doutrinadores brasileiros do Estado Regulador: “Se han de distinguir, pues, claramente, en las actividades de las empresas, dos tipos o modalidades: /§/ a) Servicios garantizados, obligaciones o cargas de servicio público: son actividades subsidiadas, a precios tasados con compenesación adicional; por ellas responde el Estado. /§/ b) Actividades comerciales competitivas: sometidas a un régimen de precios de mercado, libremente pactados por las partes; el riesgo y/o la ventura corresponde al empresario. /§/ Las primeras se asemejam a la concesión (régimen contractual), las segundas son libres, no reguladas (régimen policial y sumisión al derecho general de la competencia).” (ARIÑO ORTIZ, 2005, p. 35) 204 Esse conceito está presente no art. 86 (originalmente no art. 90) do Tratado da União Européia, e seu objetivo era servir de instrumento à liberalização da prestação dos serviços públicos, de modo a abrir o mercado desses serviços às empresas dos demais países signatários (Cf. ARIÑO ORTIZ, 2005, pp. 35 e ss.). Em decorrência, houve um processo de adaptação da noção de serviço público: “En linea con las teorías de VILLAR PALASÍ sobre

129

Adicionalmente, em atenção à ideia de atuação

subsidiária do Estado na economia, o serviço público é

justificado nessa narrativa como instrumento de assimetria

regulatória entre empresas novas no mercado e empresas já

estabelecidas. Essa assimetria seria justificada por “falhas

de mercado” típicas de “setores de infraestrutura” como

telecomunicações205, saneamento básico, energia elétrica206,

la intercambialidad de las técnicas de intervención pública, se percibe hoy en en la articulación jurídica de4 los servicios de interés económico general la combinación de elementos de las clásicass formas de la actividad administrativa en figuras mixtas (valoradas como nuevas o no, según el prurito de “taxonomización” conceptual), a los que se añaden otros de reciente cuño. No puede estar más explícitamente reconocida la pervivencia de elementos del servicio público en las telecomunicaciones, transportes o correos que mediante la imposición de obligaciones eo nomine de servicio público a los operadores que actúan en el mercado. Cabría señalar pues que, aun planteada la cuestión de la vigencia del servicio público en términos de enfrentamiento entre las viejas y las nuevas categorías y admitiendo la derrota de éste, una vez más en la historia – como dijera MAX WEBER – el vencedor se ha revestido con los despojos del vencido.” (ROLDÁN MARTIN, 2000, p.53.) 205 Sobre o uso do regime de direito público como instrumento de assimetria regulatória no setor de telecomunicações: “Tão importanto quanto ter definidio a complementariedade de funções CADE/Anatel, é ter decidido utilizar fortes assimetrias regulatórias como instrumentos de universalização e de indção ao desenvolvimento de uma situação de efetiva concorrência. Quando falamos de assimetrias regulatórias, referimo-nos à existência de um conjunto de direitos e deveres que diferem de um prestador para outro, ainda que ambos atuem no mesmo mercado geográfico oferecendo serviços equivalentes. /§/ O principal instrumento de assimetria regulatória utilizado pela Anatel é a distinção feita, pela LGT [Lei Geral de Telecomunicações], entre a prestação do serviço submetida ao regime jurídico público ee sua prestação sob o regime jurídico privado. Quando, para prestar determinado serviço, a empresa obtiver uma concessão, deverá respeitar as regras próprias do regime jurídico público; entretanto, se para prestar o mesmo serviço, obtiver uma autorização, respeitará as regras que são próprias do regime jurídico privado.” (HERRERA, 2001, p. 47). 206 Sobre o uso da concessão de serviço público como instrumento de regulação concorrencial da atividade de transmissão de energia elétrica: “No que diz respeito ao regime de exploração, a transmissão, atualmente caracterizada como um segmento autônomo, está submetida única e exclusivamente ao de serviço público, titulada sob concessão. [...] Outra importante característica da transmissão, na concepção do novo modelo setorial, é que ela deve ser uma atividade neutra, não-comercial, nem competitiva. Nesse sentido, a emprsa de transmissão não gera, não compra e não vende energia; ela só executa a transmissão da energia elétrica. Isto para garantir sua neutralidade, de modo a não prejudicar e não interferir na competição realizada nos segmentos de geração e de comercialização. E,

130

transporte, entre outros. Nisso, portanto, outra radical

diferença frente ao Pensamento Jurídico Social e também às

narrativas contemporâneas do Direito Administrativo, do

Direito Econômico e da Constituição Dirigente. Não é uma

necessidade social que exige um regime jurídico diferenciado

para os serviços públicos, tampouco o é o atendimento a

direitos sociais ou coletivos. O regime jurídico do serviço

público, na narrativa do Estado Regulador, se justifica por

uma lógica de correção do mercado, lógica essa que deriva da

ideia de subsidiariedade da atuação estatal.207

Empresas já estabelecidas em mercados em que

houvesse altas barreiras à entrada208 necessitariam de uma

intervenção regulatória mais incisiva. Isso porque tais

empresas teriam, em decorrência de sua posição dominante,

poder de mercado que poderia ser usado para dificultar ou

para tanto, as tarifas cobradas pela transmissão são reguladas e fixadas pela ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica].” (WALTENBERG, 2000, p. 365). 207 Por exemplo: “Em síntese, o serviço público surge como instrumento para promover a satisfação de necessidades relacionadas diretaq e imediatamente com os direitos fundamentais quando o funcionamento normal e espontâneo da livre iniciativa for incapaz de promover essa solução.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 655). 208 Barreiras à entrada é expressão cunhada na Microeconomia para tratar de causas que impedem ou dificultam que novos ofertantes passem a atuar em um dado mercado. Em resultado, os ofertantes já estabelecidos no mercado têm posição privilegiada frente a novos concorrentes, e além disso podem passar a deter poder de fixar os preços (ao contrário de serem tomadores de preços, como ocorreria em um mercado em concorrência perfeita) – cf. SALOMÃO FILHO, 2007a, pp. 91-170. Mankiw fornece uma introdução às barreiras de mercado segundo a Economia neoclássica, destacando seu papel na formação de monopólios: “A causa fundamental dos monopólios está nas barreiras à entrada: um monopólio se mantém como o único vendedor de seu mercado porque as outras empresas não podem entrar no mercado e competir com elas. As barreiras à entrada, por sua vez, têm três origens principais: /§/ Recursos de monopólio: Um recurso-chave necessário para produção é exclusivo de uma única empresa. /§/ Regulamentações do governo: O governo concede a uma única empresa o direito exclusivo de produzir um determinado bem ou serviço. /§/ O processo de produção: Uma única empresa consegue fornecer produtos a custo mais baixo que um grande número de produtores.” (MANKIW, 2009, p. 300).

131

inviabilizar a entrada de novos competidores. Essa posição

dominante, por sua vez, é vista como o legado de monopólios

instituídos sob o modelo do Estado do Bem-Estar Social a

empresas sob controle estatal. Com a venda dessas empresas ao

setor privado (desestatização ou privatização), haveria a

necessidade concomitante de submetê-las a um regime de

competição, como meio de se estabelecer um regime de livre

mercado no provimento dos serviços prestados por aquelas

empresas.209 Esse regime de livre mercado seria incompatível

com o antigo regime de serviço público, baseado na

exclusividade de prestação do serviço justificada pela sua

exclusão da órbita privada. Como forma de contraposição ao

poder de mercado legado pela antiga situação de monopólio,

surgiria a necessidade de uma nova configuração do regime

jurídico de serviço público. O regime de serviço público,

assim, é articulado pela narrativa do Estado Regulador como

uma intervenção regulatória mais incisiva, em que há mais

intensa normatização das atividades da empresa regulada,

motivada por sua posição dominante no mercado.210 Essa

209 Nesse sentido, Carlos Ari Sundfeld afirma: “Só que algumas agências, a ANATEL, a ANEEL e a ANP, nasceram sob o signo de mais um dever, resultante do projeto que inspirou a privatizaçao das correspondent6es atividades estatais. Seguindo uma tendência internacional, o Brasil decidiu acabar com os monopólios nos setores telecomunicação (então nas mãos da TELEBRÁS), de energia elétrica (envolvendo especialmente a ELETROBRÁS e várias empresas dos governos estaduais, como a CESP) e do petróleo (PETROBRÁS). Portanto, a reforma não se limintou à mera venda de empresas para o setor privado, mas veio acompanhada da abertura dos respectivos mercados para novas prestadoras. E qual a justificativa do modelo? É a de que a concorrência seria boa tanto para o desenvolvimento econômico, porque apressaria a expansão da planta de serviços, como para o consumidor, pois geraria disputa, com melhoria de preços e serviços.” (SUNDFELD, 2000b, p. 35.) 210 Vide, como exemplo, a seguinte justificativa para um regime jurídico diferenciado às empresas privatizadas: “O estabelecimento de concorrência em setores anteriormente submetidos à exploração em monopólio exige um esforço peculiar dos órgãos reguladores e, paradoxalmente, uma regulação forte que estimule a entrada de novos agentes e lhes garanta condições viáveis de concorrência. Com efeito, as antigas empresas estatais, ainda que privatizadas, gozam não apenas de uma posição de domínio no mercado,

132

intervenção mais incisiva se faz presente no mais das vezes

pela fixação dos preços de comercialização do serviço (ainda

qualificados como tarifas de serviço público), e pela

imposição de obrigações de universalização. Assim, sob o ponto

de vista da narrativa do Estado Regulador, a assimetria

regulatória, provocada pela articulação entre o regime de

direito público – típico da concessão de serviço público – e o

regime de direito privado – típico das autorizações -, é

também uma resposta a falhas de mercado. Por conseguinte, nos

casos em que tais falhas de mercado não fossem mais

caracterizáveis, não haveria fundamento para aplicação do

regime público.211

Esta a justificativa da narrativa do Estado

Regulador para a reconstrução do serviço público como meio de

correção das falhas de mercado típica dos setores de

infraestrutura: como ônus adicional às empresas já

estabelecidas, especialmente na forma de obrigações de

interesse da coletividade traduzidas pela ideia de

mas de tradição, clientela, capacidade instalada e outras vantagens decorrentes da presença consolidada na atividade. As empresas em processo de entrada, embora pertencentes a grupos de grande poder econômico, entram em desvantagem competitiva. Nesse sentido, é necessário o estabelecimento de regras tendentes a compensar o poder das antigas monopolistas.” (NUSDEO, 2000, p. 176). 211 Nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão argumenta: “...podemos afirmar que a titularidade estatal sobre serviços públicos, com prestação por particulares apenas mediante delegação, é mantida quando, apesar dos programas e controles impostos pelas autorizações, a livre iniciativa não for eficaz para os objetivos de interesse público. /§/ Em caso contrário, teremos a sua despublicização com o que, à luz do Direito brasileiro, deixarão de ser serviços públicos propriamente ditos para passarem a ser atividades privadas de interesse público – os chamados serviços públicos impróprios ou virtuais -, acarretando forte assimetria regulatória no seio do conjunto daquelas atividades: algumas sob a reserva estatal e outras prestadas em regime privado./§/ Temos, assim, um determinado setor submetido a um marco regulatório de natureza complexa, com algumas atividades caracterizadas como serviços públicos e outras como atividades privadas de interesse público.” (ARAGÃO, 2007, pp. 430-431.)

133

universalização. Em contrapartida, sem o ônus da

universalização, as demais empresas (não sujeitas ao regime de

serviço público) teriam melhor condição para entrar no mercado

e competir. Essas novas competidoras estariam sujeitas às

regras do setor privado, ou ao menos sujeitas a um regime

jurídico com regras similares às do setor privado, e o que

lhes garantiria isso seria o fato de operarem sob autorização,

e não sob concessão ou permissão. Quanto ao regime jurídico da

autorização, o papel do Estado na intervenção regulatória

seria fixar regras uniformes, válidas para todos os

competidores – como é típico da intervenção direta no domínio

econômico. Essas regras seriam a forma característica de

atuação do Estado Regulador, e são identificadas por essa

narrativa como a essência da dita atividade regulatória.212

As regras que são produzidas pela intervenção

regulatória, nessa visão, não seriam uma opção política, mas a

resposta técnica a uma constatação objetiva. Isso porque,

segundo a corrente do Estado Regulador, as falhas de mercado

seriam situações objetivamente aferíveis que inviabilizariam

que determinada estrutura de produção de bens e serviços se

comportasse como um mercado em concorrência perfeita, ou ao

212 Marçal Justen Filho novamente serve de exemplo desse ponto de vista: “Uma característica essencial da regulação reside na sua natureza exclusivamente normativa. A regulação consiste na adoção de normas e outros atos estatais, sem se traduzir na aplicação dos recursos estatais para o desempenho direto de alguma atividade no domínio econômico-social. A regulação estatal se traduz numa atuação jurídica, de natureza repressiva e promocional, visando a alterar o modo de conduta dos agentes públicos e privados. [...] A regulação consiste na opção preferencial do Estado pela intervenção indireta, puramente normativa. Revela a concepção de que a solução política mais adequada para obter os fins buscados consiste não no exercício direto e imediato pelo Estado de todas as atividades de interesse público. O Estado regulador reserva para si o desempenho material e direto de algumas atividades essenciais e concentra seus esforços em produzir um conjunto de normas e decisões que influenciem o funcionamento das instituições estatais e não estatais, orientado-as em direção de objetivos eleitos.” (JUSTEN FILHO, 2012, pp. 638-639).

134

menos em condições próximas às de um mercado nessas condições.

Caberia às agências identificar racionalmente os meios

adequados para realizar as políticas públicas, dentro de

parâmetros fixados por leis. A fixação por meio de leis das

políticas públicas no direito positivo demarcaria os chamados

marcos regulatórios. Assim, seriam as leis, e não as agências

reguladoras, que determinariam as políticas públicas. Desse

modo, a opção política, na narrativa do Estado Regulador, é

apriorística à atividade regulatória. A partir dos limites dos

marcos regulatórios, a atividade das agências se traduziria em

um mister predominantemente técnico.213

Por esse motivo, para que a resposta às falhas de

mercado fosse adequada, a intervenção regulatória deveria ser

imparcial. Nas narrativas com base no Estado Regulador, grande

ênfase é dada ao modelo de agências reguladores reguladoras

independentes (ou autônomas) como forma de se assegurar o

caráter “técnico” da intervenção estatal e evitar a deturpação

da regulação pela parcialidade. Além disso, as agências

reguladoras teriam por função arbitrar os conflitos advindos

de opções conflitantes de implementação de políticas públicas.

Nesse aspecto, a narrativa do Estado Regulador adota a policy

analysis do Pensamento Jurídico Contemporâneo, mas em lugar da

a figura heróica do juiz adotada pela narrativa da

213 Floriano Azevedo Marques Neto serve de ilustração de narrativas nos moldes acima: “Os órgãos reguladores não são instância institucional de definição de políticas. São sim espaços e instrumentos para efetivação destas, previamente definidas pelo Executivo e pelo Legislativo (eventualmente até com a participação e o suporte técnico do órgão regulador, mas fora do campo decisório deste). A regulação apresenta-se, portanto, como o exercício independente de competências para cumprir pressupostos e objetivos definidos nas políticas públicas.” (MARQUES NETO, 2005, p. 92.)

135

Constituição Dirigente, adota a figura da agência

reguladora.214

A corrente do Estado Regulador, contudo, não costuma

se aprofundar na caracterização econômica das falhas de

mercado, quase sempre ignorando controvérsias intensas215 sobre

sua aplicação no próprio pensamento econômico neoclássico216

que, implicitamente (e por vezes inconscientemente) adotam

como fundamentação. Não obstante, por considerar as falhas de

mercado em geral, e as externalidades em particular, fatores

passíveis de mensuração objetiva, essa narrativa vincula a

legitimidade da regulação à competência técnica necessária

para identificar e corrigir falhas do mercado regulado e,

214 Como ilustra a exposição de Carlos Ari Sundfeld: “E a sociedade, a cada dia, torna-se mais e mais complexa. Não só porque as pessoas se juntaram todas no mesmo espaço urbano, mas porque ela é sempre mais e mais exigente. As pessoas não se satisfazem só com a diminuição da poluição; elas querem ser protegidas também enquanto consumidoras (assunto que era irrelevante no passado), querem um controle sobre o o poder econômico para evitar a concentração empresarial (preocupação desconhecida antigamente), querem a democratização do acesso aos serviços que as coloquem em conexão com o mundo, como os de telecomunições (coisa que sequer se punha no século passado). Para harmonizar esses valores, é preciso um gerenciamento constante. E esse gerenciamento se faz pela contínua edição e substituição de normas e, a seguir, por sua aplicação concreta por um órgão administrativo, o qual deve, também, realizar atos de controle prévio.[...]Mas as pessoas querem mais: que os conflitos individuais nascidos da aplicação de todos estes planos sejam tratados or entidades imparciais – o que sempre se exigiu dos juízes, a imparcialidade. Mas isso não lhes basta. Os conflitos entre uma indústria poluidora, uma outra indústria que usa a água poluída lançada no rio e os vizinhos que também a consomem, quer-se que eles sejam julgados por quem entenda do assunto. Não alguém que entenda de Direito apenas (isto é, das técnicas de produção e hermenêutica normativa), mas que entenda do problema específico: quem saiba das dificuldades para compor harmonicamente o conflito, consiga dar a solução mais harmoniosa por equidade, baseando-se em critérios técnicos, etc.” (SUNDFELD, 2000b, p. 30.). 215 A ideia de falhas de mercado é problematizada, por exemplo, pela chamada Teoria Econômica da Regulação, que afirma que ditas falhas seriam na verdade o resultado da ação de uma grupos com capacidade de organização política e mobilização capazes de influenciar a agenda político-regulatória dos entes estatais. Cf. STIGLITZ, 2010. 216 Sobre o pensamento econômico neoclássico, ver item 2.2 abaixo.

136

assim, “otimizar” o benefício social decorrente de sua

atuação.217

A corrente do Estado Regulador é, desse modo,

legitimada discursivamente pela ideia de regulação para o

mercado. Em resultado, a dicotomia público-privado adquire,

nessa narrativa, uma particularidade ausente nas narrativas

anteriores típicas do Direito Administrativo e do Direito

Econômico majoritários, e que se traduz na já mencionada ideia

de subsidiariedade. Essa particularidade é a de os regimes

jurídicos de direito público e de direito privado não se

apresentarem mais como fatores de delimitação da atuação do

Estado na economia. Por um lado, a corrente do Estado

Regulador afirma que mesmo as atividades ditas públicas devem

se pautar em um regime jurídico tanto possível próximo ao do

livre mercado. Por outro lado, afirma a possibilidade de

intervenção estatal nas atividades ditas privadas, mas desde

que se trate de intervenção indireta (sem a participação

estatal na produção ou comercialização de bens e serviços)

destinada a corrigir falhas de mercado, onde e quando

necessário.

Apesar de, ao contrário de outras correntes aqui

analisadas, a do Estado Regulador não fixar regimes jurídicos

217 O tema é assim tratado por Marques Neto: “...a capacidade técnica do regulador é também um requisito para a própria legitimação da regulação. Quanto mais a agência (e seus agentes) dominar os códigos, necessidades e possibilidades do setor regulado, mais será eficiente a regulação. Isso porque quanto mais capacitada tecnicamente for a agência, menor será a assimetria de informação em relação ao regulado. /§/ Em sendo assim, menor a capacidade de o regulado se utilizar em seu favor do fato de conhecer mais o setor regulado do que o agente estatal (por reunir os dados relativos à sua operação, além de ter grande facilidade de obter informações sobre o setor em que atua). Além disso, a expertise técnica e a especialidade permitem que as medidas tomadas pelo regulador tendam a já levar em conta as especificidades do setor regulado, facilitando sua eficácia.” (MARQUES NETO, 2005, p. 62).

137

típicos para os âmbitos público e privado, a ideia de

subsidiariedade, central a essa corrente, parte da oposição

entre o âmbito do Estado e o de uma ordem econômica espontânea

– o mercado. O que diferencia o Estado Regulador das outras

correntes é a primazia concedida à dita ordem econômica

espontânea. Essa primazia será ainda mais acentuada na

corrente que analisaremos a seguir: a Análise Econômica do

Direito.

1.4.4. Análise Econômica do Direito

Outra narrativa do Pensamento Jurídico Contemporâneo

que lida com as relações entre direito e economia é a Análise

Econômica do Direito - compreendida aqui como a tentativa de

releitura do Direito a partir dos pressupostos metodológicos

da Economia neoclássica, consoante as ideias defendidas por

Richard Posner218 e pela Escola de Chicago219-220, influenciadas

por uma leitura particular das ideias de Ronald Coase221. Tal

qual a narrativa do Estado Regulador, a Análise Econômica do

Direito, no Brasil, é uma contestação aos tratados clássicos

218Cf. POSNER, 1975 e 1998. 219 Sobre a importância do trabalho de Calabresi para a AED, vide: BERGH, 2008; POSNER, 1975, pp. 759-760. Sobre a Escola de Chicago, ver: MERCURO e MEDEMA, 2006, pp. 94-155. 220 Nossa definição, por conseguinte, exclui narrativas alternativas às influenciadas por Posner e da Escola de Chicago, que buscam analisar problemas jurídicos segundo premissas de escolas econômicas outras que a Economia neoclássica. A exclusão se deu por entendermos que: a) essas outras narrativas em geral optam por denominar-se “Direito e Economia” (ou Law and Economics); b) essas outras narrativas não se vinculam à distinção público-privado tal como estabelecida pela visão paradigmática descrita no item 1.1 desta tese. 221 Embora por vezes citado como um dos fundadores da Análise Econômica do Direito, Coase reiteradamente rejeitou a leitura feita por Posner do chamado Teorema de Coase – que, segundo Coase, não foi uma criação sua, mas uma homenagem que lhe prestou o economista George Stigler (Cf. COASE, 1988, posição 241). Retomaremos as ideias de Coase no Capítulo 2 desta tese.

138

de Direito Econômico (e àqueles nesses inspirados)222 e, por

isso, se contrapõe ao Direito Econômico e ao Direito

Administrativo no que concerne aos critérios e fundamentação

da atuação do Estado na economia.

Embora conhecida nos EUA desde a década de 60,

apenas recentemente no Brasil a Análise Econômica do Direito

ganhou maior repercussão. Em comum à narrativa do Estado

Regulador, a Análise Econômica do Direito vincula a

legitimidade da intervenção estatal na economia à busca por

condições equivalentes às de um mercado em condições de

concorrência perfeita223, na forma como caracterizada pela

Economia neoclássica.224 Diferentemente da narrativa de Estado

Regulador, a da Análise Econômica do Direito se aprofunda na

aplicação de conceitos da economia neoclássica à avaliação de

resultados da aplicação de regimes jurídicos a atividades

econômicas.

A Análise Econômica do Direito parte da premissa de

que a livre iniciativa, o respeito à propriedade e o

cumprimento de contratos são elementos essenciais do regime

jurídico típico de livre mercado, e que esse regime jurídico

seria o mais apropriado para promover a eficiência

econômica.225 Esse regime jurídico típico de livre mercado

222 Em CASTRO, 2005, considera-se a Análise Econômica do Direito a origem de um Segundo Direito Econômico, em oposição ao Primeiro Direito Econômico formulado pelos tratadistas clássicos. 223 Cf. SALOMÃO, 2007a, pp. 22-24. 224 Ver item 2.2 abaixo. 225 Afirma Posner: “The rules assigning property rights and determining liability, the procedures for resolving legal disputes, the constraints imposed on law enforcers, methods of computing damages and determining the availability of injunctive relief – these and other important elements of the legal system can best be understood as attempts, though rarely ackowledged as such, to promote an efficient allocation of resources.” (POSNER, 1975, p. 764.)

139

diria respeito ao tratamento da propriedade, dos contratos e

da responsabilização por atos ilícitos – que, por sua vez,

teriam sido elaborados segundo um longo processo de tentativa

e erro típico da common law anglo-saxã.226 Qualquer alteração

naqueles elementos, para a Análise Econômica do Direito, é

considerada intervenção no funcionamento da economia e deve

ser justificada frente à perda de eficiência alocativa227

resultante dessa intervenção. A premissa adotada é a de que o

mercado em condições de concorrência perfeita seria o meio

mais eficiente de alocar recursos em uma sociedade. Ao alocar

recursos de modo eficiente, dita sociedade estaria ampliando

seu bem estar. Ao se afastar da concorrência perfeita, a

sociedade estaria desperdiçando recursos e reduzindo seu bem

estar.

Sob essas premissas, quando voltada a analisar a

política econômica228, a Análise Econômica do Direito avalia o

226 Nesse sentido: “O livro Economic Analysis of Law se desenha, então, em torno do que Posner identifica como sendo as três forças motrizes da Common Law. Primeiro, o direito da propriedade, que se ocuparia de criar e definir os “direitos de exclusividade” sobre recursos escassos. Segundo, o direito contratual/obrigacional, que se ocuparia de facilitar os intercâmbios voluntários desses “direitos de exclusividade”. Da ótica econômica, a transferência de tais direitos para os indivíduos com maior disposição de pagar permitiria a geração de valor. Terceiro, o direito da responsabilização civil, tomado em sentido amplo. Este, da ótica econômica, se ocuparia de proteger os “direitos de exclusividade”, inclusive o direito de exclusividade sobre o próprio corpo. Tomados em conjunto, essas três forças motrizes forneceriam o aparato institucional que permitiria corrigir externalidades e reduzir custos de transação.” (SALAMA, 2010, pp. 6-7.) 227 Corrobora nosso entendimento a seguinte exposição de Calixto Salomão: “A eficiência alocativa relaciona-se com a distribuição dos recursos na sociedade. Não se deve confundir a questão com o problema da distribuição de renda e de riqueza [...]. Para os neoclássicos, verificar se existe eficiência alocativa é simplesmente determinar se os recursos estão empregados naquelas atividades que os consumidores mais apreciam ou necessitam.” (SALOMÃO, 2007a, pp. 198-199). Ver ainda: MANKIW, 2009, pp. 143-151. 228 A Análise Econômica do Direito se vale da metodologia da Economia hegemônica (ver nota 224 supra) para analisar não apenas a influência do direito na economia, mas também para analisar regras jurídicas de modo

140

impacto de regras jurídicas (leis, regulamentos, decisões

administrativas e judiciais) sobre a economia mediante o

confronto de opções alternativas, de modo que podemos

considerá-la um exemplo de policy analysis típico do

Pensamento Jurídico Contemporâneo. Porém, enquanto as

narrativas do Estado Regulador enfatizam “quem” (a agência

reguladora autônoma) deve fazer a policy analysis, a Análise

Econômica do Direito enfatiza “como” ela deve ser realizada.

Para tanto, utiliza os conceitos da Economia

neoclássica como parâmetro analítico para avaliar as

consequências da ação do direito na Economia. A Análise

Econômica do Direito, em decorrência, se ocupa das

consequências da adoção de determinado regime jurídico. Nesse

mister, pouca relevância é dada à questão de se as intenções,

valores ou normas de direito positivo eventualmente exigiriam

que determinado regime jurídico fosse adotado. Por exemplo, um

estudo de Análise Econômica do Direito se preocuparia em

avaliar as consequências que a adoção do regime jurídico

público teria em termos das decisões econômicas envolvidas e

dos resultados alcançados, e não se a adoção desse regime

público é a consequência necessária da natureza de uma

determinada atividade, ou mesmo se é uma determinação presente

no direito positivo.

Ao aplicar os métodos de análise da Economia

neoclássica, a Análise Econômica do Direito incorpora a

premissa de que o direito, assim como a economia, se

caracterizaria pela escassez de recursos para alcançar os fins

geral, buscando nos critérios de racionalidade e eficiência da Economia neoclássica parâmetros para uma teoria geral do Direito (cf. SALOMÃO, 2007a, p. 30).

141

almejados.229 Em decorrência, ao se optar pela alocação de

recursos em uma determinada finalidade, isso ocorreria em

detrimento de outras. Como explica Salama:

A escassez é o ponto de partida da análise econômica. Se

os recursos fossem infinitos, não haveria o problema de

se ter que equacionar sua alocação; todos poderiam ter

tudo o que quisessem, e nas quantidades que quisessem.230

Partindo dessa premissa, a Análise Econômica do

Direito propõe um paralelismo metodológico entre Direito e

Economia: assim como um problema econômico poderia ser

caracterizado a partir da escolha entre comprar (ou produzir)

maçãs ou laranjas, um problema jurídico poderia ser

caracterizado a partir da escolha entre alocar recursos para a

compra de um medicamento (e assim priorizar o direito à saúde)

ou para pagar livros escolares (e assim priorizar o direito à

educação). Em decorrência da escassez de recursos para

alcançar todos os fins almejados pela humanidade, a Análise

Econônica do Direito propôe que, assim como nas questões

tradicionalmente reputadas como econômicas, nas questões

jurídicas se leve em conta o custo de oportunidade.231 Isso

significa, em verdade, considerar questões jurídicas como

229 Sobre a premissa da escassez na Economia: “Lionel Robbins (1932) argued the economics was not about “material welfare: the provision of goods to further prosperity and development”, but rather, it was about “scarcity: the provision of goods to fulfill all wants”, whether conducive to welfare or not. His arguments came to dominate the field, and drove earlier conceptions out of sight […]. Nearly all modern conventional textbooks use scarcity as the fundamental defining problem of economics.” (ZAMAN, 2012, p. 22). 230 SALAMA, 2008, p. 16. 231 A ideia de custo de oportunidade é de ampla utilização na Economia, tal como definida por Gregory Mankiw: “O custo de oportunidade de um item é aquilo de que você abre mão para obtê-lo.” (MANKIW, 2009, p. 6.). Sobre o custo de oportunidade como um dos fundamentos da AED, ver: SALAMA, 2008, p. 16.

142

questões econômicas – isto é, como questões de alocação de

recursos escassos.

A título de ilustração, o direito de A obter do

Estado tratamento para uma forma rara de câncer teria como

custo o direito de B, C, D e E obterem tratamento para formas

mais comuns de câncer. Em resultado, o problema “tem A direito

ao tratamento de sua forma rara de câncer?” seria não

propriamente um problema jurídico, mas um problema econômico –

como dito, um problema de alocação de recursos escassos.

Generalizando o raciocínio, para a Análise Econômica do

Direito todo direito teria um custo: os recursos que foram

alocados para satisfazer aquele direito em detrimento da

satisfação de outros direitos.232

Por isso, para a Análise Econômica do Direito, o

modelo teórico utilizado pela Economia neoclássica para

explicar o funcionamento dos mercados (especificamente a

Teoria dos Preços e a ideia subjacente do indivíduo como

maximizador racional) poderia e deveria ser utilizado para

explicar o direito, principalmente do ponto de vista da

eficácia dos recursos alocados frente aos resultados obtidos.

Esse modelo serviria para fundamentar o raciocínio de

advogados, juízes e juristas de um modo geral, no tratamento

das questões tradicionalmente consideradas como jurídicas,

inclusive no que concerne à definição de Justiça.

232 Nesse sentido: “A escassez força os indivíduos a realizarem escolhas e a incorrerem em trade-offs. Os trade-offs são, na verdade, “sacrifícios”: para se ter qualquer coisa é preciso abrir mão de alguma outra coisa – nem que seja somente o tempo. [...] A noção de escassez traz uma série de implicações para o estudioso, o profissional, e o pesquisador em Direito. Uma delas – talvez a mais dramática – diz respeito ao fato de que a proteção de direitos consome recursos. Ou seja, ou os direitos são custosos, ou não têm sentido prático.” (SALAMA, 2008, p. 16.)

143

A principal consequência da adoção das premissas da

Economia neoclássica é mensurar o direito pela régua da

eficiência na alocação de recursos escassos. E, para tanto, a

Análise Econômica do Direito adota a noção da Economia

neoclássica de que a alocação de recursos escassos seria tanto

mais eficiente, quanto maior a satisfação das preferências

individuais.233 Parte-se do pressuposto de que o preço que

alguém está disposto a pagar refletiria a utilidade que essa

pessoa teria conferido a determinado bem – dado que o preço

mede também o custo de oportunidade que essa pessoa está

diposta a incorrer.234 Este é o pressuposto ideológico do

individualismo liberal, traduzido na ideia da escolha racional

dos indivíduos como instrumento de maximização de bem estar.

Segundo essa premissa, ao ser confrontado com diversas opções,

o indivíduo sempre escolheria aquela que traria para ele a

maior utilidade possível.235

Em decorrência, por ser tradução das escolhas

individuais, o mercado seria maximizador de utilidade, pois,

no conjunto, todos os indivíduos do mercado escolheriam as

melhores opções para si. A preferência individual a ser

maximizada, portanto, seria aquela revelada pelo sistema de

233 O seguinte trecho ilustra essa posição da Análise Econômica do Direito: “In the study of law, the ideal is the improvement of the legal system. Legal philosophies, however, disagree on what constitutes an improvement of the legal system. Economic analysis of law takes the position that the proper ideal of the legal system is the promotion of social welfare, that is, the maximization of the satisfaction of individuals’ preferences.” (GEORGAKOPOULOS, 2005, p. 21 – tradução livre.) 234 Para uma explicação da teoria do consumidor da Economia neoclássica e do preço como expressão da utilidade (ou valor) atribuído pelos indivíduos, ver: MANKIW, 2009, pp. 441-466. 235 Nesse sentido: “A premissa comportamental implícita na Teoria dos Preços é a de que os indivíduos farão escolhas que atendam seus interesses pessoais, sejam eles quais forem. Daí dizer-se que indivíduos racionalmente maximizam seu bem-estar. Note que a ideia é a de que todas as pessoas são maximizadoras racionais de bem-estar, e também de que a maximização se dá em todas as suas atividades.” (SALAMA, 2008, p. 16.)

144

preços. Com base nessa formulação, se assume como axioma a

ideia de que a melhor alocação de recursos é exatamente

destiná-los a quem está disposto a pagar mais, pois assim os

recursos seriam entregues a quem lhes desse maior utilidade.

Há nessa ideia um pretenso conteúdo emancipador: não

importaria se uma pessoa fosse mais rica do que outra, se

seria de determinada etnia, se seria de determinado gênero.

Quem pagasse mais, ficaria com o bem (material ou imaterial)

em questão. Nesse sentido, ao enfatizar a escolha individual,

a Análise Econômica do Direito adota também uma justificativa

moral dita pragmática, como afirma um dos autores dessa

corrente:

O fundamento da análise econômica do direito é factual,

a satisfação de interesses, ao invés de moral.

Indivíduos têm preferências. Este é um fato a partir do

qual podemos determinar o quê aumenta o bem estar de um

indivíduo, que é satisfazer aquelas preferências.

Naturalmente, o sistema jurídico deveria tentar prover

mais satisfação de preferências do que menos. Assim, a

teoria da justiça da análise econômica do direito flui

do fato, sem interjeição de moralização. Filósofos

morais, é claro, objetariam afirmando que indivíduos

deveriam obter auto-realização ou satisfação moral. Para

o estudioso de “direito e economia” [law and economics],

essas objeções são preferências – seja preferências de

indivíduos, seja preferências dos filósofos morais. Como

preferências, elas fariam parte de qualquer abordagem de

bem-estar, mas seu espírito e importância seriam

dramaticamente menores do que se eles fossem tidos como

ideais universais.236

236 “The foundation of economic analysis of law is factual, the satisfaction of preferences, rather than moral. Individuals have preferences. This is a fact from which we can determine what increases individual’s welfare, which

145

Em resultado, a Análise Econômica do Direito também

defende, de modo geral, uma abordagem não-intervencionista que

guarda similitude com a ideia de subsidiariedade pregada pela

corrente do Estado Regulador.237 Todavia, a legitimação

discursiva da Análise Econômica do Direito não recorre ao

neoformalismo, como faz o Estado Regulador, mas a uma leitura

moral da assumida maximização das preferências individuais

pelas escolhas em um mercado.238 A preocupação da Análise

Econômica do Direito é com as consequências das regras

jurídicas tendo em vista sua repercussão na maximização do

bem-estar social – segundo a noção de bem-estar da Economia

neoclássica. Em outras palavras, importa para a Análise

Econômica do Direito verificar qual dentre as opções possíveis

para o direito deve ser escolhida para que se alcance o maior

bem-estar.

Na Análise Econômica do Direito, a intervenção

estatal é vista a priori como prejudicial. A ideia de “falhas

de governo” tem lugar de destaque, e se traduz na noção de que

intervenções regulatórias para corrigir falhas de mercado

produzem resultados piores do que as próprias falhas que

is to satisfy those preferences. Naturally, the legal system should attempt to provide more satisfaction of preferences rather than less. Thus, the theory of justice of economic analysis of law flows from fact with no interjection of moralizing. The moral philosophers, of course, would object by stating that individuals should obtain self-actualization or moral fulfillment. To the law-and-economics scholar, those objections are preferences – either preferences of individuals or preferences of the moral philosophers. As preferences, they would be part of any welfarist approach, but their wight and importance would be dramatically smaller than if they were believed to be universal ideals.” (GEORGAKOPOULOS, 2005, p. 33 – tradução livre.) 237 O seguinte trecho, de autor vinculado à Análise Econômica do Direito, ilustra essa semelhança de abordagem: “That the law seeks to maximize social welfare means that the law is the servant of society. That economic analysis subscribes to this view shows that it takes non-interventionist view of the law.” (GEORGAKOPOULOS, 2005, p. 23.) 238 Para uma análise crítica da atribuição de valor moral ao resultado de escolhas para atendimento de preferências individuais, ver DWORKIN, 1980.

146

buscaram corrigir. Adicionalmente, para fins de avaliar qual

opção maximiza preferências individuais – e, em decorrência, o

bem-estar social - atividades públicas e privadas são

igualadas. A ideia de que atividades devem ser retiradas da

iniciativa privada e cominadas ao Estado não é nem defendida,

como o faz o Direito Administrativo tradicional, nem

rejeitada, como o faz a narrativa do Estado Regulador com

argumentos neoformalistas. Ao contrário, a opção de retirada

de uma atividade da economia é simplesmente desconsiderada nos

termos em que avaliadas por aquelas duas outras narrativas. Na

narrativa do Estado Regulador ainda remanesce a influência do

Direito Administrativo no que concerne à equivalência entre

Estado e atividades públicas, e entre economia e atividades

privadas. Na Análise Econômica do Direito, a distinção entre

Estado e economia continua a se fazer presente, porém não mais

sustentada na divisão entre um campo de atividades públicas e

outro campo de atividades privadas. Não se trata de defender

que o Estado é pautado pelo princípio da subsidiariedade para

diminuir o seu espaço de atuação. A assunção pelo Estado de

uma atividade, em geral, é vista exclusivamente sob o ponto de

vista da racionalidade e da eficiência de sua atuação. Toda a

atividade econômica poderia (em tese), para a Análise

Econômica do Direito, ser pública ou ser privada – desde a

administração da Justiça à execução de serviços de

infraestrutura, passando por atividades de saúde, educação e

até mesmo de gestão de cidades. A questão, para essa

abordagem, é avaliar as consequências da atuação do Estado em

determinada atividade. E as premissas adotadas, em geral,

colocam o Estado como uma opção pouco eficiente, quando não

completamente indesejável, para a assunção de quaisquer

atividades, dado que o Estado não teria a capacidade do

mercado de maximizar os interesses individuais e, em

decorrência, aumentar o bem-estar social.

147

1.5. As contribuições dos três modos de pensamento na formação e consolidação da visão paradigmática sobre direito e economia

Como visto, as relações entre direito e economia

tiveram tratamento variável no curso do último século.

Diferentes modos de pensamento jurídico estruturaram

narrativas diversas, que ora conferiam ao direito o papel de

defesa das relações econômicas frente à ingerência estatal,

ora atribuíam ao direito papel oposto - de justificar a ação

estatal na economia. A Tabela 1 abaixo, com base nas

discussões de Kennedy e outros autores acima referidos, busca

sintetizar as diferentes visões até agora abordadas sobre as

relações entre direito e economia.

Tabela 1 - Modos de pensamento jurídico e sua contribuição para a visão paradigmática sobre direito e economia

Pensamento Jurídico

Clássico (1850-1914)

Pensamento Jurídico Social (1900-1968)

Pensamento Jurídico Contemporâneo (1945-2000)

Característica central

Teoria da vontade: vontades absolutas dentro de suas respectivas esferas

Interdependência: necessidades sociais requerem soluções sociais (e não individuais)

Neoformalismo: direito positivo é um sistema coerentemente formulado e que permite uso da dedução para resolução de problemas específicos policy analysis: regras jurídicas são produzidas por acomodações específicas que harmonizam opções políticas conflitantes

Influência na visão paradigmática sobre direito e economia

• Divisão rigorosa entre público e privado.

• Visão do privado como espaço de exercício da vontade individual e das relações espontâneas do livre mercado.

• Identificação de um regime jurídico privado típico.

• Identificação do regime (de direito) público com interesses sociais.

• Visão de que o Estado atua (legitimamente) no atendimento a interesses sociais, que correspondem a necessidades sociais.

• Desvinculação entre âmbitos público e privado e regimes jurídicos típicos.

Fonte: elaboração do autor.

148

Apesar de termos exposto os modos de pensamento em

uma cronologia – tal como articulado por Duncan Kennedy -, a

influência dessas diferentes consciências jurídicas não se

restringe ao período em que foram dominantes. Como afirma

Unger: nenhum estilo de discurso, não importa quão poderosa

sua influência, ocupa a totalidade de uma cultura jurídica ou

penetra toda uma mente jurídica.239 Em decorrência, mesmo que

seja possível, como faz Kennedy, circunscrever consciências

jurídicas a períodos de nossa história, isso não implica

afirmar que no período em que um modo de pensamento jurídico

prevaleceu, narrativas ou ideias do modo de pensamento

anterior não continuassem influentes. Em outras palavras,

entendemos que ideias e narrativas do Pensamento Jurídico

Clássico e do Pensamento Jurídico Social continuam, em muitas

áreas, relevantes e influentes nos dias de hoje, não obstante

o advento do Pensamento Jurídico Contemporâneo – ou mesmo

inobstante o surgimento de doutrinas críticas a esse modo de

pensar.240 Além disso, é também importante lembrar que o

próprio Pensamento Jurídico Contemporâneo se caracteriza por

combinar elementos do Pensamento Jurídico Clássico e do

Pensamento Jurídico Social. Logo, esses dois modos de pensar

permanecem influentes na contemporaneidade.

Essa constatação é importante ao se considerar a

genealogia do que na introdução desta tese identificamos como

visão paradigmática sobre direito e economia. Como expusemos,

a visão paradigmática caracteriza a ação estatal como uma

alternativa à ação de mercados espontâneos, e organiza os

239 “No style of discourse, however powerful its influence, occupies the whole of a legal culture or penetrates all of a legal mind.” (UNGER, 1996, p.41 – tradução livre.) 240 No Capítulo 2, trataremos de uma dessas críticas, feita por Roberto Mangabeira Unger.

149

intrumentos jurídicos da política econômica segundo a

possibilidade, a forma e o grau de intervenção do Estado no

funcionamento do mercado. Ainda segundo a visão paradigmática,

o uso de instrumentos jurídicos pela política econômica

implicaria uma suspensão do que seria a ordem natural das

relações econômicas em um regime de livre mercado. Mesmo

quando justificada pela necessidade de se garantir o livre

mercado – como na narrativa do Estado Regulador -, a atuação

estatal e o uso de instrumentos jurídicos são reputados uma

força externa, uma intervenção portanto, naquilo que as

relações econômicas teriam produzido por si só.

Contudo, após percorrer as principais narrativas

brasileiras sob as três consciências jurídicas globalizadas

identificadas por Duncan Kennedy - é possível compreender o

quão contingente é a visão paradigmática. Em cada modo de

pensamento analisado, diferentes compreensões do papel do

direito na economia justificaram abordagens diversas, em que

ora o papel do direito seria o de proteger a ordem econômica

contra o Estado, ora seria o contrário – instrumentalizar a

intervenção estatal na economia.

No Pensamento Jurídico Clássico, construiu-se a

noção de que existe um âmbito privado típico das relações de

mercado. Esse âmbito privado seria, segundo a teoria da

vontade, o espaço singular de manifestação da vontade privada.

A ele se contrapõe o espaço da manifestação da vontade

coletiva, o âmbito público. O espaço privado seria delimitado

e protegido frente à intervenção da vontade pública, pois

naquele a vontade privada seria absoluta. Por meio da

racionalidade jurídica, o privado se construiria na forma de

um sistema organizado a partir de categorias abstratas e

gerais. Dessas categorias gerais e abstratas, seria possível

deduzir o que legitimamente pertenceria ao âmbito privado e,

150

por conseguinte, estaria sujeito unicamente à vontade privada,

individual. Em razão disso, o Pensamento Jurídico Clássico

identifica um regime jurídico típico para as relações

privadas. Na medida em que as relações de mercado

correspondessem a esse espaço privado – o que no Brasil

ocorreu sob o que chamamos de liberalismo de conveniência241 -,

o regime privado seria o regime do mercado.

Essas ideias do Pensamento Jurídico Clássico, em

diferentes graus e sob diversas roupagens, influenciaram de

forma decisiva as narrativas que se estruturaram em modos de

pensamento posteriores. Não obstante a variedade de ideias e

construções teóricas posteriores, é possível identificar duas

ideias centrais sobre a economia que são pressupostas pelo

Pensamento Jurídico Clássico e que, até hoje, são

compartilhadas pelas narrativas teóricas sobre direito e

economia. São elas: i) mercados surgem espontaneamente das

relações privadas; ii) as relações privadas se caracterizam

pela escolha racional individual para atender a interesses

também individuais.

Embora remontem ao Pensamento Jurídico Clássico,

essas duas pressuposições estão presentes nas correntes do

Pensamento Jurídico Social e, especialmente, do Pensamento

Jurídico Contemporâneo analisadas neste capítulo. As ideias de

que mercados são espontâneos, e a de que relações privadas são

produto de escolhas racionais individuais, com efeito, nunca

são completamente abandonadas pelas diversas narrativas sobre

direito e economia que analisamos. Portanto, as duas

pressuposições do Pensamento Jurídico Clássico – mercados são

241 Ver supra, p. 52.

151

produtos espontâneos da vontade privada, e relações privadas

se caracterizam pela escolha racional para atender a

interesses individuais – remanescem no paradigma atual sobre

direito e economia. Esse paradigma pressupõe que o direito

traçaria os limites da economia – dizendo o que é ou não

econômico. Nos limites da moldura fixada pelo direito, a

economia se desenvolveria de forma autônoma. Em decorrência,

sob esse paradigma, todas as narrativas analisadas ou buscam a

utilização da moldura fixada pelo direito para modificar a

influência da economia, ou buscam modificar o próprio direito

para que a economia se desenvolva melhor. O direito, e

especialmente os instrumentos jurídicos da política econômica,

são vistos ou como meio de excepcionar a ordem econômica, ou

como algo que deve se adequar à economia sob pena de

obstaculizar o seu bom funcionamento. Todas as visões

analisadas identificam, de diferentes maneiras, uma lógica do

econômico, e uma lógica do jurídico-político, em que ambas não

se confundem. As narrativas analisadas se digladiam na defesa

de espaços de hegemonia do jurídico-político frente ao

econômico, ora favorendo o primeiro, ora favorecendo o último.

Porém, como adverte Duncan Kennedy, essa concepção é

enganosa (misleading), pois as instituições jurídicas têm uma

relação de interdependência com a atividade econômica.242 Como

veremos no Capítulo 2, o funcionamento diuturno da economia se

dá com base em instituições que são construídas e articuladas,

em maior ou menor grau, pela atividade jurídica. A questão,

242 Diz Kennedy: “But framework and context are misleading terms for describing the relationship between legal and economic activities. This is because economic activity can’t be understood as something autonomous in relation to a set of passive institutional and legal conceptual constraints, as the terms framework and context suggest. Legal institutions have a dynamic, or dialectical, or constitutive relationship to economic activity.” (KENNEDY, 2006, p. 19)

152

portanto, não é apenas se deve a moldura (direito) ser

adequada ao quadro (economia), ou se é o quadro (economia) que

deve ser adequado à moldura (direito). O direito não suspende

a economia, nem a constrange. O direito integra a economia. Ao

ignorar a interrelação entre direito e economia, as teorias

jurídicas até aqui apresentadas, em primeiro lugar, falham em

sua pretensão de descrever adequadamente a realidade e, em

segundo lugar, acabam por prescrever soluções normativas

vinculadas a uma específica visão de política econômica: a

visão que corresponde às pressuposições acima identificadas.

Ao fazê-lo, defenderemos a seguir, obstam a construção de

soluções republicanas e democráticas que configurem novas

alternativas de política econômica.

153

Capítulo 2 - A construção jurídica da economia: releituras do papel do direito

No capítulo 1, vimos que a ideia de que a atuação do

Estado é externa a um mercado caracterizado como ordem

espontânea é assumida como axioma pela visão paradigmática

sobre direito e economia. A partir desse axioma, os

instrumentos jurídicos da política econômica são compreendidos

como elementos externos ao campo das relações econômicas. Essa

ideia central, porém, não é auto-evidente e, ao assumi-la como

axioma, não se analisam os seus pressupostos. Propomos que

essa ideia se relaciona a duas pressuposições sobre a

economia: i) mercados surgem espontaneamente a partir das

relações privadas; ii) relações privadas se caracterizam pela

escolha racional individual para atender a interesses também

individuais. Essas duas pressuposições estruturam a ideia do

âmbito privado na economia, que, do ponto de vista jurídico,

desde o Pensamento Jurídico Clássico é utilizada para

delimitar o papel do direito na economia.

A visão paradigmática assume ainda os contornos do

que Roberto Mangabeira Unger chama de profecia

autorrealizada243 e que se revela um círculo vicioso: as ideias

que adota como pressupostos constrangem as instituições, e as

243 Nos referimos ao seguinte trecho do autor: “Every social world must be normalized to become stable; its arrangements, even if originating in violence and accident, must be seen to embody a set of possible and desirable images of human association – pictures of what relations among people can and should be like in different domains of social life. Against the background of the two-way relation between understanding and transforming, the imperative to normalize and to moralize turns all of our most powerful social ideas into self-fulfilling prophecies. In acting in such ideas, people reshape the social world in the image of these ideas.” (UNGER, 2007a, p. 34.)

154

instituições constranjem as ideias. Em outras palavras, porque

assume que o direito é externo à economia, as instituições

jurídicas são construídas de acordo e, assim, apenas atuam

como se fossem externas à economia. E porque as instituições

jurídicas atuam como se fossem externas à economia, a

existência e atuação dessas acaba servindo de suporte para a

ideia de que o direito é externo à economia. Por sua vez, como

ressaltamos, esta ideia é estruturada em duas outras –

mercados são espontâneos, e os agentes econômicos agem

racional e hedonisticamente. As instituições jurídicas atuais,

por isso, também reforçam a visão de mundo segundo a qual

mercados são espontâneos e resultam da busca racional de

interesses individuais.

Para quebrar o cículo vicioso de profecias

autorrealizáveis, é necessário problematizar as pressuposições

do atual paradigma. A busca por novas instituições necessita

de um novo paradigma, e um novo paradigma exige que se

contemplem as alternativas institucionais deixadas de lado.

Essas alternativas institucionais, por sua vez, serão tanto

mais evidentes, quanto ficarem evidentes as limitações da

visão de mundo que caracteriza o atual paradigma.

O papel do direito na formação de novas

instituições, e a decorrente crítica aos modos de pensamento

descritos por Duncan Kennedy – em especial ao Pensamento

Jurídico Contemporâneo – é portanto relevante para que se

abram as portas a um novo paradigma sobre direito e economia.

Ao lado das ideias centrais de uma visão de mundo

compartilhada, o modo de pensamento jurídico condiciona e

limita os instrumentos jurídicos da política econômica. Quando

se afirma a inadequação dos instrumentos paradigmáticos para

realizar os ideais e valores democráticos do mundo atual –

como faremos neste capítulo -, superar os constrangimentos às

155

atuais formas institucionais é passo necessário para a busca

por soluções alternativas. A procura por uma sociedade mais

justa é também a procura por instituições jurídicas mais

adequadas. Limitar essa busca às instituições atuais é

frustrar a promessa que traz a democracia de libertação da

condição humana frente ao determinismo social e material.244 É

por isso frustrar também o papel do direito na realização

dessa promessa.

Sendo assim, como antecedente à análise das duas

ideias pressupostas pela visão paradigmática, iremos começar

este capítulo com a crítica ao próprio Pensamento Jurídico

Contemporâneo. Para tanto, nos valeremos das ideias de Roberto

Mangabeira Unger – que, tal como Duncan Kennedy, é um autor

ligado ao Critical Legal Studies Movement (embora Mangabeira

busque se distinguir desse movimento245).

244 Compartilhamos da visão de Roberto Mangabeira Unger: “...the democratic project has been the effort to make a practical and moral success of society by reconciling the pursuit of two families of goods: the good of material progress, liberating us from drudgery and incapacity an giving arms and wings to our desires, and the good of individual emancipation, freeing us from the grinding schemes of social division and hierarchy.”(UNGER, 1996, p. 6). 245 Mangabeira Unger assim se expressou sobre o Critical Legal Studies Movement, em comentário a sua obra de mesmo título: “Published in 1983, "The Critical Legal Studies Movement" is a revised and expanded version of a talk given in 1982. It is a programmatic intervention in legal thought: a proposal for the direction that the then nascent movement of critical legal studies should take, not a description of what people engaged in this movement thought, said, and wrote. My proposal fell on deaf ears. Critical legal studies preferred, for the most part, to gravitate around familiar themes: the radicalization of the idea of doctrinal indeterminacy, a neo-marxist functionalist approach to the place of law in society, and identity politics. In my own work, the expanded and transformed doctrinalism explored in this little book would later give way to an attempt to turn legal thought into a practice of institutional imagination. The "internal criticism" tried out here prefigured other, less narrowly doctrinal efforts to recover, from the bottom up and from the inside out, the vision of alternative possibilities. The dominant styles of legal analysis had sacrified this vision to the humanization of the inevitable.” (UNGER, 2014).

156

A visão de Kennedy, como visto, tem preocupação mais

de analisar e descrever os modos de pensamento jurídico, do

que propriamente em estabelecer uma crítica sistemática que

resulte em propostas de reconstrução institucional. Mas sem

dúvida, o intento de Kennedy em sua análise é crítico.

Entendemos, por isso, que as ideias de Mangabeira são

complemento adequado para as ideias de Kennedy apresentadas no

capítulo 1.

Após a breve exposição da parte do pensamento de

Mangabeira que entendemos útil para a análise desta tese,

enfrentaremos as duas pressuposições que identificamos: a

ideia de que mercados são espontâneos, e a ideia de que

relações privadas são fundadas em interesses individuais e

produto de escolhas racionais. Essas duas ideias não são, como

dito, objeto de análise das narrativas sobre direito e

economia que avaliamos. Porém, são objeto de tratamento pela

Economia. Especialmente, essas duas pressuposições

correspondem a ideias centrais defendidas pela Economia

Clássica e depois retrabalhadas pela Economia Neoclássica.

Iremos, em decorrência, apresentar ao leitor uma síntese do

tratamento que fazem a Economia Clássica e a Economia

Neoclássica daquelas duas ideias que são pressupostas pela

visão paradigmática. Em seguida, utilizaremos o

neoinstitucionalismo de Ronald Coase como contraponto à ideia

de que mercados são o produto espontâneo das relações

privadas, e utilizaremos autores ligados à Economia

Comportamental como contraposição à ideia de que relações

privadas se caracterizam pela escolha racional individual para

atender a interesses individuais.

Os contrapontos às ideias pressupostas pela visão

paradigmática servirão para explorar as possibilidades de uma

compreensão alternativa das relações entre direito e economia.

157

Sendo assim, a premissa que permeia a investigação a seguir é

a de que um novo paradigma das relações entre direito e

economia se faz necessário para aperfeiçoar o papel

instrumental do direito na realização de uma sociedade mais

justa e mais democrática. Além disso, é necessário compreender

melhor o papel do direito na formação da sociedade e das

relações econômicas. Esse debate será conduzido com base nas

ideias de Marcus Faro de Castro sobre o papel do direito na

economia, e sua proposta de Análise Jurídica da Política

Econômica.

Como liame condutor das ideias que apresentaremos a

seguir, está a hipótese de que, ao contrário do que estabelece

a visão paradigmática, as instituições jurídicas constróem a

economia e, por isso, podem ser utilizadas para modificar as

relações econômicas por dentro. O direito, na visão

alternativa que propomos, é instrumento de imaginação

institucional para a construção democrática de projetos

alternativos de sociedade.246 Essa visão, longe de ser apenas

um recurso meramente retórico, tem as vantagens de fornecer

melhor quadro analítico para descrever a atuação do direito na

economia, e de oferecer um número maior de instrumentos

jurídicos para a realização da política econômica.

246 Nesse sentido, em análise à ideia de democracia proposta por Mangabeira Unger, Carlos Sávio Teixeira afirma que: “A premissa central das inovações institucionais da vida social é a de que uma economia de mercado democratizada precisa de uma estrutura constitucional da política e do Estado que favoreça, ao invés de inibir, a prática permanente da mudança. Isso, por sua vez, requer um arcabouço jurídico institucional da política capaz de sustentar níveis razoáveis de engajamento popular e a imaginação de um direito público capaz de prover a sociedade civil com instrumentos mais apropriados do que o direito privado de contratos para a sua auto-organização.” (TEIXEIRA, 2010, p. 59).

158

2.1. Fetichismo institucional e a oportunidade perdida da imaginação de instituições: a crítica de Mangabeira Unger ao Pensamento Jurídico Contemporâneo

Tal como Duncan Kennedy, Roberto Mangabeira Unger

reconhece a existência de um modo de pensamento típico da

contemporaneidade, a que chama de contemporary legal thought.

Pela semelhança de tratamento e características, utilizaremos

a mesma denominação - Pensamento Jurídico Contemporâneo – para

nos referir à forma como esses dois autores – Kennedy e Unger

– caracterizam a linguagem jurídica contemporânea. Porém,

enquanto Kennedy busca uma genealogia dos modos de pensamento

jurídico, Unger critica o modo como o direito se manifesta em

nossos dias, e busca formular uma proposta alternativa de

análise jurídica. Assim, como dissemos, Mangabeira Unger e

Kennedy têm visões complementares.

Mangabeira Unger define o Pensamento Jurídico

Contemporâneo como uma consciência jurídica que penetrou e

transformou o direito subjetivo, afirmando o caráter empírico

e reversível da autodeterminação individual e coletiva: sua

dependência de condições práticas de fruição, que podem

falhar.247 Em decorrência, sob o Pensamento Jurídico

Contemporâneo, os diversos ramos do direito e da doutrina

jurídica se organizaram em um sistema binário de direitos de

escolha e de arranjos retirados do escopo da escolha para

melhor tornar o exercício da escolha real e efetivo.248 Esse

247 Diz Unger: “...a legal consciousness has penetrated and transforme substantive law, affirming the empirical and defeasible character of individual and collective self-determination: its dependence upon practical conditions of enjoyment, which may fail.” (UNGER, 1996, p. 26.) 248 Nesse sentido: “...a binary system of rights of choice and of arrangements withdrawn from the scope of choice the better to make the exercise of choice real and effective.” (UNGER, 1996, p. 27.)

159

sistema binário afeta tanto escolhas políticas, como escolhas

individuais de caráter econômico. Assim, sob o Pensamento

Jurídico Contemporâneo, há opções que são negadas ao cidadão

(político) e ao indivíduo (econômico). Como explica Unger, a

finalidade é evitar que a democracia se torne uma farsa, em

que, sob a aparência de coordenação, haja em verdade

subjugação.249 Negam-se algumas escolhas, para se garantir a

permanência do próprio direito a escolher, seja no âmbito

público da política, seja no âmbito privado das relações

econômicas.

Como avaliar, então, o que deve ou não ser passível

de escolha? A resposta do Pensamento Jurídico Contemporâneo se

sustenta no neoformalismo identificado por Duncan Kennedy. O

recurso retórico a direitos enunciados formalmente em textos

normativos - especialmente em constituições e tratados

internacionais – é o modo como o Pensamento Jurídico

Contemporâneo resolve aquela questão. Com base na retórica

neoformalista, a doutrina jurídica, e os tribunais, excluem

determinadas opções políticas ou econômicas do espectro

daquilo que pode ser objeto de livre deliberação e escolha por

parte dos cidadãos organizados politicamente (ou,

especialmente, de seus representantes), ou por parte dos

indivíduos no curso de suas relações econômicas.

249 Essa descrição de Unger é ponto de partida para a crítica que se seguirá, cujo alvo mais incisivo são os debates da Teoria Constitucional contemporânea sobre o papel contramajoritário dos direitos constitucionais e sobre o papel da técnica de balanceamento de direitos na jurisdição constitucional. A ideia de direitos fundamentais como respaldo para a posição contramajoritária, como vimos, traduz o que Duncan Kennedy chama de neoformalismo do Pensamento Jurídico Constemporâneo. A técnica de balanceamento de direitos na jurisdição constitucional, por sua vez, corresponde ao policy analysis descrito pelo mesmo autor.

160

Ao recorrer ao neoformalismo como fundamento para

decidir entre o que deve ou não ser passível de escolha, o

Pensamento Jurídico Contemporâneo exclui o recurso a qualquer

posição ideológica. Como afirma Mangabeira Unger, em

decorrência dessa desideologização, o Pensamento Jurídico

Contemporâneo retoma o ambicioso projeto do Pensamento

Jurídico Clássico de uma ciência jurídica capaz de: i) revelar

o conteúdo intrínseco e a forma institucional adequados a uma

sociedade livre; ii) policiar os limites dessa sociedade livre

e protegê-la contra a indevida invasão da política.250 Assim,

em lugar de assumir a existência de visões de mundo parciais e

incompletas, refletidas em diferentes e por vezes conflitantes

posições ideológicas, o Pensamento Jurídico Contemporâneo toma

por base o que Unger chama de tese da convergência:

De acordo com essa ideia [a tese da convergência], a

evolução institucional do mundo moderno é melhor

compreendida como um caminho por tentativa e erro em

direção às únicas instituições políticas e econômicas

que se provaram capazes de reconciliar prosperidade

econômica com um razoável respeito à liberdade política

e à segurança social. Variações nos arranjos

institucionais das sociedades contemporâneas bem

sucedidas são reais, mas secundários: em todo caso, eles

tenderiam a se aproximar na medida em que as implacáveis

lições da experiência deixassem cada vez menos espaço

para a imaginação reconstrutiva.251

250 Diz o autor: “...[contemporary legal thought] resembles, in the generality of its scope and the fecundity of its effects, the bold conception that preceded it in the history of law and legal thought: the project of a legal science that would reveal the in-built legal and institutional content of a free society and police its boundaries against invasion by politics.” (UNGER, 1996, p. 28.) 251 “According to this idea the institutional evolution of the modern world is best understood as an approach, by trial and error, toward the only political and economic institutions that have proved capable of reconciling

161

A tese da convergência, portanto, afirma uma

progressiva evolução institucional da sociedade humana, em que

a história, por tentativa e erro, revelaria o conjunto de

instituições mais adequados a assegurar para a humanidade uma

desejada prosperidade econômica e estabilidade política.

A tese da convergência se desdobra no que Mangabeira

Unger chama de fetichismo institucional: a crença de que

conceitos institucionais abstratos - como a democracia

política, a economia de mercado e sociedade civil livre – têm

uma única, natural e necessária expressão institucional.252

Segundo Unger, o fetichismo institucional é uma superstição

presente de forma difusa em toda a cultura contemporânea, e

erradicá-la seria tarefa para toda uma geração de cientistas

sociais.253 O fetichismo institucional, diz o autor, nos impede

de ver que a democracia representativa, os mercados e a

sociedade civil podem assumir formas muito diferentes das que

prevalecem na sociedade ocidental contemporânea.

O fetichismo institucional também se faz presente no

Pensamento Jurídico Contemporâneo. A premissa adotada por

este, de que a autodeterminação individual e política depende

de condições práticas de fruição que podem falhar, não implica

a consequência que se imputou: a adoção de um conjunto

específico de instituições para limitar e constranger direitos

economic prosperity with a decent regard to polical freedom and social security. Variations in the institutional arrangements of successful contemporary societies are real but secondary: if anything, they tend to become narrower as the relentless lessons of experience leave ever less room for the reconstructive imagination.” (UNGER, 1996, pp. 8-9 – tradução livre.) 252 “...the belief that abstract institutional conceptions, like political democracy, the market econoy, and a free civil society, have a single natural and necessary institutional expression.” (UNGER, 1996, p. 7 – tradução livre.) 253 UNGER, 1996, p. 7.

162

de escolha. Em outras palavras, usando o vocabulário de

Kennedy, o neoformalismo não é a única resposta possível para

evitar que as condições práticas frustrem o projeto de

autodeterminação política e econômica que caracteriza a

sociedade moderna. Ao contrário, por recorrer a um conjunto

específico de instituições, o fetichismo institucional frustra

esse projeto. Em vez de contribuir para a emancipação do ser

humano pelo reforço a sua autodeterminação, o neoformalismo

constrange essa emancipação por vinculá-la a uma única

manifestação institucional admitida como possível. Isso porque

o recurso ao neoformalismo obscurece o fato de que a

efetivação de direitos individuais ou coletivos pode ocorrer

sob diferentes condições efetivas de fruição, e que essas

diferentes condições efetivas de fruição admitem diversas

estratégias possíveis que podem se manifestar em inúmeras

formas institucionais – tanto existentes, como apenas

imaginadas. As condições efetivas de fruição de direitos podem

tanto exigir a manutenção das atuais instituições e o eventual

controle de seus efeitos adversos, como podem exigir gradual e

progressiva mudança institucional.

O neoformalismo do Pensamento Jurídico

Contemporâneo, contudo, se caracteriza pelo recurso a direitos

formais em substituição ao debate político e ideológico entre

as diversas formas institucionais possíveis para a solução de

um dado problema social. Em decorrência, há fetichismo

institucional, pois o neoformalismo adota uma solução

institucional específica para um problema social. Essa solução

institucional específica passa então a ser confundida com o

próprio direito a que o problema seja solucionado – isto é,

efetivar o direito à resolução de um problema social, nessa

visão, significa adotar aquela solução institucional

específica, o que desconsidera que outras instituições

poderiam também solucionar o problema. Assim, por exemplo, o

163

problema do financiamento por operadoras privadas de planos de

saúde de tratamentos para a cura de formas agressivas de

câncer é frequentemente formulado nos termos de um confronto

entre o direito à saúde e o direito de propriedade, como se o

direito à saúde tivesse uma forma institucional clara que

assegurasse o tratamento em qualquer hipótese, e o direito à

propriedade outra forma institucional clara que assegurasse

proteção absoluta às receitas do contrato celebrado entre

operadora e beneficiado.

A alternativa ao Pensamento Jurídico Contemporâneo

que Unger propõe é, a partir do reconhecimento de que direitos

de escolha são falíveis e podem ser revertidos, reforçar esses

direitos mediante a construção de pluralismos alternativos: a

exploração, no argumento programático ou na reforma

experimental, de uma ou outra sequência de mudança

institucional.254 Em outras palavras, ao invés do recurso a

direitos formais como mediadores não-ideológicos entre aquilo

que pode ou não se sujeitar à autodeterminação, Unger propõe

recorrer ao experimentalismo democrático.

O experimentalismo democrático para Mangabeira Unger

é um processo coletivo de descoberta e de aprendizagem. Porém

não se trata de um processo necessariamente evolutivo, isto é,

um processo em que as tentativas e erros do processo de

aprendizagem social desembocam em um conjunto ótimo de

instituições. Ao revés, Mangabeira defende que o processo de

transformação nas instituições é e sempre deve ser constante.

Se a sociedade permanece em constante transformação e mudança,

254 “...alternative pluralisms: the exploration, in programmatic argument or in experimental reform, of one or another sequence of institutional change.” (UNGER, 1996, p. 29 – tradução livre.)

164

também suas instituições devem constantemente mudar e se

transformar. Para o autor não há nada, a não ser a própria

experiência de cada sociedade, que seja capaz de sustentar que

um conjunto de instituições é melhor do que outro. A cada

conjunto de instituições que uma dada sociedade experienciar,

essa sociedade também se transformará, o que abre perpectivas

para novas instituições antes impossíveis de serem efetivadas

ou sequer imaginadas. O possível para Mangabeira é o que está

adjacente. Novas instituições ampliam e modificam a fronteira

do possível, porque criam novas adjacências. Assim, o

experimentalismo democrático decorre da “visão de que o

possível não está predeterminado e que há uma relação íntima

entre o entendimento do real e a imaginação desse possível.”255

Desse modo, sobre o experimentalismo democrático de Unger,

Carlos Sávio Teixeira constata que:

A ideia de experimentalismo democrático se desenvolve

com o objetivo de responder ao desafio teórico e prático

de imaginar instituições e processos que, ao partir da

sociedade atual e de suas contradições, possam caminhar

rumo a um conjunto de experiências individuais e

coletivas que realizarão melhor as aspirações e os

interesses práticos em nome dos quais as estruturas

estabelecidas se justificam e, ao fim e ao cabo,

fracassam. (TEIXEIRA, 2010, pp. 50-51.)

Sob essa perspectiva – que aqui adotamos -, o

Pensamento Jurídico Contemporâneo se mostra limitado na

resolução do problema da efetivação de direitos e construção

social da democracia. A opção pelo neoformalismo deságua em

fetichismo institucional e deixa de lado aquilo que é o

fundamental: a efetiva fruição de direitos. Para que direitos

255 TEIXEIRA, 2010, p. 48.

165

sejam fruídos em concreto, não basta reafirmar as instituições

existentes ou tentar apenas podar os seus defeitos. A

construção de novas instituições deve ser matéria prima do

direito. Esse aspecto do direito, de imaginação institucional,

é a oportunidade perdida do Pensamento Jurídico Contemporâneo.

Afastado o fetichismo institucional, a visão

paradigmática sobre direito e economia se mostra como uma

dentre várias visões de mundo possíveis. Desconstruir essa

visão de mundo abre espaço para visões de mundo alternativas,

que por sua vez resultam potencialmente em diversas

estratégias institucionais para realizar a política econômica.

2.2. A fundamentação da Economia clássica e da Economia neoclássica acerca dos pressupostos adotados pela visão paradigmática sobre direito e economia

Ao final do capítulo 1, destacamos dois pressupostos

assumidos pela visão paradigmática acerca da economia: i)

mercados surgem espontaneamente a partir das relações

privadas; ii) relações privadas se caracterizam pela escolha

racional para atender a interesses individuais. Esses

pressupostos foram trabalhados pela Economia em narrativas que

foram contemporâneas aos modos de pensamento jurídico

analisados no capítulo 1. Em especial, o Pensamento Jurídico

Clássico parte de uma visão da economia que corresponde à

Economia Clássica, e o Pensamento Jurídico Contemporâneo

enxerga a atividade econômica de forma similar à Economia

Neoclássica. Passaremos a expor como Economia Clássica e

Economia Neoclássica formularam os dois pressupostos sobre a

economia que a visão paradigmática assumiu. A exposição será

útil para o esforço seguinte de refutação desses pressupostos,

e a consequente propositura de uma nova leitura do papel de

construção institucional da economia pelo direito.

166

A ideia de que a economia funciona com base em

mercados autônomos que surgem espontaneamente das relações

privadas é um dos principais temas da Economia clássica, a

partir da formulação de Adam Smith em sua obra fundamental “A

Riqueza das Nações” (An Inquiry Into the Nature and Causes of

the Wealth of the Nations). A tese central que Adam Smith

declaradamente busca defeder é a de que a riqueza das nações

seria determinada pela multiplicação da produção propiciada

pela divisão do trabalho.256 Não foi propriamente essa

afirmação, contudo, que motivou o impressionante impacto da

obra do conhecido autor escocês. Sua elegante argumentação

sobre como se dá a divisão do trabalho na economia, sobre os

efeitos dessa divisão e a consequente formulação de uma sólida

teoria econômica da produção e da distribuição, tudo isso é

que garantiu a Adam Smith posto de destaque na história das

ideias do Ocidente.257 Mas foi durante essa argumentação que

Adam Smith sustentou uma das duas ideias que queremos refutar:

a de que mercados surgem espontaneamente e se regulam

autonomamente.

Segundo Smith, a divisão do trabalho não seria

resultado da aplicação da sabedoria humana – portanto, não

derivaria da organização voluntária da sociedade, ou da boa

visão do governante de um país. Seria, ao revés, consequência

necessária, ainda que gradual e lenta, da propensão da

natureza humana por trocar e fazer escambo.258 Smith afirma

256 Nos referimos à seguinte afirmação de Adam Smith: “It is the great multiplication of the productions of all the different arts, in consequence of the division of labour, which occasions, in a well-governed society, that universal opulence which extends itself to the lowest ranks of the people.” (SMITH, 1952, p. 6.) 257 Cf, BLAUG, 1996, pp. 59 e ss. 258 Diz o autor: “This division of labour, from which so many advantages are derived, is not originally the effect of any human wisdom, which foresees

167

que, ao contrário de outros animais, o homem teria constante

necessidade de seus similares. O homem civilizado, porém,

teria tempo escasso para fazer amizades o suficiente para que

todas suas necessidades fossem atendidas por amigos e

familiares, e seria vã a esperança de que desconhecidos

colaborassem apenas por benevolência. Ao invés de confiar

nessa benevolência, melhor sorte teria o homem se confiasse no

interesse próprio de seus semelhantes, fazendo que esse

coincida com seus próprios interesses. Esse argumento é

ilustrado da seguinte forma por Adam Smith, em um de seus

trechos mais citados:

Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do

padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da

consideração que eles têm pelos seus próprios

interesses. Nós nos dirigimos não a sua humanidade, mas

a seu amor-próprio, e nunca lhes falamos de nossas

necessidades, mas apenas de suas vantagens. Ninguém,

exceto um mendigo, escolhe depender sobremaneira da

benevolência de seus concidadãos.259

Por isso, a troca – ou o escambo – seria a

ferramenta do homem civilizado para satisfazer seus

interesses. A relação de troca pressupõe que os interesses

individuais de cada parte envolvida sejam atendidos. Por

buscar a satisfação de seus interesses individuais, os homens

and intends that general opulence which it gives occasion. It is the necessary, though very slow and gradual consequence of a certain propensity in human nature which has in view no such extensive utility: the propensity to truck, barter, and exchange one thing for another.” (SMITH, 1952, p. 6.) 259 “It is not from the benevolence of the butcher, the brewer, or the baker that we expect our dinner, but from their regard to their own interest. We address ourselves, not to their humanity but to their self-love, and never talk to them of our own necessities but of their advantages. Nobody but a beggar chooses to depend chiefly upon the benevolence of his fellow-citizens.” (SMITH, 1952, p. 7 – tradução livre.)

168

acabariam assumindo as tarefas que melhor desempenhassem.260

Isso porque seria pela troca que os homens obteriam a maior

parte de suas necessidades. Ao se dedicarem às atividades em

que fossem mais produtivos, os homens teriam mais produtos

para trocar e assim, poderiam obter mais produtos e serviços

de seus similares do que se valendo exclusivamente de suas

habilidades individuais. Um homem que produz de tudo teria

menos do que um homem que produz apenas uma coisa, mas que

troca o excedente de sua produção com outros homens. Portanto,

ao se especializar, a satisfação de suas necessidades seria

maior do que se resolvesse fazer tudo sozinho.261 Desse modo,

argumenta Adam Smith, a divisão do trabalho seria o produto

natural da busca do homem pela satisfação de seus interesses

individuais: o homem se especializaria para poder ter mais de

suas necessidades atendidas.

Mas se a divisão do trabalho seria o produto natural

da busca do homem pela satisfação de seus interesses

individuais, ela somente se tornaria viável – segundo Adam

Smith - pela propensão da natureza humana por trocar e fazer

escambo. É porque troca com seus semelhantes que o homem pode

260 A diferença de produtividade entre um e outro homem não seria decorrente somente de uma vocação natural, mas sobretudo de questões de hábito, costume e educação: “The difference of natural talents in different men is, in reality, much less than we are aware of; and the very different genius which appears to distinguish men of different proffessions, when grown up to maturity, is not upon many occasions so much the cause as the effect of the division of labour. The difference between the most dissimilar characters, between a philosopher and a common street porter, for example, seems to arise not so much from nature as from habit, custom, and education.” (SMITH, 1952, p. 7.) 261 Adam Smith traz a seguinte ilustração para esse argumento: “In a tribe of hunters or shepherds a particular person makes bows and arrows, for example, with more readiness and dexterity than any other. He frequently exchanges them for cattle of for venison with his companions; and he finds at last that he can in this manner get more cattle and venison than if he himself went to the field to catch them. From a regard to his own interest, therefore, the making of bows and arrows grows to be his chief business, and he becomes a sort of armourer.” (SMITH, 1952, p. 7.)

169

se especializar. Seria essa propensão natural que faria com

que os homens trouxessem para um acervo comum os diferentes

produtos de seus talentos, onde todos pudessem comprar e

vender o que quer as habilidades de seus pares fossem capazes

de produzir.262 Esse acervo comum, resultado da propensão

natural pela troca, é o mercado para Adam Smith. E como o

mercado seria o locus dessa propensão natural pela troca, a

extensão do mercado é que delimitaria a divisão do trabalho:

mercados maiores gerariam maior divisão, mercados menores,

menor divisão do trabalho.263

Mas não é apenas o surgimento do mercado e a divisão

do trabalho que, no pensamento de Adam Smith, resultariam

espontaneamente da natureza humana. Também a operação

eficiente do mercado, seu funcionamento diuturno, seria

resultado espontâneo da predisposição do homem em atender a

seus próprios interesses, e que se expressaria naquilo que

mais tarde a Economia chamaria de lei da oferta e da procura.

Para explicar o funcionamento dos mercados, Adam

Smith diferencia entre o valor natural e o valor de mercado

dos bens. O valor natural equivaleria à remuneração dos

insumos necessários para a produção: o aluguel da terra, o

salário do trabalhador e os lucros do capital.264 O valor de

262 Nesse sentido, diz Smith: “Among men [...] the most dissimilar geniuses are of use to one another; the different produces of their respective talents, by the general disposition to truck, barter, and exchange, being brought, as it were, into a common stock, where every man may purchase whatever part of the produce of other men’s talents he has occasion for.” (SMITH, 1952, p. 8.) 263 “As it is the power of exchanging that gives occasion to the division of labour, so the extent of this division must always be limited by the extent of that power, or, in other words, by the extent of the market.” (SMITH, 1952, p. 8.) 264 “When the price of any commodity is neither more nor less than what is sufficient to pay the rent of the land, the wages of the labour, and the

170

mercado seria aquele pelo qual uma mercadoria seria comumente

vendida.265 Para Adam Smith, o valor natural seria, assim, o

valor de troca – o valor pelo qual, na produção de um bem, o

trabalhador estaria disposto a trocar por seu trabalho na

produção desse bem (e não de outro bem); o proprietário

(capitalista) estaria disposto a empregar seu estoque

excedente (capital266) na produção do bem (e não de outro); o

dono de terras estaria disposto a ceder o uso de suas terras

para que o bem (e não outro) seja produzido. Porque representa

o valor de troca, seria o valor natural que expressaria o

resultado ótimo da divisão do trabalho. Logo, no intuito de

promover a riqueza das nações, interessa que seja esse o valor

obtido nas relações entre os homens. É por esse valor, para

replicar a analogia de Adam Smith, que o cerverjeiro

produziria mais cerveja, que o açougueiro produziria mais

carne, e que o padeiro produziria mais pão, pois o valor

natural seria aquele que melhor faria com que cervejeiro,

açougueiro e padeiro quisessem trocar o excedente de suas

respectivas produções de modo a atender seus interesses

individuais.

profits of the stock employed in raising, preparing, and bringing it to market, according to their natural rates, the commodity is then sold for what may be called ist natural price.” (SMITH, 1952, p. 23.) 265 “The actual price at which any commodity is commonly sold is called its market price.” (SMITH, 1952, pp. 23-24.) 266 A definição de capital como excedente do estoque consta do seguinte trecho da Riqueza das Nações: “When the stock which a man possesses is no more than sufficient to maintain him for a few days or a few weeks, he seldom thinks of deriving any value from it. [...] But when he possesses stock sufficient to maintain him for months or years, he naturally endeavours to derive a revenue from the greater part of it; reserving only so much for his immediate consumption as may maintain him, till this revenue begins to come in. His whole stock, therefore, is distinguished into two parts. That part which, he expects, is to afford him this revenue, is called his capital.” (SMITH, 1952, p. 118).

171

Assim, o valor natural não se expressa em moeda, mas

razão daquilo que a Economia veio a chamar posteriormente de

custo de oportunidade: aquilo de que se abre mão para se obter

algo.267 Entretanto, diferentemente da visão atual de custo de

oportunidade (talhada pela Economia Neoclássica), Smith usa o

trabalho como única métrica para o valor econômico – ao se

abrir mão de uma coisa para se obter outra, essa coisa de que

se abriu mão, para Smith, será sempre o trabalho. Em outras

palavras, o valor natural de um bem seria o trabalho

necessário para um indivíduo produzir aquele bem, ou o

trabalho que um indivíduo deixa de ter quando decide não

produzir esse bem. Ao trocar um bem por outro, está-se – na

visão de Smith – trocando o trabalho de produzir um bem, pelo

trabalho “salvo” na produção desse bem e que, portanto, passa

a poder ser usado para produzir outro bem.268

O valor de mercado, por sua vez, equivaleria ao

preço pago pelo bem, o qual seria determinado pela quantidade

de bens trazida ao mercado e pela quantidade desses bens que

efetivamente fosse adquirida. Para Adam Smith, logo, o valor

de mercado seria expressão da relação entre quantidade

ofertada e quantidade demandada. Cabe ressaltar que, para

Smith, a demanda a ser considerada é a demanda efetiva – a das

pessoas que estão dispostas a pagar o necessário a remunerar o

267 Também sobre o custo de oportunidade, ver nota 231. 268 O seguinte trecho da Riqueza das Nações é bastante citado para ilustrar a posição de Adam Smith: “The real price of every thing, what every thing really costs to the man who wants to acquire it, is the toil and trouble of acquiring it. What every thing is really worth to the man who has acquired it, and who wants to dispose of it or exchange it for something else, is the toil and trouble which it can save to himself, and which it can impose upon other people. What is bought with money or with goods is purchased by labour, as much as what we acquire by the toil of our own body. That money or those goods indeed save us this toil. They contain the value of a certain quantity of labour which we exchange for what is supposed at the time to contain the value of an equal quantity.” (SMITH, 1952, p. 23).

172

valor natural (trabalho, capital e terra empregados na

produção do bem). Assim, Smith exclui aquilo que chama de

demanda potencial – a das pessoas que não querem ou não podem

pagar o necessário a remunerar o valor natural do bem.269

Embora sejam diferentes, valor de mercado e valor

natural seriam igualados pela ação do mercado. Diz Adam Smith:

A quantidade de cada bem trazido ao mercado naturalmente

se ajusta à demanda efetiva. É do interesse de todos

aqueles que empregam sua terra, trabalho ou capital, em

trazer todo bem [produzido] ao mercado, de modo que a

quantidade nunca deva exceder a demanda efetiva; e é do

interesse do todas as outras pessoas que aquela

[quantidade] nunca fique aquém daquela demanda.270

Essa afirmação é explicada por Smith da seguinte

forma. A relação entre quantidade ofertada e demanda efetiva

seria mediada pelo preço pago no mercado. Se a quantidade

ofertada ficasse aquém da demanda efetiva, diz Smith, algumas

pessoas iriam optar por pagar mais pelo bem para dele não

ficarem desprovidas, o que iniciaria um leilão entre os

demandantes efetivos para ver quem ficaria com os bens postos

269 “The market price of every particular commodity is regulated by the proportion between the quantity which is actually brought to market, and the demand of those who are willing to pay the natural price of the commodity, or the whole value of the rent, labour, and profit, which must be paid in order to bring it thither. Such people may be called the effectual demanders, and their demand the effectual demand; since it may be sufficient to effectuate the bringing of the commodity to market. It is different from the absolute demand. A very poor man may be said in some sense to have a demand for a coach and six, he might like to have it; but his demand is not an effectual demand, as the commodity can never be brought to market in order to satisfy it.” (SMITH, 1952, p. 24.) 270 “The quantity of every commodity brought to market naturally suits itself to the effectual demand. It is in the interest of all those who employ their land, labour, or stock, in bringing any commodity to market, that the quantity never should exceed the effectual demand; and it is in the interest of all other people that it never should fall short of that demand.” (SMITH, 1952, p. 24 – tradução livre.)

173

no mercado. Isso faria o preço subir. Nesse caso, o valor de

mercado estaria superior ao valor natural do bem. Quando isso

ocorresse, diz Smith, haveria pessoas que não optariam por

pagar esse maior valor e ficariam desprovidas do bem, ainda

que estivessem dispostas a pagar o equivalente ao valor

natural. Todavia, o maior preço atrairia novos trabalhadores,

novos capitalistas e novos donos de terra, que antes não se

interessavam em produzir o bem em questão. Em decorrência,

aumentaria a quantidade ofertada. A maior quantidade ofertada

faria com que menos pessoas ficassem desatendidas e, assim,

menos pessoas teriam interesse em oferecer preço maior.

Enquanto não atendidos todos os demandantes efetivos, esse

processo se repetiria: novos ofertantes seriam atraídos ao

mercado pelo preço maior do que o valor natural, e a

quantidade ofertada aumentaria. Ao final desse processo, a

quantidade ofertada seria suficiente para atender a demanda

efetiva.

Situação oposta ocorreria quando houvesse excesso na

quantidade ofertada. A maior quantidade de bens faria com que

toda a demanda efetiva fosse atendida e, ainda assim,

sobrassem bens a serem ofertados. Ao invés de não vender nada,

alguns ofertantes optariam por reduzir o preço para aquém do

valor natural – isto é, algum dos componentes do preço do bem

(remuneração pelo trabalho, pelo capital e pela terra)271 seria

pago em valor menor do que o necessário para remunerar o

trabalhador, o capitalista ou o proprietário de terras. A

271 Posteriormente, trabalho (mão-de-obra), capital e terra seriam nomeados de fatores de produção pelos economistas que sucederam Adam Smith. Segundo Mankiw, são fatores de produção os “insumos usados na produção de bens e serviços” (2009, p. 376). Além daqueles três, há outros fatores de produção considerados pelos economistas contemporâneos, tais como a organização empresarial e o conjunto técnica/ciência.

174

consequência seria que alguns trabalhadores, capitalistas ou

proprietários de terra não teriam mais interesse em se dedicar

à produção do bem, e iriam devotar sua mão-de-obra, seu

estoque (capital) ou suas terras à produção de outra coisa. A

quantidade ofertada então, se diminuiria, o que faria o preço

aumentar. Esse processo se repitiria até que a quantidade

ofertada fosse igualada à demanda efetiva.

Desse modo, a quantidade ofertada seria ajustada à

demanda efetiva pela ação do mecanismo de preços. Essa relação

não foi assim nomeada por Smith, mas se constitui na

formulação daquilo que a Economia chama de lei da oferta e da

demanda.272 Segundo a visão de Adam Smith, o preço obtido pela

lei da oferta da demanda, por ser igual ao valor natural dos

bens, seria aquele que traria maior riqueza à sociedade. Isso

porque, como visto, o valor natural expressaria a melhor troca

possível pela mão-de-obra, pelo capital e pela terra

empregados na produção de um bem, do ponto de vista do

atendimento aos interesses individuais dos homens envolvidos

com a produção: respectivamente, o trabalhador que fornece a

mão-de-obra, o capitalista que fornece o capital e o

proprietário que fornece a terra. Desse modo, cada um –

trabalhador, capitalista e dono de terras – buscaria apenas

seu ganho individual, e, segundo a famosa ilustração de Smith,

272 Por exemplo, Mankiw, em seu manual de Economia, define a lei da oferta e da demanda nestes termos: “Na maioria dos mercados livres, o excesso e a escassez são apenas temporários porque os preços acabam por se mover em direção aos níveis de equilíbrio. De fato, esse fenômeno é tão universal que é chamado lei da oferta e da demanda: o preço de qualquer bem se ajusta para trazer a quantidade ofertada e a quantidade demandada do bem para o equilíbrio.” Apesar de a denominação lei da oferta e da demanda ser de ampla adoção na Economia, seus efeitos – e a dita universalidade desse fenômeno afirmada por Mankiw – são controvertido por pensadores contrários à Economia neoclássica. Veremos adiante algumas dessas perspectivas críticas.

175

cada um seria assim movido por uma mão invísivel para promover

um fim que não era parte de sua intenção: o bem da sociedade

como um todo.273

A ideia de que mercados são o resultado espontâneo

das relações de troca entre indivíduos em busca da satisfação

de seus interesses pessoais, e a ideia de que dessa busca

emerge também uma ordem espontânea, são contribuições centrais

de Adam Smith e temas que foram assumidos pela Economia

neoclássica como seu principal objeto.274

Todavia, a noção de mercado de Smith não é

propriamente aquela que buscamos criticar, pois não é a um

mercado smithiano que a visão paradigmática sobre direito e

273 A famosa ilustração da mão invisível aparece na Riqueza das Nações uma única vez, quando Adam Smith defende a liberalização do comércio entre países como meio de aumentar a riqueza nacional: “By preferring the support of the domestic to that of foreign industry, he intends only his own security; an dby directing that industry in such a manner as its produce may be of the greatest value, he intends only his own gain, and he is in this, as in many other cases, led by an invisible hand to promote an end which was no part of his intention.” (SMITH, 1952, p. 194 – grifo ausente do original). A ilustração da mão invisível, como fica claro no trecho exposto, não busca descrever o mercado, nem a lei da oferta e da procura, mas sim a ideia de que a busca de interesses individuais resulta em benefícios públicos – tal qual na conhecida fábula das abelhas de Mandeville. Reflete, por isso, o liberalismo individualista característico da época de Adam Smith. Acerca do individualismo e sua influência na Economia, ver: DUMONT, 1977. 274 Corroborando essa afirmação, Avner Greif afirma que: “...neo-classical economics has held for a long time that markets are organisms that emerge spontaneously” (GREIF, 2005, p. ix). De modo mais amplo, Mark Blaug, em seu compêndio historiográfico sobre a teoria econômica, diz que: “The problem that gave rise to economics in the first place, the ‘mistery’ that fascinated Adam Smith as much as it does a modern economist, is that of market exchange: there is a sense of order in the economic universe, and this order is not imposed from above but is somehow the outcome of the exchange transactions between individuals, each seeking to maximize his or her own gain.” (BLAUG, 1996, p. 6). Ronald Coase, a respeito, chega a afirmar que: “During the two centuries since the publication of the Wealth of Nations, the main activity of economists, it seems to me, has been to fill the gaps in Adam Smith’s system, to correct his errors and to make his analysis vastly more exact.” (COASE, 1994, posição 76). Ainda sobre a influência de Adam Smith na Economia neoclássica, ver: SKOUSEN, 2009, posição 9657 e ss.

176

economia se refere. Na medida em que a Economia passou a

reconhecer como seu objeto não mais a natureza e as causas da

riqueza das nações – como propunha Adam Smith -, mas sim a

análise do comportamento humano como uma relação entre

determinados fins e meios escassos que possuem usos

alternativos275, a ideia de mercado como ambiente típico das

escolhas econômicas ganhou progressiva abstração. O mercado na

análise de Adam Smith possui uma realidade institucional

definida276: está condicionado, por exemplo, à dimensão

populacional de uma localidade277 e aos meios de transporte

disponíveis.278 Porém, como afirma Ronald Coase, a teorização

das trocas econômicas pelo pensamento neoclássico abandonou a

realidade institucional dos mercados como objeto de estudo,

para converter a Economia a uma teoria geral das escolhas.279

275 Nesse sentido: “After 1870, however, economics came to be regarded as a science that analysed ‘human behaviour as a relationship between given ends and scarce means which have alternative uses’...” (BLAUG, 1996, p. 4.) 276 Mark Blaug corrobora essa assertiva: “Adam Smith was not satisfied to argue that a free-market economy secures the best of all possible worlds. He was very much preoccupied with the specification of the exact institutional structure that would guarantee the beneficent operation of market forces.” (BLAUG, 1996, p. 62.) 277 É o que diz Smith no trecho a seguir: “There are some kinds of industry, even of the lowest kind, which can be carried nowhere but in a great town. [...] It is impossible that there should be such a trade as even that of a nailer in the remote and inland parts of the Highlands of Scotland.” (SMITH, 1952, p. 8.) 278 Como afirma o autor: “As by means of water-carriage a more extensive market is opened to every sort of industry than what land-carriage alone can afford it...” (SMITH, 1952, p. 8.) 279 Nesse sentido: “Economists study how the choice of consumers, in deciding which goods and services to purchase, is determined by their incomes and the prices at which goods and services can be bought. They also study how producers decide what factors of production to use and what products and services to make and sell and in what quantities, given the prices of the factors, the demand for the final product, and the relation between output and the amounts of factors employed. The analysis is held together by the assumption that consumers maximize utility (a nonexistent entity which plays a part similar, I suspect, to that of ether inthe old physics) and by the assumption that producers have as their aim to maximize profit or net income (for which there is a good deal more evidence). The decisions of consumers and producers are brought into harmony by the theory

177

Identifica-se como Economia Neoclássica a corrente

teórica que nasce no final do século XIX a partir das ideias

do austríaco Carl Menger, do francês Leon Walras e do inglês

William Stanley Jevons. Esses três economistas, por caminhos

diversos, propuseram uma nova fundamentação para a lei da

oferta e da demanda – diferente daquela formulada por Adam

Smith.

Smith, como vimos, usava a remuneração dos fatores

de produção – capital, terra e trabalho – como fundamento do

que seria o valor natural de bens e serviços, e propunha que o

valor de mercado seria aquele efetivamente obtido em uma

transação comercial em pecúnia. Os mercados, porém, igualariam

ambos – valor natural e valor de mercado -, o que seria a

situação ideal para estimular a divisão do trabalho e, assim,

propiciar maior riqueza. A análise de Smith se centra,

portanto, na oferta: os preços do mercado seriam aqueles pelos

quais ofertantes estariam dispostos a disponibilizar capital,

terra e trabalho para produzir mais.

Menger, Walras e Jevons, porém, inauguram uma nova

linha no pensamento econômico, chamada por vezes de revolução

marginalista, que serviu de base para a Economia Neoclássica e

que, por sua vez, ainda hoje domina os manuais de Economia.280

Essa nova linha de pensamento econômico parte da ideia de que

preços e custos são determinados não pela oferta, mas pela

demanda - especificamente, pela utilidade que os demandantes

conferem aos bens e serviços a serem consumidos. Se bananas

of exchange. /§/ The elaboration of the analysis should not hide from us its essential character: it is an analysis of choice.”(COASE, 1988, p. 2 – grifo ausente do original). 280 A caracterização que a seguir faremos da Economia Neoclássica é baseada em BLAUG, 1996, pp. 277-309 e pp.549-595; SKOUSEN, 2009, posições 3852-4951; MANKIW, 2009, pp. 3-151.

178

são mais produzidas do que maçãs, segundo essa visão, não é

porque trabalhadores rurais gastam menos tempo para produzir

bananas do que maçãs, nem porque os terrenos agrícolas são

mais propícios à produção de bananas do que de maçãs, nem

porque bananeiras custam menos do que macieiras. É porque

consumidores preferem bananas do que maçãs. Essa preferência

dos consumidores é que irá, na visão neoclássica, determinar o

custo do trabalhador rural que produz bananas no lugar de

maçãs, o custo da terra usada para produzir bananas no lugar

de maçãs, e o custo de usar bananeiras em lugar de macieiras

na produção agrícola. Esta é chamada teoria da imputação: a

utilidade para os consumidores imputa (determina) o valor dos

insumos na economia.

Sob essa perspectiva, a Economia deixa de buscar

critérios objetivos para definir o custo de bens e serviços no

mercado, e passa a se fiar na subjetividade da utilidade que

cada bem ou serviço tem para os consumidores individualmente

considerados. A ideia de valor natural (como visto, o valor do

trabalho empregado ou “salvo” na produção de um bem),

portanto, é abandonada: valor é aquilo que demandantes

individuais atribuem subjetivamente a alguma coisa. A oferta,

desse modo, seria uma reação à demanda. E os fatores de

produção seriam alocados de acordo com o valor que agregassem

ao processo produtivo. A consequência é que a utilidade, nessa

visão, cria valor econômico, pois é a utilidade para o

consumidor que faz com que, em determinado momento, o preço de

uma banana equivalha ao de duas maçãs – porque consumidores

têm mais utilidade de bananas do que maçãs, elas valem mais.

A demanda, porém, está sujeita ao princípio da

diminuição da utilidade marginal – por isso, aliás, a linha

teórica de que estamos tratando recebeu o nome de revolução

marginalista. Para a Economia Neoclássica, preço – e valor

179

econômico – de um bem ou serviço não são determinados pela

utilidade absoluta, mas pela utilidade relativa – ou, mais

propriamente, pela utilidade marginal. A utilidade marginal

não é a de uma unidade do bem questão em absoluto, mas a de

uma unidade adicional desse bem. Um bem, nessa visão, tem sua

utilidade marginal relacionada a sua abundância ou escassez.

Nesse ponto entra o dito princípio da utilidade marginal

decrescente: quanto mais um dado indivíduo possui de um bem ou

serviço, menos útil será uma unidade adicional desse bem ou

serviço. Um exemplo muito utilizado é o do valor econômico da

água e de diamantes. Em termos absolutos, água é muito mais

útil do que diamantes – sem água um indivíduo não pode

sobreviver. Contudo, diamantes são em geral mais caros do que

água. A Economia Neoclássica, com base no princípio da

utilidade marginal decrescente, explica essa diferença de

valor com base na escassez – água, em geral, é abundante, e

diamantes são mais escassos. Uma pessoa precisa muito de um

litro de água por dia, mas menor utilidade terá o segundo

litro, e assim por diante. Se há pouca água – por exemplo em

um deserto -, o valor da água será mais alto, dado que a

utilidade de um litro adicional de água será maior para quem

tem pouca água. Mas se há muita água, o seu valor será mais

baixo, pois para quem tem muita água, um litro adicional tem

pouca utilidade. Desse modo, diamantes valem mais do que água,

porque são mais escassos do que água. Em outras palavras, um

diamante a mais para quem tem poucos diamantes é mais útil do

que um litro a mais de água para quem já tem muita água, e por

isso diamantes têm preço maior do que água.

A partir dessa visão, a premissa que Adam Smith

havia utilizado acerca do comportamento humano ganha na

Economia Neoclássica contornos diferenciados. Como visto,

Smith partira da ideia de que, como que regidos por uma mão

invisível, homens buscando seus interesses individuais se

180

coordenariam para alcançar o melhor benefício público

possível. O mecanismo dessa coordenação seria o mercado. Para

a Economia Neoclássica, o homem racionalmente escolhe, dentre

opções alternativas para alocação de recursos escassos, aquela

que para ele ofereça a maior utilidade – diz-se que o

indivíduo é um maximizador racional de utilidade. Isso porque,

tal como considera Adam Smith, cada homem buscaria

racionalmente o melhor para seus interesses individuais. O

mercado seria o resultado agregado dessas escolhas individuais

de fruição de bens e serviços. Se cada indivíduo, ao escolher

consumir um bem ou serviço, o faz de forma a ter maior

utilidade possível, a escolha de todos os indivíduos somados,

ao final, também resultaria no maior benefício possível.

A Economia Neoclássica mantém, portanto, a ideia

fundamental de Adam Smith de que escolhas individuais produzem

benefícios públicos, porém com outros fundamentos e outras

consequências. Sendo o valor econômico determinado pela

utilidade marginal, a riqueza de uma nação não se exprime pela

mera capacidade de divisão do trabalho, mas pela capacidade de

melhor atender à demanda – isto é, de prover bens e serviços

úteis segundo o valor que a esses são imputados pelos

consumidores. A escolha econômica, sob esse ponto de vista, é

uma escolha que pondera escassez e utilidade. Diante da

utilidade marginal decrescente, a melhor alocação de recursos

escassos será aquela que respeite a maior utilidade para quem

usa esses recursos. O mercado, nessa visão, corresponde ao

conjunto de decisões individuais que alocam recursos de acordo

com as necessidades individuais.

Desse modo, percebe-se que, na Economia Neoclássica,

a narrativa da espontaneidade da origem dos mercados não é uma

busca pelo contexto histórico ou social de formação dos

mercados – como era na narrativa de Adam Smith. Ao revés, é

181

uma teoria da escolha, como afirma Coase.281 É a teorização do

pressuposto mandevilleano de que vícios privados produzem

benefícios públicos, manifestado na alocação de recursos

escassos segundo as escolhas individuais. Na Economia

Neoclássica, a espontaneidade, assim, não é necessariamente

uma característica da origem dos mercados, mas sim uma

característica intrínseca – ontológica – do mercado.

2.3. A refutação da ideia de que mercados surgem espontaneamente das relações privadas, segundo o neoinstitucionalismo de Ronald Coase

A seguir, faremos referência às ideias de Ronald

Coase para contrapor tanto a visão abstrata de mercado

característica da Economia Neoclássica, quanto a ideia que lhe

inspira - oriunda da Escola Clássica -, a de que mercados são

produtos espontâneos das relações privadas. As ideias de

Coase, porém, não encerram o debate, e devem ser tomadas como

exemplo do que, por variados fundamentos, outros economistas

relacionados à virada institucional282 também afirmam: a

281 COASE, 1988, p. 2. 282 O termo virada institucional (“institutional turn”) se refere à substituição do pensamento neoclássico, ocorrida no início deste século, por diversas perspectivas teóricas que, sob fundamentos variados e por vezes conflitantes, passaram a considerar que o estudo das relações econômicas não pode prescindir da análise das instituições – ou, em outras palavras, passaram a considerar que, na Economia, as instituições contam: “Au début du XXIe siècle, les oppositions théoriques et méthodologiques entre les différents courants de la pensée économique à propos du rôle des instituitions sont ainsi sensiblement redessinées. Un consensus assez large et nouveau domine la période actuelle: en économie, les institutions comptent [...] Assurément, les différences d’aproche, de méthode, de conceptualisation demeurent importantes, souvent irréductibles, mais on assiste aussi à une redéfinition des frontières entre courants, entre orthodoxie et hétérodoxies et, généralement, la vitalité des divers courants qui labourent le même champ de l’économie avec instituitions est un signe relativement encourageant dans le contexte de malaise de la pensée économique que caractérise notre époque” (CHAVANCE, 2007, p. 5).

182

concepção neoclássica da economia não tem sustentação no mundo

real. Para os objetivos desta tese, a implicação central é

que, ao se afastar uma concepção abstrata de mercado e se

enfatizar o ambiente institucional das relações econômicas,

todo um novo espectro de instrumentos jurídicos de política

econômica se abre para o jurista, instrumentos esses que são

ignorados pela visão paradigmática. Com base nos insights

obtidos a partir da doutrina de Ronald Coase, iremos ao final

deste capítulo uma nova visão sobre as formas de interação

entre direito e economia e os instrumentos jurídicos

disponíveis para tanto; há, porém, inúmeras outras que podem

ser imaginadas a partir das ideias do próprio Coase ou de

outros economistas. O objetivo não é propor um quadro

analítico definitivo que substitua o atual paradigma e sua

fundamentação na Economia Neoclássica, mas abrir espaços para

a superação do fetichismo institucional e para a imaginação de

novas alternativas para a implementação de políticas

econômicas. Sigamos, portanto.

Segundo Ronald Coase, a Economia Neoclássica é uma

teoria cujo objeto não tem vínculo com a realidade283, em que

se ignora por completo a realidade institucional que permeia

as opções econômicas.284 Nas palavras de Coase, a Economia

283 Diz Coase: “What is studied is a system which lives in the minds of economists but not on earth.” (COASE, 1994, posição 104.) 284 O seguinte trecho ilustra a posição de Coase: “This preoccupation of economists with the logic of choice, while it may ultimately rejuvenate the study of law, political science, and sociology, has nonetheless had, in my view, serious adverse effects on economics itself. One result of this divorce of the theory from its subject matter has been that the entities whose decisions economists are engaged in analyzing have not been made the subject of study and in consequence lack any substance. The consumer is not a human being but a consistent set of preferences. The firm to an economist, as Slater has said, ‘is effectively defined as a cost curve and a demand curve, and the theory is simply the logic of optimal pricing and

183

passou a ter consumidores sem humanidade, firmas sem

organização e até mesmo trocas sem mercados.285 Sob essa

concepção abstrata, mercados deixam de ser considerados como

espaços institucionais de trocas para se tornarem pressuposto

de um modelo de escolhas racionais – como afirma Marcus Faro

de Castro, as práticas de mercado são tratadas como se

existissem no vazio institucional.286 O mercado ao final, se

confunde com o próprio modelo abstrato de escolha racional287

adotado pelo pensamento neoclássico, cujo corolário é a

ampliação da aplicação da ideia de Smith de que as escolhas

individuais produzem benefícios sociais.288

É essa noção abstrata de mercado que integra a visão

paradigmática sobre direito e economia, e que permeia as

narrativas do Pensamento Jurídico Contemporâneo aqui

analisadas. Por exemplo, quando a narrativa do Estado

Regulador afirma que a atuação estatal deve ser subsidiária ao

mercado, ou quando a narrativa da Constituição Dirigente

afirma que o direito constitucional à saúde não pode ser

deixado meramente ao mercado; ambas não fazem referência a um

mercado real (de existência empiricamente considerada), mas ao

mercado tomado abstratamente. Tal mercado, subentende-se,

corresponderia ao resultado hipotético das escolhas racionais

input combination.’Exchange takes place without any specification of its institutional setting.” (COASE, 1988, p. 3.) 285 Parafraseamos a partir do seguinte trecho: “We have consumers without humanity, firms without organization, and even exchange without markets.” (COASE, 1988, p. 3.) 286 CASTRO, 2011, p. 19. 287 Sobre o modelo de escolha racional do pensamento neoclássico, trataremos no item 2.4 abaixo. 288 Como ressalta Mark Blaug, o escopo de Adam Smith era diferente do de seus sucessores neoclássicos: “But Smith’s faith in the benefits of the ’invisible hand’ had absolutely nothing whatever to do with allocative efficiency in circumstances where competition is perfect à la Walras and Pareto [...] Smith’s conception of competition was [...] a process conception, not an end-state conception.” (BLAUG, 1996, p. 60).

184

de indivíduos em busca do atendimento de seus interesses

pessoais. O mercado tal como concebido pela Economia

Neoclássica, qual seja o espaço abstrato em que a busca

racional de interesses individuais traz benefícios sociais,

pauta os debates, sem que haja uma problematização da própria

ideia neoclássica de mercado. Ou se entende que o mercado é

suficiente para atender os interesses sociais, ou se entende

que o mercado deve ser parcialmente ou totalmente suplantado

pela ação do Estado. Porém não se questiona, efetivamente, o

que é esse mercado, quais suas características constitutivas e

a forma de sua operação. Não se questiona, tampouco se leva em

consideração, a realidade institucional não apenas do mercado,

mas dos diversos mercados que efetivamente existem e pautam

relações econômicas concretas.

Para Ronald Coase, mercados são criações289, no

sentido de que sua existência é produto da ação humana

consciente. Mercados são instituições criadas para facilitar

as trocas290, e são caracterizados pela subordinação das trocas

ao mecanismo de preços. Porém, o argumento central de Coase –

que permeia toda sua obra – é o de que há custos associados ao

uso do mecanismo de preços e, logo, de mercados. Em

decorrência desses custos, há formas alternativas em que a

economia pode se organizar, e por vezes essas formas podem ser

até mais eficientes do que os mercados:

Esses custos [de adoção do mecanismo de preços] vieram a

ser conhecidos como custos de transação. Sua existência

implica que métodos de coordenação alternativos ao

289 Cf. COASE, 2009. 290 Diz Coase: “Markets are institutions that exist to facilitate exchange, that is, they exist in order to reduce the cost of carrying out exchange transactions.” (COASE, 1988, p. 7 – grifo ausente do original).

185

mercado, que são eles próprios também custosos e de

várias formas imperfeitos, podem inobstante ser

preferíveis à adoção do mecanismo de preços, o único

método de coordenação normalmente analisado pelos

economistas.291

Com base na ideia de custos de transação, Coase

chama a atenção para outras formas de organização da economia

que não o mercado – entendido este como meio de alocação de

recursos via sistema de preços. Em outras palavras, por

entender que o sistema de preços traz custos – os custos de

transação -, o autor defende que a Economia deveria analisar e

compreender formas alternativas de alocação de recursos que

não aquelas realizadas por mercados. Ronald Coase desenvolve

esse argumento em seus dois principais artigos, que lhe

garantiram o Prêmio Nobel de Economia: The Nature of the Firm

(1937) e The Problem of Social Cost (1960).

Em The Nature of the Firm (em tradução livre: A

Natureza da Firma), Coase buscava solucionar o que então lhe

parecia um paradoxo. Para um economista, diz o autor, o

sistema econômico seria coordenado eficientemente pelo

mecanismo de preços.292 Mesmo fatores de produção seriam

diretamente alocados em razão do preço da mercadoria ou

serviço em que são empregados.293 Porém, afirma Coase, no mundo

291 “These costs have come to be known as transaction costs. Their existence implies that methods of coordination alternative to the market, which are themselves costly and in various ways imperfect, may nonetheless be preferable to relying on the pricing mechanism, the only method of coordination normally analysed by economists.” (COASE, 1994, posição 143 – tradução livre, grifo ausente do original.) 292 A posição de Coase a que nos referimos consta do seguinte trecho: “An economist thinks of the economic system as being co-ordinated by the price mechanism, and society becomes not an organization but an organism. The economic system ‘works itself’.” (COASE, 1937, p. 387.) 293 No item seguinte, aprofundaremos a análise do tratamento conferido pela Economia ao funcionamento do sistema de preços.

186

real haveria muitas áreas em que isso não se aplicaria. Um

exemplo seria a firma – definida pelo autor como uma

organização que transforma insumos em produtos.294 Em uma

firma, diz Coase, a descrição feita pela teoria econômica do

funcionamento da economia não se aplicaria em absoluto.295 Um

trabalhador dentro de uma firma que tenha se deslocado do

departamento A para o departamento B não teria, para Coase,

sido mandado por conta do preço das mercadorias que a firma

produz, mas porque seu superior – o gerente da firma – teria

achado prudente fazê-lo. Dentro de uma firma, portanto, a

organização de recursos se daria em razão do planejamento do

gerente, e não em função do mecanismo de preços. Daí surge,

então, o paradoxo que motivou a investigação de Coase sobre a

natureza da firma, e que o autor formula nos seguintes termos:

294 Esta a definição de Ronald Coase: “The firm in modern economic theory is an organization which transforms inputs into outputs.” (COASE, 1988, p. 5). A definição do autor, portanto, engloba tanto entidades com personalidade jurídica, como empresas despersonalizadas. É o elemento de organização da atividade produtiva que é relevante na definição do economista, de modo similar à definição de empresa no direito brasileiro (diz o art. 966 do Código de Civil em vigor: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”). Porém, o conceito de empresa e de atividade empresária no Direito brasileiro sofre controvérsia equivalente à da distinção entre serviço público e atividade econômica da visão paradigmática sobre direito e economia. Entendem muitos doutrinadores brasileiros que apenas quando há finalidade lucrativa é que se caracteriza a atividade empresária, e que algumas atividades produtivas tais como produção intelectual, literária e artística, não teriam natureza econômica – essa argumentação consta, por exemplo, no tratamento do citado art. 966 pelo relatório do anteprojeto do Código Civil (cf. FIUZA, 2006, pp. 784 e ss.). A noção de atividade empresária não será objeto de problematização e análise por esta tese. Por esse motivo, e para evitar incongruências com a noção prevalente na doutrina nacional, optou-se pela tradução do vocábulo inglês “firm” para o português “firma”, e não “empresa”. 295 Diz o autor: “...this theory assumes that the direction of resources is dependent directly on the price mechanism. Indeed, it is often considered to be an objetcion to economic planning that it merely tries to do what is already done by the price mechanism. [...] Within a firm, the description does not fit at all.” (COASE, 1937, p. 387.)

187

Fora da firma, movimentos de preço dirigem a produção,

que é coordenada mediante uma série de relações de troca

no mercado. Dentro de uma firma, essas transações de

mercado são eliminadas e a complexa estrutura de mercado

com relações de troca é substituída pelo empreendedor

coordenador, que direciona a produção. Fica claro que

esses são métodos alternativos de coordenar a produção.

Porém, levando-se em conta o fato de que a produção é

regulada por movimentos de preço, e a produção poderia

se desenvolver sem organização alguma, podemos bem nos

perguntar, por que há qualquer tipo de organização?296

Para os fins desta tese, como dito acima, a ideia de

que há sistemas de organização da produção alternativos ao

mercado é um dos pontos mais importantes da obra de Ronald

Coase. As firmas, para Coase, são um exemplo de alternativa ao

mercado, uma vez que teriam como traço distintitivo exatamente

a supressão do mecanismo de preços.297 Esse fato coloca em

cheque a premissa formulada por Adam Smith e amplificada pela

Economia Neoclássica - a premissa de que mercados são o

produto espontâneo da busca individual de interesses também

individuais. A argumentação de Coase é particularmente

interessante porque, ao invés de refutar as premissas adotadas

pela teoria econômica neoclássica, ela busca aplicar

rigorosamente essas premissas à realidade para, ao final,

concluir que a teoria não se sustenta por suas próprias

premissas. Se o mercado é o melhor mecanismo de alocação de

296 “Outside the firm, price movements direct production, which is co-ordinated through a series of exchange transactions on the market. Within a firm, these market transactions are eliminated and in place of the complicated market structure with exchange transactions is substituted the entrepreneur-co-ordinator, who directs production. It is clear that these are alternative methods of co-ordinating production.” (COASE, 1937, p. 388 – tradução livre, grifo ausente no original.) 297 Como diz o autor: “It can, I think be assumed that the distinguishing mark of the firm is the supersession of the price mechanism.” (COASE, 1937, p. 389.)

188

recursos – tanto do ponto de vista individual, como social - e

se espontaneamente indivíduos que buscam maximizar seus

interesses pessoais não teriam opção melhor do que o mercado,

como explicar o surgimento das firmas? Coase, primeiramente,

especula algumas respostas possíveis, como as preferências

individuais por comandar ou ser comandado, ou mesmo a

existência de regimes jurídicos diferentes entre firmas e

indivíduos. Conclui, porém, que a melhor razão para explicar o

surgimento das firmas seria a existência de custos para a

adoção do mecanismo de preços - ou, como visto, os custos de

transação. Os custos de transação englobariam, entre outros, o

custo de descobrir os preços de mercado – o que justificaria,

por exemplo, a existência de consultores especializados para

essa finalidade -, e o custo de negociar e executar diferentes

contratos para cada uma das transações realizadas no mercado.

No mercado, tais custos poderiam ser minimizados, mas nunca

completamente eliminados, segundo o autor. Em uma firma, por

outro lado, parte desses custos seriam suprimidos. As decisões

do empreendedor (ou gerente) substituiriam as transações no

mercado. Substituídas as transações, suprimem-se os custos a

essas relacionados – os custos de transação -, tais como o

custo de negociar um contrato, ou de contratar um especialista

para descobrir o preço de mercado de um bem. Em suma, afirma

Coase, a existência de custos de transação justificaria a

existência das firmas, mesmo diante da premissa neoclássica de

que indivíduos são maximizadores racionais.298

298 Nesse sentido: “We may sum up this section of the argument by saying that the operation of a market costs something and by forming an organisation and allowing some authority (an "entrepreneur") to direct the resources, certain marketing costs are saved.” (COASE, 1937, p. 392.)

189

The Nature of the Firm prossegue, então, com uma

teoria acerca do tamanho ótimo das firmas, baseando-se na

suposta relação entre a perda de eficiência das decisões do

empreendedor, o tamanho da firma e o ganho que representa a

supressão dos custos de transação frente ao parâmetro de

eficiência da alocação de recursos pelo mercado. Essa

exposição, contudo, seria posteriormente criticada pelo

próprio Ronald Coase.299 Não obstante, Coase em outras

oportunidades reforçou uma das conclusões de sua análise, a de

que um sistema econômico eficiente necessitaria não apenas da

existência de mercados, mas também de áreas de planejamento

dentro de organizações com um tamanho apropriado.300

Em The Nature of the Firm, portanto, Coase se vale

dos custos de transação para argumentar que as firmas não

apenas são formas de organização da atividade econômica

alternativas ao mercado, como também são por vezes formas mais

eficientes do que o próprio mercado. Já no outro artigo de

Coase que analisaremos aqui, The Problem of Social Cost (em

tradução livre: “O problema do custo social”), os custos de

transação são utilizados para analisar o problema dos efeitos

danosos que as ações das firmas trazem para terceiros, como

ocorre no caso de uma fábrica cuja fumaça traz prejuízo aos

299 A crítica a que nos referimos segue transcrita a seguir: “It is little more than an undergraduate essay. [...] It’s very poor. It talked about the firm as if you could talk about it as an entity in economic theory. I said ‘as a firm grew bigger, there were diminishing returns in management’, but this is treating it [the firm] as if a fertilizer in plowed land, and measuring it in terms of its return. [...] Well, firms aren’t like that. [...] It’s a sociologychal problem rather than an economic one.” (COASE, 2009 – transcrição de trechos entre 5’45 e 7’35 da entrevista.) 300 Parafraseamos a partir do seguinte trecho: “To have an efficient economic system it is necessary not only to have markets but also areas of planning within organizations of the appropriate size.” (COASE, 1994, posição 148.)

190

terrenos vizinhos.301 Esses efeitos negativos a terceiros são

chamados pela Economia contemporânea de externalidades

negativas.302 Em The Problem of Social Cost, Coase se contrapõe

à análise desse problema feita segundo a Economia do Bem-Estar

– cujos fundamentos remontam ao economista neoclássico inglês

Arthur Pigou na primeira metade do século XX. Ainda hoje, a

Economia do Bem-Estar encontra ampla repercussão na Economia

e, por exemplo, serve de fundamento para a narrativa do Estado

Regulador analisada no capítulo 1 desta tese. O seguinte

trecho do livro de introdução à Economia de Gregory Mankiw,

professor de Harvard que segue a linha neoclássica, sintetiza

o problema das externalidades negativas conforme essa linha

teórica:

Quando há externalidades, o interesse da sociedade em um

resultado de mercado vai além do bem-estar dos

compradores e dos vendedores que participam do mercado;

passa a incluir também o bem-estar de terceiros que são

indiretamente afetados. Como os compradores e vendedores

desconsideram os efeitos externos de suas ações quando

decidem quanto demandar ou ofertar, o equilíbrio de

mercado não é eficiente quando há externalidades. Ou

seja, o equilíbrio não maximiza o benefício total para a

sociedade como um todo.303

Nessa visão, o problema das externalidades é

essencialmente o de incorporar as preferências dos indivíduos

301 Diz Coase: “This paper is concerned with those actions of business firms which have harmful effects on others. The standard example is that of a factory the smoke from which has harmful effects on those occupying neighbouring properties.” (COASE, 1960, p. 1) 302 A definição de Mankiw é ilustrativa: “Uma externalidade surge quando uma pessoa se dedica a uma ação que provoca impacto no bem-estar de um terceiro que não participa dessa ação, sem pagar nem receber nenhuma compensação por esse impacto. Se o impacto sobre o terceiro é adverso, é denominado externalidade negativa. Se é benéfico, é chamado externalidade positiva.” (MANKIW, 2009, pp. 195-196.) 303 MANKIW, 2009, p. 196.

191

que não estão manifestas nas decisões que integram o mercado.

Em outras palavras, as externalidades significam casos em que

as decisões de mercado não representam aquilo que os

demandantes de forma agregada reputam como o melhor para si

mesmos. É, por isso, hipótese de falha de mercado, em termos

da inadequação do mercado como instrumento de maximização de

bem-estar social - compreendido bem-estar como a melhor

alocação de recursos escassos segundo a utilidade que os

indivíduos atribuem a esses recursos. A solução ortodoxa para

a Economia do Bem-Estar é se valer da ação estatal para que as

externalidades sejam internalizadas, isto é, para que as

preferências que não são computadas nas decisões de mercado

passem a ser computadas. O principal meio para isto são os

chamados impostos pigouveanos – cujo nome não por acaso remete

a Pigou, que além de ser responsável pela origem da Economia

do Bem-Estar, propôs esse tipo de imposto como solução para o

problema das externalidades negativas. Em síntese, o imposto

pigouveano tem por objetivo a internalização das

externalidades por meio da ação governamental, mediante o

incremento do custo das atividades que provocam externalidades

negativas na exata medida do prejuízo social que provocam. Por

exemplo, na ilustração da fábrica cuja fumaça prejudica os

terrenos vizinhos, o imposto pigouveano deveria ser em tal

monta que correspondesse exatamente ao prejuízo que os

proprietários dos terrenos vizinhos tivessem em razão da

fumaça.

Em contraposição a essa visão, Coase, primeiramente,

afirma que o problema dos efeitos nocivos a terceiros tem,

necessariamente, uma natureza recíproca. Em síntese, Coase

argumenta que o prejuízo existe dos dois lados do problema –

tanto a pessoa que pratica a atividade pode provocar prejuízo

em terceiros, como pode ser prejudicada por ter que restringir

sua atividade. Podemos usar o exemplo da fábrica cuja fumaça

192

traz prejuízo aos proprietários de terrenos vizinhos para

ilustrar o argumento de Coase. Se os proprietários de terrenos

vizinhos compelirem a fábrica a mudar seu processo de

produção, ou a parar de produzir, haverá prejuízo para o

proprietário da fábrica. A questão, segundo Coase, seria

avaliar qual prejuízo é maior – o dos terrenos vizinhos em

razão da fumaça, ou o da fábrica em razão dos vizinhos.

Conforme o critério neoclássico de bem-estar como

maximização da utilidade individual, a solução deveria ser

aquela que preservasse a maior utilidade – se a produção da

fábrica fosse mais útil do que o prejuízo aos terrenos

vizinhos, a fábrica deveria operar e os vizinhos sofrerem o

prejuízo, e vice-versa. Considerando que o sistema de preços

é, em termos neoclássicos, expressão das utilidades

individuais, o problema e sua solução podem ser expressos em

termos pecuniários. Por exemplo, se a fábrica operasse com

lucro de $ 600 e o prejuízo aos terrenos remontasse a um total

de $ 400, do ponto de vista social haveria um superávit de $

200 para o bem-estar social caso a fábrica operasse, e um

déficit dos mesmos $ 200 caso a fábrica fosse obrigada a

fechar as portas. Isso porque – sempre segundo as premissas

neoclássicas - a operação da fábrica contribui com $ 600 em

termos de utilidade conforme medida pelo mercado, e o prejuízo

dos terrenos representa $ 400 de utilidade conforme medida

pelo mercado. Nesse caso, a maximização do bem-estar social

ocorreria no cenário em que a fábrica operasse, mesmo

considerado o prejuízo para os terrenos. A conclusão se

inverteria caso se invertessem os montantes de lucro e

prejuízo – no caso de o lucro da fábrica ser $ 400 e o

prejuízo aos terrenos vizinhos ser $ 600, a maximização de

bem-estar ocorreria com o encerramento das atividades da

fábrica.

193

A partir da afirmação de que se trata de um problema

de natureza recíproca, o autor passa à exposição daquilo que

ficou conhecido como Teorema de Coase. O autor não o apresenta

como um teorema – essa denominação e sua formalização segundo

os pressupostos neoclássicos foram feitas pelo economista

George Stigler.304 O teorema corresponde à conclusão de Coase

de que, pela atuação do mecanismo de preços em condições

ideais, qualquer que seja a imputação jurídica do direito a

produzir ou reprimir externalidades negativas, o resultado

final será a alocação eficiente de recursos segundo os

pressupostos da Economia Neoclássica (maximização de

utilidade). Ao invés da fábrica que produz fumaça, Coase usa o

exemplo de duas propriedades rurais vizinhas, uma com criação

de gado, outra com uma plantação de grãos, em que, ao invés da

fumaça, o problema é o prejuízo que o gado solto provocaria

nas mudas da plantação de grãos.305 Todavia, para os fins desta

exposição, nos manteremos com a ilustração da fábrica nos

moldes dos parágrafos anteriores.

Na nossa ilustração, o Teorema de Coase implica que,

no caso de a operação da fábrica provocar um superávit de $

200 - e, logo, deixá-la operar ser a opção maximizadora de

bem-estar social - não importará a decisão jurídica de imputar

responsabilidade à fábrica por indenizar ou isentá-la dessa

responsabilidade. A fábrica irá operar, nesse caso, pela

própria ação do mecanismo de preços. O argumento de Coase

parte do próprio pressuposto da Economia Neoclássica de que as

relações de mercado refletem preferências individuais acerca

da utilidade na alocação de recursos escassos. Dizer que a

304 Ver: COASE, 1988, p. 14; COASE, 2012. 305 Cf. COASE, 1960, pp. 3-8.

194

fábrica dá $ 600 de lucro significa dizer que o dono da

fábrica aceitaria os mesmos $ 600 para parar de produzir, caso

alguém se dispusesse a paga a ele este valor. Por outro lado,

dizer que o prejuízo dos terrenos seria de $ 400, significa

dizer que os donos dos terrenos aceitariam $ 400 como

compensação para deixar a fábrica produzir. Nesse caso, uma

simples transação entre partes prejudicada e beneficiada

resolveria o problema – ou seja, o problema se resolveria pelo

próprio mecanismo de preços. Se o direito à indenização pelos

prejuízos provocados pela fumaça fosse reconhecido, bastaria

ao dono da fábrica pagar $ 400 aos donos dos terrenos, que ele

ainda operaria com lucro de $ 200. O benefício social seria

equivalente ao lucro de $ 200 do dono da fábrica. Se o direito

não fosse reconhecido, ele operaria sem ter de pagar

indenização aos donos dos terrenos. Também nesse caso, o

benefício social seria de $ 200 – pois essa seria a soma do

lucro de $ 600 do dono da fábrica com o prejuízo de $ 400 dos

donos dos terrenos.

No caso inverso – lucro da fábrica de $ 400,

prejuízo dos vizinhos de $ 600 -, também haveria maximização

do benefício social pela atuação do mecanismo de preços. Nesse

caso, o maior benefício social seria o da não operação da

fábrica, pois sua operação geraria um déficit de $ 200, o que

significa que seu fechamento daria um benefício de $ 200 para

a sociedade. Também nesse caso a imputação do direito à

indenização não influencia no resultado social. Caso a fábrica

tivesse de indenizar os proprietários dos terrenos, o dono

prefereria fechar as portas. Os terrenos, nesse caso, valeria

$ 600 a mais do que no caso de a fábrica operar, mas a fábrica

deixaria de gerar lucro de $ 400 – somados benefício e

prejuízo, a não operação da fábrica resultaria no benefício de

$ 200 para a sociedade. De igual forma, se a fábrica não fosse

obrigada a indenizar, os donos dos terrenos poderiam pagar $

195

400 para o dono da fábrica deixar de produzir. Nesse caso, os

terrenos continuariam a valer $ 600, mas os $ 400 de lucro da

fábrica seriam compensados pelo prejuízo de $ 400 dos donos do

terreno, o que também geraria um benefício social de $ 200.

Coase trabalha exaustivamente as hipóteses de

imputação do direito à indenização das partes prejudicadas,

inclusive ilustrando a compensação por prejuízos ou lucros

marginais e pela adoção de medidas para minimizar o prejuízo –

no caso da fábrica, por exemplo, esse seria o caso na adoção

de métodos de produção que produzissem menos fumaça. Em todas

as hipótese, Coase comprova que o mecanismo de preços seria

suficiente para resolver o problema das externalidades. Na

formulação dada por Stigler, o Teorema de Coase significa que

em condições de concorrência perfeita, custo social e custos

privados se igualam.306 Em outras palavras, não há

externalidades, pois os custos sociais são internalizados pela

possibilidade de transação entre partes prejudicadas e partes

beneficiadas.

Todavia, Coase faz questão de frisar que as

conclusões acima – que consistem no Teorema de Coase – somente

são válidas em um cenário em que não existam custos para a

implementação de transações em um mercado. Esse cenário, diz

Coase, está bem distante da realidade.307 Não apenas a

existência de efeitos adversos – o custo social308 - das

transações de mercado está relacionada à existência de custos

para a adoção do mecanismo de preços, como a solução do dito

306 Cf. COASE, 1988, p. 14. 307 COASE, 1960, p. 15. 308 Ronald Coase define custo social segundo as premissas da Economia Neoclássica: “Social cost represents the greatest value that factors of production would yield in an alternative use.” (COASE, 1988, p. 158).

196

custo social passa pela avaliação criteriosa do papel de

mercados e instituições alternativas a mercados na alocação de

recursos escassos. Diz o autor:

Resta claro que uma forma alternativa de organização

econômica que pudesse alcançar o mesmo resultado a um

custo menor do que o que seria incorrido pelo uso do

mercado iria viabilizar o aumento do valor da produção.

Como expliquei há muitos anos, a firma representa uma

tal alternativa à organização da produção mediante

transações de mercado. [...] Mas a firma não é a única

alternativa possível para resolver esse problema. Os

custos administrativos de organizar transações dentro de

uma firma podem também ser altos, e particularmente o

serão quando muitas atividades diversas sejam colocadas

sob o controle de uma única organização. [...] Uma

solução alternativa é a regulação governamental direta.

Ao invés de instituir um regime jurídico de direitos que

possam ser modificados por transações no mercado, o

governo pode impor regulamentos que digam o que as

pessoas devem ou não fazer, e que devem ser obedecidos.

[...] O governo é capaz, se desejar, de evitar por

completo o mercado, algo que a firma nunca poderá

fazer.309

309 “It is clear that an alternative form of economic organisation which could achieve the same result at less cost than would be incurred by using the market would enable the value of production to be raised. As I explained many years ago, the firm represents such an alternative to organising production through market transactions. [...] But the firm is not the only possible answer to this problem. The administrative costs of organising transactions within the firm may also be high, and particularly so when many diverse activities are brought within the control of a single organisation. [...] An alternative solution is direct Government regulation. Instead of instituting a legal system of rights which can be modified by transactions on the market, the government may impose regulations which state what people must or must not do and which have to be obeyed.[...] The government is able, if it wishes, to avoid the market altogether, which a firm can never do.” (COASE, 1960, pp. 16-17 – tradução livre.)

197

A partir dessa exposição de Coase, é possível

identificar pelo menos três tipos de instituições no que diz

respeito à organização da economia, representadas na Figura 6

- Instituições econômicas identificadas em Coase (1960). Em

primeiro lugar, há as instituições de mercado, caracterizadas

pela adoção de mecanismo de preços como modo de coordenação da

alocação de recursos. Em segundo lugar, há as firmas, que

dependem de instituições de mercado para obter insumos e para

alocar sua produção, mas que internamente organizam recursos

escassos segundo determina sua administração interna. E,

finalmente, há os governos, que tanto podem se valer de

mercados para obter insumos e alocar produção, como podem

completamente substuir mercados por arranjos alternativos.

Todos esses diferentes arranjos possuem seus custos

específicos, diz Coase, e a ponderação de qual dentre as

alternativas institucionais traz melhor resultado quanto à

produção econômica implica contrastar os custos de cada um dos

diferentes arranjos.

Figura 6 - Instituições econômicas identificadas em Coase (1960)

Fonte: elaboração do autor.

198

Com base nessa visão, o autor critica a abordagem da

Economia do Bem-Estar não porque esta afirma a necessidade de

ação governamental para corrigir falhas de mercado310, mas sim

pelo fato de analisar a economia com base em um modelo ideal

de funcionamento do mercado cuja correspondência com a

realidade não pode ser comprovada. Além disso, Coase reconhece

que a questão não pode ser decidida unicamente com base no

parâmetro neoclássico de maximização do bem-estar em razão do

aumento da produção, mas sim em uma visão ampla das

necessidades humanas – o autor chega a propor que a questão

não é meramente econômica, mas também uma questão estética e

moral.311

310 A posição de Coase é geralmente tendente a criticar a ação governamental. O autor, contudo, é bem cauteloso ao fazê-lo, exigindo que haja uma efetiva ponderação dos custos envolvidos na alocação de recursos por mercados e por firmas, e que esses custos sejam comparados com arranjos institucionais alternativos: “All solutions have costs and there is no reason to suppose that government regulation is called forsimply because the problem is not well handled by the market or the firm. Satisfactory views on policy can only come from a patient study of how, in practice, the market, firms and governments handle the problem of harmful effects. Economists need to study the work of the broker in bringing parties together, the effectiveness of restrictive covenants, the problems of the large-scale real-estate development company, the operation of Government and other zoning and regulating activities. It is my belief that economists, and policy-makers generally, have tended to over-estimate the advantages which come from governmental regulation. But this belief, even if justified, does not do more than suggest that government regulation should be curtailed. It does not tell us where the boundary line should be drawn.” (COASE, 1960, p. 18). 311 As conclusões expostas em The Problem of Social Cost tanto reforçam esses argumentos, como sintetizam a mudança de abordagem que Coase propõe para a Economia: “In this article, the analysis has been confined, as is usual in this part of economics, to comparisons of the value of production, as measured by the market. But it is, of course, desirable that the choice between different social arrangements for the solution of economic problems should be carried out in broader terms than this and that the total effect of these arrangementsin all spheres of life should be taken into account. As Frank H. Knight has so often emphasized, problems of welfare economics must ultimately dissolve into a study of aesthetics and morals. A second feature of the usual treatment of the problems discussed in this article is that the analysis proceeds in terms of a comparison between a state of laissez faire and some kind of ideal world. This approach inevitably leads

199

A partir da argumentação de Coase, podemos afastar o

pressuposto de que mercados são espontaneamente gerados a

partir das relações privadas. Mercados são criações e

pressupõem pelo menos, nos parâmetros propostos por Coase, a

assunção de custos específicos para sua existência e

funcionamento. Além de afastar a pressuposição da

esponateidade dos mercados, o pensamento de Coase permite duas

outras conclusões que serão retomadas no final deste capítulo

2: i) há atividade econômica privada (não-estatal) externa a

mercados – como, por exemplo, no caso das atividades internas

às firmas -, logo, é errônea a assunção da visão paradigmática

de igualar a atividade econômica privada à atividade que

ocorre no mercado; ii) a ideia de falha de mercado é enganosa,

pois ofusca o papel das instituições econômicas alternativas a

mercados.

Assim, ao se confrontar as ideias de Coase com o que

designei acima como “visão paradigmática”, percebe-se que esta

se centra apenas no papel do direito em interferir com aquilo

que considera o funcionamento do mercado. A visão

paradigmática ignora o papel do direito na criação e

organização dos mercados, ignora que as diversas configurações

institucionais possíveis dão origem a mercados que se

estruturam e funcionam de maneiras diferentes, e especialmente

ignora que a atividade econômica não-estatal (privada) se

desenvolve não apenas em mercados, mas também em instituições

externas a mercados. Portanto, a visão paradigmática orienta o

to a looseness of thought since the nature of the alternatives being comparedis never clear. In a state of laissez faire, is there a monetary, a legal or a political system and if so, what are they? In an ideal world, would there be a monetary, a legal or a political system and if so, what would they be? The answers to all these questions are shrouded in mystery and every man is free to draw whatever conclusions he likes.” (COASE, 1960, p. 43).

200

direito a atuar apenas no funcionamento dos mercados, e ainda

assim desconsiderando o papel que as diversas configurações

institucionais produzem naquele funcionamento.

2.4. A refutação da ideia de que relações privadas se caracterizam pela escolha racional individual, segundo a Economia Comportamental (Behavioral Economics)

No que diz respeito ao funcionamento da economia em

geral, a visão paradigmática parte de outra premissa que aqui

contestaremos – a de que o mercado seria estruturado em

relações privadas caracterizadas pela escolha racional para

atender a interesses individuais. A partir da década de 1970,

essa visão passou a ser questionada por uma nova corrente

oriunda da integração do pensamento econômico com pressupostos

da Psicologia Comportamental (ou Behaviorista), e que passou a

ser denominada Behaviorismo Econômico ou Economia

Comportamental (Behavioral Economics).312 Não sem uma certa

dose de ironia, pensadores vinculados à Economia

Comportamental chamam de homo economicus o modelo de agente

racional adotado pela Economia Neoclássica.313 Ao homo

economicus, contrapõem o homem real, constrangido não apenas

por sua incapacidade de contemplar todo o espectro de

informações necessário à tomada de decisões, mas também por

312 O questionamento sistemático da premissa do agente racional, não obstante, antecede a Economia Comportamental. Destacam-se a obras dos “antigos” institucionalistas Thorstein Veblen – que critica o utilitarismo hedonista da economia neoclássica - e John Commons – que destaca o papel da ação coletiva na formação das instituições econômicas. Cf. ALBERT et. al., 2008; CHAVANCE, 2007, pp. 12-23 e 28-38. 313 Cf. THALER e SUNSTEIN, 2009, pp. 1-21; JOLLS et. al., 1998, pp. 1476-1481.

201

limitações decorrentes do modo como operam as funções

cognitivas.

2.4.1. Teoria da perspectiva (Prospect theory): uma outra visão sobre a racionalidade na tomada de decisões

Na Economia Comportamental, os trabalhos do

psicológo Amos Tversky e do economista Daniel Kahneman foram

particularmente influentes e são considerados fundacionais

daquele novo modo de enxergar as relações econômicas.314

Kahneman foi inclusive agraciado com o Prêmio Nobel de

Economia de 2002 – Tversky já havia falecido nessa data.

Kahneman e Tversky buscaram, com base no método experimental,

analisar o comportamento do ser humano de forma a contrastar

as decisões efetivamente tomadas em situações de mercado com

aquelas que o modelo de racionalidade indicava que seriam (ou

deveriam ser) tomadas.

Segundo a visão da Economia Neoclássica, as relações

econômicas (ou ao menos as de uma economia de mercado) seriam

caracterizadas pela ação de agentes individuais racionais em

busca da maximização de seus interesses. Segundo essa visão,

agentes econômicos escolhem com base na utilidade que atribuem

ao produto de suas escolhas, utilidade essa que seria passível

de mensuração em pecúnia conforme aferida em um estado final

de riqueza. Essa ideia é ainda a que prevalece na grande

maioria dos manuais de Economia e integra o que poderíamos

nomear de senso comum nos debates sobre política econômica,

tal como anota Dan Ariely:

314 Cf. TETLOCK e MELLERS, 2002, p. 94; THALER e SUNSTEIN, 2009, p. 25; CAMERER, 1999, p. 10575.

202

A Economia dominante pressupõe que somos racionais – que

sabemos toda a informação necessária para fundamentar

nossas decisões, que podemos calcular o valor das

diferentes opções que se colocam à nossa frente, e que

nós não somos limitados cognitivamente para sopesar as

ramificações de cada escolha potencial.

O resultado é que se presume que façamos decisões

lógicas e sensatas. E mesmo que tomemos uma decisão

errada de tempos em tempos, a perspectiva da Economia

dominante sugere que iremos rapidamente aprender com

nossos erros por nós mesmos ou com a ajuda das “forças

de mercado”. Com base nessas pressuposições, economistas

tiram conclusões pretensiosas sobre tudo, desde

tendências de compras até o direito e políticas

públicas.315

Como ilustração, podemos afirmar que, segundo a

Economia Neoclássica, se Francisco comprou uma maçã por R$ 1,

é porque atribui a essa maçã utilidade maior ou igual às

outras coisas que podem ser compradas por R$ 1. Dado que o R$

1 empregado para comprar a maçã não compraria nada mais útil,

Francisco terá, em resultado da escolha, maximizado sua

riqueza. Ou seja, é o estado final de riqueza (medido pela

maior utilidade da maçã frente às outras coisas que poderiam

ser compradas pelo R$ 1 gasto por Francisco) que justifica a

decisão de Francisco de comprar a maçã. O modelo de

racionalidade, desse modo, se traduz em um modelo segundo o

315 “Standard economics assumes that we are rational – that we know all the pertinent information about our decisions, that we can calculate the value of the different options we face, and that we are cognitively unhindered in weighing the ramifications of each potential choice. /§/ The result is that we are presumed to be making logical and sensible decisions. And even if we make a wrong decision from time to time, the standard economics perspective suggests that we will quickly learn from our mistakes either on our own or with the help of “market forces”. On the basis of these assumptions, economists draw far-reaching conclusions about everything from shopping trends to law to public policy.” (ARIELY, 2013, posição 4268 – tradução livre.)

203

qual agentes econômicos irão tomar decisões que façam com que

os recursos de que dispõem tenham a melhor destinação

possível. Ou, como sintetiza Richard Posner, racionalidade é

escolher os melhores meios para alcançar os fins daquele que

escolhe.316

Os experimentos de Kahneman e Tversky, todavia,

apontaram que de forma sistemática as escolhas em situações de

mercados diferiam da lógica de maximização de utilidade. A

ideia de que escolhas tem por base a utilidade daquilo que é

escolhido, Kahneman a chama de erro de Bernoulli – em

referência ao cientista suíço Daniel Bernoulli, que a propôs

em 1738, antes mesmo dos marginalistas Jevons, Menger e

Walras.317 Bernoulli estudou a tomada de decisões em que há

riscos - as apostas.

O estudo da tomada de decisões em apostas é

utilizado por estudiosos do processo de tomada de decisões

para avaliar os processos cognitivos envolvidos na tomada de

decisões de mercado, mais complexas. Decisões de mercado, tais

como apostas, sempre envolvem risco. Mesmo transações simples

como a compra e venda da maçã feita por Francisco, da

ilustração que usamos acima, envolvem risco: a maçã comprada

por Francisco pode estar estragada, por exemplo, ou ser menos

saborosa do que Francisco antecipara. Diante da presença do

risco, no estudo tomada de decisões em ambiente de mercado, é

ainda usual o estudo de situações simplificadas de apostas

(gambles), tal como feito por Bernoulli em 1738.

316 Parafraseamos de: “...choosing the best means to the chooser's ends.” (POSNER, 1998, p. 1551). 317 Cf. KAHNEMAN, 2003, pp. 1455-1458; KAHNEMAN, 2011, posição 4577 e ss.

204

Antes de Bernoulli, matemáticos assumiam que apostas

seriam racionais quando feitas segundo o valor esperado, que é

igual ao resultado favorável ponderado pela probabilidade de

êxito. Ou seja, em uma aposta cujo resultado favorável é a

obtenção de $100 e a probabilidade de êxito é 70%, o valor

esperado é $70 (isto é, 70% de $100).318 Kahneman usa outro

exemplo, ligeiramente mais complexo: em uma aposta em que há

20% de chance de obter $10 e 80% de chance de obter $100, o

valor esperado é $82 (20% de $10 + 80% de $100). Segundo a

visão anterior a Bernoulli, pessoas prefeririam realizar essa

aposta do que receber $80, pois o valor esperado ($82) seria

maior. Mas Bernoulli ponderou que apostas não são feitas

assim: as pessoas preferem a certeza de receber $80 à correr o

risco, ainda que probabilisticamente o risco valesse a pena.319

Bernoulli então propôs que as escolhas seriam

determinadas não pelo valor esperado, mas pelo valor

psicológico – que, em essência, corresponde ao conceito de

utilidade adotado pela Economia Neoclássica (ver item 2.2

acima). A essa agrega-se outra ideia, a de que um mesmo valor

em pecúnia (por exemplo, R$100) é mais útil para uma pessoa

que tem menos riqueza (por exemplo, R$10.000) do que para

outra mais rica (cujo patrimônio seja, por exemplo,

R$100.000). No jargão da Economia Neoclássica, essa noção é

chamada utilidade marginal decrescente da riqueza. Um exemplo

hipotético com a representação matemática dessa ideia consta

da tabela abaixo:

318 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 4646 e ss. 319 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 4653.

205

Tabela 2 - Utilidade marginal em razão da riqueza (exemplo hipotético)

Fonte: KAHNEMAN, 2011, posição 4662 – tradução livre.

Nesse exemplo, unidades de utilidade é uma

representação abstrata do valor psicológico que o dinheiro

confere ao seu possuidor, e sua utilidade é tão somente

heurística – para representar a utilidade marginal decrescente

da riqueza. Assim, no exemplo, a utilidade de um milhão é

igual a 10 unidades, e a utilidade de dois milhões é de 30

unidades. A utilidade marginal do segundo milhão frente ao

primeiro é de 20 unidades. Lembremos que utilidade marginal é

a utilidade de uma unidade adicional, portanto a utilidade

marginal do segundo milhão é igual à utilidade de dois milhões

(30 unidades de utilidade) menos a utilidade de um milhão (10

unidades de utilidade). O exemplo reflete a ideia de que a

utilidade marginal é decrescente – a do terceiro milhão é de

18 unidades, a do quarto milhão é doze unidades, até chegar à

do décimo milhão, que é de 4 unidades. Nessas condições,

consideremos a seguinte aposta: chances iguais de obter 1

milhão ou 7 milhões, ou ganhar 4 milhões com certeza. Em

termos probabilísticos, as duas opções tem igual valor

esperado (50% de 1 milhão + 50% de 7 milhões = 4 milhões).

Porém ao se considerar as utilidades esperadas, a conta se

modifica. A primeira opção tem valor de 47 unidades de

utilidade (50% de 10 unidades de utilidade + 50% de 84

unidades de utilidade). Já a segunda opção, de receber sem

risco os 4 milhões, tem 60 unidades de utilidade. Por isso, a

segunda opção é mais atraente, ainda que probabilisticamente

ambas opções sejam iguais. A conclusão de Bernoulli foi que,

em condições de utilidade marginal decrescente, o tomador de

decisões será avesso ao risco. Bernoulli, então, usou essa

Riqueza

(em milhões) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Unidades de

utilidade 10 30 48 60 70 78 84 90 96 100

206

ideia para explicar o porquê de mercadores comprarem seguros

para mercadorias embarcadas por prêmios superiores ao risco

probabilístico de perda daquelas mercadorias.320

Passados 300 anos do ensaio de Bernoulli, a Economia

Neoclássica continua utilizando as mesmas premissas de

racionalidade e utilidade marginal decrescenta. Todavia,

segundo Daniel Kahneman, o erro de Bernoulli – e da Economia

Neoclássica - consiste em ignorar o fato de que decisões são

tomadas a partir de pontos de referência. A esse respeito,

Kahneman faz as seguintes considerações:

A longevidade da teoria [de Bernoulli] é tanto mais

impressionante porque é seriamente defeituosa. Os erros

de uma teoria são raramente encontrados naquilo em que

ela afirma explicitamente; eles se escondem naquilo que

ela ignora ou assume tacitamente. Por exemplo, considere

os seguintes cenários:

Hoje Jack e Jill têm cada um riqueza de 5

milhões.

Ontem, Jack tinha um milhão e Jill tinha 9

milhões.

Estarão eles igualmente felizes? (Têm eles a

mesma utilidade?)

A teoria de Bernoulli assume que a utilidade de sua

riqueza é o que faz as pessoas mais ou menos felizes.

Jack e Jill têm a mesma riqueza, e a teoria por

conseguinte afirma que eles deveria estar igualmente

felizes, mas você não precisa de um diploma em

Psicologia para saber que hoje Jack está contente e Jill

pesarosa.321

320 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 4678. 321 “The longevity of the theory is all the more remarkable because it is seriously flawed. The errors of a theory are rarely found in what it

207

Ao invés de considerar que escolhas são feitas de

acordo com a utilidade imputada àquilo que é escolhido,

Kahneman e Tversky propuseram que escolhas são tomadas a

partir da percepção de perdas e ganhos. Esse novo modelo de

tomada de decisões foi por aqueles autores chamado de teoria

da perspectiva. A teoria da perspectiva resultou de diversos

experimentos executados por Kahneman e Tversky na década de

1970, em que se confrontaram as opções que o modelo de

racionalidade do homo economicus (o modelo de Bernoulli e da

Economia Neoclássica) previa como racionais, com as opções

efetivamente exercidas por pessoas frente a escolhas que

envolviam riscos. A partir dos resultados, Kahneman e Tversky

não apenas comprovaram que pessoas escolhem com base em ganhos

e perdas a partir de pontos de referência (e não com base na

utilidade absoluta daquilo que é escolhido), como também

comprovaram que os pesos na tomada de decisão não são as

probabilidades (em termos estatísticos) de ocorrência de

eventos favoráveis ou desfavoráveis. Ao revés, como veremos

adiante, pessoas são extremamente limitadas na sua capacidade

de raciocinar estatisticamente (e o uso de probabilidades é um

raciocínio estatístico).

Ao invés de probabilidades, Kahneman e Tversky

identificaram o que denominaram de efeito possibilidade e

efeito certeza.322 O efeito possibilidade se dá pelo fato de

asserts explicitly; they hide in what it ignores or tacitly assumes. For an example, take the following scenarios: /§/ Today Jack and Jill each have a wealth of 5 million. Yesterday, Jack had 1 million and Jill had 9 million. Are they equally happy? (Do they have the same utility?)/§/ Bernoulli’s theory assumes that the utility of their wealth is what makes people more or less happy. Jack and Jill have the same wealth, and the theory therefore asserts that they should be equally happy, but you do not need a degree in psychology to know that today Jack is elated and Jill despondent.” (KAHNEMAN, 2011, posição 4686 – tradução livre.) 322 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 5313 e ss.

208

que pessoas tendem a dar peso excessivo a eventos com baixa

probabilidade de ocorrência. O efeito certeza, por outro lado,

se dá pelo fato de que pessoas tendem a dar pouco peso a

eventos com alta probabilidade de ocorrência. Esses dois

efeitos, em especial, são marcadamente perceptíveis quando o

tomador de decisões se defronta com a possibilidade de perdas

(em relação ao seu ponto de referência). Esses dois efeitos

somados ensejam o padrão quaternário (fourfold pattern)323 da

teoria da perspectiva, representado no quadro abaixo:

Tabela 3 - Padrão quaternário da teoria da perspectiva

GANHOS PERDAS

ALTA PROBABILIDADE

Efeito certeza

95% de chances de ganhar $10.000

Medo de desapontamento

AVERSÃO AO RISCO

Aceita acordo desfavorável

95% de chances de perder $10.000

Esperança de evitar perda

ATRAÇÃO PELO RISCO

Rejeita acordo favorável

BAIXA PROBABILIDADE

Efeito possibilidade

5% de chances de ganhar $10.000

Esperança de ganhos vultosos

ATRAÇÃO PELO RISCO

Rejeita acordo favorável

5% de chances de perder $10.000

Medo de uma perda grande

AVERSÃO AO RISCO

Aceita acordo desfavorável

Fonte: KAHNEMAN, 2011, posição 5440 – tradução livre.

Na Tabela 3 acima, a primeira linha contém uma

ilustração de diferentes cenários de análise (95% de chances

de perder ou ganhar $10.000; 5% de chances de perder ou ganhar

$10.000). A segunda linha contém a explicação psicológica (em

termos emocionais) para o comportamento verificado em cada um

dos cenários. A terceira linha contém os padrões de

comportamento propriamente ditos – atração pelo risco, ou

aversão ao risco. A quarta linha contém uma previsão do

comportamento do tomador de decisões frente a uma proposta

probabilisticamente favorável ou desfavorável. A partir do

323 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 5305 e ss.

209

padrão quaternário relatado na Tabela 3, Kahneman e Tversky

identificaram outra característica da tomada de decisões em

situações de risco: pessoas são aversas a perdas mais do que

são avessas a riscos. A aversão a perdas, ao invés de aversão

a risco, induz à conclusão de que pessoas tendem a manter o

status quo – tomadores de decisão subavaliam os ganhos

decorrentes de uma mudança de posição, e superavaliam os

riscos decorrentes de uma mudança de posição.

2.4.2. O efeito dotação (endowment effect): invalidação do teorema de Coase a partir da teoria da perspectiva

Posteriormente, o economista Richard Thaler utilizou

a teoria da perspectiva e a aversão a perdas para explicar o

que denominou de efeito dotação (endowment effect) no

comportamento de agentes econômicos. A explicação do efeito

dotação por meio da teoria da perspectiva é reputada por

Kahneman como o marco inicial da abordagem característica da

Economia Comportamental.324 O efeito dotação se dá pelo fato de

pessoas darem mais valor a um bem quando o possuem para uso

próprio (e não para revenda, como por exemplo o estoque de uma

empresa). Isso significa que, nesses casos, a disposição para

pagar (willingness to pay – WTP) por um bem é menor do que

disposição para vender (willingness to accept – WTA) esse

mesmo bem. Thaler percebeu o efeito dotação quando se deu

conta que um de seus professores, confesso amante de vinhos,

se dispunha a comprar vinhos em leilões por não mais do que

U$35 dólares à época, mas, depois de comprado, se recusava a

vender o mesmo vinho por não menos do que U$100. O efeito

dotação não apenas contraria a ideia de que a utilidade de

324 KAHNEMAN, 2011, posição 4995.

210

algo determina o seu valor para o comprador, mas também refuta

o teorema de Coase.

Uma das decorrências do teorema de Coase é que,

ausentes custos de transação, a alocação de recursos escassos

se daria de forma independente da atribuição de direitos de

propriedade. Por exemplo, segundo o teorema de Coase: se

Francisco dá mais valor à maçã do que Maria, Francisco sempre

terminará com a maçã, independentemente do fato de se atribuir

a propriedade da maçã inicialmente a Francisco ou a Maria,

salvo se houver custos de transação superiores à diferença da

utilidade atribuída à maçã por Francisco e Maria. Isso porque

se a maçã for de propriedade de Francisco, ele não abrirá mão

dela. Se a maçã for de propriedade de Maria, Francisco estará

disposto a pagar mais pela maçã do que o valor que Maria

atribui à ela, o que fará com que Maria venda a maçã para

Francisco. Finalmente, nesse último caso, Maria não venderá a

maçã se, para tanto, for necessário contratar um advogado que

cobre pelo serviço valor tal que, somado ao preço que Maria

estaria disposta a receber pela maçã, seja superior ao maior

valor que Francisco estaria disposto a pagar pela maçã. Como

visto no item 2.3 supra, Coase formulou o seu teorema como uma

contraprova ao modelo adotado pela Economia Neoclássica para

avaliar o custo social de transações econômicas. A existência

de custos sociais, não resolvidos por transações no mercado,

comprovava para Coase a inadequação do modelo neoclássico, e

lhe serviu de mote para propor que mercados são instituições325

325 Com efeito, Coase afirma: “Markets are institutions that exist to facilitate exchange, that is, they exist in order to reduce the cost of carrying out exchange transactions. In an economic theory which assumes that transaction costs are nonexistent, markets have no function to perform, and it seems perfectly reasonable to develop the theory of exchange by an elaborate analysis of individuals exchanging nuts for apples

211

e que sua adoção implica custos específicos, ignorados pela

Economia Neoclássica, e que havia instituições alternativas

que deveriam ser estudadas pela Economia (um exemplo são as

firmas, estudadas por Coase).

A confrontação do efeito dotação com o teorema de

Coase, de forma similar, também serviu de comprovação para a

inadequação do modelo neoclássico – porém não para afirmar a

existência de instituições alternativas a mercados, mas para

afirmar que os próprios mercados não funcionam de acordo com a

teoria neoclássica, mesmo quando se desconsideram os custos de

transação identificados por Coase. Esta foi a conclusão de um

dos estudos de Economia Comportamental mais citados, feito por

Thaler e Kahneman, juntamente com o economista canadense Jack

Knetsch.326 Nesse estudo, grupos de participantes foram

submetidos a simulação de mercados, em que os bens a serem

comercializados eram distribuídos aleatoriamente a apenas

parte do grupo - criando, assim, uma oferta e uma demanda

potenciais. Inicialmente, os mercados foram simulados com

fichas (tokens) – que não possuem utilidade outra que não a de

serem passíveis de troca por dinheiro, conforme a proposta do

experimento. Posteriormente, os mesmos grupos foram submetidos

a simulações de mercados com canecas de café, canetas e barras

de chocolate – bens que poderiam ser vendidos por dinheiro,

mas que também possuem utilidade para seu possuidor. Nas

simulações com fichas, os participantes se comportaram tal

on the edge of the forest or some similar fanciful example. This analysis certainly shows why there is a gain from trade, but it fails to deal with the factors which determine how much trade there is or what goods are traded. And when economists do speak of market structure, it has nothing to do with the market as an institution.” (COASE, 1988, p. 7). 326 KAHNEMAN et. al., 1990. Para um relato do encontro entre Kahneman, Thaler e Knetsch, e implicações do estudo na Economia Comportamental, ver: KAHNEMAN, 2011, posição 5026 e ss.

212

como previsto pelo modelo do homo economicus, e as fichas, tal

como previsto pelo teorema de Coase, eram ao final alocadas

para aqueles que lhes davam maior utilidade, independente da

alocação inicial de sua propriedade. Todavia, nas simulações

com canecas, canetas e barras de chocolate, o mero fato de

terem recebido inicialmente a propriedade fazia com que os

participantes passassem a ter menor disposição para vender, e

os preços cobrados por quem possuía canecas ou barras de

chocolate era substancialmente menor do que a disposição para

pagar de quem não era possuidor.

O efeito dotação comprova dois aspectos centrais da

teoria da perspectiva. O primeiro é a importância dos pontos

de referência. O fato de possuir ou não um bem faz com que se

mude a disposição para vender ou comprar esse bem,

independente da imputação abstrata e inerte de utilidade

pressuposta pelo modelo neoclássico. O segundo aspecto é a

aversão a perdas: o efeito dotação se dá em decorrência dessa

aversão. Como relatam os autores do citado artigo, essa

conclusão é relevante para a Economia, pois a aversão a perdas

impacta o benefício que pode ser extraído do comércio:

A existência de efeitos dotação reduz os ganhos do

comércio. Em comparação com um mundo em que preferências

são independentes da posse, a existência da aversão ao

risco produz uma inércia na economia, pois vendedores em

potencial são mais relutantes em vender do que

convencionalmente se assume.327

327 “The existence of endowment effects reduces the gains from trade.In comparison with a world in which preferences are independent of endowment, the existence of loss aversion produces an inertia in the economy because potential traders are more reluctant to trade than is conventionally assumed.” (KAHNEMAN et. al., 1990, p. 1344 – tradução livre). Essa conclusão é importante para os fins desta tese, na medida em que se tenha

213

2.4.3. Os dois sistemas cognitivos e a influência do raciocínio intuitivo na tomada de decisões

Em obras recentes, autores como Kahneman328 e

Thaler329 passaram a utilizar a divisão de duas funções

cognitivas feita por estudiosos de Psicologia Cognitiva e

Social como suporte não apenas para a teoria da perspectiva,

mas para a Economia Comportamental como um todo. Essa divisão

entre funções cognitivas é utilizada para fundamentar um

modelo de racionalidade humana que possui diferenças

significativas daquele caracterizado como homo economicus. As

duas funções cognitivas identificadas por esse outro modelo de

racionalidade são denominadas Sistema 1 (ou Sistema

Automático) e Sistema 2 (ou Sistema Reflexivo). As

características dos dois sistemas estão sintetizadas na Tabela

2 abaixo.

Tabela 4 - Dois sistemas cognitivos

Sistema 1

(Sistema Automático) Sistema 2

(Sistema Reflexivo)

Descrição

Opera rápida e automaticamente, com pouco ou nenhum esforço, independente do controle voluntário e da alocação de atenção.

Aloca atenção a atividades mentais que demandam esforço, incluindo computações complexas, e cuja operação é interrompida quando a atenção é desviada.

Características • Rápido • Parelelo (assume várias

atividades simultâneas)

• Devagar • Serial (assume uma atividade

de cada vez)

em mente que os pontos de referência para as transações em mercados decorrem da configuração institucional desses mercados, e que o direito possui papel central na definição dessa configuração institucional. Em outras palavras, o direito não apenas atua na definição das fronteiras entre instituições de mercado e instituições extramercado (como sugerimos no item anterior), como também atua nos parâmetros que determinam o funcionamento de instituições de mercado. Essa ideia será explorada de forma pormenorizada abaixo, no item final deste capítulo. 328 Cf. KAHNEMAN, 2011 e 2003. 329 Cf. THALER e SUNSTEIN, 2009.

214

• Involuntário • Não demanda esforço • Associativo • Inconsciente • Emocional

• Voluntário • Demanda esforço • Governado por regras • Consciente • Neutro

Exemplos

• Detectar que um objeto está mais distante do que outro

• Orientar-se na direção de um barulho abrupto

• Fazer uma expressão facial de repulsa ao ver uma figura horrível

• Detectar hostilidade em uma voz

• Completar a expressão “pão com ...”

• Dirigir um carro em uma rua vazia

• Responder à equação “2 + 2 = ?”

• Ler palavras em outdoors de propaganda

• (Se você for um mestre enxadrista) resolver o próximo movimento em um jogo de xadrez

• Compreender frases simples

• Procurar por um objeto específico

• Buscar na memória um som particularmente surpreendente

• Monitorar a adequação de seu comportamento em uma situação social

• Focar na voz de uma pessoa em um ambiente tumultuado e barulhento

• Lembrar uma sequência aleatória de números (e.g, seu número de telefone)

• Estacionar em uma vaga apertada

• Comparar o preço de duas máquinas de lavar

• Preencher o formulário do imposto de renda

• Aprender a jogar xadrez • Julgar a validade de um

argumento lógico complexo

Fonte: elaboração do autor a partir de Kahneman (2011, posição 321; 2003, p. 1451) e de Thaler e Sunstein (2008, p. 22).

Segundo Kahneman, esses dois sistemas cognitivos

correspondem às noções cotidianas de intuição (Sistema 1) e

raciocínio (Sistema 2).330 Nesse sentido, a ideia de

racionalidade da Economia Neoclássica corresponde ao Sistema

2. Diversos estudos empíricos, porém, afirmam que o Sistema 1

é o dominante na maior parte das escolhas feitas no dia-a-

dia.331 Segundo Daniel Kahneman, nossas funções cognitivas

seguem a lei do menor esforço, de modo que o Sistema 1 – que

não exige esforço, nem autocontrole - assume rotineiramente a

tomada de decisões. O Sistema 2 assume quando, por orientação

da nossa vontade, decisões complexas são exigidas. Porém,

mesmo nesses casos, o Sistema 2 em geral opera com base nas

impressões formadas pelo Sistema 1, como afirma Kahneman:

330 KAHNEMAN, 2003, p. 1450. 331 Cf. KAHNEMAN, 2003, pp. 1450-1453, e 2011, passim; THALER e SUNSTEIN, 2009, pp. 21-25; SUNSTEIN, 2013, passim.

215

Quando tudo corre bem, o que é a maior parte do tempo, o

Sistema 2 adota as sugestões do Sistema 1 com pouca ou

nenhuma modificação. Você geralmente acredita em suas

impressões e age com base em seus desejos, e isso é bom

- usualmente.332

Portanto, ao contrário do modelo do homo economicus,

a tomada de decisões econômicas ordinariamente é pautada pelo

raciocínio intuitivo – o Sistema 1. Além disso, mesmo quando

confrontado com uma questão difícil, o ser humano ainda assim

ordinariamente não abandona as impressões formuladas pelo

Sistema 1. Trata-se da dimensão da acessibilidade

(acessibility dimension), que diz respeito à facilidade com

que pensamentos são invocados pela mente. Pensamentos

intuitivos, do Sistema 1, são facilmente acessíveis, pois vêm

à mente espontaneamente e sem esforço. Em verdade, é

impossível não acessá-los, uma vez que o Sistema 1 opera de

forma involuntária. Pensamentos reflexivos, do Sistema 2,

precisam ser evocados e requerem esforço específico para

tanto. A maior acessibilidade do Sistema 1 faz com que

impressões intuitivas sejam dominantes do pensamento

cotidiano. O Sistema 1 é rápido ao alcançar conclusões a

partir de pouca informação disponível, mas essas conclusões

são baseadas não na avaliação probabilística da realidade, mas

na capacidade de se extrair coerência dos dados disponíveis –

ainda que esses dados sejam escassos ou resultado de falsas

impressões. Além disso, a dúvida é uma manifestação do Sistema

2. Em resultado, o Sistema 1 nos provê rotineiramente com

conclusões baseadas em informações insuficientes, mas não nos

332 “When all goes smoothly, which is most of the time, System 2 adopts the suggestions of System 1 with little or no modification. You generally believe your impressions and act on your desires, and that is fine – usually.” (KAHNEMAN, 2011, posição 394 – tradução livre.)

216

informa que há insuficiência de informações. A figura abaixo

fornece um exemplo em que a acessibilidade influencia a

percepção:

Figura 7 - Exemplo visual do efeito do contexto na acessibilidade

Fonte: Kahneman (2003, p. 1454)

O símbolo da coluna do meio é ambíguo: pode ser

interpretado como a letra “B” ou como o número “13”. Porém, ao

se colocar o símbolo em um contexto de letras, a ambiguidade

desaparece e não apenas vemos o símbolo como a letra “B”, como

não conseguimos não ver o símbolo como a letra “B” (isto é,

não conseguimos desligar a associação feita pelo Sistema 1).

Por influência do contexto, assumimos naturalmente que o

símbolo ou é a letra “B”, ou o número “13”. A ambiguidade

somente se verificaria por um esforço específico, em que o

Sistema 2 é chamado a se manifestar. Isso ocorre, por exemplo,

no conhecido exercício cognitivo em que se pede a uma pessoa

para enunciar as cores em palavras que denominam cores, porém

escritas em cores diversas daquelas de seu significado (e.g.,

exibe-se a palavra “verde” escrita na cor azul). Mas ainda

assim, a conclusão do Sistema 2 é difícil e se coloca em

conflito com a conclusão do Sistema 1. Por vezes, a diferença

de acessibilidade entre pensamentos do Sistema 1 e do Sistema

2 gera erros cognitivos, isto é, faz com que mesmo quando atue

o Sistema 2, haja uma compreensão errônea da realidade.

team A” convey the same information, but be-cause each sentence draws attention to its gram-matical subject, they make different thoughtsaccessible. Accessibility also reèects temporarystates of associative activation. For example, themention of a familiar social category temporarilyincreases the accessibility of the traits associatedwith the category stereotype, as indicated by alowered threshold for recognizing behaviors asindications of these traits (Susan T. Fiske, 1998).

As designers of billboards know well, moti-vationally relevant and emotionally arousingstimuli spontaneously attract attention. Bill-boards are useful to advertisers because payingattention to an object makes all its featuresaccessible—including those that are not linkedto its primary motivational or emotional signif-icance. The “hot” states of high emotional andmotivational arousal greatly increase the acces-sibility of thoughts that relate to the immediateemotion and to the current needs, and reduce theaccessibility of other thoughts (George Loe-wenstein, 1996, 2000; Jon Elster, 1998). Aneffect of emotional signiécance on accessibilitywas demonstrated in an important study by Yu-val Rottenstreich and Christopher K. Hsee(2001), which showed that people are less sen-sitive to variations of probability when valuingchances to receive emotionally loaded out-comes (kisses and electric shocks) than whenthe outcomes are monetary.

Figure 4 (adapted from Jerome S. Bruner andA. Leigh Minturn, 1955) includes a standarddemonstration of the effect of context on acces-sibility. An ambiguous stimulus that is per-ceived as a letter within a context of letters is

instead seen as a number when placed within acontext of numbers. More generally, expecta-tions (conscious or not) are a powerful determi-nant of accessibility.

Another important point that Figure 4 illus-trates is the complete suppression of ambiguityin conscious perception. This aspect of the dem-onstration is spoiled for the reader who sees thetwo versions in close proximity, but when thetwo lines are shown separately, observers willnot spontaneously become aware of the alterna-tive interpretation. They “see” the interpretationof the object that is the most likely in its con-text, but have no subjective indication that itcould be seen differently. Ambiguity and uncer-tainty are suppressed in intuitive judgment aswell as in perception. Doubt is a phenomenon ofSystem 2, an awareness of one’s ability to thinkincompatible thoughts about the same thing.The central énding in studies of intuitive deci-sions, as described by Klein (1998), is thatexperienced decision makers working underpressure (e.g., éreéghting company captains)rarely need to choose between options because,in most cases, only a single option comes to mind.

The compound cognitive system that hasbeen sketched here is an impressive computa-tional device. It is well-adapted to its environ-ment and has two ways of adjusting to changes:a short-term process that is èexible and effort-ful, and a long-term process of skill acquisitionthat eventually produces highly effective re-sponses at low cost. The system tends to seewhat it expects to see—a form of Bayesianadaptation—and it is also capable of respondingeffectively to surprises. However, this marvel-ous creation differs in important respects fromanother paragon, the rational agent assumed ineconomic theory. Some of these differences areexplored in the following sections, which reviewseveral familiar results as effects of accessibility.Possible implications for theorizing in behavioraleconomics are explored along the way.

III. Changes or States: Prospect Theory

A general property of perceptual systems isthat they are designed to enhance the accessi-bility of changes and differences. Perception isreference-dependent: the perceived attributesof a focal stimulus reèect the contrast betweenthat stimulus and a context of prior and con-current stimuli. This section will show that

FIGURE 4. AN EFFECT OF CONTEXT ON ACCESSIBILITY

1454 THE AMERICAN ECONOMIC REVIEW DECEMBER 2003

217

Há uma linha de pesquisa da Economia Comportamental

dedicada a identificar os erros cognitivos e confrontá-los com

o modelo do homo economicus. Essa linha é conhecida como

heurísticas e vieses (heuristics and biases), e seu marco

inicial é o artigo de Kahneman e Tversky chamado Judgement

Under Uncertainty: Heuristics and Biases333, publicado

originalmente na Revista Science em 1974. Heurística é

definida por Kahneman como procedimento simplificado que ajuda

a encontrar respostas adequadas, ainda que frequentemente

imperfeitas, para questões difíceis.334 A existência de

heurísticas foi, originalmente Tversky e Kahneman explicaram

os vieses – as diferenças sistemáticas que os autores

encontraram entre as decisões que pessoas tomavam em situações

de incerteza, e aquilo que era previsto pelo modelo de

racionalidade do homo economicus.335

Daniel Kahneman, posteriormente, revisitou seus

estudos com Tversky sob o referencial da acessibilidade

cognitiva para criar um novo modelo de tomada de decisões.

Esse novo modelo não se restringe a decisões em situações de

incerteza, como fazia o estudo anterior de Tversky e Kahneman

sobre heurísticas e vieses, e é chamado de substituição de

atributos (attribute substitution). A substituição de

atributos deriva da acessibilidade: diz-se que um julgamento é

mediado por uma heurística quando um atributo que é objeto

desse julgamento (atributo alvo - target attribute) é

substituído por uma propriedade daquele objeto (atributo

333 TVERSKY e KAHNEMAN, 2011. 334 Parafraseamos de: “The technical definition of heuristic is a simple procedure that helps find adequate, though often imperfect, answers to difficult questions.” (KAHNEMAN, 2011, posição 1679.) 335 Para uma síntese dos principais vieses e equivalentes heurísticas originalmente encontrados por Tversky e Kahneman, ver THALER e SUNSTEIN, 2009, pp. 19-42.

218

heurístico - heuristic attribute) que vem mais facilmente à

mente.336 Em outras palavras, o atributo heurístico é mais

acessível do que o atributo alvo. A interação entre Sistema 1

e Sistema 2 resulta em substituição de atributos na forma do

que Kahneman denomina heurística intuitiva (intuitive

heuristics):

Esta é a essência da heurística intuitiva: quando

confrontados com uma questão difícil, ao invés de

respondê-la, nós frequentemente respondemos uma questão

mais fácil, sem notar que estamos substituindo uma

questão por outra.337

Uma das ilustrações que Kahneman expõe é a decisão

de um investidor conhecido seu em comprar ações da Ford.

Perguntado por que havia decidido investir naquela montadora,

o investidor justificou dizendo que havia ido a uma

conferência automobilística e gostado dos novos modelos de

carros apresentados pela Ford. Confrontado com a questão

difícil – devo investir na Ford? -, o investidor a substituiu

pela questão mais fácil – gosto dos carros da Ford?338 A

heurística intuitiva não é uma opção, mas uma consequência do

controle impreciso que possuímos sobre nossa capacidade

cognitiva.339 Em decorência, os julgamentos que as pessoas

fazem, as ações que tomam, e os erros que cometem, afirma

Kahneman, dependem do monitoramento e da função corretiva do

Sistema 2, bem como das impressões e tendências geradas pelo

Sistema 1.340 E no que diz respeito ao monitoramento e função

336 KAHNEMAN, 2003, p. 1460. 337 KAHNEMAN, 2011, posição 257. 338 O exemplo é relatado em KAHNEMAN, 2011, posição 237 e ss. 339 KAHNEMAN, 2011, posição 1687. 340 Parafraseamos a partir do seguinte trecho: “The judgments that people express, the actions they take, and the mistakes they commit depend on the monitoring and corrective functions of System 2, as well as on the

219

corretivas do Sistema 2, este no mais das vezes é apologético,

e não crítico, acerca das conclusões do Sistema 1.341 Em

síntese:

Quando confrontado com um problema – escolher um

movimento no xadrez, ou decidir por investir em uma ação

– o maquinário do pensamento intuitivo faz o melhor que

pode. Se uma pessoa possui expertise, ela irá reconhecer

a situação, e a solução intuitiva que lhe virá à mente

será provavelmente correta. Isto é o que ocorre quando

um mestre enxadrista olha uma posição complexa [em um

jogo de xadrez]: os poucos movimentos que lhe ocorrem de

imediato são todos fortes. Quando a questão é difícil e

uma solução hábil não está disponível, a intuição ainda

dá uma tacada: uma resposta pode vir à tona rapidamente,

mas essa não será uma resposta à pergunta original.342

A influência do pensamento intuitivo faz com que a

Economia Comportamental negue o modelo de racionalidade

adotado pela Economia Neoclássica. Como afirma Kahneman, o

agente racional da teoria econômica poderia ser descrito como

possuidor de um único sistema cognitivo, que possuiria a

habilidade lógica de um Sistema 2 perfeito e os baixos custos

de computação do Sistema 1.343 Pesquisas empíricas, porém,

impressions and tendencies generated by System 1.” (KAHNEMAN, 2003, p. 1467.) 341 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 1779. 342 “When confronted with a problem – choosing a chess move or deciding whether to invest in a stock – the machinery of intuitive thought does the best it can. If the individual has relevant expertise, she will recognize the situation, and the intuitive solution that comes to her mind is likely to be correct. This is what happens when a chess master looks at a complex position: the few moves that immediatly occur to him are all strong. When the question is difficult and a skilled solution is not available, intuition still has a shot: an answer may come to mind quickly – but it is not an answer to the original question.” (KAHNEMAN, 2011, posição 252 – tradução livre.) 343 Parafraseamos de: “The rational agent of economic theory would be described, in the language of the present treatment, as endowed with a

220

relatam diversas limitações da capacidade do Sistema 2 de

sobrepujar as tendências e vieses impostos pelo Sistema 1.

Fatores como pressão por escassez de tempo, envolvimento em

múltiplas tarefas, (bom ou mau) humor, excitação erótica,

entre outros, impedem ou suprimem por completo a capacidade de

atuação do Sistema 2, e fazem com que agentes econômicos não

apenas desviem radicalmente do comportamento previsto pelo

modelo neoclássico de racionalidade, como com que esses

desvios sejam sistemáticos e previsíveis.344

2.4.4. Contraposição da Economia Comportamental à Economia Neoclássica

A recorrência e a previsibilidade dos desvios frente

ao comportamento suposto pelo modelo do homo economicus são

especialmente relevantes como contraponto à influente defesa

de Milton Friedman da escola neoclássica. Segundo esse

economista – que também foi agraciado com um Nobel de Economia

(em 1976) - modelos econômicos não deveriam ser julgados com

base na realidade de suas premissas, mas sim com base no seu

poder de previsão.345 Nesse sentido, Friedman levou a

epistemologia de Karl Popper às últimas consequências,

afirmando que apenas pela falsificabilidade das previsões

teóricas se poderia provar a falsidade de uma teoria, ainda

que tais conclusões tenham por base premissas duvidosas – ou

até mesmo irreais. Assim, não obstante as divergências

empíricas entre o homo economicus e o homem real sejam

single cognitive system that has the logical ability of a awless System 2 and the low computing costs of System 1.” (KAHNEMAN, 2003, p. 1469.) 344 Essas pesquisas, seus resultados e a influência dos vieses encontrados para a compreensão da economia são comentados por KAHNEMAN (2003 e 2011); THALER e SUNSTEIN (2009); ARIELLY (2009); MURAMATSU e FONSECA (2009); ALBERT et. al. (2008); JOLLS et. al. (1998); SUNSTEIN (2013); TETLOCK e MELLERS (2002). 345 Cf. SKOUSEN, 2007, posição 9112.

221

reconhecidas também por economistas neoclássicos, a defesa que

Gregory Mankiw faz abaixo exemplifica a postura de defesa da

Economia Neoclássica:

Por que, você poderia perguntar, a economia se baseia na

hipótese da racionalidade quando a psicologia e o bom

senso a colocam em dúvida? Uma resposta possível é que a

hipótese, mesmo que não seja exatamente verdadeira, pode

ser uma boa aproximação de modelos de comportamento

razoavelmente precisos. Por exemplo, quando estudamos as

diferenças entre as empresas monopolistas e as

competitivas, a hipótese de que as empresas racionais

maximizam o lucro rendeu muitas considerações

importantes e válidas. A incorporação de desvios

psicológicos complexos da racionalidade no exemplo pode

ter acrescentado algum realismo, mas também teria

deixado as coisas mais obscuras, tornando tais

considerações mais difíceis de serem deduzidas. Lembre-

se que [...] os modelos econômicos não pretendem ser

réplicas da realidade, mas simplesmente mostrar a

essência do problema à mão como uma ajuda para

compreendê-lo.346

Sob essa postura, alguns economistas neoclássicos,

embora reconheçam a existência de heurísticas e vieses,

preferem tratá-los como exceções ao que consideram a regra da

racionalidade. Do ponto de vista da Análise Econômica do

Direito, Richard Posner chega a afirmar que escolhas racionais

não necessitam ser escolhas conscientes, e que ratos são tão

racionais quanto seres humanos quando se define racionalidade

como alcançar meios pelo menor custo.347 Nesse sentido, Posner

afirma que:

346 MANKIW, 2009, pp. 480-481. 347 POSNER, 1998b, p. 1551.

222

...o fato de pessoas nem sempre serem racionais, ou até

mesmo que sejam irracionais a maior parte do tempo, não

é em si um desafio para a Economia da escolha racional.

Muitos têm um medo irracional de voar. É um medo

irracional, eu reconheço, ao invés de uma mera aversão

de que não compartilho, pois as próprias pessoas que o

possuem acreditam ser um medo irracional. Elas sabem que

alternativas de transporte de superfície são mais

perigosas, e elas querem acima de tudo evitar serem

mortas; mas mesmo assim escolhem o modo mais perigoso de

transporte. Seu arrependimento, vergonha e perturbação

consigo mesmos distinguem esse caso daquele de pessoas

que gostam de filmes de terror. Mas sua irracionalidade

não invalida a análise econômica do transporte, embora

ela possa demonstrar porque custos pecuniários e de

tempo, e taxas de acidente, não expliquem por completo a

diferença entre a demanda por transporte aéreo e a

demanda por seus substitutos. Uma preferência pode ser

tida como dada, e a análise econômica procederá como de

costume, ainda que essa preferência seja irracional.348

Todavia, a refutação de Posner deixa clara a

importância da Economia Comportamental para a compreensão do

objeto desta tese - o papel do direito na economia. Ainda que

se considere verdadeiro que o modelo neoclássico de

348 “...the fact that people are not always rational, even that some are irrational most or all of the time, is not in itself a challenge to rational-choice economics. Many people have an irrational fear of flying. It is an irrational fear, I concede, rather than just an aversion that we may not share, because the people who harbor it believe it is irrational. They know that the surface transportation alternatives are more dangerous, and they want above all to avoid being killed; yet they choose the more dangerous mode anyway. Their regret, embarrassment, and annoyance with themselves distinguish their case from that of the people who like horror movies. But their irrationality does not invalidate the economic analysis of transportation, although it may show why pecuniary and time costs, and accident rates, may not explain the entire difference between the demand for air transportation and the demand for its substitutes. A preference can be taken as a given, and economic analysis proceed as usual, even if the preference is irrational.” (POSNER, 1998b, p. 1554 – tradução livre.)

223

racionalidade possa servir à análise econômica349, a avaliação

do papel do direito na economia não pode desconsiderar a

formação de preferências, tomando-a como dadas. Isso ocorre em

especial quando essas “preferências” são “irracionais”

consoante o padrão de racionalidade adotado acima por Posner,

isto é, quando as preferências manifestadas contrariam aquilo

que as próprias pessoas desejam. Isto ocorre, como vimos,

quando heurísticas intuitivas limitam nossa capacidade de

produzir decisões adequadas.

Essa consideração é importante ao se pensar no papel

do direito como de imaginação institucional, tal como proposto

acima no item 2.1. Instituições podem sujeitar escolhas a

diferentes heurísticas e vieses cognitivos.350 Instituições

podem apresentar escolhas de modo a sistematicamente induzir

agentes a erros decorrentes do modo como as funções cognitivas

são exercidas pela mente. Isso significa que, nesses casos, as

escolhas não revelam as reais preferências do agente. O modelo

de agente racional da Economia Neoclássica ignora os erros

cognitivos e presume que escolhas revelam as reais

preferências. Uma ilustração possível é a de um investidor

imaginário – João – que deve decidir entre investir ou não em

ações de determinada sociedade – empresa A. No modelo do

agente racional, se João for confrontado com a escolha entre

comprar ações da empresa A ou depositar suas economias na

poupança, João irá escolher a opção que lhe dê maior

rentabilidade. Se João escolher investir na empresa A quando a

349 Daniel Kahneman discorda dessa visão: “...psychological theories of intuitive thinking cannot match the elegance and precision of formal normative models of belief and choice, but this is just another way of saying that rational models are psychologically unrealistic” (KAHNEMAN, 2003, p. 1449). 350 Ver item 2.4.4 supra.

224

rentabilidade da poupança for maior, isso é tratado como um

erro de informação – uma falha de mercado. Corrigido o erro de

informação, o modelo de racionalidade considera que João

manterá as ações da empresa A enquanto a rentabilidade dessas

for maior, e as venderá e investirá na poupança quando a

rentabilidade desta última for maior. Contudo, o efeito

dotação (endowment effect), segundo a Economia Comportamental,

fará com que, nos casos em que João já seja dono das ações da

empresa A (por exemplo, por herança), seu comportamento mude.

Pelo simples fato de já possuir as ações, João relutará em

vendê-las e investir na poupança, mesmo quando tiver a

informação precisa de que a rentabilidade desta última esteja

maior. E não apenas isso, a aversão a perdas fará com que,

caso João tenha prejuízo de $ 10.000 com as ações que possui,

ele prefira assumir o risco de uma recuperação improvável do

valor dessas ações que lhe permitisse recuperar os $10.000 de

prejuízo, ainda que essa aposta lhe custe outros $10.000. Se

João não fosse dono das ações da empresa e lhe fosse oferecida

a mesma opção, João não a aceitaria. O mero fato de ser dono

das ações muda a forma como João percebe suas decisões

econômicas. Esse exemplo ilustra que a forma como instituições

alocam inicialmente recursos influencia o exercício de

direitos de escolha sobre como esses recursos serão

empregados. Efeito dotação e aversão a perdas são apenas dois

entre vários vieses apontados pela Economia Comportamental. A

existência de vieses nas escolhas revelam heurísticas que, por

vezes, induzem a erros cognitivos. Nesses casos, as pessoas ao

escolherem não estão revelando suas preferências efetivas.

Elas estão, literalmente, sendo enganadas pelas condições em

que as escolhas se apresentam. Na medida em que escolhas sejam

produzidas ou mediadas por instituições, instituições podem

fazer com que escolhas estejam mais ou menos sujeitas a erros

cognitivos. Em decorrência, instituições que diminuam a

225

influência de erros cognitivos são meio para ampliação da

liberdade individual.

Além disso, instituições não mudam apenas

comportamentos, mas mudam também as preferências que

determinam esses comportamentos. Em outras palavras,

instituições influenciam não apenas aquilo que é escolhido,

mas também o que agentes querem escolher. Um exemplo está no

estudo de Eric Johnson e Daniel Goldstein, publicado na

Revista Science em 2003351, em que se concluiu que o maior

responsável pela drástica diferença de adesão a programas de

doação de órgãos entre um conjunto selecionado de países era a

opção padrão adotada quanto a ser ou não doador de órgãos. Os

casos de Holanda e Bélgica são representativos, dada a

proximidade geográfica e identidade cultural entre esses

países. Na Holanda, 27,5% da população era doadora de órgãos,

na Bélgica, 98%. Na Holanda, a opção padrão era por ser não-

doador – quem quisesse ser doador deveria afirmar seu

consentimento. Na Bélgica, a opção padrão era por ser doador.

Isto é, pela mera alteração na opção padrão, o número de

doadores cadastrados mudou exponencialmente de um país para o

outro. Mas a influência da opção-padrão não ocorreu apenas na

adesão ao cadastro de doadores de órgãos. Em termos efetivos,

o estudo comprovou que em países como a Bélgica, em que era

padrão ser doador, era significativamente menor a incidência

de fatores que diminuem a taxa efetiva de doação de órgãos,

como a resistência de familiares (que poderiam objetar ao uso

de órgãos), manifestações de cunho religioso, relutância de

médicos, entre outros. Em suma, em países em que a opção

padrão era pela doação, não apenas houve um aumento

351 JOHNSON e GOLDSTEIN, 2003.

226

considerável do número de doadores, como diminuiu a

resistência à doação de órgãos após o óbito dos doadores.

O estudo de Johnson e Goldstein se tornou referência

para afirmar aquilo que a Economia Comportamental chama de

efeito enquadramento (framing effect): a forma como uma

escolha é apresentada influência as preferências daquele que

escolhe.352 O efeito enquadramento é um exemplo da influência

da acessibilidade353 nas escolhas que tomamos. A influência de

instituições na formação de preferências se dá pela ação do

Sistema 1 – que, como visto, não pode ser “desligado”.354 Isso

significa que as atuais instituições já nos influenciam quanto

à formação de nossas preferências, inclusive

subconscientemente (nos termos dos estudos acima citados).

Reconhecer que há preferências individuais que não

correspondem àquilo que as pessoas efetivamente desejam não se

trataria sequer do direito de errar355, pois esse tipo de

352 Cf. THALER e SUNSTEIN, 2009, pp. 39-40; KAHNEMAN, 2011, posições 4627 e ss., e 2003, pp. 1458-1460. 353 Ver item 2.4.3 supra. 354 Ver item 2.4 supra. 355 O direito ao erro é um dos argumentos utilizados para se opor à atuação do Estado na Economia. No trecho a seguir, o direito ao erro é usado como contraponto à prosta de THALER e SUNSTEIN (2009) de usar as conclusões da Economia Comportamental como fundamento para o que chamam de paternalismo libertário: “If individuals are to realize their full potential as participants in the political and economic life of society, then they must be free to err in large ways as well as small. The fatal flaw of libertarian paternalism is to ignore the value of the freedom to err. Interestingly, Hayek said as much in making the inherently antipaternalistic case for The Constitution of Liberty: “Man learns by the disappointment of expectations.” “Liberty not only means that the individual has both the opportunity and the burden of choice; it also means that he must bear the consequences of his actions and will receive praise or blame for them. Liberty and responsibility are inseparable.”” (WRIGHT e GINSBURG, 2012, p. 52).

227

“preferência irracional”356 não se manifestaria em ações

conscientemente desejadas, ainda que com base em concepções ou

percepções errôneas sobre a realidade. Sendo assim, a opção de

Posner por respeitar “preferências irracionais” pode servir

para mitigar (e não ampliar) a liberdade individual,

considerada como a possibilidade de autodeterminação. Isso

porque a opção de Posner desconsidera que, ao se mudar

instituições, as próprias preferências se modificam. Sendo

assim, um caminho alternativo ao de Posner é reconhecer que

pessoas podem escolher mudar as instituições que as induzem a

ter “preferências irracionais”. Mas o meio para mudar

instituições não é individual, é coletivo.

Por esses motivos, ao direito interessa explorar as

implicações entre o desenho institucional da economia e os

comportamentos dos agentes econômicos. Na medida em que

“preferências irracionais” sejam produzidas ou reforçadas

pelas instituições econômicas atualmente existentes, a atuação

do direito que modifique ou crie instituições econômicas pode

ser alternativa de efetivação da própria liberdade individual,

mesmo restringindo-se o significado desta à busca hedonística

por interesses individuais. Essa conclusão se reforça ao se

ter em mente que a autodeterminação envolve mais do que a mera

satisfação de interesses individuais por direitos de escolha.

Segundo a concepção que abordamos no item 2.1 acima, a

autodeterminação envolve principalmente a possibilidade de

construção social na perpétua invenção do futuro.357 De acordo

356 A “irracionalidade” aqui se refere à ideia de racionalidade do pensamento econômico neoclássico, que corresponde à escolha dos melhores meios para os fins desejados, tal como visto acima. 357 A expressão é utilizada por Mangabeira Unger para definir o papel da democracia como expressão social da autodeterminação: “We are not yet fully the beings who not only transcend their contexts but also make contexts

228

com essa perspectiva, a superação do modelo do agente racional

faz mais do que apenas suplantar o modo de analisar a

economia. Substituir essa ideia é também passo na busca de

novas formas de organização institucional da atividade

econômica.358

2.4.5. O papel das instituções na distinção entre relações de mercado e relações comunais

Um exemplo das possibilidades abertas pela

perspectiva defendida pela Economia Comportamental está na

distinção entre comportamento regulado por normas de mercado e

comportamento regulado por outras normas sociais. Essa

distinção remonta a trabalhos de Psicologia Social que, a

partir da década de 1960, diferenciavam entre trocas

econômicas e trocas sociais. Um dos estudos mais influentes a

esse respeito é o dos psicólogos Margaret Clark e Judson Mills

publicado em 1979.359 Esse estudo distinguiu entre relações de

that recognize and nourish this context-surpassing capability. We must make ourselves into such beings. To do so is the work of democracy. More generally, it is the task of a direction of reform, in society and in thought, by which we shorten the gap between our context-preserving and our context-transforming activities. Once we have gone far enough in this direction, we produce the permanent invention of the future – of alternative futures.” (UNGER, 2007a, p. 171). 358 Nesse sentido: “The concept of homo economicus, which asserts that humans are rational actors who make decisions based on narrow self-interest, has dominated political and economic thinking since the 1970’s. But, while the pursuit of self-interest may be advantageous in certain contexts, it is not the only, or even the principal, driver of human behavior – and it is not conducive to overcoming today’s most pressing global issues.It is time to replace the framework of homo economicus with a model that reflects humans’ capacity for altruism and pro-social behavior. By illuminating opportunities for human cooperation, such a framework would provide a useful foundation for political and economic systems that succeed where existing arrangements have failed.” (SINGER, 2013). 359 CLARK e MILLS, 1979.

229

troca e relações comunais, e propôs que em cada caso, pessoas

agem conforme diferentes expectativas e, por isso, reagem a

benefícios de formas diversas, como veremos abaixo.

Relações de trocas são chamadas em outros estudos de

relações econômicas, ou de relações baseadas em normas de

mercado. Nesta tese, tendo em vista nossa intenção de destacar

as instituições de mercado frente às demais instituições

econômicas, adotaremos a terminologia relações de mercado.

Relações de mercado, conforme a distinção de Clark e Mills,

são aquelas em que os membros assumem que benefícios são dados

mediante a expectativa de recebimento de outro benefício – o

recebimento de um benefício implicaria uma dívida, a ser

resolvida mediante entrega de outro benefício correspondente.

Nas relações de mercado, o incentivo para entregar um

benefício é o ganho individual com o recebimento de um

benefício correspondente.

Situação diferente ocorre em outro tipo de relações

que envolvem intercâmbio de benefícios entre diferentes

agentes, e que Clark e Mills nomeiam de relações comunais. Em

outros estudos360, essas relações são chamadas relações

sociais, mas Clark e Mills atestam que relações econômicas são

também sociais361, justificativa a que aqui aderimos para

aderir à terminologia desses dois autores. Relações comunais

são aquelas em que os membros assumem que benefícios são dados

em razão da preocupação com o bem-estar de uns com os outros.

Nesse tipo de relação, a entrega de um benefício não implica

360 Entre aqueles que chamam as relações regidas por normas que não mercado de relações reguladas por normas sociais, está Dan Ariely (2009), em estudo que utilizaremos adiante. 361 CLARK e MILLS, 1979, p. 12.

230

uma dívida. As relações comunais não têm como fundamento o

ganho individual, como explicam os autores citados:

Membros de uma relação comunal assumem que cada um está

preocupado com o bem-estar do outro. Eles têm uma

atitude positiva quanto a beneficiar o outro quando a

necessidade desse benefício existe. Eles seguem o que

Pruitt (1972) denominou “a norma da mútua

responsividade.” Essa regra pode criar o que ao

observador externo aparentará ser uma troca de

benefícios, mas é distinta da regra que governa relações

de troca - em que um benefício deve ser devolvido pela

concessão de um benefício comparável. As regras sobre o

oferecimento e o recebimento de benefícios são o que

distinguem relações comunais e de troca, ao invés dos

benefícios específicos que são ofertados e recebidos.362

O estudo permite concluir que, nas relações de

mercado, indivíduos são motivados pelo benefício recebido em

troca do benefício dado, tal como assumido pelo modelo

neoclássico. Porém, nas relações comunais, o recebimento de um

benefício em razão do benefício dado age como desestímulo, não

como incentivo. Dan Ariely ilustra esse argumento com o

exemplo de um jantar de família oferecido por sua sogra nas

festividades do Dia de Ação de Graças. A sogra de Ariely

oferece o jantar sem pedir nada em troca aos familiares que

comparessem. Caso Ariely se propusesse a pagar sua sogra, o

efeito do pagamento não seria um incentivo, mas uma ofensa. No

362 “Members of a communal relationship assume that each is concerned about the welfarof the other. They have a positive attitudtoward benefiting the other when a need for the benefit exists. They follow what Pruit(1972) has labeled "the norm of mutual responsiveness." This rule may create what appears to an observer to be an exchange of benefits, but it is distinct from the rule that governs exchange relationships whereby the receipt of a benefit must be reciprocated bthe giving of a comparable benefitThe rules concerning the giving and receiving of benefits are what distinguish communal and exchange relationships, rather than the specific benefits that are given and received.” (CLARK e MILLS, 1979, p. 13 – tradução livre.)

231

modelo do homo economicus, porém, o pagamento seria um

incentivo adicional – além da utilidade em providenciar um

jantar para sua família, a sogra de Ariely ainda teria o

pagamento. É evidente, contudo, que não é isso o que acontece

em relações como essa, que não são pautadas por regras de

troca.363

As relações comunais se estendem para além do âmbito

familiar e podem abranger trocas de benefícios comumente

associadas às relações econômicas. Um dos exemplos utilizados

por Dan Ariely para reforçar esse argumento foi a tentativa de

uma associação de pensionistas americana de contratar

advogados para aposentados de baixa renda, em que foi

oferecida a remuneração de U$ 30 por hora (baixa, para os

padrões americanos). Nesses termos, a proposta fracassou, pois

advogados não se interessaram. Diante da baixa adesão, essa

mesma associação pediu que o serviço fosse executado de graça.

Segundo relata Ariely, houve maciça adesão.364 Esse exemplo

demonstra não apenas que relações de mercado podem ser

substituídas por relações comunitárias, como mostra que os

incentivos de uma não são compatíveis com os incentivos da

outra. Tal como na ilustração do jantar familiar ofertado pela

sogra, os advogados não acumularam os dois incentivos – o

prazer de ajudar necessitados e o pagamento de U$ 30 por hora.

Sob o modelo do homo economicus, isso faz pouco sentido. No

momento em que uma relação é posta como uma relação econômica,

os incentivos são pensados conforme o benefício individual, ao

que agentes tendem a se comportar como no modelo neoclássico:

quanto maior o preço, maior a quantidade ofertada. Porém, se a

363 ARIELY, 2009, posições 1126 e ss. 364 ARIELY, 2009, posição 1175.

232

relação é posta como uma relação comunal, a relação entre

preço e quantidade ofertada deixa de existir.

Essa ideia foi testada em uma série de experimentos

conduzida por Dan Ariely e James Heyman.365 Para completar uma

tarefa enfadonha durante um período pré-fixado, Ariely e

Heyman usaram incentivos diferentes para verificar o

desempenho de três grupos. Ao primeiro grupo, foi oferecido um

pagamento de U$ 5 pelo desempenho da tarefa. Ao segundo grupo,

foram oferecidos pagamentos de U$ 0,50 em uma rodada, e de U$

0,10 em outra rodada, para executar a mesma tarefa. Ao

terceiro grupo, a tarefa foi solicitada como um favor. Ou

seja, para os dois primeiros grupos, a tarefa foi apresentada

em uma relação de mercado. Para o terceiro grupo, foi

apresentada como uma relação comunal. O desempenho dos dois

primeiros grupos é coerente com o modelo neoclássico: o

primeiro grupo, melhor remunerado, teve produtividade 50%

maior em média do que o segundo grupo. Porém a produtividade

do terceiro grupo superou a produtividade do primeiro grupo –

isto é, os participantes trabalharam mais e com maior afinco

quando realizaram a tarefa gratuitamente, como um favor.

Um segundo conjunto de experimentos se seguiu, em

que o objetivo foi verificar se as relações comunais se

descaracterizariam se, em lugar de remuneração em dinheiro,

fossem oferecidos presentes aos participantes.366 Nesse caso,

pela mesma tarefa do conjunto anterior, ao primeiro grupo foi

oferecida uma barra de chocolate como recompensa (cujo preço

era de aproximadamente U$ 0,50), ao segundo grupo foi

oferecida uma caixa de bombons suíços (cujo preço era

365 ARIELY, 2009, posição 1162 e ss. 366 ARIELY, 2009, posição 1188.

233

aproximadamente de U$ 5), e ao terceiro grupo a tarefa foi

solicitada como um favor. O desempenho dos três grupos, nesse

caso, foi equivalente – a variação na produtividade foi pouco

superior a 1%. Além disso, a produtividade dos três grupos foi

alta (em todos os casos, superior à do grupo remunerado por U$

5 do primeiro conjunto de experimentos). Esse conjunto de

experimentos permitiu concluir que, ao se apresentar o contra-

benefício como um presente e não como remuneração, as pessoas

mantiveram-se no âmbito das relações comunais. Em especial, o

valor do presente não influenciou seu desempenho – ao

contrário do valor da remuneração no primeiro conjunto de

experimentos.

Finalmente, um terceiro conjunto de experimentos

repetiu a recompensa com barras e caixas de chocolate, porém

deixando visíveis etiquetas com o preço (U$ 0,50 para as

barras de chocolate, U$ 5 para as caixas de bomboms). Nesse

caso, o desempenho dos três grupos foi equivalente ao do

primeiro conjunto de experimentos. A conclusão dos

experimentadores foi que a menção do preço fez com que se

deixasse o campo das relações comunais, e a tarefa passasse a

ser tratada como em uma relação de mercado.367

Os experimentos relatados por Ariely destacam o

papel da moeda como determinante para a passagem do campo das

relações comunais para o das relações de mercado. A simples

menção do preço – expresso em moeda – fez com as barras de

chocolate deixassem de ser vistas como um presente, e

passassem a ser vistas como contraprestação. Essa conclusão é

reforçada e ampliada pelas conclusões do estudo de Kathleen

367 ARIELY, 2009, posição 1201.

234

Vohs, Nicole Mead e Miranda Goode, publicado em 2006 na

Revista Science368, e que se tornou referência na Economia

Comportamental.369 O estudo assumiu a hipótese de que a moeda

induz as pessoas a se sentirem mais autossficientes e a agir

de acordo com essa maior autossuficiência. O comportamento

autossuficiente, por sua vez, é definido como um estado

isolado em que pessoas despendem esforços para atingir

objetivos pessoais e preferem estar separadas de outras

pessoas.370 Assim considerada, a autossuficiência tem tanto

características positivas quanto negativas. Espera-se que

pessoas autossuficientes estejam mais dispostas a trabalhar

sem ajuda de outros e a se esforçar mais na busca de

gratificações pessoais. Mas também espera-se que sejam menos

dispostas a ajudar outras pessoas e a se comprometer com

objetivos comunitários. Em síntese, pessoas autossuficientes

são mais egoístas, mas também são mais resilientes e

independentes. Essa mistura de características desejáveis e

indesejáveis, afirmam as pesquisadoras, ajudaria a explicar

porque a moeda traz consequências sociais positivas e

negativas.

À luz da atual compreensão sobre as funções que aqui

identificamos como do “Sistema 1” (o sistema automático, ou

intuitivo), o estudo se propôs a investigar se apenas a

exposição à ideia de moeda371 de modo a torná-la mais

368 VOHS et. al., 2006. 369 Cf. ARIELY, 2009, posição 1216; ARIELY, 2013, Aula 2.7; KAHNEMAN, 2011, posição 946. 370 Parafraseamos a partir do seguinte trecho: “We tested whether activating the concept of money leads people to behave self-sufficiently, which we define as an insulated state wherein people put forth effort to attain personal goals and prefer to be separate from others.” (VOHS et. al., 2006, p. 1154.) 371 Moeda (money) é utilizada nos estudos para designar uma instituição econômica típica, e não como sinônimo de propriedade ou posse: “In this

235

acessível372 (técnica chamada pela Psicologia Cognitiva de

priming) faria com que pessoas se comportassem de forma mais

autossuficiente, com as característica positivas e negativas

associadas a esse comportamento. Lembremos que o Sistema 1

atua de forma inconsciente e não pode ser desligado, o que

significa que as associações feitas pelo Sistema 1 não são

percebidas pelo Sistema 2. Para ativar a ideia de moeda, as

pesquisadoras submeteram os participantes à tarefa de

desembaralhar frases que continham referências a dinheiro (por

exemplo, formar a partir das palavras “alto salário mesa

pagar” a frase “pagar alto salário”). No grupo de controle, as

frases eram neutras (por exemplo, “frio está mesa lá fora”

viraria “está frio lá fora”). Houve também um grupo de

participantes em que as frases eram neutras, mas que moedas de

brinquedo (do jogo de tabuleiro Monopoly) foram postas no

campo visual dos participantes. Tanto as moedas de brinquedo

quanto as frases contendo referências a dinheiro tinham por

objetivo fazer o priming da ideia de moeda. Depois dessa

primeira tarefa, os participantes foram submetidos a situações

que testaram persistência, independência, disposição para

ajudar outras pessoas e sociabilidade.

Os resultados da pesquisa foram consistentes com a

hipótese do comportamento autossuficiente provocado pela ideia

de dinheiro. Comparados com os participantes neutros,

participantes que tinham sido ativados (primed) com a ideia de

moeda persistiram pelo dobro do tempo para completar tarefas

Report, “money” refers to a distinct entity, a particular economic concept. Consistent with other scholarly uses of the term, we use the term money to represent the idea of money, not property or possessions.” (VOHS et. al., 2006, p. 1154). Por esse motivo, optamos por traduzir money como moeda, e não como dinheiro. 372 Sobre acessibilidade e Sistema 1, ver item 2.4.3 supra.

236

difíceis e buscaram menos ajuda quando confrontados com uma

tarefa impossível. Mas participantes ativados com a ideia de

moeda se mostraram consideravelmente menos dispostos a

auxiliar um colega que necessitava de ajuda para completar o

experimento e para auxiliar um pesquisador que desastradamente

derrubava um monte de lápis no chão. Além disso, participantes

ativados mostraram maior disposição para ficar sozinhos e, em

um experimento em que tinham de conhecer uma pessoa estranha,

colocavam suas cadeiras consideravelmente mais distantes de

seu interlocutor do que participantes que não tinham sido

ativados.

Os resultados dessa pesquisa mostram que, ao

contrário do que supõe o modelo neoclássico de racionalidade,

as preferências não são o resultado autônomo da vontade

individual do ser humano. Preferências são profundamente

influenciadas pelo contexto. Não é apenas o caso de que em

relações de mercado pessoas se comportam de maneira

autossuficiente. Instituições de mercado geram pessoas

autossuficientes – mais independentes, mas mais egoístas. As

implicações desse estudo são ressaltadas por Daniel Kahneman:

O tema geral dessas descobertas é que a ideia de moeda

ativa (primes) o individualismo: uma relutância de se

envolver com outros, de depender de outros, ou de

aceitar demandas de outros. A psicóloga que conduziu

essa notável pesquisa, Kathleen Vohs, foi impecavelmente

reservada na discussão das implicações de suas

descobertas, deixando essa tarefa para seus leitores.

Seus experimentos são profundos – suas descobertas

sugerem que viver em uma cultura que nos cerca com

lembretes de moeda pode moldar nosso comportamento e

237

nossas atitudes de maneiras que não sabemos ao certo e

de que não nos orgulhemos muito.373

Essas constatações têm relevância para o estudo das

instituições econômicas. Na medida em que instituições

econômicas façam referência à moeda como meio de articular as

decisões de alocação de recursos escassos, o comportamento dos

agentes econômicos será compatível com o de relações de

mercado. Por outro lado, na medida em que a alocação de

recursos se dê por instituições extramercado (como as

identificadas por Coase, discutido no item 2.3 supra), em que

o sistema de preços (e portanto, a moeda) tem função

subsidiária, haverá espaço para que o comportamento dos

agentes econômicos se dê de modo compatível com o de relações

comunais. Há, portanto, uma relação de implicação recíproca

entre comportamentos e instituições – as próprias instituições

influenciam comportamentos, e comportamentos influenciam

instituições. Essa constatação nos remete à ideia de profecia

autorrealizável a que se refere Mangabeira Unger374: quanto

mais instituições baseadas na competição de interesses

hedonistas, mais a competição de interesses hedonísticos será

determinante das relações econômicas. É possivel, logo, pensar

na organização institucional da atividade econômica não como

uma resposta a um dado modelo de racionalidade, como sugerem

as abordagens baseadas na Economia Neoclássica. Há

373 “The general theme of these findings is that the idea of money primes individualism: a reluctance to be involved with others, to depend on others, or to accept demands from others. The psychologist who has done this remarkable research, Kathleen Vohs, has been laudably restrained in discussing the implications of her findings, leaving the task to her readers. Her experiments are profound – her findings suggest tat living in a culture that surrounds us with reminders of money may shape our behavior and our attitudes in ways that we do not know about and of which we may not be proud.” (KAHNEMAN, 2011, posição 946 – tradução livre.) 374 Cf. UNGER, 2007a, p. 34, e item 2.1 acima.

238

instituições que organizam as relações econômicas com base na

cooperação baseada na troca e na competição, tal como

ponderava Adam Smith. Mas também há instituições que organizam

as relações econômicas com base em outros modos de cooperação.

Um exemplo são as firmas estudadas por Ronald Coase; outro

exemplo relevante é a família - que organiza e distribui

recursos tais como alimentação, serviços domésticos, cuidados

à saúde...

Em diversos casos, o comportamento autossuficiente é

desejável, e as instituições econômicas podem estimulá-lo. Em

outros tantos casos, o comportamento autossuficiente gera

respostas egoístas que podem ir contra aquilo que as próprias

pessoas entendem como justo e desejável. É possível pensar em

instituições econômicas alternativas, pautadas em relações

comunitárias. Por vezes, os incentivos das relações

comunitárias podem ser tão ou mais efetivos do que o das

relações de mercado, o que faz com que, mesmo sob o parâmetro

de criação de riqueza, a busca de instituições extramercado

não possa ser desprezada.

2.5. A influência do direito nas instituições econômicas, segundo a Análise Jurídica da Política Econômica de Marcus Faro de Castro

Entender que mercados são criações e que seu

funcionamento não se resume à racionalidade da busca

individual pela maximização da utilidade permite desvencilhar-

nos do fetichismo institucional, para compreender que mercados

possuem múltiplas configurações e funcionam de múltiplas

maneiras. Não há uma única e necessária forma institucional

para a economia de mercado. Em verdade, é possível falar não

em economia de mercado, mas em economias de mercado – no

239

plural, diante das diversas manifestações institucionais

possíveis.

Nessa visão - a que neste trabalho nos vinculamos -

o direito deixa de ser instrumento de convergência para um

determinado conjunto típico de instituições econômicas. Passa

a ser meio para o exato oposto, para a construção da

diversidade institucional voltada à realização de diferentes

projetos democráticos da sociedade contemporânea. Uma

abordagem que privilegia essa visão é a da Análise Jurídica da

Polítia Econômica formulada por Marcus Faro de Castro, que

passaremos a expor.

Segundo Marcus Faro, mercados resultam de uma densa

e complexa teia de regras e estruturas normativas, pública e

politicamente instituídas em processo de mudança contínua.375

São produto de uma dada conjuntura, conjuntura esta que é

delimitada por regras e estruturas normativas desenvolvidas em

“dinâmicas de competição estratégica entre grupos de

interesse, governos, partidos e coalizões”.376 A ideia de uma

teia ressalta a interrelação entre instituições públicas e

privadas como elemento nuclear dos mercados.

Por sua vez, regras que estruturam mercados e que

são instituídas politicamente formam, segundo o autor, a

política econômica. Se mercados são uma teia de regras e

estruturas normativas públicas e privadas, e se ao menos parte

dessas regras são fruto da política econômica, o resultado é

que mercados terão diferentes configurações a depender das

diferentes políticas econômicas. Ao se falar que não há o

375 CASTRO, 2006, p. 42. 376 CASTRO, 2006, p. 43.

240

mercado tomado em abstrato, ressalta-se a pluralidade de

possíveis configurações que a política econômica pode dar a

mercados. Assim, mercados são criações – como disse Coase. Mas

diferentemente de Coase, a análise de Marcus Faro ressalta que

mercados são criações políticas. Todavia, a própria política

econômica está imersa na teia de instituições públicas e

privadas. Também as regras instituídas politicamente não

existem no vazio institucional. Assim, ao contrário de

considerar a política econômica como algo distinto e externo a

mercados, Marcus Faro destaca seu papel na formação dos

mercados – ou, mais propriamente, das instituições econômicas:

...na medida em que a política econômica encontra-se ao

menos parcialmente imbrincada com valores culturais, ou

é governada por ideais e princípios formulados e

promovidos juridicamente para realizar a justiça,

cristalizam-se as instituições econômicas. As

instituições econômicas, portanto, são mais do que a

simples política econômica, pois abrangem a articulação

desta última com a cultura e/ou regras e princípios

formulados juridicamente a serviço da realização da

justiça.377

Portanto, a integração da política econômica a

ideais de justiça é feita pelas instituições econômicas. Essa

integração é objeto de formulação jurídica, nas palavras do

autor. Porém, para Castro, a formulação jurídica não está

presente em todas as instituições econômicas:

...muitas instituições econômicas, embora possam

adquirir caráter constitucional no sentido político,

podem permanecer carentes de formulação jurídica, capaz

de relacionar a estrutura de tais instituições à

377 CASTRO, 2006, p. 42.

241

realização de ideais de justiça, dando prioridade a

estes últimos. Nesses casos, pode-se dizer que as

instituições em causa têm caráter “constitucional” em

sentido político, e não, ainda em sentido “jurídico”.378

Instituições econômicas, desse modo, não decorrem

necessariamente da formulação jurídica, apesar de estarem

ligadas a valores culturais, ideais e políticos que poderiam

(ou deveriam) se vincular com a realização da justiça. Há,

segundo Castro, institucionalização de interesses que

efetivamente se opera pelo direito, mas há também

institucionalização de fato – em que juristas não se

pronunciam sobre ela ou sequer tomam conhecimento de sua

existência.379 A formulação jurídica, desse modo, não é índice

nem da existência de instituições econômicas, nem da

vinculação das instituições econômicas a valores voltados à

realização da justiça. É nesse contexto que Marcus Faro propõe

sua Análise Jurídica da Política Econômica, como uma

alternativa a abordagens típicas do Pensamento Jurídico

Contemporâneo e - especialmente – daquilo que aqui chamamos de

visão paradigmática sobre direito e economia380, para fins de

378 CASTRO, 2006, p. 43. 379 Cf. CASTRO, 2010, pp. 160-161. 380 A crítica de Marcus Faro de Castro às abordagens jurídicas atualmente em evidência é sintetizada neste parágrafo: “As opções de análise jurídica apontadas acima, contudo, não se prestam a conciliar a funcionalidade e a produtividade da economia, de um lado, e, de outro, a equânime proteção aos direitos fundamentais dos indivíduos e grupos, promovendo assim a justiça econômica. A interpretação formal olha unicamente para as formas jurídicas, as construções dogmáticas, não levando em consideração os fatos que constituem situações empíricas dramáticas e facilmente caracterizáveis como injustas, tais como a pobreza, a fome, a morte de pessoas por doenças comumente tratáveis e assim por diante. Das formas jurídicas abstratas, podem ser derivadas apenas outras formas abstratas, não juízos marcados com a experiência de vida social. Por sua vez, a interpretação substantiva não leva em consideração, de maneira disciplinada, as implicações, em termos de política econômica e seus efeitos, das soluções apontadas para os casos considerados. A seu turno, a “ponderação de valores”, sendo de caráter genérico e abstrato, acaba se apoiando em especulações imprecisas sobre o

242

confrontar a política econômica e as instituições econômicas

com a realização de ideais de justiça.

A importância de alternativas ao Pensamento Jurídico

Contemporâneo e à visão paradigmática se dá pela necessidade

de reforço à democracia, compreendida como principal

instrumento social de formulação de projetos de justiça. Nesse

sentido, o pensamento de Marcus Faro converge com o de

Mangabeira Unger381, acerca do recurso à opinião democrática

como critério pragmático de realização da justiça:

Segundo a perspectiva da AJPE, é na criação de novos

papéis e nas oportunidades para a redefinição das

relações sociais e instituições que reside a liberdade,

entendida como “poder prático de transformação social”.

Tal transformação social corresponde a mudanças nas

hierarquias sociais herdadas, não negociadas no

presente, e que definem a ordem corrente da sociedade.382

E ainda:

Nas democracias, portanto, a opinião livremente formada

pelos indivíduos sobre o que são e devem ser os seus

direitos é, de certo modo, uma importante e

indispensável fonte de critérios para a determinação do

que devem ser os conteúdos concretos dos direitos em

termos de padrões de ação efetiva (fruição). Diante

disso, controvérsias sobre a realidade social e

possibilidades de reformas favorecedoras da fruição

que são os “valores” em questão, e sobre qual a maneira de ajuste mútuo entre eles que seria mais adequada para atender aos interesses concretos dos membros da sociedade. Por fim, a AED [Análise Econômica do Direito], ao proceder por meio da chamada “análise de custo-benefício”, não leva em conta as relações entre interesses materiais e valores não econômicos, que são relevantes para a promoção da justiça econômica.” (CASTRO, 2009, p. 21). 381 Ver item 2.1 supra. 382 CASTRO, 2009, p. 30.

243

adquirem relevância. Assim, a percepção de que

determinadas políticas públicas ou econômicas limitam as

possibilidades de fruição de direitos torna-se, em tese,

fundamento para exigir que tais políticas sejam sempre

estruturadas de modo a promover, e não prejudicar, a

efetividade do exercício de diretos fundamentais e

direitos humanos.383

Portanto, a ênfase de Marcus Faro é no papel que o

direito possui de transformação social, a partir dos diversos

projetos de sociedade que são construídos pela livre opinião

no seio das democracias contemporâneas. A medida desse papel

não se dá pela referência a formulações abstratas de

categorias jurídicas, mas pela verificação empírica da fruição

de direitos, conforme formulados pela opinião livremente

formada dos indivíduos. Por conseguinte, o déficit na

implementação de ideais de justiça na economia não é apenas

decorrente da existência de instituições econômicas que não

tenham sido objeto de formulação jurídica, mas também da

própria desviculação entre os atuais critérios que pautam a

formulação jurídica e as condições práticas de implementação

de ideais de justiça na economia. Em resultado, Marcus Faro

identifica a impropriedade de tratar a atuação do direito na

economia sob a óptica de mediação da intervenção do Estado,

tal como faz a visão paradigmática:

A dogmática das formas de intervenção do Estado na

economia ignora que não se pode conceber a moderna

sociedade de mercado sem admitir que certos direitos

individuais (propriedade e contrato) sejam postos sob a

proteção do próprio Estado. [...] Uma vez reconhecido o

alcance desse argumento, a questão passaria então a ser,

não acerca da “intervenção” versus a “não intervenção” –

383 CASTRO, 2009, p. 26.

244

sendo esta última denotativa da liberdade (por exemplo,

a liberdade de iniciativa) -, mas sim sobre a qualidade

da ação do Estado, ou seja, sobre a qualidade da forma

institucional da ação estatal. Esta pode ser organizada

de modo a promover, ou a reprimir, a liberdade de

indivíduos e grupos.384

Portanto, a ação estatal, no seio da política

econômica, pode tanto ser instrumento de maior justiça

econômica e liberdade (individual ou política), como pode ser

obstáculo a que ideais de justiça se implementem na prática.

Com efeito, segundo Marcus Faro, por vezes a ação estatal

promove inserção econômica – isto é, institucionalização

econômica de interesses - mediante a seleção restritiva de

interesses sociais.385 Em outras palavras, a ação estatal cria

ou molda instituições econômicas que refletem interesses de

grupos sociais específicos. O autor cita diversos exemplos em

que essa seleção restritiva operou em detrimento do que chama

de interesses emergentes – aquele que corresponde a grupos

sociais historicamente alijados do poder político, mas que no

último século passaram a ter relevância no debate

democrático386 mediante, sobretudo, a expansão do direito ao

voto.387 Como diz o autor, as autoridades públicas podem

promover a explícita habilitação econômica de indivíduos ou

grupos, ou podem provocar a marginalização ou inabilitação

econômica (relativa ou até absoluta) de indivíduos ou

384 CASTRO, 2009, p. 21. 385CASTRO, 2010, p. 160. 386 Nesse sentido: “...é sabido que a ação legislativa – impulsionada pelos interesses emergentes de massas de indivíduos de facto destituídas da titularidade de “direitos subjetivos”, mas que passaram a ser incorporadas ao processo político em consequência da expansão do sufrágio, a partir da primeira reforma do parlamento inglês em 1832 – rapidamente tornou-se muito mais exuberante e copiosa do que poderiam comportar os códigos civis, de base jusnaturalista ou historicista.” (CASTRO, 2010, p. 151.) 387 Cf. CASTRO, 2006, pp. 46 e ss.; CASTRO, 2010, pp. 151 e ss.

245

grupos.388 Assim, a ação estatal por si não é indicativa nem de

maior justiça social, nem de menor justiça social. O que

importa é a qualidade da ação estatal.

Assim, o autor adota uma tipologia da atividade

econômica desvinculada do critério da assunção de atividades

de produção e consumo de bens e serviços pelo Estado. Isso

porque parte de uma concepção mais ampla – e no nosso entender

mais precisa – de política econômica, para abranger mais do

que a mera opção estatal de atuar ou não como agente

econômico. Ao invés de dividir a atividade econômica segundo o

critério formal da reserva de determinadas atividades à ação

estatal, Marcus Faro recorre à divisão entre instituições de

mercado e instituições extramercado. Essa divisão não se pauta

na existência de custos de transação – como faz Coase389 -, mas

na ideia de que a economia de mercado possui um enraizamento

social.390 Sobre essa concepção, diz o autor:

Conforme insistem economistas contemporâneos como

Rodrik, “a economia de mercado existe de modo

388 CASTRO, 2010, p. 161. 389 Ver item 2.3 supra. 390 Marcus Faro, em verdade, é crítico da fundamentação da divisão entre instituições de mercado e extramercado com base nos custos de transação: “Desde a divulgação da “teoria da firma” de Ronald Coase (1937), expandiu- se (especialmente a partir dos anos 1960) uma literatura que distingue entre as organizações (empresas) e mercados. As discussões vinculadas à “teoria da firma” gravitam em torno da ideia de que as organizações têm o objetivo de diminuir os “custos de transação”. Os trabalhos dessa tradição entendem como “custo” o que poderia, a partir de outro ponto de vista, ser considerado como relações de poder ou como fatos pertencentes ao âmbito da institucionalização de obrigações morais. Porém, à margem da literatura advinda da “teoria da firma”, existe uma tradição mais antiga de análise sociológica e antropológica – para cuja formação contribuiu o trabalho de autores como Max Weber e Marcel Mauss – que aponta para o “enraizamento social” da economia de mercado. É nesta última perspectiva, do enraizamento social da economia, que o presente texto se refere a “instituições extramercado.”” (CASTRO, 2010, p. 161). As visões de Coase e Castro, porém, tratam-se de dois pontos de vista distintos que, se combinados, trazem resultado analítico mais rico para a questão, como veremos adiante.

246

necessariamente enraizada em um conjunto de instituições

extramercado (nonmarket institutions)”. As instituições

“extramercado” estão envolvidas na produção de bens não

mercantis, prezados pelos indivíduos, mas não sujeitos à

livre alienação. Portanto, sobre eles, incide alguma

reserva de indisponibilidade. As instituições

extramercado são, também, “extracontratuais”, uma vez

que nelas não corre a coordenação contratual de

interesses, entendendo-se como coordenação contratual os

processos de livre estipulação de condutas mutuamente

confiáveis por meio da barganha privada, sem

interferência direta da autoridade pública.391

Desse modo, o autor caracteriza as instituições

extramercado por seu aspecto extracontratual, isto é, por não

estarem sujeitas à estipulação por acordo entre agentes

privados. Além disso, ao salientar o enraizamento social,

Marcus Faro enfatiza que as instituições de mercado não apenas

convivem com, mas necessitam de instituições extramercado.

Finalmente, afirma a existência de atividades extracontratuais

(extramercados) que oferecem suporte a atividades contratuais

(intramercados). Entre as atividades extracontratuais,

destaca, por exemplo, a regulação estatal das bolsas de

valores, sem a qual a negociação privada de capital em bolsa

não seria viável. Mas há também atividades extracontratuais

que não são suporte de atividades contratuais – Marcus Faro

usa o exemplo de museus mantidos com recursos do erário.392 A

Figura 11 abaixo ilustra a tipologia das instituições

econômicas proposta pelo autor.

391 CASTRO, 2010, p. 161. 392 Cf. CASTRO, 2010, p. 161.

247

Figura 8 - Instituições econômicas segundo Marcus Faro de Castro

Fonte: elaboração do autor a partir de CASTRO (2009, 2010)

Como representado na Figura 11, Marcus Faro propõe

que a inserção econômica de interesses emergentes se pode dar

seja na dimensão das instituições intramercados, seja na das

instituiçoes extramercados.393 Essa multiplicidade de opções

implica um sem número de alternativas para a política

econômica, o que também faz com que não haja uma forma

institucional única, predeterminada, a pautar a formulação

jurídica da economia. Admitir que política econômica engloba

uma pluralidade de formas, significa também relativizar o

papel do direito tal qual como hoje (conjunturalmente)

institucionalizado. A formulação jurídica – especialmente a

pronúncia de direitos subjetivos por agentes estatais – não é,

portanto, condição necessária para a realização de ideais de

393 Diz o autor: “Assim, a modificação da inserção econômica de interesses de indivíduos ou grupos pode promover a sua habilitação econômica, correspondente à sua absorção nos setores contratual e/ou extracontratual da economia de mercado. Ou pode, ainda, se dar mediante a modificação da posição relativa corrente dos indivíduos ou grupos no contexto de cada um desses setores. Nesse sentido, a incorporação, as interações sociais efetivas, de interesses emergentes pode ser feita mediante o reconhecimento jurídico desses interesses como “direitos subjetivos”, mas pode ocorrer sem esse pronunciamento jurídico.” (CASTRO, 2010, p. 162.)

248

justiça, em especial ao se ter em consideração seu caráter

temporário e contingente:

A emergência de interesses com potencial para serem

incorporados à coordenação institucional em relações

confiáveis e, assim, justas é particularmente estimulada

nas sociedades democráticas de mercado. As

possibilidades de institucionalização desses interesses

são um campo em aberto, não existindo um modelo, um

script, uma norma imutável a determinar quais escolhas

devem ser feitas, pois tais escolhas dependem de

análises sobre o contexto em que os interesses se

articulam e se projetam em relação ao presente e ao

futuro próximo (ou previsível, de acordo com variadas

perspectivas). De modo condizente com isso, as normas

emitidas pelas autoridades públicas e que incidem sobre

a institucionalização dos interesses são temporárias,

advindas das contraposições cambiantes entre os

componentes – inclusive tribunais judiciais, locais e

internacionais – dos sistemas de freios e contrapesos,

multiformes e parcialmente internacionalizados, das

democracias hoje.394

Em síntese: o direito atua no âmbito institucional

da economia, e pode, logo, criar, modificar ou extinguir

instituições, ou disciplinar as relações entre diversas

instituições, ou ainda se abster de realizar a formulação

jurídica de instituições em prol da existência e funcionamento

de instituições de fato. Como não há uma receita pronta, não

há uma opção que possa aprioristicamente ser considerada como

correta. É o contexto de fruição de direitos que melhor

determinará a melhor estratégia de atuação do direito na

economia, conforme os projetos individuais e coletivos

formulados nas atuais sociedades democráticas.

394 CASTRO, 2010, p.168.

249

Nesse sentido, a proposta de Marcus Faro é

relativista do ponto de vista da formulação jurídica de

instituições, mas não do ponto de vista da necessidade de

instituições que viabilizem e ampliem a fruição de direitos. O

autor desvincula a atuação jurídica de uma forma institucional

predeterminada e reconhece que a formulação jurídica não é

necessária à fruição de direitos. Mas a fruição de direitos é

eleita como critério central, fundamental, para que se julguem

as instituições. A flexibilização quanto à formulação jurídica

das instituições econômicas que decorre da proposta de Marcus

Faro, portanto, não equivale à abdicação do papel do direito

na realização de ideais de justiça. Ao contrário, reforça esse

papel, ao libertá-lo de conjuntos específicos de instituições

– inclusive das próprias instituições formuladas pelo

direito.395

395 Como parte de sua Análise Jurídica da Política Econômica, Castro propõe instrumentos analíticos para medir a fruição empírica de direitos, que chama de “Análise Posicional” e de “Nova Análise Contratual” – ver: CASTRO, 2009 e 2013.

250

Capítulo 3 - Estudos de casos: a influência do Estado na telefonia de longa distância e na criação da Internet

Até aqui buscamos demonstrar a possibilidade de

análises jurídicas que superem os limites postos pelo

fetichismo institucional, de modo a rever a compreensão dos

efeitos do Estado na economia e, com isso, propor novas formas

de atuação para o direito. Em especial, enfatizamos a

existência de atividades e instituições extramercado na

alocação de recursos, a interdependência entre instituições

extramercado e instituições de mercado na estruturação das

relações econômicas, e o papel de instituições jurídicas na

formação e modificação das instituições econômicas e dos

fluxos ede relações institucionais e de circulação de bens e

serviços que caracterizam uma dada economia. Os estudos de

caso a que nos dedicaremos a seguir têm por objetivo ilustrar

essas constatações e evidenciar as omissões da visão

paradigmática.

Nos estudos de casos, nossa análise terá por base a

distinção entre atividades e instituições extramercados e de

mercados (intramercados). A distinção considerará, tal como

Coase396, a coordenação da alocação de recursos segundo

mecanismos de preços. Assim, instituições que se remetem a

mecanismos de preços para alocação de recursos serão

consideradas instituições de mercado. Instituições que não

usam mecanismos de preços – o que inclui sociedades

empresárias, tal como faz Coase – serão consideradas

instituições extramercados.

396 Ver item 2.2 supra.

251

3.1. Análise do papel do Estado na abertura do mercado de telefonia nos EUA entre 1960 e 1996

Até a década de 1960, a AT&T era a única prestadora

de telefonia de longa distância a operar nos EUA. O Sistema

Bell, composto pela AT&T e pelas companhias regionais

(chamadas BOCs – Bell Operating Companies), operava um

monopólio quase absoluto dos serviços de telefonia americanos.

Na telefonia local, esse monopólio era assegurado por

franchises397 estaduais exclusivas, normatizadas e fiscalizadas

por agências reguladoras estaduais - as Public Utilities

Commissions (PUCs). Na telefonia de longa distância

(interestadual e internacional), a exclusividade decorria do

fato de que a exploração do serviço dependia de licença

(license) da Federal Communications Commission – FCC, e esta

não havia até então conferido licenças a nenhum concorrente da

AT&T.

A manutenção do monopólio da AT&T significou a

adoção do que ficou conhecido como Paradigma Vail398 – em

referência a Theodore Vail, presidente da AT&T até 1922 e

grande responsável por sua implementação. Nos anos de 1907 a

1922, Vail protagonizou uma forte campanha de apoio à

397 O significado de franchise no direito americano engloba tanto o ato formal que estabelece a personalidade jurídica de uma empresa (primary franchise), como o ato formal que faculta a uma dada empresa empregar vias públicas na execução de seus serviços (secondary franchise). Em muitos Estados americanos, a concessão de uma nova franchise para uma public utility passou a depender da obtenção de um certificado de utilidade pública conferido por uma Public Utility Commission, o que conferia a esta a prerrogativa de estabelecer monopólios na prestação de serviços - ver: JONES e BIGHAM, 1931, pp. 105-106. 398 Cf. BYRNES, 1999, pp. 35-36.

252

regulação nos estados onde ela existia, ao mesmo tempo em que

defendia o Sistema Bell como o melhor meio de promover o bem

público.399 Vail defendeu fervorosamente que o setor de

telefonia era um monopólio natural400, que a duplicação de

infra-estrutura era maléfica ao serviço e que apenas a AT&T

poderia prover adequadamente o serviço universal. Em troca,

deveria haver proteção pública do negócio, de modo a garantir

os meios necessários para o financiamento do serviço

universal.401 Os argumentos de Vail ressoaram e tanto governos

estaduais como o governo federal americanos acabaram por

conferir à AT&T e a suas subsidiárias (as BOCs) o monopólio

dos serviços de telefonia.

Portanto, o Paradigma Vail expressa a ideia de que o

monopólio da AT&T serviria de suporte a um sistema nacional de

telefonia, cuja expansão (universalização) seria financiada

pelos próprios ganhos do monopólio. No início do séc. XX,

quando a telefonia era sobremaneira um meio de comunicação

local (intra-estadual), os ganhos do monopólio eram utilizados

pelas agências estaduais (as PUCs) para estabelecer subsídios

cruzados de forma que a telefonia comercial subsidiasse a

residencial, e a telefonia urbana subsidiasse a rural. Quando

a telefonia interurbana (interestadual) ganhou relevância e

passou a gerar receita substanciosa, os Estados passsaram a

399 Como afirma Willian Byrnes, a intenção de Vail era identificar os interesses de sua companhia com o interesse público de controle do setor de telefonia: “The private monopoly sought to meld its interests with the existence of public regulatory authority. The existence of common carrier regulation was used as justification for continued monopoly.” (BYRNES, 1999, p. 35.) 400 Cf. HUBER et. al., 1999, pp. 85-87. 401 Vail afirmou que: “If there is to be state control and regulation, there should also be state protection—protection to a corporation striving to serve the whole community ... from aggressive competition which covers only that part which is profitable.” (Apud ROBINSON, 1989, p. 7 – tradução livre.)

253

pressionar a FCC para que os lucros da telefonia de longa

distância – regulados pela agência federal – subsidiassem os

custos da telefonia local – regulados pelas PUCs. Para tanto,

os reguladores estaduais organizaram uma associação nacional,

então nomeada National Association of Railroad and Utilities

Commissioners (NARUC). A NARUC possuía assento nas reuniões da

FCC que cuidassem sobre tarifas interestaduais e, embora não

possuísse voto, exercia considerável pressão nas decisões da

agência federal. Por outro lado, na medida em que cresceram os

lucros da telefonia interestadual (em razão do aumento do

tráfego e da amortização dos investimentos), aumentou a

importância do subsídio cruzado entre ligações de longa

distância e locais para as políticas estaduais de

universalização da telefonia. Assim, as decisões da FCC

passaram a ter importante repercussão na esfera estadual,

tanto do ponto de vista das possibilidades abertas à exigência

pelas PUCs de maior cobertura ou de tarifas mais baixas, como

do ponto de vista dos recursos disponíveis para as BOCs

realizarem investimentos e melhorias nas redes locais. 402 A

Figura 9 abaixo busca retratar as principais instituições e

respectivas interrelações do cenário acima descrito.

402 Cf. HUBER et. al., 1999, pp. 33, 92-101 e 221-226; LAENDER, 2009, pp. 131-132; HENCK e STRASSBURG, 1988, pp. 1-20.

254

Figura 9 - Estrutura institucional da telefonia de longa distância em 1960 nos EUA

Fonte: elaboração do autor.

255

Como se percebe na Figura 9, instituições

extramercado tinham função preponderante na distribuição dos

recursos alocados aos mercados de telefonia de longa distância

e telefonia local. No caso acima, os monopólios local (intra-

estadual) e de longa distância (interestadual) foram

determinados por uma política pública, e não por resposta dos

agentes econômicos a incentivos dados por mecanismo de preços.

Por isso, o estabelecimento dos monopólios foi resultado de

atividades extramercados, e as instituições envolvidas com

essas atividades eram – nesse caso – instituições

extramercados. As instituições extramercados viabilizaram a

política de subsídios cruzados, cujo objetivo foi influenciar

no fluxo de alocação de recursos de modo a propiciar preços

mais baixos nas ligações locais. Os contratos de telefonia

local e de longa distância, por outro lado, são instituições

de mercado, pois estavam implicados com a oferta e a aquisição

do serviço de telefonia a um dado preço. Mas tanto o preço,

quanto as partes que podem integrar o contrato, não são

estipulados por atividades de mercados, mas sim determinados

pelas PUCs e pela FCC – logo, por atividades e instituições

extramercados.

O fluxo de relações institucionais, representado

pelas setas pretas, retrata, nas relações entre as agências

reguladoras estaduais e federal, as interações que resultaram

na construção da política de subsídios cruzados. Assim, o

fluxo de relações institucionais entre AT&T (a holding) e BOCs

(suas subsidiárias) é afetado pelo fluxo das relações

institucionais com FCC, NARUC e PUCs. Note-se que é em

resultado das interações institucionais que o fluxo de

alocação de recursos é também afetado. Os recursos empregados

na prestação de serviços locais e de longa distância não

dependem apenas do preço e da possibilidade de lucro em face

256

dos custos assumidos com a prestação do serviço. Dependem

também das decisões de alocação de recursos por parte das BOCs

e da AT&T – tanto internas a essas organizações, quanto as

decorrentes das relações entre holding e subsidiárias.

Dependem ainda das tarifas fixadas pelas PUCs e pela FCC.

Assim, integra o fluxo de alocação de recursos (setas cinzas)

a destinação dos lucros da telefonia de longa distância para

custear a telefonia local – o que não é resultado das

instituições de mercado diretamente envolvidas, mas sim das

instituições extramercados, conforme o fluxo de interações

institucionais (setas pretas).

Desse modo, podemos caracterizar a política de

subsídios cruzados baseada no Paradigma Vail como a construção

e atuação de instituições extramercados, cujo objetivo foi

influenciar atividades extramercados (relativas à alocação de

recursos dentro do Sistema Bell) e atividades de mercado

(relativas à alocação de recursos decorrente dos contratos de

prestação de telefonia local e de longa distância). Esse foi o

modelo que pautou a política pública relativa à telefonia nos

EUA até o final da década de 1950.

A partir de 1960, uma seqüência de eventos modificou

completamente o panorama das telecomunicações americanas. O

primeiro evento dessa sequência foi antecedido pela invenção,

na década de 1930, dentro do Sistema Bell, da tecnologia de

micro-ondas para fins de comunicação. Micro-ondas são ondas de

rádio curtas e de alta frequência. Tal como já faziam, por

exemplo, os sistemas de radiodifusão para transmissão de

programações de vídeo, música e entretenimento, torres de

micro-ondas usam radiofrequência para a transmissão de

informações como vídeo e voz. Porém micro-ondas, em comparação

com as ondas do rádio comercial e da televisão, se propagam em

linha reta e transmitem maior volume de informações. Isso

257

permite que sejam usadas como substitutos de fios de cobre e

cabos coaxiais na construção de linhas-troncos do sistema de

telefonia. As linhas-troncos (ou backbone), por sua vez, são

responsáveis por conectar redes locais (por exemplo, conectar

a rede de Nova Iorque à de Boston), por isso necessitam de

alta capacidade de transmissão de informação, tal como a

viabilizada pela tecnologia baseada em micro-ondas. Torres de

micro-ondas são, contudo, opções mais baratas do que fios de

cobre e cabos coaxiais para estabelecer redes troncais de

longa distância, mas têm a desvantagem de estarem sujeitas a

intempéries meteorológicas (dado que as ondas se propagam no

ar, e não confinadas a um fio ou cabo) e à interferência de

outros transmissores de radiofrequência. Sua importância como

opção de engenharia pode ser ilustrada pelo fato de que, em

1960, 25% da rede de longa distância do Sistema Bell operava

com base em torres de micro-ondas.403

Porém, se a possibilidade de empregar torres de

micro-ondas diminuiu custos do Sistema Bell, também tornou

economicamente viável a concorrência com a AT&T. Já no final

da década de 1940, a FCC passou a receber pedidos de empresas

interessadas em implantar linhas privadas – isto é, não

disponíveis ao público em geral – baseadas em torres de micro-

ondas. A implantação dependia de licença da FCC tanto para o

estabelecimento de rede de telecomunicações, como para o uso

do espectro de radiofrequência. A FCC, contudo, negou as

licenças requeridas. Apenas linhas usadas para transmissão de

vídeo, em suporte a redes de televisão, foram autorizadas a

funcionar: o uso de micro-ondas para competir com o Sistema

Bell no serviço de telefonia não era licenciado pela FCC.

403 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 28-29.

258

Mesmo assim, as licenças limitavam a operação das linhas

privadas a locais onde não houvesse presença do Sistema Bell e

exigia que essas linhas deixassem de operar quando o serviço

da AT&T passasse a ser disponível nesses locais.404

A FCC, porém, mudou de entendimento em 1959, ao

regular a prestação de serviço em faixas de radiofrequência

superiores a 890 MHz. A regulamentação da FCC – conhecida como

Above 890 – abriu a possibilidade de que linhas privadas

fossem implantadas por usuários para atender a seus próprios

interesses, mesmo em locais onde a AT&T estivesse presente. A

ideia inicial do Above 890 era propiciar a empresas a

possibilidade de implementarem seus próprios sistemas de

comunicação de longa distância ponto-a-ponto. Mas a decisão da

FCC em Above 890 abriu um precedente: não mais se considerava

que todo o tráfego de longa distância era pertencente à

AT&T.405

Em 1963, com base na regulamentação do Above 890, a

recém-constituída Microwave Communications, Inc. (MCI)

protocolou na FCC pedido para instalar e operar um tronco de

micro-ondas ligando Chicago – no Estado Illinois - a Saint

Louis – no Estado do Missouri -, com nove pontos

intermediários. A MCI, porém, pretendia comercializar o acesso

a esses pontos com terceiros – o que significava viabilizar a

MCI como uma concorrente da AT&T nas telecomunicações de longa

distância. Após seis anos, uma extremamente dividida FCC – a

decisão foi por 4 votos a 3 – concedeu a licença à MCI. A FCC

classificou a MCI como uma specialized carrier, que poderia

prestar serviços privados de telecomunicações (private line

404 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 734-736. 405 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 737-739.

259

services). A licença contemplava a prestação de serviços

ponto-a-ponto, e não provia o direito de interconexão com a

rede de telefonia do Sistema Bell – o que significava que os

usuários da MCI não podiam se comunicar com os usuários do

Sistema Bell, e vice-versa. 406

O precedente da MCI abriu espaço para que outras

empresas buscassem obter licença semelhante. Além dos custos

mais baixos resultantes da tecnologia de micro-ondas, o preço

praticado pelo Sistema Bell estava majorado para financiar as

obrigações de serviço universal na telefonia local. Havia,

assim, grande oportunidade para a entrada competitiva de

empresas cobrando preços menores e com boa lucratividade. Isso

fez com que a procura por licenças de longa distância fosse

grande, o que levou a FCC a, em 1971, regular as condições de

acesso das specialized carriers. O regulamento ampliou os

direitos que haviam sido concedidos à MCI, fixando a

obrigatoriedade de o Sistema Bell fornecer interconexão às

specialized carriers para o provimento dos seus private line

services.407

O impacto dessa decisão foi grande no setor. Em dois

anos, o monopólio da AT&T foi substituído pela competição com

várias companhias, sendo que duas delas – a MCI e a Southern

Communications Co. – ofereciam serviços de costa-a-costa nos

EUA. A competição, porém, estava restrita aos serviços de

comunicação privada, que eram serviços objeto de contratação

especial e buscavam atender sobretudo empresas ou usuários de

grande volume. Isso significava, por exemplo, que um usuário

de uma specialized carrier tinha dois telefones – um para

406 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 739-740 407 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 740-741.

260

fazer ligações de longa distância em sua private line, e outro

para fazer ligações locais na rede da BOC que fosse sua

operadora local.408

Contudo, em 1974, a MCI, em um processo de revisão

de suas tarifas de specialized carrier, solicitou para a FCC a

aprovação de um serviço chamado Execunet, que permitiria a

seus assinantes falar com qualquer telefone das localidades em

que a MCI estivesse presente. Para tanto, o assinante deveria

ligar um número da MCI, discar seu código de acesso ao serviço

e depois discar o número de telefone desejado. Os assinantes

do Execunet seriam tarifados de forma bastante similar aos

usuários dos serviços de longa distância da AT&T, e poderiam

usar o serviço a partir de qualquer telefone – inclusive os

ligados ao Sistema Bell.409 A FCC, contudo, em decisão unânime,

rejeitou o pedido da MCI, alegando que a condição de

specialized carrier não permitia a prestação de serviços

públicos410 de telefonia. A MCI contestou a decisão

judicialmente e em 1978, conseguiu que o Tribunal de Apelações

do Circuito do Distrito de Columbia revertesse a decisão da

FCC, no caso que ficou conhecido como Execunet I.411

A AT&T, após a decisão de Execunet I, anunciou que

não proveria interconexão às specialized carriers e peticionou

à FCC solicitando uma ordem que declarasse a ausência de

obrigação nesse sentido. A FCC atendeu ao pedido, e a MCI

novamente recorreu ao Judiciário. O Tribunal Federal de

Apelações do Circuito de D.C. produziu então o julgado que

408 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 741-742. 409 Cf. HUBER et. al., 1999, p. 749. 410 Segundo HUBER et. al. (1999), as palavras usadas na decisão para descrever o serviço Execunet foram: “essentially a switched public message telephone service” (p. 750). 411 Cf. HUBER et. al., 1999, pp. 748-751; LAENDER, 2009, pp. 139-140.

261

ficou conhecido como Execunet II.412 Segundo o tribunal, as

regras das Specialized Carriers adotadas anteriormente pela

FCC obrigavam a AT&T a fornecer a interconexão. Como em

Execunet I a conclusão foi de que as regras da FCC em vigor

não impediam uma specialized carrier a prover serviço de

telefonia de longa distância, não poderia a FCC alegar

justamente essa distinção para limitar a obrigação de

interconexão da AT&T apenas aos private line services. O

precedente de Execunet II serviu para que não apenas a MCI,

mas todas as competidoras da AT&T pudesse, efetivametente,

competir sem restrições na telefonia de longa distância

interestadual nos locais onde licenças já tivessem sido

conferidas.413

Os precedentes de Execunet I e II, todavia, não

impediam que a FCC impusesse limitações à concorrência com a

AT&T em novas licenças ou em novos regulamentos – substituindo

o regulamento das specialized carriers por normas mais

restritivas. Mas a concorrência havia sido recebida

favoravelmente pelos usuários, que não mais viam as

telecomunicações sob o prisma do Paradigma Vail.414 A própria

FCC mudou seu entendimento e passou a abraçar a competição. De

tal forma que em 1980, dois anos após Execunet II, a FCC tomou

outro passo decisivo na abertura do mercado de telefonia de

longa distância à competição.

Até então, a AT&T era obrigada a apenas fornecer

interconexão – isto é, a fornecer uma conexão às specialized

carriers que permitissem aos usuários destas realizarem

412 MCI Telecommunications Corporation v. FCC, 580 F.2d 590 (D.C. Cir. 1978) 413 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 754-756. 414 Cf. BYRNES, 1999, p. 37.

262

chamadas telefônicas para usuários do Sistema Bell. A AT&T e

as BOCs não eram obrigadas, contudo, a fornecer outros

serviços às competidoras. A FCC, porém, passou a obrigar o

Sistema Bell a vender serviços para outras operadoras. Entre

esses serviços, estava a possibilidade de uma competidora

comprar acesso à rede do Sistema Bell como complemento a sua

rede – por exemplo, uma operadora poderia usar parte da rede

da AT&T para construir uma linha entre Chicago e Nova Iorque.

E em 1980 a FCC passou a obrigar o Sistema Bell a vender seus

serviços no atacado, para que outras operadoras pudessem

revender no varejo. As operadoras que assim fizessem passaram

a ter a qualificação de commom carrier, antes exclusiva da

AT&T.415

Todas essas alterações institucionais, promovidas

pela FCC e pelo Judiciário, resultaram no cenário representado

pela Figura 10 abaixo. Em comparação com o cenário anterior, o

serviço de telefonia de longa distância – uma atividade de

mercado – passou a se relacionar com outra atividade de

mercado – a prestação de serviços entre operadoras, antes

inexistente (ou, ao menos, irrelevante). Houve por isso mais

instituições de mercado atuando na telefonia de longa

distância, implicadas com a atividade de mercado entre

operadoras, das quais destacamos os contratos de revenda e de

interconexão. O contrato de prestação de serviços telefônicos

foi também modificado, apesar de ainda sujeito às tarifas

fixadas pela FCC.416 Além da AT&T e das BOCs, as operadoras

competitivas (especialmente MCI e Sprint) passaram a poder

415 HUBER et.al., 1999, pp. 756-760. 416 Todavia, em decorrência da competição, a FCC progressivamente atribuiu liberdade na fixação das tarifas à AT&T e às prestadoras competitivas – cf. HUBER et.al., 1999, pp. 790-815.

263

figurar como partes no contrato de prestação de telefonia de

longa distância. Se instalou, em decorrência, uma competição

entre diferentes instituições extramercados (AT&T vs.

operadoras competitivas) pelos recursos oriundos da prestação

de serviços de telefonia de longa distância.

Houve também mudança no fluxo de alocação de

recursos, o que impactou tanto a política de subsídios

cruzados, quanto a forma como o Sistema Bell distribuía

recursos dentre suas empresas. O Paradigma Vail - de uma única

empresa para prover uma rede única nacional e universal - foi

quebrado. O Sistema Bell passou a competir com outras empresas

por recursos oriundos da prestação de serviços de telefonia de

longa distância. Isso significou, de um lado, que havia menos

recursos para financiar as obrigações de serviço universal

relacionadas à telefonia local. Por outro lado, dado que o

Sistema Bell era monopolista na telefonia local, significou

também a possibilidade de que a AT&T mudasse o sentido do

fluxo de alocação de recursos entre telefonia local e

interestadual, de forma a usar o monopólio local como fonte de

financiamento para a competição de longa distância.

Com efeito, a AT&T passou a ser acusada de fazer

exatamente isso: praticar preços predatórios na longa

distância, financiados pelo monopólio na telefonia local. Além

disso, apesar dos esforços de implementação do mercado de

serviços entre operadoras, a AT&T se recusava a prover

serviços a suas concorrentes e a oferecer interconexão a suas

redes. Em conseqüência, as novas companhias telefônicas

buscaram os órgãos americanos de defesa da concorrência para

264

reclamar do abuso de poder de mercado praticado pelo Sistema

Bell.417

417 Sobre as práticas adotadas pelo Sistema Bell, cf.: BYRNES, 1999, pp. 38-39; ARANHA, 2005, pp. 157-158.

265

Figura 10 - Estrutura institucional da telefonia de longa distância em 1980 nos EUA

Fonte: elaboração do autor.

266

Ainda em 1974, diante das reclamações das operadoras

competitivas, o Department of Justice (DoJ) ingressou com ação

antitruste contra a AT&T. A alegação era precisamente que o

Sistema Bell se valia de seu monopólio nos serviços locais e

no fornecimento de equipamentos para sustentar o monopólio da

longa distância. O DoJ acusou a AT&T de negar interconexão às

specialized carriers e de, quando existente a interconexão,

cobrar tarifas de acesso à sua rede superiores ao que seria

razoável para adequadamente remunerar o capital investido.

Além disso, nas linhas onde havia competição com as

specialized carriers, o DoJ acusou a AT&T de cobrar preços

abaixo do custo (dumping). Também denunciou a imposição de uso

de terminais produzidos pelo Sistema Bell, e a cobrança de

tarifas adicionais para uso de equipamentos de outros

fabricantes.

O caso foi distribuído para o juiz federal Joseph

Waddy. Porém, em decorrência de seu frágil estado de saúde, a

ação ficou anos parada. O juiz Waddy veio a falecer em 1978, e

apenas em 15 de janeiro de 1981 a ação foi distribuída para o

juiz Harold Greene. Quando Greene assumiu, porém, o caso

passou a ter tramitação prioritária. Após a primeira parte da

dilação probatória, a AT&T buscou a extinção da ação, alegando

ausência de fundamentos de fato e de direito que dessem

suporte ao pedido do DoJ. O juiz Greene, contudo, indeferiu o

pedido da AT&T. Nas razões dessa decisão, o juiz afirmou que a

telefonia local era um monopólio natural e, por isso, não

podia ser replicada pelos competidores do Sistema Bell.

Segundo Greene, o acesso à rede local seria essencial para a

prestação de serviços de longa distância, e o domínio desse

monopólio conferia os meios para possível abuso de poder por

parte da AT&T. Adicionalmente, Greene afirmou que o DoJ havia

conseguido provar a possível intenção anticompetitiva por

parte da ré na manutenção de sua posição no mercado

267

interestadual, na medida em que a AT&T praticava tarifas

desvinculadas dos efetivos custos do serviço.418

No curso do processo, William Baxter, um acadêmico

de Stanford, assumiu a chefia da divisão antitruste do DoJ.

Baxter era conhecido por ter opiniões bastante moderadas sobre

a interferência do governo no mercado, e sua indicação tinha

partido do Governo Reagan – conhecido por suas posições de

não-intervenção do Estado na economia. Isso gerou expectativa

na AT&T de que poderia obter um bom acordo com o governo.

Somada essa expectiva ao prognóstico negativo no julgamento do

caso, a AT&T decidiu tentar resolver a ação por meio de

acordo.419

Contudo, Baxter não foi tão amigável como esperava a

AT&T. A análise que Baxter fez da atuação da AT&T não

discrepou da do juiz Greene. Segundo o então chefe da divisão

antitruste do DoJ, a exploração concomitante de atividades

sujeitas ao monopólio legal e de atividades sujeitas à livre

concorrência tornava impossível controlar eficazmente

eventuais abusos por parte do Sistema Bell. A rede que servia

à telefonia local, servia também à telefonia de longa

distância. Portanto, os custos da telefonia local seriam

indissociáveis, mantida a situação como estava, dos custos da

telefonia de longa distância. Uma vez que os custos eram

compartilhados por serviços sujeitos à regulação monopolística

e por serviços sujeitos à competição, o Sistema Bell poderia

atribuir os custos do serviço competitivo ao monopólio,

recuperar esses custos pela tarifa regulada e, com isso,

financiar indefinidamente preços baixos para afastar a

418 Cf. BRANDS e LEO, 1999, p. 283. 419 Cf. BRANDS e LEO, 1999, pp. 285-286.

268

concorrência nas atividades competitivas. Por outro lado,

afirmou Baxter, o subsídio cruzado entre serviços de longa

distância e serviços locais serviria de estímulo para as PUCs

chancelarem práticas anticompetitivas da AT&T, como

sobretarifas de conexão e negativa de interconexão. Para

Baxter, a única forma de impedir o abuso de poder por parte do

Sistema Bell era separar as atividades competitivas das

monopolísticas. Foi essa, então, a proposta de acordo

oferecida pelo DoJ. Baxter foi inflexível, somente assinaria

um acordo que contemplasse a separação da AT&T, que operava o

serviço de longa distância interestadual, das BOCs, que

operavam os serviços intraestaduais.

Em decisão que alguns consideram surpreendente, em

1982, o Sistema Bell aceitou o acordo. Para ser válido, o

acordo teve ainda de ser homologado pelo juiz Greene, que lhe

apôs algumas modificações – o que fez com que os termos da

cisão do Sistema Bell fossem fixados não pelo acordo em si,

mas pela decisão final do juiz, chamada Modification of Final

Judgement (MFJ).

Em resultado do MFJ, o Sistema Bell foi separado em

duas partes. De um lado, ficaram os serviços de longa

distância e a venda de equipamentos, que deveriam ser

prestados em regime de absoluta competição. A AT&T foi

separada das BOCs e passou a poder operar somente na longa

distância. De outro lado, ficaram os serviços de telefonia

local (local exchange), que foram considerados um monopólio

necessário. Esses serviços, prestados até então pelas 22 BOCs

controladas pela AT&T, passaram a ser organizados em sete

holdings regionais, denominadas Regional Bell Operating

269

Companies – RBOCs.420 A cada RBOC foi atribuído um conjunto de

regiões chamadas Local Access and Transport Areas – LATAs.421

Ligações dentro de uma LATA (intraLATA) eram consideradas

serviço local e, por isso, poderiam ser prestadas por uma

RBOC. Mas ligações entre diferentes LATAs (interLATA) não

poderiam ser feitas por uma RBOC – ainda que as duas LATAs em

questão fossem operadas pela mesma RBOC. As RBOCs, assim,

foram mantidas como monopolistas sob regulação das PUCs

estaduais, mas lhes fora negado operar no mercado de longa

distância, regulado pela FCC. Assim, ao invés de operarem na

longa distância, as RBOCs passaram a ser apenas fornecedoras

de acesso local para operadoras de longa distância. Ao prover

acesso local para a longa distância, as RBOCs eram

expressamente obrigadas a fornecer condições isonômicas, de

modo a evitar qualquer favorecimento para sua antiga holding,

a AT&T.

O acordo resultou em uma profunda modificação

institucional do setor de telecomunicações, não apenas do

ponto de vista do Sistema Bell, mas também do ponto de vista

da repartição de competências estatais para a sua regulação. O

cumprimento dos termos do acordo passou a ser supervisionado

diretamente pelo juiz Greene, o que catapultou seu gabinete

para ser uma espécie de FCC paralela. Ao mesmo tempo, a

existência de várias LATAs em um mesmo estado fez com que

mesmo serviços intra-estaduais fossem considerados serviços de

longa distância competitivos, o que atraiu a competência da

420 As sete RBOCs eram: Ameritech, Bell Atlantic, BellSouth, NYNEX, Pacific Telesis, Southwestern Bell e U.S. West. 421 Eram 167 as LATAs. A maior parte dos estados compreendia diversas LATAs – Nova Iorque foi dividida em sete, a Califórnia em onze, etc. Entretanto, nove LATAs correspondiam a estados inteiros, como foi o caso em Delaware, Novo México, Wyoming, entre outros. Cf. BRANDS e LEO, 1999, p. 311.

270

FCC para regulá-los. Até mesmo dentro de uma LATA os estados

perderam parte de sua competência, à medida que a FCC passou a

fixar as condições para o fornecimento de serviços de acesso

às redes locais. Consolidou-se uma política federal, centrada

no Judiciário e na FCC, em prol da competição. Essa política

substituiu a anterior, de subsídios cruzados, que era baseada

no Paradigma Vail e fora construída não apenas por entes

federais, mas pela interação destes com as PUCs estaduais.

Esse cenário está representado na Figura 11 abaixo.

271

Figura 11 - Estrutura institucional da telefonia de longa distância em 1984 nos EUA

Fonte: elaboração do autor.

272

A partir do confronto entre a Figura 11 e as figuras

9 e 10, é possível identificar que o principal produto da ação

estatal nas décadas de 1960 a 1980 nos EUA foi a substituição

da influência de instituições extramercados na alocação de

recursos entre telefonia local e interestadual, por

instituições de mercado. Especificamente, a ação estatal criou

as instituições necessárias para um novo mercado de serviços

entre operadoras. Esse novo mercado substituiu tanto a

alocação de recursos segundo os subsídios fixados

conjuntamente por FCC e PUCs (representadas pela NARUC),

quanto a alocação de recursos feita internamente no Sistema

Bell, mediada pelas relações entre a holding AT&T e suas

subsidiárias (as BOCs). A estrutura institucional retratada

acima durou de 1984 - data de início da vigência do MFJ – até

a edição do Telecommunications Act de 1996. A nova lei

incorporou os aspectos centrais definidos pelo MFJ, mas

introduziu instrumentos voltados à abertura dos mercados de

telefonia local. O Telecommunications Act de 1996 e seus

efeitos, todavia, estão fora do escopo do presente estudo de

caso.

3.2. Análise das relações de coordenação entre instituições estatais e não estatais na implementação da ARPANET

Quando os soviéticos assumiram a liderança da

corrida espacial, em 1957, Dwight Eisenhower, então Presidente

dos EUA, tomou uma série de medidas visando a retomada do

domínio americano no desenvolvimento tecnológico. Uma dessas

medidas foi a criação da Advanced Research Projects Agency

(ARPA), cuja função era não apenas trabalhar no longo prazo

mediante o financiamento de pesquisas científicas de base

(isto é, sem explícita vinculação prática), como também

273

articular o mundo acadêmico com possibilidades efetivas de

desenvolvimento tecnológico.422 A ARPA foi situada como um

órgão civil independente dentro do Pentágono, com acesso

direto ao Presidente e ao Secretário de Defesa. Desde sua

primeira gestão, a ARPA elegeu como prioridade a ciência da

computação, dedicando um órgão específico para tanto em sua

estrutura: o Information Processing Techniques Office (IPTO).

Foi dentro do IPTO que a primeira rede de computadores foi

concebida, planejada e executada. Essa rede viria a ser

conhecida como ARPANET, e foi a partir dela que se originou a

atual Internet.423

Inicialmente, a rede formada pela ARPA não foi de

computadores, mas de pesquisadores. Joseph Carl Robert

Licklider, responsável pela criação do IPTO e seu primeiro

diretor, é considerado um dos visionários sobre cibernética e

as possibilidades de simbiose entre homem e computador.424

Licklider era psicólogo, e abordou a nascente pesquisa sobre

computadores sob o aspecto do potencial na expansão das

competências e capacidades humanas. Suas ideias foram

extremamente influentes para a nascente Ciência da Computação,

e ao redor delas Licklider construiu uma rede informal de

422 A necessidade de financiamento estatal para pesquisa de base remonta à experiência americana com a Segunda Guerra, em que o Projeto Manhattan teve papel decisivo: “After a Second World War victory that relied heavily on State-sponsored and -organized technological developments, the federal government was quick to implement the recommendations of Vannevar Bush´s 1945 report, which called for ongoing public support of basic as well as applied scientific research. The relationship between government and science was further strengthened by the Manhattan Project (the major scientific effort led by the US, with the UK and Canada, which led to the invention and use of the atomic bomb in the Second World War), as physiscists instructed policymakers on the military implications of new technology. From this point on, it became the government´s business to understand which technologies provided possible applications for military purposes as well as commercial use.” (MAZZUCATO, 2013a, posição 1709). 423 Cf. SWEDIN e FERRO, 2005, posições 1994 e ss. 424 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 288 e ss.

274

amigos, pesquisadores e colegas de trabalho. Referindo-se de

forma jocosa ao conjunto de pesquisadores com quem se

relacionava, Licklider escreveu em 1963 o famoso “Memorando

para os membros e afiliados da Rede Intergalática de

Computadores” (“Memorandum for Members and Affiliates of the

Intergalactic Computer Network”). Nesse documento, Licklider

identificava as necessidades dessa comunidade de pesquisadores

como uma demanda coletiva por cooperação, de modo a integrar

os diversos esforços empreendidos de forma descentralizada:

... é evidente que temos entre nós uma coleção de

aspirações, esforços, atividades e projetos individuais

(pessoais e/ou organizacionais). Estes têm em comum,

penso eu, as características de serem de alguma forma

conectados com o avanço da arte ou tecnologia do

processamento de informações, o avanço da capacidade

intelectual (homem, homem-máquina, ou máquina) e da

abordagem de uma teoria científica. As partes

individuais são, ao menos até certo ponto, mutualmente

interdependentes. Para progredir, cada centro de

pesquisa ativo necessita de uma base de software e uma

infraestrutura de hardware mais complexas e mais

extensas do que ele, sozinho, pode criar em tempo

razoável.425

Foi pensando nas necessidades dessa comunidade que

Licklider propôs que linguagens de computadores passassem a

seguir um consenso de grupo no que concerne às decisões

425 “... it is evident that we have among us a collection of individual (personal and/or organizational) aspirations, efforts, activities, and projects. These have in common, I think, the characteristics that they are in some way connected with advancement of the art or technology of information processing, the advancement of intelectual capability (man, man-machine, or machine), and the approach to a theory of science. The individual parts are, at leas to some extent, mutually interdependent. To make progress, each of the active research needs a software base and a hardware facility more complex and more extensive than he, himself, can create in reasonable time.” (ARPA, 1963, p. 1 – tradução livre.)

275

arbitrárias e quase-arbitrárias envolvidas. Buscava, com isso,

facilitar o compartilhamento e a troca de informações. Com

essas intenções em mente, Licklider descrevia características

que uma rede de computadores deveria ter para atender à

comunidade de pesquisadores:

Considere a situação de em que diferentes centros [de

pesquisa] estão juntos em rede, cada centro sendo

altamente individualista e tendo sua linguagem [de

computador] especial e seu próprio jeito especial de

fazer as coisas. Não seria desejável, ou mesmo

necessário, que todos os centros acordassem acerca de

uma linguagem, ou, ao menos, acerca de algumas

convenções para perguntar questões tais como “Que

linguagem você fala?” Neste extremo, o problema é

essencialmente aquele discutido por escritores de ficção

científica: “Como você inicia comunicações entre seres

“sapientes” totalmente não-correlatos?”426

Licklider deixaria o IPTO e a ARPA pouco tempo

depois, sem ao menos iniciar o projeto de rede de computadores

que havia devisado. Contudo, as ideias de que redes de

computadores seriam úteis para as relações homem-máquina, e

que a base de seu funcionamento deveria ser a cooperação entre

os diferentes centros de pesquisa dedicados ao assunto, foram

bastante influentes na comunidade que Licklider chamou de Rede

Intergalática de Computadores. Essa era uma comunidade pequena

e de alcance restrito, porém era quem se dedicava ao estudo de

426 “Consider the situation in which several different centers are netted together, each center being highly individualistic and having its own special language and its own special way of doing things. Is it not desirable, or even necessary, for all the centers to agree upon some language or, at least, upon some conventions for asking such questions as “What language do you speak?” At this extreme, the problem is essentially the one discussed by science fiction writers: “How do you get communications started among totally uncorrelated “sapient” beings?””(ARPA, 1963, p. 3 – tradução livre.)

276

computação em rede. Por influência dessa comunidade, redes de

computadores passaram a ser pensadas como facilitadores para

cooperação entre centros de pesquisa. Além disso, essa

comunidade, e os financiamentos da ARPA de Licklider, deram

origem aos programas de graduação e pós-graduação em Ciência

da Computação nos EUA.

A ideia de cooperação como fundamento de uma rede de

comunicação baseada em computadores foi extremamente

inovadora. Redes de comunicação já eram uma realidade na

época, telefones e telégrafos há muito operavam sobre linhas

de cobre interligadas. A transmissão de informações digitais,

destinadas ao processamento de dados por computação, era

também uma realidade: o modem telefônico, inclusive, já havia

sido inventado pelos Laboratórios Bell (vinculados à AT&T) em

1958. Porém cada rede seguia padrões técnicos diferentes. Como

cada fabricante de computador usava seus próprios padrões para

o funcionamento de seus sistemas, não havia redes de

computadores. Tampouco se pensava no uso de computadores como

instrumentos de comunicação e como meios para expandir

capacidades e competências humanas. Licklider foi o visionário

que influenciou o modo como os cientistas da época passaram a

ver o potencial de simbiose homem-computador427, e sua visão

impregnou as prioridades da ARPA na década de 1960.

O IPTO – departamento fundado por Licklider - passou

a investir em pesquisas que viabilizassem o uso de

computadores não apenas como instrumentos de realização de

cálculos complexos, mas como ferramentas para a expansão das

capacidades de interação homem-máquina. Compartilhamento de

427 Cf. LICKLIDER, 1960.

277

informações, interfaces gráficas, inteligência artificial,

todos esses temas foram objetos de pesquisas financiadas pelo

IPTO da ARPA. Essas pesquisas tornaram popular o processamento

de informações por compartilhamento de tempo (time-sharing

processing), em lugar do processamento por bandeja (batch

processing).428 Neste, o computador realiza uma tarefa de

processamento de dados por vez. Naquele, vários terminais

podem se ligar a um computador para compartilhar sua

capacidade de processamento – lembre-se que, nos anos 1960,

computadores eram máquinas enormes que ocupavam salas

inteiras, muito diferentes dos atuais computadores de mesa

(que por isso se denominam micro-computadores). Uma vez que se

adotasse o processamento de dados por compartilhamento de

tempo, passou a ser viável a conexão remota de terminais (sem

capacidade de processamento) e de teletipos (uma espécie de

máquina de escrever utilizada para digitar comandos para os

antigos computadores). Por vezes, terminais ou teletipos

utilizavam modems e a rede de telefonia para se conectarem aos

computadores, o que efetivamente deu início à comunicação de

dados por meios do sistema de telefonia. Essa comunicação de

dados, porém, ainda não era uma rede de computadores – era

apenas a ligação de um único computador a vários terminais.429

A implementação da primeira rede de computadores, a

ARPANET, se deu apenas em 1969. O projeto dessa rede, porém,

começou anos antes, em 1966. Nessa época, o IPTO criado por

Licklider já havia passado para a direção de outro psicólogo,

Robert Taylor. Taylor teve a ideia de financiar uma rede de

computadores como solução para as dificuldades que tinha ao

428 Cf. SWEDIN e FERRO, 2005, posições 1304 e ss. 429 Cf. SEVERANCE, 2013.

278

lidar com os três terminais remotos localizados em sua sala.

Esses terminais se ligavam a três computadores diferentes, que

ficavam em três localidades distintas nos EUA. Cada computador

(e, logo, cada terminal), exigia uma sequência distinta de

comandos para conexão, comando e operação, o que dificultava o

papel de pesquisadores. Além dessas dificuldades, os

diferentes programas de pesquisa financiados pela ARPA cada

vez mais necessitavam de capacidade de computação. Ao invés de

comprar um computador para cada universidade envolvida, Taylor

pensou que uma rede de computadores permitiria o

compartilhamento de computadores entre os pesquisadores.

Portanto, uma rede de computadores poderia simplificar

procedimentos de conexão e operação de computadores, e

economizar na compra de computadores. Por fim, a possibilidade

de economizar com compra de computadores atenderia a outras

necessidades do Departamento de Defesa, a que se vinculava a

ARPA. Computadores não eram compatíveis entre si. Se um

determinado órgão de defesa tivesse um computador fabricado

por A e necessitasse rodar um programa elaborado no computador

fabricado por B, outra saída não haveria que a compra de um

novo computador fabricado por B – além daquele já existente,

fabricado por A. O Departamento de Defesa, em decorrência

desse tipo de necessidade, era o maior comprador mundial de

computadores, e computadores eram caríssimos. Uma rede de

computadores permitiria que o órgão de defesa que só tivesse o

computador fabricado por A, mas necessitasse rodar um programa

elaborado em um computador fabricado por B, acessasse

remotamente o computador B por meio do mesmo terminal usado

para acessar o computador A. A ideia foi levada a Charles

Herzfeld, diretor da ARPA, que em uma famosa conversa de 20

279

minutos de duração, alocou um milhão de dólares para o projeto

(na época, isso era equivalente a um acréscimo de 5% ao

orçamento anual do IPTO).430

Antes do projeto da ARPANET, Taylor, por meio do

IPTO, financiara em 1965 a primeira conexão remota entre dois

computadores, um localizado no Lincoln Laboratory do

Massachusetts Institute of Technology (MIT), outro localizado

na System Development Corporation em Santa Monica, Califórnia.

O pesquisador do MIT responsável pela conexão, Lawrence G.

Roberts, foi recrutado por Taylor para planejar e coordenar a

execução da ARPANET. Roberts começou no final de 1966 e já no

início de 1967 apresentou para a comunidade de pesquisadores a

proposta de uma rede para ligar os computadores das diversas

universidades e centros de pesquisa envolvidas com projetos

financiados pela ARPA. A proposta se baseava no experimento

que Roberts havia desenvolvido dois anos antes, na ligação

entre dois computadores.

A proposta, porém, foi recebida com ressalvas.

Pesquisadores ficaram preocupados em ter de abrir mão de parte

da capacidade de computação de seus computadores para o que

reputavam um projeto com pequena probabilidade de êxito.

Computadores, como dito, tinham linguagens substancialmente

diferentes umas das outras. Ainda que fosse viável a

transmissão de informações entre os computadores, eles não

seriam capazes de compreender uns aos outros. Ao final da

reunião, contudo, o pesquisador Wesley Clark trouxe uma

solução: a criação de uma subrede de computadores dedicada

exclusivamente ao transporte de informações. Ao invés dos

430 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 571 e ss.; SWEDIN e FERRO, 2005, posições 2031 e ss.

280

computadores se ligarem diretamente entre si, eles se ligariam

aos computadores da subrede. Esses computadores, por sua vez,

teriam uma linguagem padrão. Ao invés de criar meios para

fazer com que cada computador na rede pudesse se comunicar nas

diversas linguagens de todos os demais computadores, cada

computador teria de aprender apenas a linguagem comum dos

computadores da subrede. A ideia de uma subrede, desse modo,

viabilizava uma espécie de língua franca que poderia ser

aprendida por todos os computadores, o que viabilizaria o uso

da rede.431

O passo seguinte foi dado ainda em 1967, em um

simpósio da Association for Computing Machinery, onde Roberts

apresentou o artigo Towards a Cooperative Network of Time-

Shared Computers. O artigo descrevia o funcionamento dos

computadores da subrede, chamados de Interface Message

Processors (IMPs), mas ainda não detalhava o modo como a

transmissão de informações entre os computadores ocorreria.

Nesse ponto, o design proposto por Roberts era o mesmo

utilizado em seu experimento dois anos antes: cada IMP seria

conectado a quatro linhas telefônicas, que realizariam a

transmissão de informações se valendo do sistema de telefonia

tradicional. Essa solução, porém, era custosa e fazia com que

a transmissão de informações fosse muito lenta. Todavia, no

mesmo simpósio, Roberts tomou conhecimento de um experimento

realizado por Donald Davies no National Physical Laboratory

(NPL) - uma instituição controlada pela Coroa da Inglaterra

(portanto, estatal) - e de uma proposta elaborada por Paul

Baran na RAND Corporation, sob contrato do Departamento de

Defesa americano.

431 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 1051 e ss.

281

O experimento conduzido no NPL e a proposta da RAND

Corporation, por caminhos diferentes, propunham um novo modo

de transmissão de informações, com base no uso de

computadores. Esse novo modo ficou conhecido pela denominação

adotada pelo NPL: comutação por pacotes (packet-switching).

Nesta, as informações a serem transmitidas são partidas em

pacotes (packets), e cada pacote segue um caminho diferente na

rede até chegar ao destino final. A comutação por pacotes, por

isso, permite uma arquitetura não-hierárquica, o que por sua

vez permite a construção de redes distribuídas (item (C) da

Figura 23 abaixo). Na época, o sistema de telefonia operava

com base na comutação por circuitos, em que a informação

transportada não é particionada e segue um caminho na rede

pré-definido (um circuito). Na comutação por circuitos, o

transporte de informações se dá por uma rede hierarquizada e

que, por isso, exige arquiteturas de rede em forma de estrela

– em que vários pontos se ligam pontos ou nós centrais (itens

(A) e (B) da Figura 23 abaixo). A comutação por pacotes,

alternativamente, prescinde de nós centrais, o que lhe confere

maior flexibilidade e robustez em comparação com a comutação

por circuitos. Além disso, a possibilidade de que pacotes

sigam diferentes caminhos na rede faz com que a comutação por

pacotes viabilize um transporte mais rápido de informações,

pois os pacotes podem ser direcionados de forma a evitar os

pontos da rede (ou nós) que estejam mais congestionados (e por

isso mais lentos).

282

Figura 12 - Redes em estrela (centralizadas e descentralizadas) vs. redes distribuídas

Fonte: Baran (1964, p. 2)

Embora o projeto de Davies previsse a construção de

uma rede de computadores, o experimento do NPL era apenas a

ligação de um único computador a vários terminais. O projeto

de Baran na RAND Corporation432, por sua vez, tinha sido

concebido como uma forma de assegurar que o sistema de

telefonia sobrevivesse a ataques em caso de guerra nuclear, um

cenário tipicamente adotado durante a Guerra Fria. A proposta

de Baran havia sido apresentada à AT&T e ao Departamento de

Defesa, mas fora arquivada por desinteresse, em razão de a

AT&T ter afirmado que uma rede de comutação por pacotes era

inviável tecnicamente. No momento em que Roberts tomou

conhecimento dos projetos do NPL e da RAND Corporation,

portanto, não se havia ainda implementado uma rede de

comutação por pacotes. A ARPANET seria a primeira.433

Incorporadas as ideias desenvolvidas pelo NPL e pela

RAND Corporation no projeto da ARPANET, a pedido do IPTO/ARPA,

o setor de compras do Departamento de Defesa dos EUA lançou em

432 BARAN, 1964. 433 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 1098 e ss.; SWEDIN e FERRO, 2005, posições 2042 e ss.

283

agosto de 1968 um request for quotation (RFQ) para o

fornecimento dos IMPs e para a construção e operação da

subrede de computadores. O RFQ era regido pelas normas de

contratação de produtos e serviços para a defesa dos EUA, em

que havia regras como a exigência de que a contratante fosse

de propriedade de cidadãos americanos, ou de que os produtos

incluídos fossem preferencialmente produzidos nos EUA (em

decorrência, era necessário discriminar se havia produtos

oriundos de outros países).434 Por outro lado, as regras de

contratação de defesa davam maior flexibilidade quanto a

objeto, formas de gestão do contrato e ingerência no objeto

contrato. Essa flexibilidade se aliava à estrutura

organizacional enxuta e direcionada à pesquisa de que dispunha

a ARPA. Essa estrutura enxuta e flexível era movida por uma

cultura que buscava resultados a longo prazo e em que a

tolerância a erros e fracassos era vista como essencial ao

processo de inovação tecnológica.435 Todos esses fatores

viabilizaram que o RFQ contivesse como objeto a construção de

uma rede de computadores sem que se tivesse a certeza da

viabilidade dessa rede, e segundo uma nova forma de

transmissão de informações (a comutação por pacotes) que fora

publicamente descreditada pela AT&T - empresa que até então

era a maior autoridade mundial acerca da transmissão de

informações em longa distância, e que havia inventado grande

parte das tecnologias empregadas para a construção.

A IBM, então maior fabricante mundial de

computadores, foi uma das primeiras a responder o RFQ. A

resposta, porém, foi uma negativa: a IBM se recusou a oferecer

434 Cf. DEFENSE SUPPLY SERVICE, 1968. 435 Cf. MAZZUCATO, 2013b.

284

proposta, por avaliar que a produção dos IMPs para a rede era

inviável economicamente. Outras grandes companhias seguiram o

mesmo caminho, afirmando seja a impossibilidade técnica de

construção da rede, seja sua inviabilidade econômica. De um

total de mais de 140 empresas consultadas, pouco mais de uma

dúzia apresentou proposta. Ao final, o contrato acabou sendo

celebrado com uma pequena empresa de consultoria sediada em

Boston: a Bolt, Beranek and Newman (BBN).436

A proposta da BBN utilizava computadores produzidos

pela Honeywell – que seriam adquiridos pela BBN e adaptados –

como base para os IMPs, e trazia uma proposta técnica

detalhada de como deveria ser a arquitetura da sub-rede que

ligaria os IMPs. O objeto do contrato se restringia a garantir

que um IMP conseguiria receber informações de um computador

conectado a ele e transmitir essas informações, via comutação

por pacotes, para os outros IMPs ligados em rede. Não era

objeto do contrato assegurar que o computador do centro de

pesquisa A conseguisse assimilar as informações recebidas pela

ARPANET e que tinham sido produzidas pelo computador da

universidade B. Em resultado, os IMPs eram computadores

especializados apenas no recebimento e encaminhamento de

informações, e não lidavam com o conteúdo das informações

transmitadas – tal como carteiros que soubessem ler apenas os

endereços dos envelopes, mas fossem incapazes de ler as cartas

contidas nos envelopes.

Por esse motivo, ficou fora das atribuições da BBN

resolver o problema de como fazer o computador do fabricante A

compreender informações produzidas pelo computador do

436 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 1157 e ss.

285

fabricante B. Esse, como visto, era um grande problema, porque

computadores eram projetados para operar em condições

autônomas e de forma isolada, e porque cada fabricante de

computadores adotava diferentes linguagens e sistemas

operacionais. Para resolver esse problema, um grupo composto

principalmente por estudantes de pós-graduação das

universidades que se ligariam à ARPANET passou a se reunir

informalmente. A ARPA passou a apoiar, também informalmente,

as atividades desse grupo, que ficou conhecido como Network

Working Group (NWG). O NWG nunca teve organização formal, nem

forma jurídica institucionalizada. Contudo, foi responsável

pela criação dos primeiros protocolos host-to-host, que

permitem a comunicação e interação entre os computadores

ligados a uma rede de computadores.

No processo de implementação da ARPANET, uma das

universidades a serem beneficiadas, a UCLA (University of

California Los Angeles), teve papel especial. Nessa

instituição trabalhava um antigo colaborador e amigo de Larry

Roberts (da ARPA), Leonard Kleinrock. Kleinrock havia

estabelecido as bases teóricas que viabilizaram o primeiro

experimento de Roberts na interligação entre dois computadores

– o mesmo experimento que servira de razão para que Roberts

fosse chamado a integrar o IPTO da ARPA. Por causa da presença

de Kleinrock, a ARPA alocou à UCLA a atribuição de montar e

operar um centro de medição da futura ARPANET. Com isso, sob a

direção de Kleinrock, um conjunto de pesquisadores financiados

pela ARPA se estabeleceu na UCLA com o intuito de testar e

avaliar a ARPANET. Dentro desse grupo estavam três estudantes

de pós-graduação que tiveram papel decisivo no desenvolvimento

da futura Internet: Steve Croker, Vinton Cerf e Jon Postel.

Croker foi o primeiro lider do Network Working Group. Cerf foi

um dos inventores do Protocolo Internet, juntamente com Bob

Kahn (que sairia da BBN e ingressaria na ARPA). Postel foi

286

responsável por organizar as deliberações do NWG em documentos

informais chamados requests for comments (RFCs) – que até hoje

são usados para registrar os protocolos e convenções

necessários ao funcionamento da Internet. Mais adiante, Postel

viria ainda a ser o responsável - informalmente designado pela

comunidade de pesquisadores – por atribuir números e endereços

IP, atividade que após sua morte prematura foi assumida pela

ICANN – Internet Corporation for Assigned Names and Numbers.

Em síntese, a implementação da subrede de IMPs e sua

operação foram contratados pela ARPA junto à BBN, mas a

operação em si da ARPANET dependeu também dos esforços do

Network Working Group e das universidades e centros de

pesquisa envolvidos – com destaque para UCLA. Fisicamente,

todavia, a ARPANET era interligada por linhas dedicadas

contratadas junto à AT&T – então monopolista de serviços de

comunicação de longa distância. O uso das linhas da AT&T para

o tráfego de informações geradas por equipamentos produzidos

fora do Sistema Bell, porém, era também algo muito recente.

Foi apenas em 1968, um ano antes da implementação da ARPANET,

que a decisão da FCC no caso conhecido como Carterfone passou

a obrigar a AT&T a aceitar que terminais produzidos por

empresas de fora do Sistema Bell fossem conectados à rede de

telefonia.437 Computadores não eram produzidos pelo Sistema

Bell, e quando conectados às redes de telefonia passam a ser

terminais dessas redes. Ao contrário do que se poderia

437 Carterfone era um dispositivo que conectava um rádio à linha telefônica, e seu uso foi autorizado pela FCC com base na justificativa de que deveria ser permitida a conexão de qualquer terminal do usuário (em inglês: customer premises equipment) se não se comprovasse que em resultado da conexão a rede telefônica sofresse impacto ou deterioração de sua qualidade. Antes da decisão em Carterfone, a AT&T e suas subsidiárias partiam de presunção oposta: todo terminal que não fosse produzido pelo Sistema Bell seria potencialmente danoso ao sistema de telefonia. Ver: HUBER et. al., 1998, pp. 667-673.

287

imaginar hoje em dia, a AT&T não via com entusiasmo a conexão

de computadores em sua rede (e a comutação por pacotes, que

dependia de computadores para ocorrer). Ao contrário, aquela

empresa se opunha a qualquer possível ameaça a seu modelo de

negócios, então baseado no completo monopólio de serviços e

equipamentos de comunicação pela rede de telefonia.438

438 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posição 713.

288

Figura 13 - Estrutura institucional envolvida na criação da ARPANET

Fonte: elaboração do autor.

289

A Figura 13 acima retrata as principais interações

institucionais e atividades de produção e alocação de recursos

envolvidas na criação e implementação da ARPANET. A primeira

evidência é o papel relativamente limitado e pequeno de

atividades mediadas por mecanismos de preços. As atividades

que criaram a ARPANET não foram determinadas pela perspectiva

de ganho individual. Não se quer com isso afirmar que foram

decisões altruístas, mas sim que a ARPANET foi produto de um

esforço coletivo de articulação e cooperação entre

instituições estatais e instituições privadas. Além disso, as

decisões centrais envolvidas na criação da rede não foram

mediadas pela moeda. Não foi em razão da estimativa de

utilidade, medida em moeda, que Licklider formou uma

comunidade de pesquisadores para pensar no papel de

computadores para computação, ou que Bob Taylor resolveu

propor uma rede para conectar os diferentes computadores com

que fazia time-sharing, ou que Larry Roberts decidiu utilizar

o compartilhamento por pacotes no projeto da rede, ou que

Crowther e os membros do NWG desenvolveram protocolos e

aplicações host-to-host. Efetivamente, todos envolvidos

atribuíam utilidade a uma rede de computadores, mas os

recursos alocados (tais como dinheiro, tempo, esforço, etc.)

para a criação e construção dessa rede não foram comensurados

pela utilidade derivada da alocação desses recursos.

A construção da ARPANET – e depois da Internet – foi

a construção de um bem comum no sentido que lhe atribui a

Economia Neoclássica, isto é, um bem que pode ser usado

igualmente por todos de uma comunidade, e cujo uso por uma

pessoa não obsta a que outra o utilize. Esse caráter

comunitário da construção da ARPANET deu o tom do longo

processo que culminou com o surgimento da Internet nos moldes

de hoje. Esse processo institucionalizou relações de

cooperação e foi pautado por atividades em que a conduta dos

290

agentes envolvidos não era resultado da perspectiva de ganho

em razão da utilidade atribuída. Por isso, a ARPANET

exemplifica um caso em que, embora direcionada por um ente

estatal, houve um processo desconcentrado de cooperação, mas

em que as instituições que mediaram a cooperação não foram

instituições de mercado.

3.3. Conclusões dos estudos de casos

O primeiro caso estudado foi a progressiva quebra do

monopólio da AT&T (American Telephone and Telegraph

Corporation) na telefonia de longa distância nos EUA, e que

veio a culminar com a cisão daquela companhia e a

implementação de um novo marco legal para as telecomunicações

americanas. O segundo caso foi o processo de criação e

implementação da ARPANET, a rede de computadores que daria

ensejo à Internet. Ambos os casos ocorreram durante o mesmo

período (final da década de 1960) e – essencialmente – no

mesmo lugar (EUA). Sob os olhos da visão paradigmática, são

casos que poderiam ser reduzidos à ideia de intervenção do

Estado na economia, o que pode passar a impressão de que

seriam dois exemplos de um fenônemo semelhante (a intervenção

estatal).

No primeiro caso – telefonia de longa distância -, a

visão paradigmática identificaria uma intervenção regulatória,

em que o Estado comparece para limitar ou constranger a

atuação do mercado. Vimos, porém, que a atuação do Estado

resultou na criação de um novo mercado – o de serviços entre

operadoras. No segundo caso – a criação da ARPANET -, a visão

paradigmática enfatizaria o papel do Estado na construção

dessa rede de computadores – qualificando-o como intervenção

291

direta ou como serviço público. Contudo, a ARPANET resultou de

um emaranhado de relações entre instituições estatais e

privadas que sequer pode ser descrito segundo a tipologia da

visão paradigmática, e desse emaranhado surgiu uma forma

peculiar de organização e alocação de recursos que, embora

descentralizada, não pode ser qualificada como uma instituição

de mercado, pois não assume um modo de coordenação da produção

e consumo baseado em mecanismo de preços.

Tratou-se de dois casos serem contemporâneos e

ocorridos no mesmo local (EUA), mas em que os resultados da

ação estatal não apenas foram bastante diversos, mas também

são disconformes ao paradigma. Em um caso, a regulação estatal

não conteve, nem limitou um mercado, mas constrangeu e

modificou instituições extramercado para criar um novo

mercado. Em outro caso, a atuação do Estado foi indutora de

uma teia de relações de cooperação baseadas na busca de um bem

comum, relações essas que criaram instituições e modos de

alocação de recursos até então inéditos – e que não foram

alcançados pelas instituições de mercado existentes.

Essas constatações apontam para a fragilidade da

ideia de que há um conjunto de instituições ótimo ou ideal,

que a humanidade alcançaria por um processo de evolução

baseado em tentativa e erro. Decerto, a ARPANET não teria

surgido se a atuação estatal fosse a mesma da cisão da AT&T. A

disciplina por regulamentos e a supervisão judicial,

determinantes no caso da telefonia de longa distância, tiveram

papel quase irrelevante na criação de uma rede de computadores

baseada na comutação por pacotes, e menos ainda na

implementação das instituições de cooperação que viabilizaram

que aquela rede se convertesse na semente de uma futura rede

mundial de comunicação – a Internet. Os casos ilustram, assim,

um dos temas centrais desta tese: não há fórmula pré-

292

determinada para uma boa ou má atuação das instituições

econômicas, e tampouco para disciplinar o papel do Estado.

Aceita essa constatação, isto é, na ausência de uma solução

universal para os problemas econômicos, o desafio do direito

passa a ser buscar alternativas ao determinismo institucional

na construção de múltiplos caminhos para a efetivação de

direitos individuais e sociais.

293

Conclusão

Como visto nos capítulos anteriores, a visão

paradigmática mantém a divisão público-privado com

características que remontam ao Pensamento Jurídico Clássico.

Neste, a divisão público-privado era estruturada segundo o que

Duncan Kennedy chama de teoria da vontade – vontade pública

absoluta no âmbito público, vontade privada absoluta no âmbito

privado. No Pensamento Jurídico Contemporâneo, a teoria da

vontade é substituída pelo neoformalismo e pela policy

analysis, mas mantém-se a distinção entre público e privado.

Identifica-se privado com economia, e toma-se economia como

sinônimo de mercado. O público, por oposição a essa ideia de

privado, seria o domínio do Estado, em que a política seria

instrumental na contenção do privado, mediante intervenção

neste. A caracterização de Estado e mercado se dá conforme o

que Mangabeira Unger chama de tese da convergência439 – a ideia

de que haveria um conjunto típico de instituições que

traduziriam o melhor modelo de interação entre Estado e

economia. Para tanto, a visão da Economia Neoclássica é

determinante no paradima, especificamente quanto a duas

ideias: mercados surgem espontaneamente, e agentes econômicos

agem racional e hedonisticamente na busca de seus interesses

pessoais.

Em decorrência, a tese da convergência descamba em

fetichismo institucional. Com base em Mangabeira Unger,

afirmamos que do fetichismo institucional resulta a

oportunidade perdida de construção institucional pelo direito.

439 Sobre a tese da convergência, ver item 2.1 supra.

294

Também com base em Mangabeira, defendemos que esse papel de

construção institucional é fundamental para que o projeto de

libertação social que representa a democracia contemporânea

seja efetivado. Caso contrário, a reafirmação das instituições

atuais manterá a sociedade no atual ciclo de profecias

autorrealizadas.440 Acerca das relações econômicas, essa visão

corresponde ao diagnóstico feito por Karl Polanyi quanto à

influência das ideias de Adam Smith na formação da economia

moderna:

Ninguém menos que um pensador do calibre de Adam Smith

sugeriu que a divisão do trabalho na sociedade era

dependente da existência de mercados, ou, como ele

expôs, da “propensão para barganhar, trocar e fazer

escambo de uma coisa por outra.” Essa frase

posteriormente resultaria no conceito do Homem

Econômico. Em retrospecto, pode-se dizer que nenhuma

imprecisão sobre o passado se provou mais profética do

futuro.441

Porque enxergaram o passado com os olhos de Adam

Smith, economistas e juristas construiram um futuro em que as

instituições econômicas são tais que a motivação de ganho

individual é determinante na alocação de recursos. O

fetichismo institucional obscureceu o caráter contingente das

instituições e de suas formulações jurídicas – na expressão de

Marcus Faro.442 Porque se ignora o caráter contingente, outras

instituições não são imaginadas. E porque outras instituições

440 Cf. item 2.1 supra. 441 “No less a thinker than Adam Smith suggested that the division of labor in society was dependent upon the existence of markets, or, as he put it, upon man’s “propensity to barter, truck and exchange one thing for another.” This phrase was later to yield the concept of the Economic Man. In retrospect it can be said that no misreading of the past ever proved more profetic of the future.” (POLANYI, 2001, p. 45 – tradução livre, grifo ausente do original.) 442 Ver item 2.5 supra.

295

não são imaginadas, as instituições que eram contingentes

passam a ser percebidas como imutáveis e a perdurar no tempo.

Esse círculo vicioso, em essência, é o que queremos nos

referir com a ideia de profecia autorrealizada. Profecias

autorrealizadas, hoje, tornam a sociedade prisioneira de um

mundo em que as instituições foram construídas para

privilegiar o comportamento autossuficiente (mais independente

e egoísta), em detrimento do comportamento baseado em relações

comunais (baseado na cooperação altruísta).443

Além de submeter o direito a um círculo vicioso de

profecias autorrealizadas, o fetichismo institucional

significou a desconsideração pela visão paradigmática de pelo

menos duas características fundamentais do papel do direito na

economia. A primeira é que o direito é instrumental tanto no

que diz respeito à existência de mercados, quanto no que

concerne à existência de instituições extramercados.444 A

segunda é que instituições econômicas atuam não apenas na

mediação das ações dos agentes econômicos, mas também na

formação de preferências e interesses.445

Quanto à primeira característica, uma decorrência é

a impossibilidade de se igualar economia – ou ordem econômica

– a mercado. Não apenas porque o mercado é uma abstração que

não guarda correspondência com a realidade, como já diversas

vezes reiterado nesta tese. Mas porque há um sem número de

atividades econômicas relevantes que são realizadas fora de

mercados. Essas atividades extramercados servem de suporte a

443 Ver supra, item 2.4.5. 444 Ver supra, item 2.3 – firmas como instituições alternativas a mercados por Ronald Coase - e item 2.5 – para a análise de Marcus Faro de Castro sobre instituições extramercados e seu papel na estruturação de instituições intramercados. 445 Ver item 2.4 supra.

296

mercados, mas também são uma alternativa a mercados no que diz

respeito à alocação de recursos (produção, troca e consumo de

bens e serviços). Isso significa que mesmo o singular problema

econômico da produção de riqueza não pode prescindir da

análise de atividades extramercados, dado que riqueza é

produzida e circulada também fora de instituições de

mercado.446

Tendo em vista que a formulação jurídica é

instrumental para a estruturação de mercados e para a

internalização de atividades pelos mercados, o direito

ordinariamente faz mais do que intervir na economia – tal como

descreve a visão paradigmática. Esse papel adicional do

direito na economia é largamente ignorado pela doutrina

jurídica hoje dominante. Mas ignorá-lo não faz com que esse

papel deixe de existir. O fetichismo institucional, logo, mais

do que eclipsar a possibilidade de construção institucional da

economia pelo direito, obscurece o papel que o direito

necessariamente já tem na economia.

Quanto à segunda característica ignorada - o papel

das instituições econômicas na formação de preferências e

interesses - novamente, a deficiência da visão paradigmática

está naquilo que é obscurecido. Os diversos insights

fornecidos pelas diferentes perspectivas analisadas no

capítulo 2 mostram que instituições não influenciam

comportamentos apenas quando buscam explicitamente condenar ou

recompensar determinadas atitudes. Por isso, o direito faz

mais do que estabelecer incentivos para agentes racionais. As

446 Nesse sentido, por exemplo, caminha a proposta elaborada por uma comissão presidida pelos economistas Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, a pedido do então presidente da França Nicolas Sarkozy – STIGLITZ et. al., 2009.

297

escolhas individuais nas relações sociais em geral, e nas

econômicas em particular, são mediadas pelas instituições.

Como visto, essa mediação vai além da mera atribuição de

incentivos em face de preferências individuais pré-fixadas.447

Ao contrário, as preferências individuais são também uma

variável alterada pelas instituições econômicas. Ao se

considerar que o direito é meio de prescrição e controle de

comportamentos, a decorrência é que não apenas o direito afeta

as instituições econômicas, mas as instituições econômicas

afetam o direito.

Por conseguinte, a liberdade individual –

compreendida como o exercício de direitos de escolha

individuais448 - é constrangida institucionalmente. Esse

constrangimento se dá de três formas. Primeiro, pela limitação

das escolhas possíveis em razão das possibilidades abertas ou

implicitamente obscurecidas pelas instituições. Por exemplo,

um cidadão brasileiro de classe média pode optar entre

investir suas economias em uma poupança em um banco brasileiro

ou em ações na Bolsa de Valores de São Paulo, mas não pode

optar por investir na Bolsa de Valores de Nova Iorque. Um

cidadão brasileiro de classe alta, porém, pode também optar

por investir na Bolsa de Nova Iorque, pois seu maior poder

aquisitivo lhe dá acesso a instituições que o permitem fazê-

lo. O exemplo mostra que a liberdade individual do brasileiro

de classe média é constrangida, se comparada com a liberdade

individual do brasileiro de classe alta, e esse

constrangimento se dá pela limitação no acesso a instituições

447 Ver as contribuições da Economia Comportamental na análise da influência de fatores institucionais no comportamento - item 2.4 supra. 448 Sobre o papel do direito na proteção de direitos de escolha, ver item 2.1 supra.

298

– limitação essa que, no exemplo, está relacionada à renda,

mas também a outros fatores como educação (conhecimento do

idioma inglês), família (e.g., o filho de um brasileiro que já

trabalhou nos EUA poderá aproveitar o acesso que seu pai já

possui a instituições que viabilizem o investimento), etc.

Segundo, instituições podem sujeitar escolhas a

diferentes heurísticas e vieses cognitivos.449 Instituições

podem apresentar escolhas de modo a sistematicamente induzir

agentes a erros decorrentes do modo como as funções cognitivas

são exercidas pela mente. Isso significa que, nesses casos, as

escolhas não revelam as reais preferências do agente. O modelo

de agente racional – que sustenta a concepção do privado na

visão paradigmática – ignora os erros cognitivos e presume que

escolhas revelam as reais preferências.

Terceiro, instituições não mudam apenas

comportamentos, mas mudam também as preferências que

determinam esses comportamentos. Em outras palavras,

instituições influenciam não apenas aquilo que é escolhido,

mas também o que agentes querem escolher.

Cogitamos, desse modo, a possibilidade de que o

direito atue de forma a dar às instituições formas que

estimulam comportamentos não só por incentivos conscientemente

assimilados - como propõem as abordagens tradicionais de

Direito e Economia -, mas também pela influência que

instituições têm na formação subconsciente de preferências. A

perspectiva de que instituições jurídicas sejam usadas para

estimular a formação de preferências em nível subconsciente

pode parecer assustadora do ponto de vista da busca por

449 Ver item 2.4.4 supra.

299

autodeterminação. Todavia, a influência de instituições na

formação de preferências se dá pela ação do Sistema 1 – que,

como visto, não pode ser “desligado”.450 Isso significa que as

atuais instituições já nos influenciam quanto à formação de

nossas preferências, inclusive subconscientemente. Portanto,

ignorar o papel de instituições na formação de preferências é

um atentado ainda pior à autodeterminação.

Diante dessas considerações, cuidar da liberdade

individual não pode precindir da apropriação analítica do

papel de instituições na definição, constrangimento e

influência das escolhas que são postas aos indivíduos.

Instituições influenciam direitos de escolha, quer queiramos

ou não.

É todavia possível mudar as instituições e, com

isso, dar outra configuração a direitos de escolhas

individuais. Mas instituições não resultam da vontade

individual451 – e portanto não podem ser modificadas unicamente

por escolhas individuais. O que fazer se a preferência

individual for por opções que não são contempladas pelas

atuais instituições? Ou mesmo quando as condições

institucionais de escolha não forem as mais adequadas para que

as preferências individuais se manifestem?

Nessas condições, o fetichismo institucional pode

fazer da autodeterminação um mero jogo de cena, em que as

decisões que impliquem mudanças mais profundas são negadas aos

próprios indivíduos cuja escolha, retoricamente, se buscaria

450 Ver item 2.4 supra. 451 Ver a exposição feita na Introdução supra, em que identificamos que a ideia de instituição se refere a fatores exógenos à vontade individual, tal como argumenta GREIF, 2005.

300

privilegiar. Atrelarmo-nos a um conjunto de instituições em

decorrência do fetichismo institucional é assim obstaculizar a

possibilidade de escolher o novo. É amarrar a humanidade às

escolhas determinadas pelas instituições de seus antepassados.

A alternativa, nesses casos, é a mudança institucional, o que

só é possível pela ação política. Essa última conclusão vai ao

encontro da tese de que a liberdade individual não pode ser

descasada da liberdade coletiva, ou política. Essa tese é

defendida, por exemplo, por Hannah Arendt:

A conversão do cidadão das revoluções no indivíduo

privado da sociedade do século XIX tem muitas vezes sido

descrita, e geralmente nos termos da Revolução Francesa,

que falava de citoyens e bourgeois. Num plano mais

elaborado, podemos considerar este desaparecimento do

“gosto pela liberdade política” como a retirada do

indivíduo para um “domínio interior de consciência” onde

ele encontra a única “região apropriada da liberdade

humana”; desta região, tal como de uma fortaleza que se

desmorona, o indivíduo, tendo levado a melhor sobre o

cidadão, defender-se-á contra uma sociedade que, por sua

vez, “leva a melhor sobre a individualidade”.452

A síntese feita por Arendt nos permite ver que a

liberdade política – do citoyen, considerada como a

possibilidade de escolha entre diferentes instituições

sociais, atuais ou possíveis453 – não é apenas meio para

realização de projetos sociais. É meio para viabilizar a

própria liberdade individual – a do burgeois. Reconhecer a

autodeterminação implica não apenas dar ao homem o poder de

fazer escolhas individuais, mas também conferir-lhe o poder de

452 ARENDT, 2001, p. 172. 453 Essa definição se vale das ideias de Mangabeira Unger discutidas no item 2.1 supra.

301

mudar as escolhas que lhe são oferecidas e de superar suas

próprias limitações. É o que afirma Mangabeira Unger:

É o nosso mundo particular – o mundo que criamos pela

ação – o que podemos entender mais íntima e fielmente; o

resto da realidade nós dominamos apenas pela

extrapolação, que não podemos evitar e tampouco nela

confiar. Tendo feito nosso próprio mundo, podemos

refazê-lo. Podemos, como disse Marx, “fazer dançar as

circunstâncias cantando para elas sua própria melodia.”

[...]

Um dos serviços que a democracia presta à humanidade é

criar um clima mais favorável a tal exploração. Ela faz

isso tanto pelo ataque às formas extremas e

entrincheiradas de desigualdade, quanto por afirmar a

ideia da capacidade de homens e mulheres para

transformação e autotransformação.454

A visão paradigmática, e o próprio Pensamento

Jurídico Contemporâneo, se vinculam ao fetichismo de

instituições que assumem que a liberdade individual e o

exercício da política são necessariamente contrapostos. Essas

ideias se vinculam, nas relações econômicas, à concepção de

mercado como produto espontâneo da liberdade individual, e

limitam a autodeterminação a objetivos hedonistas manifestados

nas escolhas individuais que caracterizariam o mercado. Não

reconhecem que mercados são eles próprios produtos de escolhas

454 “It is our own world – the world we create through action – that we can understand more intimately and confidently; the rest of reality we master only by an overreaching that we cannot avoid and cannot trust. Having made our own world, we can remake it. We can, as Marx said, “make the circumstances dance by singing to them their own melody.” /§/ [...] Not the least service that democracy renders to humanity is to create a climate more favorable to such exploration. It does so both by its assault on the extreme and entrenched forms of inequality and by its espousal of the idea of the capacity of ordinary men and women fo transformation and self-transformation.” (UNGER, 2007a, p. 53 – tradução livre.)

302

humanas, e por isso sujeitos também à autodeterminação. E

desconsideram que a autodeterminação implica também reconhecer

aos indivíduos o direito a exercer escolhas que não sejam

egoístas. Reconhecer a liberdade e afirmar a autodeterminação

exige reconhecer o direito de escolher, por exemplo,

instituições baseadas em relações comunitárias. Exige também

afirmar o direito de que indivíduos manifestem escolhas

baseadas no bem-estar dos outros – ainda que em detrimento de

seu próprio bem-estar. Exige, enfim, abertura ao

reconhecimento de outras manifestações institucionais que não

sejam condizentes com as suposições de que indivíduos escolhem

racionalmente segundo preferências hedonistas.

Por isso, uma nova compreensão do papel do direito é

necessária, para substituir a visão paradigmática e ampliar as

possibilidades de efetivação de direitos de escolha individual

e política. Para tanto, essa nova visão deve se desvincular do

fetichismo institucional, o que significa abrir espaços para o

reconhecimento de mudanças institucionais e para a criação de

novas instituições, tanto como produto conjunto e espontâneo

de ações individuais, como da ação política conscientemente

mediada pelas instituições democráticas.

Essa nova visão sobre as relações entre direito e

economia deve ainda contemplar o papel de instituições

extramercados na alocação de recursos (produção, troca e

consumo de bens e serviços) e no suporte de outras

instituições extra e intramercados. Finalmente, deve também

considerar a influência recíproca entre comportamento e

instituições, abandonando a ideia de que seres humanos são

dotados de racionalidade absoluta, justamente para que possam,

por meio de instituições, superar suas limitações cognitivas e

dar melhor vazão a projetos individuais e também a projetos

comunitários.

303

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