o papel do estado na construção da economia e a...
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Universidade de Brasília – UnB
Faculdade de Direito
GABRIEL BOAVISTA LAENDER
O papel do Estado na construção da economia e a possibilidade do direito como
imaginação institucional
Brasília
Maio de 2014
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA FACULDADE DE DIREITO
O papel do Estado na construção da economia e a possibilidade do direito como imaginação institucional
Autor: Gabriel Boavista Laender Orientador: Prof. Dr. Marcus Faro de Castro
Tese a ser apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, área de concentração “Direito, Estado e Constituição”.
Brasília, 19 de maio de 2014.
GABRIEL BOAVISTA LAENDER
O papel do Estado na construção da economia e a possibilidade do direito como imaginação institucional
Tese a ser apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, área de concentração “Direito, Estado e Constituição”.
Aprovada em: 19 de maio de 2014.
BANCA EXAMINADORA ______________________________________ Prof. Dr. Marcus Faro de Castro (Presidente – FD/UnB)
______________________________________ Prof. Dr. Paulo José Leite Farias (Membro externo - IDP)
______________________________________ Prof.ª Dr.ª Patricia Borba Vilar Guimaraes (Membro externo - UFRN) ______________________________________ Prof. Dr. Márcio Nunes Iorio Aranha Oliveira (Membro interno – FD/UnB) ______________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana de Oliveira Frazão (Membro interno – FD/UnB)
Aos amigos, aos amores, aos
sabores e dissabores, aos risos e
prantos, aos silêncios e cantos,
aos erros e ao aprendizado, a toda
essa vida de estudante,
maravilhosa, que a Universidade de
Brasília me proporcionou.
A minha mãe Tereza Christina, pela
lição primeira de sonhar com os
pés no chão.
À Daniele, por todo o resto, por
todo o encanto, por estar ao meu
lado, por tudo o que importa: o
amor.
Agradecimentos
Não é pouca minha dívida, e são inúmeros os credores de
minha gratidão. Passados dezesseis anos desde que ingressei no
curso de bacharelado em Direito da Universidade de Brasília, me
vejo aqui, em momento para mim improvável, de defesa de uma tese
de doutorado. Fosse essa uma jornada solitária, eu não teria
chegado até este ponto culminante de minha vida acadêmica. As
ideias que estão aqui são emprestadas – roubadas, na verdade –
das muitas almas que acompanharam meu caminho. Minhas energias
sozinhas não me carregariam até aqui. Como estudante, sinto-me
não um indíviduo, mas uma construção coletiva.
Como ocorreu com muitos antes de mim, a tentativa de
enumerar a quem sou grato é inglória. Não são poucos os
agradecimentos de trabalhos como este meu, em que os autores se
escusam pelas inevitáveis ausências. Confesso que me conforta
saber, ao menos, que nessa falha encontro a boa companhia dos
que me antecederam.
Começo meus agradecimentos pela primeira escola, a
família. Minha mãe, Tereza Christina. Meu pai, Laerte. Meu
segundo pai, Luiz Otávio. Meus irmãos, Pedro e João. Minha avó
Therezinha. Minha avó Eurydice. Minha avó emprestada, Nely.
Minha tia emprestada, Maria Cláudia. Meus primos Alexandre,
Daniel e Guilherme. Meu saudoso tio Marcos. Meus tios Alberto,
Roberto, Juliana e Teresa Helena. Meus muitos outros primos de
muitos graus e tios-avôs. Meus primos e tios emprestados. Meus
sogros, Maria Lígia e Vicente. Minha irmã-cunhada, Maria Lúcia.
Meu amor, Daniele. Obrigado por me acolher, por me fazer
crescer, por me dar uma infância, por me aguentar adolescente,
por me acompanhar adulto.
A outra escola que tive foi extensão da família, os
amigos que me acompanham e aguentam desde a infância e a
adolescência, e que buscaram e buscam fazer de mim uma pessoa
melhor – com limitado sucesso, é preciso reconhecer, apesar do
generoso esforço. Da Octogonal 7: Guilherme, Santiago, Dedé,
Tiago, Gueta, Fred, Marina, Tani, Iuri e todos que quartas e
sábados praticavam o ritual sagrado do basquete. Aos amigos que
a vida nos fez desencontrar, mas que muito construíram comigo:
Bruno Learth, Rafael, Maria Carolina, Natasha, José Bernardo,
Vladimir. A Szilvia, pelo primeiro amor, e a Mariánn, Adél,
Gábor e Marta. Aos amigos eternos, Vitor Lima, Gustavo Kaufmann,
Vinicius Goulart, Fernanda Quirino, Ricardo Pierre, Gierck
Medeiros, Artur Coimbra, Pedro Virgolino – vocês têm um lugar
especial no meu coração. Obrigado por me darem energia, por me
desafiarem, por estarem comigo.
Tive também a graça do estímulo imenso que foi conviver
com colegas brilhantes na graduação e pós-graduação da UnB.
Agradeço a todos os colegas pelo debate, pelo inconformismo,
pelas contradições e pela inspiração. Faço especial homenagem
aos colegas do Grupo de Estudos em Direito das Telecomunicações.
Vai aqui também o agradecimento aos colegas de trabalho
da Levy e Salomão, da Agência Nacional de Energia Elétrica, da
Agência Nacional de Telecomunicações e da Procuradoria-Geral do
Estado do Espírito Santo. Agradeço especialmente a experiência
inacreditável que foi trabalhar na Secretaria de Assuntos
Estratégicos – José Romão, Marcos Toscano, Pedro Lucas, Gustavo,
Ricardo, Daniel Vargas, ter trabalhado com vocês mudou tudo.
Agradeço ainda ao grupo fantástico que trabalhou no Plano
Nacional de Banda Larga comigo, quando eu estava na Casa Civil:
Cezar Alvarez, Elisa, José Gontijo, Nelson, Paulo Kapp, Ronald.
Obrigado por compartilharem sua sabedoria e serem generosos com
as minhas falhas.
Por fim, aos professores. Aos docentes de primeiro e
segundo grau (ainda se chamava assim), que me deram a base para
alçar voos mais longos. Aos docentes da UnB que mostraram um
mundo novo muito além do dogmatismo do vestibular. Ao saudoso
Carlos Eduardo Vieira de Carvalho, pela generosidade, pelo
exemplo, por abrir os caminhos que possibilitaram que eu
pesquisasse os temas que vieram a desaguar nesta tese. A Márcio
Nunes Iório Aranha de Oliveira, que não apenas me orientou na
graduação e no mestrado, mas fez de mim um humanista. E ao meu
orientador, Marcus Faro de Castro, que tornou este trabalho uma
realidade.
Obrigado a todos vocês.
“Tudo no mundo começou com um sim.
Uma molécula disse sim a outra
molécula e nasceu a vida. Mas
antes da pré-história havia a pré-
história da pré-história e havia o
nunca e havia o sim. Sempre houve.
Não sei o que, mas sei que o
universo jamais começou.”
(A hora da estrela. Clarice
Linspector)
Resumo
A atuação do direito na economia costuma se pautar pelo debate sobre se deve a política econômica propiciar a defesa ou a limitação da influência do Estado na economia. Mas na medida em que se considere que não há economia independente do Estado, o debate sobre a presença do Estado na economia necessita de reformulação. Este trabalho busca explorar como a reformulação desse debate impacta a forma como pensamos a atuação do direito na política econômica, para admitir a influência de manifestações jurídicas de cunho estatal na formação de mercados e de outras instituições econômicas. Inicialmente, o capítulo 1 busca uma genealogia do atual paradigma de atuação do direito na economia, com base na divisão proposta por Duncan Kennedy acerca de três modos globalizados de pensamento jurídico: o Clássico, o Social e o Contemporâneo. Caracterizamos o paradigma por duas pré-concepções centrais: a de que o "mercado" seria um fenômeno social espontâneo, e a de que relações privadas que compõem a economia se caracterizariam pela escolha racional individual. O capítulo 2 segue para criticar o fetichismo institucional do Pensamento Jurídico Contemporâneo, com base na proposição de Roberto Mangabeira Unger de que o direito deve servir para a construção das múltiplas possibilidades institucionais abertas pelas sociedades democráticas. Problematiza, em seguida, as duas pré-concepções do paradigma, que reputamos correspondentes às visões de mundo da Economia Clássica e da Economia Neoclássica. O trabalho faz referência à análise de Ronald Coase que evidencia o papel de instituições intramercados e extramercados na economia. Após, a tese aborda as ideias de autores ligados à Economia Comportamental para questionar a ideia de que relações econômicas dentro de mercados são necessariamente expressão de escolhas individuais racionais. Tais contrapontos às duas ideias pressupostas pela visão paradigmática servem para explorar as possibilidades de uma compreensão alternativa das relações entre direito e economia. O capítulo 2 então se encerra propondo que o direito serve de suporte às instituições econômicas intra e extramercados, ao que faz correspondência com os termos propostos pela Análise Jurídica da Política Econômica de Marcus Faro de Castro. O capítulo 3 segue com dois estudos de casos que ilustram a omissão da visão paradigmática quanto ao papel de atividades e instituições extramercado na alocação de recursos, a interdependência entre instituições extramercado e instituições de mercado na estruturação das relações econômicas, e ao importante papel de instituições jurídicas na formação e
modificação das instituições econômicas. Os casos estudados são a quebra do monopólio da AT&T (American Telephone and Telegraph Corporation) na telefonia de longa distância nos EUA e a criação e implementação da ARPANET, a rede de computadores que daria ensejo à Internet. Ao final, o trabalho conclui pela necessidade de dar nova dimensão ao papel do direito na economia, enfatizando a possibilidade desse servir de instrumento de imaginação institucional para viabilizar a inserção econômica de grupos de interesses até então alijados socialmente e excluídos do ponto de vista da fruição de direitos fundamentais.
Palavras-chaves: Direito e Economia. Direito Econômico. Direito Administrativo. Mercado. Instituições econômicas. Imaginação institucional.
Abstract
The role law plays in the economy is usually purviewed within the boundaries of the debate on whether economic policy should or should not provide for a greater influence of the State in the economy. But provided we consider that there is no economy independent of the State, it follows that the debate regarding the presence of the State in the economy requires reformulation. This thesis seeks to explore how such a reformulation affects the way we think about law and economic policy in order to consider the influence of legal manifestations of the State in the formation of markets and other economic institutions. At first, chapter one seeks a genealogy of the current paradigm regarding law’s operation in the economy based on Duncan Kennedy’s division of three modes of legal thought: Classical, Social and Contemporary. We characterize the paradigm by two central pre-conceptions: that the “market” is an espontaneous social phenomenom, and that the private relations that comprise the economy are characterized by individual rational choice. Chapter two follows to criticize Comtemporary Legal Thought´s institutional fetichism, based on the proposition made by Roberto Mangabeira Unger that law should uphold the creation of multiple institutional possibilities opened by democratic societies. This work then puts into question the two pre-conceptions of the paradigm, which we regard as correspondent to the world views of Classical and Neoclassical Economics. The thesis ensues by referencing the analysis by Ronald Coase that brings into light the role of intramarket and extramarket institutions in the economy. Later, this work explores ideas of authors related to Behavioral Economics so to question the idea that economic relations within markets are necessarily the outcome of rational individual choices. Such counterarguments to those two ideas assumed by the paradigmatic purview serve to explore the possibilities of an alternative understanding of the relations between law and the economy. Chapter two then wraps up by proposing that law acts as support of intra and extramarket economic institutions, thus agreeing with the general propositions of Marcus Faro de Castro’s Legal Analysis of Economic Policy. Chapter three ensues with two case studies that illustrate the paradigmatic purview’s omission regarding the role of extramarket activities and institutions in resource allocation, the interdependency of extramarket and intramarket institutions in structuring economic relations, and the important role of legal institutions in the formation and
transformation of economic institutions. Cases studied are the divestiture of AT&T (American Telephone and Telegraph Corporation) and the end of its monopoly on long distance telephony in the USA, and the creation and deployment of ARPANET, the computer network that preceded the Internet. At the end, this work concludes towards the necessity of a new dimension to law’s role in the economy, which emphasizes the possibility of law serving as instrument to institutional imagination in order to accomplish economic inclusion of interest groups that are hitherto socially hindered and excluded from the point of view of the fruition of basic rights. Keywords: Law and Economics. Economic Law. Administrative Law. Market. Economic Institutions. Institutional Imagination.
Lista de ilustrações
Figura 1 - Elementos conceituais de "instituição", segundo Avner
Greif (2005) .............................................. 27
Figura 2 - Períodos da globalização do pensamento jurídico
segundo Duncan Kennedy .................................... 41
Figura 3 - Principais narrativas brasileiras sobre direito e
economia no Pensamento Jurídico Contemporâneo ............. 91
Figura 4 - Atuação do direito na economia segundo o Direito
Administrativo majoritário ............................... 101
Figura 5 - A atividade econômica segundo Eros Grau ........... 108
Figura 6 - Instituições econômicas identificadas em Coase (1960)
......................................................... 197
Figura 7 - Exemplo visual do efeito do contexto na
acessibilidade ........................................... 216
Figura 8 - Instituições econômicas segundo Marcus Faro de Castro
......................................................... 247
Figura 9 - Estrutura institucional da telefonia de longa
distância em 1960 nos EUA ................................ 254
Figura 10 - Estrutura institucional da telefonia de longa
distância em 1980 nos EUA ................................ 265
Figura 11 - Estrutura institucional da telefonia de longa
distância em 1984 nos EUA ................................ 271
Figura 12 - Redes em estrela (centralizadas e descentralizadas)
vs. redes distribuídas ................................... 282
Figura 13 - Estrutura institucional envolvida na criação da
ARPANET .................................................. 288
Lista de tabelas
Tabela 1 - Modos de pensamento jurídico e sua contribuição para
a visão paradigmática sobre direito e economia ........... 147
Tabela 2 - Utilidade marginal em razão da riqueza (exemplo
hipotético) .............................................. 205
Tabela 3 - Padrão quaternário da teoria da perspectiva ....... 208
Tabela 4 - Dois sistemas cognitivos .......................... 213
Sumário
Agradecimentos ................................................. 5
Resumo ......................................................... 9
Abstract ...................................................... 11
Introdução .................................................... 19
Capítulo 1 – O direito como interferência externa à economia:
genealogia e análise de um paradigma .......................... 35
1.1. As três globalizações do pensamento jurídico segundo
Duncan Kennedy e as narrativas jurídicas brasileiras sobre
direito e economia .......................................... 35
1.2. O Pensamento Jurídico Clássico (1850-1914) e a ideia de
racionalidade como delimitadora da divisão entre direito
público e direito privado ................................... 43
1.3. O Pensamento Jurídico Social (1900-1968) e estruturação do
Direito Administrativo e do Direito Econômico brasileiros ... 68
1.4. O Pensamento Jurídico Contemporâneo (1945-2000) e sua
apropriação pelo Direito brasileiro ......................... 87
1.4.1. Direito Administrativo e Direito Econômico majoritários
............................................................ 91
1.4.2. Constituição Dirigente .............................. 111
1.4.3. Estado Regulador .................................... 118
1.4.4. Análise Econômica do Direito ........................ 137
1.5. As contribuições dos três modos de pensamento na formação
e consolidação da visão paradigmática sobre direito e economia
........................................................... 147
Capítulo 2 - A construção jurídica da economia: releituras do
papel do direito ............................................. 153
2.1. Fetichismo institucional e a oportunidade perdida da
imaginação de instituições: a crítica de Mangabeira Unger ao
Pensamento Jurídico Contemporâneo .......................... 158
2.2. A fundamentação da Economia clássica e da Economia
neoclássica acerca dos pressupostos adotados pela visão
paradigmática sobre direito e economia ..................... 165
2.3. A refutação da ideia de que mercados surgem
espontaneamente das relações privadas, segundo o
neoinstitucionalismo de Ronald Coase ....................... 181
2.4. A refutação da ideia de que relações privadas se
caracterizam pela escolha racional individual, segundo a
Economia Comportamental (Behavioral Economics) ............ 200
2.4.1. Teoria da perspectiva (Prospect theory): uma outra visão
sobre a racionalidade na tomada de decisões ................ 201
2.4.2. O efeito dotação (endowment effect): invalidação do
teorema de Coase a partir da teoria da perspectiva ......... 209
2.4.3. Os dois sistemas cognitivos e a influência do raciocínio
intuitivo na tomada de decisões ............................ 213
2.4.4. Contraposição da Economia Comportamental à Economia
Neoclássica ................................................ 220
2.4.5. O papel das instituções na distinção entre relações de
mercado e relações comunais ................................ 228
2.5. A influência do direito nas instituições econômicas,
segundo a Análise Jurídica da Política Econômica de Marcus Faro
de Castro .................................................. 238
Capítulo 3 - Estudos de casos: a influência do Estado na
telefonia de longa distância e na criação da Internet ........ 250
3.1. Análise do papel do Estado na abertura do mercado de
telefonia nos EUA entre 1960 e 1996 ........................ 251
3.2. Análise das relações de coordenação entre instituições
estatais e não estatais na implementação da ARPANET ........ 272
3.3. Conclusões dos estudos de casos ....................... 290
Conclusão .................................................... 293
Bibliografia ................................................. 304
Livros, periódicos e artigos ............................... 304
Material audiovisual ....................................... 320
19
Introdução
Há decerto uma multiplicidade de nuances no rico
debate político e teórico sobre a atuação do Estado na
economia. Não obstante, para os fins dessa exposição inicial,
arriscaremos uma síntese. O debate sobre política econômica1
costuma gravitar entre duas posturas. De um lado, advoga-se a
influência do Estado na economia como algo desejável e
necessário. De outro, defende-se o oposto: a limitação do
Estado como a opção mais desejável, como meio de evitar que a
liberdade individual sofra interferência estatal. Ambas
posturas trazem implícita a pré-concepção de que existe (ao
menos em possibilidade, ainda que não manifestada no mundo
real) uma economia que seria imune à influência estatal, e que
seria expressão da livre escolha individual. Assim, a questão
seria saber se seriam desejáveis ou não os resultados dessa
economia pautada unicamente pela livre escolha individual. O
Estado, nesse debate, aparece como um terceiro, que pode ou
não interferir nas escolhas individuais na economia. Desse
modo, a primeira postura – que defende a influência do Estado
– teria como fundamento a existência de resultados
indesejáveis de uma economia formada unicamente por escolhas
1 Adotaremos a definição de política econômica feita por Marcus Faro de Castro: “conjunto de regras politicamente instituídas que organizam a produção, a troca e o consumo na vida social” (CASTRO, 2009, p. 22). 2 A noção de paradigma aqui utilizada é a formulada por Kuhn: “In this essay, ‘normal science’ means research firmly based upon one or more past scientific achievements, achievements that some particular scientific community acknowledges for a time as supplying the foundation for its further practice. Today such achievements are recounted, though seldom in their original form, by science textbooks, elementary and advanced. […] Before such books became popular early in the nineteenth century (and until
20
individuais. Por sua vez, a segunda postura – que defende a
limitação do Estado – tomaria por base a ideia de que os
resultados de uma economia baseada unicamente em escolhas
individuais seriam os melhores possíveis. Ambas posturas, não
obstante advoguem prescrições opostas, compartilham uma mesma
ideia, a de que é possível, ainda que em tese, falar em uma
economia resultante unicamente de escolhas individuais. Mas -
seja na realidade, seja apenas como construção teórica - há
economia independente do Estado?
Essa pergunta leva a outro debate, diverso do
descrito no parágrafo anterior. Esse outro debate, que
entendemos obscurecido, é relevante para o pensamento sobre as
políticas econômicas. Pois se há de fato uma clara distinção
entre os âmbitos do Estado e da economia, o debate sobre maior
ou menor presença do Estado na economia faz sentido e é
relevante nos termos acima relatados. Mas se a distinção entre
Estado e economia não é tão clara, se não há economia
independente do Estado, o debate sobre a presença do Estado na
economia necessita de reformulação. Essa reformulação
impactaria a forma como pensamos a política econômica e
influenciaria tanto a prática, como o estudo, de temas e áreas
relevantes para a economia e suas relações com o Estado. Um
desses temas é atuação do direito na política econômica.
Esta tese busca explorar como uma tal reformulação
da visão sobre as relações entre Estado e economia implicaria
a necessidade de revisão da forma como o direito atua e
compreende sua atuação na economia. Nesses termos,
defenderemos no curso deste trabalho que, com efeito, existe
uma pré-concepção sobre as relações entre Estado e economia
21
que: 1) é paradigmática2 hoje no direito brasileiro; 2) limita
o surgimento de novas políticas econômicas e novos
instrumentos jurídicos baseados nas possibilidades decorrentes
da compreensão das interações entre Estado e economia; 3)
frustra a realização da democracia em seu objetivo de
libertação da condição humana frente ao determinismo social e
material, na medida em que constrange a imaginação política às
opções decorrentes do conjunto, contingente e transitório, de
instituições que hoje existem.
Todavia, alternativa à visão paradigmática acima
descrita, há a visão de que economia e Estado não são
independentes. Ao contrário, economia e Estado são resultado
de uma teia de instituições que, a cada época, em cada
sociedade, em cada país, assume configurações diversas. Nessa
visão, a atividade econômica não acontece no vazio
institucional. Instituições importam - pois contrangem,
delimitam e pautam uma dada economia. Do ponto de vista
institucional, o direito figura em posição diversa da de mero
instrumento de justificativa, ou limitação, da intervenção do
2 A noção de paradigma aqui utilizada é a formulada por Kuhn: “In this essay, ‘normal science’ means research firmly based upon one or more past scientific achievements, achievements that some particular scientific community acknowledges for a time as supplying the foundation for its further practice. Today such achievements are recounted, though seldom in their original form, by science textbooks, elementary and advanced. […] Before such books became popular early in the nineteenth century (and until even more recently in the newly matured sciences), many of the famous classics of science fulfilled a similar function. […] They were able to do so because they shared two essential characteristics. Their achievement was sufficiently unprecedented to attract an enduring group of adherents away from competing modes of scientific activity. Simultaneously, it was sufficiently open-ended to leave all sorts of problems for the redefined group of practitioners to resolve./§/ Achievements that share these two characteristics I shall henceforth refer to as ‘paradigms’, a term that relates closely to ‘normal science’.” (KUHN, 1996, posição 274/3697 – grifos ausentes no original - Obs: na edição utilizada, como em algumas outras edições para o Kindle, da Amazon, a paginação da edição original é substituída pela indicação de posição (position) própria do Kindle.)
22
Estado na economia. Seja pela ação de instituições jurídicas,
seja pela inação dessas instituições, o direito exerce função
relevante na construção, manutenção e modificação da teia de
relações institucionais que formam uma dada economia.
Falar do papel institucional do direito na economia
esbarra no fato que o vocábulo “instituição” não é poupado da
multiplicidade conotativa que sói acometer os termos
acadêmicos. Com efeito, as principais referências teóricas que
serão adotadas neste trabalho no que concerne à análise de
instituições partem de pontos de vista distintos em suas
análises sobre as instituições e seus papéis. Se nos
referirmos apenas ao chamado neoinstitucionalismo – termo que
designa abordagens representativas da Ciência Política a
partir dos anos 1980 -, podemos identificar, com base em Peter
Hall e Rosemary Taylor (2003), três correntes distintas:
institucionalismo histórico, institucionalismo de escolha
racional e institucionalismo sociológico. Cada uma dessas
correntes explica de maneira diversa o surgimento de
instituições, a mudança institucional e a influência de
instituições no comportamento humano.3
Os teóricos do institucionalismo histórico, segundo
Hall e Taylor, se caracterizam primeiramente por considerar
que as instituições afetam o comportamento de indivíduos não
apenas por fornecer “informações úteis de um ponto de vista
estratégico”4 para o tomador de decisão, mas também por
envolvê-los em um “mundo composto de símbolos, de cenários e
de protocolos que fornecem filtros de interpretação,
aplicáveis à situação ou a si próprio, a partir das quais se
3 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, p. 194. 4 HALL e TAYLOR, 2003, p. 198.
23
define uma linha de ação.”5 É ainda característica dessa
corrente a ênfase em como instituições repartem o poder de
maneira desigual entre grupos sociais, de forma a privilegiar
certos interesses ao conferir-lhes acesso privilegiado ao
processo de decisão. O institucionalismo histórico, assim,
enfoca a influência de instituições no processo de tomada de
decisões estratégicas de grupos de interesses – e não no
processo individual de escolha.6 Instituições, para essa
corrente, se modificam em cada contexto local, e a herança
institucional delimitaria e serviria de ponto de partida para
o desenvolvimento – formando assim um caminho ou trajetória de
que o caminhar histórico seria dependente (em inglês: path
dependency).7 Essa trajetória somente seria rompida por
situações críticas – em especial crises econômicas e guerras -
, que forçariam a mudança ou o surgimento de instituições e,
assim, gerariam novos caminhos a serem percorridos.8
Outra corrente identificada por Hall e Taylor é o
institucionalismo da escolha racional. Ao contrário do
institucionalismo histórico, o institucionalismo de escolha
racional enfatiza a influência das instituições nos processos
de escolha individuais. A vida política é considerada “uma
série de dilemas de ação coletiva.”9 Esses dilemas são,
contudo, resolvidos por escolhas individuais dos atores
envolvidos, que atuam para satisfazer suas preferências.10 Por
isso, têm o risco de produzir resultados sub-ótimos para a
5 HALL e TAYLOR, 2003, p. 198. 6 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, p. 200. 7 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, p. 201. 8 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, pp. 201-202. 9 HALL e TAYLOR, 2003, p. 205. 10 O institucionalismo da escolha racional usa, nesse sentido, pressupostos da Economia Neoclássica no que concerne ao comportamento de agentes individuais para a satisfação de suas preferências. Para um detalhamento desses pressupostos da Economia Neoclássica, ver o item 2.2 adiante.
24
coletividade – assim considerados como a situação em que seria
possível encontrar “outro resultado que satisfaria melhor um
dos interessados sem que qualquer outro saísse lesado.”11 Esses
resultados sub-ótimos seriam fruto especialmente de “custos de
transação”12 envolvidos em dilemas coletivos, assim
considerados como os pertinentes à coordenação de múltiplos
atores, à gestão da assimetria de informação, entre outros.
Instituições, nesse enfoque, são arranjos criados pelos atores
envolvidos em um dado processo decisório com o objetivo de
diminuir custos de transação em dilemas de ação coletiva.13
Finalmente, Hall e Taylor identificam o
institucionalismo sociológico. Como primeira característica,
teóricos dessa escola definem instituições de forma mais ampla
do que fazem os das outras duas correntes, “incluindo não só
as regras procedimentos ou normas formais, mas também os
sistemas de símbolos, os esquemas cognitivos e os modelos
morais que fornecem padrões de significação que guiam a ação
humana.”14 Esse enfoque considera cultura como sinônimo de
instituições, de modo a reputar que aquela é “uma rede de
hábitos, de símbolos e de cenários que fornecem modelos de
comportamento.”15 Sob esse viés, instituições influenciam o
comportamento não apenas quanto ao cálculo estratégico de
indivíduos para o atendimento de suas preferências – como
considera a corrente da escolha racional -, mas também quanto
à imagem de si e à identidade dos atores, “elas mesmas vistas
11 HALL e TAYLOR, 2003, p. 205. 12 Trataremos dos custos de transação adiante, no item 2.3. 13 Cf. HALL e TAYLOR, 2003, pp. 206-207. 14 HALL e TAYLOR, 2003, p. 209. 15 HALL e TAYLOR, 2003, p. 209.
25
como sendo constituídas a partir das formas, imagens e signos
institucionais fornecidos pela vida social.”16
Não obstante as diversas correntes
institucionalistas, é possível identificar um conteúdo mínimo
comum às diversas definições sobre instituições, como afirma o
economista Avner Greif. Ao invés de tratar as diversas
definições de instituição como excludentes, a busca desse
conteúdo mínimo comum permite, tal como defende Greif, que as
diversas questões atinentes ao papel de instituições na
economia sejam abordadas por perspectivas multidisciplinares e
multidimensionais.17 Em outras palavras, uma abordagem
interdisciplinar deve superar, tanto quanto possível, a busca
de um conceito unívoco de instituição. Ao contrário, deve
contemporizar visões diferentes para que resultados mais
significativos possam ser alcançados.18 Nesse sentido, é
significativo que, nos textos que serão analisados nesta tese,
nenhum dos autores citados – exceto, como veremos, o próprio
Avner Greif - tenha se ocupado em definir formalmente o termo
“instituição”. Ao contrário, os autores preferiram se ocupar
da análise das consequências da presença de instituições nas
relações sociais em geral, e econômicas em particular. Não
obstante, afirmar o conteúdo mínimo de concordância de que
16 HALL e TAYLOR, 2003, p. 210. 17 GREIF, 2005, p. xii. 18 Essa visão converge com a de Hall e Taylor, que declaram que sua tentativa de identificar as diferentes correntes do neo-institucionalismo não visa a mantê-las estanques, mas sim a possibilitar trabalhos que as interrelacionem: “O presente artigo busca sugerir que é tempo de intensificar os intercâmbios entre essas diferentes escolas. No mínimo, sugerimos que um melhor conhecimento recíproco permitiria aos praticantes de cada uma delas perceber melhor as questões subjacentes ao seu próprio paradigma. [...] Nenhuma dessas escolas parece ir em má direção, ou ter em sua base postulados profundamente errôneos. No mais das vezes, cada uma parece suprir uma explicação parcial das forças ativas numa situação dada, ou exprimir dimensões diferentes do comportamento humano e do impacto das instituições.” (HALL e TAYLOR, 2003, pp. 219-220).
26
fala Greif é útil para evidenciar o propósito da análise que
pretendemos fazer.
Greif identifica inicialmente duas abordagens
distintas – a perspectiva de agência (agency perspective) e a
perspectiva estrutural (structural perspective). A perspectiva
da agência enfatiza o papel da ação individual na formação de
instituições, ao que considera que estas são “reflexos das
ações humanas e processos sociais e são postuladas para não
irem além das condições que levaram a seu surgimento.”19 A
perspectiva estrutural, por sua vez, enfatiza que instituições
não refletem necessariamente as necessidades e possibilidades
dos agentes, mas conformam essas necessidades e
possibilidades. Sob essa perspectiva, “instituições estruturam
interações humanas, moldam indivíduos e constituem os mundos
social e cultural em que aqueles interagem.”20 Essas duas
perspectivas enfatizam pontos de vista contraditórios, mas
Greif identifica pontos em comum:
Todas as definições acima se relacionam às implicações
comportamentais dos fatores sociais: fatores não-físicos
construídos pelo homem, que são exógenos a cada
indivíduo cujo comportamento aqueles influenciam.
Exemplos desses fatores incluem crenças compartilhadas
acerca das relações entre comportamento e resultados,
normas internalizadas, sistemas cognitivos, regras
socialmente articuladas e distribuídas, e organizações
formais e informais (estruturas sociais). [...] É
portanto apropriado definir uma instituição,
grosseiramente, como um sistema de tais fatores sociais
(“elementos institucionais”) que conjuntamente geram uma
regularidade de comportamento. Uma instituição motiva,
19 GREIF, 2005, p. xi. 20 GREIF, 2005, p. xi.
27
viabiliza e guia indivíduos com posições sociais
particulares a seguir uma regra de comportamento dentre
as muitas viáveis tecnologicamente.21
Há três elementos do conceito de Greif, ilustrados
na Figura 1 abaixo. Podemos, a partir desses elementos,
parafrasear Greif para construir a seguinte definição:
instituição é o conjunto de fatores construídos socialmente
pelo homem, mas exógenos aos indivíduos, que geram uma
regularidade de comportamento.
Figura 1 - Elementos conceituais de "instituição", segundo Avner Greif (2005)
Fonte: elaboração do autor.
A exposição de Greif evidencia que instituições são
tanto produto, como causa das ações humanas. Onde existe
atividade humana socialmente organizada, existem instituições.
Aplicada ao tema desta tese, falar em instituições econômicas
é falar que ações individuais ao mesmo tempo em que determinam
uma dada economia, são determinadas pelas instituições que
21 “All the above definitions relate to the behavioral implications of social factors: man-made, nonphysical factors that are exogenous to each individual whose behavior they influence. Examples of such factors include shared beliefs regarding the relationships between behavior and outcomes, internalized norms, cognitive systems, socially articulated and distributed rules, and forma an informal organizations (social structures). [...] Hence, it is appropriate to define an institution, roughly speaking, as a system of such social factors (“institutional elements”) that conjointly generate a regularity of behavior. An institution motivates, enables, and guides individuals with particular social positions to follow one rule of behavior among the many technologically feasible ones.” (GREIF, 2005, pp. xii-xiii – tradução livre, grifo ausente do original.)
Instituição é um conjunto de fatores sociais…
…construídos socialmente pelo homem (1)
…exógenos à vontade individual (2)
…que geram regularidade de comportamento (3)
28
caracterizam essa economia. Essa visão, evidentemente, é
radicalmente oposta à ideia que uma dada economia é, ainda que
apenas no plano teórico, fruto exclusivamente de escolhas
individuais. Nessa visão, o Estado é parte da teia de
instituições que influenciam as escolhas individuais. Não há
economia no vazio institucional. Por isso, diferentes
configurações institucionais resultam em diversos tipos de
Estado e em diversos tipos de economia.
Entre os diversos tipos possíveis de economia, as
chamadas economias de mercado possuem especial relevância, na
medida em que se tornaram predominantes desde o século
passado. As características típicas de economias de mercado
são destacadas no seguinte trecho de Karl Polanyi:
Todas as transações se tornam transações monetárias e
estas, a seu turno, requerem que um meio de troca seja
introduzido para cada articulação da vida industrial.
Todas as rendas devem derivar da venda de alguma coisa
ou outra, e qualquer que seja a efetiva fonte de renda
de uma pessoa, ela deve ser considerada como produto de
uma venda. Nada menos se implica com o uso do termo
“sistema de mercado”, pelo que designamos o padrão
institucional descrito. Mas a peculiaridade mais
impressionante do sistema está no fato de que, uma vez
estabelecido, ele deve ser deixado funcionar sem
interferência externa. [...] Um tal sistema de mercados
auto-regulado é o que queremos designar por economia de
mercado.22
22 “All transactions are turned into money transactions, and these in turn require that a medium of exchange be introduced into every articulation of industrial life. All incomes must derive from the sale of something or other, and whatever the actual source of a person’s income, it must be regarded as resulting from sale. No less is implied in the simple term “market system”, by which we designate the institutional pattern described. But the most startling peculiarity of the system lies in the fact that,
29
Atente-se para a distinção que Polanyi faz entre
mercados e economia de mercado. Os mercados são, diz Polanyi,
“instituições bastante comuns desde a Idade da Pedra.”23 O fato
que marcadamente distingue a sociedade ocidental contemporânea
daquelas que a precederam não é a existência de mercados, mas
o fato de que relações econômicas autorreguladas com base no
ganho ocupam papel central na economia e nas relações sociais
como um todo.24 Segundo Polanyi, em uma economia de mercado as
relações econômicas têm a peculiaridade de se organizarem em
um sistema que, uma vez estabelecido, deve ser deixado
funcionar sem interferência externa. Essa “ausência de
interferência externa”, contudo, não é um fato natural,
tampouco o resultado inevitável da evolução sociedade
contemporânea. Ao contrário, é uma circunstância social e
cultural específica. Com isso se quer dizer que, fossem outras
as instituições contemporâneas, fossem outras as relações
entre essas instituições, a ausência do “sistema de mercados”
poderia nos parecer tão natural quanto é hoje sua existência.
E entre as instituições que ensejam a existência de economias
de mercados está o Estado. O Estado não é um elemento de
intervenção de uma economia de mercado que, de outro modo,
existiria sozinha. O Estado – ou melhor, uma configuração
específica de Estado – está entre as instituições cuja
once it is established, it must be allowed to function without outside interference. [...] Such a self-regulating system of markets is what we mean by a market economy.” (POLANYI, 2001, pp. 43-44 – tradução livre.) 23 POLANYI, 2001, p. 45. 24 Sobre a singularidade da sociedade ocidental contemporânea na organização sob uma economia de mercado, Karl Polanyi afirma: “Market economy implies a self-regulating system of markets; in slightly more technical terms, it is an economy directed by market prices and nothing but market prices. [...] No society could, naturally, live for any lenght of time unless it possessed an economy of some sort; but previosly to our time no economy has ever existed that, even in principle, was controlled by markets.” (POLANYI, 2001, p. 45.)
30
existência permite que uma economia de mercado se implemente
em uma dada sociedade. Diante dessas considerações, propomos
que é mais significativo evidenciar a relevância da ação
estatal na implementação de mercados e na viabilização da
autossuficiência atribuída a mercados nas relações econômicas,
do que evidenciar uma suposta titularidade – estatal ou
privada – das atividades econômicas, como faz a visão
paradigmática.
Todavia, para que se chegue a essa conclusão, é
preciso retomar a discussão quanto à existência no direito
brasileiro de um paradigma que enxergue as relações econômicas
com base em uma divisão entre âmbitos de atuação do Estado e
dos particulares. Para tanto, o capítulo 1 desta tese irá
tentar mapear as visões e correntes que compõem, no direito
brasileiro, o que chamamos de visão paradigmática. A forma
escolhida para tanto foi, com base na classificação de modos
de pensamento jurídico globalizados proposta por Duncan
Kennedy, buscar organizar uma genealogia das principais
correntes do pensamento jurídico. Ao invés de servir a uma
busca das origens do paradigma, a genealogia proposta visa a
organizar ideias centrais compartilhadas, analisar seus
fundamentos e identificar interrelações, de modo a evidenciar
pontos de transição entre novas e velhas compreensões sobre o
direito. Ao final desse capítulo, o objetivo é mostrar que há
efetivamente um paradigma compartilhado pelas principais
correntes em voga no direito brasileiro. O paradigma, o
descrevemos a partir de duas pré-concepções centrais: a de que
o "mercado" seria um fenômeno social espontâneo, e a de que
relações privadas que compõem a economia se caracterizariam
pela escolha racional individual. Esse paradigma,
defenderemos, é adotado tanto pelas correntes que advogam
caber ao direito assegurar a substituição da dita ordem
"natural” da economia por uma ordem estatal “interventiva”,
31
quanto pelas correntes que defendem o oposto - proteger tal
ordem "natural" contra a ingerência do Estado.
No capítulo 2, será apresentada e debatida a tese de
que o Estado é um dos elementos centrais de construção da
economia. Assim, ao contrário do que estabelece a visão
paradigmática, o capítulo explorará a visão de que as
instituições estatais constróem a economia e, por isso, podem
ser utilizadas para modificar as relações econômicas “por
dentro”. Sob essa perspectiva, se no capítulo 1 o objetivo foi
o mapeamento das principais correntes do pensamento jurídico
paradigmático, o capítulo 2 se concentra em criticar as duas
ideias centrais pressupostas pelo paradigma comum àquelas
correntes. Com essa crítica, buscamos dar nova dimensão ao
papel do direito na economia. Para tanto, o capítulo inicia
expondo a visão de Roberto Mangabeira Unger acerca do papel do
direito em sociedades democráticas. Mangabeira, tal como
Duncan Kennedy, é um autor ligado ao Critical Legal Studies e
que se posiciona de forma crítica ao que Kennedy denomina de
Pensamento Jurídico Contemporâneo. Com base em Mangabeira,
defenderemos que o direito possui papel de construção
institucional que é fundamental para que o projeto de
libertação social que representa a democracia contemporânea
seja efetivado. Adotando como parâmetro o papel proposto por
Mangabeira para o direito, serão problematizadas as duas
pressuposições do paradigma: a ideia de que mercados são
espontâneos, e a ideia de que relações privadas são fundadas
em escolhas racionais voltadas à satisfação de interesses
individuais.
Essas duas pressuposições correspondem a ideias
centrais defendidas pela Economia Clássica e depois
retrabalhadas pela Economia Neoclássica, e que serão
sintetizadas no capítulo 2. Essas ideias, as contraporemos
32
primeiramente a partir da proposição de Ronald Coase de que
mercados não são espontaneamente gerados, mas são criados pela
ação humana institucionalizada, e que em decorrência é
necessário estudar tanto as relações econômicas que ocorrem em
mercados, como as relações que ocorrem fora de mercados. Após,
com base em autores ligados à Economia Comportamental como
Amos Tversky, Daniel Kahnemann, Dan Ariely e Cass Sunstein,
questionaremos a ideia de que relações econômicas dentro de
mercados são necessariamente expressão de escolhas individuais
racionais. Essas duas contraposições, portanto, objetivarão
problematizar as ideias de “mercado” como ordem “espontânea”
oriunda das relações econômicas e de racionalidade das
escolhas econômicas realizadas em mercados. Os contrapontos a
essas duas ideias pressupostas pela visão paradigmática
servirão para explorar as possibilidades de uma compreensão
alternativa das relações entre direito e economia. Nesse
sentido, faremos referência aos termos propostos pela Análise
Jurídica da Política Econômica de Marcus Faro de Castro, com
ênfase para o papel atribuído ao direito de suporte das
instituições econômicas, e a decorrente possibilidade de
inserção econômica de grupos de interesses até então alijados
socialmente e excluídos do ponto de vista da fruição de
direitos fundamentais.
Em seguida, o capítulo 3 estudará dois casos que
ilustram a omissão da visão paradigmática quanto ao papel de
atividades e instituições extramercado na alocação de
recursos, a interdependência entre instituições extramercado e
instituições de mercado na estruturação das relações
econômicas, e ao importante papel de instituições jurídicas na
formação e modificação das instituições econômicas e dos
fluxos institucional e de circulação de bens e serviços que
caracterizam uma dada economia. O primeiro caso é a
progressiva quebra do monopólio da AT&T (American Telephone
33
and Telegraph Corporation) na telefonia de longa distância nos
EUA, e que veio a culminar com a cisão daquela companhia e a
implementação de um novo marco legal para as telecomunicações
americanas. O segundo caso é o processo de criação e
implementação da ARPANET, a rede de computadores que daria
ensejo à Internet. Ambos os casos ocorreram durante o mesmo
período (final da década de 1960) e – essencialmente – no
mesmo lugar (EUA). Sob os olhos da visão paradigmática, são
casos que poderiam ser reduzidos à ideia de intervenção do
Estado na economia, o que pode passar a impressão de que
seriam dois exemplos de um fenônemo semelhante (a intervenção
estatal). Veremos, porém, que no primeiro caso a atuação do
Estado, ao invés de substituir a ação de mercados, resultou na
criação de um novo mercado – o de serviços entre operadoras -
até então inexistente. No segundo caso – a criação da ARPANET
-, o resultado foi uma forma peculiar de organização e
alocação de recursos que, embora descentralizada, não era
pautada por mecanismo de preços - isto é, não era um mercado -
, mas tampouco era pautada por decisões dos agentes e
instituições estatais envolvidos na implementação e
funcionamento daquela rede.
Como conclusão desta tese, será afirmada a
oportunidade de atuação do direito na criação e modificação de
instituições econômicas. Essa atuação, pouco explorada, pode
servir tanto ao reforço de instituições de mercado, quanto a
sua substituição por instituições alternativas. A ausência de
uma fórmula definitiva a pautar essa atuação indica que o
direito não deve ter por função apenas assegurar a permanência
das instituições existentes, e tampouco buscar adaptar as
instituições a um conjunto pré-determinado de alternativas. A
atuação do direito na economia deve assegurar a possibilidade
de construção democrática das instituições econômicas, o que
significa tanto manter aquilo que for desejável, como também
35
Capítulo 1 – O direito como interferência externa à economia: genealogia e análise de um paradigma
1.1. As três globalizações do pensamento jurídico segundo Duncan Kennedy e as narrativas jurídicas brasileiras sobre direito e economia
Nos próximos três itens deste capítulo, procuraremos
identificar os elementos comuns às narrativas sobre direito e
economia no Direito brasileiro, agrupando-as em linhas de
pensamento jurídico (“legal thought”) na forma proposta por
Duncan Kennedy25:
Pensamento jurídico [...] é o aparato conceitual, as
técnicas de raciocínio, os ideais jurídicos e as
imagens-chaves que a elite dos profissionais do direito
- incluindo juízes, tratadistas e advogados importantes
– empregam quando se valem de argumentos jurídicos ou
emitem opiniões ou declarações acerca do que “é” o
direito ou o que este deveria ser.26
Kennedy proporá, como veremos a seguir, três
momentos de globalização do pensamento jurídico. Ao organizar
as narrativas do Direito segundo o conceito de pensamento
25 O conceito de legal thought foi central em The Rise and Fall of Classical Legal Thought, influente obra de Kennedy primeiro publicada em 1975 e que é considerada um dos principais textos do movimento Critical Legal Studies. Aquela obra foi republicada em 2006 com o acréscimo de um prefácio do autor – Thirty Years Later, em que Kennedy faz uma análise retrospectiva de seu texto e o confronta com suas ideias posteriores. O prefácio da reedição de 2006 será adiante utilizado por nós para contextualizar o artigo Three Globalizations of Law and Legal Thought: 1850-2000 (KENNEDY, 2006a), que, por sua vez, é utilizado a seguir nesta tese para organizar as narrativas brasileiras sobre direito e economia. 26 “Legal thought [...] is the conceptual apparatus, the reasoning techniques, the legal ideals and the key images that the elite bar, including judges, treatise writers and important lawyers, deploy when they make legal arguments or give opinions or declarations about what the law “is” or ought to be.” (KENNEDY, 2006b, p. ix – tradução livre.)
36
jurídico, Kennedy enfatiza o que chama de modo de pensar
(“mode of thought”) como elemento estruturante da divisão que
ele proporá entre aquelas narrativas. Esse elemento
estruturante, esse modo de pensar, é o que Kennedy afirma ter
sido objeto de globalização.
Por esse motivo, ao adotarmos a classificação de
Kennedy, estaremos organizando as narrativas do Direito
segundo modos de pensar. O modo de pensar não se confunde com
a adoção de uma ideologia política. Isso significa dizer, como
veremos, que sob um mesmo modo de pensar estarão tanto
narrativas liberais, como conservadoras; tanto de esquerda,
como de direita. O modo de pensar também não se confunde com
as escolas de Filosofia do Direito. Kennedy afirma que em cada
globalização de um modo de pensar é possível identificar
ideias que seriam típicas do positivismo jurídico, outras do
direito natural, além de uma diversidade teorias do direito e
de variedades de pragmatismo. Por fim, um modo de pensar não
corresponde a um conjunto típico de regras – para regular um
mesmo conjunto de situações, em cada período de globalização
de um modo de pensar, o direito positivo assume diversas
configurações distintas.27
27 Sobre a distinção entre modo de pensar – como objeto da globalização do pensamento jurídico – e ideologia, filosofia do Direito e direito positivo, Kennedy assim se manifesta: “The “thing” that was globalized was not, in any of the three periods, the view of law of a particular political ideology. Classical Legal Thought was liberal in either a conservative or a progressive way, according to how it balanced public and private in market and household. The Social could be socialist or social democratic or Catholic or Social Christian or fascist (but not communist or classical liberal). Modern legal consciousness is the common property of right wing and left wing rights theorists, and right wing and left wing policy analysts. /§/ Nor was it a philosophy of law in the usual sense: in each period there was positivism and natural law within the mode of thought, various theories of rights, and, as time went on, varieties of pragmatism, all comfortably within the Big Tent. And what was globalized was most
37
O modo de pensar é identificado por Kennedy com o
que o autor denomina de consciência e, mais especificamente,
de consciência jurídica (“legal consciousness”). Por diversas
vezes, o autor usa de forma intercambiada pensamento jurídico,
modo de pensar e consciência jurídica, de sorte que é possível
identificar uma relação de sinonímia, para Kennedy, desses
conceitos.28 Com efeito, a definição de consciência jurídica
feita abaixo por Kennedy tanto é semelhante à de pensamento
jurídico transcrita acima, como também é esclarecedora sobre a
função que esses conceitos têm na organização da história do
pensamento jurídico intentada pelo autor ao longo de sua obra:
A ideia de consciência jurídica é que pessoas que se
valem do raciocínio jurídico o fazem nos limites de uma
pré-existente estrutura de categorias, conceitos,
procedimentos aceitos convencionalmente, e argumentos
jurídicos típicos (“pedaços de argumento”29). [...]
definitely not a particular body of legal rules: each mode provided materials from which jurists and legislators could produce an infinite variety of particular positive laws to govern particular situations, and they did in fact produce an infinite variety, even when they claimed to be merely transplanting rules from milieu to milieu.” (2006a, p. 22). 28 O trecho transcrito na nota 27 exemplifica bem a sinonímia por nós identificada. A primeira globalização do pensamento jurídico é denominada por Kennedy “Classical Legal Thought”, e a terceira é referenciada como “modern legal consciousness”. Além disso, Kennedy afirma que “…in each period there was positivism and natural law within the mode of thought…” e, em seguida, “…what was globalized was most definitely not a particular body of legal rules: each mode provided materials…”. 29 No original em inglês: “argument-bites”. A expressão argument-bite é proposta por Kennedy em The Semiotics of Legal Argument (1994), em que o autor se dedica à analise da argumentação jurídica: “By legal argument, I mean argument in favour of or against a particular resolution of a gap, conflict, or ambiguity in the system of legal rules. In this form of argument, it is the practice to deploy stereotyped 'argument-bites', such as, 'my rule is good because it is highly administrable'. Argument-bites come in opposed pairs, so that the above phrase is likely to be met with, 'but your rule's administrability comes from such rigidity that it will do serious injustice in many particular cases'. /§/ Starting with the argument-bite as a basic unit, I propose a set of inquiries into legal argument, using language theory as a source of analogies. First, there is the lexicographical or 'mapping' enterprise of trying to identify the most
38
[...]
A história do pensamento jurídico, como eu tento
desenvolver nesses ensaios, não é a história das teorias
do direito que caracterizam diferentes períodos (e.g.
direito natural, direitos naturais, positivismo
jurídico, processo legal). Ou, mais propriamente, a
teoria jurídica ou filosofia do Direito de um período é
apenas um aspecto – e provavelmente um aspecto não muito
importante - da consciência jurídica do período,
entendida como o conjunto de categorias, conceitos,
argumentos típicos, técnicas argumentativas e outros;
que caracterizam o trabalho de advogados, juízes e
acadêmicos daquele período.30
Finalmente, ainda quanto à metodologia adotada por
Kennedy, o autor se vale de uma abordagem fenomenológica31 para
common bites. Second, there is an inquiry into the generation of pairs and their clustering into dialectical sequences, rituals of parry and thrust. The response above might be answered, 'there will be few serious injustices in particular cases because my rule is knowable in advance (unlike your vague standard) and parties will adjust their conduct accordingly'. Third, there is the second-order mapping task of identifying the major clusters (some candidates: formalities as a precondition for legally effective expressions of intent, compulsory contract terms, existence and delimitation of legally protected interests, liability for unintended injury).” (KENNEDY, 1994, p. 325). Nos moldes acima, as ideias de Kennedy se assemelham muito às de Viehweg (2008). Os argument-bites do autor americano se assemelham aos topoi (lugares-comuns) referidos pelo alemão. Viehweg, contudo, não é citado por Kennedy em sua obra, de modo que o paralelo entre os autores necessitaria de análise mais pormenorizada do que o escopo desta tese permite alcançar. 30 “The idea of legal consciousness is that people who practice legal reasoning do so within a pre-existing structure of categories, concepts, conventionally understood procedures, and conventionally given typical legal arguments ("argument bites").[…]/§/[…] The history of legal thought, as I try to do it in these essays, is not the history of the theories of law that characterize different periods (e.g., natural law, natural rights, legal positivism, legal process). Or rather, the legal theory or legal philosophy of a period is just one aspect, and likely not a particularly important aspect of the period’s legal consciousness, understood as the ensemble of categories, concepts, typical arguments, argumentative techniques, and so forth, that characterize the work of lawyers, judges and scholars of that period.” (KENNEDY, 2012 – tradução livre.) 31 Kennedy afirma categoricamente que se inspirou na fenomenologia de Marcuse, Hegel, Sartre e Husserl para construir e desenvolver a ideia de
39
poder identificar o modo de pensar que caracteriza um
determinado período analisado. Ao adotar a fenomenologia32,
Kennedy não apenas confere um caráter eminentemente descritivo
a seu trabalho33, como estabelece como objeto de sua descrição
a expressão das experiências percebidas pelas comunidades de
juristas dos períodos que analisa.34 Esse caráter descritivo
significa que a exposição das consciências jurídicas é feita
pela busca do modo como aqueles que compartilham a consciência
a experienciam, e não pelo modo como eles deveriam ter
consciência jurídica e aplicá-la como elemento articulador de sua construção da história do pensamento jurídico – cf. KENNEDY, 2006b, pp. xvii-xx. 32 Sobre a fenomenologia de Husserl como adotada por Sartre – duas das influências de Kennedy -, a nota de Paulo Perdigão é didática e esclarecedora acerca da dimensão descritiva a que aludimos acima: “Em linhas gerais, Husserl insurgiu-se contra um engano teórico que sempre predominou nas ciências humanas em geral: a separação radical entre a consciência do sujeito [...] e o mundo exterior [...], consideradas até então como entidades distintas e heterogêneas. Ou bem privilegiava-se a exterioridade das coisas, a chamada “realidade objetiva”, em detrimento da razão humana (postura dominante em geral no pensamento científico), ou bem, ao contrário, dava-se ênfase à interioridade da mente, a chamada “subjetividade” (posição frequente em filosofia). Daí as duas linhas básicas do pensamento humano: o Materialismo e o Idealismo. Para Husserl, contudo, acatar tal dualismo é ser unilateral e insuficiente, porque a realidade é outra: o ser humano vive em uma unidade indivisa de mente-corpo-mundo e assim deve ser estudado. /§/ Como Husserl, Sartre, em primeiro lugar, suprimiu todos os conceitos de antemão dados como “verdades estabelecidas” sobre as coisas. É preciso “voltar às próprias coisas”, ou seja, descrever os fatos em sua essência.[...] Com essa volta às essências, a fenomenologia quis fazer da filosofia uma ciência rigorosa e exclusivamente descritiva, evitando as “especulações metafísicas” comuns à maioria dos pensadores. Para Husserl, a filosofia deve expressar experiências que digam respeito a todos, e não simples (e sempre contestáveis) “visões de mundo” que apenas refletem as ideias de um único pensador.” (PERDIGÃO, 1995, pp. 31-33). 33 “...what I have to say is descriptive and descriptive only of thought. It means ignoring the question of what brings a legal consciousness into being, what causes it to change, and what effect it has on the actions of those who live it.” (KENNEDY, 1979, p. 220.) 34 “What makes this approach phenomenological is that it is not about whether there really “is” an analogy, but only about whether a legal reasoner “feels” or “sees” or “intuits” that there is one.” (KENNEDY, 2006b, p. xvii). No mesmo texto, mais adiante: “This is phenomenological criterion because we distinguish systems according to how the participants experience them rather than according to whether they really are or are not using deduction correctly.” (Idem, p. xviii).
40
construído intelectualmente o seu modo de pensar. Isso não
impede o próprio Kennedy de identificar sua obra com uma
agenda político-intelectual de esquerda voltada a atacar o
status quo35, ainda que a ênfase na descrição tenha sido objeto
de crítica por outros teóricos vinculados ao Critical Legal
Studies36.
Desse modo, a partir das ideias de pensamento
jurídico, modo de pensar e consciência jurídica Kennedy busca
construir uma narrativa fenomênica da história do pensamento
jurídico. O último resultado desse esforço intelectual – até o
momento em que esta tese foi escrita - está no artigo Three
Globalizations of Law and Legal Thought: 1850-2000 (KENNEDY,
2006a). Nesse artigo, Kennedy identifica três períodos de
globalização do pensamento jurídico – cada um veiculando um
modo de pensar característico. O primeiro período corresponde
à formação do Pensamento Jurídico Clássico (Classical Legal
Thought - CLT), e vai de 1850 a 1914. O segundo período
corresponde ao Pensamento Jurídico Social (Kennedy o chama de
“the Social”), ocorrendo durante os anos de 1900 a 1968. O
35 Sobre a intenção política do trabalho que inaugura seu esforço intelectual de organização da história do pensamento jurídico, Kennedy afirma que: “The Rise and Fall was to be part of a larger leftist political/intelectual attack on the status quo in American legal scholarship generally.” (2006b, p. xxvi). Uma formulação mais recente dessa declaração é menos enfática quanto ao escopo: “My own political agenda in doing this work is leftist but in a particular sense. I don’t think there is any necessary tendency for the teasing out of the politics of law to move people to the left (nor do I think, be it noted in passing, that it has a tendency to “demobilize”). But it is part of the historic agenda of the left to re-appropriate the role of human agency against all kinds of efforts to represent the merely actual as natural, necessary and just. For the modernist/post-modernist current within the left, it is just as important to do this within the left as against the right.”(KENNEDY, 2012). 36 Como relata Kennedy: “It was an important aspect of this narrative that it provided no explanation of why one subsystem triumphed over the others. […] This agnostic aspect of the project was sharply criticized by Mort Horwitz, among others, as both politically and methodologically retrograde.” (2006b, p. xvi e nota de rodapé nº 6.)
41
terceiro período corresponde ao Pensamento Jurídico
Contemporâneo e abrange os anos de 1945 a 2000. 37
Figura 2 - Períodos da globalização do pensamento jurídico segundo Duncan Kennedy
Fonte: elaboração do autor.
Nos três itens seguintes deste capítulo, buscaremos
descrever como Kennedy caracteriza o pensamento jurídico
típico de cada um desses períodos. Após, buscaremos
identificar como cada um desses modos de pensar se refletiu no
Direito brasileiro, especialmente na forma como é tratada a
atuação do Estado na economia. Seguindo a mesma ênfase
descritiva de Kennedy, a exposição das narrativas do Direito
brasileiro privilegiará a forma como essas foram construídas e
justificadas por defensores – embora, ao longo da exposição,
nos permitiremos indicar incongruências e inconsistências.
37 O artigo de Duncan Kennedy se articula com os demais autores de TRUBEK e SANTOS (2006) para construção de uma alternativa crítica ao pensamento contemporâneo, e tem por objetivo servir de base para a busca de um novo (quarto) pensamento jurídico global.
42
Espera-se, com isso, identificar uma genealogia38 da posição
paradigmática do Direito nacional sobre a ação do Estado na
economia, descrita no item 1.1 deste capítulo. Após, a
estruturação das narrativas nacionais segundo os modos de
pensar identificados por Kennedy servirá de mote para a
análise crítica a ser empreendida ao final deste capítulo, bem
como para identificar novas alternativas teóricas que deem
suporte à construção jurídica de políticas econômicas.
Quanto ao esforço que se buscará empreender, cabe,
antes, destacar que o próprio Kennedy ressalva que sua busca
por uma classificação dos modos de pensamento jurídico é um
trabalho inacabado e que necessita de muito aprimoramento e
debate, e por isso pode trazer reduções ou simplificações
inadequadas.39 A mesma ressalva cabe, com maior veemência, ao
nosso esforço de, a partir das ideias de Kennedy, buscar
analisar os modos de pensamento que no Brasil conduziram a
interseção do direito com a economia.
Diante disso, o esforço deve ser compreendido não
como uma formulação precisa da história do pensamento
jurídico, mas apenas como contextualização das ideas que
adiante serão exploradas. Isso se faz com a justificativa de
38 O termo genealogia é por nós utilizado com a conotação proposta por Duncan Kennedy: “to understand a modern idea that interests us as constituted by the confluence of a variety of earlier ideas, each of which was transformed at its moment of combination with another idea” (KENNEDY, 2010, p. 831). 39 Kennedy afirma que: “...it seems only fair to warn the reader that it is very much a version of a work in progress. It covers a very large amount of material, both in time and in space, and I am sure I’ve made significant errors both of detail and of substance. The sweeping assertions in the text are supported by a minimal footnote apparatus that reflects the vagaries of my interests and reading over the years rather than sustained research on each topic covered. I hope readers will challenge rather than dismiss me for this weakness, so that I can improve the next version.” (KENNEDY, 2006a, p. 21).
43
viabilizar que a proposta desta tese - de que o direito
constrói a economia - dialogue minimamente com as ideias
expostas pelos juristas brasileiros. Especialmente, buscar-se-
ão subsídios para sustentar que as ideias da visão
paradigmática brasileira não são o resultado natural e
necessário de um sistema coeso, mas o produto conjuntural da
adaptação de diversas formas de enxergar o direito e seu papel
na economia – é esta, em síntese, a genealogia que buscaremos
fazer. Ao se explicitar as divergências de pensamento e a
conjuntura de formação dessas narrativas abre-se espaço para
visões alternativas como a que exploraremos no capítulo 2.
1.2. O Pensamento Jurídico Clássico (1850-1914) e a ideia de racionalidade como delimitadora da divisão entre direito público e direito privado40
Como dito antes, a primeira globalização
identificada por Kennedy é o que este autor denomina
Pensamento Jurídico Clássico41. O Pensamento Jurídico Clássico,
segundo Kennedy, é por vezes identificado com “formalismo”,
“dedução” ou “jurisprudência dos conceitos”.42 Embora não se
contraponha à identificação do Pensamento Jurídico Clássico
com esses elementos, Kennedy afirma que a característica mais
importante desse pensamento jurídico é o que ele chama de
40 A descrição do Pensamento Jurídico Clássico feita neste e nos parágrafos seguintes é retirada de: KENNEDY, 2006, pp. 25-36. 41 O estudo do Pensamento Jurídico Clássico por Kennedy teve primeiramente como foco o pensamento jurídico dos EUA e remonta ao livro The Rise and Fall of Classical Legal Thought (KENNEDY, 2006b), cuja primeira publicação data de 1975. Apenas a partir da década de 2000, Kennedy passou a considerar que o Direito americano mais foi influenciado pelo pensamento jurídico global do que o influenciou, de modo que o Pensamento Jurídico Clássico passa a ser tratado pelo autor como um fenômeno global fortemente influenciado pelos pensadores da Europa Continental. 42 Cf. KENNEDY, 2010, pp.830-831.
44
“teoria da vontade” (will theory), a teoria de que o direito
deriva ou da vontade pública, ou da vontade privada - sendo a
distinção entre ambas de fundamental importância -, e cuja
principal ilustração é a de vontades como poderes absolutos em
suas respectivas esferas.43 Essa teoria da vontade enxergava o
direito como um sistema que possui forte coerência interna,
baseado em três traços principais: i) distinção entre direito
público e direito privado; ii) individualismo; iii)
compromisso com formalismo interpretativo.44 Combinando esses
traços distintivos, a teoria da vontade assim se afigurava:
A teoria da vontade foi uma tentativa de identificar as
regras que derivariam do consenso em favor do objetivo
de auto-realização individual. Não se tratava de uma
filosofia política ou moral justificando esse objetivo;
tampouco era uma teoria positiva histórica ou
sociológica sobre como aquele havia se tornado o
objetivo. Ao revés, a teoria oferecia uma interpretação
específica, baseada na vontade, e dedutiva, da
interrelação de dúzias ou centenas de normas
relativamente concretas das ordens jurídicas nacionais
existentes, bem como das instituições legislativas e
judicantes que geravam e aplicavam as normas.45
43 “…I have wanted to insist that the single most important characteristic [of CLT] was actually the will theory, i.e., the theory that law derives either from private of from public will, with the distinction between the two being of primary importance, and with the dominant imagery being that of wills as ‘powers absolute within their spheres.’” (KENNEDY, 2010, p. 831 – o trecho em itálico corresponde ao trecho parafraseado acima) 44 Cf. KENNEDY, 2006a, p. 25. 45 “The will theory was an attempt to identify the rules that should follow from consensus in favor of the goal of individual self-realization. It was not a political or moral philosophy justifying this goal; nor was it a positive historical or sociological theory about how this had come to be the goal. Rather, the theory offered a specific, will-based and deductive interpretation of the interrelationship of dozens or hundreds of relatively concrete norms of the extant national legal orders, and of the legislative and adjudicative institutions that generated and applied the norms” (KENNEDY, 2006a, p. 26 – tradução livre.)
45
Segundo Kennedy, as ideias de Savigny tiveram papel
estruturante e serviram de base para a formação da teoria da
vontade e, por conseguinte, na genealogia do Pensamento
Jurídico Clássico.46 Kennedy identifica uma peculiar estrutura
contraditória nas ideias de Savigny, estrutura essa que
adquire posição central no modo de pensar típico do Pensamento
Jurídico Clássico. Essa estrutura contraditória se manifesta
da seguinte forma. De um lado, o direito de uma nação era
visto como o reflexo do espírito de um povo, ou de sua
cultura, o que lhe dava aspecto de singularidade. De outro
lado, esse direito poderia ser sistematizado e desenvolvido
cientificamente por juristas que pressupusessem sua coerência
interna - o que conferia ao direito abstração e generalidade.
A estrutura contraditória da teoria da vontade
resulta em um paradoxo, cuja importância para o Pensamento
Jurídico Clássico é descrita por Kennedy:
O paradoxo de Savigny, e a provável fonte de sua
importância seminal, era a combinação - na singular
ideia de ciência do direito como elaboração do “sistema”
- de uma teoria da vontade universalizante e jurídico-
formalista com a ideia de que regimes particulares de
direito nacional refletiriam diversas ordens normativas
sociais não-jurídicas.47
46 Diz o autor: “The notion of genealogy I use derives from two classic texts of social theory, Nietzsche’s Genealogy of Morals, and Foucault’s Nietzsche, Genealogy, History. Nietzsche and Foucault are explicitly against the search for origins. Their genealogical method is to understand a modern idea that interests us as constituted by the confluence of a variety of earlier ideas, each of which was transformed at its moment of combination with another idea. […] In this view, Savigny is not the intellectual father of CLT [Classical Legal Tought], but one of the most important figures in its genealogy.” (KENNEDY, 2010, pp. 831-832.) 47 “The paradox of Savigny, and the probable source of his seminal importance, was the combination, in the single idea of legal science as elaboration of “the system”, of a universalizing legal formalist will
46
E ainda:
A ideia historicista (Savigny), como destaquei acima,
era dúbia, se não contraditória. O direito de uma nação
era reflexo do espírito ou da cultura de seu povo, e
neste sentido era inerentemente político, mas podia ser
desenvolvido de uma maneira científica por juristas que
pressupusessem sua coerência interna.48
A estrutura contraditória de Savigny e o decorrente
paradoxo foram decisivos para o sucesso da globalização do
Pensamento Jurídico Contemporâneo, pois permitiram acomodar a
pretensão generalizante de um Direito que se queria racional e
científico, com as tensões políticas localizadas em diferentes
nações. A difusão do Pensamento Jurídico Clássico se deu de
diferentes formas e, como veremos, a estrutura contraditória
serviu para abrigar particularidades de diferentes culturas
nacionais e diferentes modos de adoção ou imposição de um modo
de pensar jurídico típico.
A difusão dessa consciência jurídica, como dito, foi
variada. A origem do Pensamento Jurídico Clássico é a Europa
continental, especialmente Alemanha (Escola Histórica) e
França (Escola da Exegese). Nos países desenvolvidos, sua
expansão se deu sobretudo pela influência dos professores de
direito, que adotaram as ideias e a linguagem formuladas na
Europa continental. Nos demais países, houve um misto de
influência e imposição. Em alguns casos, a imposição se deu
theory with the idea that particular regimes of state law reflect diverse underlying nonlegal societal normative orders.” (KENNEDY, 2006a, p. 27 – tradução livre.) 48 “The historicist idea (Savigny), as I remarked above, was double, if not contradictory. The law of a nation was a reflection of the spirit or culture of its people, an in this sense inherently political, but could be developed in a scientific manner by jurists who pressuposed its internal coherence.” (KENNEDY, 2006a, p. 29 – tradução livre.)
47
pela relação de império entre metrópoles e colônias. Em outros
casos, pela pressão para a “abertura” ao direito ocidental,
como exigência para a integração comercial. Houve ainda a
influência mais sutil configurada pela criação de um sistema
único de direito público internacional, baseado no conceito de
soberania como um direito absoluto em sua respectiva esfera
(qual seja, a esfera territorial).
Em todos esses processos de difusão, a estrutura
contraditória serve de suporte para a adoção e acomodação do
Pensamento Jurídico Clássico. Por um lado, na medida em que se
considerava que os sistemas jurídicos eram reflexos de um
povo, se criaram as condições para que as elites intelectuais
locais se apropriassem dessa linguagem para criar o seu
direito. Com base nisso, por exemplo, um jurista brasileiro -
ou americano, ou japonês - poderia usar a própria linguagem do
Pensamento Jurídico Clássico para se defender da hegemonia do
Direito europeu. Por outro lado, a racionalidade presumida
sugeria a universalidade de alguns conceitos - centrados nas
noções de direito subjetivo, vontade e obrigação – que
supostamente seriam desenvolvidos cientificamente pelos
juristas. Assim, o mesmo jurista brasileiro – ou americano, ou
japonês – que se valeu do Pensamento Jurídico Clássico para
advogar a particularidade de seu Direito frente ao Direito
europeu, poderia se valer desse modo de pensar para também
adequar seu Direito (e seu direito) ao Direito continental
europeu. A conveniência desse pensamento para as elites
jurídicas locais é destacada por Kennedy:
O Pensamento Jurídico Clássico substituiu um anterior
modo de pensamento transnacional do Ocidente que
afirmava a existência de uma lei universal da razão,
seja católica ou baseada na teoria dos direitos
naturais, e de uma aguda distinção legal entre nações
civilizadas (partícipes do ius gentium) e bárbaras. O
48
Pensamento Jurídico Clássico ofereceu às recém-formadas
elites jurídicas de nações periféricas da Europa,
Américas do Norte e do Sul, e Ásia, algo ao menos na
superfície mais atraente. As elites nacionais poderiam
se identificar com seus respectivos “povos” e
radicalmente dissociar ingleses ou russos, ou também
argentinos, ou egípcios, ou japoneses, dos alemães e
franceses.
Eles poderiam empregar a teoria jurídica historicista
européia para se defender contra a hegemonia jurídica da
Europa – apenas juristas latino-americanos poderiam ser
“donos” de um Direito Latino-Americano...
[...]
Juntamente com a noção particularista de que cada povo
tem sua única ordem normativa, os juristas espalhados ao
largo da periferia de nações independentes e impérios
modernizantes poderiam afirmar sua participação nas
nascentes ciências da obrigação jurídica e do direito
internacional, baseadas que eram na análise de vontade,
direito e soberania, que não tinham nenhuma óbvia
particularidade nacional. Eles poderiam desenvolver suas
versões próprias e levemente modificadas dos Códigos
Civil e Comercial das potências européias dominantes
comercialmente, financeiramente e militarmente,
facilitando a integração ao mercado mundial, sem que
vissem a si próprios como traidores de seus
concidadãos.49
49 “CLT replaced na earlier Western transnational mode of thought that had asserted the existence of a universal law of reason, either Catholic or based on natural rights theory, and a sharp legal distinction between civilized (participant in the ius gentium) and barbarous nations. CLT offered the legal elites of the peripheral, newly formed nation states of Europe, North and South America, and Asia something at least more attractive. The national elites could identify themselves with their respective “peoples,” and sharply dissotiate, if they were English or Russian, or for that matter Argentinean, or Egyptian, or Japanese, from the Germans and French. /§/ They could deploy European historicist legal theory
49
Foi ainda sob influência da estrutura contraditória
do historicismo de Savigny que a teoria da vontade do
Pensamento Jurídico Clássico absorveu o individualismo,
elaborou exaustivamente a separação entre público e privado e
recorreu ao formalismo interpretativo. Na separação entre o
público e o privado – de particular interesse para este
trabalho -, a teoria da vontade se baseava no individualismo,
pois partia da noção de que o governo deveria proteger os
direitos das pessoas, o que significava ajudá-las a realizar
suas vontades, restringindo-as somente o necessário para
permitir que outros também realizassem suas vontades.50 Os
limites entre a vontade do governo e a vontade das pessoas
eram vistos como uma derivação racional dessa noção. Assim, o
Pensamento Jurídico Clássico enxergava o direito como um
sistema de esferas de autonomia para atores públicos e
privados, cujos limites seriam definidos a partir da razão, e
dentro dos quais esses autores teriam poder absoluto.51 É no
Pensamento Jurídico Clássico, portanto, que se consolida a
distinção entre direito público e direito privado como
categorias de sistematização do pensamento jurídico – e a
to defend themselves against European legal hegemony – only Latin American jurists could “own” a Latin American law… […] Along with the particularist notion that every people had its own unique normative order, the jurists scattered across the periphery of independent nations and modernizing empires could affirm their participation in the developing sciences of legal obligation and international law, based as they were on an analytics of will, right, and sovereignty that had no obvious national particularity at all. They could develop their own slightly modified national versions of the Civil and Commercial Codes of the commercially, financially, and militarily dominant European powers, facilitating integration into the world market, without seeing themselves as traitors to their national constituencies.” (KENNEDY, 2006a, pp. 29-30 – tradução livre.) 50 “The will theory was that the private law rules of the “advanced” Western nation states were well understood as a set of rational derivations from the notion that government should protect the rights of legal persons, which meant helping them realize their wills, restrained only as necessary to permit others to do the same.” (KENNEDY, 2006, p. 25 – o trecho em itálico corresponde ao trecho parafraseado no corpo do texto.) 51 Cf. KENNEDY, 2006, p. 26 e passim.
50
consequente divisão entre Direito Público e Direito Privado
como ramos do conhecimento jurídico.
Contudo, no Pensamento Jurídico Clássico, o foco dos
juristas estava na construção e sistematização do direito
privado. O direito público é visto como não-científico,
essencialmente político e, por isso, não passível de
racionalização.52 A essa noção se soma a ideia, também
articulada pela teoria da vontade, de que o Estado é soberano
e seu poder é ilimitado - pois esse poder seria a manifestação
da vontade pública. O resultado é que a limitação possível do
poder do Estado, âmbito do direito público, é a ampliação do
direito privado. Em outras palavras, o direito público é
limitado no Pensamento Jurídico Clássico pela racionalização
promovida pelo Direito Privado, e não pela racionalização
feita pelo Direito Público. Assim, o individualismo que marcou
o Pensamento Jurídico Clássico se fez presente pelo
desenvolvimento do direito privado e por sua proteção contra o
direito público (a vontade pública não poderia invadir a
esfera da vontade privada), e não pela autolimitação do
direito público.
Além da dicotomia público-privado, outras duas
dicotomias são relevantes no vocabulário do Pensamento
Jurídico Clássico. A primeira é a distinção entre direito
52 Conforme afirma Kennedy: “In CLT, everyone understood (and jurists often explicitly affirmed) that private law was the core of law. That distinguished not only international law, but public law as well, as not part of the core. […] Public law differed from private law because it was less scientific and more political than private law. […] International law had only sovereigns as subjects, so the jurist could not be called on to denounce, in the name of international law, the conduct of his sovereign toward his fellow citizens – indeed must resist the illegal efforts of other sovereigns to interfere. Public law was political rather than scientific, with the same result: science did not oblige the jurist one way or another…” (KENNEDY, 2006a, p.31.)
51
nacional e direito internacional, e a segunda, a dicotomia
mercado-família. Na dicotomia direito nacional e direito
internacional, este é visto como um direito entre soberanos, e
que por isso não vincula seus sujeitos. Os cidadãos dos países
não são sujeitos de direito internacional, e portanto não
participam da ordem jurídica internacional, nem podem pleitear
dela qualquer ação. Como visto53, isso abre espaço para a
harmonização global de normas sobre comércio e finanças, ao
mesmo tempo em que mantém para os governos nacionais a
prerrogativa de limitar a aplicação dessas normas em seus
territórios.
De seu turno, a dicotomia família-mercado também
ofereceu ao Pensamento Jurídico Clássico argumentos para
limitar a aplicação da racionalidade liberal. Segundo Kennedy,
havia uma grande diferença entre liberalismo na economia e
liberalismo acerca das relações entre marido e mulher, por
exemplo.54 O direito de família era campo em que a
racionalidade liberal deveria dar lugar a valores morais,
políticos e tradicionais. Com isso, por exemplo, foi possível
sustentar a falta de capacidade jurídica de mulheres e que o
casamento, por ser um status e não um contrato, não se
sujeitava à livre vontade no que concerne à sua dissolução por
divórcio.55
Essas três dicotomias - público-privado, nacional-
internacional, mercado-família - ao mesmo tempo que refletiram
a estrutura contraditória da teoria da vontade, segundo
53 Ver notas 49 e 52. 54 KENNEDY, 2006a, p. 32. 55 Esse modo de pensar, ainda que brevemente, permitiu até mesmo assimilar regimes escravocratas - considerado o escravo elemento da família (cf. KENNEDY, 2006a, p. 35).
52
Kennedy, permitiram ao Pensamento Jurídico Clássico
contemporizar a pretensão de universalidade típica do
racionalismo com as idiossincrasias de governos e elites
locais. Como visto, as regras que constituem o direito privado
seriam a tradução de uma ordem racional; as regras do direito
público, do direito internacional e do direito de família
seriam exceções à racionalidade, decorrentes ora da ideia de
vontade pública como manifestação absoluta de uma política
não-racionalizável, ora de soberania, ora de tradição, ora de
moral.
No Brasil, o Pensamento Jurídico Clássico orientou a
organização da propriedade liberal sob o direito civil. Nessa
época, a elite econômica era formada por fazendeiros, cuja
propriedade se havia formado no período colonial. Antes da
Independência e da promulgação da Constituição de 1824, a
atividade econômica do Brasil-Colônia era monopólio de
Portugal. Até a vinda da Corte Portuguesa ao Brasil, em 1808,
o País desconhecia por completo qualquer liberalismo
econômico. A exploração de atividades econômicas somente era
possível por meio do regime de monopólios atribuídos a
particulares, pelas concessões régias, ou a companhias de
comércio em que a participação da Coroa Portuguesa era
majoritária.56 Com base nesses instrumentos, Portugal forçou a
especialização econômica do Brasil-Colônia para assegurar que
este só produziria aquilo que na Europa não fosse produzido.
Somente se permitiam o cultivo de produtos agrícolas próprios
ao clima tropical, como açúcar, tabaco e algodão, e atividades
56 Cf. AGUILLAR, 2006, pp. 88 e ss.
53
de mineração. As demais, especialmente atividades industriais
e manufatureiras, eram proibidas.57
A vinda da Corte Portuguesa ao Brasil em 1808 mudou
em parte essa situação. O Alvará de 1º de abril de 1808
revogou toda e qualquer proibição ao estabelecimento de
manufaturas no País e no Mundo. Mas o comércio, por exemplo,
continuou limitado. Efetivamente, no período em que a Corte
Portuguesa permaneceu no Brasil, apenas a Província do Rio de
Janeiro - erigida à condição de Capital do Reino - conheceu
maior liberdade econômica.58 Somente com a Constituição de
1824, é que se estabeleceu juridicamente, no Brasil, a livre
iniciativa.
Contudo, as normas que regulavam a propriedade eram
ainda as das Ordenações Filipinas, que vigiam desde 1603.
Foram essas normas que organizaram o direito civil brasileiro.
Essa circunstância foi conveniente para os interesses da elite
política e intelectual da época, vinculada às grandes
propriedades fundiárias e ao agronegócio.59 A propriedade como
concebida pelas Ordenações Filipinas era derivada da situação
de privilégio entre metrópole e colônia, em um cenário de
repressão a quaisquer outras atividades. Embora o séc. XIX já
conhecesse as sociedades empresárias, as corporações, a
propriedade intelectual, a atividade industrial, os serviços
financeiros e bancários, todos esses foram excluídos do
direito civil brasileiro.
57 Exemplo relevante é o Alvará de 5 de janeiro de 1785, que bania qualquer forma de indústria no Brasil, sob pena de perdimento. Como incentivo para sua eficácia, previu o Alvará que os bens confiscados seriam repartidos entre denunciantes e inspetores. Vide: AGUILLAR, 2006, p. 89. 58 Cf AGUILLAR, 2006, p. 87. 59 Cf. CASTRO, 2013.
54
O direito civil assim ganhou escopo adequado aos
interesses da elite da época. Assim se verificou, por exemplo,
com as regras que orientam a organização e a exploração de
sociedades empresárias, que foram consideradas integrantes de
um direito comercial que, por definição, se diferenciava do
direito civil - situação que formalmente só se modificaria com
a edição do Código Civil de 2002. O Código Comercial de 1850
estabelecia que toda a sorte de associação mercantil seria
regulada tão somente pelas leis particulares do comércio, pela
convenção das partes sempre que não for contrária àquelas, e
pelos usos comerciais; não se podendo recorrer ao direito
civil para decisão de qualquer dúvida, senão na falta de lei
ou uso comercial (art. 291). Ao par do Código Comercial, o
Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, fixava
procedimentos próprios para a jurisdição sobre questões
comerciais. Sujeito a procedimentos próprios, o direito
comercial se separava não apenas do direito civil não apenas
quanto à formulação legislativa, mas quanto à aplicação
jurisprudencial.
O direito comercial que se criou no Brasil ainda
viabilizou a aplicação de regras transnacionais que regulavam
o comércio, o ius gentium que o Pensamento Jurídico Clássico
identificava como herança racional global da tradição
romanista.60 Privilegiavam-se as práticas comerciais correntes
e a ideia de lex mercatoria. Esse direito comercial era
liberal e buscava inserir o Brasil nas práticas comerciais
globais. Mas o liberalismo do direito comercial não podia
alcançar a esfera própria do direito civil. Em especial, o
60 Cf. KENNEDY, 2006a, p. 30.
55
direito civil abrigava a tradicional propriedade rural. E as
regras civis eram bem mais conservadoras e restritivas.
Para dar conta da influência das ideias liberais, a
estrutura contraditória do Pensamento Jurídico Clássico
mostrou então sua utilidade. Havia de um lado a estrutura
tradicional de propriedade, casuística e caótica, baseada na
política de controle da economia da colônia pela metrópole. De
outro lado, havia a ideia liberal de uma propriedade plena e
absoluta, e que se supunha não ser nem caótica, nem
casuística, mas sim algo que poderia ser alcançado
racionalmente pelos homens cultos da época. Essa contradição
entre diferentes concepções sobre a propriedade se fez
marcante quando a Constituição de 1824 trouxe nova disciplina
acerca da propriedade, garantindo-a em sua plenitude, mas a
legislação em vigor era ainda a das sesmarias das Ordenações
Filipinas. A Lei de Terras (Lei nº 601, de 1850) foi o
instrumento normativo que buscou articular a transição da
propriedade pré-moderna, caótica, para o ideal de organização
e racionalidade da propriedade liberal. A Lei de Terras,
contudo, não aplicou o regime liberal de propriedade de forma
ampla e irrestrita.61
Dois problemas centralizavam o debate político da
Lei de Terras. O primeiro era viabilizar as atividades rurais
diante da pretendida abolição progressiva da escravatura. O
segundo era lidar com o caos da propriedade fundiária, em que
havia: i) sesmarias demarcadas, confirmadas e aproveitadas
(cultura ou criação), que conferiam ao sesmeiro domínio sobre
a gleba; ii) sesmarias cujas obrigações de demarcação e
61 A análise do papel da influência da Lei de Terras sobre a noção de propriedade do direito brasileiro é derivada de: VARELA, 2005.
56
cultivo foram descumpridas total ou parcialmente, em que os
concessionários tinham só a posse; iii) glebas ocupadas por
simples posses de fato, sem título antecedente; iv) terras sem
ocupação (terras devolutas do império), no que se incluíam
sesmarias retomadas pela Coroa.62
A solução desses problemas seguiu um projeto
político de absolutização da propriedade63 e mercantilização da
terra, expressões da expansão global das economias de
mercado.64 A terra, sob a visão do liberalismo da época,
passaria a ser meio de obtenção de crédito e financiamento da
produção agropecuária, além de permitir ao proprietário sua
livre exploração e especulação. Essas novas fontes de riqueza
ao mesmo tempo em que compensariam a indisponibilidade da mão-
de-obra escrava, se beneficiariam da formação de um mercado
interno composto por trabalhadores livres. No caso brasileiro,
esse projeto político se converteu em um liberalismo seletivo,
favorável à elite formada pelos sesmeiros e grandes posseiros,
e que caracterizou a Lei de Terras.
62 VARELA, 2005, p. 117. 63 A expressão é utilizada por Varela: “Na maior parte dos ordenamentos da família romano-germânica, o processo de absolutização da propriedade é um processo de ruptura em relação a uma estrura hieraquicamente organizada de deveres, obrigações, honra e lealdade - características de uma propriedade de tipo feudal[...]. No direito luso-brasileiro, contudo, é uma ruptura em relação à propriedade pública, cuja veste é a sesmaria, privilégio ou concessão de domínio condicionada à sua exploração, com cláusula de reversibilidade.” (VARELA, 2005, p. 122.) 64 Conforme afirma Varela, a Lei de Terras teve como contexto a busca pela transformação da terra em mercadoria e em meio para a produção – em contraposição à anterior estrutura feudal em que a terra era também fonte de obrigações pessoais e de poder político: “A segunda metade do séc. XIX é tradicionalmente apontada como o período da gradativa instrodução das relações capitalistas de produção na América Latina, exigindo a adaptação da agricultura à produção de massa para o mercado. No Brasil, esse processo corresponde à expansão econômica do café, à pressão quanto ao fim do tráfico negreiro e à introdução da mão-de-obra assalariada. /§/ Entre outros, são pressupostos do sistema capitalista, quanto à terra: sua propriedade privada absoluta e a possibilidade de sua mercantilização.” (VARELA, 2005, p. 127.)
57
Assim, ao mesmo tempo em que serviu de instrumento
para a transição da propriedade pré-moderna para a propriedade
moderna, a Lei de Terras buscou garantir que haveria mão-de-
obra barata e em quantidade suficiente para explorá-la, o que
compensaria os prejuízos da elite fundiária de então com o já
antevisto fim da escravidão. Isso foi feito por dois
mecanismos. O primeiro foi limitar a validação da propriedade
a casos que beneficiavam os grandes agricultores da época. O
segundo foi adotar preço mínimo65 para a venda de terras
devolutas e negar qualquer direito de propriedade decorrente
da posse de terras públicas, com o declarado intuito de
assegurar que a mão-de-obra da época não se convertesse em
proprietária de terras.66 Foi essa propriedade, instituída por
65 Laura Beck Varela descreve de contexto que antecedeu a edição da Lei de Terras: “Surgem anteprojetos […] oferecendo detalhados planejamentos para a organização da propriedade privada no país, associada à organização da vinda de trabalhadores livres. São já legatários das teses de Wakefield, teórico inglês do neocolonialismo, que preconizava, fundamentalmente, o objetivo da extensão de mercado (ou ampliação do campo de emprego de capital e trabalho), mediante a emigração e a organização da propriedade e das relações de produção nas colônias. Tratava-se da exportação de capitais e a estruturação de relações capitalistas na colônia, como fórmula destinada a preservar o crescimento do capital. Sua teoria da colonização sistemática pressupunha necessariamente a intervenção estatal: o Estado não mais doaria terras, mas as venderia aos novos colonos; e com o valor obtido com as vendas custearia a vinda e a instalação dos colonos pobres, sem condições de arcar com os custos. Importante mecanismo é o do sufficient price, ou instituição do preço mínimo para as vendas, pelo qual o Estado impediria o acesso imediato do assalariado à propriedade da terra, criando a propriedade mercantil da terra, exogenamente ao mecanismo de mercado.” (VARELA, 2005, pp. 131-132.) 66 O propósito político fica claro na declaração feita pelo Conselho de Estado: “Um dos benefícios da providencia que a Secção tem a honra de propôr a Vossa Magestade Imperial é tornar mais custosa a acquisição de terras[…] Como a profusão de datas de terras tem, mais que outras causas, contribuido para a dificuldade que hoje se sente de obter trabalhadores livres é seu parecer que d`ora em diante sejam as terras vendidas sem excepção alguma. Augmentando-se, assim, o valor das terras e dificultando-se, consequentemente, a sua acquisição, é de esperar que o immigrado pobre alugue o seu trabalho effectivamente por algum tempo, antes de obter meios de se fazer proprietário” (Consultas do Conselho de Estado sobre Assumptos da Competência do Ministério do Império, colligidas e publicadas por ordem do governo por Joaquim José da Costa Medeiros e Albuquerque, citado em: VARELA, 2005, p. 133.)
58
uma política pública de expressa intervenção estatal, que se
se tornaria objeto do direito civil.
Portanto, a propriedade fundiária, objeto central da
sistematização promovida pelo direito civil da época, não foi
uma construção natural da sociedade da época. Ao contrário,
foi uma propriedade concebida no seio de uma política pública
estatal explicitamente criada para preservar a estrutura de
poder tradicional, de modo que o caminho de transição para o
liberalismo assegurasse condições favoráveis aos proprietários
tradicionais. Essa realidade contrasta de forma marcante com a
ideia de propriedade do direito civil da época, ideia esta que
correspondia à noção savigniana de racionalidade histórica dos
institutos civilistas. O direito privado – e o direito civil
no centro do direito privado – era concebido pelo Pensamento
Jurídico Clássico como o produto de uma racionalidade, e não
como uma construção política. Mas a universalização seletiva
permitida pela estrutura contraditória do Pensamento Jurídico
Clássico viabilizou a absorção desse quadro paradoxal pelo
direito civil brasileiro. A propriedade civil era tratada como
categoria universal e abstrata, ignorando-se que na sua origem
estava uma lei oriunda de uma política pública criada
especificamente para privilegiar os antigos donos de terras
segundo a anterior estrutura feudal, inclusive criando
mecanismos para assegurar-lhes mão-de-obra barata frente à
impossibilidade de, nos novos tempos, utilizarem escravos para
sua produção.
Com isso, o Pensamento Jurídico Clássico viabilizou
que o direito civil brasileiro adotasse a noção liberal de
propriedade, em seu sentido absoluto e universal, e ao mesmo
tempo que essa propriedade fosse alocada por uma política
pública específica voltada a assegurar disponibilidade de mão-
de-obra para os proprietários rurais. Os proprietários rurais
59
tinham plena liberdade para dispor de suas terras, mas os
proprietários foram legitimados e protegidos por uma escolha
política casuísta e arbitrária. Assim, os mercados de terras e
de produtos agropecuários nasceram como um jogo de cartas
marcadas, em que os antigos aliados da coroa – sesmeiros e
grandes posseiros – tinham larga vantagem. Desse vício de
origem, o direito civil da época não se ocupou.
Outro elemento importante nas relações entre direito
e economia desse período foi a apropriação pelo Brasil do
droit administratif francês. Ao contrário do que narra a
grande maioria dos atuais manuais67, esse direito
administrativo não era o produto da defesa dos cidadãos contra
o absolutismo francês. Em nome da Revolução Francesa,
instituições do Absolutismo, ao invés de rejeitadas, foram
incorporadas e se converteram em instrumento da ação estatal.
Do Governo Jacobino ao de Napoleão, as instituições que no
Ancien Régime serviam ao poder do Rei foram incorporadas pela
idéia de pouvoir de police. Esse poder de polícia serviu para
assegurar ao Chefe do Executivo a prerrogativa de conduzir os
assuntos públicos e de evitar a ingerência do Judiciário e do
Legislativo.68 Na França, a separação de poderes não se
converteu em um sistema de freios e contrapesos, como nos
Estados Unidos.69 Isso se refletiu na disciplina jurídica do
poder político e, em decorrência, deu origem ao pouvoir de
police francês, um poder do Executivo que – em sua concepção
francesa original - não era sujeito à limitação pelos outros
Poderes. Associada ao pouvoir de police estava a puissance
67 Por exemplo: MEIRELLES, 1989, p. 35; DI PIETRO, 2009, pp. 1-4; MELLO, 2012, pp. 38-42. 68 Cf. LOUREIRO (2010). 69 Cf. ARENDT, 2001, Capítulo Quarto.
60
publique, origem da chamada supremacia do interesse público
sobre o privado. O droit administratif depositava no Executivo
a exclusiva legitimidade na condução dos assuntos públicos. E,
com isso, a dita supremacia do interesse público sobre o
privado se converteu em justificativa para um Executivo que
tudo podia.
Essa qualidade autoritária da supremacia do
interesse público sobre o privado se reflete no direito
administrativo que então se construiu. Até hoje, a maior parte
das categorias de Direito Administrativo tem por objetivo
fixar poderes para a administração pública e assegurar sua
eficácia. Ideias tais como discricionariedade administrativa,
cláusulas contratuais exorbitantes, auto-executoriedade dos
atos administrativos, autotutela, entre outras, não veiculam
garantias dos cidadãos contra os poderes do Estado, mas sim
poderes do Estado de imposição de sua vontade frente ao
particular. A supremacia do interesse público sobre o
particular ocupa papel central na articulação desses
conceitos, assim como sua instrumentalização pela ideia de
poder de polícia.70
Foi esse Direito Administrativo que, em 1850, passou
a ser ensinado nas faculdades de Direito nacionais. Os
conceitos centrais, trazidos do droit administratif, traduziam
os valores que a Revolução Francesa colocou no Estado como
manifestação da vontade geral. Era um direito administrativo
70 Para uma crítica à visão romântica de formação de um direito administrativo garantista e ao papel da ideia de supremacia do interesse público, ver BINENBOJM (2008). Para crítica à ideia de poder de polícia como elemento central de articulação dos poderes administrativos, ver SUNDFELD (2003). Para uma narrativa da incorporação do princípio da supremacia do interesse público e outros elementos distintivos do Direito Administrativo nacional, ver CASTRO (2013).
61
concebido para ser aplicado pelo Executivo, não pelo
Judiciário. Mais do que isso, sua premissa era a não sujeição
do Executivo ao Judiciário – o que, inclusive, deu origem a
uma instância própria para esse controle: o Contencioso
Administrativo. Consoante a teoria da vontade, característica
do Pensamento Jurídico Clássico, o direito público em geral e
o administrativo em particular eram tradução de uma vontade
pública que, por sua vez, era absoluta em sua esfera de
atuação. Essa caracterização fica clara, por exemplo, na
seguinte exposição de Pimenta Bueno sobre a distinção entre
direito público e direito privado:
Desta importante classificação e dinsão dos dous
interesses, ou do Direito Publico e Particular, seus
reguladores distinctos, nasce desde logo a diversa
competencia, a dupla existencia do poder administrativo
e do poder judicial, e com ella a separação profunda de
suas attribuições, que não devem jamais ser confundidas.
Com effeito, é desde logo manifesto que a gerencia das
relações do cidadão com o Estado, daquellas em que a lei
deu o predomínio ao interesse collectivo, em que
collocou este debaixo da alçada e protecção do Direito
Publico ou Administrativo, que é ramo seu; é manifesto,
diziamos, que essa gerencia deve pertencer ao poder
executivo ou administrativo, pois que é o encarregado de
zelar desse dominio.
Semelhante e consequentemente, o que respeita ás
relações dos cidadãos entre si, a seus interesses, o que
é administração da justiça, deve pertencer a outro poder
distincto, aos tribunaes judiciários: aliás não haverá
liberdades ou direitos civis possíveis, pois que á
pretexto da ordem, ou interesse geral, o poder
62
administrativo escravisaria todas ellas, que vacillarião
incertas e pendentes de seu arbítrio e de seus erros.71
Nesse contexto, o direito administrativo era visto
como de fundamento político – era, afinal, um ramo do direito
público - ao que se distanciava do direito civil, de suposto
fundamento científico. Seu objeto era não apenas a organização
da burocracia, mas também dos serviços estatais. De um lado,
como dito, esse direito permitia, sob o fundamento da polícia
administrativa, a ingerência estatal das atividades comerciais
- exceto quando conflitasse com o direito civil. De outro
lado, abria espaço para a completa gestão estatal de
determinadas atividades, bastando para tanto justificar a
conveniência política de fazê-lo. Foi com essa justificativa,
por exemplo, que se considerou domínio exclusivo do Estado o
serviço de correios e as atividades de telegrafia e
telefonia.72 Essas atividades, uma vez consideradas de domínio
público (do Estado), poderiam ser delegadas a particulares,
sob condições que em tese permitiriam ampla gestão do serviço
pelo Executivo.73 Ao mesmo tempo, por serem atividades
71 BUENO, 1857, p. 9 – mantida a grafia original. 72 A justificativa usada foi: “Ora, si o governo, como todo o fundamento e ad instar do que tem feito as nações mais adeantadas poz fora de questão [...] que as linhas telegraphicas no Imperio pertencem ao dominio do Estado, e si neste sentido hão sido uniformes as decisões constantes de diferentes avisos, seria por certo contrario aos preceitos de boa hermeneutica qualquer resolução estatuindo diversa doutrina à respeito dos telephonos. /§/ Seria, alem disso, altamente incoveniente no conceito da secção deixar-se este novo meio de communicação inteiramente á livre disposição da indústria particular ou das assembleas provinciaes, quando está reconhecido que a collocação de linhas telephonicas conforme o modo por que foram estabelecidas, pode perturbar a regularidade do serviço telegraphico [...] /§/ Por outro lado há, ainda, a attenderem-se as razões de ordem e conveniencia publica, que fizeram considerar o correio, e, depois, o telegrapho electrico, como serviços da exclusiva competencia do governo geral.” (Parecer do Conselho de Estado, de 10/2/1881, apud: BRITO, 1975, p. 35 – mantida a grafia original). 73 No Império, além dos correios, do telégrafo e da telefonia (vide nota supra), foram ainda considerados de domínio público as ferrovias e a eletrificação urbana (CF. ARAGÃO, 2007, pp. 60 e 61).
63
delegadas, pressupunham exclusividade em sua prestação, o que
assegurava monopólio aos particulares que obtivessem do Estado
a delegação.
Contudo, considerável esforço teórico foi despendido
para delimitar o âmbito de aplicação do regime jurídico
administrativo. O resultado desse esforço se fundou na divisão
entre direito público e direito privado, característica do
Pensamento Jurídico Clássico. Aplicava-se a lógica da teoria
da vontade: naquilo que fosse concernente à esfera pública, a
vontade pública seria absoluta; naquilo que fosse concernente
à esfera privada, a vontade privada seria absoluta. Assim, do
lado do direito público, havia a supremacia do interesse
público sobre o privado – expressão da vontade pública que,
agindo nos limites de sua esfera, seria absoluta. No lado do
direito privado, em contraponto, haveria proteção frente à
interferência do Estado – a vontade privada, agindo nos
limites de sua esfera de atuação, seria absoluta.74 O direito
privado trataria da relação entre iguais, em que uma parte não
possui ascendência sobre a outra - logo, não haveria que se
falar em supremacia de um interesse sobre outro.75
O direito privado compreendia essencialmente o
direito civil e o direito comercial. Afirmava-se o direito
civil como essencialmente protegido da ingerência estatal,
dado que estruturado a partir daquilo que os homens livres
reputassem consistir em suas regras de convívio social.76 O
74 Vide a caracterização da teoria da vontade feita nas pp. 35 e ss. 75 Sobre as características do direito público frente ao direito privado, cf. SUNDFELD, 1998. 76 Pimenta Bueno, por exemplo, afirmava que o direito civil é “o domínio [...] em que o poder administrativo não tem entrada, senão por criminosa invasão. É o regimen especial da sociedade particular dos homens entre si...” (BUENO, 1857, p. 13 – mantida a grafia original).
64
direito comercial, contudo, não tinha a mesma proteção rígida
conferida ao direito e à propriedade civil. Ao contrário,
doutrinadores da época expressamente admitiam a que o Estado
impusesse limitações ao comércio:
As limitações podem ser incluídas nas seis classes
seguintes: 1ª, as que provêm de certos monopólios do
Estado; 2ª, as motivadas por considerações de
salubridade e segurança; 3ª, as que se fundam na
necessidade de tutelar os direitos de certos produtores
(patentes, marcas de fábrica etc.); 4ª, as que se
estabelecem para garantir a boa qualidade dos produtos;
5ª, as que se impõem para garantir o funcionamento
econômico de certas empresas (leis sobre sociedades
anônimas etc.); 6ª, as que se originam de fins
tributários, na aplicação dos impostos indiretos. [...]
Dentre as indústrias que, nas nações civilizadas, exigem
mais freqüentemente a intervenção do Estado, salientam-
se a agricultura e o comércio.77
Assim se deu a construção no direito do que podemos
chamar de um liberalismo de conveniência. Havia as atividades
de livre mercado abrigadas por um direito civil
convenientemente construído para contemporizar as contradições
e idiossincrasias da realidade política da época, e protegido
de interferência de políticas estatais. Havia o direito
comercial de viés indubitavelmente liberal, porém passível de
constrição pelo direito administrativo. E havia o direito
administrativo - originalmente concebido para, em seu âmbito
de atuação, não ter limites - que podia fundamentar a
instituição de monopólios nas atividades que se compreendessem
77 CASTRO, Augusto Olympio, 1914. p. 213-214.
65
fossem de sua esfera de atuação, e que podia ainda limitar a
propriedade e as atividades comerciais.78
Esse cenário reforça a conclusão acima exposta, com
base nas ideias de Duncan Kennedy, de que no Pensamento
Jurídico Clássico o direito público é limitado pela
racionalização promovida pelo Direito Privado, e não pela
racionalização feita pelo Direito Público. O que chamamos de
liberalismo de conveniência, assim, foi a possibilidade de
conferir maior ou menor liberdade de uso de propriedade
conforme se considerasse que se tratasse da esfera de
aplicação do direito civil, do direito comercial, ou do
direito administrativo. Não estamos, portanto, nos referindo à
inserção da ideologia liberal na formação política brasileira
– o que demandaria outra análise, sob outras premissas que não
a deste trabalho. Referimo-nos à conveniência para a elite
brasileira79 de um direito que, à guisa de exercício de uma
78 Esclarecedora, por exemplo, a opinião de um administrativista brasileiro da época: “De três modos pode o Estado intervir na ordem econômica; agindo diretamente, impulsionando e regulamentando. Age diretamente quando por si mesmo obra como produtor de um serviço, como quando se incumbe da instrução ou quando constrói uma estrada de ferro; intervém impulsionando quando anima e dirige a atividade individual em um certo sentido, premiando, subvencionando os esforços individuais; finalmente intervém regulamentando, quando, mediante regulamentos de polícia administrativa, previne males que podem ocorrer no trabalho, na indústria, no comércio. [...] O Estado simples sentinela, mero guarda do direito nunca existiu, nem existe em parte alguma.” (SOUZA, José Soriano de, 1893. p. 62 – grifos ausentes no original.) 79 A relação entre o direito civil que se construiu e os interesses da elite brasileira da época fica evidente na avaliação que Laura Beck Varela faz sobre a construção jurídica da propriedade fundiária com características modernas (em oposição à propriedade feudal): “A propriedade fundiária brasileira é, assim, fruto de um longo processo que marca a saída dos bens do patrimônio público régio, um esforço gradativo de delimitação da esfera privada, em oposição ao que era público – as terras do rei. A cristalização do direito de propriedade privada foi, certamente, o resultado de uma complexa “construção” forjada em meio às tensões sociais e às condicionantes da infraestrutura econômica. “Construção” de uma disciplina jurídica proprietária, conquista gradual de um espaço a salvo das ingerências mercantilistas da Coroa. Essa disciplina jurídica serviu,
66
racionalidade auto-evidente, distinguia entre uma propriedade
com maior proteção – a civil – e outra com maior possibilidade
de intervenção política – a comercial.
Instrumento desse liberalismo de conveniência,
portanto, foi a noção de que existe um âmbito privado típico
das relações sociais autorreguladas e espontaneamente
estabelecidas.80 A racionalização, pelos juristas da época,
acerca de dada atividade econômica pertencer ou não, no todo
ou em parte, a esse âmbito privado típico das relações
privadas seria o fiel para se permitir ou se afastar a
possibilidade de ingerência estatal.81 Se adequarmos essa
ideia ao que Kennedy descreve como teoria da vontade, podemos
afirmar que o direito civil e o direito comercial brasileiros
construiram as relações de produção, troca e consumo de bens e
serviços como um espaço singular de manifestação da vontade
privada.82 Essa ideia permeia, por exemplo, a análise feita por
Teixeira de Freitas sobre a fundamentação nas “relações
econômicas” da distinção civilística entre crédito pessoal e
crédito real:
fundamentalmente, à consolidação do poder da elite local, que se perpetuou sob a forma dos grandes latifúndios.” (VARELA, 2005, pp. 231-232). 80 Pimenta Bueno, por exemplo, afirmava que o direito civil “é o regimen especial da sociedade particular dos homens entre si; são as suas transações sanccionadas pelas leis civis, e mantidas sómente pelos seus magistrados; ou por outra, são seus próprios direitos devidamente reconhecidos, que lhes dão a faculdade de governar-se a si mesmos, em tudo que lhes não é expressamente prohibido; pois que nisso consiste a sua liberdade civil.” (BUENO, 1857, p. 13 – mantida a grafia original.) 81 A propriedade das jazidas minerais e a distinção do domínio do solo e do subsolo é exemplo bastante significativo dos efeitos da teoria da vontade no Pensamento Jurídico Clássico, em especial quanto à repercussão de se considerar ou não dada atividade econômica como inclusa no âmbito privado. Foi por considerar o subsolo fora do âmbito da propriedade civil sobre o solo que se justificou a ingerência estatal na atividade mineradora e a possibilidade de se conceder outorgas públicas a particulares outros que não os donos dos terrenos em que se localizavam as minas. A controvérsia da época é bem retratada em: BANDEIRA, 1885.
67
As relações humanas, que na esphera da Sciencia Jurídica
são consideradas factos, a que cabe applicar uma regra
de direito, mostram-se na esphera da Sciencia Econômica
como vehiculos de producção, distribuição, e consumo, de
riquezas; — como trocas de objectos da natureza physica,
sem as quaes não pôde o homem satisfazêr suas
necessidades, nem desenvolver as aspirações do seu
gênio. Nos rudimcntos do commercio essas transacções
começam por trocas do supérfluo, passam a ser depois,
pela divisão do trabalho, que as multiplica, trocas
directas de productos; convertem-se progressivamente,
com a introducção da moeda, em trocas indirectas; e
recebem finalmente um novo e soberano impulso com o
desenvolvimento da noção do credito, isto é, com a
expansão da confiança nas pessoas, e nas cousas,
elementos de todas as relações.
Se o credito pessoal presuppõe o vinculo individual das
obrigações, o credito real não se concebe sem direitos
reaes, que affectam immediatamente a propriedade
immovel.83
A exposição de Teixeira de Freitas fala das
relações econômicas como um processo evolutivo natural a que
corresponderia um direito específico. Essa ideia de economia
como processo evolutivo natural, e sua correlação com o
direito privado, está presente também em autores como Carlos
Augusto de Carvalho84 e José Antônio Pimenta Bueno.85 Assim, se
83 FREITAS, 1945, pp. CXXIII-CXXIV – mantida a grafia original. 84 Por exemplo, Carlos Augusto de Carvalho afirma que: “O dominio e os direitos reaes in re aliena seguem uma evolução puramente economica. O rigor das regras cede ás necessidades do credito moveI e do immoveI.” (CARVALHO, Carlos Augusto, 1899, p. CXV – mantida a grafia original). 85 Pimenta Bueno assim justifica o regime da propriedade civil: “A plenitude da garantia da propriedade não só é justa, como reclamada pelas noções economicas, e pela razão politica dos povos livres; na collisão antes o mal de alguma imprudência do proprietario do que a violação do seu livre domínio. Sem ella não haverá desenvolvimento de sacrificios ou forças industriaes e portanto muito menos incremento e expansão da riqueza e bem-
68
enxerga de um lado um direito próprio às relações econômicas –
o direito privado -, e de outro lado um direito próprio à
atuação do Estado – o direito público.
Nesse período, porém, ainda não havia preocupação
teórica com o papel do direito em mediar a atuação do Estado
na economia – ao contrário, quando se relacionavam ambos, se
considerava que o direito privado era mero espelho da economia
(entendida esta sob a óptica liberal).86 Essa situação se
modificaria no curso do séc. XX e seria acompanhada pela
emergência de uma nova linguagem jurídica global, aquela que
Kennedy chama de “the Social” e a que nos referiremos como
Pensamento Jurídico Social. Não obstante, a influência do
Pensamento Jurídico Clássico permanece até os dias atuais. Em
decorrência dessa influência, fixou-se a noção de que o
direito privado, especialmente o direito civil, seria composto
por regras ideologicamente neutras e que refletiriam o
funcionamento da economia de mercado segundo seus princípios
típicos. A fixação de regras de direito público,
coerentemente, seria estudada e categorizada como intervenção
no domínio econômico.
1.3. O Pensamento Jurídico Social (1900-1968) e estruturação do Direito Administrativo e do Direito Econômico brasileiros
A segunda globalização do direito descrita por
Kennedy, é a do Pensamento Jurídico Social como consciência
ser social; qual o homem que semearia trigo sem ter certeza de que a colheita e livre disposição seria sua?” (BUENO, 1857, p. 430 – mantida a grafia original). 86 Cf. AGUILLAR, 2006, pp. 32-36.
69
jurídica transnacional. Segundo esse autor, o início de sua
formulação se deu no final do séc. XIX e início do séc. XX,
mas sua força global passou a ser sentida a partir da I Guerra
Mundial, deflagrada em 1914. Embora seu declínio date do final
da II Guerra (1945), sua força foi sentida em estratégias de
desenvolvimento econômico adotada por organismos
internacionais e países em desenvolvimento na década de 60.87
O Pensamento Jurídico Social é uma crítica ao
Pensamento Jurídico Clássico, e também um projeto de
reconstrução social - em um ambiente marcado pela devastação
da primeira grande guerra (1919) e, posteriormente, pela
quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque (1929). Nesse
contexto, o direito passa a ser caracterizado pela ideia de
instrumentalidade para o bem-estar social.88 Como elemento
central desse modo de pensar está a ideia de função social do
direito.
Por isso, o Pensamento Jurídico Social contrapõe-se
ao Pensamento Jurídico Clássico ao abandonar a busca por uma
coerência sistemática e afastar a dedução como método de
implementação do direito. Além disso, é uma crítica tanto ao
individualismo típico da teoria da vontade, como ao que era
visto como abuso do uso da dedução como método de construção
do direito. Ao contrário de ser produzido pela sistematização
de conceitos abstratos, o direito deveria corresponder às
necessidades efetivas verificadas na sociedade, na forma como
apreendida pelas ciências sociais e, em especial, pela
Sociologia. O desenvolvimento racional do direito se daria,
logo, de modo vinculado às necessidades da sociedade,
87 Cf. KENNEDY, 2006a, p. 36 e passim. 88 KENNEDY, 2006a, pp. 36 e ss.
70
apreendidas pela compreensão dos fatos sociais. A partir da
compreensão dos fatos sociais é que seria possível a
construção da resposta jurídica adequada - ao contrário do
Pensamento Jurídico Clássico, em que o direito se
desenvolveria “racionalmente” como ordem jurídica autônoma,
distinta da moral e da política, calcada em conceitos
abstratos organizados segundo axiomas que serviriam de base
para aplicação do direito por dedução.
Em contraposição ao individualismo do Pensamento
Jurídico Clássico, o Pensamento Jurídico Social abraçou a
ideia de interdependência. Esta era representada pela noção de
que a vida no final séc. XIX era o reflexo de uma
transformação social promovida pela urbanização,
industrialização, estratificação social e globalização de
mercados. Para incorporar essa pluralidade de fatores, o
Pensamento Jurídico Social se contrapôs à teoria da vontade e
seu fundamento individualista, dado que um direito
individualista somente poderia produzir respostas às
necessidades individuais. Confome o Pensamento Jurídico
Social, era necessário um direito social, calcado na
interdenpendência, para que uma resposta coerente às
necessidades coletivas fosse possível.89
Como consciência jurídica, o Pensamento Jurídico
Social, segundo Kennedy, ensejou discursos variados. Tal como
ocorreu com o individualismo no Pensamento Jurídico Clássico,
89 “Because the will theory was individualist, it ignored interdependence, and endorsed particular legal rules that permitted antisocial behavior of many kinds. The crises of the modern factory […] and the urban slum, and later the crisis of the financial markets and the Great Depression, all derived from the failure of coherently individualist law to respond to the coherently social needs of modern conditions of interdependence.” (KENNEDY, 2006a, p. 38.)
71
a adoção da interdependência como ideia comum ao modo de
pensar do Pensamento Jurídico Social não significou unidade de
discurso. Ao contrário, o Pensamento Jurídico Social produziu
doutrinas de esquerda e de direita, progressistas e
conservadoras. Em todas elas, porém, a ênfase no deducionismo
do Pensamento Jurídico Clássico foi substituída pela ênfase na
instrumentalidade do direito para alcançar fins sociais.90
A partir dessa mudança de fundamentação frente ao
Pensamento Jurídico Clássico, o Pensamento Jurídico Social
estruturou-se como modo de pensar a partir de quatro
propostas: (1) o “deve-ser” (ought to) do direito deve ser
adaptado ao “é” (is) das circunstâncias sociais; (2) as normas
jurídicas devem ser formuladas com base em uma abordagem
instrumental, e não dedutiva; (3) a formulação de normas
jurídicas não compete somente à legislatura, mas também a
cientistas jurídicos, juízes e servidores públicos, a partir
do expresso reconhecimento de que a ordem jurídica formalmente
válida é incompleta; (4) a construção do direito deve ser
ancorada em práticas normativas (direito vivo) que grupos
intermediários entre o Estado e o indivíduo estariam
continuamente desenvolvendo em resposta às necessidades da
nova conjuntura social.91
90 “In other words, the social, like CLT, was initially a consciousness (though always in an embattled relationship with CLT, rather than straightforwardly hegemonic in the way CLT had been in the brief period between about 1850 and 1890) within which it was possible to develop different and confliction ideological projects. Regardless of which it was, the slogans included organicism, purpose, function, reproduction, welfare, instrumentalism (law is a means to an end) – and so antideduction, because a legal rule is just a means to accomplishment of social purposes.” (KENNEDY, 2006a, p. 39 – tradução livre.) 91 Parafreamos, com adaptações, o seguinte trecho: “The social people had four positive proposals: (1) from the social “is” to the adaptative ought for law, (2) from the deductive to the instrumental approach to the
72
Essas quatro características, conforme explicita
Kennedy, são refletidas em três formulações típicas do
Pensamento Jurídico Social: o pluralismo, o institucionalismo
e o corporatismo.
O pluralismo dá relevo ao direito vivo, visto como
aquele praticado por grupos não-estatais como resposta para
necessidades efetivas da sociedade – em oposição àquilo que é
visto com uma mera manifestação formal do aparato estatal, o
direito estatal.92 Os pluralistas, ao contrário, identificam
várias ordens normativas abaixo e acima do Estado, sujeitas a
diversos tipos de institucionalização formal e informal. Sob a
perspectiva do pluralismo, consideram-se, por exemplo, as
ordens normativas postas pelo direito canônico, pelas normas
das corporações medievais e sua adaptação pelo direito
mercantil, pelo direito internacional costumeiro e até mesmo
pelo código de conduta da Máfia italiana.
Outra formulação típica do Pensamento Jurídico
Social é o institucionalismo. A ideia de instituição tem parte
importante na estruturação do modo de pensar do Pensamento
Jurídico Social, especialmente em associação ao pluralismo.
Para a compreensão das ordens normativas não-estatais, era
necessário identificar as práticas sociais que configurariam
um direito não-estatal, distinguindo-as de meros costumes, e
conferir a essas práticas uma certa coerência conceitual. A
formulation of norms, (3) not only by the legislature but also by legal scientists and judges and administrative agencies openly acknowledging gaps in the formally valid order, and (4) anchored in the normative practices (“living law”) that groups intermediate between the state na the individual were continuosly developing in response to the needs of the new interdependent social formation.” (KENNEDY, 2006a, p. 40.) 92 KENNEDY, 2006a, p. 40.
73
ideia de instituição, concebida nos moldes que Kennedy
descreve abaixo, servia a esse propósito:
...[a instituição é concebida como] uma organização, um
conjunto de papéis [sociais], persistente no tempo, mas
variada quanto às pessoas que a integram, orientada a
partir de um momento de fundação para alcançar um grupo
(cambiável) de propósitos [ou finalidades] que vão além
dos interesses individuais daqueles que em dado momento
ocupam os papéis sociais.93
Ao lado do pluralismo e do institucionalismo, o
Pensamento Jurídico Social conhece e desenvolve o
corporativismo. Como dito, esse modo de pensar tem como raiz a
ideia de que o direito está vinculado a finalidades sociais.
As finalidades sociais, contudo, não seriam fruto da
manifestação política dos cidadãos em resultado de um processo
eleitoral – isto é, não seriam o produto formal do
Legislativo. As finalidades sociais estariam manifestas nas
instituições. E a democracia representativa não seria sequer o
meio mais adequado para regular e supervisionar as finalidades
sociais. Por ser baseada em um processo legislativo conduzido
por indivíduos eleitos, a democracia representativa era vista
como um improvável veículo para a supervisão racional do
funcionamento das instituições e, por conseguinte, para o
atingimento das finalidades sociais. A solução proposta era
conferir acesso direto pelas instituições (compreendidas
também no sentido de organizações da sociedade, como visto
acima) ao poder estatal:
93 “...an organization, a set of roles, persistent in time but with shifting personnel, oriented in a founding moment to some set of (changeable) purposes going beyond the individual interests of the role incumbents.” (KENNEDY, 2006a, p. 41 – tradução livre).
74
[O corporativismo] é a visão de que todas as
instituições plurais tinham propósitos que contribuíam
para a auto-preservação e evolução da sociedade como um
todo, e que somadas elas eram um melhor “representante”
da sociedade do que, digamos, um processo eleitoral
baseado na votação por indivíduos. Mais do que isso, um
processo legislativo que emergisse da votação individual
provavelmente seria incapaz de desempenhar racionalmente
a função de supervisionar as atividades auto-reguladas
das instituições.94
Pluralismo, institucionalismo e corporativismo são
mais ou menos incorporados no léxico dos diversos teóricos que
se influenciaram pelo Pensamento Jurídico Social. Como linha
comum, está a negação do formalismo conceitual do Pensamento
Jurídico Clássico e a afirmação das necessidades sociais como
fundamento para o direito. A negação do formalismo, porém, não
busca substituir uma visão objetiva de direito por uma visão
subjetiva. Para os teóricos do Pensamento Jurídico Social, de
acordo com Kennedy, a forma correta de se abordar
cientificamente o direito era pelo recurso às ciências
sociais, tais como a Sociologia, a Psicologia e a Economia.
Esse modo de pensar se voltava contra o fundamento da
pretensão científica do Pensamento Jurídico Clássico,
pretensão essa fundada na distinção e organização sistemática
de categorias95 a partir da técnica jurídica. Tal qual o
94 “This was the view that the plural institutions all had purposes that contributed to the self-preservation or reproduction and evolution of society as whole, and that taken together they were a better ‘representative’ of society than, say, an electoral process based on voting by individuals. Moreover, a legislative process that emerged from individual voting was unlikely to perform in a rational way the function of overseeing the self-regulating activities of institutions.” (KENNEDY, 2006, p. 41 – tradução livre). 95 Kennedy chama essa metologia de “aninhamento” (nesting): “Savigny builds the System by the method that is sometimes called “nesting”, according to which within a distinction there is another distinction, on each side, that
75
Pensamento Jurídico Clássico, o Pensamento Jurídico Social
aspirava igualmente objetividade científica, mas argumentava
que essa seria alcançável pelo estudo da realidade para se
obter a constatação daquilo que é, para que então se pudessem
projetar as corretas soluções e assim estabelecer aquilo que
deveria ser. O caminho entre ser e dever ser96 seria
estruturado pelo “estudo”, formulado a partir de investigação
empírica que indicaria de forma técnica e apartidária as
efetivas necessidades do interesse público e os mecanismos
para seu atendimento.97
Uma importante constatação que podemos fazer, e
diretamente relacionada à ideia exposta acima, é que, ao
contrário do que identificam diversos autores, as agências
reguladoras independentes têm sua origem no Pensamento
Jurídico Social (e não como uma manifestação do dito
neoliberalismo dos anos 9098). Foi a partir do New Deal de
Franklin Roosevelt que as agências reguladoras independentes
reproduces the initial distinction. At the same time, he arranges the contrasting entities at each level, beginning within private law but then at the levels of public law and international law, to construct a pyramid in which the organic collective side has a strong polically conservative valence.” (KENNEDY, 2010, pp. 821-822). Para uma visão mais aprofundada do “aninhamento” e sua função na consciência jurídica (especialmente do Pensamento Jurídico Clássico), ver: KENNEDY, 1994, pp. 357 e ss. 96 Nas palavras de KENNEDY (2006, p. 43), “is-to-ought context”. 97 Nesse sentido, afirma Kennedy: “A key element of is-to-ought was the “study”, beginning with industrial accidents at the beginning of the century. The premise of the “study” was that there was a politically powerful, centrist, middle-class audience, that tended to assume that things in general were going fine. When alerted by a study either to dangers to themselves (e.g. unsanitary food processing) or to sufficiently flagrant abuse of others (conditions in the mines), this group would support a regulatory regime on “public interest” rather than partisan political grounds.” (KENNEDY, 2006a, p. 43.) 98 Todavia, como veremos adiante, o papel das agências reguladoras na narrativa do Estado Regulador, dentro do Pensamento Jurídico Contemporâneo terá justificativa bastante diversa.
76
passaram a ser largamente adotadas nos EUA.99 Neste país, antes
de 1930, apenas duas agências reguladoras haviam sido
instituídas. Após 1930, sob Roosevelt, dezenas de agências
reguladoras foram criadas. A criação das agências reguladoras
desse período é descrita como “respostas não apenas à
percepção de problemas sociais que demandam solução do
governo, mas também à percepção de que as instituições
existentes não são adequadas para a tarefa.”100 As agências
reguladoras proliferaram nos EUA, portanto, como uma forma
nova de ampliar a ação estatal sobre a economia, em que a
expertise técnica seria supedâneo para resolver os problemas
sociais da época.
No Brasil, no mesmo período, foram criadas
organizações inspiradas nas características das agências
reguladoras independentes americanas, de que são exemplos o
Departamento Nacional do Café e o Instituto do Açúcar e do
Álcool.101 Além disso, em dois importantes projetos
encomendados pelo Governo Vargas, houve a intenção explícita
de adotar instituições similares às agências reguladoras
americanas. Trata-se, um deles, da previsão no Código de Águas
99 Corroborando nossa afirmação: “The creation of the ICC did not produce an immediate flood of new federal agencies on the same model. Indeed, the Progressive Era produced only one other major regulatory innovation between the Interstate Commerce Act and the Great Depression, the creation of the Federal Trade Commission. [...] The watershed period in the creation of new federal administrative agencies was the New Deal. Concerns of both practice and principle notwithstanding, the President and the Congress created a host of new entities, often with broad and vaguely described authority, to respond to the national economic emergency.” (MASHAW et. al., 1998, p. 5.). Para uma análise pormenorizada das agências reguladoras desse período, com extensa documentação dos debates legislativos da época, ver CUSHMAN, 1941. 100 Nesse sentido: “...agencies typically are resonses not only to the perception of social problems warranting government response, but also to the perception that existing institutions are inadequate to the task.” (MASHAW et. al., 1998, p. 5.) 101 Sobre as características do Departamento Nacional do Café e do Instituto do Açúcar e do Álcool e as semelhanças com o modelo americano de agências reguladoras independentes, ver MEDEIROS, 2005.
77
de criação da Comissão Federal de Forças Hidráulicas, no
anteprojeto de lei liderado por Alfredo Valladão.102 O outro
foi o projeto de regulamentação do art. 147 da Constituição de
1937103, em a comissão de juristas liderada por Bilac Pinto
recomendou que a regulamentação por comissões (nos moldes das
commissions americanas) fosse adotada como forma de controle
dos serviços públicos104.
Não obstante a Comissão Federal de Forças
Hidráulicas não tenha sido implementada, e nem o anteprojeto
de Bilac Pinto tenha tido seguimento, a mesma ideia de
independência técnica que justificou a proliferação das
agências reguladoras nos EUA durante o New Deal, serviu a
Francisco Campos para justificar a centralização
administrativa no Estado Novo de Vargas –inclusive, citando o
exemplo americano para reforçar seu argumento:
A legislação perdeu o seu caráter exclusivamente
político, quando se cingia apenas às questões gerais ou
de princípios, para assumir um caráter eminentemente
técnico. [...]
102 Lia-se na exposição de motivos do Código de Águas, feita por Alfredo Valladão: “Instituiu o projeto [do Código de Águas] as comissões, cercando-as das maiores garantias de idoneidade moral, de competência administrativa e de independência. /§/ A Comissão Fedral de Forças Hidráulicas (destinada a propulsionar o desenvolvimento da indústria hidroelétrica no país, regulamentá-la e fiscalizá-la), ficou instituída do modo a poder gozar entre nós daquele mesmo prestígio de que goza, nos Estados Unidos, Interstate Commerce Commission.” (VALLADÃO, 1980, p. 58.) 103 Art 147 - A lei federal regulará a fiscalização e revisão das tarifas dos serviços públicos explorados por concessão para que, no interesse coletivo, delas retire o capital uma retribuição justa ou adequada e sejam atendidas convenientemente as exigências de expansão e melhoramento dos serviços. /§/ A lei se aplicará às concessões feitas no regime anterior de tarifas contratualmente estipuladas para todo o tempo de duração do contrato. 104 Cf. PINTO, 1941.
78
Ora, um corpo constituído de acordo com os critérios que
presidem à constituição do parlamento é inapto às novas
funções que pretende exercer. Capacidade política não
importa capacidade técnica, e a legislação é hoje uma
técnica que exige o concurso de vários conhecimentos e
de várias técnicas. [...]
Daí, o movimento geral em todo o mundo para retirar do
parlamento a iniciativa da legislação e estender cada
vez mais o campo da delegação de poderes. Não há hoje
obra legislativa importante que não tenha sido
iniciativa do governo ou não seja o resultado de uma
delegaçaõ do Poder Legislativo. Quase toda a legislação
recente na Inglaterra é feita por Orders in Council e
Departmental Regulations, isto é, legislação pelo
Executivo, mediante delegação de poderes.
Nos Estados Unidos, país em que sempre existiu a
prevernção dos tribunais contra a delegação, a
legislação pelo Executivo, ou delegada, constitui hoje a
massa mais importante da produção legislativa. (CAMPOS,
2002, pp. 82-83.)
Portanto, o Pensamento Jurídico Social deu ensejo a
uma ampliação da atuação do direito sobre a economia. Manteve-
se a distinção entre direito público e direito privado, porém
este não era mais uma limitação à esfera daquele. A ação do
direito sobre a economia não era vista como um exercício da
política. Ao contrário, essa ação seria o produto da técnica,
compreendida de acordo com a racionalidade científica da
Economia, Sociologia e Psicologia de então.105 Essa a visão
dessa época.106
105 Por isso, Duncan Kennedy afirma: “The social was social scientific” (KENNEDY, 2006, p. 43). 106 Nesse sentido, por exemplo, Francisco Campos defendia que: “A legislação perdeu o seu caráter exclusivamente político, quando se cingia apenas às
79
Foi a partir dessa premissa que se passou a teorizar
a influência do direito sobre a economia, bem como a noção de
que compete ao Estado planejar a economia. Assim, foi no
Pensamento Jurídico Social que a política econômica passou a
ser compreendida como produto do Estado e como objeto de
tratamento jurídico e investigação pelo Direito. Mas,
paradoxalmente, a política econômica não era vista como
política. Ao invés de política, era compreendida como uma
resposta técnica aos problemas sociais. Essa visão, com
roupagem diversa, ainda ocupa papel central nos debates sobre
a regulação setorial e o papel das agências reguladoras no
Brasil, como veremos adiante.
Paralelamente a essa visão de intervenção técnica,
outra importante corrente construída segundo o Pensamento
Jurídico Social é a organização do Direito Administrativo em
torno da ideia de “serviço público” e do que se chama de
"intervenção (jurídica) sobre o domínio econômico”. Essas duas
ideias são centrais na visão ainda hoje paradigmática no
direito brasileiro, e por isso agora nos ocuparemos delas com
maior detalhe.
A primeira grande influência dessa corrente foi Léon
Duguit, considerado o pai da doutrina do serviço público
francês. Duguit propôs que a ideia de serviço público seria o
fundamento do direito público e teria a função específica de
legitimar a atividade estatal, adequando-a a uma realidade
social que, por ser pre-existente ao próprio Estado, ditaria
os seus limites. O que o autor francês buscava era um
questões gerais ou de princípios, para assumir um caráter eminentemente técnico. [...] Capacidade política não importa capacidade técnica, e a legislação é hoje uma técnica que exige o concurso de vários conhecimentos e de várias técnicas.” (CAMPOS, 2006, p. 82).
80
substituto para a noção de soberania (puissance) como
fundamento do direito, de forma a que a atuação estatal
encontrasse suporte outro que não no próprio Estado. Na
concepção de Duguit, o Estado de Direito se submeteria a uma
ordem subjetiva que não teria sido criada por ele próprio, e
cujo fundamento seria a solidariedade social. A partir dessa
proposta, Duguit formulou sua noção de serviço público: uma
obrigação que se impõe aos governantes e cujo cumprimento é a
própria justificação do governo e das prerrogativas que lhe
são inerentes.107
A ideia de serviço público de Duguit não traz a
distinção entre público e privado como elemento delimitador do
regime jurídico a ser aplicado. Isto é, ao contrário do droit
administratif do Pensamento Jurídico Clássico, não havia para
Duguit um regime público típico do direito público, nem um
regime privado típico do direito privado. Duguit enfatiza o
serviço público como uma função social justamente porque, para
ele, pouco importa o regime jurídico (conjunto de regras,
direitos e obrigações) a que se submete determinada atividade,
o que importa é se dada atividade é ou não necessária ao
interesse público. O regime jurídico não está vinculado ao
fato de uma atividade ser considerada ou não serviço público.
Segundo Duguit, se uma dada atividade é desempenhada pelo
Estado para assegurar seus fins, será serviço público,
independentemente da qualidade das regras que a regulem.
107 Afirma Duguit: “En effet, dès ce moment on a compris que certaines obligations s`imposaient aux gouvernants envers les gouvernés et que l`accomplissement de ces devoirs était à fois la conséquence et la justification de leur plus grande force. Cela est essentiellement la notion de service public.” (DUGUIT, 1913, p. 33.)
81
A concepção de Duguit foi, todavia, base para novas
formulações teóricas que serviriam para manter e consolidar a
distinção entre público e privado legada pelo Pensamento
Jurídico Clássico. Gaston Jèze, discípulo de Duguit na Escola
de Bordeaux (a Escola do Serviço Público), deu os primeiros
passos nesse sentido. Para Jèze, serviço público seria um
processo para satisfação do interesse geral.108 O que
caracterizaria esse processo seria a adoção de um regime
jurídico público - definido por ele como um conjunto de regras
especiais passíveis de modificação a qualquer instante.
Portanto, Jèze vincula seu conceito de serviço público a um
conjunto típico de regras. O que determinava esse conjunto não
era a natureza dessas regras – “natureza jurídica” remete ao
Pensamento Jurídico Clássico, modo de pensamento que não é
adotado por Jèze. O que determinava esse conjunto típico do
regime público era o fato de serem regras diferentes das
aplicáveis às coisas privadas, e a possibilidade de que a
qualquer instante essas regras fossem modificadas em prol do
interesse geral.109 Qualquer setor econômico – ou qualquer
coisa – poderia se submeter ao processo de serviço público,
bastando para tanto que os governantes de um país, no uso de
sua autoridade, assim o quisessem.110
Não obstante essa formulação, Jèze afirmava que o
serviço público seria um dentre os mecanismos de que disporia
108 Dizia Jèze: “... le service public est un procédé – et non pas le seul procédé – pour donner satisfaction à des besoins d`intérêt général.” (JÈZE, 1924, p. 273). 109 Cf. JÈZE, 1924, pp. 264-273. 110 O autor assim afirmava: “Sont uniquement, exclusivement, services publics les besoins d`intérêt général que les gouvernants, dans un pays donné, à une époque donnée, ont décidé de satisfaire par le procédé du service public. L`intention des gouvernants est seule à considérer.” (JÈZE, 1924, p. 274).
82
o Estado para satisfazer o interesse público.111 Logo, Jèze
conferiu ao conceito de serviço público um aspecto
instrumental diverso do que Duguit imaginara. Para Duguit o
serviço público serviria como fundamento para ação estatal,
era a razão e o limite para a intervenção do público sobre o
privado. Para Jèze, o serviço público era um instrumento –
entre outros – para a atuação do Estado.112 Essa distinção é
importante e, quanto ao regime jurídico aplicável ao Estado,
aproxima Jèze de Duguit. Significa o reconhecimento por Jèze
de que nem toda ação estatal se pautaria por um regime
jurídico caracterizado pela supremacia do interesse público
sobre o interesse privado.113 Portanto, ao mesmo tempo em que
amarra o serviço público a um regime jurídico público, Jèze
não vincula todas as atividades estatais à idéia de serviço
público.114
111 Com efeito, Jèze afirmava que o Estado poderia assumir atividades tanto se valendo de um regime jurídico especial, caso em que se cuidaria de serviço público, como se valendo do regime jurídico ordinariamente aplicado sobre a propriedade privada – vide: JÈZE, 1924, p. 266. 112 Ver citação na nota 108 acima. 113 No mesmo sentido de nossa conclusão sobre o pensamento de Jèze, Alexandre Santos de Aragão afirma que, para o autor francês: “Não haveria um dado único que determinasse se a atividade tem ou não o regime jurídico especial de serviço público, mas sim um conjunto de circunstâncias, como a imposição de cargas públicas aos particulares [...] e o poder de fixar taxas para assegurar a prestação do serviço. O autor releva também como um importante dado a atividade ser monopolizada pelo Estado, e, com base nisso, demonstrando não diferenciar serviço público de atividade econômica monopolizada pelo Estado, dá como exemplos de evidentes serviços públicos (“très certainment constituent des services publics”) a fabricação da pólvora, de cigarros e de fósforos, então monopolizados pelo Estado francês.” (ARAGÃO, 2007, p. 88). 114 Outro discípulo da Escola do Serviço Público, Luis Rolland, iria além de Jèze para, além de afirmar a vinculação do serviço público a um regime jurídico típico da supremacia do público sobre o privado, tentar enumerar as regras que seriam características desse regime. Rolland diferenciava entre serviços públicos em sentido amplo e serviços públicos propriamente ditos; apenas os últimos estariam sujeitos a um regime jurídico especial. Esse regime, segundo o autor, se pautaria por postulados como a continuidade, a igualdade e a mutabilidade (ou atualidade). A respeito da
83
Ainda na França, a Escola do Serviço Público foi
contraposta pela linha institucionalista de Maurice Hauriou.115
A visão deste autor se contrapôs especialmente à visão que
colocava o serviço público como fundamento da ação estatal.
Segundo Hauriou, seria a soberania (souveraineté) o meio pelo
qual a massa social era conduzida a aceitar e assimilar a
coisa pública, ou ainda o meio pelo qual o Estado toma
consciência de si.116 Mas a soberania, segundo Hauriou, não
seria ilimitada, mas seria o poder político supremo enquanto
livremente empregado para realizar a coisa pública.117 À coisa
pública (chose publique), Hauriou opunha a coisa privada
(chose privée) – o conjunto de situações que não interessam a
ninguém que não o círculo de pessoas envolvidas – e a coisa
corporativa – o conjunto de situações que, não obstante
públicas, não interessam igualmente a todos.118 Desse modo, a
coisa privada e a coisa corporativa seriam, em princípio,
limites à soberania. Haveria, em decorrência, um âmbito de
atuação próprio para puissance publique, o da chose publique,
em que haveria um direito especial – o direito administrativo.
Fora dos limites próprios à soberania, não teria lugar o
Escola do Serviço Público na França, ver a análise de: ARAGÃO, 2007, pp. 89-90. 115 Cf. ROLDÁN MARTIN, 2000, pp. 20-21. 116 Assim dizia Hauriou: “...l’État n’est pas seulement une chose publique, mais encore une personne souveraine ou une souveraineté; nous savons aussi que cette souveraineté est le moyen par lequel la masse sociale est conduite à accepter et à réaliser la chose publique, de telle sorte que la souveraineté est un moyen par lequel l’Etat se réalise lui-même.”(HAURIOU, 1903, p. 12). 117 Cf. HAURIOU, 1903, p. 13. 118 É o que afirmava Hauriou: “La chose publique n’englobe point toutes les situations sociales; elle laisse en dehors, d’une part la “chose privée”, c’est-à-dire l’ensemble des situation qui n’intéressent que le cercle des intimes, et d’autre part la “chose corporative”, c’est-à-dire l’ensemble de situations qui, tout en étant publiques, n’interessent pas également tous les membres du groupe, les situations qui, tout en étant publiques, restent différentielles.” (HAURIOU, 1903, p. 10).
84
direito administrativo, mas sim o direito comum – comercial ou
civil.
Para Hauriou, no âmbito privado, do direito comum,
estaria a economia. Em nome da coisa pública, Hauriou até
mesmo defendia que seria possível a intervenção do Estado na
economia, por meio da ampliação da competência do próprio
direito administrativo. Mas decerto havia para o autor um
regime jurídico para o âmbito público, e outro para o âmbito
privado, e a economia seria regulada e identificada com o
segundo.119
A distinção entre os âmbitos público e privado se
faria presente na própria administração pública, que, para
Hauriou, teria dois regimes jurídicos. De um lado, praticaria
os atos administrativos, aqueles que veiculariam exercício de
119 Fica evidente no trecho em que Hauriou defende a possibilidade de ampliação do âmbito de atuação dos direitos de puissance publique sobre a atividade econômica o fato de que o autor francês mantém a ideia do Pensamento Jurídico Clássico, que assimila o regime de direito comum ao âmbito privado, e identifica a ideia de economia apenas com este: “Quels sont les rapports sociaux que l’État souverain doit diriger ou, pour employer une expression consacrée, jusqu’à quel point l’État doit-il intervenir dans les affaires sociales para sa législation, par son administration, par sa justice? Spécialment, jusqu’à quel point doit-il intervenir dans les rapports économiques? telle est la question. Elle est dominée par cet autre: quel est le but de l’État? car sans doute l’État ne doit intervenir que dans la mesure où cela est nécessaire pour realiser sa fin. Mais la fin de l’État n’est point extérieure à lui, comme on semble le croire généralement, elle lui es intérieure, la fin de l’État est de se réalise lui-même; il doit se réaliser comme chose publique par le moyen de la souveraineté, et c’esten se réalisant ainsi lui-même qu’il travaille pour l’individu. La fin de l’État est donc en réalité illimitée dans le sens de la chose publique. Il est à croire que la compétence de la souveraineté l’est également. En d’autres termes, c’est la souveraineté que règle elle-même sa compétence et c’est ce que l’on entend lorsqu’on dit qu’elle est “la compétence des compétences”. Aucun rapport social ne lui échappe de droit du moment qu’il présent les éléments requis pour constituer une chose publique, les rapports économiques pas plus que les autres; seulement les rapports économiques étant essentiellment privés et différentiels fournissent peu à la chose publique, et par conséquent se prêtend peu à l’intervention de l’État.” (HAURIOU, 1903, p. 17).
85
direitos de poder público (droits de puissance publique). De
outro lado, praticaria atos comuns a qualquer pessoa privada,
em que exerceria direitos de pessoa privada (droits de
personne privée).120 A soberaria, a puissance publique, desse
modo, teria para o autor francês um regime jurídico típico, o
dos droits de puissance publique121, cuja principal
característica seria o privilège du préalable122 – que entre
juristas pátrios ganhou a tradução de princípio da
autoexecutoriedade.123
Hauriou, portanto, estabeleceu uma delimitação entre
público e privado fundada na natureza da atividade – se
pertinente à coisa pública ou não -, de forma similar à teoria
da vontade do Pensamento Jurídico Clássico. Ele não admitia a
atribuição do regime jurídico público a qualquer atividade –
120 Sobre a distinção entre os tipos de direito exercidos pela administração pública, dizia Hauriou: “Si l’on considère l’administration publique comme un exercise de droits, il convient de distinguer différents modes suivant lesquel ces droits sont exercés car, suivant les modes, les conséquences juridiques de l’exercise des droits sont très différents: 1º les droits peuvent être exercés soit au nom de la puissance publique, soit au nom du domaine ou du Fisc, c’est-à-dire au nom de la personnalité publique des administrations, ou au nom de leur personnalité privé; 2º les droits exercés au nom de la pussance publique peuvent l’etre soit par la voie d’autorité, soit par la voie de gestion.” (HAURIOU, 1903, p. 227). 121 Cf. HAURIOU, 1903, p. 796. 122 Assim afirma o próprio autor: “Les droits de puissance publique sont ceux que contiennent de la puissance, c’est-à-dire des privilèges exorbitant du droit commun, notamment le privilège du préalable...” (HAURIOU, 1903, p. 529). 123 A expressão em francês é usada nesse sentido inclusive pela jurisprudência, como se pode perceber no seguinte trecho do voto do Ministro Celso de Mello: “O atributo da auto-executoriedade dos atos administrativos, que traduz expressão concretizadora do privilège du preálable, não prevalece sobre a garantia constitucional da inviolabilidade domiciliar, ainda que se cuide de atividade exercida pelo Poder Público em sede de fiscalização tributária." (Habeas Corpus nº 82.788, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 2/6/2006).
86
não admitia, logo, que a incidência da puissance publique
ocorresse livremente sobre a atividade privada. Para ele,
haveria um campo de atuação típico de Estado, e outro típico
do particular.124 Desse modo, a distinção público/privado em
Hauriou cumpre um papel de limitação da atuação estatal típico
do Pensamento Jurídico Clássico, e não de legitimação e
organização dessa atuação como é característico no Pensamento
Jurídico Social.
No Brasil, o Direito Administrativo adaptou a Escola
do Serviço Público na forma de um peculiar sincretismo125. Como
veremos adiante, as diferentes ideias de serviço público
desenvolvidas por Duguit, Jèze, Rolland e Hauriou foram
misturadas e assimiladas como se se tratassem de uma única e
uniforme concepção. O reflexo maior dessa assimilação
uniformizante de ideias antagônicas quanto ao serviço público
se dará no modo como o Direito Administrativo contemporâneo
entende ser o papel do Estado diante da atividade econômica da
sociedade, em que a ideia de serviço público como fundamento
para a ação estatal, defendida especialmente por Duguit, é
misturada com a ideia de Hauriou de que há um regime jurídico
próprio a um conjunto de atividades que, por natureza, seriam
públicas. Antes, porém, de tratarmos do Direito Administrativo
contemporâneo brasileiro, é necessário tratar do modo de
pensamento, segundo a exposição de Kennedy, que seria
característico daquela corrente: o Pensamento Jurídico
Contemporâneo.
124 A mesma conclusão, ao analisar Hauriou, é alcançada por ARAGÃO, 2007, pp. 13-14. 125 Ver LOUREIRO, 2013.
87
1.4. O Pensamento Jurídico Contemporâneo (1945-2000) e sua apropriação pelo Direito brasileiro
Ao Pensamento Jurídico Social, segundo Kennedy,
sucedeu o Modo Contemporâneo do Pensamento Jurídico Ocidental,
ou a consciência jurídica contemporânea126 (adiante referido
aqui como “Pensamento Jurídico Contemporâneo”), como modo de
pensar globalizado do Direito. Segundo o autor, trata-se do
atual pensamento hegemônico no Direito.
O Pensamento Jurídico Contemporâneo, ao contrário de
seus antecessores, não possui um conceito central estruturante
de seu modo de pensar, como eram a teoria da vontade no
Pensamento Jurídico Clássico, ou a interdependência, no
Pensamento Jurídico Social. Isso porque o Pensamento Jurídico
Contemporâneo é um sincretismo de ambos modos de pensar que
lhe antecederam.127
Do Pensamento Jurídico Clássico, o Pensamento
Jurídico Contemporâneo adapta o modo de pensar dedutivo e a
126 No original em inglês: Contemporary Mode of Western Legal Thought. Essa designação para a terceira globalização foi usada por Kennedy em sua obra anterior The Disenchantment of Logically Formal Legal Rationality, or Max Weber’s Sociology in the Genealogy of the Comtemporary Mode of Western Legal Thought (2004). No seu Three Globalizations of Law and Legal Thought: 1850-2000 (2006a), contudo, Kennedy abandona a nomenclatura acima e passa a se referir à “consciência jurídica contemporânea” (contemporary legal consciousness) ou, apenas, à “terceira globlalização”. Optamos, neste trabalho, por usar a denominação “Contemporâneo”, capitalizada, para designar a terceira globalização do pensamento jurídico identificada por Kennedy. 127 Conforme diz Kennedy: “The third globalization resembles the first two in that it is founded on a brutal critique of its predecessor, in this case, the social. But it differs from both CLT and the social in the respect that there is no discernible large integrating concept, parallel to the will theory or the notion of adaptation to interdependence, mediating between normative projects and subsystems of positive law. Rather I would descrive the structure of the consciousness globalized after 1945 as the unsynthesized coexistence of transformed elements of CLT with transformed elements of the social.” (KENNEDY, 2006a, p. 63.)
88
consequente pressuposição de que o direito positivo é um
sistema coerentemente formulado. O pensamento dedutivo
contemporâneo, porém, não se fundamenta nas categorias da
teoria da vontade, mas em uma leitura formalista de cartas de
direitos inseridas nas constituições e nos tratados
internacionais – e cujo ápice discursivo moderno é a ideia de
Direitos Humanos. Esse modo de pensar Kennedy chama de
neoformalismo.
Do Pensamento Jurídico Social, o modo de pensar
contemporâneo adapta a análise da realidade (empiricamente
verificável) como instrumento de justificativa e escolha de
normas jurídicas. Porém, o Pensamento Jurídico Contemporâneo
substitui a ênfase na análise técnica dessa realidade, pela
ponderação entre possibilidades conflitantes. Isto é, ao invés
de confiar à Sociologia (ou à Economia, ou à Ciência Política)
a descoberta daquilo que seria a adequada resposta normativa a
um dado problema da sociedade, o Pensamento Jurídico
Contemporâneo se vale de duas ou mais – e por vezes
conflitantes entre si - respostas possíveis, para então
escolher uma solução. Em contraste com o Pensamento Jurídico
Social, esse modo de pensar contemporâneo produz regras que
são acomodações ad hoc, ao invés de regras sociais que seriam
ditadas por propósitos sociais únicos em novos regimes
jurídicos coerentemente adaptativos.128 Kennedy chama essa
característica do Pensamento Jurídico Contemporâneo de policy
analysis – expressão de difícil tradução para o português, mas
128 “It [policy analysis] produces rules that are ad hoc compromises, rather than the social rules dictated by single social purposes in coherently adaptative new legal regimes.” (KENNEDY, 2006a, p. 63 – o trecho em itálico é o que foi parafraseado acima.)
89
que aqui será referida como “análise jurídica de políticas
públicas”.129
Ambos, análise jurídica de políticas públicas e
neoformalismo, caracterizam o Pensamento Jurídico
Contemporâneo. Do lado da análise de políticas, há um
instrumental de contemporização, de criação de acordos
específicos para administrar projetos políticos conflitantes a
pautar a formação da ordem jurídica. Essa ponderação terá como
critério as consequências racionalmente identificadas para as
opções políticas analisadas, como afirma Castro:
...a análise jurídica de políticas públicas adota como
pressuposto que é possível alcançar um ponto mediano de
equilíbrio, considerado “racional”, entre os interesses
conflitantes, de modo a maximizar globalmente os
benefícios sociais que podem decorrer de um tal
equilíbrio.130
Do lado do neoformalismo, o Pensamento Jurídico
Contemporâneo se apresenta como instrumento de ruptura social
– ao contrário do papel do formalismo no Pensamento Jurídico
Clássico. E, nesse aspecto, se mostra de forma oposta à
acomodação de conflitos que caracteriza a análise de
políticas. Nesse sentido, afirma Kennedy:
O neoformalismo de direito público [...] é um modo
disruptivo, ao invés de acomodatício, que por vezes se
faz valer de instituições que personificaram o Social, e
por vezes se faz valer de instituições que
personificaram o Pensamento Jurídico Clássico. Ele
apela, para além da mescla entre o Pensamento Jurídico
Clássico e o Social representado pela instituição em
129 A tradução é extraída de CASTRO, 2012, p. 206. 130 CASTRO, 2012, p. 206.
90
questão, a valores supostamente transcendentes, mas
também positivados em constituições e tratados, para ir
contra o status quo.131
No Pensamento Jurídico Contemporâneo, análise
jurídica de políticas públicas e neoformalismo são mediados
pela atuação do juiz, que surge como figura heróica seja para
aplicar direitos fundamentais que emergem de uma leitura
formalista da Constituição e dos tratados internacionais, seja
para ponderar opções políticas alternativas a partir das
consequências identificadas pela “racionalidade” jurídica.132
Neoformalismo e análise de políticas, logo, não são mutuamente
excludentes no modo de pensar contemporâneo. São, ao
contrário, combinados, pela ação do juiz, na busca de soluções
para os problemas jurídicos.
A apropriação do Pensamento Jurídico Contemporâneo
pelo Direito brasileiro se deu em variadas narrativas, ora com
ênfase na análise de políticas, ora com ênfase no
neoformalismo. Quanto às relações entre direito e economia,
identificamos quatro narrativas principais no Direito
nacional, que aqui denominaremos: i) Direito Administrativo e
Direito Econômico majoritários; ii) Constituição Dirigente,
iii) Estado Regulador e iv) Análise Econômica do Direito.
131 “Public law neoformalism [...] is a disruptive, rather than managerial mode, brought to bear sometimes on the institutions that embodied the social, and sometimes on the institutions that embodied CLT. It appeals, beyond the settlement between CLT and the social represented by the institution in question, to supposedly transcendent, but also positively enacted values in constitutions or treaties, against the status quo.” (KENNEDY, 2006a, p. 64 – tradução livre.) 132 Cf. KENNEDY, 2006, pp. 63 e ss.
91
Figura 3 - Principais narrativas brasileiras sobre direito e economia no Pensamento Jurídico Contemporâneo
Fonte: elaboração própria do autor
1.4.1. Direito Administrativo e Direito Econômico majoritários
No Brasil, as narrativas em torno da ideia de
serviço público foram incorporadas de modo peculiar, para
compor o Direito Administrativo nacional hoje adotado
majoritariamente pelos cursos de graduação e exames
públicos.133 As diferentes ideias de serviço público
desenvolvidas na França (ver item 1.3 acima) foram adaptadas
de forma a progressivamente misturar as premissas e conclusões
da Escola do Serviço Público, de Duguit e Jèze, com as da
Escola Institucionalista, de Hauriou. Essa mistura de
fundamentações que remontam ao Pensamento Jurídico Social
convive com a estruturação do Direito Administrativo em
categorias abstratas que, por sua vez, remetem à linguagem do
Pensamento Jurídico Clássico. Esse sincretismo de influências
se traduz em um involuntário paradoxo, que explicaremos nas
próximas linhas.
133 Como representantes do que aqui se chama Direito Administrativo hegemônico no Brasil, ver: DI PIETRO, 2009; MEIRELLES, 1989; MOREIRA NETO, 2009; MELLO, 2012; JUSTEN FILHO, 2012.
92
Os teóricos do Direito Administrativo no Brasil em
geral adotam a ideia da Escola do Serviço Público de que o
Estado, e o próprio direito, possuem função instrumental para
a sociedade. O Direito Administrativo, afirmam, teria
fundamento na realização do interesse público.134 Não se
descreve o Direito Administrativo como a organização de
categorias abstratas apreendidas pela racionalidade do
cientista jurídico. À primeira impressão, portanto, esses
doutrinadores constróem uma narrativa consoante a linguagem
funcionalista do Pensamento Jurídico Social, e em especial com
a Escola do Serviço Público de Duguit e Jèze.
Contudo, referidos autores organizam o Direito
Administrativo em conceitos abstratos ordenados
sistematicamente e que decorreriam do espírito, ou da natureza
jurídica, do direito nacional. É sintomático dessa constatação
que a noção de instituto135, formulada por Savigny, seja
empregada rotineiramente para se referir às categorias e aos
conceitos do Direito Administrativo. Os institutos, porém, não
servem apenas para definir e organizar sistematicamente um
direito administrativo nacional; servem sobretudo para
134 Por exemplo: “...o Direito Público se ocupa de interesses da Sociedade como um todo, interesses públicos, cujo atendimento não e um problema pessoal de quem os esteja a curar, mas um dever jurídico inescusável. Assim, não há espaço para a autonomia da vontade, que que substituída pela ideia de função, de dever de atendimento do interesse público. /§/ É o Estado quem, por definição, juridicamente encarna os interesses públicos. O Direito Administrativo é um ramo do Direito Público. Ocupa-se, então, de uma das funções do Estado: a função administrativa.” (MELLO, 2012, p. 27.) 135 Sobre a ideia de “instituto”, Castro afirma: “... a noção de “instituto” jurídico, que designa um conjunto de relações sociais orgânicas, isso é, relaçoes supostamente “espontâneas” e intrinsecamente boas, que se presumem presentes na sociedade e detectáveis pelos juristas (embora não articuláveis pelo povo e por ele livremente submetidas a exame crítico). O instituto jurídico pressupõe a presença espontânea, “intuitiva” de normas, não como um produto da razão, mas como um “sentimento” ou “convicção” – enfim, como um modo de consciência que permanece vinculado a normas cuja validade não pode ser posta em questão.” (CASTRO, 2012, p. 151.)
93
caracterizar um típico regime jurídico administrativo, cuja
aplicação seria delimitada pela distinção entre público e
privado. E nisso os autores do Direito Administrativo
majoritário parecem ter inspiração na Escola Institucionalista
de Hauriou.
Ou seja, a doutrina de Direito Administrativo que é
hegemônica no Brasil incorporou a visão de mundo da Escola do
Serviço Público, mas a instrumentalizou segundo um formalismo
que remete à Escola Institucionalista e que muito se aproxima
do Pensamento Jurídico Clássico. Este é o paradoxo a que nos
referimos: combinar uma estrutura de conceitos formalista com
uma fundamentação instrumental que objetivava negar o
formalismo.
Esse paradoxo se refletiu no tratamento do conceito
de serviço público pelo Direito Administrativo brasileiro. É
com base nesse conceito que autores daquela corrente dividem
público e privado. Na conceituação de serviço público, ora se
dá ênfase ao aspecto instrumental típico do Pensamento
Jurídico Social, ora se dá ênfase à natureza das atividades
que caracterizariam o serviço público, de forma similar ao
Pensamento Jurídico Clássico. Os doutrinadores que identificam
o serviço público pelo critério de essencialidade (“natureza”)
da atividade são chamados por Fernando Herren Aguillar de
essencialistas; ao passo que os que identificam o serviço
público a partir da atribuição de regime jurídico público pelo
direito positivo são chamados por aquele autor de
convencionalistas-legalistas.136
136 AGUILLAR, 2005, pp. 267 e ss.
94
Todavia, ao invés de reconhecer essa dicotomia na
definição de serviço público, e a resultante ambiguidade
semântica do conceito, os doutrinadores brasileiros de Direito
Administrativo passam por vezes a impressão de que se trata de
um conceito consolidado e sobre o qual se formou um seguro
consenso. Essa impressão de segurança conceitual se reflete na
falta de consciência, no Brasil, da distinção entre os
critérios essencialista e convencionalista-legalista, de modo
que por vezes ambos critérios são adotados por único autor.137
Inobstante, surgiu no Brasil aquilo que por vezes é
chamado de conceito tradicional de serviço público. Esse
conceito tradicional identifica o serviço público com
atividades reputadas essenciais, ou típicas de Estado (como
fez Hauriou), que devem ser retiradas da esfera particular de
modo a terem asseguradas pelo Poder Público sua prestação de
forma geral e contínua.138 Além disso, o serviço público é
identificado pela incidência de um regime jurídico público, ou
seja, argumenta-se que serão serviço público aquelas
atividades a que o direito positivo atribuiu um conjunto pré-
delimitado de regras, direitos e obrigações característico do
regime jurídico de direito público (como fez Jèze).139
137 Celso Antônio Bandeira de Mello (2012, pp. 690-692), por exemplo, fala em substrato material para identificar o critério de essencialidade, e em elemento formal para identificar o critério de incidência do regime jurídico de direito público. 138 Por exemplo: “... assume o caráter de serviço público qualquer atividade cuja consecução se torne indispensável à realização e ao desenvolvimento da coesão e da interdependência social...” (GRAU, 2010, p. 134). 139 Por exemplo: “Serviço público é toda atividade de oferecimento de utilidade ou comodidade material destinada à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administratdos, que o Estado assume como pertinente a seus deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as vezes, sob um regime de Direito Público – portanto consagrador de prerrogativas de supremacia e de restrições especiais -, instituído em
95
Em decorrência dessa dualidade de características
distintivas - regime jurídico e essencialidade -, instalou-se
uma situação em que argumentos conceitualmente contraditórios
são corriqueiramente usados em livros, pareceres e decisões
encadeadas, de modo a alimentar um estilo frequentemente
casuísta de administração. Se determinada atividade é
qualificada – pelo juiz, advogado, parecerista, etc. - como
essencial, trata-se de serviço público, sujeita a um regime
jurídico público pré-determinado. Se não for qualificada
essencial, trata-se de atividade privada, sujeita à livre
iniciativa e regime jurídico privado.
O critério para determinar a essencialidade de uma
atividade e considerá-la pública é outro tema sobre o qual a
doutrina administrativista hegemônica não alcançou um
consenso. De um lado, há doutrinadores que recorrem a critério
formal de essencialidade: aquilo que estiver atribuído pelo
direito positivo como competência de um dos entes da federação
será serviço público. Nesse grupo, há os que atribuem à
Constituição a prerrogativa exclusiva de ser veículo para a
designação de serviços públicos140; e há os que entendem que
lei ordinária é apta para tal.141 De outro lado, há os autores
que se contrapõem ao critério formal, e que buscam um critério
material de essencialidade, em que serviços públicos seriam
aqueles socialmente requeridos nesta condição.142
favor dos interesses definidos como públicos no sistema normativo.” (MELLO, 2012, p. 687). 140 Por exemplo: “...os serviços públicos, bem como as respectivas competências para prestá-los, estão todos expressos como funções administrativas na Constituição de 1988...” (MOREIRA NETO, 2009, p. 474). 141 Por exemplo: “É realmente o Estado, por meio do Poder Legislativo, que erige ou não em serviço público tal ou qual atividade, desde que respeite os limites constitucionais.” (MELLO, 2012, p. 707). 142 Cf. GRAU, 2010.
96
As incertezas sobre o conceito de serviço público,
porém, não impediram que ele fosse adotado pelo Direito
Administrativo nacional como critério fundamental de distinção
entre público e privado. Mais do que isso, ao invés de
funcional, o critério mais adotado pelo Direito Administrativo
majoritário foi formal: a definição pelo direito positivo de
uma atividade como serviço a ser prestado pelo Estado. O
critério funcional, traduzido na noção de essencialidade,
quando muito serve apenas de parâmetro para a aplicação do
critério formal – isto é, de parâmetro para se posicionar
quanto à questão de competir à lei ou à Constituição a
definição de que atividades são consideradas serviço público.
Além das discrepâncias na construção do conceito de
serviço público, há também divergências quanto à fundamentação
da intervenção jurídica no domínio econômico – assim
considerada como a ação do Estado em atividades que não sejam
consideradas serviço público. Por exemplo, em obras
tradicionais como as de Hely Lopes Meirelles143 e Celso Antônio
143 O seguinte trecho é ilustrativo da posição de Meirelles: “Os Estados sociais-liberais, como o nosso, conquanto reconheçam e assegurem a propriedade privada e a livre empresa, condicionam o uso dessa mesma propriedade e o exercício das atividades econômicas ao bem-estar social (Const. Rep., art. 170). /§/ Para o uso e gozo dos bens e riquezas particulares, o Poder Público impõe normas e limites, e, quando o interesse público o exige, intervém na propriedade privada e na ordem econômica, através de atos de império tendentes a satisfazer as exigências coletivas e a reprimir a conduta antissocial da iniciativa particular. [...] Os fundamentos da intervenção na propriedade e atuação no domínio econômico, repousam na necessidade de proteção do Estado aos interesses da comunidade. Os interesses coletivos representam o direito do maior número, e, por isso mesmo, quando em conflito com os interesses individuais, estes cedem àqueles, em atenção ao direito da maioria, que é a base do regime democrático e do direito civil moderno.” (MEIRELLES, 1989, pp. 496-497). Nesta tese, optamos por utilizar a edição de 1989 desse conhecido administrativista paulista, por ter sido essa uma das últimas edições que o próprio Hely Lopes Meirelles atualizou. Após seu falecimento, em 1990, o seu bem sucedido manual continuou a ser atualizado por terceiros – o que, para os fins aqui pretendidos, é prejudicial para análise das ideias
97
Bandeira de Mello144, a intervenção na ordem econômica é tida
como instrumento para a satisfação do interesse público, em
detrimento dos interesses individuais.145 Mas outros teóricos
cujos manuais de Direito Administrativo são também de ampla
adoção, como Diogo de Figueiredo Moreira Neto146 e Marçal
daquele autor. Por isso a preferência por uma edição defasada em termos de atualização, porém fiel ao pensamento original do autor. 144 Celso Antônio Bandeira de Mello concebe o Direito Administrativo como um sistema coerente e lógico, ao que explica que: “Juridicamente, esta caracterização consiste, no Direito Administrativo, segundo nosso modo de ver, na atribuição de uma disciplina normativa peculiar que, fundamentalmente, se delineia em função da consagração de dois princípios: a) a supremacia do interesse público sobre o privado; b) a indisponibilidade, pela Administração, dos interesses públicos.” (MELLO, 2012, pp. 55-56). É à luz desses princípios que o autor trata da intervenção na ordem econômica: “Considerando-se panoramicamente a interferência do Estado na ordem econômica, percebe-se que esta pode ocorrer de três modos; a saber: (a) ora dar-se-á através de seu “poder de polícia”, isto é, mediante leis e atos administrativos expedidos para executá-las, como “agente normativo e regulador da atividade econômica” – caso no qual exercerá funções de “fiscalização” e em que o “planejamento” que conceber será meramente “indicativo para o setor privado” e “determinante para o setor público”, tudo conforme prevê o art. 174 [da Constituição Federal]; (b) ora ele próprio, em casos excepcionais, como foi dito, atuará empresarialmente, mediante pessoas que cria com tal objetivo; e (c) ora o fará mediante incentivos à iniciativa privada (também supostos no art. 174), estimulando-a com favores fiscais ou financiamentos, até mesmo a fundo perdido. /§/ Em todos os casos, necessariamente, a interferência estatal terá que estar voltada à satisfação dos fins dantes aludidos como sendo os caracterizadores do Estado Brasileiro; e jamais – sob pena de nulidade – poderá expressar tendência ou diretriz antinômica ou gravosa àqueles valores.”(MELLO, 2012, p. 810). 145 Hely Lopes Meirelles e Celso Antônio Bandeira de Mello são representantes de pensadores que, a seguir, qualificaremos como influencidos pelo Pensamento Jurídico Social – um dos três modos globalizados de pensar o Direito descritos em KENNEDY (2006) e que adotaremos como referência nesta tese. 146 Diz esse autor: “O regime constitucional da economia de mercado parte de uma constatação extremamente simples: a de que os processos econômicos seguem uma ordem espontânea decorrente do livre jogo dos mercados; uma ordem que deve ser preservada, até mesmo por ser o corolário da liberdade das pessoas; mas reconhece, igualmente, que essa ordem espontânea não está imune a deformações e a distorções, endógenas e exógenas, razão pela qual cumpre também preservá-la e defendê-la pela intervenção de uma ordem impositiva paralela, contra os abusos que a comprometam e a deformem. /§/ Por isso, para a prevenção dessas inevitáveis disfunções e para a eventual correção dessas distorções, o Estado interfere na ordem econômica através de princípios, de normas e de instituições administrativas que conformam, em seu conjunto, um específico ordenamento econômico imperativamente imposto, cometendo, para este fim, à Administração Pública, sob a
98
Justen Filho147, justificam a intervenção como meio para suprir
eventuais disfunções ou falhas do mercado, ou para alcançar
objetivos sociais abrigados por direitos fundamentais.148
Em todos os casos, não obstante, está presente a
ideia de que a atuação do Estado na ordem econômica é a
influência de um elemento externo (o direito produzido pelo
Estado) ao que seria o ambiente natural do mercado. Esse
elemento externo poderia, por fundamentos diversos, interferir
na liberdade (pressuposta por essa visão) que os agentes do
mercado teriam de estipular suas regras de conduta e de se
organizar para produzir, fazer circular e consumir bens e
serviços. Mas permanece sempre a ideia central de que a
atuação do Estado na economia é uma influência externa a uma
ordem espontânea (ou natural). Logo, uma dada política
econômica estaria restrita a ser implementada por instrumentos
jurídicos aprioristicamente considerados externos à economia.
disciplina do Direito Administrativo, a correspondente função executiva desse ordenamento econômico.” (MOREIRA NETO, 2009, pp. 501-502) 147 A posição de Justen Filho é ilustrada pelo trecho a seguir: "Embora seja costumeira a alusão a regulação econômica, isso não significa que a regulação seja dotada de uma única dimensão. Toda regulação é concomitantemente econômica e social. Isso significa que a intervenção estatal no âmbito econômico corresponde sempre à promoção de valores sociais.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 637.) 148 Essa visão, adicionalmente, defende que a atuação do Estado na economia deve ser preferencialmente por intervenção indireta – ao que defende não apenas a existência de um princípio da subsidiariedade da atuação estatal na economia, mas também que a efetivação desse princípio implica a escolha preferencial por instrumentos que não envolvam a produção de bens e serviços por entes sob controle do Estado. Exemplo dessa perspectiva se encontra no trecho a seguir: “A regulação consiste na opção preferencial do Estado pela intervenção indireta, puramente normativa. Revela a concepção de que a solução política mais adequada para obter os fins buscados consiste não no exercício direto e imediato pelo Estado de todas as atividades de interesse público.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 639). Trata-se de abordagem típica do que adiante identificaremos como a corrente do Estado Regulador no pensamento jurídico contemporâneo.
99
Nesse sentido, a posição do Direito Administrativo
nacional sobre o papel do direito na economia se caracteriza
por converter em premissa a ideia de que a atuação do Estado é
externa a um mercado caracterizado como uma ordem espontânea,
ou, em outras palavras, de que os instrumentos jurídicos da
política econômica são externos ao campo das relações
econômicas. Essa premissa ganha, então, função axiomática na
análise do papel do direito na disciplina da ordem econômica.
Isto é, não se questiona se e como instituições jurídicas
ajudam a formar e moldar relações econômicas, mas apenas se
problematiza de que forma as instituições jurídicas
constrangem ou limitam as relações econômicas, e se esse
constrangimento é ou não justificado. Assim, o Direito
Administrativo majoritário não questiona se a atuação do
Estado, de fato, é externa à ordem supostamente espontânea do
mercado, e deixa de levar em consideração o caráter formativo
da política econômica estatal. Ao contrário, constróem-se
narrativas que derivam da suposta constatação de que a
política econômica é externa ao domínio econômico, para ora
defender, ora se opor, à atuação do Estado na economia.
Exemplo é a abordagem de Celso Antônio Bandeira de Mello:
... a Constituição estabeleceu uma grande divisão: de um
lado, atividades que são da alçada dos particulares – as
econômicas; e, de outro, atividades que são da alçada do
Estado, logo implicitamente qualificadas como
juridicamente não econômicas – os serviços públicos. De
par com elas, contemplou, ainda, atividades que podem
ser da alçada de uns ou de outro.
O primeiro discrímen tem supina importância, pois é por
via dele que, em termos práticos, se assegura a
existência de um regime capitalista no país. Com efeito,
ressalvados os monopólios estatais já
constitucionalmente designados (petróleo, gás, minérios
e minerais nucleares, nos termos configurados no art.
100
177, I-IV [da Constituição Federal]), as atividades da
alçada dos particulares – vale dizer, atividades
econômicas – só põem ser desempenhadas pelo Estado em
caráter absolutamente excepcional, isto é, em dois
casos: quando isto for necessário por um imperativo da
segurança nacional ou quando demandado por relevante
interesse público, conforme definidos em lei (art. 173)
[...].
Inversamente, as atividades previstas como da alçada do
Estado – ou seja, os serviços públicos – só podem ser
desempenhadas por particulares se o Estado os credenciar
a prestá-las (art. 175 e art. 21, XI e XII), por ato
explícito, sem prejuízo de lhes conservar a
titularidade. Ressalvam-se aqueloutras [...] em que a
atividade não é exclusiva do Estado (educação, saúde,
assistência social e previdência social), e por isto os
particulares são livres para exercê-las.149
O autor parte da ideia de que há um mercado que é
reflexo de uma ordem espontânea ou onde prevalecem meios
tendentes a realizar espontaneamente determinados fins. Uma
vez que se acomete ao Estado uma determinada atividade
149 MELLO, 2012, p. 809 – negritos ausentes do original. Essas premissas também norteiam a exposição de Di Pietro sobre o tema: “Ocorre que a atuação do Estado não se limita aos serviços públicos; ele às vezes sai da órbita de ação que lhe é própria e vai atuar no âmbito de atividade reservada essencialmente à iniciativa privada; trata-se da atividade de intervenção...”(DI PIETRO, 2009, p. 417). Essa narrativa do Direito Administrativo é também incorporada pelo Direito Econômico, como fica claro na exposição de Fernando Herren Aguillar: “O Direito Econômico tutela relações privadas em face de interesses públicos econômicos. Constitui espaço de interferência estatal no exercício de funções privadas, para o fim de influenciar a tomada de decisões em ambiente de mercado. Conota atividade e formatação positiva de mercado. Portanto a regulação que produz está intimamente relacionada à deliberada persecução de certos fins, em oposição ao que se passa no âmbito do direito privado, que se caracteriza antes pela preservação de meios tendentes a realizar espontaneamente determinados fins.” (AGUILLAR, 1999, p. 101 – grifos ausentes do original.) Adiante, esse autor ainda acrescenta: “Em conclusão, o Direito Econômico é veículo da ação estatal onde for necessário, segundo interesses do Estado, influenciar o conjunto das decisões econômicas individuais.” (p. 102).
101
mediante a caracterização de serviço público, o autor reputa
essa atividade como excluída daquela ordem espontânea. A opção
pelo serviço público não é opção pela criação ou pela
construção de um novo modo de produzir, transacionar ou
consumir bens e serviços. É uma opção de que a produção de
determinados bens e serviços seja atribuída ao Estado, em
detrimento dos particulares. É, portanto, a suposta
substituição da dita ordem espontânea da economia pelo
planejamento estatal.
Figura 4 - Atuação do direito na economia segundo o Direito Administrativo majoritário
Fonte: elaboração do autor.
São essas opções, sintetizadas na Figura 4 acima,
que o Direito Administrativo coloca à disposição de uma dada
política econômica. Portanto, também a política econômica é
vista como interventiva na ordem econômica – em outras
palavras, como limitação ou supressão do mercado pelo
planejamento estatal. Com efeito, nas palavras de Carvalho,
políticas econômicas são visualizadas como espaço de
interferência do Estado com o objetivo de geral de influenciar
102
a tomada de decisões dos agentes privados num ambiente de
mercado.150
Essa formulação do Direito Administrativo – que até
hoje caracteriza a posição hegemônica – foi incorporada pelo
Direito Econômico no Brasil.151 Os tratados clássicos de
Direito Econômico, e aqueles que ainda hoje seguem essa
tradição, se orientam a sistematizar os mecanismos de
“intervenção do Estado” na economia. Por ter, em sua origem,
forte influência de ideias de dirigismo econômico e
planejamento estatal da economia, esse Direito Econômico
inicialmente se estrutura como instrumento para justificar a
intervenção do Estado na economia.152 Sendo assim, o Direito
Econômico tem como um de seus temas centrais identificar qual
o âmbito de atuação típico do Estado. A definição do que é
esfera do Estado, e do que é esfera da economia, é justificada
a partir do marco determinado pela ideia de serviço público. A
partir dessa ideia, o Direito Econômico constrói um
referencial teórico para o planejamento econômico e para o
dirigismo estatal, ao mesmo tempo em que tenta fixar um mínimo
de proteção à iniciativa privada. As atividades consideradas
serviço público estariam imunes à proteção usualmente
conferida à livre iniciativa, pois estariam retiradas da
esfera privada.
No Direito Administrativo e no Direito Econômico
dominantes, a expansão ou retração do espectro de atividades
150 CARVALHO, Carlos Eduardo Vieira de, 2007, p. 33. 151 No mesmo sentido, Marcus Faro de Castro considera o Direito Econômico nitidamente uma especialização do Direito Administrativo (CASTRO, 2005, p. 2). 152 Cf. CASTRO, 2005, p. 2-3.
103
consideradas “serviço público”, por sua vez, é objeto de
intenso debate ideológico.153 Esse debate é polarizado entre
visões que ora remetem ao liberalismo do Pensamento Jurídico
Clássico – que privilegiam o livre mercado e exigem
absenteísmo estatal –, ora remetem à primazia da função social
do Pensamento Jurídico Social – que privilegiam o planejamento
estatal da economia e a direta produção por entes estatais de
bens e serviços reputados essenciais à coletividade. Essa
disputa se deflagra no campo do formalismo: de um lado, há a
visão de que a abstenção do Estado de ingerência no livre
mercado seria um mandamento das normas constitucionais. De
outro lado, opção oposta: a maior intervenção do Estado na
economia é que seria determinada pelas regras da Constituição.
Cada uma dessas duas opções é baseada em uma visão ideológica
particular. A defesa de que a ordem constitucional formalmente
positivada adotou uma determinada ideologia, por isso, torna-
se elemento de disputa entre teóricos do Direito Econômico.154
Nesse contexto, ganhou relevo no Direito Econômico a
noção de ideologia constitucionalmente adotada, inicialmente
adotada por Washington Peluso Albino de Souza.155 A
153 Nesta tese, ao falarmos em ideologia, nos referimos àquilo que Norberto Bobbio nomeiou de significado fraco do termo, conforme relata Mario Stoppino: “No seu significado fraco, Ideologia designa o genus, ou a species diversamente definida, dos sistmas de crenças políticas: um conjunto de ideias e de valores respeitantes à ordem pública e tendo como função orientar os comportamentos políticos coletivos.” (STOPPINO, 1995, p. 585). 154 Como relata Carvalho: “A abordagem de um tema que envolve a disponibilização, pelo Estado, de serviços essenciais a seus cidadãos, mediante adequada formulação de políticas econômicas, levanta questões como: avaliar o espaço conferido à atuação estatal à vista do “sistema econômico” constitucionalmente consagrado e identificar o espaço (necessariamente) liberado à iniciativa privada quando se cuida do “modo capitalista de produção”. Essa linha demarcatória reflete uma conotação ideológica.” (CARVALHO, 2007, p. 78). 155 Cf. SOUZA, 2003, passim. Washington Peluso Albino de Souza é um dos pioneiros na instituição do Direito Econômico como ramo de estudos do
104
Constituição, segundo Peluso, seria ideologicamente mista, e
isso ao final lhe conferiria neutralidade frente a opções
ideológicas de conjuntura. Caberia ao intérprete
constitucional ponderar as ideologias já postas nas normas
constitucionais e, então, identificar os campos próprios de
atuação do Estado (serviço público) e dos particulares
(atividade privada).156 Eventual estatismo decorrente da
qualificação de atividades como serviço público se
justificaria como reflexo da ordem normativa pré-determinada
pela Constituição. Da mesma forma, também seria a Constituição
o local de proteção de um conjunto de atividades tipicamente
privadas, as quais somente poderiam ser constrangidas na
medida em que o Estado se valesse dos mecanismos legítimos de
intervenção da atividade econômica. A posição de Peluso é
assim resumida por Carvalho:
...a “ideologia constitucional” não guarda compromisso
com modelos puros de “ideologia” como o “liberalismo” ou
o “socialismo”, mas com aquele concretamente
recepcionado pelo texto constitucional. Desse modo,
naquelas constituições que correspondem aos modelos
“mistos” ou “plurais” recepcionam-se dispositivos
passíveis de “conflitos ideológicos” que dizem respeito,
primordialmente, à “liberdade de iniciativa”, à “atuação
estatal na área econômica”, ao “direito de propriedade”,
à “função social da propriedade”, à “justiça social”.
Veja-se que a evolução do sistema capitalista, com a
progressiva absorção de elementos ideológicos de caráter
socializante, veio a configurar um modelo híbrido ou
Direito brasileiro e como cadeira de ensino nos cursos de Direito nacional. O papel pioneiro de Peluso é relatado em Aguillar, 2006, pp. 33-34. 156 SOUZA, 2003, pp. 75-87.
105
composto a representar, conforme o contexto, uma maior
ou menor aproximação do Estado com a área econômica.157
A resolução do conflito ideológico, então, estaria
em uma leitura formal da Constituição, a partir do papel do
intérprete na mediação de diferentes opções políticas. O
intérprete encontraria no texto constitucional aquilo que
seria a “ideologia constitucionalmente adotada” – que seria
variável de acordo com dada caso, a depender da opção política
que teria dado origem à regra constitucional aplicável ao
caso. Essa ideia encontra paralelo na policy analysis que
Duncan Kennedy atribui ao Pensamento Jurídico Contemporâneo,
na medida em que também busca a construção de soluções ad hoc
para conflitos entre projetos políticos distintos.
Por sua vez, o recurso ao formalismo – a previsão no
texto constitucional – serve de parâmetro para se encontrar a
“ideologia constitucionalmente adotada”. Com esse recurso, o
Direito Econômico resolve – ao menos discursivamente - a
disputa formal entre maior ou menor intervenção do Estado no
mercado. A adoção das ideias de Peluso pelos tratadistas de
Direito Econômico158 serviu de mote para que também o então
novo ramo de estudo do Direito encampasse a postura formalista
desenvolvida pelo Direito Administrativo. O critério formal
adotado por ambos foi considerar serviço público aquelas
atividades assim designadas pelo direito positivo. E assim,
para essas atividades, justificar maior grau de ação do
Estado.
157 CARVALHO, 2007, p. 80. 158 São exemplos de tratados que adotam Peluso como referência: FONSECA, 2004; VAZ, 1993; e o próprio CARVALHO, 2007.
106
Posição um tanto diferente é a de Eros Roberto Grau.
Este autor merece destaque especial pela particularidade de
seu pensamento e pela influência de suas ideias.159 Eros Grau
defende que o mercado é uma instituição jurídica constituída
pelo direito positivo.160 Nesse aspecto, a concepção de mercado
defendida por Grau é contrária àquela partilhada pelo Direito
Administrativo e pelo Direito Econômico majoritários. Com
efeito, Eros Grau rejeita a ideia de que mercado seria uma
ordem espontânea, mas afirma:
(i) a sociedade capitalista é essencialmente jurídica e
nela o direito atua como mediação específica e
necessária das relações de produção que lhe são
próprias;
(ii) essas relações de produção não poderiam
estabelecer-se, nem poderiam reproduzir-se sem a forma
do direito positivo, direito posto pelo Estado;
(iii) este direito posto pelo Estado surge para
disciplinar os mercados, de modo que se pode dizer que
ele se presta a permitir a fluência da circulação
mercantil, para domesticar os determinismos
econômicos.161
Todavia, não obstante o autor reconheça o papel do
direito na formação do mercado (ou, ainda, dos mercados),
este, uma vez construído pelo direito positivo, seria um
espaço de fluência da circulação mercantil que reclama atuação
159 Além da enorme repercussão de seus estudos sobre Direito Econômico, Eros Roberto Grau foi ainda Ministro do Supremo Tribunal Federal entre 17 de junho de 2004 e 30 de julho de 2010. Entre outros temas, seus votos tiveram papel determinante na formação da jurisprudência daquele tribunal sobre a diferenciação entre serviço público e as demais atividades econômicas. 160 GRAU, 2010, pp. 27 a 33. 161 GRAU, 2010, p. 30.
107
estatal mínima.162 Assim, Grau acaba por conferir ao mercado a
mesma característica de espontaneidade dos demais autores
analisados – apenas atribui essa característica ao resultado
da existência de um direito positivo que a assegura.
Essa visão acaba também por limitar a política
econômica aos mesmos instrumentos jurídicos propagados pelos
demais autores do Direito Administrativo e do Direito
Econômico. Desse modo, para os fins deste trabalho, Grau pode
ser enquadrado dentro dessas correntes, apesar de se
diferenciar dos demais autores do Direito Econômico quanto à
forma como compreende o mercado e, em decorrência, a ordem
econômica.163 Tanto é assim que a forma como Eros Grau
162 Diz o autor: "Mercado deixa então de significar exclusivamente o lugar no qual são praticadas relações de troca, passando a expressar um projeto político, como princípio de organização social. [...] A noção de mercado como atividade – conjunto de operações econômicas e modelo de trocas; conjunto de contratos, convenções e transações relativas a bens ou operações realizadas no lugar/mercado – supõe a livre competição. /§/ Como o mercado é instituição jurídica, constituída pelo direito posto pelo Estado, deste se reclama, a um tempo só, que garanta a liberdade econômica e, concomitantemente, opere a sua regulamentação [=regulação]. Sendo atividade, as regras do mercado consubstanciam o seu substrato. [...] Dizendo de outro modo: o mercado exige, para satisfação do seu interesse, o afastamento ou a redução de qualquer entrave social, político ou moral ao processo de acumulação de capital. Reclama atuação estatal para garantir a fluência de suas relações, porém, ao mesmo tempo, exige que essa atuação seja mínima.” (GRAU, 2010, pp. 33-35 – grifo ausente do original.) 163 Cf. GRAU, 2010, pp. 58-89. Em síntese, Grau distingue entre três significados para a ordem econômica: i) modo de ser empírico de uma determinada economia concreta (GRAU, 2010, p. 64); ii) o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta), qualquer que seja sua natureza (jurídica, religiosa, moral, etc.), que respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos (Idem, p. 65); iii) ordem jurídica da economia (Idem, p. 65). A partir dessa distinção, Grau se dedica a analisar a utilidade de cada um dos significados acima para o Direito. A utilidade se daria pela possibilidade de se esclarecer o conteúdo normativo de uma ordem econômica e, assim, explicitar eventual programa de realização da Constituição Dirigente. A conclusão do autor é pela inutilidade da expressão, uma vez que não é possível identificar o que é pertencente de uma ordem econômica frente a normas constitucionais e infraconstitucionais que disciplinam diversos outros aspectos da vida econômica. A ordem econômica, assim, seria expressão de todo o Direito, e não apenas das disposições de uma Constituição Econômica.
108
compreende e classifica a atividade econômica164 (representada
na Figura 5 abaixo) é indistintamente utilizada por autores do
Direito Econômico e do Direito Administrativo majoritário, sem
que haja ressalva quanto às diferenças de compreensão do papel
do direito na formação da economia.
Figura 5 - A atividade econômica segundo Eros Grau
Fonte: elaboração do autor.
164 Nesse sentido, afirma Grau: “... como a expressão “ordem econômica”, no contexto do art. 170 do texto constitucional, é conversível nas expressões “relações econômicas” ou “atividade econômica”, cumpre-nos precisar, também, que atividade econômica é esta[...]. /§/ [...] Salientei, no próprio texto, o fato de, no trecho a seguir transcrito, utilizar-me da expressão atividade econômica em distintos sentidos: /§/ “Ao afirmar que serviço público é tipo de atividade econômica, a ela atribuí a significação de gênero no qual se inclui a espécie, serviço público. /§/ “Ao afirmar que o serviço público está para o setor público assim como a atividade econômica está para o setor privado, a ela atribuí a significação de espécie.” /§/ Daí a verificação de que o gênero – atividade econômica – compreende duas espécies: o serviço público e a atividade econômica. /§/ Estamos em condições, assim, de superar a ambigüidade que assume, no seio da linguagem jurídica e no bojo do texto constitucional, esta última expressão. Para que, no entanto, se a supere, impõe-se qualificamos a expressão, de modo que desde logo possamos identificar de uma banda as hipóteses nas quais ela conota gênero, de outra as hipóteses nas quais ela conota espécie do gênero. A seguinte convenção, então, proponho: atividade econômica em sentido amplo conota gênero; atividade econômica em sentido estrito, a espécie.” (GRAU, 2010, pp. 101-102.)
109
Adicionalmente, ao explicar a sua classificação da
atividade econômica, Grau faz referência à mesma distinção
entre mercado e Estado característica da visão majoritária do
Direito Administrativo e do Direito Econômico:
Pretende o capital reservar para sua exploração, como
atividade econômica em sentido estrito, todas as
matérias que possam ser, imediata ou potencialmente,
objeto de profícua especulação lucrativa. Já o trabalho
aspira atribua-se ao Estado, para que este as desenvolva
não de modo especulativo, o maior número possível de
atividades econômicas (em sentido amplo). É a partir
deste confronto – do estado em que tal confronto se
encontrar, em determinado momento histórico – que se
ampliarão ou reduzirão, correspectivamente, os âmbitos
das atividades econômicas em sentido estrito e dos
serviços públicos. Evidentemente, a ampliação ou
retração de um ou outro desses campos será função do
poder de reivindicação, instrumentado por poder
político, de um e outro, capital e trabalho. A
definição, pois, desta ou daquela parcela da atividade
econômica em sentido amplo como serviço público é –
permanecemos a raciocinar em termos de modelo ideal –
decorrência da captação, no universo da realidade
social, de elementos que informem adequadamente o
estado, em um certo momento histórico, do confronto
entre interesses do capital e do trabalho.
Não obstante as dificuldades que se antepõem ao
discernimento da linha que traça os limites entre os
dois campos, ele se impõe: intervenção é atuação na área
da atividade econômica em sentido estrito; exploração de
atividade econômica em sentido estrito e prestação de
110
serviço público estão sujeitas a distintos regimes
jurídicos (arts. 173 e 175 da Constituição de 1988).165
Ao falar em sujeição a distintos regimes jurídicos,
Grau estabelece não apenas que a assunção de determinada
atividade econômica pelo Estado a retira do mercado, como a
sujeita a regras próprias (um regime jurídico distinto e
específico) – o que, como vimos, é característico da visão
majoritária do Direito Administrativo e do Direito Econômico.
Dessa forma, também para Eros Grau, a política econômica é
essencialmente intervenção de um terceiro (o Estado) na esfera
de outrem (o particular).166
Em síntese, tanto para o Direito Administrativo,
como para o Direito Econômico, o conceito de serviço público
foi central para a construção de uma dicotomia público-privado
caracterizada pela associação entre privado e mercado como
ordem espontânea. Essa dicotomia, por sua vez, se tornou
equivalente da dicotomia Estado-Economia. Entre os autores
dessas correntes dominou a narrativa que parte da ideia de que
haveria um campo de atividades típico da iniciativa privada, e
outro campo típico da atuação estatal, e que em decorrência
haveria um regime jurídico (conjunto de direitos e deveres)
típico da esfera privada, e outro regime jurídico típico para
a esfera pública.
165 GRAU, 2010, pp. 108-109 – negrito ausente do original. 166 É o que Eros Grau defende a seguir: “Toda atuação estatal é expressiva de um ato de intervenção; de outra banda, relembre-se que o debate a propóito da inconveniência ou incorreção do uso dos vocábulos intervenção e intervencionismo é inútil, inócuo. Logo, se o significado a expressar é o mesmo, pouco importa se faça uso seja da expressão – atuação (ou ação) estatal – seja do vocábulo – intervenção. Aludimos, então, a atuação do Estado da esferea do público, ou seja, na esfera do privado (área de titularidade do setor privado). A intervenção, pois, na medida em que o vocábulo expressa, na sua conotação mais vigorosa, precisamente atuação em área de outrem.” (GRAU, 2010, p. 91.)
111
Essa visão, ainda extremamente influente, não
engloba todas as narrativas que o Pensamento Jurídico
Contemporâneo ensejou no Brasil. Outras visões - algumas
alternativas, outras complementares - ganharam relevo e
influência no Brasil, sobretudo a partir do final do séc. XX.
A seguir, abordaremos aquelas que, ao lado do Direito
Administrativo e do Direito Econômico acima caracterizados,
entendemos serem as mais influentes na doutrina brasileira
atualmente.
1.4.2. Constituição Dirigente
O jurista português José Joaquim Gomes Canotilho é
figura central para essa corrente, sendo inclusive um dos que
popularizou o uso da expressão “Constituição Dirigente”.167
Segundo Canotilho:
O problema central da Constituição dirigente consistia
(e consiste) em saber se, através de “programas”,
tarefas e directivas constitucinais, se conseguiria uma
imediaticidade actuativa e concretizável das normas e
princípios constitucionais de fora a acabar com os
queixumes constitucionais da “constituição não cumprida”
ou da “não concretização da constituição”.168
Para chegar à imediaticidade a que alude Canotilho,
a corrente da Constituição Dirigente busca no texto
constitucional os arrimos jurídico-dogmáticos169 para afirmar
167 É preciso destacar, porém, que Canotilho reviu seu posicionamento teórico e hoje tem postura crítica quanto à Constituição dirigente. Ver: CANOTILHO, 2008, pp. 101-130. 168 CANOTILHO, 2008, p. 32. 169 Cf. CANOTILHO, 2008, p. 32.
112
quais seriam, ou deveriam ser, os limites materiais que
vinculariam os legisladores e que exigiriam do Executivo ações
concretas para assegurar a fruição de direitos sociais e
coletivos. Sendo assim, a Constituição Dirigente se estrutura
em moldes próximos à descrição que Kennedy faz do
neoformalismo do Pensamento Jurídico Contemporâneo:
O neoformalismo de direito público [...] é um modo [de
pensamento] disruptor, ao invés de conciliatório, que
abriga em alguns casos instituições que incorporavam o
[Pensamento Jurídico] Social, e em outros casos
instituições que incorporavam o PJC [Pensamento Jurídico
Clássico]. Ele apela [...] a valores supostamente
transcendentes, mas também positivamente legislados em
constituições e tratados, contra o status quo.170
No Brasil, a Constituição Dirigente se desenvolveu
tendo por base, primeiramente, o fato de a Constituição
brasileira - tal como em outras tantas constituições
elaboradas após a Segunda Guerra Mundial - conter em sua
declaração de direitos não apenas os direitos individuais
típicos das constituições do séc XVIII, mas também direitos
sociais e prestacionais.171 A inclusão desses direitos é
reflexo de uma específica intenção política de usar regras
constitucionais não apenas para organizar a estrutura
170 “Public law neoformalism [...] is a disruptive, rather than managerial mode, brought to bear sometimes on the institutions that embodied the social, and sometimes on the institutions that embodied CLT. It appeals [...] to supposedly transcendent, but also positively enacted values in constitutions or treaties, against the status quo.” (KENNEDY, 2006, p. 64 – tradução livre.) 171 Nesse sentido: “Enquanto os direitos de abstenção visam assegurar o status quo do indivíduo, os direitos a prestação exigem que o Estado aja para atenuar desigualdades, com isso estabelecendo moldes para o futuro da sociedade.”(MENDES et. al., 2007, p. 247.)
113
econômica existente, mas modificá-la.172 Coerente com a visão
de Kennedy sobre o neoformalismo no Pensamento Jurídico
Contemporâneo, a narrativa que se constrói a partir da
presença na Constituição de direitos sociais e prestacionais
visa a modificar o status quo, a alterar a ordem econômica. O
recurso a regras formais é, desse modo, meio para veicular a
pretensão de transformação social. Como narra Bercovici:
A diferença essencial, que surge a partir do
constitucionalismo social do século XX, e vai marcar o
debate sobre a Constituição Econômica, é o fato de que
as Constituições não pretendem mais receber a estrutura
econômica existente, mas querem alterá-la. As
Constituições positivam tarefas e políticas a serem
realizadas no domínio econômico e social para atingir
certos objetivos. A ordem econômica destas Constituições
é “programática”173, hoje diríamos “dirigente”.
As normas programáticas são identificadas pela
corrente da Constituição Dirigente com os direitos sociais e
172 Esse intuito fica evidente, por exemplo, no seguinte trecho de Fábio Konder Comparato: “As Constituições do moderno Estado Dirigente impõem, todas, certos objetivos ao corpo político como um todo – órgãos estatais e sociedade civil. Tais objetivos podem ser gerais ou especiais; estes últimos, obviamente, coordenados àqueles. Na Constituição brasileira de 1988, por exemplo, os objetivos indicados no art. 3º orientam todo o funcionamento do Estado e a organização da sociedade. Já a busca do pleno emprego é uma finalidade especial da ordem econômica (art. 170 VIII). No que diz respeito à política nacional de educação, que deve ser objeto de um plano plurianual, os seus objetivos específicos estão expostos no art. 214, e a eles deve ser acrescida a progressiva extensão dos princípios da obrigatoriedade e da gratuidade do ensino médio (art. 208 II). As finalidades próprias da atividade de assistência social, por sua vez, vêm declaradas no art. 203.” (COMPARATO, 1998, p. 45). 173 Bercovici, no trecho acima, faz equivalência entre a ideia de Constituição “dirigente” e a de Constituição “programática”. Efetivamente, a narrativa da Constituição Dirigente se ampara no conceito de “norma constitucional programática” e no debate doutrinário e jurisprudencial acerca da aplicabilidade imediata dessas normas, ou da necessidade de sua suplementação por meio da ação do Poder Legislativo. Sobre o debate em torno da aplicabilidade das normas programáticas no Direito Constitucional brasileiro, ver: BONAVIDES, 1999, pp. 244 e ss.; MENDES et. al., 2007, pp.247-255;
114
prestacionais, também chamados direitos fundamentais de
segunda e terceira gerações. A referência a direitos de
segunda e terceira gerações tem por base a ideia de que uma
dada constituição é reflexo de um processo histórico, tal como
transparece na caracterização desses direitos feita a seguir
por Norberto Bobbio - caracterização essa que é influente para
a corrente da Constituição Dirigente:
Pois bem, o que distingue o momento atual em relação às
épocas precedentes e reforça a demanda por novos
direitos é a forma de poder que prevalece sobre todos os
outros. A luta pelos direitos teve como primeiro
adversário o poder religioso; depois, o poder político;
e, por fim, o poder econômico. Hoje, as ameaças à vida,
à liberdade e à segurança podem vir do poder sempre
maior que as conquistas da ciência e das aplicações dela
derivadas dão a quem está em condição de usá-las. [...]
Os direitos da nova geração, como foram chamados [...]
nascem todos dos perigos à vida, à liberdade e à
segurança, provenientes do aumento do progresso
tecnológico.174
Segundo essa narrativa, a inserção de direitos
sociais e prestacionais no texto constitucional resultaria em
uma Constituição conflituosa. Conflituosa porque abrigaria o
choque potencial entre direitos individuais - mais afetos à
manutenção do status quo - e direitos sociais e prestacionais
- voltados a alterar a estrutura econômica existente. Mas se
esse potencial conflito é identificado por uma leitura
neoformalista da Constituição, ele se resolve (segundo essa
narrativa) pela técnica de ponderação de valores ou bens
174 BOBBIO, 2004, p. 96.
115
constitucionais175 – ou, ainda, pela aplicação do chamado
princípio da proporcionalidade:
O juízo de ponderação a ser exercido liga-se ao
princípio da proporcionalidade, que exige que o
sacrifício de um direito seja útil para a solução do
problema, que não haja outro meio menos danoso para
atingir o resultado desejado e que seja proporcional em
sentido estrito, isto é, que o ônus imposto ao
sacrificado não sobreleve o benefício que se pretende
obter com a solução.176
Por conseguinte, na medida em que assume a
ponderação de valores (ou o princípio da proporcinalidade), a
narrativa da Constituição Dirigente agrega ao pensamento
neoformalista a análise jurídica de políticas. Ao combinar
essas duas características, essa narrativa assume feições
típicas do modo de pensar contemporâneo, tal como descrito por
Kennedy.
Com essa configuração, a narrativa da Constituição
Dirigente foi incorporada por uma parte importante dos
doutrinadores de Direito Administrativo177 e de Direito
Econômico178. A ideia de Constituição Dirigente, nesses casos,
passou a ocupar o papel que a função social tinha no Direito
Administrativo do Pensamento Jurídico Social. No Direito
Administrativo e no Direito Econômico contemporâneos, a ideia
de Constituição Dirigente se identifica com um projeto
175 Nesse sentido: “Destaque-se, no domínio da interpretação da Constituição, o mecanismo denominado de ponderação de bens ou valores, utilizado para a solução de tensões ou conflitos entre normas. Busca-se com isso identificar, na hipótese de colisão entre pelo menos dois princípios constitucionais, qual bem jurídico deverá ser tutelado.” (CARVALHO, K., 2007, p. 355.) 176 MENDES et. al., 2007, p. 275. 177 Cf. MELLO, 2012, p. 98-140; BINENBOJM, 2008, pp. 49-80. 178 Cf. GRAU, 2010, pp.359-373; CARVALHO, 2007, pp. 90 e ss.
116
político típico daquilo que se convencionou chamar Estado do
Bem-Estar Social.179 Nesse sentido, por exemplo, se posiciona
Fábio Konder Comparato:
Mas é, obviamente, com o Estado Social de direito que a
reorganização da atividade estatal, em função de
finalidades coletivas, torna-se indispensável. A
atribuição prioritária dos Poderes Públicos torna-se,
nesse Estado, a progressiva constituição de condições
básicas para o alcance da igualdade social entre todos
os grupos, classes e regiões do país. O Estado Social é,
pois, aquela espécie de Estado Dirigente em que os
Poderes Públicos não se contentam em produzir leis ou
normas gerais, mas guiam efetivamente a coletividade
para o alcance de metas predeterminadas.180
A corrente da Constituição Dirigente, desse modo,
busca mediante outra racionalidade realizar projeto político
similar aos que nortearam o Pensamento Jurídico Social. Mas se
o Pensamento Jurídico Social tinha na interdependência a sua
principal fundamentação, a Constituição Dirigente recorre à
previsão no texto positivo da Constituição de direitos como
assistência social, saúde, educação, entre outros.181 Todavia,
ao identificar a realização do programa constitucional com o
Estado Social, as narrativas construídas com base na
Constituição Dirigente acabam por eleger as instituições
179 Cf. BONAVIDES, 2001, passim; Adiante, criticaremos a divisão incorporada pelo Direito nacional entre Estado Liberal e Estado do Bem-Estar Social, e também o uso que foi feito dessas classificações para justificar uma terceira categoria, a de Estado Regulador, como veremos a seguir. 180 COMPARATO, 1998, p. 43. 181 Nesse sentido, diz Comparato: “Escusa lembrar que tais objetivos são juridicamente vinculantes para todos os órgãos do Estado e também para todos os detentores de poder econômico ou social, fora do Estado. A juridicidade das normas que simplesmente declaram tais fins (as Zielnormen dos alemães), ou que impõem a realização de determinado programa de atividades – as normas propriamente programáticas –, já não pode ser posta em dúvida, nesta altura da evolução jurídica.” (COMPARATO, 1998, p. 45).
117
estatais como meio por excelência de se alcançar os objetivos
sociais plasmados nas normas constitucionais. Nesse sentido,
em revisão crítica à teoria da Constituição Dirigente,
Canotilho afirma:
...é indiscutível que os programas constitucionais
apontavam para uma decidida estatalidade, acreditando no
Estado produtor e redistribuidor. [...] Nesse contexto,
ainda se acreditava que a ordem política justa não é uma
ordem econômica espontânea que as mulheres e homens
tenham de aceitar de forma tranquila e passiva, desde
logo porque nada há a fazer.182
Em decorrência dessa visão, assim como aconteceu com
o Direito Administrativo e o Direito Econômico majoritários
descritos no item anterior, a corrente da Constituição
Dirigente assumia como premissa a ideia de que haveria uma
ordem econômica espontânea. Para se opor a essa ordem
espontânea, a Constituição Dirigente fixava um programa para o
Estado. Percebe-se, portanto, que também nas narrativas
baseadas na Constituição Dirigente, Estado se opõe a mercado
(compreendido como ordem econômica espontânea). Todavia,
justifica-se a expansão do Estado, em detrimento do mercado,
como meio de assegurar direitos sociais.
A busca pela efetivação de direitos sociais e a
ênfase do papel do Estado nesse mister contrapõem a
Constituição Dirigente a outra corrente, cujo ápice se deu nos
anos 90 do século passado, e que tem particular influência nos
debates sobre a regulação de setores de infraestrutura por
agências reguladoras. Trata-se da corrente do Estado
Regulador, que trataremos a seguir.
182 CANOTILHO, 2008, pp. 209-210.
118
1.4.3. Estado Regulador
As reformas do Estado brasileiro conduzidas nos anos
90183, de modo geral, foram desafiadoras para o Direito
Administrativo e o Direito Econômico majoritários. As novas
instituições econômicas que se buscavam implantar no Brasil184
provocaram perplexidade naquelas que eram, até então, as
principais doutrinas jurídicas empregadas para justificar a
atuação do Estado na economia. A visão de mundo correspondente
à forma como o Direito Administrativo e o Direito Econômico
estruturaram no Brasil seus conceitos e construíram suas
narrativas até a década de 1990 se mostrou incompatível com as
instituições econômicas que foram adotadas no Brasil em razão
das reformas supervenientes.
As principais incompatibilidades se configuraram na
crise do conceito de serviço público – pela inadequação do
conceito ao que passou a ocorrer na prática - e no surgimento
183 Para uma avaliação das reformas sob a óptica de seus principais formuladores, ver: PEREIRA e SPINK, 1998. 184 O processo de reforma do Estado brasileiro se insere em um contexto mais amplo de influência política de países desenvolvidos sobre os países em desenvolvimento, baseado no incentivo por organismos internacionais um modelo de desenvolvimento econômico identificado com as instituições econômicas típicas dos países ricos do Ocidente, em especial os de origem anglo-saxã (cf. TRUBEK, 2006, pp. 81-89). As características desse processo e sua influência nas instituições brasileiras são assim descritas por Marcus Faro de Castro: “A crise do “modelo constitucional do segundo pós-guerra” em economias ricas do Hemisfério Norte gerou, como reação, movimentos de cooperação Norte-Sul que tendem a promover: (a) a mudança no processo orçamentário dos países do Hemisfério Sul, conducentes à supressão das despesas não-financeiras do Estado (privatizações de serviços públicos, cancelamento de vinculações constitucionais de receitas, etc.); (b) a liberalização comercial, com a redução de tarifas comerciais e especialmente com pressões para o desemantelamento de políticas caracterizáveis como barreiras não-tarifárias ao comércio internacional, sob a incidência dos princípios da “nação mais favorecida” e do “tratamento nacional”; (c) a desregulamentação dos mercados financeiros; (d) a mercantilização – em boa parte por meio de avanços no campo da propriedade intelectual – de recursos naturais, inclusive a atmosfera (via criação de mercados de captura e sequestro de carbono), a água e o patrimônio genético consitutivo da biodiversidade.” (CASTRO, 2006, p. 56).
119
de doutrinas que se opunham às dos tratadistas tradicionais de
Direito Administrativo e Direito Econômico. Entre essas
doutrinas mais recentes, destacamos a tentativa de
reconstrução do Direito Administrativo e do Direito Econômico
e a emergência do chamado Direito Administrativo Econômico,
todos baseados na ideia de Estado Regulador e em uma
particular narrativa que se construiu em torno dela.
Como dito, o processo de reforma do Estado dos anos
90 trouxe para o Direito brasileiro a chamada crise da
doutrina do serviço público.185 Um dos principais aspectos das
reformas dos anos 90 foi a desestatização de diversas
atividades até então confiadas exclusivamente a entes
estatais. Até então, o Direito Administrativo e o Direito
Econômico entendiam que aquelas atividades, por serem
prestadas exclusivamente pelo Estado, haviam sido retiradas do
mercado (entendido como esfera de atuação econômica típica dos
particulares, tal como formulado desde o Pensamento Jurídico
Clássico). Porém as reformas fizeram com que grande parte
dessas atividades passasse a também ser prestada por
particulares, em regime de competição. Nesse regime de
competição, ao invés das regras características daquilo que se
compreendia como regime de direito público, essas atividades
passaram a atuar sob regras até então típicas do regime de
185 São identificadas duas crises do serviço público. A primeira ocorreu quando os Estados passaram, sob a influência keynesiana e após a Crise de 29, a exercer eles mesmos atividades antes delegadas a particulares, porém usando como mecanismo entes privados sob controle público: as empresas públicas e as sociedades de economia mista. A dita segunda crise ocorreu com a privatização de atividades tradicionalmente tidas como públicas, fruto em especial da disseminação da idéia de Estado mínimo em políticas econômicas que, no conjunto, são denominadas por esses mesmos autores como “neoliberais” (Cf. GONÇALVES, 1999, pp. 11-23; ROLDÁN MARTIN, 2000, pp. 19-28; ARIÑO ORTIZ, 2005, pp. 12-15). Para uma síntese da discussão e sua repercussão no Direito brasileiro, ver ainda: ARAGÃO, 2007, pp. 239-264.
120
direito privado (tais como livre iniciativa, livre
contratação, proteção à propriedade dos ativos empresariais,
etc.) – até porque um dos objetivos da reforma, senão seu
principal, era enfatizar o papel do mercado na produção e
alocação de riquezas.186 Isso trouxe perplexidade em especial
na aplicação prática do conceito de serviço público tal como
adotado pelo Direito Administrativo e pelo Direito Econômico,
pois, como visto, as atividades consideradas como serviço
público sob a égide de doutrinas anteriores deveriam ter um
regime jurídico característico, diferente por definição do
regime jurídico privado.187
Mas atividades até então consideradas serviço
público passaram a ser prestadas sob uma multipliciplicidade
de regimes jurídicos, alguns deles em tudo semelhantes ao
regime privado.188 O conceito de serviço público deixou de ter
um regime jurídico característico. A reação de alguns
doutrinadores tradicionais foi negar as mudanças, refutando as
novas instituições trazidas pelas reformas dos anos 1990, para
defender o regime jurídico típico do serviço público.189 Para
esses autores, submeter as atividades que antes eram
consideradas típicas de Estado a regime jurídico próprio do
setor privado seria uma ofensa ao modelo jurídico que divide
186 Cf. CARVALHO, Vinicius, 2010, pp. 57-70. 187 A essa perplexidade se refere, por exemplo, Áurea Roldán Martin, ao tratar dos reflexos da crise do serviço público no Direito espanhol: “Com el tiempo la quiebra del nexo entre servicio público y régimen público, derivada de la realización de determinadas actividades materiales por el Estado pero bajo la veste de personificaciones instrumentales de Derecho privado, abriría las puertas a la crisis del concepto.” (ROLDÁN MARTIN, 2000, p. 22.). 188 Sobre a repercussão dessa mudança não apenas na ideia de serviço público, mas também sobre a forma como o próprio Direito Administrativo é concebido, ver: ESTORNINHO, 1999. 189 Cf. DI PIETRO, 2009, pp. 27-39; GRAU, 2010, pp. 132 e ss.; MELO, 2012, pp.1083-1097.
121
atividades públicas e privadas. Nesse intuito, recorreram ao
formalismo, buscando na redação das normas de competências da
Constituição Federal a salvação para as formulações teóricas
que defendiam.190 Essas normas de competência foram por eles
lidas de modo a afirmar que a Constituição, ao atribuir a um
ente federado a incumbência de realizar determinada atividade,
a teria excluído da esfera privada. A atribuição de
competências pela Constituição191 denotaria a publicização de
dada atividade, transformando-a em serviço público. Em
decorrência, a essas atividades publicizadas se deveria
aplicar o regime jurídico público, que é próprio para o
serviço público. Essa defesa recorre a um argumento formal: a
redação do art. 175 da Constituição Federal, que associa
serviço público à concessão e à permissão.192 Essa posição,
porém, não esclarece qual seria esse regime jurídico
tradicional exigido pelo art. 175 - como vimos, nunca houve um
190 Esse raciocínio é adotado, entre outros, por: MELLO, 2012, pp. 702 e ss.; GRAU, 2010, pp. 117-124 191 Assim, seriam serviço público de competência federal as atividades enumeradas nos artigos 21 e 22, de competência concorrente entre os entes federados as atividades enumeradas no artigo 23, de competência estadual as atividades enumeradas no artigo 25, e de competência municipal as atividades listadas no artigo 30. Com destaque, a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello: “A Carta Magna do país já indica, expressamente, alguns serviços antecipadamente propostos como da alçada do Poder Público federal. Serão, pois, obrigatoriamente serviços públicos (obviamente quando volvidos à satisfação da coletividade em geral) os arrolados como de competência das entidades públicas.” (MELLO, 2012, p. 702). Para Celso Antônio Bandeira de Mello, porém, nem todos os serviços públicos são reputados privativos do Estado, pois haveria serviços que admitiriam prestação concomitante por particulares. Isto é, a qualificação de serviço público não necessariamente retiraria determinada atividade do âmbito privado. Quando prestadas pelo Estado, seriam serviço público. Quando prestadas por particulares, seriam atividades econômicas privadas. Porém, a vinculação entre regime público e serviço público remanesce. Cf. MELLO, 2012, pp. 702-711. 192 Constituição Federal: Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. /§/ Parágrafo único: A lei disporá sobre: /§/ I – o regime das empresas concessionárias e permissionárias de serviços públicos, o caráter especial de seu contrato e de sua prorrogação, bem como as condições de caducidade, fiscalização e rescisão da concessão ou permissão; [...].
122
consenso sobre esse regime jurídico, ou sobre o modo como esse
regime se vincula ao serviço público.
As perplexidades provocadas pelas instituições
econômicas decorrentes das reformas dos anos 1990, todavia,
além da crise do serviço público, resultaram também em
alternativas teóricas formuladas em contraposição à narrativa
tradicional do Direito Administrativo e do Direito Econômico.
Parte importante dessas alternativas se estruturou uma nova
narrativa fundada na noção de “Estado Regulador”.193 Novos
tratadistas, defensores das reformas dos anos 90, passaram a
contrapor aquilo que seria a visão contemporânea do papel do
Estado na economia - o Estado Regulador - a outras visões
desse papel que lhe teriam antecedido na história – o Estado
Liberal e o Estado do Bem-Estar Social. Esse novo papel
exigiria um novo direito, o que por sua vez justificaria
abandonar algumas das construções doutrinárias precedentes -
em especial, a ideia de um regime jurídico típico das
atividades públicas.
O Estado Regulador, segundo esta mais recente
narrativa, teria sido antecedido pelo Estado do Bem-Estar
Social e pelo Estado Liberal. O Estado Liberal é definido como
o resultado das Revoluções Burguesas, em que a garantia da
propriedade contra a intervenção estatal seria elemento
central das relações entre Estado e economia, e cuja
referência econômica primordial seria o laissez-faire do
193 Como exemplo de representantes dessa narrativa, destacamos: MARQUES NETO, 2005; SALGADO, 2003; SUNDFELD, 2000b e 2000c; ARAGÃO, 2006 e 2007; JUSTEN FILHO, 2002 e 2012. Outro representante dessa narrativa é MOREIRA NETO, 2009 - apesar desse autor não usar a expressão “Estado Regulador” como os demais, ele defende a existência de um novo tipo de Estado, hoje ainda sem nome (p. 17), cujas características equivalem ao modelo de Estado Regulador pregado pelos demais autores citados acima.
123
liberalismo econômico de Adam Smith.194 O Estado do Bem-Estar
Social seria a resposta à Crise Econômica de 1929, que haveria
colocado o liberalismo puro em cheque. Sua referência
econômica seria a doutrina de Keynes, cujos preceitos seriam
conferir ao Estado o papel de executor de políticas de
assistência social e de atuação direta para assegurar o
desenvolvimento econômico de setores estratégicos.195 O Estado
Regulador, por fim, seria a resposta à falência do Estado do
Bem-Estar Social196 e ao processo de globalização econômica.
Sem dinheiro para executar todas as atribuições que lhe foram
incumbidas, o Estado teria de recorrer à iniciativa privada.
Esta não apenas possuiria os recursos necessários, como seria
mais eficiente na execução das tarefas antes atribuídas ao
Estado. Além disso, com a globalização, o Estado se veria
forçado a pautar suas políticas de acordo com padrões globais
194 Exemplo desse pensamento se extrai do seguinte trecho: “Sob o ângulo da atividade econômica privada os principais fundamentos do Estado liberal-burguês eram a propriedade, pela qual se assegurava a titularidade, o gozo e a fruição dos bens, e os contratos, veículos da circulaçaõ destes bens Sobre ambos à Administração Pública não competia impor qualquer restrição, salvo se necessária para que os direitos de outros cidadãos não fossem prejudicados. Acreditava-se que o mercado seria muito mais benéfico para o conjunto da sociedade se agisse livremente, não devendo ser funcionalizado por qualquer finalidade coletiva.” (ARAGÃO, 2006, p. 49.) 195 Nesse sentido: “...a partir do final do século XIX, também em razão do grande desenvolvimento material proporcionado pela Revolução Industrial, o Estado tomou a si a difícil tarefa de corrigir as distorções e deformações causadas à ordem econômica, bem com à ordem social, em razão do abuso de do poder econômico ou da carência de iniciativas produtivas da sociedade.[...] Esse estágio inicial do ordenamento econômico-social se prolongou até o Segundo Pós-Guerra, coincidindo com o fastígio do Estado-Nação, com a conturbada era das ideologias salvacionistas e as grandes conflagrações mundiais que provocaram, dando-se um remanejamento, em grande escala, dos componentes econômicos e sociais da sociedade, do qual resultou a configuração, à época, dos modelos dominantes do Estado do Bem-Estar Social e do Estado Socialista.” (MOREIRA NETO, 2009, pp. 133-134.) 196 É o que afirma, por exemplo, Marçal Justen Filho: “A crise fiscal do Estado de Bem-Estar conduziu a perspectivas de redução das dimensões do Estado e de sua intervenção direta no âmbito econômico. Passou-se a um novo modelo de atuação estatal, que se caracteriza preponderantemente pela utilização da competência normativa para disciplinar a atuação dos particulares.” (JUSTEN FILHO, 2002, p. 20.)
124
de governança, sob pena de afugentar do País os investidores
necessários ao desenvolvimento econômico. A narrativa acerca
do Estado Regulador, contudo, não é exclusiva da doutrina
nacional. Especialmente na Europa Continental, o dito modelo
do Estado Regulador foi e continua sendo apontado pela
doutrina jurídica como fundamento para novos regimes jurídicos
para a atividade econômica.197
Dentro desse contexto, a primeira característica
atribuída ao Estado Regulador seria a subsidiariedade, elevada
por alguns doutrinadores à categoria de princípio.198 A
característica da subsidiariedade denotaria limitação na forma
de atuação do Estado na atividade econômica. Esta, a atividade
econômica, seria primordialmente uma atividade livre, de
início imune à intervenção estatal. Por isso, na economia,
caberia ao Estado apenas atuar subsidiariamente à iniciativa
privada, e nunca em substituição a essa.
A segunda característica típica do Estado Regulador,
segundo a narrativa que aqui descrevemos, seria a chamada
intervenção indireta, aquela realizada mediante normas
abstratas editadas por entes da Administração Pública. A
interveção indireta seria contraposta à intervenção direta,
esta uma característica do Estado do Bem-Estar e qualificada
pela assunção de atividades econômicas por entes estatais -
197 Como representantes do debate europeu, ver: MAJONE, 2006; SCOTT, 2006; ARIÑO ORTIZ, 1993, 2004 e 2005. 198 É o que faz o já citado Justen Filho: “A atuação direta do Estado não é justificável mediante a mera invocação de algum interesse público que se considere relevante. É necessário providenciar que a intervenção direta do Estado é a solução adeuqada e imprescindível para a satisfaçaõ de necessidades determinadas. Aplica-se o princípio da proporcionalidade, o que significa que somente se legitimará a intervenção estatal se outra alternativa não for mais satisfatória. Sob esse prisma, o princípio da proporcionalidade se manifesta como princípio da subsidiariedade.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 808.)
125
especialmente empresas públicas e sociedades de economia
mista. A intervenção indireta, em oposição, seria realizada
por agências reguladoras independentes - é também chamada de
intervenção regulatória - e seria o meio precípuo de atuação
do Estado Regulatório na economia.199
Ao eleger a intervenção regulatória como forma
típica de atuação estatal na economia, a narrativa do Estado
Regulador advogava não apenas que as atividades até então
consideradas públicas fossem entregues a particulares, mas que
se lhes aplicassem regras típicas de mercado. As ditas regras
de mercado seriam as do regime jurídico das atividades
privadas. Com isso, atividades anteriormente qualificadas como
serviço público passariam a não mais se sujeitar a um típico
regime jurídico público. Não caberia mais ao Estado escolher
as atividades de sua prerrogativa, dado o seu caráter
subsidiário, e sobre essas atividades excepcionais tão somente
poderia ser aplicado um regime jurídico diferenciado. Aquelas
atividades que lhe tinham sido entregues deveriam sempre que
possível ser repassadas à iniciativa privada, sob regras tanto
mais próximas das regras de mercado quanto possível:
O modelo regulatório propõe a extensão também ao setor
dos serviços públicos de concepções aplicadas a
propósito da atividade econômica privada. Ou seja,
rejeita-se a concepção da atuação direta do Estado não
apenas a propósito da atividade econômica privada
199 Essa visão é refletida, por exemplo, na seguinte exposição de Marques Neto: “Temos, então, que a moderna regulação, no sentido que foi acima exposto, representa não uma sbutração do papel do Estado como ordenador da economia. Representa, sim, uma mudança no paradigma pelo qual a intervenção estatal na economia se dá, mudança fortemente marcada pela substituição ou complementação dos mecanismos de intervenção direta na ordem econômica por instrumentos de uma determinada modalidade específica de intervenção indireta que poderíamos designar de intervenção regulatória.” (MARQUES NETO, 2005, pp. 42-43.)
126
(propriamente dita) mas também no tocante aos serviços
públicos. Reconhece-se como desejável a substituição do
Estado-Prestador pelo Estado-Regulador dos serviços
públicos.200
Essa narrativa, assim, desvinculou regime jurídico
da dicotomia público-privado, deixando de atribuir ao âmbito
público um regime específico, e também ampliando a
possibilidade de incidência de regras extravagantes a
atividades reputadas como privadas. Sob esse viés, a crise do
serviço público, configurada pela impropriedade da
caracterização do serviço público em termos de um regime
jurídico próprio, é reafirmada pelos teóricos do modelo de
Estado Regulador:
O fenômeno de reestruturação dos serviços de
titularidade estatal (energia, telecomunicações,
saneamento, transportes, etc.) está produzindo uma
importante alteração do Direito Administrativo, cujos
modelos teóricos devem, em grande medida, ser
reinventados. Durante bom período o conceito de serviço
público serviu para razoavelmente sintetizar o regime
jurídico da exploração dessas diversas atividades. É bem
verdade que essa noção veio se modificando no tempo,
tornando-se pouco a pouco muito problemática: além
disso, por ter sido usada para englobar serviços os mais
distintos, com as respectivas especificidades, seu
conteúdo jamais foi suficiente para dar conta dos
problemas e características particulares de cada um
deles. Tratava-se, todavia, de noção útil. Hoje não o é
mais, ao menos da mesma forma que antes.201
Como alternativa, os teóricos do Estado Regulador
tentam aproveitar o conceito de serviço público sob uma nova
200 JUSTEN FILHO, 2002, pp. 23-24. 201 SUNDFELD, 2000b, p. 32.
127
roupagem. Ao invés de servir para caracterizar a atividade
pública, o conceito de serviço público serviria para que, nas
excepcionais situações em que fosse requerida intervenção
estatal mais pesada, um regime jurídico próprio diferenciado
pudesse incidir. Recorrendo a uma leitura formal da
Constituição, o serviço público seria apenas aquele prestado
por concessão ou permissão, como referido no art. 175 da Carta
Política de 1988. Nos demais casos, normas de mercado é que
deveriam regular a atividade econômica, mesmo as atividades
cometidas a União, Estados ou Municípios pela Constituição.
Neste caso, o instrumento jurídico que viabilizaria outro
regime jurídico (que não o do serviço público) seria a chamada
autorização.202 Nessa leitura, o regime jurídico aplicável
passava a ser definido pelo título (concessão, permissão ou
autorização) que intermediasse a relação entre o particular
que presta o serviço e o ente estatal que possui a
titularidade para prestá-lo (conforme as normas
constitucionais de competência).
Essa justificativa explora a dicção da Constituição
Federal acerca de atividades cominadas à competência de entes
federativos. O argumento formal usado na corrente do Estado
Regulador se estrutura nos termos seguintes. O texto
constitucional, ao atribuir competência para prestação de
202 “A Constituição Federal deu, então, certa margem de discricionariedade ao Legislador em relação às atividades enumeradas nos incisos X a XII do art. 21 para que, diante das evoluções tecnológicas propiciadoras da concorrência e do Princípio da Proporcionalidade na sua expressão de subsidiariedade, enquadre-as como serviços públicos ou como atividades privadas de interesse público sujeitas a uma regulação de natureza autorizativo-operacional. /§/ Adotando essa última alternativa, algumas das atividades previstas no art. 21 teriam sido, mais do que apenas desestatizadas (delegação à iniciativa privada de atividades titularizadas pelo Estado), realmente privatizadas, ou seja, teria saído da órbita público-estatal e passado para o mercado, para a livre iniciativa privada, sujeitas, naturalmente, à regulação exógena.” (ARAGÃO, 2007, pp. 226-227.)
128
determinadas atividades a um ente federado (como fazem os
artigos 21 e 22 da Constituição Federal, por exemplo), em
geral o faz segundo a fórmula: compete a [União, Estado ou
Município] prestar [a atividade em questão] diretamente ou
mediante concessão, permissão ou autorização. O art. 175 da
Constituição, por sua vez, diz que incumbe ao Poder Público
diretamente ou sob o regime de concessão ou permissão a
prestação de serviços públicos. Logo, argumentam os teóricos
do Estado Regulador, os serviços prestados sob autorização não
seriam serviço público, pois não listados no art. 175. A
figura da autorização, em decorrência, surge como
justificativa formal para a criação de novos regimes jurídicos
que não o do serviço público e, até mesmo, para sujeição de
determinadas atividades ao regime privado. Para realizar essa
distinção entre regimes jurídicos (público e privado)203
atribuídos a atividades igualmente tidas como de
responsabilidade do Estado, serviu de inspiração a adaptação,
feita por teóricos do Estado Regulador na União Européia, da
noção de serviço público para os chamados serviços de
interesse econômico geral.204
203 Como faz, por exemplo, Ariño Ortiz, autor espanhol com grande influência nos doutrinadores brasileiros do Estado Regulador: “Se han de distinguir, pues, claramente, en las actividades de las empresas, dos tipos o modalidades: /§/ a) Servicios garantizados, obligaciones o cargas de servicio público: son actividades subsidiadas, a precios tasados con compenesación adicional; por ellas responde el Estado. /§/ b) Actividades comerciales competitivas: sometidas a un régimen de precios de mercado, libremente pactados por las partes; el riesgo y/o la ventura corresponde al empresario. /§/ Las primeras se asemejam a la concesión (régimen contractual), las segundas son libres, no reguladas (régimen policial y sumisión al derecho general de la competencia).” (ARIÑO ORTIZ, 2005, p. 35) 204 Esse conceito está presente no art. 86 (originalmente no art. 90) do Tratado da União Européia, e seu objetivo era servir de instrumento à liberalização da prestação dos serviços públicos, de modo a abrir o mercado desses serviços às empresas dos demais países signatários (Cf. ARIÑO ORTIZ, 2005, pp. 35 e ss.). Em decorrência, houve um processo de adaptação da noção de serviço público: “En linea con las teorías de VILLAR PALASÍ sobre
129
Adicionalmente, em atenção à ideia de atuação
subsidiária do Estado na economia, o serviço público é
justificado nessa narrativa como instrumento de assimetria
regulatória entre empresas novas no mercado e empresas já
estabelecidas. Essa assimetria seria justificada por “falhas
de mercado” típicas de “setores de infraestrutura” como
telecomunicações205, saneamento básico, energia elétrica206,
la intercambialidad de las técnicas de intervención pública, se percibe hoy en en la articulación jurídica de4 los servicios de interés económico general la combinación de elementos de las clásicass formas de la actividad administrativa en figuras mixtas (valoradas como nuevas o no, según el prurito de “taxonomización” conceptual), a los que se añaden otros de reciente cuño. No puede estar más explícitamente reconocida la pervivencia de elementos del servicio público en las telecomunicaciones, transportes o correos que mediante la imposición de obligaciones eo nomine de servicio público a los operadores que actúan en el mercado. Cabría señalar pues que, aun planteada la cuestión de la vigencia del servicio público en términos de enfrentamiento entre las viejas y las nuevas categorías y admitiendo la derrota de éste, una vez más en la historia – como dijera MAX WEBER – el vencedor se ha revestido con los despojos del vencido.” (ROLDÁN MARTIN, 2000, p.53.) 205 Sobre o uso do regime de direito público como instrumento de assimetria regulatória no setor de telecomunicações: “Tão importanto quanto ter definidio a complementariedade de funções CADE/Anatel, é ter decidido utilizar fortes assimetrias regulatórias como instrumentos de universalização e de indção ao desenvolvimento de uma situação de efetiva concorrência. Quando falamos de assimetrias regulatórias, referimo-nos à existência de um conjunto de direitos e deveres que diferem de um prestador para outro, ainda que ambos atuem no mesmo mercado geográfico oferecendo serviços equivalentes. /§/ O principal instrumento de assimetria regulatória utilizado pela Anatel é a distinção feita, pela LGT [Lei Geral de Telecomunicações], entre a prestação do serviço submetida ao regime jurídico público ee sua prestação sob o regime jurídico privado. Quando, para prestar determinado serviço, a empresa obtiver uma concessão, deverá respeitar as regras próprias do regime jurídico público; entretanto, se para prestar o mesmo serviço, obtiver uma autorização, respeitará as regras que são próprias do regime jurídico privado.” (HERRERA, 2001, p. 47). 206 Sobre o uso da concessão de serviço público como instrumento de regulação concorrencial da atividade de transmissão de energia elétrica: “No que diz respeito ao regime de exploração, a transmissão, atualmente caracterizada como um segmento autônomo, está submetida única e exclusivamente ao de serviço público, titulada sob concessão. [...] Outra importante característica da transmissão, na concepção do novo modelo setorial, é que ela deve ser uma atividade neutra, não-comercial, nem competitiva. Nesse sentido, a emprsa de transmissão não gera, não compra e não vende energia; ela só executa a transmissão da energia elétrica. Isto para garantir sua neutralidade, de modo a não prejudicar e não interferir na competição realizada nos segmentos de geração e de comercialização. E,
130
transporte, entre outros. Nisso, portanto, outra radical
diferença frente ao Pensamento Jurídico Social e também às
narrativas contemporâneas do Direito Administrativo, do
Direito Econômico e da Constituição Dirigente. Não é uma
necessidade social que exige um regime jurídico diferenciado
para os serviços públicos, tampouco o é o atendimento a
direitos sociais ou coletivos. O regime jurídico do serviço
público, na narrativa do Estado Regulador, se justifica por
uma lógica de correção do mercado, lógica essa que deriva da
ideia de subsidiariedade da atuação estatal.207
Empresas já estabelecidas em mercados em que
houvesse altas barreiras à entrada208 necessitariam de uma
intervenção regulatória mais incisiva. Isso porque tais
empresas teriam, em decorrência de sua posição dominante,
poder de mercado que poderia ser usado para dificultar ou
para tanto, as tarifas cobradas pela transmissão são reguladas e fixadas pela ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica].” (WALTENBERG, 2000, p. 365). 207 Por exemplo: “Em síntese, o serviço público surge como instrumento para promover a satisfação de necessidades relacionadas diretaq e imediatamente com os direitos fundamentais quando o funcionamento normal e espontâneo da livre iniciativa for incapaz de promover essa solução.” (JUSTEN FILHO, 2012, p. 655). 208 Barreiras à entrada é expressão cunhada na Microeconomia para tratar de causas que impedem ou dificultam que novos ofertantes passem a atuar em um dado mercado. Em resultado, os ofertantes já estabelecidos no mercado têm posição privilegiada frente a novos concorrentes, e além disso podem passar a deter poder de fixar os preços (ao contrário de serem tomadores de preços, como ocorreria em um mercado em concorrência perfeita) – cf. SALOMÃO FILHO, 2007a, pp. 91-170. Mankiw fornece uma introdução às barreiras de mercado segundo a Economia neoclássica, destacando seu papel na formação de monopólios: “A causa fundamental dos monopólios está nas barreiras à entrada: um monopólio se mantém como o único vendedor de seu mercado porque as outras empresas não podem entrar no mercado e competir com elas. As barreiras à entrada, por sua vez, têm três origens principais: /§/ Recursos de monopólio: Um recurso-chave necessário para produção é exclusivo de uma única empresa. /§/ Regulamentações do governo: O governo concede a uma única empresa o direito exclusivo de produzir um determinado bem ou serviço. /§/ O processo de produção: Uma única empresa consegue fornecer produtos a custo mais baixo que um grande número de produtores.” (MANKIW, 2009, p. 300).
131
inviabilizar a entrada de novos competidores. Essa posição
dominante, por sua vez, é vista como o legado de monopólios
instituídos sob o modelo do Estado do Bem-Estar Social a
empresas sob controle estatal. Com a venda dessas empresas ao
setor privado (desestatização ou privatização), haveria a
necessidade concomitante de submetê-las a um regime de
competição, como meio de se estabelecer um regime de livre
mercado no provimento dos serviços prestados por aquelas
empresas.209 Esse regime de livre mercado seria incompatível
com o antigo regime de serviço público, baseado na
exclusividade de prestação do serviço justificada pela sua
exclusão da órbita privada. Como forma de contraposição ao
poder de mercado legado pela antiga situação de monopólio,
surgiria a necessidade de uma nova configuração do regime
jurídico de serviço público. O regime de serviço público,
assim, é articulado pela narrativa do Estado Regulador como
uma intervenção regulatória mais incisiva, em que há mais
intensa normatização das atividades da empresa regulada,
motivada por sua posição dominante no mercado.210 Essa
209 Nesse sentido, Carlos Ari Sundfeld afirma: “Só que algumas agências, a ANATEL, a ANEEL e a ANP, nasceram sob o signo de mais um dever, resultante do projeto que inspirou a privatizaçao das correspondent6es atividades estatais. Seguindo uma tendência internacional, o Brasil decidiu acabar com os monopólios nos setores telecomunicação (então nas mãos da TELEBRÁS), de energia elétrica (envolvendo especialmente a ELETROBRÁS e várias empresas dos governos estaduais, como a CESP) e do petróleo (PETROBRÁS). Portanto, a reforma não se limintou à mera venda de empresas para o setor privado, mas veio acompanhada da abertura dos respectivos mercados para novas prestadoras. E qual a justificativa do modelo? É a de que a concorrência seria boa tanto para o desenvolvimento econômico, porque apressaria a expansão da planta de serviços, como para o consumidor, pois geraria disputa, com melhoria de preços e serviços.” (SUNDFELD, 2000b, p. 35.) 210 Vide, como exemplo, a seguinte justificativa para um regime jurídico diferenciado às empresas privatizadas: “O estabelecimento de concorrência em setores anteriormente submetidos à exploração em monopólio exige um esforço peculiar dos órgãos reguladores e, paradoxalmente, uma regulação forte que estimule a entrada de novos agentes e lhes garanta condições viáveis de concorrência. Com efeito, as antigas empresas estatais, ainda que privatizadas, gozam não apenas de uma posição de domínio no mercado,
132
intervenção mais incisiva se faz presente no mais das vezes
pela fixação dos preços de comercialização do serviço (ainda
qualificados como tarifas de serviço público), e pela
imposição de obrigações de universalização. Assim, sob o ponto
de vista da narrativa do Estado Regulador, a assimetria
regulatória, provocada pela articulação entre o regime de
direito público – típico da concessão de serviço público – e o
regime de direito privado – típico das autorizações -, é
também uma resposta a falhas de mercado. Por conseguinte, nos
casos em que tais falhas de mercado não fossem mais
caracterizáveis, não haveria fundamento para aplicação do
regime público.211
Esta a justificativa da narrativa do Estado
Regulador para a reconstrução do serviço público como meio de
correção das falhas de mercado típica dos setores de
infraestrutura: como ônus adicional às empresas já
estabelecidas, especialmente na forma de obrigações de
interesse da coletividade traduzidas pela ideia de
mas de tradição, clientela, capacidade instalada e outras vantagens decorrentes da presença consolidada na atividade. As empresas em processo de entrada, embora pertencentes a grupos de grande poder econômico, entram em desvantagem competitiva. Nesse sentido, é necessário o estabelecimento de regras tendentes a compensar o poder das antigas monopolistas.” (NUSDEO, 2000, p. 176). 211 Nesse sentido, Alexandre Santos de Aragão argumenta: “...podemos afirmar que a titularidade estatal sobre serviços públicos, com prestação por particulares apenas mediante delegação, é mantida quando, apesar dos programas e controles impostos pelas autorizações, a livre iniciativa não for eficaz para os objetivos de interesse público. /§/ Em caso contrário, teremos a sua despublicização com o que, à luz do Direito brasileiro, deixarão de ser serviços públicos propriamente ditos para passarem a ser atividades privadas de interesse público – os chamados serviços públicos impróprios ou virtuais -, acarretando forte assimetria regulatória no seio do conjunto daquelas atividades: algumas sob a reserva estatal e outras prestadas em regime privado./§/ Temos, assim, um determinado setor submetido a um marco regulatório de natureza complexa, com algumas atividades caracterizadas como serviços públicos e outras como atividades privadas de interesse público.” (ARAGÃO, 2007, pp. 430-431.)
133
universalização. Em contrapartida, sem o ônus da
universalização, as demais empresas (não sujeitas ao regime de
serviço público) teriam melhor condição para entrar no mercado
e competir. Essas novas competidoras estariam sujeitas às
regras do setor privado, ou ao menos sujeitas a um regime
jurídico com regras similares às do setor privado, e o que
lhes garantiria isso seria o fato de operarem sob autorização,
e não sob concessão ou permissão. Quanto ao regime jurídico da
autorização, o papel do Estado na intervenção regulatória
seria fixar regras uniformes, válidas para todos os
competidores – como é típico da intervenção direta no domínio
econômico. Essas regras seriam a forma característica de
atuação do Estado Regulador, e são identificadas por essa
narrativa como a essência da dita atividade regulatória.212
As regras que são produzidas pela intervenção
regulatória, nessa visão, não seriam uma opção política, mas a
resposta técnica a uma constatação objetiva. Isso porque,
segundo a corrente do Estado Regulador, as falhas de mercado
seriam situações objetivamente aferíveis que inviabilizariam
que determinada estrutura de produção de bens e serviços se
comportasse como um mercado em concorrência perfeita, ou ao
212 Marçal Justen Filho novamente serve de exemplo desse ponto de vista: “Uma característica essencial da regulação reside na sua natureza exclusivamente normativa. A regulação consiste na adoção de normas e outros atos estatais, sem se traduzir na aplicação dos recursos estatais para o desempenho direto de alguma atividade no domínio econômico-social. A regulação estatal se traduz numa atuação jurídica, de natureza repressiva e promocional, visando a alterar o modo de conduta dos agentes públicos e privados. [...] A regulação consiste na opção preferencial do Estado pela intervenção indireta, puramente normativa. Revela a concepção de que a solução política mais adequada para obter os fins buscados consiste não no exercício direto e imediato pelo Estado de todas as atividades de interesse público. O Estado regulador reserva para si o desempenho material e direto de algumas atividades essenciais e concentra seus esforços em produzir um conjunto de normas e decisões que influenciem o funcionamento das instituições estatais e não estatais, orientado-as em direção de objetivos eleitos.” (JUSTEN FILHO, 2012, pp. 638-639).
134
menos em condições próximas às de um mercado nessas condições.
Caberia às agências identificar racionalmente os meios
adequados para realizar as políticas públicas, dentro de
parâmetros fixados por leis. A fixação por meio de leis das
políticas públicas no direito positivo demarcaria os chamados
marcos regulatórios. Assim, seriam as leis, e não as agências
reguladoras, que determinariam as políticas públicas. Desse
modo, a opção política, na narrativa do Estado Regulador, é
apriorística à atividade regulatória. A partir dos limites dos
marcos regulatórios, a atividade das agências se traduziria em
um mister predominantemente técnico.213
Por esse motivo, para que a resposta às falhas de
mercado fosse adequada, a intervenção regulatória deveria ser
imparcial. Nas narrativas com base no Estado Regulador, grande
ênfase é dada ao modelo de agências reguladores reguladoras
independentes (ou autônomas) como forma de se assegurar o
caráter “técnico” da intervenção estatal e evitar a deturpação
da regulação pela parcialidade. Além disso, as agências
reguladoras teriam por função arbitrar os conflitos advindos
de opções conflitantes de implementação de políticas públicas.
Nesse aspecto, a narrativa do Estado Regulador adota a policy
analysis do Pensamento Jurídico Contemporâneo, mas em lugar da
a figura heróica do juiz adotada pela narrativa da
213 Floriano Azevedo Marques Neto serve de ilustração de narrativas nos moldes acima: “Os órgãos reguladores não são instância institucional de definição de políticas. São sim espaços e instrumentos para efetivação destas, previamente definidas pelo Executivo e pelo Legislativo (eventualmente até com a participação e o suporte técnico do órgão regulador, mas fora do campo decisório deste). A regulação apresenta-se, portanto, como o exercício independente de competências para cumprir pressupostos e objetivos definidos nas políticas públicas.” (MARQUES NETO, 2005, p. 92.)
135
Constituição Dirigente, adota a figura da agência
reguladora.214
A corrente do Estado Regulador, contudo, não costuma
se aprofundar na caracterização econômica das falhas de
mercado, quase sempre ignorando controvérsias intensas215 sobre
sua aplicação no próprio pensamento econômico neoclássico216
que, implicitamente (e por vezes inconscientemente) adotam
como fundamentação. Não obstante, por considerar as falhas de
mercado em geral, e as externalidades em particular, fatores
passíveis de mensuração objetiva, essa narrativa vincula a
legitimidade da regulação à competência técnica necessária
para identificar e corrigir falhas do mercado regulado e,
214 Como ilustra a exposição de Carlos Ari Sundfeld: “E a sociedade, a cada dia, torna-se mais e mais complexa. Não só porque as pessoas se juntaram todas no mesmo espaço urbano, mas porque ela é sempre mais e mais exigente. As pessoas não se satisfazem só com a diminuição da poluição; elas querem ser protegidas também enquanto consumidoras (assunto que era irrelevante no passado), querem um controle sobre o o poder econômico para evitar a concentração empresarial (preocupação desconhecida antigamente), querem a democratização do acesso aos serviços que as coloquem em conexão com o mundo, como os de telecomunições (coisa que sequer se punha no século passado). Para harmonizar esses valores, é preciso um gerenciamento constante. E esse gerenciamento se faz pela contínua edição e substituição de normas e, a seguir, por sua aplicação concreta por um órgão administrativo, o qual deve, também, realizar atos de controle prévio.[...]Mas as pessoas querem mais: que os conflitos individuais nascidos da aplicação de todos estes planos sejam tratados or entidades imparciais – o que sempre se exigiu dos juízes, a imparcialidade. Mas isso não lhes basta. Os conflitos entre uma indústria poluidora, uma outra indústria que usa a água poluída lançada no rio e os vizinhos que também a consomem, quer-se que eles sejam julgados por quem entenda do assunto. Não alguém que entenda de Direito apenas (isto é, das técnicas de produção e hermenêutica normativa), mas que entenda do problema específico: quem saiba das dificuldades para compor harmonicamente o conflito, consiga dar a solução mais harmoniosa por equidade, baseando-se em critérios técnicos, etc.” (SUNDFELD, 2000b, p. 30.). 215 A ideia de falhas de mercado é problematizada, por exemplo, pela chamada Teoria Econômica da Regulação, que afirma que ditas falhas seriam na verdade o resultado da ação de uma grupos com capacidade de organização política e mobilização capazes de influenciar a agenda político-regulatória dos entes estatais. Cf. STIGLITZ, 2010. 216 Sobre o pensamento econômico neoclássico, ver item 2.2 abaixo.
136
assim, “otimizar” o benefício social decorrente de sua
atuação.217
A corrente do Estado Regulador é, desse modo,
legitimada discursivamente pela ideia de regulação para o
mercado. Em resultado, a dicotomia público-privado adquire,
nessa narrativa, uma particularidade ausente nas narrativas
anteriores típicas do Direito Administrativo e do Direito
Econômico majoritários, e que se traduz na já mencionada ideia
de subsidiariedade. Essa particularidade é a de os regimes
jurídicos de direito público e de direito privado não se
apresentarem mais como fatores de delimitação da atuação do
Estado na economia. Por um lado, a corrente do Estado
Regulador afirma que mesmo as atividades ditas públicas devem
se pautar em um regime jurídico tanto possível próximo ao do
livre mercado. Por outro lado, afirma a possibilidade de
intervenção estatal nas atividades ditas privadas, mas desde
que se trate de intervenção indireta (sem a participação
estatal na produção ou comercialização de bens e serviços)
destinada a corrigir falhas de mercado, onde e quando
necessário.
Apesar de, ao contrário de outras correntes aqui
analisadas, a do Estado Regulador não fixar regimes jurídicos
217 O tema é assim tratado por Marques Neto: “...a capacidade técnica do regulador é também um requisito para a própria legitimação da regulação. Quanto mais a agência (e seus agentes) dominar os códigos, necessidades e possibilidades do setor regulado, mais será eficiente a regulação. Isso porque quanto mais capacitada tecnicamente for a agência, menor será a assimetria de informação em relação ao regulado. /§/ Em sendo assim, menor a capacidade de o regulado se utilizar em seu favor do fato de conhecer mais o setor regulado do que o agente estatal (por reunir os dados relativos à sua operação, além de ter grande facilidade de obter informações sobre o setor em que atua). Além disso, a expertise técnica e a especialidade permitem que as medidas tomadas pelo regulador tendam a já levar em conta as especificidades do setor regulado, facilitando sua eficácia.” (MARQUES NETO, 2005, p. 62).
137
típicos para os âmbitos público e privado, a ideia de
subsidiariedade, central a essa corrente, parte da oposição
entre o âmbito do Estado e o de uma ordem econômica espontânea
– o mercado. O que diferencia o Estado Regulador das outras
correntes é a primazia concedida à dita ordem econômica
espontânea. Essa primazia será ainda mais acentuada na
corrente que analisaremos a seguir: a Análise Econômica do
Direito.
1.4.4. Análise Econômica do Direito
Outra narrativa do Pensamento Jurídico Contemporâneo
que lida com as relações entre direito e economia é a Análise
Econômica do Direito - compreendida aqui como a tentativa de
releitura do Direito a partir dos pressupostos metodológicos
da Economia neoclássica, consoante as ideias defendidas por
Richard Posner218 e pela Escola de Chicago219-220, influenciadas
por uma leitura particular das ideias de Ronald Coase221. Tal
qual a narrativa do Estado Regulador, a Análise Econômica do
Direito, no Brasil, é uma contestação aos tratados clássicos
218Cf. POSNER, 1975 e 1998. 219 Sobre a importância do trabalho de Calabresi para a AED, vide: BERGH, 2008; POSNER, 1975, pp. 759-760. Sobre a Escola de Chicago, ver: MERCURO e MEDEMA, 2006, pp. 94-155. 220 Nossa definição, por conseguinte, exclui narrativas alternativas às influenciadas por Posner e da Escola de Chicago, que buscam analisar problemas jurídicos segundo premissas de escolas econômicas outras que a Economia neoclássica. A exclusão se deu por entendermos que: a) essas outras narrativas em geral optam por denominar-se “Direito e Economia” (ou Law and Economics); b) essas outras narrativas não se vinculam à distinção público-privado tal como estabelecida pela visão paradigmática descrita no item 1.1 desta tese. 221 Embora por vezes citado como um dos fundadores da Análise Econômica do Direito, Coase reiteradamente rejeitou a leitura feita por Posner do chamado Teorema de Coase – que, segundo Coase, não foi uma criação sua, mas uma homenagem que lhe prestou o economista George Stigler (Cf. COASE, 1988, posição 241). Retomaremos as ideias de Coase no Capítulo 2 desta tese.
138
de Direito Econômico (e àqueles nesses inspirados)222 e, por
isso, se contrapõe ao Direito Econômico e ao Direito
Administrativo no que concerne aos critérios e fundamentação
da atuação do Estado na economia.
Embora conhecida nos EUA desde a década de 60,
apenas recentemente no Brasil a Análise Econômica do Direito
ganhou maior repercussão. Em comum à narrativa do Estado
Regulador, a Análise Econômica do Direito vincula a
legitimidade da intervenção estatal na economia à busca por
condições equivalentes às de um mercado em condições de
concorrência perfeita223, na forma como caracterizada pela
Economia neoclássica.224 Diferentemente da narrativa de Estado
Regulador, a da Análise Econômica do Direito se aprofunda na
aplicação de conceitos da economia neoclássica à avaliação de
resultados da aplicação de regimes jurídicos a atividades
econômicas.
A Análise Econômica do Direito parte da premissa de
que a livre iniciativa, o respeito à propriedade e o
cumprimento de contratos são elementos essenciais do regime
jurídico típico de livre mercado, e que esse regime jurídico
seria o mais apropriado para promover a eficiência
econômica.225 Esse regime jurídico típico de livre mercado
222 Em CASTRO, 2005, considera-se a Análise Econômica do Direito a origem de um Segundo Direito Econômico, em oposição ao Primeiro Direito Econômico formulado pelos tratadistas clássicos. 223 Cf. SALOMÃO, 2007a, pp. 22-24. 224 Ver item 2.2 abaixo. 225 Afirma Posner: “The rules assigning property rights and determining liability, the procedures for resolving legal disputes, the constraints imposed on law enforcers, methods of computing damages and determining the availability of injunctive relief – these and other important elements of the legal system can best be understood as attempts, though rarely ackowledged as such, to promote an efficient allocation of resources.” (POSNER, 1975, p. 764.)
139
diria respeito ao tratamento da propriedade, dos contratos e
da responsabilização por atos ilícitos – que, por sua vez,
teriam sido elaborados segundo um longo processo de tentativa
e erro típico da common law anglo-saxã.226 Qualquer alteração
naqueles elementos, para a Análise Econômica do Direito, é
considerada intervenção no funcionamento da economia e deve
ser justificada frente à perda de eficiência alocativa227
resultante dessa intervenção. A premissa adotada é a de que o
mercado em condições de concorrência perfeita seria o meio
mais eficiente de alocar recursos em uma sociedade. Ao alocar
recursos de modo eficiente, dita sociedade estaria ampliando
seu bem estar. Ao se afastar da concorrência perfeita, a
sociedade estaria desperdiçando recursos e reduzindo seu bem
estar.
Sob essas premissas, quando voltada a analisar a
política econômica228, a Análise Econômica do Direito avalia o
226 Nesse sentido: “O livro Economic Analysis of Law se desenha, então, em torno do que Posner identifica como sendo as três forças motrizes da Common Law. Primeiro, o direito da propriedade, que se ocuparia de criar e definir os “direitos de exclusividade” sobre recursos escassos. Segundo, o direito contratual/obrigacional, que se ocuparia de facilitar os intercâmbios voluntários desses “direitos de exclusividade”. Da ótica econômica, a transferência de tais direitos para os indivíduos com maior disposição de pagar permitiria a geração de valor. Terceiro, o direito da responsabilização civil, tomado em sentido amplo. Este, da ótica econômica, se ocuparia de proteger os “direitos de exclusividade”, inclusive o direito de exclusividade sobre o próprio corpo. Tomados em conjunto, essas três forças motrizes forneceriam o aparato institucional que permitiria corrigir externalidades e reduzir custos de transação.” (SALAMA, 2010, pp. 6-7.) 227 Corrobora nosso entendimento a seguinte exposição de Calixto Salomão: “A eficiência alocativa relaciona-se com a distribuição dos recursos na sociedade. Não se deve confundir a questão com o problema da distribuição de renda e de riqueza [...]. Para os neoclássicos, verificar se existe eficiência alocativa é simplesmente determinar se os recursos estão empregados naquelas atividades que os consumidores mais apreciam ou necessitam.” (SALOMÃO, 2007a, pp. 198-199). Ver ainda: MANKIW, 2009, pp. 143-151. 228 A Análise Econômica do Direito se vale da metodologia da Economia hegemônica (ver nota 224 supra) para analisar não apenas a influência do direito na economia, mas também para analisar regras jurídicas de modo
140
impacto de regras jurídicas (leis, regulamentos, decisões
administrativas e judiciais) sobre a economia mediante o
confronto de opções alternativas, de modo que podemos
considerá-la um exemplo de policy analysis típico do
Pensamento Jurídico Contemporâneo. Porém, enquanto as
narrativas do Estado Regulador enfatizam “quem” (a agência
reguladora autônoma) deve fazer a policy analysis, a Análise
Econômica do Direito enfatiza “como” ela deve ser realizada.
Para tanto, utiliza os conceitos da Economia
neoclássica como parâmetro analítico para avaliar as
consequências da ação do direito na Economia. A Análise
Econômica do Direito, em decorrência, se ocupa das
consequências da adoção de determinado regime jurídico. Nesse
mister, pouca relevância é dada à questão de se as intenções,
valores ou normas de direito positivo eventualmente exigiriam
que determinado regime jurídico fosse adotado. Por exemplo, um
estudo de Análise Econômica do Direito se preocuparia em
avaliar as consequências que a adoção do regime jurídico
público teria em termos das decisões econômicas envolvidas e
dos resultados alcançados, e não se a adoção desse regime
público é a consequência necessária da natureza de uma
determinada atividade, ou mesmo se é uma determinação presente
no direito positivo.
Ao aplicar os métodos de análise da Economia
neoclássica, a Análise Econômica do Direito incorpora a
premissa de que o direito, assim como a economia, se
caracterizaria pela escassez de recursos para alcançar os fins
geral, buscando nos critérios de racionalidade e eficiência da Economia neoclássica parâmetros para uma teoria geral do Direito (cf. SALOMÃO, 2007a, p. 30).
141
almejados.229 Em decorrência, ao se optar pela alocação de
recursos em uma determinada finalidade, isso ocorreria em
detrimento de outras. Como explica Salama:
A escassez é o ponto de partida da análise econômica. Se
os recursos fossem infinitos, não haveria o problema de
se ter que equacionar sua alocação; todos poderiam ter
tudo o que quisessem, e nas quantidades que quisessem.230
Partindo dessa premissa, a Análise Econômica do
Direito propõe um paralelismo metodológico entre Direito e
Economia: assim como um problema econômico poderia ser
caracterizado a partir da escolha entre comprar (ou produzir)
maçãs ou laranjas, um problema jurídico poderia ser
caracterizado a partir da escolha entre alocar recursos para a
compra de um medicamento (e assim priorizar o direito à saúde)
ou para pagar livros escolares (e assim priorizar o direito à
educação). Em decorrência da escassez de recursos para
alcançar todos os fins almejados pela humanidade, a Análise
Econônica do Direito propôe que, assim como nas questões
tradicionalmente reputadas como econômicas, nas questões
jurídicas se leve em conta o custo de oportunidade.231 Isso
significa, em verdade, considerar questões jurídicas como
229 Sobre a premissa da escassez na Economia: “Lionel Robbins (1932) argued the economics was not about “material welfare: the provision of goods to further prosperity and development”, but rather, it was about “scarcity: the provision of goods to fulfill all wants”, whether conducive to welfare or not. His arguments came to dominate the field, and drove earlier conceptions out of sight […]. Nearly all modern conventional textbooks use scarcity as the fundamental defining problem of economics.” (ZAMAN, 2012, p. 22). 230 SALAMA, 2008, p. 16. 231 A ideia de custo de oportunidade é de ampla utilização na Economia, tal como definida por Gregory Mankiw: “O custo de oportunidade de um item é aquilo de que você abre mão para obtê-lo.” (MANKIW, 2009, p. 6.). Sobre o custo de oportunidade como um dos fundamentos da AED, ver: SALAMA, 2008, p. 16.
142
questões econômicas – isto é, como questões de alocação de
recursos escassos.
A título de ilustração, o direito de A obter do
Estado tratamento para uma forma rara de câncer teria como
custo o direito de B, C, D e E obterem tratamento para formas
mais comuns de câncer. Em resultado, o problema “tem A direito
ao tratamento de sua forma rara de câncer?” seria não
propriamente um problema jurídico, mas um problema econômico –
como dito, um problema de alocação de recursos escassos.
Generalizando o raciocínio, para a Análise Econômica do
Direito todo direito teria um custo: os recursos que foram
alocados para satisfazer aquele direito em detrimento da
satisfação de outros direitos.232
Por isso, para a Análise Econômica do Direito, o
modelo teórico utilizado pela Economia neoclássica para
explicar o funcionamento dos mercados (especificamente a
Teoria dos Preços e a ideia subjacente do indivíduo como
maximizador racional) poderia e deveria ser utilizado para
explicar o direito, principalmente do ponto de vista da
eficácia dos recursos alocados frente aos resultados obtidos.
Esse modelo serviria para fundamentar o raciocínio de
advogados, juízes e juristas de um modo geral, no tratamento
das questões tradicionalmente consideradas como jurídicas,
inclusive no que concerne à definição de Justiça.
232 Nesse sentido: “A escassez força os indivíduos a realizarem escolhas e a incorrerem em trade-offs. Os trade-offs são, na verdade, “sacrifícios”: para se ter qualquer coisa é preciso abrir mão de alguma outra coisa – nem que seja somente o tempo. [...] A noção de escassez traz uma série de implicações para o estudioso, o profissional, e o pesquisador em Direito. Uma delas – talvez a mais dramática – diz respeito ao fato de que a proteção de direitos consome recursos. Ou seja, ou os direitos são custosos, ou não têm sentido prático.” (SALAMA, 2008, p. 16.)
143
A principal consequência da adoção das premissas da
Economia neoclássica é mensurar o direito pela régua da
eficiência na alocação de recursos escassos. E, para tanto, a
Análise Econômica do Direito adota a noção da Economia
neoclássica de que a alocação de recursos escassos seria tanto
mais eficiente, quanto maior a satisfação das preferências
individuais.233 Parte-se do pressuposto de que o preço que
alguém está disposto a pagar refletiria a utilidade que essa
pessoa teria conferido a determinado bem – dado que o preço
mede também o custo de oportunidade que essa pessoa está
diposta a incorrer.234 Este é o pressuposto ideológico do
individualismo liberal, traduzido na ideia da escolha racional
dos indivíduos como instrumento de maximização de bem estar.
Segundo essa premissa, ao ser confrontado com diversas opções,
o indivíduo sempre escolheria aquela que traria para ele a
maior utilidade possível.235
Em decorrência, por ser tradução das escolhas
individuais, o mercado seria maximizador de utilidade, pois,
no conjunto, todos os indivíduos do mercado escolheriam as
melhores opções para si. A preferência individual a ser
maximizada, portanto, seria aquela revelada pelo sistema de
233 O seguinte trecho ilustra essa posição da Análise Econômica do Direito: “In the study of law, the ideal is the improvement of the legal system. Legal philosophies, however, disagree on what constitutes an improvement of the legal system. Economic analysis of law takes the position that the proper ideal of the legal system is the promotion of social welfare, that is, the maximization of the satisfaction of individuals’ preferences.” (GEORGAKOPOULOS, 2005, p. 21 – tradução livre.) 234 Para uma explicação da teoria do consumidor da Economia neoclássica e do preço como expressão da utilidade (ou valor) atribuído pelos indivíduos, ver: MANKIW, 2009, pp. 441-466. 235 Nesse sentido: “A premissa comportamental implícita na Teoria dos Preços é a de que os indivíduos farão escolhas que atendam seus interesses pessoais, sejam eles quais forem. Daí dizer-se que indivíduos racionalmente maximizam seu bem-estar. Note que a ideia é a de que todas as pessoas são maximizadoras racionais de bem-estar, e também de que a maximização se dá em todas as suas atividades.” (SALAMA, 2008, p. 16.)
144
preços. Com base nessa formulação, se assume como axioma a
ideia de que a melhor alocação de recursos é exatamente
destiná-los a quem está disposto a pagar mais, pois assim os
recursos seriam entregues a quem lhes desse maior utilidade.
Há nessa ideia um pretenso conteúdo emancipador: não
importaria se uma pessoa fosse mais rica do que outra, se
seria de determinada etnia, se seria de determinado gênero.
Quem pagasse mais, ficaria com o bem (material ou imaterial)
em questão. Nesse sentido, ao enfatizar a escolha individual,
a Análise Econômica do Direito adota também uma justificativa
moral dita pragmática, como afirma um dos autores dessa
corrente:
O fundamento da análise econômica do direito é factual,
a satisfação de interesses, ao invés de moral.
Indivíduos têm preferências. Este é um fato a partir do
qual podemos determinar o quê aumenta o bem estar de um
indivíduo, que é satisfazer aquelas preferências.
Naturalmente, o sistema jurídico deveria tentar prover
mais satisfação de preferências do que menos. Assim, a
teoria da justiça da análise econômica do direito flui
do fato, sem interjeição de moralização. Filósofos
morais, é claro, objetariam afirmando que indivíduos
deveriam obter auto-realização ou satisfação moral. Para
o estudioso de “direito e economia” [law and economics],
essas objeções são preferências – seja preferências de
indivíduos, seja preferências dos filósofos morais. Como
preferências, elas fariam parte de qualquer abordagem de
bem-estar, mas seu espírito e importância seriam
dramaticamente menores do que se eles fossem tidos como
ideais universais.236
236 “The foundation of economic analysis of law is factual, the satisfaction of preferences, rather than moral. Individuals have preferences. This is a fact from which we can determine what increases individual’s welfare, which
145
Em resultado, a Análise Econômica do Direito também
defende, de modo geral, uma abordagem não-intervencionista que
guarda similitude com a ideia de subsidiariedade pregada pela
corrente do Estado Regulador.237 Todavia, a legitimação
discursiva da Análise Econômica do Direito não recorre ao
neoformalismo, como faz o Estado Regulador, mas a uma leitura
moral da assumida maximização das preferências individuais
pelas escolhas em um mercado.238 A preocupação da Análise
Econômica do Direito é com as consequências das regras
jurídicas tendo em vista sua repercussão na maximização do
bem-estar social – segundo a noção de bem-estar da Economia
neoclássica. Em outras palavras, importa para a Análise
Econômica do Direito verificar qual dentre as opções possíveis
para o direito deve ser escolhida para que se alcance o maior
bem-estar.
Na Análise Econômica do Direito, a intervenção
estatal é vista a priori como prejudicial. A ideia de “falhas
de governo” tem lugar de destaque, e se traduz na noção de que
intervenções regulatórias para corrigir falhas de mercado
produzem resultados piores do que as próprias falhas que
is to satisfy those preferences. Naturally, the legal system should attempt to provide more satisfaction of preferences rather than less. Thus, the theory of justice of economic analysis of law flows from fact with no interjection of moralizing. The moral philosophers, of course, would object by stating that individuals should obtain self-actualization or moral fulfillment. To the law-and-economics scholar, those objections are preferences – either preferences of individuals or preferences of the moral philosophers. As preferences, they would be part of any welfarist approach, but their wight and importance would be dramatically smaller than if they were believed to be universal ideals.” (GEORGAKOPOULOS, 2005, p. 33 – tradução livre.) 237 O seguinte trecho, de autor vinculado à Análise Econômica do Direito, ilustra essa semelhança de abordagem: “That the law seeks to maximize social welfare means that the law is the servant of society. That economic analysis subscribes to this view shows that it takes non-interventionist view of the law.” (GEORGAKOPOULOS, 2005, p. 23.) 238 Para uma análise crítica da atribuição de valor moral ao resultado de escolhas para atendimento de preferências individuais, ver DWORKIN, 1980.
146
buscaram corrigir. Adicionalmente, para fins de avaliar qual
opção maximiza preferências individuais – e, em decorrência, o
bem-estar social - atividades públicas e privadas são
igualadas. A ideia de que atividades devem ser retiradas da
iniciativa privada e cominadas ao Estado não é nem defendida,
como o faz o Direito Administrativo tradicional, nem
rejeitada, como o faz a narrativa do Estado Regulador com
argumentos neoformalistas. Ao contrário, a opção de retirada
de uma atividade da economia é simplesmente desconsiderada nos
termos em que avaliadas por aquelas duas outras narrativas. Na
narrativa do Estado Regulador ainda remanesce a influência do
Direito Administrativo no que concerne à equivalência entre
Estado e atividades públicas, e entre economia e atividades
privadas. Na Análise Econômica do Direito, a distinção entre
Estado e economia continua a se fazer presente, porém não mais
sustentada na divisão entre um campo de atividades públicas e
outro campo de atividades privadas. Não se trata de defender
que o Estado é pautado pelo princípio da subsidiariedade para
diminuir o seu espaço de atuação. A assunção pelo Estado de
uma atividade, em geral, é vista exclusivamente sob o ponto de
vista da racionalidade e da eficiência de sua atuação. Toda a
atividade econômica poderia (em tese), para a Análise
Econômica do Direito, ser pública ou ser privada – desde a
administração da Justiça à execução de serviços de
infraestrutura, passando por atividades de saúde, educação e
até mesmo de gestão de cidades. A questão, para essa
abordagem, é avaliar as consequências da atuação do Estado em
determinada atividade. E as premissas adotadas, em geral,
colocam o Estado como uma opção pouco eficiente, quando não
completamente indesejável, para a assunção de quaisquer
atividades, dado que o Estado não teria a capacidade do
mercado de maximizar os interesses individuais e, em
decorrência, aumentar o bem-estar social.
147
1.5. As contribuições dos três modos de pensamento na formação e consolidação da visão paradigmática sobre direito e economia
Como visto, as relações entre direito e economia
tiveram tratamento variável no curso do último século.
Diferentes modos de pensamento jurídico estruturaram
narrativas diversas, que ora conferiam ao direito o papel de
defesa das relações econômicas frente à ingerência estatal,
ora atribuíam ao direito papel oposto - de justificar a ação
estatal na economia. A Tabela 1 abaixo, com base nas
discussões de Kennedy e outros autores acima referidos, busca
sintetizar as diferentes visões até agora abordadas sobre as
relações entre direito e economia.
Tabela 1 - Modos de pensamento jurídico e sua contribuição para a visão paradigmática sobre direito e economia
Pensamento Jurídico
Clássico (1850-1914)
Pensamento Jurídico Social (1900-1968)
Pensamento Jurídico Contemporâneo (1945-2000)
Característica central
Teoria da vontade: vontades absolutas dentro de suas respectivas esferas
Interdependência: necessidades sociais requerem soluções sociais (e não individuais)
Neoformalismo: direito positivo é um sistema coerentemente formulado e que permite uso da dedução para resolução de problemas específicos policy analysis: regras jurídicas são produzidas por acomodações específicas que harmonizam opções políticas conflitantes
Influência na visão paradigmática sobre direito e economia
• Divisão rigorosa entre público e privado.
• Visão do privado como espaço de exercício da vontade individual e das relações espontâneas do livre mercado.
• Identificação de um regime jurídico privado típico.
• Identificação do regime (de direito) público com interesses sociais.
• Visão de que o Estado atua (legitimamente) no atendimento a interesses sociais, que correspondem a necessidades sociais.
• Desvinculação entre âmbitos público e privado e regimes jurídicos típicos.
Fonte: elaboração do autor.
148
Apesar de termos exposto os modos de pensamento em
uma cronologia – tal como articulado por Duncan Kennedy -, a
influência dessas diferentes consciências jurídicas não se
restringe ao período em que foram dominantes. Como afirma
Unger: nenhum estilo de discurso, não importa quão poderosa
sua influência, ocupa a totalidade de uma cultura jurídica ou
penetra toda uma mente jurídica.239 Em decorrência, mesmo que
seja possível, como faz Kennedy, circunscrever consciências
jurídicas a períodos de nossa história, isso não implica
afirmar que no período em que um modo de pensamento jurídico
prevaleceu, narrativas ou ideias do modo de pensamento
anterior não continuassem influentes. Em outras palavras,
entendemos que ideias e narrativas do Pensamento Jurídico
Clássico e do Pensamento Jurídico Social continuam, em muitas
áreas, relevantes e influentes nos dias de hoje, não obstante
o advento do Pensamento Jurídico Contemporâneo – ou mesmo
inobstante o surgimento de doutrinas críticas a esse modo de
pensar.240 Além disso, é também importante lembrar que o
próprio Pensamento Jurídico Contemporâneo se caracteriza por
combinar elementos do Pensamento Jurídico Clássico e do
Pensamento Jurídico Social. Logo, esses dois modos de pensar
permanecem influentes na contemporaneidade.
Essa constatação é importante ao se considerar a
genealogia do que na introdução desta tese identificamos como
visão paradigmática sobre direito e economia. Como expusemos,
a visão paradigmática caracteriza a ação estatal como uma
alternativa à ação de mercados espontâneos, e organiza os
239 “No style of discourse, however powerful its influence, occupies the whole of a legal culture or penetrates all of a legal mind.” (UNGER, 1996, p.41 – tradução livre.) 240 No Capítulo 2, trataremos de uma dessas críticas, feita por Roberto Mangabeira Unger.
149
intrumentos jurídicos da política econômica segundo a
possibilidade, a forma e o grau de intervenção do Estado no
funcionamento do mercado. Ainda segundo a visão paradigmática,
o uso de instrumentos jurídicos pela política econômica
implicaria uma suspensão do que seria a ordem natural das
relações econômicas em um regime de livre mercado. Mesmo
quando justificada pela necessidade de se garantir o livre
mercado – como na narrativa do Estado Regulador -, a atuação
estatal e o uso de instrumentos jurídicos são reputados uma
força externa, uma intervenção portanto, naquilo que as
relações econômicas teriam produzido por si só.
Contudo, após percorrer as principais narrativas
brasileiras sob as três consciências jurídicas globalizadas
identificadas por Duncan Kennedy - é possível compreender o
quão contingente é a visão paradigmática. Em cada modo de
pensamento analisado, diferentes compreensões do papel do
direito na economia justificaram abordagens diversas, em que
ora o papel do direito seria o de proteger a ordem econômica
contra o Estado, ora seria o contrário – instrumentalizar a
intervenção estatal na economia.
No Pensamento Jurídico Clássico, construiu-se a
noção de que existe um âmbito privado típico das relações de
mercado. Esse âmbito privado seria, segundo a teoria da
vontade, o espaço singular de manifestação da vontade privada.
A ele se contrapõe o espaço da manifestação da vontade
coletiva, o âmbito público. O espaço privado seria delimitado
e protegido frente à intervenção da vontade pública, pois
naquele a vontade privada seria absoluta. Por meio da
racionalidade jurídica, o privado se construiria na forma de
um sistema organizado a partir de categorias abstratas e
gerais. Dessas categorias gerais e abstratas, seria possível
deduzir o que legitimamente pertenceria ao âmbito privado e,
150
por conseguinte, estaria sujeito unicamente à vontade privada,
individual. Em razão disso, o Pensamento Jurídico Clássico
identifica um regime jurídico típico para as relações
privadas. Na medida em que as relações de mercado
correspondessem a esse espaço privado – o que no Brasil
ocorreu sob o que chamamos de liberalismo de conveniência241 -,
o regime privado seria o regime do mercado.
Essas ideias do Pensamento Jurídico Clássico, em
diferentes graus e sob diversas roupagens, influenciaram de
forma decisiva as narrativas que se estruturaram em modos de
pensamento posteriores. Não obstante a variedade de ideias e
construções teóricas posteriores, é possível identificar duas
ideias centrais sobre a economia que são pressupostas pelo
Pensamento Jurídico Clássico e que, até hoje, são
compartilhadas pelas narrativas teóricas sobre direito e
economia. São elas: i) mercados surgem espontaneamente das
relações privadas; ii) as relações privadas se caracterizam
pela escolha racional individual para atender a interesses
também individuais.
Embora remontem ao Pensamento Jurídico Clássico,
essas duas pressuposições estão presentes nas correntes do
Pensamento Jurídico Social e, especialmente, do Pensamento
Jurídico Contemporâneo analisadas neste capítulo. As ideias de
que mercados são espontâneos, e a de que relações privadas são
produto de escolhas racionais individuais, com efeito, nunca
são completamente abandonadas pelas diversas narrativas sobre
direito e economia que analisamos. Portanto, as duas
pressuposições do Pensamento Jurídico Clássico – mercados são
241 Ver supra, p. 52.
151
produtos espontâneos da vontade privada, e relações privadas
se caracterizam pela escolha racional para atender a
interesses individuais – remanescem no paradigma atual sobre
direito e economia. Esse paradigma pressupõe que o direito
traçaria os limites da economia – dizendo o que é ou não
econômico. Nos limites da moldura fixada pelo direito, a
economia se desenvolveria de forma autônoma. Em decorrência,
sob esse paradigma, todas as narrativas analisadas ou buscam a
utilização da moldura fixada pelo direito para modificar a
influência da economia, ou buscam modificar o próprio direito
para que a economia se desenvolva melhor. O direito, e
especialmente os instrumentos jurídicos da política econômica,
são vistos ou como meio de excepcionar a ordem econômica, ou
como algo que deve se adequar à economia sob pena de
obstaculizar o seu bom funcionamento. Todas as visões
analisadas identificam, de diferentes maneiras, uma lógica do
econômico, e uma lógica do jurídico-político, em que ambas não
se confundem. As narrativas analisadas se digladiam na defesa
de espaços de hegemonia do jurídico-político frente ao
econômico, ora favorendo o primeiro, ora favorecendo o último.
Porém, como adverte Duncan Kennedy, essa concepção é
enganosa (misleading), pois as instituições jurídicas têm uma
relação de interdependência com a atividade econômica.242 Como
veremos no Capítulo 2, o funcionamento diuturno da economia se
dá com base em instituições que são construídas e articuladas,
em maior ou menor grau, pela atividade jurídica. A questão,
242 Diz Kennedy: “But framework and context are misleading terms for describing the relationship between legal and economic activities. This is because economic activity can’t be understood as something autonomous in relation to a set of passive institutional and legal conceptual constraints, as the terms framework and context suggest. Legal institutions have a dynamic, or dialectical, or constitutive relationship to economic activity.” (KENNEDY, 2006, p. 19)
152
portanto, não é apenas se deve a moldura (direito) ser
adequada ao quadro (economia), ou se é o quadro (economia) que
deve ser adequado à moldura (direito). O direito não suspende
a economia, nem a constrange. O direito integra a economia. Ao
ignorar a interrelação entre direito e economia, as teorias
jurídicas até aqui apresentadas, em primeiro lugar, falham em
sua pretensão de descrever adequadamente a realidade e, em
segundo lugar, acabam por prescrever soluções normativas
vinculadas a uma específica visão de política econômica: a
visão que corresponde às pressuposições acima identificadas.
Ao fazê-lo, defenderemos a seguir, obstam a construção de
soluções republicanas e democráticas que configurem novas
alternativas de política econômica.
153
Capítulo 2 - A construção jurídica da economia: releituras do papel do direito
No capítulo 1, vimos que a ideia de que a atuação do
Estado é externa a um mercado caracterizado como ordem
espontânea é assumida como axioma pela visão paradigmática
sobre direito e economia. A partir desse axioma, os
instrumentos jurídicos da política econômica são compreendidos
como elementos externos ao campo das relações econômicas. Essa
ideia central, porém, não é auto-evidente e, ao assumi-la como
axioma, não se analisam os seus pressupostos. Propomos que
essa ideia se relaciona a duas pressuposições sobre a
economia: i) mercados surgem espontaneamente a partir das
relações privadas; ii) relações privadas se caracterizam pela
escolha racional individual para atender a interesses também
individuais. Essas duas pressuposições estruturam a ideia do
âmbito privado na economia, que, do ponto de vista jurídico,
desde o Pensamento Jurídico Clássico é utilizada para
delimitar o papel do direito na economia.
A visão paradigmática assume ainda os contornos do
que Roberto Mangabeira Unger chama de profecia
autorrealizada243 e que se revela um círculo vicioso: as ideias
que adota como pressupostos constrangem as instituições, e as
243 Nos referimos ao seguinte trecho do autor: “Every social world must be normalized to become stable; its arrangements, even if originating in violence and accident, must be seen to embody a set of possible and desirable images of human association – pictures of what relations among people can and should be like in different domains of social life. Against the background of the two-way relation between understanding and transforming, the imperative to normalize and to moralize turns all of our most powerful social ideas into self-fulfilling prophecies. In acting in such ideas, people reshape the social world in the image of these ideas.” (UNGER, 2007a, p. 34.)
154
instituições constranjem as ideias. Em outras palavras, porque
assume que o direito é externo à economia, as instituições
jurídicas são construídas de acordo e, assim, apenas atuam
como se fossem externas à economia. E porque as instituições
jurídicas atuam como se fossem externas à economia, a
existência e atuação dessas acaba servindo de suporte para a
ideia de que o direito é externo à economia. Por sua vez, como
ressaltamos, esta ideia é estruturada em duas outras –
mercados são espontâneos, e os agentes econômicos agem
racional e hedonisticamente. As instituições jurídicas atuais,
por isso, também reforçam a visão de mundo segundo a qual
mercados são espontâneos e resultam da busca racional de
interesses individuais.
Para quebrar o cículo vicioso de profecias
autorrealizáveis, é necessário problematizar as pressuposições
do atual paradigma. A busca por novas instituições necessita
de um novo paradigma, e um novo paradigma exige que se
contemplem as alternativas institucionais deixadas de lado.
Essas alternativas institucionais, por sua vez, serão tanto
mais evidentes, quanto ficarem evidentes as limitações da
visão de mundo que caracteriza o atual paradigma.
O papel do direito na formação de novas
instituições, e a decorrente crítica aos modos de pensamento
descritos por Duncan Kennedy – em especial ao Pensamento
Jurídico Contemporâneo – é portanto relevante para que se
abram as portas a um novo paradigma sobre direito e economia.
Ao lado das ideias centrais de uma visão de mundo
compartilhada, o modo de pensamento jurídico condiciona e
limita os instrumentos jurídicos da política econômica. Quando
se afirma a inadequação dos instrumentos paradigmáticos para
realizar os ideais e valores democráticos do mundo atual –
como faremos neste capítulo -, superar os constrangimentos às
155
atuais formas institucionais é passo necessário para a busca
por soluções alternativas. A procura por uma sociedade mais
justa é também a procura por instituições jurídicas mais
adequadas. Limitar essa busca às instituições atuais é
frustrar a promessa que traz a democracia de libertação da
condição humana frente ao determinismo social e material.244 É
por isso frustrar também o papel do direito na realização
dessa promessa.
Sendo assim, como antecedente à análise das duas
ideias pressupostas pela visão paradigmática, iremos começar
este capítulo com a crítica ao próprio Pensamento Jurídico
Contemporâneo. Para tanto, nos valeremos das ideias de Roberto
Mangabeira Unger – que, tal como Duncan Kennedy, é um autor
ligado ao Critical Legal Studies Movement (embora Mangabeira
busque se distinguir desse movimento245).
244 Compartilhamos da visão de Roberto Mangabeira Unger: “...the democratic project has been the effort to make a practical and moral success of society by reconciling the pursuit of two families of goods: the good of material progress, liberating us from drudgery and incapacity an giving arms and wings to our desires, and the good of individual emancipation, freeing us from the grinding schemes of social division and hierarchy.”(UNGER, 1996, p. 6). 245 Mangabeira Unger assim se expressou sobre o Critical Legal Studies Movement, em comentário a sua obra de mesmo título: “Published in 1983, "The Critical Legal Studies Movement" is a revised and expanded version of a talk given in 1982. It is a programmatic intervention in legal thought: a proposal for the direction that the then nascent movement of critical legal studies should take, not a description of what people engaged in this movement thought, said, and wrote. My proposal fell on deaf ears. Critical legal studies preferred, for the most part, to gravitate around familiar themes: the radicalization of the idea of doctrinal indeterminacy, a neo-marxist functionalist approach to the place of law in society, and identity politics. In my own work, the expanded and transformed doctrinalism explored in this little book would later give way to an attempt to turn legal thought into a practice of institutional imagination. The "internal criticism" tried out here prefigured other, less narrowly doctrinal efforts to recover, from the bottom up and from the inside out, the vision of alternative possibilities. The dominant styles of legal analysis had sacrified this vision to the humanization of the inevitable.” (UNGER, 2014).
156
A visão de Kennedy, como visto, tem preocupação mais
de analisar e descrever os modos de pensamento jurídico, do
que propriamente em estabelecer uma crítica sistemática que
resulte em propostas de reconstrução institucional. Mas sem
dúvida, o intento de Kennedy em sua análise é crítico.
Entendemos, por isso, que as ideias de Mangabeira são
complemento adequado para as ideias de Kennedy apresentadas no
capítulo 1.
Após a breve exposição da parte do pensamento de
Mangabeira que entendemos útil para a análise desta tese,
enfrentaremos as duas pressuposições que identificamos: a
ideia de que mercados são espontâneos, e a ideia de que
relações privadas são fundadas em interesses individuais e
produto de escolhas racionais. Essas duas ideias não são, como
dito, objeto de análise das narrativas sobre direito e
economia que avaliamos. Porém, são objeto de tratamento pela
Economia. Especialmente, essas duas pressuposições
correspondem a ideias centrais defendidas pela Economia
Clássica e depois retrabalhadas pela Economia Neoclássica.
Iremos, em decorrência, apresentar ao leitor uma síntese do
tratamento que fazem a Economia Clássica e a Economia
Neoclássica daquelas duas ideias que são pressupostas pela
visão paradigmática. Em seguida, utilizaremos o
neoinstitucionalismo de Ronald Coase como contraponto à ideia
de que mercados são o produto espontâneo das relações
privadas, e utilizaremos autores ligados à Economia
Comportamental como contraposição à ideia de que relações
privadas se caracterizam pela escolha racional individual para
atender a interesses individuais.
Os contrapontos às ideias pressupostas pela visão
paradigmática servirão para explorar as possibilidades de uma
compreensão alternativa das relações entre direito e economia.
157
Sendo assim, a premissa que permeia a investigação a seguir é
a de que um novo paradigma das relações entre direito e
economia se faz necessário para aperfeiçoar o papel
instrumental do direito na realização de uma sociedade mais
justa e mais democrática. Além disso, é necessário compreender
melhor o papel do direito na formação da sociedade e das
relações econômicas. Esse debate será conduzido com base nas
ideias de Marcus Faro de Castro sobre o papel do direito na
economia, e sua proposta de Análise Jurídica da Política
Econômica.
Como liame condutor das ideias que apresentaremos a
seguir, está a hipótese de que, ao contrário do que estabelece
a visão paradigmática, as instituições jurídicas constróem a
economia e, por isso, podem ser utilizadas para modificar as
relações econômicas por dentro. O direito, na visão
alternativa que propomos, é instrumento de imaginação
institucional para a construção democrática de projetos
alternativos de sociedade.246 Essa visão, longe de ser apenas
um recurso meramente retórico, tem as vantagens de fornecer
melhor quadro analítico para descrever a atuação do direito na
economia, e de oferecer um número maior de instrumentos
jurídicos para a realização da política econômica.
246 Nesse sentido, em análise à ideia de democracia proposta por Mangabeira Unger, Carlos Sávio Teixeira afirma que: “A premissa central das inovações institucionais da vida social é a de que uma economia de mercado democratizada precisa de uma estrutura constitucional da política e do Estado que favoreça, ao invés de inibir, a prática permanente da mudança. Isso, por sua vez, requer um arcabouço jurídico institucional da política capaz de sustentar níveis razoáveis de engajamento popular e a imaginação de um direito público capaz de prover a sociedade civil com instrumentos mais apropriados do que o direito privado de contratos para a sua auto-organização.” (TEIXEIRA, 2010, p. 59).
158
2.1. Fetichismo institucional e a oportunidade perdida da imaginação de instituições: a crítica de Mangabeira Unger ao Pensamento Jurídico Contemporâneo
Tal como Duncan Kennedy, Roberto Mangabeira Unger
reconhece a existência de um modo de pensamento típico da
contemporaneidade, a que chama de contemporary legal thought.
Pela semelhança de tratamento e características, utilizaremos
a mesma denominação - Pensamento Jurídico Contemporâneo – para
nos referir à forma como esses dois autores – Kennedy e Unger
– caracterizam a linguagem jurídica contemporânea. Porém,
enquanto Kennedy busca uma genealogia dos modos de pensamento
jurídico, Unger critica o modo como o direito se manifesta em
nossos dias, e busca formular uma proposta alternativa de
análise jurídica. Assim, como dissemos, Mangabeira Unger e
Kennedy têm visões complementares.
Mangabeira Unger define o Pensamento Jurídico
Contemporâneo como uma consciência jurídica que penetrou e
transformou o direito subjetivo, afirmando o caráter empírico
e reversível da autodeterminação individual e coletiva: sua
dependência de condições práticas de fruição, que podem
falhar.247 Em decorrência, sob o Pensamento Jurídico
Contemporâneo, os diversos ramos do direito e da doutrina
jurídica se organizaram em um sistema binário de direitos de
escolha e de arranjos retirados do escopo da escolha para
melhor tornar o exercício da escolha real e efetivo.248 Esse
247 Diz Unger: “...a legal consciousness has penetrated and transforme substantive law, affirming the empirical and defeasible character of individual and collective self-determination: its dependence upon practical conditions of enjoyment, which may fail.” (UNGER, 1996, p. 26.) 248 Nesse sentido: “...a binary system of rights of choice and of arrangements withdrawn from the scope of choice the better to make the exercise of choice real and effective.” (UNGER, 1996, p. 27.)
159
sistema binário afeta tanto escolhas políticas, como escolhas
individuais de caráter econômico. Assim, sob o Pensamento
Jurídico Contemporâneo, há opções que são negadas ao cidadão
(político) e ao indivíduo (econômico). Como explica Unger, a
finalidade é evitar que a democracia se torne uma farsa, em
que, sob a aparência de coordenação, haja em verdade
subjugação.249 Negam-se algumas escolhas, para se garantir a
permanência do próprio direito a escolher, seja no âmbito
público da política, seja no âmbito privado das relações
econômicas.
Como avaliar, então, o que deve ou não ser passível
de escolha? A resposta do Pensamento Jurídico Contemporâneo se
sustenta no neoformalismo identificado por Duncan Kennedy. O
recurso retórico a direitos enunciados formalmente em textos
normativos - especialmente em constituições e tratados
internacionais – é o modo como o Pensamento Jurídico
Contemporâneo resolve aquela questão. Com base na retórica
neoformalista, a doutrina jurídica, e os tribunais, excluem
determinadas opções políticas ou econômicas do espectro
daquilo que pode ser objeto de livre deliberação e escolha por
parte dos cidadãos organizados politicamente (ou,
especialmente, de seus representantes), ou por parte dos
indivíduos no curso de suas relações econômicas.
249 Essa descrição de Unger é ponto de partida para a crítica que se seguirá, cujo alvo mais incisivo são os debates da Teoria Constitucional contemporânea sobre o papel contramajoritário dos direitos constitucionais e sobre o papel da técnica de balanceamento de direitos na jurisdição constitucional. A ideia de direitos fundamentais como respaldo para a posição contramajoritária, como vimos, traduz o que Duncan Kennedy chama de neoformalismo do Pensamento Jurídico Constemporâneo. A técnica de balanceamento de direitos na jurisdição constitucional, por sua vez, corresponde ao policy analysis descrito pelo mesmo autor.
160
Ao recorrer ao neoformalismo como fundamento para
decidir entre o que deve ou não ser passível de escolha, o
Pensamento Jurídico Contemporâneo exclui o recurso a qualquer
posição ideológica. Como afirma Mangabeira Unger, em
decorrência dessa desideologização, o Pensamento Jurídico
Contemporâneo retoma o ambicioso projeto do Pensamento
Jurídico Clássico de uma ciência jurídica capaz de: i) revelar
o conteúdo intrínseco e a forma institucional adequados a uma
sociedade livre; ii) policiar os limites dessa sociedade livre
e protegê-la contra a indevida invasão da política.250 Assim,
em lugar de assumir a existência de visões de mundo parciais e
incompletas, refletidas em diferentes e por vezes conflitantes
posições ideológicas, o Pensamento Jurídico Contemporâneo toma
por base o que Unger chama de tese da convergência:
De acordo com essa ideia [a tese da convergência], a
evolução institucional do mundo moderno é melhor
compreendida como um caminho por tentativa e erro em
direção às únicas instituições políticas e econômicas
que se provaram capazes de reconciliar prosperidade
econômica com um razoável respeito à liberdade política
e à segurança social. Variações nos arranjos
institucionais das sociedades contemporâneas bem
sucedidas são reais, mas secundários: em todo caso, eles
tenderiam a se aproximar na medida em que as implacáveis
lições da experiência deixassem cada vez menos espaço
para a imaginação reconstrutiva.251
250 Diz o autor: “...[contemporary legal thought] resembles, in the generality of its scope and the fecundity of its effects, the bold conception that preceded it in the history of law and legal thought: the project of a legal science that would reveal the in-built legal and institutional content of a free society and police its boundaries against invasion by politics.” (UNGER, 1996, p. 28.) 251 “According to this idea the institutional evolution of the modern world is best understood as an approach, by trial and error, toward the only political and economic institutions that have proved capable of reconciling
161
A tese da convergência, portanto, afirma uma
progressiva evolução institucional da sociedade humana, em que
a história, por tentativa e erro, revelaria o conjunto de
instituições mais adequados a assegurar para a humanidade uma
desejada prosperidade econômica e estabilidade política.
A tese da convergência se desdobra no que Mangabeira
Unger chama de fetichismo institucional: a crença de que
conceitos institucionais abstratos - como a democracia
política, a economia de mercado e sociedade civil livre – têm
uma única, natural e necessária expressão institucional.252
Segundo Unger, o fetichismo institucional é uma superstição
presente de forma difusa em toda a cultura contemporânea, e
erradicá-la seria tarefa para toda uma geração de cientistas
sociais.253 O fetichismo institucional, diz o autor, nos impede
de ver que a democracia representativa, os mercados e a
sociedade civil podem assumir formas muito diferentes das que
prevalecem na sociedade ocidental contemporânea.
O fetichismo institucional também se faz presente no
Pensamento Jurídico Contemporâneo. A premissa adotada por
este, de que a autodeterminação individual e política depende
de condições práticas de fruição que podem falhar, não implica
a consequência que se imputou: a adoção de um conjunto
específico de instituições para limitar e constranger direitos
economic prosperity with a decent regard to polical freedom and social security. Variations in the institutional arrangements of successful contemporary societies are real but secondary: if anything, they tend to become narrower as the relentless lessons of experience leave ever less room for the reconstructive imagination.” (UNGER, 1996, pp. 8-9 – tradução livre.) 252 “...the belief that abstract institutional conceptions, like political democracy, the market econoy, and a free civil society, have a single natural and necessary institutional expression.” (UNGER, 1996, p. 7 – tradução livre.) 253 UNGER, 1996, p. 7.
162
de escolha. Em outras palavras, usando o vocabulário de
Kennedy, o neoformalismo não é a única resposta possível para
evitar que as condições práticas frustrem o projeto de
autodeterminação política e econômica que caracteriza a
sociedade moderna. Ao contrário, por recorrer a um conjunto
específico de instituições, o fetichismo institucional frustra
esse projeto. Em vez de contribuir para a emancipação do ser
humano pelo reforço a sua autodeterminação, o neoformalismo
constrange essa emancipação por vinculá-la a uma única
manifestação institucional admitida como possível. Isso porque
o recurso ao neoformalismo obscurece o fato de que a
efetivação de direitos individuais ou coletivos pode ocorrer
sob diferentes condições efetivas de fruição, e que essas
diferentes condições efetivas de fruição admitem diversas
estratégias possíveis que podem se manifestar em inúmeras
formas institucionais – tanto existentes, como apenas
imaginadas. As condições efetivas de fruição de direitos podem
tanto exigir a manutenção das atuais instituições e o eventual
controle de seus efeitos adversos, como podem exigir gradual e
progressiva mudança institucional.
O neoformalismo do Pensamento Jurídico
Contemporâneo, contudo, se caracteriza pelo recurso a direitos
formais em substituição ao debate político e ideológico entre
as diversas formas institucionais possíveis para a solução de
um dado problema social. Em decorrência, há fetichismo
institucional, pois o neoformalismo adota uma solução
institucional específica para um problema social. Essa solução
institucional específica passa então a ser confundida com o
próprio direito a que o problema seja solucionado – isto é,
efetivar o direito à resolução de um problema social, nessa
visão, significa adotar aquela solução institucional
específica, o que desconsidera que outras instituições
poderiam também solucionar o problema. Assim, por exemplo, o
163
problema do financiamento por operadoras privadas de planos de
saúde de tratamentos para a cura de formas agressivas de
câncer é frequentemente formulado nos termos de um confronto
entre o direito à saúde e o direito de propriedade, como se o
direito à saúde tivesse uma forma institucional clara que
assegurasse o tratamento em qualquer hipótese, e o direito à
propriedade outra forma institucional clara que assegurasse
proteção absoluta às receitas do contrato celebrado entre
operadora e beneficiado.
A alternativa ao Pensamento Jurídico Contemporâneo
que Unger propõe é, a partir do reconhecimento de que direitos
de escolha são falíveis e podem ser revertidos, reforçar esses
direitos mediante a construção de pluralismos alternativos: a
exploração, no argumento programático ou na reforma
experimental, de uma ou outra sequência de mudança
institucional.254 Em outras palavras, ao invés do recurso a
direitos formais como mediadores não-ideológicos entre aquilo
que pode ou não se sujeitar à autodeterminação, Unger propõe
recorrer ao experimentalismo democrático.
O experimentalismo democrático para Mangabeira Unger
é um processo coletivo de descoberta e de aprendizagem. Porém
não se trata de um processo necessariamente evolutivo, isto é,
um processo em que as tentativas e erros do processo de
aprendizagem social desembocam em um conjunto ótimo de
instituições. Ao revés, Mangabeira defende que o processo de
transformação nas instituições é e sempre deve ser constante.
Se a sociedade permanece em constante transformação e mudança,
254 “...alternative pluralisms: the exploration, in programmatic argument or in experimental reform, of one or another sequence of institutional change.” (UNGER, 1996, p. 29 – tradução livre.)
164
também suas instituições devem constantemente mudar e se
transformar. Para o autor não há nada, a não ser a própria
experiência de cada sociedade, que seja capaz de sustentar que
um conjunto de instituições é melhor do que outro. A cada
conjunto de instituições que uma dada sociedade experienciar,
essa sociedade também se transformará, o que abre perpectivas
para novas instituições antes impossíveis de serem efetivadas
ou sequer imaginadas. O possível para Mangabeira é o que está
adjacente. Novas instituições ampliam e modificam a fronteira
do possível, porque criam novas adjacências. Assim, o
experimentalismo democrático decorre da “visão de que o
possível não está predeterminado e que há uma relação íntima
entre o entendimento do real e a imaginação desse possível.”255
Desse modo, sobre o experimentalismo democrático de Unger,
Carlos Sávio Teixeira constata que:
A ideia de experimentalismo democrático se desenvolve
com o objetivo de responder ao desafio teórico e prático
de imaginar instituições e processos que, ao partir da
sociedade atual e de suas contradições, possam caminhar
rumo a um conjunto de experiências individuais e
coletivas que realizarão melhor as aspirações e os
interesses práticos em nome dos quais as estruturas
estabelecidas se justificam e, ao fim e ao cabo,
fracassam. (TEIXEIRA, 2010, pp. 50-51.)
Sob essa perspectiva – que aqui adotamos -, o
Pensamento Jurídico Contemporâneo se mostra limitado na
resolução do problema da efetivação de direitos e construção
social da democracia. A opção pelo neoformalismo deságua em
fetichismo institucional e deixa de lado aquilo que é o
fundamental: a efetiva fruição de direitos. Para que direitos
255 TEIXEIRA, 2010, p. 48.
165
sejam fruídos em concreto, não basta reafirmar as instituições
existentes ou tentar apenas podar os seus defeitos. A
construção de novas instituições deve ser matéria prima do
direito. Esse aspecto do direito, de imaginação institucional,
é a oportunidade perdida do Pensamento Jurídico Contemporâneo.
Afastado o fetichismo institucional, a visão
paradigmática sobre direito e economia se mostra como uma
dentre várias visões de mundo possíveis. Desconstruir essa
visão de mundo abre espaço para visões de mundo alternativas,
que por sua vez resultam potencialmente em diversas
estratégias institucionais para realizar a política econômica.
2.2. A fundamentação da Economia clássica e da Economia neoclássica acerca dos pressupostos adotados pela visão paradigmática sobre direito e economia
Ao final do capítulo 1, destacamos dois pressupostos
assumidos pela visão paradigmática acerca da economia: i)
mercados surgem espontaneamente a partir das relações
privadas; ii) relações privadas se caracterizam pela escolha
racional para atender a interesses individuais. Esses
pressupostos foram trabalhados pela Economia em narrativas que
foram contemporâneas aos modos de pensamento jurídico
analisados no capítulo 1. Em especial, o Pensamento Jurídico
Clássico parte de uma visão da economia que corresponde à
Economia Clássica, e o Pensamento Jurídico Contemporâneo
enxerga a atividade econômica de forma similar à Economia
Neoclássica. Passaremos a expor como Economia Clássica e
Economia Neoclássica formularam os dois pressupostos sobre a
economia que a visão paradigmática assumiu. A exposição será
útil para o esforço seguinte de refutação desses pressupostos,
e a consequente propositura de uma nova leitura do papel de
construção institucional da economia pelo direito.
166
A ideia de que a economia funciona com base em
mercados autônomos que surgem espontaneamente das relações
privadas é um dos principais temas da Economia clássica, a
partir da formulação de Adam Smith em sua obra fundamental “A
Riqueza das Nações” (An Inquiry Into the Nature and Causes of
the Wealth of the Nations). A tese central que Adam Smith
declaradamente busca defeder é a de que a riqueza das nações
seria determinada pela multiplicação da produção propiciada
pela divisão do trabalho.256 Não foi propriamente essa
afirmação, contudo, que motivou o impressionante impacto da
obra do conhecido autor escocês. Sua elegante argumentação
sobre como se dá a divisão do trabalho na economia, sobre os
efeitos dessa divisão e a consequente formulação de uma sólida
teoria econômica da produção e da distribuição, tudo isso é
que garantiu a Adam Smith posto de destaque na história das
ideias do Ocidente.257 Mas foi durante essa argumentação que
Adam Smith sustentou uma das duas ideias que queremos refutar:
a de que mercados surgem espontaneamente e se regulam
autonomamente.
Segundo Smith, a divisão do trabalho não seria
resultado da aplicação da sabedoria humana – portanto, não
derivaria da organização voluntária da sociedade, ou da boa
visão do governante de um país. Seria, ao revés, consequência
necessária, ainda que gradual e lenta, da propensão da
natureza humana por trocar e fazer escambo.258 Smith afirma
256 Nos referimos à seguinte afirmação de Adam Smith: “It is the great multiplication of the productions of all the different arts, in consequence of the division of labour, which occasions, in a well-governed society, that universal opulence which extends itself to the lowest ranks of the people.” (SMITH, 1952, p. 6.) 257 Cf, BLAUG, 1996, pp. 59 e ss. 258 Diz o autor: “This division of labour, from which so many advantages are derived, is not originally the effect of any human wisdom, which foresees
167
que, ao contrário de outros animais, o homem teria constante
necessidade de seus similares. O homem civilizado, porém,
teria tempo escasso para fazer amizades o suficiente para que
todas suas necessidades fossem atendidas por amigos e
familiares, e seria vã a esperança de que desconhecidos
colaborassem apenas por benevolência. Ao invés de confiar
nessa benevolência, melhor sorte teria o homem se confiasse no
interesse próprio de seus semelhantes, fazendo que esse
coincida com seus próprios interesses. Esse argumento é
ilustrado da seguinte forma por Adam Smith, em um de seus
trechos mais citados:
Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do
padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da
consideração que eles têm pelos seus próprios
interesses. Nós nos dirigimos não a sua humanidade, mas
a seu amor-próprio, e nunca lhes falamos de nossas
necessidades, mas apenas de suas vantagens. Ninguém,
exceto um mendigo, escolhe depender sobremaneira da
benevolência de seus concidadãos.259
Por isso, a troca – ou o escambo – seria a
ferramenta do homem civilizado para satisfazer seus
interesses. A relação de troca pressupõe que os interesses
individuais de cada parte envolvida sejam atendidos. Por
buscar a satisfação de seus interesses individuais, os homens
and intends that general opulence which it gives occasion. It is the necessary, though very slow and gradual consequence of a certain propensity in human nature which has in view no such extensive utility: the propensity to truck, barter, and exchange one thing for another.” (SMITH, 1952, p. 6.) 259 “It is not from the benevolence of the butcher, the brewer, or the baker that we expect our dinner, but from their regard to their own interest. We address ourselves, not to their humanity but to their self-love, and never talk to them of our own necessities but of their advantages. Nobody but a beggar chooses to depend chiefly upon the benevolence of his fellow-citizens.” (SMITH, 1952, p. 7 – tradução livre.)
168
acabariam assumindo as tarefas que melhor desempenhassem.260
Isso porque seria pela troca que os homens obteriam a maior
parte de suas necessidades. Ao se dedicarem às atividades em
que fossem mais produtivos, os homens teriam mais produtos
para trocar e assim, poderiam obter mais produtos e serviços
de seus similares do que se valendo exclusivamente de suas
habilidades individuais. Um homem que produz de tudo teria
menos do que um homem que produz apenas uma coisa, mas que
troca o excedente de sua produção com outros homens. Portanto,
ao se especializar, a satisfação de suas necessidades seria
maior do que se resolvesse fazer tudo sozinho.261 Desse modo,
argumenta Adam Smith, a divisão do trabalho seria o produto
natural da busca do homem pela satisfação de seus interesses
individuais: o homem se especializaria para poder ter mais de
suas necessidades atendidas.
Mas se a divisão do trabalho seria o produto natural
da busca do homem pela satisfação de seus interesses
individuais, ela somente se tornaria viável – segundo Adam
Smith - pela propensão da natureza humana por trocar e fazer
escambo. É porque troca com seus semelhantes que o homem pode
260 A diferença de produtividade entre um e outro homem não seria decorrente somente de uma vocação natural, mas sobretudo de questões de hábito, costume e educação: “The difference of natural talents in different men is, in reality, much less than we are aware of; and the very different genius which appears to distinguish men of different proffessions, when grown up to maturity, is not upon many occasions so much the cause as the effect of the division of labour. The difference between the most dissimilar characters, between a philosopher and a common street porter, for example, seems to arise not so much from nature as from habit, custom, and education.” (SMITH, 1952, p. 7.) 261 Adam Smith traz a seguinte ilustração para esse argumento: “In a tribe of hunters or shepherds a particular person makes bows and arrows, for example, with more readiness and dexterity than any other. He frequently exchanges them for cattle of for venison with his companions; and he finds at last that he can in this manner get more cattle and venison than if he himself went to the field to catch them. From a regard to his own interest, therefore, the making of bows and arrows grows to be his chief business, and he becomes a sort of armourer.” (SMITH, 1952, p. 7.)
169
se especializar. Seria essa propensão natural que faria com
que os homens trouxessem para um acervo comum os diferentes
produtos de seus talentos, onde todos pudessem comprar e
vender o que quer as habilidades de seus pares fossem capazes
de produzir.262 Esse acervo comum, resultado da propensão
natural pela troca, é o mercado para Adam Smith. E como o
mercado seria o locus dessa propensão natural pela troca, a
extensão do mercado é que delimitaria a divisão do trabalho:
mercados maiores gerariam maior divisão, mercados menores,
menor divisão do trabalho.263
Mas não é apenas o surgimento do mercado e a divisão
do trabalho que, no pensamento de Adam Smith, resultariam
espontaneamente da natureza humana. Também a operação
eficiente do mercado, seu funcionamento diuturno, seria
resultado espontâneo da predisposição do homem em atender a
seus próprios interesses, e que se expressaria naquilo que
mais tarde a Economia chamaria de lei da oferta e da procura.
Para explicar o funcionamento dos mercados, Adam
Smith diferencia entre o valor natural e o valor de mercado
dos bens. O valor natural equivaleria à remuneração dos
insumos necessários para a produção: o aluguel da terra, o
salário do trabalhador e os lucros do capital.264 O valor de
262 Nesse sentido, diz Smith: “Among men [...] the most dissimilar geniuses are of use to one another; the different produces of their respective talents, by the general disposition to truck, barter, and exchange, being brought, as it were, into a common stock, where every man may purchase whatever part of the produce of other men’s talents he has occasion for.” (SMITH, 1952, p. 8.) 263 “As it is the power of exchanging that gives occasion to the division of labour, so the extent of this division must always be limited by the extent of that power, or, in other words, by the extent of the market.” (SMITH, 1952, p. 8.) 264 “When the price of any commodity is neither more nor less than what is sufficient to pay the rent of the land, the wages of the labour, and the
170
mercado seria aquele pelo qual uma mercadoria seria comumente
vendida.265 Para Adam Smith, o valor natural seria, assim, o
valor de troca – o valor pelo qual, na produção de um bem, o
trabalhador estaria disposto a trocar por seu trabalho na
produção desse bem (e não de outro bem); o proprietário
(capitalista) estaria disposto a empregar seu estoque
excedente (capital266) na produção do bem (e não de outro); o
dono de terras estaria disposto a ceder o uso de suas terras
para que o bem (e não outro) seja produzido. Porque representa
o valor de troca, seria o valor natural que expressaria o
resultado ótimo da divisão do trabalho. Logo, no intuito de
promover a riqueza das nações, interessa que seja esse o valor
obtido nas relações entre os homens. É por esse valor, para
replicar a analogia de Adam Smith, que o cerverjeiro
produziria mais cerveja, que o açougueiro produziria mais
carne, e que o padeiro produziria mais pão, pois o valor
natural seria aquele que melhor faria com que cervejeiro,
açougueiro e padeiro quisessem trocar o excedente de suas
respectivas produções de modo a atender seus interesses
individuais.
profits of the stock employed in raising, preparing, and bringing it to market, according to their natural rates, the commodity is then sold for what may be called ist natural price.” (SMITH, 1952, p. 23.) 265 “The actual price at which any commodity is commonly sold is called its market price.” (SMITH, 1952, pp. 23-24.) 266 A definição de capital como excedente do estoque consta do seguinte trecho da Riqueza das Nações: “When the stock which a man possesses is no more than sufficient to maintain him for a few days or a few weeks, he seldom thinks of deriving any value from it. [...] But when he possesses stock sufficient to maintain him for months or years, he naturally endeavours to derive a revenue from the greater part of it; reserving only so much for his immediate consumption as may maintain him, till this revenue begins to come in. His whole stock, therefore, is distinguished into two parts. That part which, he expects, is to afford him this revenue, is called his capital.” (SMITH, 1952, p. 118).
171
Assim, o valor natural não se expressa em moeda, mas
razão daquilo que a Economia veio a chamar posteriormente de
custo de oportunidade: aquilo de que se abre mão para se obter
algo.267 Entretanto, diferentemente da visão atual de custo de
oportunidade (talhada pela Economia Neoclássica), Smith usa o
trabalho como única métrica para o valor econômico – ao se
abrir mão de uma coisa para se obter outra, essa coisa de que
se abriu mão, para Smith, será sempre o trabalho. Em outras
palavras, o valor natural de um bem seria o trabalho
necessário para um indivíduo produzir aquele bem, ou o
trabalho que um indivíduo deixa de ter quando decide não
produzir esse bem. Ao trocar um bem por outro, está-se – na
visão de Smith – trocando o trabalho de produzir um bem, pelo
trabalho “salvo” na produção desse bem e que, portanto, passa
a poder ser usado para produzir outro bem.268
O valor de mercado, por sua vez, equivaleria ao
preço pago pelo bem, o qual seria determinado pela quantidade
de bens trazida ao mercado e pela quantidade desses bens que
efetivamente fosse adquirida. Para Adam Smith, logo, o valor
de mercado seria expressão da relação entre quantidade
ofertada e quantidade demandada. Cabe ressaltar que, para
Smith, a demanda a ser considerada é a demanda efetiva – a das
pessoas que estão dispostas a pagar o necessário a remunerar o
267 Também sobre o custo de oportunidade, ver nota 231. 268 O seguinte trecho da Riqueza das Nações é bastante citado para ilustrar a posição de Adam Smith: “The real price of every thing, what every thing really costs to the man who wants to acquire it, is the toil and trouble of acquiring it. What every thing is really worth to the man who has acquired it, and who wants to dispose of it or exchange it for something else, is the toil and trouble which it can save to himself, and which it can impose upon other people. What is bought with money or with goods is purchased by labour, as much as what we acquire by the toil of our own body. That money or those goods indeed save us this toil. They contain the value of a certain quantity of labour which we exchange for what is supposed at the time to contain the value of an equal quantity.” (SMITH, 1952, p. 23).
172
valor natural (trabalho, capital e terra empregados na
produção do bem). Assim, Smith exclui aquilo que chama de
demanda potencial – a das pessoas que não querem ou não podem
pagar o necessário a remunerar o valor natural do bem.269
Embora sejam diferentes, valor de mercado e valor
natural seriam igualados pela ação do mercado. Diz Adam Smith:
A quantidade de cada bem trazido ao mercado naturalmente
se ajusta à demanda efetiva. É do interesse de todos
aqueles que empregam sua terra, trabalho ou capital, em
trazer todo bem [produzido] ao mercado, de modo que a
quantidade nunca deva exceder a demanda efetiva; e é do
interesse do todas as outras pessoas que aquela
[quantidade] nunca fique aquém daquela demanda.270
Essa afirmação é explicada por Smith da seguinte
forma. A relação entre quantidade ofertada e demanda efetiva
seria mediada pelo preço pago no mercado. Se a quantidade
ofertada ficasse aquém da demanda efetiva, diz Smith, algumas
pessoas iriam optar por pagar mais pelo bem para dele não
ficarem desprovidas, o que iniciaria um leilão entre os
demandantes efetivos para ver quem ficaria com os bens postos
269 “The market price of every particular commodity is regulated by the proportion between the quantity which is actually brought to market, and the demand of those who are willing to pay the natural price of the commodity, or the whole value of the rent, labour, and profit, which must be paid in order to bring it thither. Such people may be called the effectual demanders, and their demand the effectual demand; since it may be sufficient to effectuate the bringing of the commodity to market. It is different from the absolute demand. A very poor man may be said in some sense to have a demand for a coach and six, he might like to have it; but his demand is not an effectual demand, as the commodity can never be brought to market in order to satisfy it.” (SMITH, 1952, p. 24.) 270 “The quantity of every commodity brought to market naturally suits itself to the effectual demand. It is in the interest of all those who employ their land, labour, or stock, in bringing any commodity to market, that the quantity never should exceed the effectual demand; and it is in the interest of all other people that it never should fall short of that demand.” (SMITH, 1952, p. 24 – tradução livre.)
173
no mercado. Isso faria o preço subir. Nesse caso, o valor de
mercado estaria superior ao valor natural do bem. Quando isso
ocorresse, diz Smith, haveria pessoas que não optariam por
pagar esse maior valor e ficariam desprovidas do bem, ainda
que estivessem dispostas a pagar o equivalente ao valor
natural. Todavia, o maior preço atrairia novos trabalhadores,
novos capitalistas e novos donos de terra, que antes não se
interessavam em produzir o bem em questão. Em decorrência,
aumentaria a quantidade ofertada. A maior quantidade ofertada
faria com que menos pessoas ficassem desatendidas e, assim,
menos pessoas teriam interesse em oferecer preço maior.
Enquanto não atendidos todos os demandantes efetivos, esse
processo se repetiria: novos ofertantes seriam atraídos ao
mercado pelo preço maior do que o valor natural, e a
quantidade ofertada aumentaria. Ao final desse processo, a
quantidade ofertada seria suficiente para atender a demanda
efetiva.
Situação oposta ocorreria quando houvesse excesso na
quantidade ofertada. A maior quantidade de bens faria com que
toda a demanda efetiva fosse atendida e, ainda assim,
sobrassem bens a serem ofertados. Ao invés de não vender nada,
alguns ofertantes optariam por reduzir o preço para aquém do
valor natural – isto é, algum dos componentes do preço do bem
(remuneração pelo trabalho, pelo capital e pela terra)271 seria
pago em valor menor do que o necessário para remunerar o
trabalhador, o capitalista ou o proprietário de terras. A
271 Posteriormente, trabalho (mão-de-obra), capital e terra seriam nomeados de fatores de produção pelos economistas que sucederam Adam Smith. Segundo Mankiw, são fatores de produção os “insumos usados na produção de bens e serviços” (2009, p. 376). Além daqueles três, há outros fatores de produção considerados pelos economistas contemporâneos, tais como a organização empresarial e o conjunto técnica/ciência.
174
consequência seria que alguns trabalhadores, capitalistas ou
proprietários de terra não teriam mais interesse em se dedicar
à produção do bem, e iriam devotar sua mão-de-obra, seu
estoque (capital) ou suas terras à produção de outra coisa. A
quantidade ofertada então, se diminuiria, o que faria o preço
aumentar. Esse processo se repitiria até que a quantidade
ofertada fosse igualada à demanda efetiva.
Desse modo, a quantidade ofertada seria ajustada à
demanda efetiva pela ação do mecanismo de preços. Essa relação
não foi assim nomeada por Smith, mas se constitui na
formulação daquilo que a Economia chama de lei da oferta e da
demanda.272 Segundo a visão de Adam Smith, o preço obtido pela
lei da oferta da demanda, por ser igual ao valor natural dos
bens, seria aquele que traria maior riqueza à sociedade. Isso
porque, como visto, o valor natural expressaria a melhor troca
possível pela mão-de-obra, pelo capital e pela terra
empregados na produção de um bem, do ponto de vista do
atendimento aos interesses individuais dos homens envolvidos
com a produção: respectivamente, o trabalhador que fornece a
mão-de-obra, o capitalista que fornece o capital e o
proprietário que fornece a terra. Desse modo, cada um –
trabalhador, capitalista e dono de terras – buscaria apenas
seu ganho individual, e, segundo a famosa ilustração de Smith,
272 Por exemplo, Mankiw, em seu manual de Economia, define a lei da oferta e da demanda nestes termos: “Na maioria dos mercados livres, o excesso e a escassez são apenas temporários porque os preços acabam por se mover em direção aos níveis de equilíbrio. De fato, esse fenômeno é tão universal que é chamado lei da oferta e da demanda: o preço de qualquer bem se ajusta para trazer a quantidade ofertada e a quantidade demandada do bem para o equilíbrio.” Apesar de a denominação lei da oferta e da demanda ser de ampla adoção na Economia, seus efeitos – e a dita universalidade desse fenômeno afirmada por Mankiw – são controvertido por pensadores contrários à Economia neoclássica. Veremos adiante algumas dessas perspectivas críticas.
175
cada um seria assim movido por uma mão invísivel para promover
um fim que não era parte de sua intenção: o bem da sociedade
como um todo.273
A ideia de que mercados são o resultado espontâneo
das relações de troca entre indivíduos em busca da satisfação
de seus interesses pessoais, e a ideia de que dessa busca
emerge também uma ordem espontânea, são contribuições centrais
de Adam Smith e temas que foram assumidos pela Economia
neoclássica como seu principal objeto.274
Todavia, a noção de mercado de Smith não é
propriamente aquela que buscamos criticar, pois não é a um
mercado smithiano que a visão paradigmática sobre direito e
273 A famosa ilustração da mão invisível aparece na Riqueza das Nações uma única vez, quando Adam Smith defende a liberalização do comércio entre países como meio de aumentar a riqueza nacional: “By preferring the support of the domestic to that of foreign industry, he intends only his own security; an dby directing that industry in such a manner as its produce may be of the greatest value, he intends only his own gain, and he is in this, as in many other cases, led by an invisible hand to promote an end which was no part of his intention.” (SMITH, 1952, p. 194 – grifo ausente do original). A ilustração da mão invisível, como fica claro no trecho exposto, não busca descrever o mercado, nem a lei da oferta e da procura, mas sim a ideia de que a busca de interesses individuais resulta em benefícios públicos – tal qual na conhecida fábula das abelhas de Mandeville. Reflete, por isso, o liberalismo individualista característico da época de Adam Smith. Acerca do individualismo e sua influência na Economia, ver: DUMONT, 1977. 274 Corroborando essa afirmação, Avner Greif afirma que: “...neo-classical economics has held for a long time that markets are organisms that emerge spontaneously” (GREIF, 2005, p. ix). De modo mais amplo, Mark Blaug, em seu compêndio historiográfico sobre a teoria econômica, diz que: “The problem that gave rise to economics in the first place, the ‘mistery’ that fascinated Adam Smith as much as it does a modern economist, is that of market exchange: there is a sense of order in the economic universe, and this order is not imposed from above but is somehow the outcome of the exchange transactions between individuals, each seeking to maximize his or her own gain.” (BLAUG, 1996, p. 6). Ronald Coase, a respeito, chega a afirmar que: “During the two centuries since the publication of the Wealth of Nations, the main activity of economists, it seems to me, has been to fill the gaps in Adam Smith’s system, to correct his errors and to make his analysis vastly more exact.” (COASE, 1994, posição 76). Ainda sobre a influência de Adam Smith na Economia neoclássica, ver: SKOUSEN, 2009, posição 9657 e ss.
176
economia se refere. Na medida em que a Economia passou a
reconhecer como seu objeto não mais a natureza e as causas da
riqueza das nações – como propunha Adam Smith -, mas sim a
análise do comportamento humano como uma relação entre
determinados fins e meios escassos que possuem usos
alternativos275, a ideia de mercado como ambiente típico das
escolhas econômicas ganhou progressiva abstração. O mercado na
análise de Adam Smith possui uma realidade institucional
definida276: está condicionado, por exemplo, à dimensão
populacional de uma localidade277 e aos meios de transporte
disponíveis.278 Porém, como afirma Ronald Coase, a teorização
das trocas econômicas pelo pensamento neoclássico abandonou a
realidade institucional dos mercados como objeto de estudo,
para converter a Economia a uma teoria geral das escolhas.279
275 Nesse sentido: “After 1870, however, economics came to be regarded as a science that analysed ‘human behaviour as a relationship between given ends and scarce means which have alternative uses’...” (BLAUG, 1996, p. 4.) 276 Mark Blaug corrobora essa assertiva: “Adam Smith was not satisfied to argue that a free-market economy secures the best of all possible worlds. He was very much preoccupied with the specification of the exact institutional structure that would guarantee the beneficent operation of market forces.” (BLAUG, 1996, p. 62.) 277 É o que diz Smith no trecho a seguir: “There are some kinds of industry, even of the lowest kind, which can be carried nowhere but in a great town. [...] It is impossible that there should be such a trade as even that of a nailer in the remote and inland parts of the Highlands of Scotland.” (SMITH, 1952, p. 8.) 278 Como afirma o autor: “As by means of water-carriage a more extensive market is opened to every sort of industry than what land-carriage alone can afford it...” (SMITH, 1952, p. 8.) 279 Nesse sentido: “Economists study how the choice of consumers, in deciding which goods and services to purchase, is determined by their incomes and the prices at which goods and services can be bought. They also study how producers decide what factors of production to use and what products and services to make and sell and in what quantities, given the prices of the factors, the demand for the final product, and the relation between output and the amounts of factors employed. The analysis is held together by the assumption that consumers maximize utility (a nonexistent entity which plays a part similar, I suspect, to that of ether inthe old physics) and by the assumption that producers have as their aim to maximize profit or net income (for which there is a good deal more evidence). The decisions of consumers and producers are brought into harmony by the theory
177
Identifica-se como Economia Neoclássica a corrente
teórica que nasce no final do século XIX a partir das ideias
do austríaco Carl Menger, do francês Leon Walras e do inglês
William Stanley Jevons. Esses três economistas, por caminhos
diversos, propuseram uma nova fundamentação para a lei da
oferta e da demanda – diferente daquela formulada por Adam
Smith.
Smith, como vimos, usava a remuneração dos fatores
de produção – capital, terra e trabalho – como fundamento do
que seria o valor natural de bens e serviços, e propunha que o
valor de mercado seria aquele efetivamente obtido em uma
transação comercial em pecúnia. Os mercados, porém, igualariam
ambos – valor natural e valor de mercado -, o que seria a
situação ideal para estimular a divisão do trabalho e, assim,
propiciar maior riqueza. A análise de Smith se centra,
portanto, na oferta: os preços do mercado seriam aqueles pelos
quais ofertantes estariam dispostos a disponibilizar capital,
terra e trabalho para produzir mais.
Menger, Walras e Jevons, porém, inauguram uma nova
linha no pensamento econômico, chamada por vezes de revolução
marginalista, que serviu de base para a Economia Neoclássica e
que, por sua vez, ainda hoje domina os manuais de Economia.280
Essa nova linha de pensamento econômico parte da ideia de que
preços e custos são determinados não pela oferta, mas pela
demanda - especificamente, pela utilidade que os demandantes
conferem aos bens e serviços a serem consumidos. Se bananas
of exchange. /§/ The elaboration of the analysis should not hide from us its essential character: it is an analysis of choice.”(COASE, 1988, p. 2 – grifo ausente do original). 280 A caracterização que a seguir faremos da Economia Neoclássica é baseada em BLAUG, 1996, pp. 277-309 e pp.549-595; SKOUSEN, 2009, posições 3852-4951; MANKIW, 2009, pp. 3-151.
178
são mais produzidas do que maçãs, segundo essa visão, não é
porque trabalhadores rurais gastam menos tempo para produzir
bananas do que maçãs, nem porque os terrenos agrícolas são
mais propícios à produção de bananas do que de maçãs, nem
porque bananeiras custam menos do que macieiras. É porque
consumidores preferem bananas do que maçãs. Essa preferência
dos consumidores é que irá, na visão neoclássica, determinar o
custo do trabalhador rural que produz bananas no lugar de
maçãs, o custo da terra usada para produzir bananas no lugar
de maçãs, e o custo de usar bananeiras em lugar de macieiras
na produção agrícola. Esta é chamada teoria da imputação: a
utilidade para os consumidores imputa (determina) o valor dos
insumos na economia.
Sob essa perspectiva, a Economia deixa de buscar
critérios objetivos para definir o custo de bens e serviços no
mercado, e passa a se fiar na subjetividade da utilidade que
cada bem ou serviço tem para os consumidores individualmente
considerados. A ideia de valor natural (como visto, o valor do
trabalho empregado ou “salvo” na produção de um bem),
portanto, é abandonada: valor é aquilo que demandantes
individuais atribuem subjetivamente a alguma coisa. A oferta,
desse modo, seria uma reação à demanda. E os fatores de
produção seriam alocados de acordo com o valor que agregassem
ao processo produtivo. A consequência é que a utilidade, nessa
visão, cria valor econômico, pois é a utilidade para o
consumidor que faz com que, em determinado momento, o preço de
uma banana equivalha ao de duas maçãs – porque consumidores
têm mais utilidade de bananas do que maçãs, elas valem mais.
A demanda, porém, está sujeita ao princípio da
diminuição da utilidade marginal – por isso, aliás, a linha
teórica de que estamos tratando recebeu o nome de revolução
marginalista. Para a Economia Neoclássica, preço – e valor
179
econômico – de um bem ou serviço não são determinados pela
utilidade absoluta, mas pela utilidade relativa – ou, mais
propriamente, pela utilidade marginal. A utilidade marginal
não é a de uma unidade do bem questão em absoluto, mas a de
uma unidade adicional desse bem. Um bem, nessa visão, tem sua
utilidade marginal relacionada a sua abundância ou escassez.
Nesse ponto entra o dito princípio da utilidade marginal
decrescente: quanto mais um dado indivíduo possui de um bem ou
serviço, menos útil será uma unidade adicional desse bem ou
serviço. Um exemplo muito utilizado é o do valor econômico da
água e de diamantes. Em termos absolutos, água é muito mais
útil do que diamantes – sem água um indivíduo não pode
sobreviver. Contudo, diamantes são em geral mais caros do que
água. A Economia Neoclássica, com base no princípio da
utilidade marginal decrescente, explica essa diferença de
valor com base na escassez – água, em geral, é abundante, e
diamantes são mais escassos. Uma pessoa precisa muito de um
litro de água por dia, mas menor utilidade terá o segundo
litro, e assim por diante. Se há pouca água – por exemplo em
um deserto -, o valor da água será mais alto, dado que a
utilidade de um litro adicional de água será maior para quem
tem pouca água. Mas se há muita água, o seu valor será mais
baixo, pois para quem tem muita água, um litro adicional tem
pouca utilidade. Desse modo, diamantes valem mais do que água,
porque são mais escassos do que água. Em outras palavras, um
diamante a mais para quem tem poucos diamantes é mais útil do
que um litro a mais de água para quem já tem muita água, e por
isso diamantes têm preço maior do que água.
A partir dessa visão, a premissa que Adam Smith
havia utilizado acerca do comportamento humano ganha na
Economia Neoclássica contornos diferenciados. Como visto,
Smith partira da ideia de que, como que regidos por uma mão
invisível, homens buscando seus interesses individuais se
180
coordenariam para alcançar o melhor benefício público
possível. O mecanismo dessa coordenação seria o mercado. Para
a Economia Neoclássica, o homem racionalmente escolhe, dentre
opções alternativas para alocação de recursos escassos, aquela
que para ele ofereça a maior utilidade – diz-se que o
indivíduo é um maximizador racional de utilidade. Isso porque,
tal como considera Adam Smith, cada homem buscaria
racionalmente o melhor para seus interesses individuais. O
mercado seria o resultado agregado dessas escolhas individuais
de fruição de bens e serviços. Se cada indivíduo, ao escolher
consumir um bem ou serviço, o faz de forma a ter maior
utilidade possível, a escolha de todos os indivíduos somados,
ao final, também resultaria no maior benefício possível.
A Economia Neoclássica mantém, portanto, a ideia
fundamental de Adam Smith de que escolhas individuais produzem
benefícios públicos, porém com outros fundamentos e outras
consequências. Sendo o valor econômico determinado pela
utilidade marginal, a riqueza de uma nação não se exprime pela
mera capacidade de divisão do trabalho, mas pela capacidade de
melhor atender à demanda – isto é, de prover bens e serviços
úteis segundo o valor que a esses são imputados pelos
consumidores. A escolha econômica, sob esse ponto de vista, é
uma escolha que pondera escassez e utilidade. Diante da
utilidade marginal decrescente, a melhor alocação de recursos
escassos será aquela que respeite a maior utilidade para quem
usa esses recursos. O mercado, nessa visão, corresponde ao
conjunto de decisões individuais que alocam recursos de acordo
com as necessidades individuais.
Desse modo, percebe-se que, na Economia Neoclássica,
a narrativa da espontaneidade da origem dos mercados não é uma
busca pelo contexto histórico ou social de formação dos
mercados – como era na narrativa de Adam Smith. Ao revés, é
181
uma teoria da escolha, como afirma Coase.281 É a teorização do
pressuposto mandevilleano de que vícios privados produzem
benefícios públicos, manifestado na alocação de recursos
escassos segundo as escolhas individuais. Na Economia
Neoclássica, a espontaneidade, assim, não é necessariamente
uma característica da origem dos mercados, mas sim uma
característica intrínseca – ontológica – do mercado.
2.3. A refutação da ideia de que mercados surgem espontaneamente das relações privadas, segundo o neoinstitucionalismo de Ronald Coase
A seguir, faremos referência às ideias de Ronald
Coase para contrapor tanto a visão abstrata de mercado
característica da Economia Neoclássica, quanto a ideia que lhe
inspira - oriunda da Escola Clássica -, a de que mercados são
produtos espontâneos das relações privadas. As ideias de
Coase, porém, não encerram o debate, e devem ser tomadas como
exemplo do que, por variados fundamentos, outros economistas
relacionados à virada institucional282 também afirmam: a
281 COASE, 1988, p. 2. 282 O termo virada institucional (“institutional turn”) se refere à substituição do pensamento neoclássico, ocorrida no início deste século, por diversas perspectivas teóricas que, sob fundamentos variados e por vezes conflitantes, passaram a considerar que o estudo das relações econômicas não pode prescindir da análise das instituições – ou, em outras palavras, passaram a considerar que, na Economia, as instituições contam: “Au début du XXIe siècle, les oppositions théoriques et méthodologiques entre les différents courants de la pensée économique à propos du rôle des instituitions sont ainsi sensiblement redessinées. Un consensus assez large et nouveau domine la période actuelle: en économie, les institutions comptent [...] Assurément, les différences d’aproche, de méthode, de conceptualisation demeurent importantes, souvent irréductibles, mais on assiste aussi à une redéfinition des frontières entre courants, entre orthodoxie et hétérodoxies et, généralement, la vitalité des divers courants qui labourent le même champ de l’économie avec instituitions est un signe relativement encourageant dans le contexte de malaise de la pensée économique que caractérise notre époque” (CHAVANCE, 2007, p. 5).
182
concepção neoclássica da economia não tem sustentação no mundo
real. Para os objetivos desta tese, a implicação central é
que, ao se afastar uma concepção abstrata de mercado e se
enfatizar o ambiente institucional das relações econômicas,
todo um novo espectro de instrumentos jurídicos de política
econômica se abre para o jurista, instrumentos esses que são
ignorados pela visão paradigmática. Com base nos insights
obtidos a partir da doutrina de Ronald Coase, iremos ao final
deste capítulo uma nova visão sobre as formas de interação
entre direito e economia e os instrumentos jurídicos
disponíveis para tanto; há, porém, inúmeras outras que podem
ser imaginadas a partir das ideias do próprio Coase ou de
outros economistas. O objetivo não é propor um quadro
analítico definitivo que substitua o atual paradigma e sua
fundamentação na Economia Neoclássica, mas abrir espaços para
a superação do fetichismo institucional e para a imaginação de
novas alternativas para a implementação de políticas
econômicas. Sigamos, portanto.
Segundo Ronald Coase, a Economia Neoclássica é uma
teoria cujo objeto não tem vínculo com a realidade283, em que
se ignora por completo a realidade institucional que permeia
as opções econômicas.284 Nas palavras de Coase, a Economia
283 Diz Coase: “What is studied is a system which lives in the minds of economists but not on earth.” (COASE, 1994, posição 104.) 284 O seguinte trecho ilustra a posição de Coase: “This preoccupation of economists with the logic of choice, while it may ultimately rejuvenate the study of law, political science, and sociology, has nonetheless had, in my view, serious adverse effects on economics itself. One result of this divorce of the theory from its subject matter has been that the entities whose decisions economists are engaged in analyzing have not been made the subject of study and in consequence lack any substance. The consumer is not a human being but a consistent set of preferences. The firm to an economist, as Slater has said, ‘is effectively defined as a cost curve and a demand curve, and the theory is simply the logic of optimal pricing and
183
passou a ter consumidores sem humanidade, firmas sem
organização e até mesmo trocas sem mercados.285 Sob essa
concepção abstrata, mercados deixam de ser considerados como
espaços institucionais de trocas para se tornarem pressuposto
de um modelo de escolhas racionais – como afirma Marcus Faro
de Castro, as práticas de mercado são tratadas como se
existissem no vazio institucional.286 O mercado ao final, se
confunde com o próprio modelo abstrato de escolha racional287
adotado pelo pensamento neoclássico, cujo corolário é a
ampliação da aplicação da ideia de Smith de que as escolhas
individuais produzem benefícios sociais.288
É essa noção abstrata de mercado que integra a visão
paradigmática sobre direito e economia, e que permeia as
narrativas do Pensamento Jurídico Contemporâneo aqui
analisadas. Por exemplo, quando a narrativa do Estado
Regulador afirma que a atuação estatal deve ser subsidiária ao
mercado, ou quando a narrativa da Constituição Dirigente
afirma que o direito constitucional à saúde não pode ser
deixado meramente ao mercado; ambas não fazem referência a um
mercado real (de existência empiricamente considerada), mas ao
mercado tomado abstratamente. Tal mercado, subentende-se,
corresponderia ao resultado hipotético das escolhas racionais
input combination.’Exchange takes place without any specification of its institutional setting.” (COASE, 1988, p. 3.) 285 Parafraseamos a partir do seguinte trecho: “We have consumers without humanity, firms without organization, and even exchange without markets.” (COASE, 1988, p. 3.) 286 CASTRO, 2011, p. 19. 287 Sobre o modelo de escolha racional do pensamento neoclássico, trataremos no item 2.4 abaixo. 288 Como ressalta Mark Blaug, o escopo de Adam Smith era diferente do de seus sucessores neoclássicos: “But Smith’s faith in the benefits of the ’invisible hand’ had absolutely nothing whatever to do with allocative efficiency in circumstances where competition is perfect à la Walras and Pareto [...] Smith’s conception of competition was [...] a process conception, not an end-state conception.” (BLAUG, 1996, p. 60).
184
de indivíduos em busca do atendimento de seus interesses
pessoais. O mercado tal como concebido pela Economia
Neoclássica, qual seja o espaço abstrato em que a busca
racional de interesses individuais traz benefícios sociais,
pauta os debates, sem que haja uma problematização da própria
ideia neoclássica de mercado. Ou se entende que o mercado é
suficiente para atender os interesses sociais, ou se entende
que o mercado deve ser parcialmente ou totalmente suplantado
pela ação do Estado. Porém não se questiona, efetivamente, o
que é esse mercado, quais suas características constitutivas e
a forma de sua operação. Não se questiona, tampouco se leva em
consideração, a realidade institucional não apenas do mercado,
mas dos diversos mercados que efetivamente existem e pautam
relações econômicas concretas.
Para Ronald Coase, mercados são criações289, no
sentido de que sua existência é produto da ação humana
consciente. Mercados são instituições criadas para facilitar
as trocas290, e são caracterizados pela subordinação das trocas
ao mecanismo de preços. Porém, o argumento central de Coase –
que permeia toda sua obra – é o de que há custos associados ao
uso do mecanismo de preços e, logo, de mercados. Em
decorrência desses custos, há formas alternativas em que a
economia pode se organizar, e por vezes essas formas podem ser
até mais eficientes do que os mercados:
Esses custos [de adoção do mecanismo de preços] vieram a
ser conhecidos como custos de transação. Sua existência
implica que métodos de coordenação alternativos ao
289 Cf. COASE, 2009. 290 Diz Coase: “Markets are institutions that exist to facilitate exchange, that is, they exist in order to reduce the cost of carrying out exchange transactions.” (COASE, 1988, p. 7 – grifo ausente do original).
185
mercado, que são eles próprios também custosos e de
várias formas imperfeitos, podem inobstante ser
preferíveis à adoção do mecanismo de preços, o único
método de coordenação normalmente analisado pelos
economistas.291
Com base na ideia de custos de transação, Coase
chama a atenção para outras formas de organização da economia
que não o mercado – entendido este como meio de alocação de
recursos via sistema de preços. Em outras palavras, por
entender que o sistema de preços traz custos – os custos de
transação -, o autor defende que a Economia deveria analisar e
compreender formas alternativas de alocação de recursos que
não aquelas realizadas por mercados. Ronald Coase desenvolve
esse argumento em seus dois principais artigos, que lhe
garantiram o Prêmio Nobel de Economia: The Nature of the Firm
(1937) e The Problem of Social Cost (1960).
Em The Nature of the Firm (em tradução livre: A
Natureza da Firma), Coase buscava solucionar o que então lhe
parecia um paradoxo. Para um economista, diz o autor, o
sistema econômico seria coordenado eficientemente pelo
mecanismo de preços.292 Mesmo fatores de produção seriam
diretamente alocados em razão do preço da mercadoria ou
serviço em que são empregados.293 Porém, afirma Coase, no mundo
291 “These costs have come to be known as transaction costs. Their existence implies that methods of coordination alternative to the market, which are themselves costly and in various ways imperfect, may nonetheless be preferable to relying on the pricing mechanism, the only method of coordination normally analysed by economists.” (COASE, 1994, posição 143 – tradução livre, grifo ausente do original.) 292 A posição de Coase a que nos referimos consta do seguinte trecho: “An economist thinks of the economic system as being co-ordinated by the price mechanism, and society becomes not an organization but an organism. The economic system ‘works itself’.” (COASE, 1937, p. 387.) 293 No item seguinte, aprofundaremos a análise do tratamento conferido pela Economia ao funcionamento do sistema de preços.
186
real haveria muitas áreas em que isso não se aplicaria. Um
exemplo seria a firma – definida pelo autor como uma
organização que transforma insumos em produtos.294 Em uma
firma, diz Coase, a descrição feita pela teoria econômica do
funcionamento da economia não se aplicaria em absoluto.295 Um
trabalhador dentro de uma firma que tenha se deslocado do
departamento A para o departamento B não teria, para Coase,
sido mandado por conta do preço das mercadorias que a firma
produz, mas porque seu superior – o gerente da firma – teria
achado prudente fazê-lo. Dentro de uma firma, portanto, a
organização de recursos se daria em razão do planejamento do
gerente, e não em função do mecanismo de preços. Daí surge,
então, o paradoxo que motivou a investigação de Coase sobre a
natureza da firma, e que o autor formula nos seguintes termos:
294 Esta a definição de Ronald Coase: “The firm in modern economic theory is an organization which transforms inputs into outputs.” (COASE, 1988, p. 5). A definição do autor, portanto, engloba tanto entidades com personalidade jurídica, como empresas despersonalizadas. É o elemento de organização da atividade produtiva que é relevante na definição do economista, de modo similar à definição de empresa no direito brasileiro (diz o art. 966 do Código de Civil em vigor: “Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.”). Porém, o conceito de empresa e de atividade empresária no Direito brasileiro sofre controvérsia equivalente à da distinção entre serviço público e atividade econômica da visão paradigmática sobre direito e economia. Entendem muitos doutrinadores brasileiros que apenas quando há finalidade lucrativa é que se caracteriza a atividade empresária, e que algumas atividades produtivas tais como produção intelectual, literária e artística, não teriam natureza econômica – essa argumentação consta, por exemplo, no tratamento do citado art. 966 pelo relatório do anteprojeto do Código Civil (cf. FIUZA, 2006, pp. 784 e ss.). A noção de atividade empresária não será objeto de problematização e análise por esta tese. Por esse motivo, e para evitar incongruências com a noção prevalente na doutrina nacional, optou-se pela tradução do vocábulo inglês “firm” para o português “firma”, e não “empresa”. 295 Diz o autor: “...this theory assumes that the direction of resources is dependent directly on the price mechanism. Indeed, it is often considered to be an objetcion to economic planning that it merely tries to do what is already done by the price mechanism. [...] Within a firm, the description does not fit at all.” (COASE, 1937, p. 387.)
187
Fora da firma, movimentos de preço dirigem a produção,
que é coordenada mediante uma série de relações de troca
no mercado. Dentro de uma firma, essas transações de
mercado são eliminadas e a complexa estrutura de mercado
com relações de troca é substituída pelo empreendedor
coordenador, que direciona a produção. Fica claro que
esses são métodos alternativos de coordenar a produção.
Porém, levando-se em conta o fato de que a produção é
regulada por movimentos de preço, e a produção poderia
se desenvolver sem organização alguma, podemos bem nos
perguntar, por que há qualquer tipo de organização?296
Para os fins desta tese, como dito acima, a ideia de
que há sistemas de organização da produção alternativos ao
mercado é um dos pontos mais importantes da obra de Ronald
Coase. As firmas, para Coase, são um exemplo de alternativa ao
mercado, uma vez que teriam como traço distintitivo exatamente
a supressão do mecanismo de preços.297 Esse fato coloca em
cheque a premissa formulada por Adam Smith e amplificada pela
Economia Neoclássica - a premissa de que mercados são o
produto espontâneo da busca individual de interesses também
individuais. A argumentação de Coase é particularmente
interessante porque, ao invés de refutar as premissas adotadas
pela teoria econômica neoclássica, ela busca aplicar
rigorosamente essas premissas à realidade para, ao final,
concluir que a teoria não se sustenta por suas próprias
premissas. Se o mercado é o melhor mecanismo de alocação de
296 “Outside the firm, price movements direct production, which is co-ordinated through a series of exchange transactions on the market. Within a firm, these market transactions are eliminated and in place of the complicated market structure with exchange transactions is substituted the entrepreneur-co-ordinator, who directs production. It is clear that these are alternative methods of co-ordinating production.” (COASE, 1937, p. 388 – tradução livre, grifo ausente no original.) 297 Como diz o autor: “It can, I think be assumed that the distinguishing mark of the firm is the supersession of the price mechanism.” (COASE, 1937, p. 389.)
188
recursos – tanto do ponto de vista individual, como social - e
se espontaneamente indivíduos que buscam maximizar seus
interesses pessoais não teriam opção melhor do que o mercado,
como explicar o surgimento das firmas? Coase, primeiramente,
especula algumas respostas possíveis, como as preferências
individuais por comandar ou ser comandado, ou mesmo a
existência de regimes jurídicos diferentes entre firmas e
indivíduos. Conclui, porém, que a melhor razão para explicar o
surgimento das firmas seria a existência de custos para a
adoção do mecanismo de preços - ou, como visto, os custos de
transação. Os custos de transação englobariam, entre outros, o
custo de descobrir os preços de mercado – o que justificaria,
por exemplo, a existência de consultores especializados para
essa finalidade -, e o custo de negociar e executar diferentes
contratos para cada uma das transações realizadas no mercado.
No mercado, tais custos poderiam ser minimizados, mas nunca
completamente eliminados, segundo o autor. Em uma firma, por
outro lado, parte desses custos seriam suprimidos. As decisões
do empreendedor (ou gerente) substituiriam as transações no
mercado. Substituídas as transações, suprimem-se os custos a
essas relacionados – os custos de transação -, tais como o
custo de negociar um contrato, ou de contratar um especialista
para descobrir o preço de mercado de um bem. Em suma, afirma
Coase, a existência de custos de transação justificaria a
existência das firmas, mesmo diante da premissa neoclássica de
que indivíduos são maximizadores racionais.298
298 Nesse sentido: “We may sum up this section of the argument by saying that the operation of a market costs something and by forming an organisation and allowing some authority (an "entrepreneur") to direct the resources, certain marketing costs are saved.” (COASE, 1937, p. 392.)
189
The Nature of the Firm prossegue, então, com uma
teoria acerca do tamanho ótimo das firmas, baseando-se na
suposta relação entre a perda de eficiência das decisões do
empreendedor, o tamanho da firma e o ganho que representa a
supressão dos custos de transação frente ao parâmetro de
eficiência da alocação de recursos pelo mercado. Essa
exposição, contudo, seria posteriormente criticada pelo
próprio Ronald Coase.299 Não obstante, Coase em outras
oportunidades reforçou uma das conclusões de sua análise, a de
que um sistema econômico eficiente necessitaria não apenas da
existência de mercados, mas também de áreas de planejamento
dentro de organizações com um tamanho apropriado.300
Em The Nature of the Firm, portanto, Coase se vale
dos custos de transação para argumentar que as firmas não
apenas são formas de organização da atividade econômica
alternativas ao mercado, como também são por vezes formas mais
eficientes do que o próprio mercado. Já no outro artigo de
Coase que analisaremos aqui, The Problem of Social Cost (em
tradução livre: “O problema do custo social”), os custos de
transação são utilizados para analisar o problema dos efeitos
danosos que as ações das firmas trazem para terceiros, como
ocorre no caso de uma fábrica cuja fumaça traz prejuízo aos
299 A crítica a que nos referimos segue transcrita a seguir: “It is little more than an undergraduate essay. [...] It’s very poor. It talked about the firm as if you could talk about it as an entity in economic theory. I said ‘as a firm grew bigger, there were diminishing returns in management’, but this is treating it [the firm] as if a fertilizer in plowed land, and measuring it in terms of its return. [...] Well, firms aren’t like that. [...] It’s a sociologychal problem rather than an economic one.” (COASE, 2009 – transcrição de trechos entre 5’45 e 7’35 da entrevista.) 300 Parafraseamos a partir do seguinte trecho: “To have an efficient economic system it is necessary not only to have markets but also areas of planning within organizations of the appropriate size.” (COASE, 1994, posição 148.)
190
terrenos vizinhos.301 Esses efeitos negativos a terceiros são
chamados pela Economia contemporânea de externalidades
negativas.302 Em The Problem of Social Cost, Coase se contrapõe
à análise desse problema feita segundo a Economia do Bem-Estar
– cujos fundamentos remontam ao economista neoclássico inglês
Arthur Pigou na primeira metade do século XX. Ainda hoje, a
Economia do Bem-Estar encontra ampla repercussão na Economia
e, por exemplo, serve de fundamento para a narrativa do Estado
Regulador analisada no capítulo 1 desta tese. O seguinte
trecho do livro de introdução à Economia de Gregory Mankiw,
professor de Harvard que segue a linha neoclássica, sintetiza
o problema das externalidades negativas conforme essa linha
teórica:
Quando há externalidades, o interesse da sociedade em um
resultado de mercado vai além do bem-estar dos
compradores e dos vendedores que participam do mercado;
passa a incluir também o bem-estar de terceiros que são
indiretamente afetados. Como os compradores e vendedores
desconsideram os efeitos externos de suas ações quando
decidem quanto demandar ou ofertar, o equilíbrio de
mercado não é eficiente quando há externalidades. Ou
seja, o equilíbrio não maximiza o benefício total para a
sociedade como um todo.303
Nessa visão, o problema das externalidades é
essencialmente o de incorporar as preferências dos indivíduos
301 Diz Coase: “This paper is concerned with those actions of business firms which have harmful effects on others. The standard example is that of a factory the smoke from which has harmful effects on those occupying neighbouring properties.” (COASE, 1960, p. 1) 302 A definição de Mankiw é ilustrativa: “Uma externalidade surge quando uma pessoa se dedica a uma ação que provoca impacto no bem-estar de um terceiro que não participa dessa ação, sem pagar nem receber nenhuma compensação por esse impacto. Se o impacto sobre o terceiro é adverso, é denominado externalidade negativa. Se é benéfico, é chamado externalidade positiva.” (MANKIW, 2009, pp. 195-196.) 303 MANKIW, 2009, p. 196.
191
que não estão manifestas nas decisões que integram o mercado.
Em outras palavras, as externalidades significam casos em que
as decisões de mercado não representam aquilo que os
demandantes de forma agregada reputam como o melhor para si
mesmos. É, por isso, hipótese de falha de mercado, em termos
da inadequação do mercado como instrumento de maximização de
bem-estar social - compreendido bem-estar como a melhor
alocação de recursos escassos segundo a utilidade que os
indivíduos atribuem a esses recursos. A solução ortodoxa para
a Economia do Bem-Estar é se valer da ação estatal para que as
externalidades sejam internalizadas, isto é, para que as
preferências que não são computadas nas decisões de mercado
passem a ser computadas. O principal meio para isto são os
chamados impostos pigouveanos – cujo nome não por acaso remete
a Pigou, que além de ser responsável pela origem da Economia
do Bem-Estar, propôs esse tipo de imposto como solução para o
problema das externalidades negativas. Em síntese, o imposto
pigouveano tem por objetivo a internalização das
externalidades por meio da ação governamental, mediante o
incremento do custo das atividades que provocam externalidades
negativas na exata medida do prejuízo social que provocam. Por
exemplo, na ilustração da fábrica cuja fumaça prejudica os
terrenos vizinhos, o imposto pigouveano deveria ser em tal
monta que correspondesse exatamente ao prejuízo que os
proprietários dos terrenos vizinhos tivessem em razão da
fumaça.
Em contraposição a essa visão, Coase, primeiramente,
afirma que o problema dos efeitos nocivos a terceiros tem,
necessariamente, uma natureza recíproca. Em síntese, Coase
argumenta que o prejuízo existe dos dois lados do problema –
tanto a pessoa que pratica a atividade pode provocar prejuízo
em terceiros, como pode ser prejudicada por ter que restringir
sua atividade. Podemos usar o exemplo da fábrica cuja fumaça
192
traz prejuízo aos proprietários de terrenos vizinhos para
ilustrar o argumento de Coase. Se os proprietários de terrenos
vizinhos compelirem a fábrica a mudar seu processo de
produção, ou a parar de produzir, haverá prejuízo para o
proprietário da fábrica. A questão, segundo Coase, seria
avaliar qual prejuízo é maior – o dos terrenos vizinhos em
razão da fumaça, ou o da fábrica em razão dos vizinhos.
Conforme o critério neoclássico de bem-estar como
maximização da utilidade individual, a solução deveria ser
aquela que preservasse a maior utilidade – se a produção da
fábrica fosse mais útil do que o prejuízo aos terrenos
vizinhos, a fábrica deveria operar e os vizinhos sofrerem o
prejuízo, e vice-versa. Considerando que o sistema de preços
é, em termos neoclássicos, expressão das utilidades
individuais, o problema e sua solução podem ser expressos em
termos pecuniários. Por exemplo, se a fábrica operasse com
lucro de $ 600 e o prejuízo aos terrenos remontasse a um total
de $ 400, do ponto de vista social haveria um superávit de $
200 para o bem-estar social caso a fábrica operasse, e um
déficit dos mesmos $ 200 caso a fábrica fosse obrigada a
fechar as portas. Isso porque – sempre segundo as premissas
neoclássicas - a operação da fábrica contribui com $ 600 em
termos de utilidade conforme medida pelo mercado, e o prejuízo
dos terrenos representa $ 400 de utilidade conforme medida
pelo mercado. Nesse caso, a maximização do bem-estar social
ocorreria no cenário em que a fábrica operasse, mesmo
considerado o prejuízo para os terrenos. A conclusão se
inverteria caso se invertessem os montantes de lucro e
prejuízo – no caso de o lucro da fábrica ser $ 400 e o
prejuízo aos terrenos vizinhos ser $ 600, a maximização de
bem-estar ocorreria com o encerramento das atividades da
fábrica.
193
A partir da afirmação de que se trata de um problema
de natureza recíproca, o autor passa à exposição daquilo que
ficou conhecido como Teorema de Coase. O autor não o apresenta
como um teorema – essa denominação e sua formalização segundo
os pressupostos neoclássicos foram feitas pelo economista
George Stigler.304 O teorema corresponde à conclusão de Coase
de que, pela atuação do mecanismo de preços em condições
ideais, qualquer que seja a imputação jurídica do direito a
produzir ou reprimir externalidades negativas, o resultado
final será a alocação eficiente de recursos segundo os
pressupostos da Economia Neoclássica (maximização de
utilidade). Ao invés da fábrica que produz fumaça, Coase usa o
exemplo de duas propriedades rurais vizinhas, uma com criação
de gado, outra com uma plantação de grãos, em que, ao invés da
fumaça, o problema é o prejuízo que o gado solto provocaria
nas mudas da plantação de grãos.305 Todavia, para os fins desta
exposição, nos manteremos com a ilustração da fábrica nos
moldes dos parágrafos anteriores.
Na nossa ilustração, o Teorema de Coase implica que,
no caso de a operação da fábrica provocar um superávit de $
200 - e, logo, deixá-la operar ser a opção maximizadora de
bem-estar social - não importará a decisão jurídica de imputar
responsabilidade à fábrica por indenizar ou isentá-la dessa
responsabilidade. A fábrica irá operar, nesse caso, pela
própria ação do mecanismo de preços. O argumento de Coase
parte do próprio pressuposto da Economia Neoclássica de que as
relações de mercado refletem preferências individuais acerca
da utilidade na alocação de recursos escassos. Dizer que a
304 Ver: COASE, 1988, p. 14; COASE, 2012. 305 Cf. COASE, 1960, pp. 3-8.
194
fábrica dá $ 600 de lucro significa dizer que o dono da
fábrica aceitaria os mesmos $ 600 para parar de produzir, caso
alguém se dispusesse a paga a ele este valor. Por outro lado,
dizer que o prejuízo dos terrenos seria de $ 400, significa
dizer que os donos dos terrenos aceitariam $ 400 como
compensação para deixar a fábrica produzir. Nesse caso, uma
simples transação entre partes prejudicada e beneficiada
resolveria o problema – ou seja, o problema se resolveria pelo
próprio mecanismo de preços. Se o direito à indenização pelos
prejuízos provocados pela fumaça fosse reconhecido, bastaria
ao dono da fábrica pagar $ 400 aos donos dos terrenos, que ele
ainda operaria com lucro de $ 200. O benefício social seria
equivalente ao lucro de $ 200 do dono da fábrica. Se o direito
não fosse reconhecido, ele operaria sem ter de pagar
indenização aos donos dos terrenos. Também nesse caso, o
benefício social seria de $ 200 – pois essa seria a soma do
lucro de $ 600 do dono da fábrica com o prejuízo de $ 400 dos
donos dos terrenos.
No caso inverso – lucro da fábrica de $ 400,
prejuízo dos vizinhos de $ 600 -, também haveria maximização
do benefício social pela atuação do mecanismo de preços. Nesse
caso, o maior benefício social seria o da não operação da
fábrica, pois sua operação geraria um déficit de $ 200, o que
significa que seu fechamento daria um benefício de $ 200 para
a sociedade. Também nesse caso a imputação do direito à
indenização não influencia no resultado social. Caso a fábrica
tivesse de indenizar os proprietários dos terrenos, o dono
prefereria fechar as portas. Os terrenos, nesse caso, valeria
$ 600 a mais do que no caso de a fábrica operar, mas a fábrica
deixaria de gerar lucro de $ 400 – somados benefício e
prejuízo, a não operação da fábrica resultaria no benefício de
$ 200 para a sociedade. De igual forma, se a fábrica não fosse
obrigada a indenizar, os donos dos terrenos poderiam pagar $
195
400 para o dono da fábrica deixar de produzir. Nesse caso, os
terrenos continuariam a valer $ 600, mas os $ 400 de lucro da
fábrica seriam compensados pelo prejuízo de $ 400 dos donos do
terreno, o que também geraria um benefício social de $ 200.
Coase trabalha exaustivamente as hipóteses de
imputação do direito à indenização das partes prejudicadas,
inclusive ilustrando a compensação por prejuízos ou lucros
marginais e pela adoção de medidas para minimizar o prejuízo –
no caso da fábrica, por exemplo, esse seria o caso na adoção
de métodos de produção que produzissem menos fumaça. Em todas
as hipótese, Coase comprova que o mecanismo de preços seria
suficiente para resolver o problema das externalidades. Na
formulação dada por Stigler, o Teorema de Coase significa que
em condições de concorrência perfeita, custo social e custos
privados se igualam.306 Em outras palavras, não há
externalidades, pois os custos sociais são internalizados pela
possibilidade de transação entre partes prejudicadas e partes
beneficiadas.
Todavia, Coase faz questão de frisar que as
conclusões acima – que consistem no Teorema de Coase – somente
são válidas em um cenário em que não existam custos para a
implementação de transações em um mercado. Esse cenário, diz
Coase, está bem distante da realidade.307 Não apenas a
existência de efeitos adversos – o custo social308 - das
transações de mercado está relacionada à existência de custos
para a adoção do mecanismo de preços, como a solução do dito
306 Cf. COASE, 1988, p. 14. 307 COASE, 1960, p. 15. 308 Ronald Coase define custo social segundo as premissas da Economia Neoclássica: “Social cost represents the greatest value that factors of production would yield in an alternative use.” (COASE, 1988, p. 158).
196
custo social passa pela avaliação criteriosa do papel de
mercados e instituições alternativas a mercados na alocação de
recursos escassos. Diz o autor:
Resta claro que uma forma alternativa de organização
econômica que pudesse alcançar o mesmo resultado a um
custo menor do que o que seria incorrido pelo uso do
mercado iria viabilizar o aumento do valor da produção.
Como expliquei há muitos anos, a firma representa uma
tal alternativa à organização da produção mediante
transações de mercado. [...] Mas a firma não é a única
alternativa possível para resolver esse problema. Os
custos administrativos de organizar transações dentro de
uma firma podem também ser altos, e particularmente o
serão quando muitas atividades diversas sejam colocadas
sob o controle de uma única organização. [...] Uma
solução alternativa é a regulação governamental direta.
Ao invés de instituir um regime jurídico de direitos que
possam ser modificados por transações no mercado, o
governo pode impor regulamentos que digam o que as
pessoas devem ou não fazer, e que devem ser obedecidos.
[...] O governo é capaz, se desejar, de evitar por
completo o mercado, algo que a firma nunca poderá
fazer.309
309 “It is clear that an alternative form of economic organisation which could achieve the same result at less cost than would be incurred by using the market would enable the value of production to be raised. As I explained many years ago, the firm represents such an alternative to organising production through market transactions. [...] But the firm is not the only possible answer to this problem. The administrative costs of organising transactions within the firm may also be high, and particularly so when many diverse activities are brought within the control of a single organisation. [...] An alternative solution is direct Government regulation. Instead of instituting a legal system of rights which can be modified by transactions on the market, the government may impose regulations which state what people must or must not do and which have to be obeyed.[...] The government is able, if it wishes, to avoid the market altogether, which a firm can never do.” (COASE, 1960, pp. 16-17 – tradução livre.)
197
A partir dessa exposição de Coase, é possível
identificar pelo menos três tipos de instituições no que diz
respeito à organização da economia, representadas na Figura 6
- Instituições econômicas identificadas em Coase (1960). Em
primeiro lugar, há as instituições de mercado, caracterizadas
pela adoção de mecanismo de preços como modo de coordenação da
alocação de recursos. Em segundo lugar, há as firmas, que
dependem de instituições de mercado para obter insumos e para
alocar sua produção, mas que internamente organizam recursos
escassos segundo determina sua administração interna. E,
finalmente, há os governos, que tanto podem se valer de
mercados para obter insumos e alocar produção, como podem
completamente substuir mercados por arranjos alternativos.
Todos esses diferentes arranjos possuem seus custos
específicos, diz Coase, e a ponderação de qual dentre as
alternativas institucionais traz melhor resultado quanto à
produção econômica implica contrastar os custos de cada um dos
diferentes arranjos.
Figura 6 - Instituições econômicas identificadas em Coase (1960)
Fonte: elaboração do autor.
198
Com base nessa visão, o autor critica a abordagem da
Economia do Bem-Estar não porque esta afirma a necessidade de
ação governamental para corrigir falhas de mercado310, mas sim
pelo fato de analisar a economia com base em um modelo ideal
de funcionamento do mercado cuja correspondência com a
realidade não pode ser comprovada. Além disso, Coase reconhece
que a questão não pode ser decidida unicamente com base no
parâmetro neoclássico de maximização do bem-estar em razão do
aumento da produção, mas sim em uma visão ampla das
necessidades humanas – o autor chega a propor que a questão
não é meramente econômica, mas também uma questão estética e
moral.311
310 A posição de Coase é geralmente tendente a criticar a ação governamental. O autor, contudo, é bem cauteloso ao fazê-lo, exigindo que haja uma efetiva ponderação dos custos envolvidos na alocação de recursos por mercados e por firmas, e que esses custos sejam comparados com arranjos institucionais alternativos: “All solutions have costs and there is no reason to suppose that government regulation is called forsimply because the problem is not well handled by the market or the firm. Satisfactory views on policy can only come from a patient study of how, in practice, the market, firms and governments handle the problem of harmful effects. Economists need to study the work of the broker in bringing parties together, the effectiveness of restrictive covenants, the problems of the large-scale real-estate development company, the operation of Government and other zoning and regulating activities. It is my belief that economists, and policy-makers generally, have tended to over-estimate the advantages which come from governmental regulation. But this belief, even if justified, does not do more than suggest that government regulation should be curtailed. It does not tell us where the boundary line should be drawn.” (COASE, 1960, p. 18). 311 As conclusões expostas em The Problem of Social Cost tanto reforçam esses argumentos, como sintetizam a mudança de abordagem que Coase propõe para a Economia: “In this article, the analysis has been confined, as is usual in this part of economics, to comparisons of the value of production, as measured by the market. But it is, of course, desirable that the choice between different social arrangements for the solution of economic problems should be carried out in broader terms than this and that the total effect of these arrangementsin all spheres of life should be taken into account. As Frank H. Knight has so often emphasized, problems of welfare economics must ultimately dissolve into a study of aesthetics and morals. A second feature of the usual treatment of the problems discussed in this article is that the analysis proceeds in terms of a comparison between a state of laissez faire and some kind of ideal world. This approach inevitably leads
199
A partir da argumentação de Coase, podemos afastar o
pressuposto de que mercados são espontaneamente gerados a
partir das relações privadas. Mercados são criações e
pressupõem pelo menos, nos parâmetros propostos por Coase, a
assunção de custos específicos para sua existência e
funcionamento. Além de afastar a pressuposição da
esponateidade dos mercados, o pensamento de Coase permite duas
outras conclusões que serão retomadas no final deste capítulo
2: i) há atividade econômica privada (não-estatal) externa a
mercados – como, por exemplo, no caso das atividades internas
às firmas -, logo, é errônea a assunção da visão paradigmática
de igualar a atividade econômica privada à atividade que
ocorre no mercado; ii) a ideia de falha de mercado é enganosa,
pois ofusca o papel das instituições econômicas alternativas a
mercados.
Assim, ao se confrontar as ideias de Coase com o que
designei acima como “visão paradigmática”, percebe-se que esta
se centra apenas no papel do direito em interferir com aquilo
que considera o funcionamento do mercado. A visão
paradigmática ignora o papel do direito na criação e
organização dos mercados, ignora que as diversas configurações
institucionais possíveis dão origem a mercados que se
estruturam e funcionam de maneiras diferentes, e especialmente
ignora que a atividade econômica não-estatal (privada) se
desenvolve não apenas em mercados, mas também em instituições
externas a mercados. Portanto, a visão paradigmática orienta o
to a looseness of thought since the nature of the alternatives being comparedis never clear. In a state of laissez faire, is there a monetary, a legal or a political system and if so, what are they? In an ideal world, would there be a monetary, a legal or a political system and if so, what would they be? The answers to all these questions are shrouded in mystery and every man is free to draw whatever conclusions he likes.” (COASE, 1960, p. 43).
200
direito a atuar apenas no funcionamento dos mercados, e ainda
assim desconsiderando o papel que as diversas configurações
institucionais produzem naquele funcionamento.
2.4. A refutação da ideia de que relações privadas se caracterizam pela escolha racional individual, segundo a Economia Comportamental (Behavioral Economics)
No que diz respeito ao funcionamento da economia em
geral, a visão paradigmática parte de outra premissa que aqui
contestaremos – a de que o mercado seria estruturado em
relações privadas caracterizadas pela escolha racional para
atender a interesses individuais. A partir da década de 1970,
essa visão passou a ser questionada por uma nova corrente
oriunda da integração do pensamento econômico com pressupostos
da Psicologia Comportamental (ou Behaviorista), e que passou a
ser denominada Behaviorismo Econômico ou Economia
Comportamental (Behavioral Economics).312 Não sem uma certa
dose de ironia, pensadores vinculados à Economia
Comportamental chamam de homo economicus o modelo de agente
racional adotado pela Economia Neoclássica.313 Ao homo
economicus, contrapõem o homem real, constrangido não apenas
por sua incapacidade de contemplar todo o espectro de
informações necessário à tomada de decisões, mas também por
312 O questionamento sistemático da premissa do agente racional, não obstante, antecede a Economia Comportamental. Destacam-se a obras dos “antigos” institucionalistas Thorstein Veblen – que critica o utilitarismo hedonista da economia neoclássica - e John Commons – que destaca o papel da ação coletiva na formação das instituições econômicas. Cf. ALBERT et. al., 2008; CHAVANCE, 2007, pp. 12-23 e 28-38. 313 Cf. THALER e SUNSTEIN, 2009, pp. 1-21; JOLLS et. al., 1998, pp. 1476-1481.
201
limitações decorrentes do modo como operam as funções
cognitivas.
2.4.1. Teoria da perspectiva (Prospect theory): uma outra visão sobre a racionalidade na tomada de decisões
Na Economia Comportamental, os trabalhos do
psicológo Amos Tversky e do economista Daniel Kahneman foram
particularmente influentes e são considerados fundacionais
daquele novo modo de enxergar as relações econômicas.314
Kahneman foi inclusive agraciado com o Prêmio Nobel de
Economia de 2002 – Tversky já havia falecido nessa data.
Kahneman e Tversky buscaram, com base no método experimental,
analisar o comportamento do ser humano de forma a contrastar
as decisões efetivamente tomadas em situações de mercado com
aquelas que o modelo de racionalidade indicava que seriam (ou
deveriam ser) tomadas.
Segundo a visão da Economia Neoclássica, as relações
econômicas (ou ao menos as de uma economia de mercado) seriam
caracterizadas pela ação de agentes individuais racionais em
busca da maximização de seus interesses. Segundo essa visão,
agentes econômicos escolhem com base na utilidade que atribuem
ao produto de suas escolhas, utilidade essa que seria passível
de mensuração em pecúnia conforme aferida em um estado final
de riqueza. Essa ideia é ainda a que prevalece na grande
maioria dos manuais de Economia e integra o que poderíamos
nomear de senso comum nos debates sobre política econômica,
tal como anota Dan Ariely:
314 Cf. TETLOCK e MELLERS, 2002, p. 94; THALER e SUNSTEIN, 2009, p. 25; CAMERER, 1999, p. 10575.
202
A Economia dominante pressupõe que somos racionais – que
sabemos toda a informação necessária para fundamentar
nossas decisões, que podemos calcular o valor das
diferentes opções que se colocam à nossa frente, e que
nós não somos limitados cognitivamente para sopesar as
ramificações de cada escolha potencial.
O resultado é que se presume que façamos decisões
lógicas e sensatas. E mesmo que tomemos uma decisão
errada de tempos em tempos, a perspectiva da Economia
dominante sugere que iremos rapidamente aprender com
nossos erros por nós mesmos ou com a ajuda das “forças
de mercado”. Com base nessas pressuposições, economistas
tiram conclusões pretensiosas sobre tudo, desde
tendências de compras até o direito e políticas
públicas.315
Como ilustração, podemos afirmar que, segundo a
Economia Neoclássica, se Francisco comprou uma maçã por R$ 1,
é porque atribui a essa maçã utilidade maior ou igual às
outras coisas que podem ser compradas por R$ 1. Dado que o R$
1 empregado para comprar a maçã não compraria nada mais útil,
Francisco terá, em resultado da escolha, maximizado sua
riqueza. Ou seja, é o estado final de riqueza (medido pela
maior utilidade da maçã frente às outras coisas que poderiam
ser compradas pelo R$ 1 gasto por Francisco) que justifica a
decisão de Francisco de comprar a maçã. O modelo de
racionalidade, desse modo, se traduz em um modelo segundo o
315 “Standard economics assumes that we are rational – that we know all the pertinent information about our decisions, that we can calculate the value of the different options we face, and that we are cognitively unhindered in weighing the ramifications of each potential choice. /§/ The result is that we are presumed to be making logical and sensible decisions. And even if we make a wrong decision from time to time, the standard economics perspective suggests that we will quickly learn from our mistakes either on our own or with the help of “market forces”. On the basis of these assumptions, economists draw far-reaching conclusions about everything from shopping trends to law to public policy.” (ARIELY, 2013, posição 4268 – tradução livre.)
203
qual agentes econômicos irão tomar decisões que façam com que
os recursos de que dispõem tenham a melhor destinação
possível. Ou, como sintetiza Richard Posner, racionalidade é
escolher os melhores meios para alcançar os fins daquele que
escolhe.316
Os experimentos de Kahneman e Tversky, todavia,
apontaram que de forma sistemática as escolhas em situações de
mercados diferiam da lógica de maximização de utilidade. A
ideia de que escolhas tem por base a utilidade daquilo que é
escolhido, Kahneman a chama de erro de Bernoulli – em
referência ao cientista suíço Daniel Bernoulli, que a propôs
em 1738, antes mesmo dos marginalistas Jevons, Menger e
Walras.317 Bernoulli estudou a tomada de decisões em que há
riscos - as apostas.
O estudo da tomada de decisões em apostas é
utilizado por estudiosos do processo de tomada de decisões
para avaliar os processos cognitivos envolvidos na tomada de
decisões de mercado, mais complexas. Decisões de mercado, tais
como apostas, sempre envolvem risco. Mesmo transações simples
como a compra e venda da maçã feita por Francisco, da
ilustração que usamos acima, envolvem risco: a maçã comprada
por Francisco pode estar estragada, por exemplo, ou ser menos
saborosa do que Francisco antecipara. Diante da presença do
risco, no estudo tomada de decisões em ambiente de mercado, é
ainda usual o estudo de situações simplificadas de apostas
(gambles), tal como feito por Bernoulli em 1738.
316 Parafraseamos de: “...choosing the best means to the chooser's ends.” (POSNER, 1998, p. 1551). 317 Cf. KAHNEMAN, 2003, pp. 1455-1458; KAHNEMAN, 2011, posição 4577 e ss.
204
Antes de Bernoulli, matemáticos assumiam que apostas
seriam racionais quando feitas segundo o valor esperado, que é
igual ao resultado favorável ponderado pela probabilidade de
êxito. Ou seja, em uma aposta cujo resultado favorável é a
obtenção de $100 e a probabilidade de êxito é 70%, o valor
esperado é $70 (isto é, 70% de $100).318 Kahneman usa outro
exemplo, ligeiramente mais complexo: em uma aposta em que há
20% de chance de obter $10 e 80% de chance de obter $100, o
valor esperado é $82 (20% de $10 + 80% de $100). Segundo a
visão anterior a Bernoulli, pessoas prefeririam realizar essa
aposta do que receber $80, pois o valor esperado ($82) seria
maior. Mas Bernoulli ponderou que apostas não são feitas
assim: as pessoas preferem a certeza de receber $80 à correr o
risco, ainda que probabilisticamente o risco valesse a pena.319
Bernoulli então propôs que as escolhas seriam
determinadas não pelo valor esperado, mas pelo valor
psicológico – que, em essência, corresponde ao conceito de
utilidade adotado pela Economia Neoclássica (ver item 2.2
acima). A essa agrega-se outra ideia, a de que um mesmo valor
em pecúnia (por exemplo, R$100) é mais útil para uma pessoa
que tem menos riqueza (por exemplo, R$10.000) do que para
outra mais rica (cujo patrimônio seja, por exemplo,
R$100.000). No jargão da Economia Neoclássica, essa noção é
chamada utilidade marginal decrescente da riqueza. Um exemplo
hipotético com a representação matemática dessa ideia consta
da tabela abaixo:
318 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 4646 e ss. 319 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 4653.
205
Tabela 2 - Utilidade marginal em razão da riqueza (exemplo hipotético)
Fonte: KAHNEMAN, 2011, posição 4662 – tradução livre.
Nesse exemplo, unidades de utilidade é uma
representação abstrata do valor psicológico que o dinheiro
confere ao seu possuidor, e sua utilidade é tão somente
heurística – para representar a utilidade marginal decrescente
da riqueza. Assim, no exemplo, a utilidade de um milhão é
igual a 10 unidades, e a utilidade de dois milhões é de 30
unidades. A utilidade marginal do segundo milhão frente ao
primeiro é de 20 unidades. Lembremos que utilidade marginal é
a utilidade de uma unidade adicional, portanto a utilidade
marginal do segundo milhão é igual à utilidade de dois milhões
(30 unidades de utilidade) menos a utilidade de um milhão (10
unidades de utilidade). O exemplo reflete a ideia de que a
utilidade marginal é decrescente – a do terceiro milhão é de
18 unidades, a do quarto milhão é doze unidades, até chegar à
do décimo milhão, que é de 4 unidades. Nessas condições,
consideremos a seguinte aposta: chances iguais de obter 1
milhão ou 7 milhões, ou ganhar 4 milhões com certeza. Em
termos probabilísticos, as duas opções tem igual valor
esperado (50% de 1 milhão + 50% de 7 milhões = 4 milhões).
Porém ao se considerar as utilidades esperadas, a conta se
modifica. A primeira opção tem valor de 47 unidades de
utilidade (50% de 10 unidades de utilidade + 50% de 84
unidades de utilidade). Já a segunda opção, de receber sem
risco os 4 milhões, tem 60 unidades de utilidade. Por isso, a
segunda opção é mais atraente, ainda que probabilisticamente
ambas opções sejam iguais. A conclusão de Bernoulli foi que,
em condições de utilidade marginal decrescente, o tomador de
decisões será avesso ao risco. Bernoulli, então, usou essa
Riqueza
(em milhões) 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10
Unidades de
utilidade 10 30 48 60 70 78 84 90 96 100
206
ideia para explicar o porquê de mercadores comprarem seguros
para mercadorias embarcadas por prêmios superiores ao risco
probabilístico de perda daquelas mercadorias.320
Passados 300 anos do ensaio de Bernoulli, a Economia
Neoclássica continua utilizando as mesmas premissas de
racionalidade e utilidade marginal decrescenta. Todavia,
segundo Daniel Kahneman, o erro de Bernoulli – e da Economia
Neoclássica - consiste em ignorar o fato de que decisões são
tomadas a partir de pontos de referência. A esse respeito,
Kahneman faz as seguintes considerações:
A longevidade da teoria [de Bernoulli] é tanto mais
impressionante porque é seriamente defeituosa. Os erros
de uma teoria são raramente encontrados naquilo em que
ela afirma explicitamente; eles se escondem naquilo que
ela ignora ou assume tacitamente. Por exemplo, considere
os seguintes cenários:
Hoje Jack e Jill têm cada um riqueza de 5
milhões.
Ontem, Jack tinha um milhão e Jill tinha 9
milhões.
Estarão eles igualmente felizes? (Têm eles a
mesma utilidade?)
A teoria de Bernoulli assume que a utilidade de sua
riqueza é o que faz as pessoas mais ou menos felizes.
Jack e Jill têm a mesma riqueza, e a teoria por
conseguinte afirma que eles deveria estar igualmente
felizes, mas você não precisa de um diploma em
Psicologia para saber que hoje Jack está contente e Jill
pesarosa.321
320 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 4678. 321 “The longevity of the theory is all the more remarkable because it is seriously flawed. The errors of a theory are rarely found in what it
207
Ao invés de considerar que escolhas são feitas de
acordo com a utilidade imputada àquilo que é escolhido,
Kahneman e Tversky propuseram que escolhas são tomadas a
partir da percepção de perdas e ganhos. Esse novo modelo de
tomada de decisões foi por aqueles autores chamado de teoria
da perspectiva. A teoria da perspectiva resultou de diversos
experimentos executados por Kahneman e Tversky na década de
1970, em que se confrontaram as opções que o modelo de
racionalidade do homo economicus (o modelo de Bernoulli e da
Economia Neoclássica) previa como racionais, com as opções
efetivamente exercidas por pessoas frente a escolhas que
envolviam riscos. A partir dos resultados, Kahneman e Tversky
não apenas comprovaram que pessoas escolhem com base em ganhos
e perdas a partir de pontos de referência (e não com base na
utilidade absoluta daquilo que é escolhido), como também
comprovaram que os pesos na tomada de decisão não são as
probabilidades (em termos estatísticos) de ocorrência de
eventos favoráveis ou desfavoráveis. Ao revés, como veremos
adiante, pessoas são extremamente limitadas na sua capacidade
de raciocinar estatisticamente (e o uso de probabilidades é um
raciocínio estatístico).
Ao invés de probabilidades, Kahneman e Tversky
identificaram o que denominaram de efeito possibilidade e
efeito certeza.322 O efeito possibilidade se dá pelo fato de
asserts explicitly; they hide in what it ignores or tacitly assumes. For an example, take the following scenarios: /§/ Today Jack and Jill each have a wealth of 5 million. Yesterday, Jack had 1 million and Jill had 9 million. Are they equally happy? (Do they have the same utility?)/§/ Bernoulli’s theory assumes that the utility of their wealth is what makes people more or less happy. Jack and Jill have the same wealth, and the theory therefore asserts that they should be equally happy, but you do not need a degree in psychology to know that today Jack is elated and Jill despondent.” (KAHNEMAN, 2011, posição 4686 – tradução livre.) 322 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 5313 e ss.
208
que pessoas tendem a dar peso excessivo a eventos com baixa
probabilidade de ocorrência. O efeito certeza, por outro lado,
se dá pelo fato de que pessoas tendem a dar pouco peso a
eventos com alta probabilidade de ocorrência. Esses dois
efeitos, em especial, são marcadamente perceptíveis quando o
tomador de decisões se defronta com a possibilidade de perdas
(em relação ao seu ponto de referência). Esses dois efeitos
somados ensejam o padrão quaternário (fourfold pattern)323 da
teoria da perspectiva, representado no quadro abaixo:
Tabela 3 - Padrão quaternário da teoria da perspectiva
GANHOS PERDAS
ALTA PROBABILIDADE
Efeito certeza
95% de chances de ganhar $10.000
Medo de desapontamento
AVERSÃO AO RISCO
Aceita acordo desfavorável
95% de chances de perder $10.000
Esperança de evitar perda
ATRAÇÃO PELO RISCO
Rejeita acordo favorável
BAIXA PROBABILIDADE
Efeito possibilidade
5% de chances de ganhar $10.000
Esperança de ganhos vultosos
ATRAÇÃO PELO RISCO
Rejeita acordo favorável
5% de chances de perder $10.000
Medo de uma perda grande
AVERSÃO AO RISCO
Aceita acordo desfavorável
Fonte: KAHNEMAN, 2011, posição 5440 – tradução livre.
Na Tabela 3 acima, a primeira linha contém uma
ilustração de diferentes cenários de análise (95% de chances
de perder ou ganhar $10.000; 5% de chances de perder ou ganhar
$10.000). A segunda linha contém a explicação psicológica (em
termos emocionais) para o comportamento verificado em cada um
dos cenários. A terceira linha contém os padrões de
comportamento propriamente ditos – atração pelo risco, ou
aversão ao risco. A quarta linha contém uma previsão do
comportamento do tomador de decisões frente a uma proposta
probabilisticamente favorável ou desfavorável. A partir do
323 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 5305 e ss.
209
padrão quaternário relatado na Tabela 3, Kahneman e Tversky
identificaram outra característica da tomada de decisões em
situações de risco: pessoas são aversas a perdas mais do que
são avessas a riscos. A aversão a perdas, ao invés de aversão
a risco, induz à conclusão de que pessoas tendem a manter o
status quo – tomadores de decisão subavaliam os ganhos
decorrentes de uma mudança de posição, e superavaliam os
riscos decorrentes de uma mudança de posição.
2.4.2. O efeito dotação (endowment effect): invalidação do teorema de Coase a partir da teoria da perspectiva
Posteriormente, o economista Richard Thaler utilizou
a teoria da perspectiva e a aversão a perdas para explicar o
que denominou de efeito dotação (endowment effect) no
comportamento de agentes econômicos. A explicação do efeito
dotação por meio da teoria da perspectiva é reputada por
Kahneman como o marco inicial da abordagem característica da
Economia Comportamental.324 O efeito dotação se dá pelo fato de
pessoas darem mais valor a um bem quando o possuem para uso
próprio (e não para revenda, como por exemplo o estoque de uma
empresa). Isso significa que, nesses casos, a disposição para
pagar (willingness to pay – WTP) por um bem é menor do que
disposição para vender (willingness to accept – WTA) esse
mesmo bem. Thaler percebeu o efeito dotação quando se deu
conta que um de seus professores, confesso amante de vinhos,
se dispunha a comprar vinhos em leilões por não mais do que
U$35 dólares à época, mas, depois de comprado, se recusava a
vender o mesmo vinho por não menos do que U$100. O efeito
dotação não apenas contraria a ideia de que a utilidade de
324 KAHNEMAN, 2011, posição 4995.
210
algo determina o seu valor para o comprador, mas também refuta
o teorema de Coase.
Uma das decorrências do teorema de Coase é que,
ausentes custos de transação, a alocação de recursos escassos
se daria de forma independente da atribuição de direitos de
propriedade. Por exemplo, segundo o teorema de Coase: se
Francisco dá mais valor à maçã do que Maria, Francisco sempre
terminará com a maçã, independentemente do fato de se atribuir
a propriedade da maçã inicialmente a Francisco ou a Maria,
salvo se houver custos de transação superiores à diferença da
utilidade atribuída à maçã por Francisco e Maria. Isso porque
se a maçã for de propriedade de Francisco, ele não abrirá mão
dela. Se a maçã for de propriedade de Maria, Francisco estará
disposto a pagar mais pela maçã do que o valor que Maria
atribui à ela, o que fará com que Maria venda a maçã para
Francisco. Finalmente, nesse último caso, Maria não venderá a
maçã se, para tanto, for necessário contratar um advogado que
cobre pelo serviço valor tal que, somado ao preço que Maria
estaria disposta a receber pela maçã, seja superior ao maior
valor que Francisco estaria disposto a pagar pela maçã. Como
visto no item 2.3 supra, Coase formulou o seu teorema como uma
contraprova ao modelo adotado pela Economia Neoclássica para
avaliar o custo social de transações econômicas. A existência
de custos sociais, não resolvidos por transações no mercado,
comprovava para Coase a inadequação do modelo neoclássico, e
lhe serviu de mote para propor que mercados são instituições325
325 Com efeito, Coase afirma: “Markets are institutions that exist to facilitate exchange, that is, they exist in order to reduce the cost of carrying out exchange transactions. In an economic theory which assumes that transaction costs are nonexistent, markets have no function to perform, and it seems perfectly reasonable to develop the theory of exchange by an elaborate analysis of individuals exchanging nuts for apples
211
e que sua adoção implica custos específicos, ignorados pela
Economia Neoclássica, e que havia instituições alternativas
que deveriam ser estudadas pela Economia (um exemplo são as
firmas, estudadas por Coase).
A confrontação do efeito dotação com o teorema de
Coase, de forma similar, também serviu de comprovação para a
inadequação do modelo neoclássico – porém não para afirmar a
existência de instituições alternativas a mercados, mas para
afirmar que os próprios mercados não funcionam de acordo com a
teoria neoclássica, mesmo quando se desconsideram os custos de
transação identificados por Coase. Esta foi a conclusão de um
dos estudos de Economia Comportamental mais citados, feito por
Thaler e Kahneman, juntamente com o economista canadense Jack
Knetsch.326 Nesse estudo, grupos de participantes foram
submetidos a simulação de mercados, em que os bens a serem
comercializados eram distribuídos aleatoriamente a apenas
parte do grupo - criando, assim, uma oferta e uma demanda
potenciais. Inicialmente, os mercados foram simulados com
fichas (tokens) – que não possuem utilidade outra que não a de
serem passíveis de troca por dinheiro, conforme a proposta do
experimento. Posteriormente, os mesmos grupos foram submetidos
a simulações de mercados com canecas de café, canetas e barras
de chocolate – bens que poderiam ser vendidos por dinheiro,
mas que também possuem utilidade para seu possuidor. Nas
simulações com fichas, os participantes se comportaram tal
on the edge of the forest or some similar fanciful example. This analysis certainly shows why there is a gain from trade, but it fails to deal with the factors which determine how much trade there is or what goods are traded. And when economists do speak of market structure, it has nothing to do with the market as an institution.” (COASE, 1988, p. 7). 326 KAHNEMAN et. al., 1990. Para um relato do encontro entre Kahneman, Thaler e Knetsch, e implicações do estudo na Economia Comportamental, ver: KAHNEMAN, 2011, posição 5026 e ss.
212
como previsto pelo modelo do homo economicus, e as fichas, tal
como previsto pelo teorema de Coase, eram ao final alocadas
para aqueles que lhes davam maior utilidade, independente da
alocação inicial de sua propriedade. Todavia, nas simulações
com canecas, canetas e barras de chocolate, o mero fato de
terem recebido inicialmente a propriedade fazia com que os
participantes passassem a ter menor disposição para vender, e
os preços cobrados por quem possuía canecas ou barras de
chocolate era substancialmente menor do que a disposição para
pagar de quem não era possuidor.
O efeito dotação comprova dois aspectos centrais da
teoria da perspectiva. O primeiro é a importância dos pontos
de referência. O fato de possuir ou não um bem faz com que se
mude a disposição para vender ou comprar esse bem,
independente da imputação abstrata e inerte de utilidade
pressuposta pelo modelo neoclássico. O segundo aspecto é a
aversão a perdas: o efeito dotação se dá em decorrência dessa
aversão. Como relatam os autores do citado artigo, essa
conclusão é relevante para a Economia, pois a aversão a perdas
impacta o benefício que pode ser extraído do comércio:
A existência de efeitos dotação reduz os ganhos do
comércio. Em comparação com um mundo em que preferências
são independentes da posse, a existência da aversão ao
risco produz uma inércia na economia, pois vendedores em
potencial são mais relutantes em vender do que
convencionalmente se assume.327
327 “The existence of endowment effects reduces the gains from trade.In comparison with a world in which preferences are independent of endowment, the existence of loss aversion produces an inertia in the economy because potential traders are more reluctant to trade than is conventionally assumed.” (KAHNEMAN et. al., 1990, p. 1344 – tradução livre). Essa conclusão é importante para os fins desta tese, na medida em que se tenha
213
2.4.3. Os dois sistemas cognitivos e a influência do raciocínio intuitivo na tomada de decisões
Em obras recentes, autores como Kahneman328 e
Thaler329 passaram a utilizar a divisão de duas funções
cognitivas feita por estudiosos de Psicologia Cognitiva e
Social como suporte não apenas para a teoria da perspectiva,
mas para a Economia Comportamental como um todo. Essa divisão
entre funções cognitivas é utilizada para fundamentar um
modelo de racionalidade humana que possui diferenças
significativas daquele caracterizado como homo economicus. As
duas funções cognitivas identificadas por esse outro modelo de
racionalidade são denominadas Sistema 1 (ou Sistema
Automático) e Sistema 2 (ou Sistema Reflexivo). As
características dos dois sistemas estão sintetizadas na Tabela
2 abaixo.
Tabela 4 - Dois sistemas cognitivos
Sistema 1
(Sistema Automático) Sistema 2
(Sistema Reflexivo)
Descrição
Opera rápida e automaticamente, com pouco ou nenhum esforço, independente do controle voluntário e da alocação de atenção.
Aloca atenção a atividades mentais que demandam esforço, incluindo computações complexas, e cuja operação é interrompida quando a atenção é desviada.
Características • Rápido • Parelelo (assume várias
atividades simultâneas)
• Devagar • Serial (assume uma atividade
de cada vez)
em mente que os pontos de referência para as transações em mercados decorrem da configuração institucional desses mercados, e que o direito possui papel central na definição dessa configuração institucional. Em outras palavras, o direito não apenas atua na definição das fronteiras entre instituições de mercado e instituições extramercado (como sugerimos no item anterior), como também atua nos parâmetros que determinam o funcionamento de instituições de mercado. Essa ideia será explorada de forma pormenorizada abaixo, no item final deste capítulo. 328 Cf. KAHNEMAN, 2011 e 2003. 329 Cf. THALER e SUNSTEIN, 2009.
214
• Involuntário • Não demanda esforço • Associativo • Inconsciente • Emocional
• Voluntário • Demanda esforço • Governado por regras • Consciente • Neutro
Exemplos
• Detectar que um objeto está mais distante do que outro
• Orientar-se na direção de um barulho abrupto
• Fazer uma expressão facial de repulsa ao ver uma figura horrível
• Detectar hostilidade em uma voz
• Completar a expressão “pão com ...”
• Dirigir um carro em uma rua vazia
• Responder à equação “2 + 2 = ?”
• Ler palavras em outdoors de propaganda
• (Se você for um mestre enxadrista) resolver o próximo movimento em um jogo de xadrez
• Compreender frases simples
• Procurar por um objeto específico
• Buscar na memória um som particularmente surpreendente
• Monitorar a adequação de seu comportamento em uma situação social
• Focar na voz de uma pessoa em um ambiente tumultuado e barulhento
• Lembrar uma sequência aleatória de números (e.g, seu número de telefone)
• Estacionar em uma vaga apertada
• Comparar o preço de duas máquinas de lavar
• Preencher o formulário do imposto de renda
• Aprender a jogar xadrez • Julgar a validade de um
argumento lógico complexo
Fonte: elaboração do autor a partir de Kahneman (2011, posição 321; 2003, p. 1451) e de Thaler e Sunstein (2008, p. 22).
Segundo Kahneman, esses dois sistemas cognitivos
correspondem às noções cotidianas de intuição (Sistema 1) e
raciocínio (Sistema 2).330 Nesse sentido, a ideia de
racionalidade da Economia Neoclássica corresponde ao Sistema
2. Diversos estudos empíricos, porém, afirmam que o Sistema 1
é o dominante na maior parte das escolhas feitas no dia-a-
dia.331 Segundo Daniel Kahneman, nossas funções cognitivas
seguem a lei do menor esforço, de modo que o Sistema 1 – que
não exige esforço, nem autocontrole - assume rotineiramente a
tomada de decisões. O Sistema 2 assume quando, por orientação
da nossa vontade, decisões complexas são exigidas. Porém,
mesmo nesses casos, o Sistema 2 em geral opera com base nas
impressões formadas pelo Sistema 1, como afirma Kahneman:
330 KAHNEMAN, 2003, p. 1450. 331 Cf. KAHNEMAN, 2003, pp. 1450-1453, e 2011, passim; THALER e SUNSTEIN, 2009, pp. 21-25; SUNSTEIN, 2013, passim.
215
Quando tudo corre bem, o que é a maior parte do tempo, o
Sistema 2 adota as sugestões do Sistema 1 com pouca ou
nenhuma modificação. Você geralmente acredita em suas
impressões e age com base em seus desejos, e isso é bom
- usualmente.332
Portanto, ao contrário do modelo do homo economicus,
a tomada de decisões econômicas ordinariamente é pautada pelo
raciocínio intuitivo – o Sistema 1. Além disso, mesmo quando
confrontado com uma questão difícil, o ser humano ainda assim
ordinariamente não abandona as impressões formuladas pelo
Sistema 1. Trata-se da dimensão da acessibilidade
(acessibility dimension), que diz respeito à facilidade com
que pensamentos são invocados pela mente. Pensamentos
intuitivos, do Sistema 1, são facilmente acessíveis, pois vêm
à mente espontaneamente e sem esforço. Em verdade, é
impossível não acessá-los, uma vez que o Sistema 1 opera de
forma involuntária. Pensamentos reflexivos, do Sistema 2,
precisam ser evocados e requerem esforço específico para
tanto. A maior acessibilidade do Sistema 1 faz com que
impressões intuitivas sejam dominantes do pensamento
cotidiano. O Sistema 1 é rápido ao alcançar conclusões a
partir de pouca informação disponível, mas essas conclusões
são baseadas não na avaliação probabilística da realidade, mas
na capacidade de se extrair coerência dos dados disponíveis –
ainda que esses dados sejam escassos ou resultado de falsas
impressões. Além disso, a dúvida é uma manifestação do Sistema
2. Em resultado, o Sistema 1 nos provê rotineiramente com
conclusões baseadas em informações insuficientes, mas não nos
332 “When all goes smoothly, which is most of the time, System 2 adopts the suggestions of System 1 with little or no modification. You generally believe your impressions and act on your desires, and that is fine – usually.” (KAHNEMAN, 2011, posição 394 – tradução livre.)
216
informa que há insuficiência de informações. A figura abaixo
fornece um exemplo em que a acessibilidade influencia a
percepção:
Figura 7 - Exemplo visual do efeito do contexto na acessibilidade
Fonte: Kahneman (2003, p. 1454)
O símbolo da coluna do meio é ambíguo: pode ser
interpretado como a letra “B” ou como o número “13”. Porém, ao
se colocar o símbolo em um contexto de letras, a ambiguidade
desaparece e não apenas vemos o símbolo como a letra “B”, como
não conseguimos não ver o símbolo como a letra “B” (isto é,
não conseguimos desligar a associação feita pelo Sistema 1).
Por influência do contexto, assumimos naturalmente que o
símbolo ou é a letra “B”, ou o número “13”. A ambiguidade
somente se verificaria por um esforço específico, em que o
Sistema 2 é chamado a se manifestar. Isso ocorre, por exemplo,
no conhecido exercício cognitivo em que se pede a uma pessoa
para enunciar as cores em palavras que denominam cores, porém
escritas em cores diversas daquelas de seu significado (e.g.,
exibe-se a palavra “verde” escrita na cor azul). Mas ainda
assim, a conclusão do Sistema 2 é difícil e se coloca em
conflito com a conclusão do Sistema 1. Por vezes, a diferença
de acessibilidade entre pensamentos do Sistema 1 e do Sistema
2 gera erros cognitivos, isto é, faz com que mesmo quando atue
o Sistema 2, haja uma compreensão errônea da realidade.
team A” convey the same information, but be-cause each sentence draws attention to its gram-matical subject, they make different thoughtsaccessible. Accessibility also reèects temporarystates of associative activation. For example, themention of a familiar social category temporarilyincreases the accessibility of the traits associatedwith the category stereotype, as indicated by alowered threshold for recognizing behaviors asindications of these traits (Susan T. Fiske, 1998).
As designers of billboards know well, moti-vationally relevant and emotionally arousingstimuli spontaneously attract attention. Bill-boards are useful to advertisers because payingattention to an object makes all its featuresaccessible—including those that are not linkedto its primary motivational or emotional signif-icance. The “hot” states of high emotional andmotivational arousal greatly increase the acces-sibility of thoughts that relate to the immediateemotion and to the current needs, and reduce theaccessibility of other thoughts (George Loe-wenstein, 1996, 2000; Jon Elster, 1998). Aneffect of emotional signiécance on accessibilitywas demonstrated in an important study by Yu-val Rottenstreich and Christopher K. Hsee(2001), which showed that people are less sen-sitive to variations of probability when valuingchances to receive emotionally loaded out-comes (kisses and electric shocks) than whenthe outcomes are monetary.
Figure 4 (adapted from Jerome S. Bruner andA. Leigh Minturn, 1955) includes a standarddemonstration of the effect of context on acces-sibility. An ambiguous stimulus that is per-ceived as a letter within a context of letters is
instead seen as a number when placed within acontext of numbers. More generally, expecta-tions (conscious or not) are a powerful determi-nant of accessibility.
Another important point that Figure 4 illus-trates is the complete suppression of ambiguityin conscious perception. This aspect of the dem-onstration is spoiled for the reader who sees thetwo versions in close proximity, but when thetwo lines are shown separately, observers willnot spontaneously become aware of the alterna-tive interpretation. They “see” the interpretationof the object that is the most likely in its con-text, but have no subjective indication that itcould be seen differently. Ambiguity and uncer-tainty are suppressed in intuitive judgment aswell as in perception. Doubt is a phenomenon ofSystem 2, an awareness of one’s ability to thinkincompatible thoughts about the same thing.The central énding in studies of intuitive deci-sions, as described by Klein (1998), is thatexperienced decision makers working underpressure (e.g., éreéghting company captains)rarely need to choose between options because,in most cases, only a single option comes to mind.
The compound cognitive system that hasbeen sketched here is an impressive computa-tional device. It is well-adapted to its environ-ment and has two ways of adjusting to changes:a short-term process that is èexible and effort-ful, and a long-term process of skill acquisitionthat eventually produces highly effective re-sponses at low cost. The system tends to seewhat it expects to see—a form of Bayesianadaptation—and it is also capable of respondingeffectively to surprises. However, this marvel-ous creation differs in important respects fromanother paragon, the rational agent assumed ineconomic theory. Some of these differences areexplored in the following sections, which reviewseveral familiar results as effects of accessibility.Possible implications for theorizing in behavioraleconomics are explored along the way.
III. Changes or States: Prospect Theory
A general property of perceptual systems isthat they are designed to enhance the accessi-bility of changes and differences. Perception isreference-dependent: the perceived attributesof a focal stimulus reèect the contrast betweenthat stimulus and a context of prior and con-current stimuli. This section will show that
FIGURE 4. AN EFFECT OF CONTEXT ON ACCESSIBILITY
1454 THE AMERICAN ECONOMIC REVIEW DECEMBER 2003
217
Há uma linha de pesquisa da Economia Comportamental
dedicada a identificar os erros cognitivos e confrontá-los com
o modelo do homo economicus. Essa linha é conhecida como
heurísticas e vieses (heuristics and biases), e seu marco
inicial é o artigo de Kahneman e Tversky chamado Judgement
Under Uncertainty: Heuristics and Biases333, publicado
originalmente na Revista Science em 1974. Heurística é
definida por Kahneman como procedimento simplificado que ajuda
a encontrar respostas adequadas, ainda que frequentemente
imperfeitas, para questões difíceis.334 A existência de
heurísticas foi, originalmente Tversky e Kahneman explicaram
os vieses – as diferenças sistemáticas que os autores
encontraram entre as decisões que pessoas tomavam em situações
de incerteza, e aquilo que era previsto pelo modelo de
racionalidade do homo economicus.335
Daniel Kahneman, posteriormente, revisitou seus
estudos com Tversky sob o referencial da acessibilidade
cognitiva para criar um novo modelo de tomada de decisões.
Esse novo modelo não se restringe a decisões em situações de
incerteza, como fazia o estudo anterior de Tversky e Kahneman
sobre heurísticas e vieses, e é chamado de substituição de
atributos (attribute substitution). A substituição de
atributos deriva da acessibilidade: diz-se que um julgamento é
mediado por uma heurística quando um atributo que é objeto
desse julgamento (atributo alvo - target attribute) é
substituído por uma propriedade daquele objeto (atributo
333 TVERSKY e KAHNEMAN, 2011. 334 Parafraseamos de: “The technical definition of heuristic is a simple procedure that helps find adequate, though often imperfect, answers to difficult questions.” (KAHNEMAN, 2011, posição 1679.) 335 Para uma síntese dos principais vieses e equivalentes heurísticas originalmente encontrados por Tversky e Kahneman, ver THALER e SUNSTEIN, 2009, pp. 19-42.
218
heurístico - heuristic attribute) que vem mais facilmente à
mente.336 Em outras palavras, o atributo heurístico é mais
acessível do que o atributo alvo. A interação entre Sistema 1
e Sistema 2 resulta em substituição de atributos na forma do
que Kahneman denomina heurística intuitiva (intuitive
heuristics):
Esta é a essência da heurística intuitiva: quando
confrontados com uma questão difícil, ao invés de
respondê-la, nós frequentemente respondemos uma questão
mais fácil, sem notar que estamos substituindo uma
questão por outra.337
Uma das ilustrações que Kahneman expõe é a decisão
de um investidor conhecido seu em comprar ações da Ford.
Perguntado por que havia decidido investir naquela montadora,
o investidor justificou dizendo que havia ido a uma
conferência automobilística e gostado dos novos modelos de
carros apresentados pela Ford. Confrontado com a questão
difícil – devo investir na Ford? -, o investidor a substituiu
pela questão mais fácil – gosto dos carros da Ford?338 A
heurística intuitiva não é uma opção, mas uma consequência do
controle impreciso que possuímos sobre nossa capacidade
cognitiva.339 Em decorência, os julgamentos que as pessoas
fazem, as ações que tomam, e os erros que cometem, afirma
Kahneman, dependem do monitoramento e da função corretiva do
Sistema 2, bem como das impressões e tendências geradas pelo
Sistema 1.340 E no que diz respeito ao monitoramento e função
336 KAHNEMAN, 2003, p. 1460. 337 KAHNEMAN, 2011, posição 257. 338 O exemplo é relatado em KAHNEMAN, 2011, posição 237 e ss. 339 KAHNEMAN, 2011, posição 1687. 340 Parafraseamos a partir do seguinte trecho: “The judgments that people express, the actions they take, and the mistakes they commit depend on the monitoring and corrective functions of System 2, as well as on the
219
corretivas do Sistema 2, este no mais das vezes é apologético,
e não crítico, acerca das conclusões do Sistema 1.341 Em
síntese:
Quando confrontado com um problema – escolher um
movimento no xadrez, ou decidir por investir em uma ação
– o maquinário do pensamento intuitivo faz o melhor que
pode. Se uma pessoa possui expertise, ela irá reconhecer
a situação, e a solução intuitiva que lhe virá à mente
será provavelmente correta. Isto é o que ocorre quando
um mestre enxadrista olha uma posição complexa [em um
jogo de xadrez]: os poucos movimentos que lhe ocorrem de
imediato são todos fortes. Quando a questão é difícil e
uma solução hábil não está disponível, a intuição ainda
dá uma tacada: uma resposta pode vir à tona rapidamente,
mas essa não será uma resposta à pergunta original.342
A influência do pensamento intuitivo faz com que a
Economia Comportamental negue o modelo de racionalidade
adotado pela Economia Neoclássica. Como afirma Kahneman, o
agente racional da teoria econômica poderia ser descrito como
possuidor de um único sistema cognitivo, que possuiria a
habilidade lógica de um Sistema 2 perfeito e os baixos custos
de computação do Sistema 1.343 Pesquisas empíricas, porém,
impressions and tendencies generated by System 1.” (KAHNEMAN, 2003, p. 1467.) 341 Cf. KAHNEMAN, 2011, posição 1779. 342 “When confronted with a problem – choosing a chess move or deciding whether to invest in a stock – the machinery of intuitive thought does the best it can. If the individual has relevant expertise, she will recognize the situation, and the intuitive solution that comes to her mind is likely to be correct. This is what happens when a chess master looks at a complex position: the few moves that immediatly occur to him are all strong. When the question is difficult and a skilled solution is not available, intuition still has a shot: an answer may come to mind quickly – but it is not an answer to the original question.” (KAHNEMAN, 2011, posição 252 – tradução livre.) 343 Parafraseamos de: “The rational agent of economic theory would be described, in the language of the present treatment, as endowed with a
220
relatam diversas limitações da capacidade do Sistema 2 de
sobrepujar as tendências e vieses impostos pelo Sistema 1.
Fatores como pressão por escassez de tempo, envolvimento em
múltiplas tarefas, (bom ou mau) humor, excitação erótica,
entre outros, impedem ou suprimem por completo a capacidade de
atuação do Sistema 2, e fazem com que agentes econômicos não
apenas desviem radicalmente do comportamento previsto pelo
modelo neoclássico de racionalidade, como com que esses
desvios sejam sistemáticos e previsíveis.344
2.4.4. Contraposição da Economia Comportamental à Economia Neoclássica
A recorrência e a previsibilidade dos desvios frente
ao comportamento suposto pelo modelo do homo economicus são
especialmente relevantes como contraponto à influente defesa
de Milton Friedman da escola neoclássica. Segundo esse
economista – que também foi agraciado com um Nobel de Economia
(em 1976) - modelos econômicos não deveriam ser julgados com
base na realidade de suas premissas, mas sim com base no seu
poder de previsão.345 Nesse sentido, Friedman levou a
epistemologia de Karl Popper às últimas consequências,
afirmando que apenas pela falsificabilidade das previsões
teóricas se poderia provar a falsidade de uma teoria, ainda
que tais conclusões tenham por base premissas duvidosas – ou
até mesmo irreais. Assim, não obstante as divergências
empíricas entre o homo economicus e o homem real sejam
single cognitive system that has the logical ability of a awless System 2 and the low computing costs of System 1.” (KAHNEMAN, 2003, p. 1469.) 344 Essas pesquisas, seus resultados e a influência dos vieses encontrados para a compreensão da economia são comentados por KAHNEMAN (2003 e 2011); THALER e SUNSTEIN (2009); ARIELLY (2009); MURAMATSU e FONSECA (2009); ALBERT et. al. (2008); JOLLS et. al. (1998); SUNSTEIN (2013); TETLOCK e MELLERS (2002). 345 Cf. SKOUSEN, 2007, posição 9112.
221
reconhecidas também por economistas neoclássicos, a defesa que
Gregory Mankiw faz abaixo exemplifica a postura de defesa da
Economia Neoclássica:
Por que, você poderia perguntar, a economia se baseia na
hipótese da racionalidade quando a psicologia e o bom
senso a colocam em dúvida? Uma resposta possível é que a
hipótese, mesmo que não seja exatamente verdadeira, pode
ser uma boa aproximação de modelos de comportamento
razoavelmente precisos. Por exemplo, quando estudamos as
diferenças entre as empresas monopolistas e as
competitivas, a hipótese de que as empresas racionais
maximizam o lucro rendeu muitas considerações
importantes e válidas. A incorporação de desvios
psicológicos complexos da racionalidade no exemplo pode
ter acrescentado algum realismo, mas também teria
deixado as coisas mais obscuras, tornando tais
considerações mais difíceis de serem deduzidas. Lembre-
se que [...] os modelos econômicos não pretendem ser
réplicas da realidade, mas simplesmente mostrar a
essência do problema à mão como uma ajuda para
compreendê-lo.346
Sob essa postura, alguns economistas neoclássicos,
embora reconheçam a existência de heurísticas e vieses,
preferem tratá-los como exceções ao que consideram a regra da
racionalidade. Do ponto de vista da Análise Econômica do
Direito, Richard Posner chega a afirmar que escolhas racionais
não necessitam ser escolhas conscientes, e que ratos são tão
racionais quanto seres humanos quando se define racionalidade
como alcançar meios pelo menor custo.347 Nesse sentido, Posner
afirma que:
346 MANKIW, 2009, pp. 480-481. 347 POSNER, 1998b, p. 1551.
222
...o fato de pessoas nem sempre serem racionais, ou até
mesmo que sejam irracionais a maior parte do tempo, não
é em si um desafio para a Economia da escolha racional.
Muitos têm um medo irracional de voar. É um medo
irracional, eu reconheço, ao invés de uma mera aversão
de que não compartilho, pois as próprias pessoas que o
possuem acreditam ser um medo irracional. Elas sabem que
alternativas de transporte de superfície são mais
perigosas, e elas querem acima de tudo evitar serem
mortas; mas mesmo assim escolhem o modo mais perigoso de
transporte. Seu arrependimento, vergonha e perturbação
consigo mesmos distinguem esse caso daquele de pessoas
que gostam de filmes de terror. Mas sua irracionalidade
não invalida a análise econômica do transporte, embora
ela possa demonstrar porque custos pecuniários e de
tempo, e taxas de acidente, não expliquem por completo a
diferença entre a demanda por transporte aéreo e a
demanda por seus substitutos. Uma preferência pode ser
tida como dada, e a análise econômica procederá como de
costume, ainda que essa preferência seja irracional.348
Todavia, a refutação de Posner deixa clara a
importância da Economia Comportamental para a compreensão do
objeto desta tese - o papel do direito na economia. Ainda que
se considere verdadeiro que o modelo neoclássico de
348 “...the fact that people are not always rational, even that some are irrational most or all of the time, is not in itself a challenge to rational-choice economics. Many people have an irrational fear of flying. It is an irrational fear, I concede, rather than just an aversion that we may not share, because the people who harbor it believe it is irrational. They know that the surface transportation alternatives are more dangerous, and they want above all to avoid being killed; yet they choose the more dangerous mode anyway. Their regret, embarrassment, and annoyance with themselves distinguish their case from that of the people who like horror movies. But their irrationality does not invalidate the economic analysis of transportation, although it may show why pecuniary and time costs, and accident rates, may not explain the entire difference between the demand for air transportation and the demand for its substitutes. A preference can be taken as a given, and economic analysis proceed as usual, even if the preference is irrational.” (POSNER, 1998b, p. 1554 – tradução livre.)
223
racionalidade possa servir à análise econômica349, a avaliação
do papel do direito na economia não pode desconsiderar a
formação de preferências, tomando-a como dadas. Isso ocorre em
especial quando essas “preferências” são “irracionais”
consoante o padrão de racionalidade adotado acima por Posner,
isto é, quando as preferências manifestadas contrariam aquilo
que as próprias pessoas desejam. Isto ocorre, como vimos,
quando heurísticas intuitivas limitam nossa capacidade de
produzir decisões adequadas.
Essa consideração é importante ao se pensar no papel
do direito como de imaginação institucional, tal como proposto
acima no item 2.1. Instituições podem sujeitar escolhas a
diferentes heurísticas e vieses cognitivos.350 Instituições
podem apresentar escolhas de modo a sistematicamente induzir
agentes a erros decorrentes do modo como as funções cognitivas
são exercidas pela mente. Isso significa que, nesses casos, as
escolhas não revelam as reais preferências do agente. O modelo
de agente racional da Economia Neoclássica ignora os erros
cognitivos e presume que escolhas revelam as reais
preferências. Uma ilustração possível é a de um investidor
imaginário – João – que deve decidir entre investir ou não em
ações de determinada sociedade – empresa A. No modelo do
agente racional, se João for confrontado com a escolha entre
comprar ações da empresa A ou depositar suas economias na
poupança, João irá escolher a opção que lhe dê maior
rentabilidade. Se João escolher investir na empresa A quando a
349 Daniel Kahneman discorda dessa visão: “...psychological theories of intuitive thinking cannot match the elegance and precision of formal normative models of belief and choice, but this is just another way of saying that rational models are psychologically unrealistic” (KAHNEMAN, 2003, p. 1449). 350 Ver item 2.4.4 supra.
224
rentabilidade da poupança for maior, isso é tratado como um
erro de informação – uma falha de mercado. Corrigido o erro de
informação, o modelo de racionalidade considera que João
manterá as ações da empresa A enquanto a rentabilidade dessas
for maior, e as venderá e investirá na poupança quando a
rentabilidade desta última for maior. Contudo, o efeito
dotação (endowment effect), segundo a Economia Comportamental,
fará com que, nos casos em que João já seja dono das ações da
empresa A (por exemplo, por herança), seu comportamento mude.
Pelo simples fato de já possuir as ações, João relutará em
vendê-las e investir na poupança, mesmo quando tiver a
informação precisa de que a rentabilidade desta última esteja
maior. E não apenas isso, a aversão a perdas fará com que,
caso João tenha prejuízo de $ 10.000 com as ações que possui,
ele prefira assumir o risco de uma recuperação improvável do
valor dessas ações que lhe permitisse recuperar os $10.000 de
prejuízo, ainda que essa aposta lhe custe outros $10.000. Se
João não fosse dono das ações da empresa e lhe fosse oferecida
a mesma opção, João não a aceitaria. O mero fato de ser dono
das ações muda a forma como João percebe suas decisões
econômicas. Esse exemplo ilustra que a forma como instituições
alocam inicialmente recursos influencia o exercício de
direitos de escolha sobre como esses recursos serão
empregados. Efeito dotação e aversão a perdas são apenas dois
entre vários vieses apontados pela Economia Comportamental. A
existência de vieses nas escolhas revelam heurísticas que, por
vezes, induzem a erros cognitivos. Nesses casos, as pessoas ao
escolherem não estão revelando suas preferências efetivas.
Elas estão, literalmente, sendo enganadas pelas condições em
que as escolhas se apresentam. Na medida em que escolhas sejam
produzidas ou mediadas por instituições, instituições podem
fazer com que escolhas estejam mais ou menos sujeitas a erros
cognitivos. Em decorrência, instituições que diminuam a
225
influência de erros cognitivos são meio para ampliação da
liberdade individual.
Além disso, instituições não mudam apenas
comportamentos, mas mudam também as preferências que
determinam esses comportamentos. Em outras palavras,
instituições influenciam não apenas aquilo que é escolhido,
mas também o que agentes querem escolher. Um exemplo está no
estudo de Eric Johnson e Daniel Goldstein, publicado na
Revista Science em 2003351, em que se concluiu que o maior
responsável pela drástica diferença de adesão a programas de
doação de órgãos entre um conjunto selecionado de países era a
opção padrão adotada quanto a ser ou não doador de órgãos. Os
casos de Holanda e Bélgica são representativos, dada a
proximidade geográfica e identidade cultural entre esses
países. Na Holanda, 27,5% da população era doadora de órgãos,
na Bélgica, 98%. Na Holanda, a opção padrão era por ser não-
doador – quem quisesse ser doador deveria afirmar seu
consentimento. Na Bélgica, a opção padrão era por ser doador.
Isto é, pela mera alteração na opção padrão, o número de
doadores cadastrados mudou exponencialmente de um país para o
outro. Mas a influência da opção-padrão não ocorreu apenas na
adesão ao cadastro de doadores de órgãos. Em termos efetivos,
o estudo comprovou que em países como a Bélgica, em que era
padrão ser doador, era significativamente menor a incidência
de fatores que diminuem a taxa efetiva de doação de órgãos,
como a resistência de familiares (que poderiam objetar ao uso
de órgãos), manifestações de cunho religioso, relutância de
médicos, entre outros. Em suma, em países em que a opção
padrão era pela doação, não apenas houve um aumento
351 JOHNSON e GOLDSTEIN, 2003.
226
considerável do número de doadores, como diminuiu a
resistência à doação de órgãos após o óbito dos doadores.
O estudo de Johnson e Goldstein se tornou referência
para afirmar aquilo que a Economia Comportamental chama de
efeito enquadramento (framing effect): a forma como uma
escolha é apresentada influência as preferências daquele que
escolhe.352 O efeito enquadramento é um exemplo da influência
da acessibilidade353 nas escolhas que tomamos. A influência de
instituições na formação de preferências se dá pela ação do
Sistema 1 – que, como visto, não pode ser “desligado”.354 Isso
significa que as atuais instituições já nos influenciam quanto
à formação de nossas preferências, inclusive
subconscientemente (nos termos dos estudos acima citados).
Reconhecer que há preferências individuais que não
correspondem àquilo que as pessoas efetivamente desejam não se
trataria sequer do direito de errar355, pois esse tipo de
352 Cf. THALER e SUNSTEIN, 2009, pp. 39-40; KAHNEMAN, 2011, posições 4627 e ss., e 2003, pp. 1458-1460. 353 Ver item 2.4.3 supra. 354 Ver item 2.4 supra. 355 O direito ao erro é um dos argumentos utilizados para se opor à atuação do Estado na Economia. No trecho a seguir, o direito ao erro é usado como contraponto à prosta de THALER e SUNSTEIN (2009) de usar as conclusões da Economia Comportamental como fundamento para o que chamam de paternalismo libertário: “If individuals are to realize their full potential as participants in the political and economic life of society, then they must be free to err in large ways as well as small. The fatal flaw of libertarian paternalism is to ignore the value of the freedom to err. Interestingly, Hayek said as much in making the inherently antipaternalistic case for The Constitution of Liberty: “Man learns by the disappointment of expectations.” “Liberty not only means that the individual has both the opportunity and the burden of choice; it also means that he must bear the consequences of his actions and will receive praise or blame for them. Liberty and responsibility are inseparable.”” (WRIGHT e GINSBURG, 2012, p. 52).
227
“preferência irracional”356 não se manifestaria em ações
conscientemente desejadas, ainda que com base em concepções ou
percepções errôneas sobre a realidade. Sendo assim, a opção de
Posner por respeitar “preferências irracionais” pode servir
para mitigar (e não ampliar) a liberdade individual,
considerada como a possibilidade de autodeterminação. Isso
porque a opção de Posner desconsidera que, ao se mudar
instituições, as próprias preferências se modificam. Sendo
assim, um caminho alternativo ao de Posner é reconhecer que
pessoas podem escolher mudar as instituições que as induzem a
ter “preferências irracionais”. Mas o meio para mudar
instituições não é individual, é coletivo.
Por esses motivos, ao direito interessa explorar as
implicações entre o desenho institucional da economia e os
comportamentos dos agentes econômicos. Na medida em que
“preferências irracionais” sejam produzidas ou reforçadas
pelas instituições econômicas atualmente existentes, a atuação
do direito que modifique ou crie instituições econômicas pode
ser alternativa de efetivação da própria liberdade individual,
mesmo restringindo-se o significado desta à busca hedonística
por interesses individuais. Essa conclusão se reforça ao se
ter em mente que a autodeterminação envolve mais do que a mera
satisfação de interesses individuais por direitos de escolha.
Segundo a concepção que abordamos no item 2.1 acima, a
autodeterminação envolve principalmente a possibilidade de
construção social na perpétua invenção do futuro.357 De acordo
356 A “irracionalidade” aqui se refere à ideia de racionalidade do pensamento econômico neoclássico, que corresponde à escolha dos melhores meios para os fins desejados, tal como visto acima. 357 A expressão é utilizada por Mangabeira Unger para definir o papel da democracia como expressão social da autodeterminação: “We are not yet fully the beings who not only transcend their contexts but also make contexts
228
com essa perspectiva, a superação do modelo do agente racional
faz mais do que apenas suplantar o modo de analisar a
economia. Substituir essa ideia é também passo na busca de
novas formas de organização institucional da atividade
econômica.358
2.4.5. O papel das instituções na distinção entre relações de mercado e relações comunais
Um exemplo das possibilidades abertas pela
perspectiva defendida pela Economia Comportamental está na
distinção entre comportamento regulado por normas de mercado e
comportamento regulado por outras normas sociais. Essa
distinção remonta a trabalhos de Psicologia Social que, a
partir da década de 1960, diferenciavam entre trocas
econômicas e trocas sociais. Um dos estudos mais influentes a
esse respeito é o dos psicólogos Margaret Clark e Judson Mills
publicado em 1979.359 Esse estudo distinguiu entre relações de
that recognize and nourish this context-surpassing capability. We must make ourselves into such beings. To do so is the work of democracy. More generally, it is the task of a direction of reform, in society and in thought, by which we shorten the gap between our context-preserving and our context-transforming activities. Once we have gone far enough in this direction, we produce the permanent invention of the future – of alternative futures.” (UNGER, 2007a, p. 171). 358 Nesse sentido: “The concept of homo economicus, which asserts that humans are rational actors who make decisions based on narrow self-interest, has dominated political and economic thinking since the 1970’s. But, while the pursuit of self-interest may be advantageous in certain contexts, it is not the only, or even the principal, driver of human behavior – and it is not conducive to overcoming today’s most pressing global issues.It is time to replace the framework of homo economicus with a model that reflects humans’ capacity for altruism and pro-social behavior. By illuminating opportunities for human cooperation, such a framework would provide a useful foundation for political and economic systems that succeed where existing arrangements have failed.” (SINGER, 2013). 359 CLARK e MILLS, 1979.
229
troca e relações comunais, e propôs que em cada caso, pessoas
agem conforme diferentes expectativas e, por isso, reagem a
benefícios de formas diversas, como veremos abaixo.
Relações de trocas são chamadas em outros estudos de
relações econômicas, ou de relações baseadas em normas de
mercado. Nesta tese, tendo em vista nossa intenção de destacar
as instituições de mercado frente às demais instituições
econômicas, adotaremos a terminologia relações de mercado.
Relações de mercado, conforme a distinção de Clark e Mills,
são aquelas em que os membros assumem que benefícios são dados
mediante a expectativa de recebimento de outro benefício – o
recebimento de um benefício implicaria uma dívida, a ser
resolvida mediante entrega de outro benefício correspondente.
Nas relações de mercado, o incentivo para entregar um
benefício é o ganho individual com o recebimento de um
benefício correspondente.
Situação diferente ocorre em outro tipo de relações
que envolvem intercâmbio de benefícios entre diferentes
agentes, e que Clark e Mills nomeiam de relações comunais. Em
outros estudos360, essas relações são chamadas relações
sociais, mas Clark e Mills atestam que relações econômicas são
também sociais361, justificativa a que aqui aderimos para
aderir à terminologia desses dois autores. Relações comunais
são aquelas em que os membros assumem que benefícios são dados
em razão da preocupação com o bem-estar de uns com os outros.
Nesse tipo de relação, a entrega de um benefício não implica
360 Entre aqueles que chamam as relações regidas por normas que não mercado de relações reguladas por normas sociais, está Dan Ariely (2009), em estudo que utilizaremos adiante. 361 CLARK e MILLS, 1979, p. 12.
230
uma dívida. As relações comunais não têm como fundamento o
ganho individual, como explicam os autores citados:
Membros de uma relação comunal assumem que cada um está
preocupado com o bem-estar do outro. Eles têm uma
atitude positiva quanto a beneficiar o outro quando a
necessidade desse benefício existe. Eles seguem o que
Pruitt (1972) denominou “a norma da mútua
responsividade.” Essa regra pode criar o que ao
observador externo aparentará ser uma troca de
benefícios, mas é distinta da regra que governa relações
de troca - em que um benefício deve ser devolvido pela
concessão de um benefício comparável. As regras sobre o
oferecimento e o recebimento de benefícios são o que
distinguem relações comunais e de troca, ao invés dos
benefícios específicos que são ofertados e recebidos.362
O estudo permite concluir que, nas relações de
mercado, indivíduos são motivados pelo benefício recebido em
troca do benefício dado, tal como assumido pelo modelo
neoclássico. Porém, nas relações comunais, o recebimento de um
benefício em razão do benefício dado age como desestímulo, não
como incentivo. Dan Ariely ilustra esse argumento com o
exemplo de um jantar de família oferecido por sua sogra nas
festividades do Dia de Ação de Graças. A sogra de Ariely
oferece o jantar sem pedir nada em troca aos familiares que
comparessem. Caso Ariely se propusesse a pagar sua sogra, o
efeito do pagamento não seria um incentivo, mas uma ofensa. No
362 “Members of a communal relationship assume that each is concerned about the welfarof the other. They have a positive attitudtoward benefiting the other when a need for the benefit exists. They follow what Pruit(1972) has labeled "the norm of mutual responsiveness." This rule may create what appears to an observer to be an exchange of benefits, but it is distinct from the rule that governs exchange relationships whereby the receipt of a benefit must be reciprocated bthe giving of a comparable benefitThe rules concerning the giving and receiving of benefits are what distinguish communal and exchange relationships, rather than the specific benefits that are given and received.” (CLARK e MILLS, 1979, p. 13 – tradução livre.)
231
modelo do homo economicus, porém, o pagamento seria um
incentivo adicional – além da utilidade em providenciar um
jantar para sua família, a sogra de Ariely ainda teria o
pagamento. É evidente, contudo, que não é isso o que acontece
em relações como essa, que não são pautadas por regras de
troca.363
As relações comunais se estendem para além do âmbito
familiar e podem abranger trocas de benefícios comumente
associadas às relações econômicas. Um dos exemplos utilizados
por Dan Ariely para reforçar esse argumento foi a tentativa de
uma associação de pensionistas americana de contratar
advogados para aposentados de baixa renda, em que foi
oferecida a remuneração de U$ 30 por hora (baixa, para os
padrões americanos). Nesses termos, a proposta fracassou, pois
advogados não se interessaram. Diante da baixa adesão, essa
mesma associação pediu que o serviço fosse executado de graça.
Segundo relata Ariely, houve maciça adesão.364 Esse exemplo
demonstra não apenas que relações de mercado podem ser
substituídas por relações comunitárias, como mostra que os
incentivos de uma não são compatíveis com os incentivos da
outra. Tal como na ilustração do jantar familiar ofertado pela
sogra, os advogados não acumularam os dois incentivos – o
prazer de ajudar necessitados e o pagamento de U$ 30 por hora.
Sob o modelo do homo economicus, isso faz pouco sentido. No
momento em que uma relação é posta como uma relação econômica,
os incentivos são pensados conforme o benefício individual, ao
que agentes tendem a se comportar como no modelo neoclássico:
quanto maior o preço, maior a quantidade ofertada. Porém, se a
363 ARIELY, 2009, posições 1126 e ss. 364 ARIELY, 2009, posição 1175.
232
relação é posta como uma relação comunal, a relação entre
preço e quantidade ofertada deixa de existir.
Essa ideia foi testada em uma série de experimentos
conduzida por Dan Ariely e James Heyman.365 Para completar uma
tarefa enfadonha durante um período pré-fixado, Ariely e
Heyman usaram incentivos diferentes para verificar o
desempenho de três grupos. Ao primeiro grupo, foi oferecido um
pagamento de U$ 5 pelo desempenho da tarefa. Ao segundo grupo,
foram oferecidos pagamentos de U$ 0,50 em uma rodada, e de U$
0,10 em outra rodada, para executar a mesma tarefa. Ao
terceiro grupo, a tarefa foi solicitada como um favor. Ou
seja, para os dois primeiros grupos, a tarefa foi apresentada
em uma relação de mercado. Para o terceiro grupo, foi
apresentada como uma relação comunal. O desempenho dos dois
primeiros grupos é coerente com o modelo neoclássico: o
primeiro grupo, melhor remunerado, teve produtividade 50%
maior em média do que o segundo grupo. Porém a produtividade
do terceiro grupo superou a produtividade do primeiro grupo –
isto é, os participantes trabalharam mais e com maior afinco
quando realizaram a tarefa gratuitamente, como um favor.
Um segundo conjunto de experimentos se seguiu, em
que o objetivo foi verificar se as relações comunais se
descaracterizariam se, em lugar de remuneração em dinheiro,
fossem oferecidos presentes aos participantes.366 Nesse caso,
pela mesma tarefa do conjunto anterior, ao primeiro grupo foi
oferecida uma barra de chocolate como recompensa (cujo preço
era de aproximadamente U$ 0,50), ao segundo grupo foi
oferecida uma caixa de bombons suíços (cujo preço era
365 ARIELY, 2009, posição 1162 e ss. 366 ARIELY, 2009, posição 1188.
233
aproximadamente de U$ 5), e ao terceiro grupo a tarefa foi
solicitada como um favor. O desempenho dos três grupos, nesse
caso, foi equivalente – a variação na produtividade foi pouco
superior a 1%. Além disso, a produtividade dos três grupos foi
alta (em todos os casos, superior à do grupo remunerado por U$
5 do primeiro conjunto de experimentos). Esse conjunto de
experimentos permitiu concluir que, ao se apresentar o contra-
benefício como um presente e não como remuneração, as pessoas
mantiveram-se no âmbito das relações comunais. Em especial, o
valor do presente não influenciou seu desempenho – ao
contrário do valor da remuneração no primeiro conjunto de
experimentos.
Finalmente, um terceiro conjunto de experimentos
repetiu a recompensa com barras e caixas de chocolate, porém
deixando visíveis etiquetas com o preço (U$ 0,50 para as
barras de chocolate, U$ 5 para as caixas de bomboms). Nesse
caso, o desempenho dos três grupos foi equivalente ao do
primeiro conjunto de experimentos. A conclusão dos
experimentadores foi que a menção do preço fez com que se
deixasse o campo das relações comunais, e a tarefa passasse a
ser tratada como em uma relação de mercado.367
Os experimentos relatados por Ariely destacam o
papel da moeda como determinante para a passagem do campo das
relações comunais para o das relações de mercado. A simples
menção do preço – expresso em moeda – fez com as barras de
chocolate deixassem de ser vistas como um presente, e
passassem a ser vistas como contraprestação. Essa conclusão é
reforçada e ampliada pelas conclusões do estudo de Kathleen
367 ARIELY, 2009, posição 1201.
234
Vohs, Nicole Mead e Miranda Goode, publicado em 2006 na
Revista Science368, e que se tornou referência na Economia
Comportamental.369 O estudo assumiu a hipótese de que a moeda
induz as pessoas a se sentirem mais autossficientes e a agir
de acordo com essa maior autossuficiência. O comportamento
autossuficiente, por sua vez, é definido como um estado
isolado em que pessoas despendem esforços para atingir
objetivos pessoais e preferem estar separadas de outras
pessoas.370 Assim considerada, a autossuficiência tem tanto
características positivas quanto negativas. Espera-se que
pessoas autossuficientes estejam mais dispostas a trabalhar
sem ajuda de outros e a se esforçar mais na busca de
gratificações pessoais. Mas também espera-se que sejam menos
dispostas a ajudar outras pessoas e a se comprometer com
objetivos comunitários. Em síntese, pessoas autossuficientes
são mais egoístas, mas também são mais resilientes e
independentes. Essa mistura de características desejáveis e
indesejáveis, afirmam as pesquisadoras, ajudaria a explicar
porque a moeda traz consequências sociais positivas e
negativas.
À luz da atual compreensão sobre as funções que aqui
identificamos como do “Sistema 1” (o sistema automático, ou
intuitivo), o estudo se propôs a investigar se apenas a
exposição à ideia de moeda371 de modo a torná-la mais
368 VOHS et. al., 2006. 369 Cf. ARIELY, 2009, posição 1216; ARIELY, 2013, Aula 2.7; KAHNEMAN, 2011, posição 946. 370 Parafraseamos a partir do seguinte trecho: “We tested whether activating the concept of money leads people to behave self-sufficiently, which we define as an insulated state wherein people put forth effort to attain personal goals and prefer to be separate from others.” (VOHS et. al., 2006, p. 1154.) 371 Moeda (money) é utilizada nos estudos para designar uma instituição econômica típica, e não como sinônimo de propriedade ou posse: “In this
235
acessível372 (técnica chamada pela Psicologia Cognitiva de
priming) faria com que pessoas se comportassem de forma mais
autossuficiente, com as característica positivas e negativas
associadas a esse comportamento. Lembremos que o Sistema 1
atua de forma inconsciente e não pode ser desligado, o que
significa que as associações feitas pelo Sistema 1 não são
percebidas pelo Sistema 2. Para ativar a ideia de moeda, as
pesquisadoras submeteram os participantes à tarefa de
desembaralhar frases que continham referências a dinheiro (por
exemplo, formar a partir das palavras “alto salário mesa
pagar” a frase “pagar alto salário”). No grupo de controle, as
frases eram neutras (por exemplo, “frio está mesa lá fora”
viraria “está frio lá fora”). Houve também um grupo de
participantes em que as frases eram neutras, mas que moedas de
brinquedo (do jogo de tabuleiro Monopoly) foram postas no
campo visual dos participantes. Tanto as moedas de brinquedo
quanto as frases contendo referências a dinheiro tinham por
objetivo fazer o priming da ideia de moeda. Depois dessa
primeira tarefa, os participantes foram submetidos a situações
que testaram persistência, independência, disposição para
ajudar outras pessoas e sociabilidade.
Os resultados da pesquisa foram consistentes com a
hipótese do comportamento autossuficiente provocado pela ideia
de dinheiro. Comparados com os participantes neutros,
participantes que tinham sido ativados (primed) com a ideia de
moeda persistiram pelo dobro do tempo para completar tarefas
Report, “money” refers to a distinct entity, a particular economic concept. Consistent with other scholarly uses of the term, we use the term money to represent the idea of money, not property or possessions.” (VOHS et. al., 2006, p. 1154). Por esse motivo, optamos por traduzir money como moeda, e não como dinheiro. 372 Sobre acessibilidade e Sistema 1, ver item 2.4.3 supra.
236
difíceis e buscaram menos ajuda quando confrontados com uma
tarefa impossível. Mas participantes ativados com a ideia de
moeda se mostraram consideravelmente menos dispostos a
auxiliar um colega que necessitava de ajuda para completar o
experimento e para auxiliar um pesquisador que desastradamente
derrubava um monte de lápis no chão. Além disso, participantes
ativados mostraram maior disposição para ficar sozinhos e, em
um experimento em que tinham de conhecer uma pessoa estranha,
colocavam suas cadeiras consideravelmente mais distantes de
seu interlocutor do que participantes que não tinham sido
ativados.
Os resultados dessa pesquisa mostram que, ao
contrário do que supõe o modelo neoclássico de racionalidade,
as preferências não são o resultado autônomo da vontade
individual do ser humano. Preferências são profundamente
influenciadas pelo contexto. Não é apenas o caso de que em
relações de mercado pessoas se comportam de maneira
autossuficiente. Instituições de mercado geram pessoas
autossuficientes – mais independentes, mas mais egoístas. As
implicações desse estudo são ressaltadas por Daniel Kahneman:
O tema geral dessas descobertas é que a ideia de moeda
ativa (primes) o individualismo: uma relutância de se
envolver com outros, de depender de outros, ou de
aceitar demandas de outros. A psicóloga que conduziu
essa notável pesquisa, Kathleen Vohs, foi impecavelmente
reservada na discussão das implicações de suas
descobertas, deixando essa tarefa para seus leitores.
Seus experimentos são profundos – suas descobertas
sugerem que viver em uma cultura que nos cerca com
lembretes de moeda pode moldar nosso comportamento e
237
nossas atitudes de maneiras que não sabemos ao certo e
de que não nos orgulhemos muito.373
Essas constatações têm relevância para o estudo das
instituições econômicas. Na medida em que instituições
econômicas façam referência à moeda como meio de articular as
decisões de alocação de recursos escassos, o comportamento dos
agentes econômicos será compatível com o de relações de
mercado. Por outro lado, na medida em que a alocação de
recursos se dê por instituições extramercado (como as
identificadas por Coase, discutido no item 2.3 supra), em que
o sistema de preços (e portanto, a moeda) tem função
subsidiária, haverá espaço para que o comportamento dos
agentes econômicos se dê de modo compatível com o de relações
comunais. Há, portanto, uma relação de implicação recíproca
entre comportamentos e instituições – as próprias instituições
influenciam comportamentos, e comportamentos influenciam
instituições. Essa constatação nos remete à ideia de profecia
autorrealizável a que se refere Mangabeira Unger374: quanto
mais instituições baseadas na competição de interesses
hedonistas, mais a competição de interesses hedonísticos será
determinante das relações econômicas. É possivel, logo, pensar
na organização institucional da atividade econômica não como
uma resposta a um dado modelo de racionalidade, como sugerem
as abordagens baseadas na Economia Neoclássica. Há
373 “The general theme of these findings is that the idea of money primes individualism: a reluctance to be involved with others, to depend on others, or to accept demands from others. The psychologist who has done this remarkable research, Kathleen Vohs, has been laudably restrained in discussing the implications of her findings, leaving the task to her readers. Her experiments are profound – her findings suggest tat living in a culture that surrounds us with reminders of money may shape our behavior and our attitudes in ways that we do not know about and of which we may not be proud.” (KAHNEMAN, 2011, posição 946 – tradução livre.) 374 Cf. UNGER, 2007a, p. 34, e item 2.1 acima.
238
instituições que organizam as relações econômicas com base na
cooperação baseada na troca e na competição, tal como
ponderava Adam Smith. Mas também há instituições que organizam
as relações econômicas com base em outros modos de cooperação.
Um exemplo são as firmas estudadas por Ronald Coase; outro
exemplo relevante é a família - que organiza e distribui
recursos tais como alimentação, serviços domésticos, cuidados
à saúde...
Em diversos casos, o comportamento autossuficiente é
desejável, e as instituições econômicas podem estimulá-lo. Em
outros tantos casos, o comportamento autossuficiente gera
respostas egoístas que podem ir contra aquilo que as próprias
pessoas entendem como justo e desejável. É possível pensar em
instituições econômicas alternativas, pautadas em relações
comunitárias. Por vezes, os incentivos das relações
comunitárias podem ser tão ou mais efetivos do que o das
relações de mercado, o que faz com que, mesmo sob o parâmetro
de criação de riqueza, a busca de instituições extramercado
não possa ser desprezada.
2.5. A influência do direito nas instituições econômicas, segundo a Análise Jurídica da Política Econômica de Marcus Faro de Castro
Entender que mercados são criações e que seu
funcionamento não se resume à racionalidade da busca
individual pela maximização da utilidade permite desvencilhar-
nos do fetichismo institucional, para compreender que mercados
possuem múltiplas configurações e funcionam de múltiplas
maneiras. Não há uma única e necessária forma institucional
para a economia de mercado. Em verdade, é possível falar não
em economia de mercado, mas em economias de mercado – no
239
plural, diante das diversas manifestações institucionais
possíveis.
Nessa visão - a que neste trabalho nos vinculamos -
o direito deixa de ser instrumento de convergência para um
determinado conjunto típico de instituições econômicas. Passa
a ser meio para o exato oposto, para a construção da
diversidade institucional voltada à realização de diferentes
projetos democráticos da sociedade contemporânea. Uma
abordagem que privilegia essa visão é a da Análise Jurídica da
Polítia Econômica formulada por Marcus Faro de Castro, que
passaremos a expor.
Segundo Marcus Faro, mercados resultam de uma densa
e complexa teia de regras e estruturas normativas, pública e
politicamente instituídas em processo de mudança contínua.375
São produto de uma dada conjuntura, conjuntura esta que é
delimitada por regras e estruturas normativas desenvolvidas em
“dinâmicas de competição estratégica entre grupos de
interesse, governos, partidos e coalizões”.376 A ideia de uma
teia ressalta a interrelação entre instituições públicas e
privadas como elemento nuclear dos mercados.
Por sua vez, regras que estruturam mercados e que
são instituídas politicamente formam, segundo o autor, a
política econômica. Se mercados são uma teia de regras e
estruturas normativas públicas e privadas, e se ao menos parte
dessas regras são fruto da política econômica, o resultado é
que mercados terão diferentes configurações a depender das
diferentes políticas econômicas. Ao se falar que não há o
375 CASTRO, 2006, p. 42. 376 CASTRO, 2006, p. 43.
240
mercado tomado em abstrato, ressalta-se a pluralidade de
possíveis configurações que a política econômica pode dar a
mercados. Assim, mercados são criações – como disse Coase. Mas
diferentemente de Coase, a análise de Marcus Faro ressalta que
mercados são criações políticas. Todavia, a própria política
econômica está imersa na teia de instituições públicas e
privadas. Também as regras instituídas politicamente não
existem no vazio institucional. Assim, ao contrário de
considerar a política econômica como algo distinto e externo a
mercados, Marcus Faro destaca seu papel na formação dos
mercados – ou, mais propriamente, das instituições econômicas:
...na medida em que a política econômica encontra-se ao
menos parcialmente imbrincada com valores culturais, ou
é governada por ideais e princípios formulados e
promovidos juridicamente para realizar a justiça,
cristalizam-se as instituições econômicas. As
instituições econômicas, portanto, são mais do que a
simples política econômica, pois abrangem a articulação
desta última com a cultura e/ou regras e princípios
formulados juridicamente a serviço da realização da
justiça.377
Portanto, a integração da política econômica a
ideais de justiça é feita pelas instituições econômicas. Essa
integração é objeto de formulação jurídica, nas palavras do
autor. Porém, para Castro, a formulação jurídica não está
presente em todas as instituições econômicas:
...muitas instituições econômicas, embora possam
adquirir caráter constitucional no sentido político,
podem permanecer carentes de formulação jurídica, capaz
de relacionar a estrutura de tais instituições à
377 CASTRO, 2006, p. 42.
241
realização de ideais de justiça, dando prioridade a
estes últimos. Nesses casos, pode-se dizer que as
instituições em causa têm caráter “constitucional” em
sentido político, e não, ainda em sentido “jurídico”.378
Instituições econômicas, desse modo, não decorrem
necessariamente da formulação jurídica, apesar de estarem
ligadas a valores culturais, ideais e políticos que poderiam
(ou deveriam) se vincular com a realização da justiça. Há,
segundo Castro, institucionalização de interesses que
efetivamente se opera pelo direito, mas há também
institucionalização de fato – em que juristas não se
pronunciam sobre ela ou sequer tomam conhecimento de sua
existência.379 A formulação jurídica, desse modo, não é índice
nem da existência de instituições econômicas, nem da
vinculação das instituições econômicas a valores voltados à
realização da justiça. É nesse contexto que Marcus Faro propõe
sua Análise Jurídica da Política Econômica, como uma
alternativa a abordagens típicas do Pensamento Jurídico
Contemporâneo e - especialmente – daquilo que aqui chamamos de
visão paradigmática sobre direito e economia380, para fins de
378 CASTRO, 2006, p. 43. 379 Cf. CASTRO, 2010, pp. 160-161. 380 A crítica de Marcus Faro de Castro às abordagens jurídicas atualmente em evidência é sintetizada neste parágrafo: “As opções de análise jurídica apontadas acima, contudo, não se prestam a conciliar a funcionalidade e a produtividade da economia, de um lado, e, de outro, a equânime proteção aos direitos fundamentais dos indivíduos e grupos, promovendo assim a justiça econômica. A interpretação formal olha unicamente para as formas jurídicas, as construções dogmáticas, não levando em consideração os fatos que constituem situações empíricas dramáticas e facilmente caracterizáveis como injustas, tais como a pobreza, a fome, a morte de pessoas por doenças comumente tratáveis e assim por diante. Das formas jurídicas abstratas, podem ser derivadas apenas outras formas abstratas, não juízos marcados com a experiência de vida social. Por sua vez, a interpretação substantiva não leva em consideração, de maneira disciplinada, as implicações, em termos de política econômica e seus efeitos, das soluções apontadas para os casos considerados. A seu turno, a “ponderação de valores”, sendo de caráter genérico e abstrato, acaba se apoiando em especulações imprecisas sobre o
242
confrontar a política econômica e as instituições econômicas
com a realização de ideais de justiça.
A importância de alternativas ao Pensamento Jurídico
Contemporâneo e à visão paradigmática se dá pela necessidade
de reforço à democracia, compreendida como principal
instrumento social de formulação de projetos de justiça. Nesse
sentido, o pensamento de Marcus Faro converge com o de
Mangabeira Unger381, acerca do recurso à opinião democrática
como critério pragmático de realização da justiça:
Segundo a perspectiva da AJPE, é na criação de novos
papéis e nas oportunidades para a redefinição das
relações sociais e instituições que reside a liberdade,
entendida como “poder prático de transformação social”.
Tal transformação social corresponde a mudanças nas
hierarquias sociais herdadas, não negociadas no
presente, e que definem a ordem corrente da sociedade.382
E ainda:
Nas democracias, portanto, a opinião livremente formada
pelos indivíduos sobre o que são e devem ser os seus
direitos é, de certo modo, uma importante e
indispensável fonte de critérios para a determinação do
que devem ser os conteúdos concretos dos direitos em
termos de padrões de ação efetiva (fruição). Diante
disso, controvérsias sobre a realidade social e
possibilidades de reformas favorecedoras da fruição
que são os “valores” em questão, e sobre qual a maneira de ajuste mútuo entre eles que seria mais adequada para atender aos interesses concretos dos membros da sociedade. Por fim, a AED [Análise Econômica do Direito], ao proceder por meio da chamada “análise de custo-benefício”, não leva em conta as relações entre interesses materiais e valores não econômicos, que são relevantes para a promoção da justiça econômica.” (CASTRO, 2009, p. 21). 381 Ver item 2.1 supra. 382 CASTRO, 2009, p. 30.
243
adquirem relevância. Assim, a percepção de que
determinadas políticas públicas ou econômicas limitam as
possibilidades de fruição de direitos torna-se, em tese,
fundamento para exigir que tais políticas sejam sempre
estruturadas de modo a promover, e não prejudicar, a
efetividade do exercício de diretos fundamentais e
direitos humanos.383
Portanto, a ênfase de Marcus Faro é no papel que o
direito possui de transformação social, a partir dos diversos
projetos de sociedade que são construídos pela livre opinião
no seio das democracias contemporâneas. A medida desse papel
não se dá pela referência a formulações abstratas de
categorias jurídicas, mas pela verificação empírica da fruição
de direitos, conforme formulados pela opinião livremente
formada dos indivíduos. Por conseguinte, o déficit na
implementação de ideais de justiça na economia não é apenas
decorrente da existência de instituições econômicas que não
tenham sido objeto de formulação jurídica, mas também da
própria desviculação entre os atuais critérios que pautam a
formulação jurídica e as condições práticas de implementação
de ideais de justiça na economia. Em resultado, Marcus Faro
identifica a impropriedade de tratar a atuação do direito na
economia sob a óptica de mediação da intervenção do Estado,
tal como faz a visão paradigmática:
A dogmática das formas de intervenção do Estado na
economia ignora que não se pode conceber a moderna
sociedade de mercado sem admitir que certos direitos
individuais (propriedade e contrato) sejam postos sob a
proteção do próprio Estado. [...] Uma vez reconhecido o
alcance desse argumento, a questão passaria então a ser,
não acerca da “intervenção” versus a “não intervenção” –
383 CASTRO, 2009, p. 26.
244
sendo esta última denotativa da liberdade (por exemplo,
a liberdade de iniciativa) -, mas sim sobre a qualidade
da ação do Estado, ou seja, sobre a qualidade da forma
institucional da ação estatal. Esta pode ser organizada
de modo a promover, ou a reprimir, a liberdade de
indivíduos e grupos.384
Portanto, a ação estatal, no seio da política
econômica, pode tanto ser instrumento de maior justiça
econômica e liberdade (individual ou política), como pode ser
obstáculo a que ideais de justiça se implementem na prática.
Com efeito, segundo Marcus Faro, por vezes a ação estatal
promove inserção econômica – isto é, institucionalização
econômica de interesses - mediante a seleção restritiva de
interesses sociais.385 Em outras palavras, a ação estatal cria
ou molda instituições econômicas que refletem interesses de
grupos sociais específicos. O autor cita diversos exemplos em
que essa seleção restritiva operou em detrimento do que chama
de interesses emergentes – aquele que corresponde a grupos
sociais historicamente alijados do poder político, mas que no
último século passaram a ter relevância no debate
democrático386 mediante, sobretudo, a expansão do direito ao
voto.387 Como diz o autor, as autoridades públicas podem
promover a explícita habilitação econômica de indivíduos ou
grupos, ou podem provocar a marginalização ou inabilitação
econômica (relativa ou até absoluta) de indivíduos ou
384 CASTRO, 2009, p. 21. 385CASTRO, 2010, p. 160. 386 Nesse sentido: “...é sabido que a ação legislativa – impulsionada pelos interesses emergentes de massas de indivíduos de facto destituídas da titularidade de “direitos subjetivos”, mas que passaram a ser incorporadas ao processo político em consequência da expansão do sufrágio, a partir da primeira reforma do parlamento inglês em 1832 – rapidamente tornou-se muito mais exuberante e copiosa do que poderiam comportar os códigos civis, de base jusnaturalista ou historicista.” (CASTRO, 2010, p. 151.) 387 Cf. CASTRO, 2006, pp. 46 e ss.; CASTRO, 2010, pp. 151 e ss.
245
grupos.388 Assim, a ação estatal por si não é indicativa nem de
maior justiça social, nem de menor justiça social. O que
importa é a qualidade da ação estatal.
Assim, o autor adota uma tipologia da atividade
econômica desvinculada do critério da assunção de atividades
de produção e consumo de bens e serviços pelo Estado. Isso
porque parte de uma concepção mais ampla – e no nosso entender
mais precisa – de política econômica, para abranger mais do
que a mera opção estatal de atuar ou não como agente
econômico. Ao invés de dividir a atividade econômica segundo o
critério formal da reserva de determinadas atividades à ação
estatal, Marcus Faro recorre à divisão entre instituições de
mercado e instituições extramercado. Essa divisão não se pauta
na existência de custos de transação – como faz Coase389 -, mas
na ideia de que a economia de mercado possui um enraizamento
social.390 Sobre essa concepção, diz o autor:
Conforme insistem economistas contemporâneos como
Rodrik, “a economia de mercado existe de modo
388 CASTRO, 2010, p. 161. 389 Ver item 2.3 supra. 390 Marcus Faro, em verdade, é crítico da fundamentação da divisão entre instituições de mercado e extramercado com base nos custos de transação: “Desde a divulgação da “teoria da firma” de Ronald Coase (1937), expandiu- se (especialmente a partir dos anos 1960) uma literatura que distingue entre as organizações (empresas) e mercados. As discussões vinculadas à “teoria da firma” gravitam em torno da ideia de que as organizações têm o objetivo de diminuir os “custos de transação”. Os trabalhos dessa tradição entendem como “custo” o que poderia, a partir de outro ponto de vista, ser considerado como relações de poder ou como fatos pertencentes ao âmbito da institucionalização de obrigações morais. Porém, à margem da literatura advinda da “teoria da firma”, existe uma tradição mais antiga de análise sociológica e antropológica – para cuja formação contribuiu o trabalho de autores como Max Weber e Marcel Mauss – que aponta para o “enraizamento social” da economia de mercado. É nesta última perspectiva, do enraizamento social da economia, que o presente texto se refere a “instituições extramercado.”” (CASTRO, 2010, p. 161). As visões de Coase e Castro, porém, tratam-se de dois pontos de vista distintos que, se combinados, trazem resultado analítico mais rico para a questão, como veremos adiante.
246
necessariamente enraizada em um conjunto de instituições
extramercado (nonmarket institutions)”. As instituições
“extramercado” estão envolvidas na produção de bens não
mercantis, prezados pelos indivíduos, mas não sujeitos à
livre alienação. Portanto, sobre eles, incide alguma
reserva de indisponibilidade. As instituições
extramercado são, também, “extracontratuais”, uma vez
que nelas não corre a coordenação contratual de
interesses, entendendo-se como coordenação contratual os
processos de livre estipulação de condutas mutuamente
confiáveis por meio da barganha privada, sem
interferência direta da autoridade pública.391
Desse modo, o autor caracteriza as instituições
extramercado por seu aspecto extracontratual, isto é, por não
estarem sujeitas à estipulação por acordo entre agentes
privados. Além disso, ao salientar o enraizamento social,
Marcus Faro enfatiza que as instituições de mercado não apenas
convivem com, mas necessitam de instituições extramercado.
Finalmente, afirma a existência de atividades extracontratuais
(extramercados) que oferecem suporte a atividades contratuais
(intramercados). Entre as atividades extracontratuais,
destaca, por exemplo, a regulação estatal das bolsas de
valores, sem a qual a negociação privada de capital em bolsa
não seria viável. Mas há também atividades extracontratuais
que não são suporte de atividades contratuais – Marcus Faro
usa o exemplo de museus mantidos com recursos do erário.392 A
Figura 11 abaixo ilustra a tipologia das instituições
econômicas proposta pelo autor.
391 CASTRO, 2010, p. 161. 392 Cf. CASTRO, 2010, p. 161.
247
Figura 8 - Instituições econômicas segundo Marcus Faro de Castro
Fonte: elaboração do autor a partir de CASTRO (2009, 2010)
Como representado na Figura 11, Marcus Faro propõe
que a inserção econômica de interesses emergentes se pode dar
seja na dimensão das instituições intramercados, seja na das
instituiçoes extramercados.393 Essa multiplicidade de opções
implica um sem número de alternativas para a política
econômica, o que também faz com que não haja uma forma
institucional única, predeterminada, a pautar a formulação
jurídica da economia. Admitir que política econômica engloba
uma pluralidade de formas, significa também relativizar o
papel do direito tal qual como hoje (conjunturalmente)
institucionalizado. A formulação jurídica – especialmente a
pronúncia de direitos subjetivos por agentes estatais – não é,
portanto, condição necessária para a realização de ideais de
393 Diz o autor: “Assim, a modificação da inserção econômica de interesses de indivíduos ou grupos pode promover a sua habilitação econômica, correspondente à sua absorção nos setores contratual e/ou extracontratual da economia de mercado. Ou pode, ainda, se dar mediante a modificação da posição relativa corrente dos indivíduos ou grupos no contexto de cada um desses setores. Nesse sentido, a incorporação, as interações sociais efetivas, de interesses emergentes pode ser feita mediante o reconhecimento jurídico desses interesses como “direitos subjetivos”, mas pode ocorrer sem esse pronunciamento jurídico.” (CASTRO, 2010, p. 162.)
248
justiça, em especial ao se ter em consideração seu caráter
temporário e contingente:
A emergência de interesses com potencial para serem
incorporados à coordenação institucional em relações
confiáveis e, assim, justas é particularmente estimulada
nas sociedades democráticas de mercado. As
possibilidades de institucionalização desses interesses
são um campo em aberto, não existindo um modelo, um
script, uma norma imutável a determinar quais escolhas
devem ser feitas, pois tais escolhas dependem de
análises sobre o contexto em que os interesses se
articulam e se projetam em relação ao presente e ao
futuro próximo (ou previsível, de acordo com variadas
perspectivas). De modo condizente com isso, as normas
emitidas pelas autoridades públicas e que incidem sobre
a institucionalização dos interesses são temporárias,
advindas das contraposições cambiantes entre os
componentes – inclusive tribunais judiciais, locais e
internacionais – dos sistemas de freios e contrapesos,
multiformes e parcialmente internacionalizados, das
democracias hoje.394
Em síntese: o direito atua no âmbito institucional
da economia, e pode, logo, criar, modificar ou extinguir
instituições, ou disciplinar as relações entre diversas
instituições, ou ainda se abster de realizar a formulação
jurídica de instituições em prol da existência e funcionamento
de instituições de fato. Como não há uma receita pronta, não
há uma opção que possa aprioristicamente ser considerada como
correta. É o contexto de fruição de direitos que melhor
determinará a melhor estratégia de atuação do direito na
economia, conforme os projetos individuais e coletivos
formulados nas atuais sociedades democráticas.
394 CASTRO, 2010, p.168.
249
Nesse sentido, a proposta de Marcus Faro é
relativista do ponto de vista da formulação jurídica de
instituições, mas não do ponto de vista da necessidade de
instituições que viabilizem e ampliem a fruição de direitos. O
autor desvincula a atuação jurídica de uma forma institucional
predeterminada e reconhece que a formulação jurídica não é
necessária à fruição de direitos. Mas a fruição de direitos é
eleita como critério central, fundamental, para que se julguem
as instituições. A flexibilização quanto à formulação jurídica
das instituições econômicas que decorre da proposta de Marcus
Faro, portanto, não equivale à abdicação do papel do direito
na realização de ideais de justiça. Ao contrário, reforça esse
papel, ao libertá-lo de conjuntos específicos de instituições
– inclusive das próprias instituições formuladas pelo
direito.395
395 Como parte de sua Análise Jurídica da Política Econômica, Castro propõe instrumentos analíticos para medir a fruição empírica de direitos, que chama de “Análise Posicional” e de “Nova Análise Contratual” – ver: CASTRO, 2009 e 2013.
250
Capítulo 3 - Estudos de casos: a influência do Estado na telefonia de longa distância e na criação da Internet
Até aqui buscamos demonstrar a possibilidade de
análises jurídicas que superem os limites postos pelo
fetichismo institucional, de modo a rever a compreensão dos
efeitos do Estado na economia e, com isso, propor novas formas
de atuação para o direito. Em especial, enfatizamos a
existência de atividades e instituições extramercado na
alocação de recursos, a interdependência entre instituições
extramercado e instituições de mercado na estruturação das
relações econômicas, e o papel de instituições jurídicas na
formação e modificação das instituições econômicas e dos
fluxos ede relações institucionais e de circulação de bens e
serviços que caracterizam uma dada economia. Os estudos de
caso a que nos dedicaremos a seguir têm por objetivo ilustrar
essas constatações e evidenciar as omissões da visão
paradigmática.
Nos estudos de casos, nossa análise terá por base a
distinção entre atividades e instituições extramercados e de
mercados (intramercados). A distinção considerará, tal como
Coase396, a coordenação da alocação de recursos segundo
mecanismos de preços. Assim, instituições que se remetem a
mecanismos de preços para alocação de recursos serão
consideradas instituições de mercado. Instituições que não
usam mecanismos de preços – o que inclui sociedades
empresárias, tal como faz Coase – serão consideradas
instituições extramercados.
396 Ver item 2.2 supra.
251
3.1. Análise do papel do Estado na abertura do mercado de telefonia nos EUA entre 1960 e 1996
Até a década de 1960, a AT&T era a única prestadora
de telefonia de longa distância a operar nos EUA. O Sistema
Bell, composto pela AT&T e pelas companhias regionais
(chamadas BOCs – Bell Operating Companies), operava um
monopólio quase absoluto dos serviços de telefonia americanos.
Na telefonia local, esse monopólio era assegurado por
franchises397 estaduais exclusivas, normatizadas e fiscalizadas
por agências reguladoras estaduais - as Public Utilities
Commissions (PUCs). Na telefonia de longa distância
(interestadual e internacional), a exclusividade decorria do
fato de que a exploração do serviço dependia de licença
(license) da Federal Communications Commission – FCC, e esta
não havia até então conferido licenças a nenhum concorrente da
AT&T.
A manutenção do monopólio da AT&T significou a
adoção do que ficou conhecido como Paradigma Vail398 – em
referência a Theodore Vail, presidente da AT&T até 1922 e
grande responsável por sua implementação. Nos anos de 1907 a
1922, Vail protagonizou uma forte campanha de apoio à
397 O significado de franchise no direito americano engloba tanto o ato formal que estabelece a personalidade jurídica de uma empresa (primary franchise), como o ato formal que faculta a uma dada empresa empregar vias públicas na execução de seus serviços (secondary franchise). Em muitos Estados americanos, a concessão de uma nova franchise para uma public utility passou a depender da obtenção de um certificado de utilidade pública conferido por uma Public Utility Commission, o que conferia a esta a prerrogativa de estabelecer monopólios na prestação de serviços - ver: JONES e BIGHAM, 1931, pp. 105-106. 398 Cf. BYRNES, 1999, pp. 35-36.
252
regulação nos estados onde ela existia, ao mesmo tempo em que
defendia o Sistema Bell como o melhor meio de promover o bem
público.399 Vail defendeu fervorosamente que o setor de
telefonia era um monopólio natural400, que a duplicação de
infra-estrutura era maléfica ao serviço e que apenas a AT&T
poderia prover adequadamente o serviço universal. Em troca,
deveria haver proteção pública do negócio, de modo a garantir
os meios necessários para o financiamento do serviço
universal.401 Os argumentos de Vail ressoaram e tanto governos
estaduais como o governo federal americanos acabaram por
conferir à AT&T e a suas subsidiárias (as BOCs) o monopólio
dos serviços de telefonia.
Portanto, o Paradigma Vail expressa a ideia de que o
monopólio da AT&T serviria de suporte a um sistema nacional de
telefonia, cuja expansão (universalização) seria financiada
pelos próprios ganhos do monopólio. No início do séc. XX,
quando a telefonia era sobremaneira um meio de comunicação
local (intra-estadual), os ganhos do monopólio eram utilizados
pelas agências estaduais (as PUCs) para estabelecer subsídios
cruzados de forma que a telefonia comercial subsidiasse a
residencial, e a telefonia urbana subsidiasse a rural. Quando
a telefonia interurbana (interestadual) ganhou relevância e
passou a gerar receita substanciosa, os Estados passsaram a
399 Como afirma Willian Byrnes, a intenção de Vail era identificar os interesses de sua companhia com o interesse público de controle do setor de telefonia: “The private monopoly sought to meld its interests with the existence of public regulatory authority. The existence of common carrier regulation was used as justification for continued monopoly.” (BYRNES, 1999, p. 35.) 400 Cf. HUBER et. al., 1999, pp. 85-87. 401 Vail afirmou que: “If there is to be state control and regulation, there should also be state protection—protection to a corporation striving to serve the whole community ... from aggressive competition which covers only that part which is profitable.” (Apud ROBINSON, 1989, p. 7 – tradução livre.)
253
pressionar a FCC para que os lucros da telefonia de longa
distância – regulados pela agência federal – subsidiassem os
custos da telefonia local – regulados pelas PUCs. Para tanto,
os reguladores estaduais organizaram uma associação nacional,
então nomeada National Association of Railroad and Utilities
Commissioners (NARUC). A NARUC possuía assento nas reuniões da
FCC que cuidassem sobre tarifas interestaduais e, embora não
possuísse voto, exercia considerável pressão nas decisões da
agência federal. Por outro lado, na medida em que cresceram os
lucros da telefonia interestadual (em razão do aumento do
tráfego e da amortização dos investimentos), aumentou a
importância do subsídio cruzado entre ligações de longa
distância e locais para as políticas estaduais de
universalização da telefonia. Assim, as decisões da FCC
passaram a ter importante repercussão na esfera estadual,
tanto do ponto de vista das possibilidades abertas à exigência
pelas PUCs de maior cobertura ou de tarifas mais baixas, como
do ponto de vista dos recursos disponíveis para as BOCs
realizarem investimentos e melhorias nas redes locais. 402 A
Figura 9 abaixo busca retratar as principais instituições e
respectivas interrelações do cenário acima descrito.
402 Cf. HUBER et. al., 1999, pp. 33, 92-101 e 221-226; LAENDER, 2009, pp. 131-132; HENCK e STRASSBURG, 1988, pp. 1-20.
254
Figura 9 - Estrutura institucional da telefonia de longa distância em 1960 nos EUA
Fonte: elaboração do autor.
255
Como se percebe na Figura 9, instituições
extramercado tinham função preponderante na distribuição dos
recursos alocados aos mercados de telefonia de longa distância
e telefonia local. No caso acima, os monopólios local (intra-
estadual) e de longa distância (interestadual) foram
determinados por uma política pública, e não por resposta dos
agentes econômicos a incentivos dados por mecanismo de preços.
Por isso, o estabelecimento dos monopólios foi resultado de
atividades extramercados, e as instituições envolvidas com
essas atividades eram – nesse caso – instituições
extramercados. As instituições extramercados viabilizaram a
política de subsídios cruzados, cujo objetivo foi influenciar
no fluxo de alocação de recursos de modo a propiciar preços
mais baixos nas ligações locais. Os contratos de telefonia
local e de longa distância, por outro lado, são instituições
de mercado, pois estavam implicados com a oferta e a aquisição
do serviço de telefonia a um dado preço. Mas tanto o preço,
quanto as partes que podem integrar o contrato, não são
estipulados por atividades de mercados, mas sim determinados
pelas PUCs e pela FCC – logo, por atividades e instituições
extramercados.
O fluxo de relações institucionais, representado
pelas setas pretas, retrata, nas relações entre as agências
reguladoras estaduais e federal, as interações que resultaram
na construção da política de subsídios cruzados. Assim, o
fluxo de relações institucionais entre AT&T (a holding) e BOCs
(suas subsidiárias) é afetado pelo fluxo das relações
institucionais com FCC, NARUC e PUCs. Note-se que é em
resultado das interações institucionais que o fluxo de
alocação de recursos é também afetado. Os recursos empregados
na prestação de serviços locais e de longa distância não
dependem apenas do preço e da possibilidade de lucro em face
256
dos custos assumidos com a prestação do serviço. Dependem
também das decisões de alocação de recursos por parte das BOCs
e da AT&T – tanto internas a essas organizações, quanto as
decorrentes das relações entre holding e subsidiárias.
Dependem ainda das tarifas fixadas pelas PUCs e pela FCC.
Assim, integra o fluxo de alocação de recursos (setas cinzas)
a destinação dos lucros da telefonia de longa distância para
custear a telefonia local – o que não é resultado das
instituições de mercado diretamente envolvidas, mas sim das
instituições extramercados, conforme o fluxo de interações
institucionais (setas pretas).
Desse modo, podemos caracterizar a política de
subsídios cruzados baseada no Paradigma Vail como a construção
e atuação de instituições extramercados, cujo objetivo foi
influenciar atividades extramercados (relativas à alocação de
recursos dentro do Sistema Bell) e atividades de mercado
(relativas à alocação de recursos decorrente dos contratos de
prestação de telefonia local e de longa distância). Esse foi o
modelo que pautou a política pública relativa à telefonia nos
EUA até o final da década de 1950.
A partir de 1960, uma seqüência de eventos modificou
completamente o panorama das telecomunicações americanas. O
primeiro evento dessa sequência foi antecedido pela invenção,
na década de 1930, dentro do Sistema Bell, da tecnologia de
micro-ondas para fins de comunicação. Micro-ondas são ondas de
rádio curtas e de alta frequência. Tal como já faziam, por
exemplo, os sistemas de radiodifusão para transmissão de
programações de vídeo, música e entretenimento, torres de
micro-ondas usam radiofrequência para a transmissão de
informações como vídeo e voz. Porém micro-ondas, em comparação
com as ondas do rádio comercial e da televisão, se propagam em
linha reta e transmitem maior volume de informações. Isso
257
permite que sejam usadas como substitutos de fios de cobre e
cabos coaxiais na construção de linhas-troncos do sistema de
telefonia. As linhas-troncos (ou backbone), por sua vez, são
responsáveis por conectar redes locais (por exemplo, conectar
a rede de Nova Iorque à de Boston), por isso necessitam de
alta capacidade de transmissão de informação, tal como a
viabilizada pela tecnologia baseada em micro-ondas. Torres de
micro-ondas são, contudo, opções mais baratas do que fios de
cobre e cabos coaxiais para estabelecer redes troncais de
longa distância, mas têm a desvantagem de estarem sujeitas a
intempéries meteorológicas (dado que as ondas se propagam no
ar, e não confinadas a um fio ou cabo) e à interferência de
outros transmissores de radiofrequência. Sua importância como
opção de engenharia pode ser ilustrada pelo fato de que, em
1960, 25% da rede de longa distância do Sistema Bell operava
com base em torres de micro-ondas.403
Porém, se a possibilidade de empregar torres de
micro-ondas diminuiu custos do Sistema Bell, também tornou
economicamente viável a concorrência com a AT&T. Já no final
da década de 1940, a FCC passou a receber pedidos de empresas
interessadas em implantar linhas privadas – isto é, não
disponíveis ao público em geral – baseadas em torres de micro-
ondas. A implantação dependia de licença da FCC tanto para o
estabelecimento de rede de telecomunicações, como para o uso
do espectro de radiofrequência. A FCC, contudo, negou as
licenças requeridas. Apenas linhas usadas para transmissão de
vídeo, em suporte a redes de televisão, foram autorizadas a
funcionar: o uso de micro-ondas para competir com o Sistema
Bell no serviço de telefonia não era licenciado pela FCC.
403 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 28-29.
258
Mesmo assim, as licenças limitavam a operação das linhas
privadas a locais onde não houvesse presença do Sistema Bell e
exigia que essas linhas deixassem de operar quando o serviço
da AT&T passasse a ser disponível nesses locais.404
A FCC, porém, mudou de entendimento em 1959, ao
regular a prestação de serviço em faixas de radiofrequência
superiores a 890 MHz. A regulamentação da FCC – conhecida como
Above 890 – abriu a possibilidade de que linhas privadas
fossem implantadas por usuários para atender a seus próprios
interesses, mesmo em locais onde a AT&T estivesse presente. A
ideia inicial do Above 890 era propiciar a empresas a
possibilidade de implementarem seus próprios sistemas de
comunicação de longa distância ponto-a-ponto. Mas a decisão da
FCC em Above 890 abriu um precedente: não mais se considerava
que todo o tráfego de longa distância era pertencente à
AT&T.405
Em 1963, com base na regulamentação do Above 890, a
recém-constituída Microwave Communications, Inc. (MCI)
protocolou na FCC pedido para instalar e operar um tronco de
micro-ondas ligando Chicago – no Estado Illinois - a Saint
Louis – no Estado do Missouri -, com nove pontos
intermediários. A MCI, porém, pretendia comercializar o acesso
a esses pontos com terceiros – o que significava viabilizar a
MCI como uma concorrente da AT&T nas telecomunicações de longa
distância. Após seis anos, uma extremamente dividida FCC – a
decisão foi por 4 votos a 3 – concedeu a licença à MCI. A FCC
classificou a MCI como uma specialized carrier, que poderia
prestar serviços privados de telecomunicações (private line
404 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 734-736. 405 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 737-739.
259
services). A licença contemplava a prestação de serviços
ponto-a-ponto, e não provia o direito de interconexão com a
rede de telefonia do Sistema Bell – o que significava que os
usuários da MCI não podiam se comunicar com os usuários do
Sistema Bell, e vice-versa. 406
O precedente da MCI abriu espaço para que outras
empresas buscassem obter licença semelhante. Além dos custos
mais baixos resultantes da tecnologia de micro-ondas, o preço
praticado pelo Sistema Bell estava majorado para financiar as
obrigações de serviço universal na telefonia local. Havia,
assim, grande oportunidade para a entrada competitiva de
empresas cobrando preços menores e com boa lucratividade. Isso
fez com que a procura por licenças de longa distância fosse
grande, o que levou a FCC a, em 1971, regular as condições de
acesso das specialized carriers. O regulamento ampliou os
direitos que haviam sido concedidos à MCI, fixando a
obrigatoriedade de o Sistema Bell fornecer interconexão às
specialized carriers para o provimento dos seus private line
services.407
O impacto dessa decisão foi grande no setor. Em dois
anos, o monopólio da AT&T foi substituído pela competição com
várias companhias, sendo que duas delas – a MCI e a Southern
Communications Co. – ofereciam serviços de costa-a-costa nos
EUA. A competição, porém, estava restrita aos serviços de
comunicação privada, que eram serviços objeto de contratação
especial e buscavam atender sobretudo empresas ou usuários de
grande volume. Isso significava, por exemplo, que um usuário
de uma specialized carrier tinha dois telefones – um para
406 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 739-740 407 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 740-741.
260
fazer ligações de longa distância em sua private line, e outro
para fazer ligações locais na rede da BOC que fosse sua
operadora local.408
Contudo, em 1974, a MCI, em um processo de revisão
de suas tarifas de specialized carrier, solicitou para a FCC a
aprovação de um serviço chamado Execunet, que permitiria a
seus assinantes falar com qualquer telefone das localidades em
que a MCI estivesse presente. Para tanto, o assinante deveria
ligar um número da MCI, discar seu código de acesso ao serviço
e depois discar o número de telefone desejado. Os assinantes
do Execunet seriam tarifados de forma bastante similar aos
usuários dos serviços de longa distância da AT&T, e poderiam
usar o serviço a partir de qualquer telefone – inclusive os
ligados ao Sistema Bell.409 A FCC, contudo, em decisão unânime,
rejeitou o pedido da MCI, alegando que a condição de
specialized carrier não permitia a prestação de serviços
públicos410 de telefonia. A MCI contestou a decisão
judicialmente e em 1978, conseguiu que o Tribunal de Apelações
do Circuito do Distrito de Columbia revertesse a decisão da
FCC, no caso que ficou conhecido como Execunet I.411
A AT&T, após a decisão de Execunet I, anunciou que
não proveria interconexão às specialized carriers e peticionou
à FCC solicitando uma ordem que declarasse a ausência de
obrigação nesse sentido. A FCC atendeu ao pedido, e a MCI
novamente recorreu ao Judiciário. O Tribunal Federal de
Apelações do Circuito de D.C. produziu então o julgado que
408 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 741-742. 409 Cf. HUBER et. al., 1999, p. 749. 410 Segundo HUBER et. al. (1999), as palavras usadas na decisão para descrever o serviço Execunet foram: “essentially a switched public message telephone service” (p. 750). 411 Cf. HUBER et. al., 1999, pp. 748-751; LAENDER, 2009, pp. 139-140.
261
ficou conhecido como Execunet II.412 Segundo o tribunal, as
regras das Specialized Carriers adotadas anteriormente pela
FCC obrigavam a AT&T a fornecer a interconexão. Como em
Execunet I a conclusão foi de que as regras da FCC em vigor
não impediam uma specialized carrier a prover serviço de
telefonia de longa distância, não poderia a FCC alegar
justamente essa distinção para limitar a obrigação de
interconexão da AT&T apenas aos private line services. O
precedente de Execunet II serviu para que não apenas a MCI,
mas todas as competidoras da AT&T pudesse, efetivametente,
competir sem restrições na telefonia de longa distância
interestadual nos locais onde licenças já tivessem sido
conferidas.413
Os precedentes de Execunet I e II, todavia, não
impediam que a FCC impusesse limitações à concorrência com a
AT&T em novas licenças ou em novos regulamentos – substituindo
o regulamento das specialized carriers por normas mais
restritivas. Mas a concorrência havia sido recebida
favoravelmente pelos usuários, que não mais viam as
telecomunicações sob o prisma do Paradigma Vail.414 A própria
FCC mudou seu entendimento e passou a abraçar a competição. De
tal forma que em 1980, dois anos após Execunet II, a FCC tomou
outro passo decisivo na abertura do mercado de telefonia de
longa distância à competição.
Até então, a AT&T era obrigada a apenas fornecer
interconexão – isto é, a fornecer uma conexão às specialized
carriers que permitissem aos usuários destas realizarem
412 MCI Telecommunications Corporation v. FCC, 580 F.2d 590 (D.C. Cir. 1978) 413 Cf. HUBER et.al., 1999, pp. 754-756. 414 Cf. BYRNES, 1999, p. 37.
262
chamadas telefônicas para usuários do Sistema Bell. A AT&T e
as BOCs não eram obrigadas, contudo, a fornecer outros
serviços às competidoras. A FCC, porém, passou a obrigar o
Sistema Bell a vender serviços para outras operadoras. Entre
esses serviços, estava a possibilidade de uma competidora
comprar acesso à rede do Sistema Bell como complemento a sua
rede – por exemplo, uma operadora poderia usar parte da rede
da AT&T para construir uma linha entre Chicago e Nova Iorque.
E em 1980 a FCC passou a obrigar o Sistema Bell a vender seus
serviços no atacado, para que outras operadoras pudessem
revender no varejo. As operadoras que assim fizessem passaram
a ter a qualificação de commom carrier, antes exclusiva da
AT&T.415
Todas essas alterações institucionais, promovidas
pela FCC e pelo Judiciário, resultaram no cenário representado
pela Figura 10 abaixo. Em comparação com o cenário anterior, o
serviço de telefonia de longa distância – uma atividade de
mercado – passou a se relacionar com outra atividade de
mercado – a prestação de serviços entre operadoras, antes
inexistente (ou, ao menos, irrelevante). Houve por isso mais
instituições de mercado atuando na telefonia de longa
distância, implicadas com a atividade de mercado entre
operadoras, das quais destacamos os contratos de revenda e de
interconexão. O contrato de prestação de serviços telefônicos
foi também modificado, apesar de ainda sujeito às tarifas
fixadas pela FCC.416 Além da AT&T e das BOCs, as operadoras
competitivas (especialmente MCI e Sprint) passaram a poder
415 HUBER et.al., 1999, pp. 756-760. 416 Todavia, em decorrência da competição, a FCC progressivamente atribuiu liberdade na fixação das tarifas à AT&T e às prestadoras competitivas – cf. HUBER et.al., 1999, pp. 790-815.
263
figurar como partes no contrato de prestação de telefonia de
longa distância. Se instalou, em decorrência, uma competição
entre diferentes instituições extramercados (AT&T vs.
operadoras competitivas) pelos recursos oriundos da prestação
de serviços de telefonia de longa distância.
Houve também mudança no fluxo de alocação de
recursos, o que impactou tanto a política de subsídios
cruzados, quanto a forma como o Sistema Bell distribuía
recursos dentre suas empresas. O Paradigma Vail - de uma única
empresa para prover uma rede única nacional e universal - foi
quebrado. O Sistema Bell passou a competir com outras empresas
por recursos oriundos da prestação de serviços de telefonia de
longa distância. Isso significou, de um lado, que havia menos
recursos para financiar as obrigações de serviço universal
relacionadas à telefonia local. Por outro lado, dado que o
Sistema Bell era monopolista na telefonia local, significou
também a possibilidade de que a AT&T mudasse o sentido do
fluxo de alocação de recursos entre telefonia local e
interestadual, de forma a usar o monopólio local como fonte de
financiamento para a competição de longa distância.
Com efeito, a AT&T passou a ser acusada de fazer
exatamente isso: praticar preços predatórios na longa
distância, financiados pelo monopólio na telefonia local. Além
disso, apesar dos esforços de implementação do mercado de
serviços entre operadoras, a AT&T se recusava a prover
serviços a suas concorrentes e a oferecer interconexão a suas
redes. Em conseqüência, as novas companhias telefônicas
buscaram os órgãos americanos de defesa da concorrência para
264
reclamar do abuso de poder de mercado praticado pelo Sistema
Bell.417
417 Sobre as práticas adotadas pelo Sistema Bell, cf.: BYRNES, 1999, pp. 38-39; ARANHA, 2005, pp. 157-158.
265
Figura 10 - Estrutura institucional da telefonia de longa distância em 1980 nos EUA
Fonte: elaboração do autor.
266
Ainda em 1974, diante das reclamações das operadoras
competitivas, o Department of Justice (DoJ) ingressou com ação
antitruste contra a AT&T. A alegação era precisamente que o
Sistema Bell se valia de seu monopólio nos serviços locais e
no fornecimento de equipamentos para sustentar o monopólio da
longa distância. O DoJ acusou a AT&T de negar interconexão às
specialized carriers e de, quando existente a interconexão,
cobrar tarifas de acesso à sua rede superiores ao que seria
razoável para adequadamente remunerar o capital investido.
Além disso, nas linhas onde havia competição com as
specialized carriers, o DoJ acusou a AT&T de cobrar preços
abaixo do custo (dumping). Também denunciou a imposição de uso
de terminais produzidos pelo Sistema Bell, e a cobrança de
tarifas adicionais para uso de equipamentos de outros
fabricantes.
O caso foi distribuído para o juiz federal Joseph
Waddy. Porém, em decorrência de seu frágil estado de saúde, a
ação ficou anos parada. O juiz Waddy veio a falecer em 1978, e
apenas em 15 de janeiro de 1981 a ação foi distribuída para o
juiz Harold Greene. Quando Greene assumiu, porém, o caso
passou a ter tramitação prioritária. Após a primeira parte da
dilação probatória, a AT&T buscou a extinção da ação, alegando
ausência de fundamentos de fato e de direito que dessem
suporte ao pedido do DoJ. O juiz Greene, contudo, indeferiu o
pedido da AT&T. Nas razões dessa decisão, o juiz afirmou que a
telefonia local era um monopólio natural e, por isso, não
podia ser replicada pelos competidores do Sistema Bell.
Segundo Greene, o acesso à rede local seria essencial para a
prestação de serviços de longa distância, e o domínio desse
monopólio conferia os meios para possível abuso de poder por
parte da AT&T. Adicionalmente, Greene afirmou que o DoJ havia
conseguido provar a possível intenção anticompetitiva por
parte da ré na manutenção de sua posição no mercado
267
interestadual, na medida em que a AT&T praticava tarifas
desvinculadas dos efetivos custos do serviço.418
No curso do processo, William Baxter, um acadêmico
de Stanford, assumiu a chefia da divisão antitruste do DoJ.
Baxter era conhecido por ter opiniões bastante moderadas sobre
a interferência do governo no mercado, e sua indicação tinha
partido do Governo Reagan – conhecido por suas posições de
não-intervenção do Estado na economia. Isso gerou expectativa
na AT&T de que poderia obter um bom acordo com o governo.
Somada essa expectiva ao prognóstico negativo no julgamento do
caso, a AT&T decidiu tentar resolver a ação por meio de
acordo.419
Contudo, Baxter não foi tão amigável como esperava a
AT&T. A análise que Baxter fez da atuação da AT&T não
discrepou da do juiz Greene. Segundo o então chefe da divisão
antitruste do DoJ, a exploração concomitante de atividades
sujeitas ao monopólio legal e de atividades sujeitas à livre
concorrência tornava impossível controlar eficazmente
eventuais abusos por parte do Sistema Bell. A rede que servia
à telefonia local, servia também à telefonia de longa
distância. Portanto, os custos da telefonia local seriam
indissociáveis, mantida a situação como estava, dos custos da
telefonia de longa distância. Uma vez que os custos eram
compartilhados por serviços sujeitos à regulação monopolística
e por serviços sujeitos à competição, o Sistema Bell poderia
atribuir os custos do serviço competitivo ao monopólio,
recuperar esses custos pela tarifa regulada e, com isso,
financiar indefinidamente preços baixos para afastar a
418 Cf. BRANDS e LEO, 1999, p. 283. 419 Cf. BRANDS e LEO, 1999, pp. 285-286.
268
concorrência nas atividades competitivas. Por outro lado,
afirmou Baxter, o subsídio cruzado entre serviços de longa
distância e serviços locais serviria de estímulo para as PUCs
chancelarem práticas anticompetitivas da AT&T, como
sobretarifas de conexão e negativa de interconexão. Para
Baxter, a única forma de impedir o abuso de poder por parte do
Sistema Bell era separar as atividades competitivas das
monopolísticas. Foi essa, então, a proposta de acordo
oferecida pelo DoJ. Baxter foi inflexível, somente assinaria
um acordo que contemplasse a separação da AT&T, que operava o
serviço de longa distância interestadual, das BOCs, que
operavam os serviços intraestaduais.
Em decisão que alguns consideram surpreendente, em
1982, o Sistema Bell aceitou o acordo. Para ser válido, o
acordo teve ainda de ser homologado pelo juiz Greene, que lhe
apôs algumas modificações – o que fez com que os termos da
cisão do Sistema Bell fossem fixados não pelo acordo em si,
mas pela decisão final do juiz, chamada Modification of Final
Judgement (MFJ).
Em resultado do MFJ, o Sistema Bell foi separado em
duas partes. De um lado, ficaram os serviços de longa
distância e a venda de equipamentos, que deveriam ser
prestados em regime de absoluta competição. A AT&T foi
separada das BOCs e passou a poder operar somente na longa
distância. De outro lado, ficaram os serviços de telefonia
local (local exchange), que foram considerados um monopólio
necessário. Esses serviços, prestados até então pelas 22 BOCs
controladas pela AT&T, passaram a ser organizados em sete
holdings regionais, denominadas Regional Bell Operating
269
Companies – RBOCs.420 A cada RBOC foi atribuído um conjunto de
regiões chamadas Local Access and Transport Areas – LATAs.421
Ligações dentro de uma LATA (intraLATA) eram consideradas
serviço local e, por isso, poderiam ser prestadas por uma
RBOC. Mas ligações entre diferentes LATAs (interLATA) não
poderiam ser feitas por uma RBOC – ainda que as duas LATAs em
questão fossem operadas pela mesma RBOC. As RBOCs, assim,
foram mantidas como monopolistas sob regulação das PUCs
estaduais, mas lhes fora negado operar no mercado de longa
distância, regulado pela FCC. Assim, ao invés de operarem na
longa distância, as RBOCs passaram a ser apenas fornecedoras
de acesso local para operadoras de longa distância. Ao prover
acesso local para a longa distância, as RBOCs eram
expressamente obrigadas a fornecer condições isonômicas, de
modo a evitar qualquer favorecimento para sua antiga holding,
a AT&T.
O acordo resultou em uma profunda modificação
institucional do setor de telecomunicações, não apenas do
ponto de vista do Sistema Bell, mas também do ponto de vista
da repartição de competências estatais para a sua regulação. O
cumprimento dos termos do acordo passou a ser supervisionado
diretamente pelo juiz Greene, o que catapultou seu gabinete
para ser uma espécie de FCC paralela. Ao mesmo tempo, a
existência de várias LATAs em um mesmo estado fez com que
mesmo serviços intra-estaduais fossem considerados serviços de
longa distância competitivos, o que atraiu a competência da
420 As sete RBOCs eram: Ameritech, Bell Atlantic, BellSouth, NYNEX, Pacific Telesis, Southwestern Bell e U.S. West. 421 Eram 167 as LATAs. A maior parte dos estados compreendia diversas LATAs – Nova Iorque foi dividida em sete, a Califórnia em onze, etc. Entretanto, nove LATAs correspondiam a estados inteiros, como foi o caso em Delaware, Novo México, Wyoming, entre outros. Cf. BRANDS e LEO, 1999, p. 311.
270
FCC para regulá-los. Até mesmo dentro de uma LATA os estados
perderam parte de sua competência, à medida que a FCC passou a
fixar as condições para o fornecimento de serviços de acesso
às redes locais. Consolidou-se uma política federal, centrada
no Judiciário e na FCC, em prol da competição. Essa política
substituiu a anterior, de subsídios cruzados, que era baseada
no Paradigma Vail e fora construída não apenas por entes
federais, mas pela interação destes com as PUCs estaduais.
Esse cenário está representado na Figura 11 abaixo.
271
Figura 11 - Estrutura institucional da telefonia de longa distância em 1984 nos EUA
Fonte: elaboração do autor.
272
A partir do confronto entre a Figura 11 e as figuras
9 e 10, é possível identificar que o principal produto da ação
estatal nas décadas de 1960 a 1980 nos EUA foi a substituição
da influência de instituições extramercados na alocação de
recursos entre telefonia local e interestadual, por
instituições de mercado. Especificamente, a ação estatal criou
as instituições necessárias para um novo mercado de serviços
entre operadoras. Esse novo mercado substituiu tanto a
alocação de recursos segundo os subsídios fixados
conjuntamente por FCC e PUCs (representadas pela NARUC),
quanto a alocação de recursos feita internamente no Sistema
Bell, mediada pelas relações entre a holding AT&T e suas
subsidiárias (as BOCs). A estrutura institucional retratada
acima durou de 1984 - data de início da vigência do MFJ – até
a edição do Telecommunications Act de 1996. A nova lei
incorporou os aspectos centrais definidos pelo MFJ, mas
introduziu instrumentos voltados à abertura dos mercados de
telefonia local. O Telecommunications Act de 1996 e seus
efeitos, todavia, estão fora do escopo do presente estudo de
caso.
3.2. Análise das relações de coordenação entre instituições estatais e não estatais na implementação da ARPANET
Quando os soviéticos assumiram a liderança da
corrida espacial, em 1957, Dwight Eisenhower, então Presidente
dos EUA, tomou uma série de medidas visando a retomada do
domínio americano no desenvolvimento tecnológico. Uma dessas
medidas foi a criação da Advanced Research Projects Agency
(ARPA), cuja função era não apenas trabalhar no longo prazo
mediante o financiamento de pesquisas científicas de base
(isto é, sem explícita vinculação prática), como também
273
articular o mundo acadêmico com possibilidades efetivas de
desenvolvimento tecnológico.422 A ARPA foi situada como um
órgão civil independente dentro do Pentágono, com acesso
direto ao Presidente e ao Secretário de Defesa. Desde sua
primeira gestão, a ARPA elegeu como prioridade a ciência da
computação, dedicando um órgão específico para tanto em sua
estrutura: o Information Processing Techniques Office (IPTO).
Foi dentro do IPTO que a primeira rede de computadores foi
concebida, planejada e executada. Essa rede viria a ser
conhecida como ARPANET, e foi a partir dela que se originou a
atual Internet.423
Inicialmente, a rede formada pela ARPA não foi de
computadores, mas de pesquisadores. Joseph Carl Robert
Licklider, responsável pela criação do IPTO e seu primeiro
diretor, é considerado um dos visionários sobre cibernética e
as possibilidades de simbiose entre homem e computador.424
Licklider era psicólogo, e abordou a nascente pesquisa sobre
computadores sob o aspecto do potencial na expansão das
competências e capacidades humanas. Suas ideias foram
extremamente influentes para a nascente Ciência da Computação,
e ao redor delas Licklider construiu uma rede informal de
422 A necessidade de financiamento estatal para pesquisa de base remonta à experiência americana com a Segunda Guerra, em que o Projeto Manhattan teve papel decisivo: “After a Second World War victory that relied heavily on State-sponsored and -organized technological developments, the federal government was quick to implement the recommendations of Vannevar Bush´s 1945 report, which called for ongoing public support of basic as well as applied scientific research. The relationship between government and science was further strengthened by the Manhattan Project (the major scientific effort led by the US, with the UK and Canada, which led to the invention and use of the atomic bomb in the Second World War), as physiscists instructed policymakers on the military implications of new technology. From this point on, it became the government´s business to understand which technologies provided possible applications for military purposes as well as commercial use.” (MAZZUCATO, 2013a, posição 1709). 423 Cf. SWEDIN e FERRO, 2005, posições 1994 e ss. 424 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 288 e ss.
274
amigos, pesquisadores e colegas de trabalho. Referindo-se de
forma jocosa ao conjunto de pesquisadores com quem se
relacionava, Licklider escreveu em 1963 o famoso “Memorando
para os membros e afiliados da Rede Intergalática de
Computadores” (“Memorandum for Members and Affiliates of the
Intergalactic Computer Network”). Nesse documento, Licklider
identificava as necessidades dessa comunidade de pesquisadores
como uma demanda coletiva por cooperação, de modo a integrar
os diversos esforços empreendidos de forma descentralizada:
... é evidente que temos entre nós uma coleção de
aspirações, esforços, atividades e projetos individuais
(pessoais e/ou organizacionais). Estes têm em comum,
penso eu, as características de serem de alguma forma
conectados com o avanço da arte ou tecnologia do
processamento de informações, o avanço da capacidade
intelectual (homem, homem-máquina, ou máquina) e da
abordagem de uma teoria científica. As partes
individuais são, ao menos até certo ponto, mutualmente
interdependentes. Para progredir, cada centro de
pesquisa ativo necessita de uma base de software e uma
infraestrutura de hardware mais complexas e mais
extensas do que ele, sozinho, pode criar em tempo
razoável.425
Foi pensando nas necessidades dessa comunidade que
Licklider propôs que linguagens de computadores passassem a
seguir um consenso de grupo no que concerne às decisões
425 “... it is evident that we have among us a collection of individual (personal and/or organizational) aspirations, efforts, activities, and projects. These have in common, I think, the characteristics that they are in some way connected with advancement of the art or technology of information processing, the advancement of intelectual capability (man, man-machine, or machine), and the approach to a theory of science. The individual parts are, at leas to some extent, mutually interdependent. To make progress, each of the active research needs a software base and a hardware facility more complex and more extensive than he, himself, can create in reasonable time.” (ARPA, 1963, p. 1 – tradução livre.)
275
arbitrárias e quase-arbitrárias envolvidas. Buscava, com isso,
facilitar o compartilhamento e a troca de informações. Com
essas intenções em mente, Licklider descrevia características
que uma rede de computadores deveria ter para atender à
comunidade de pesquisadores:
Considere a situação de em que diferentes centros [de
pesquisa] estão juntos em rede, cada centro sendo
altamente individualista e tendo sua linguagem [de
computador] especial e seu próprio jeito especial de
fazer as coisas. Não seria desejável, ou mesmo
necessário, que todos os centros acordassem acerca de
uma linguagem, ou, ao menos, acerca de algumas
convenções para perguntar questões tais como “Que
linguagem você fala?” Neste extremo, o problema é
essencialmente aquele discutido por escritores de ficção
científica: “Como você inicia comunicações entre seres
“sapientes” totalmente não-correlatos?”426
Licklider deixaria o IPTO e a ARPA pouco tempo
depois, sem ao menos iniciar o projeto de rede de computadores
que havia devisado. Contudo, as ideias de que redes de
computadores seriam úteis para as relações homem-máquina, e
que a base de seu funcionamento deveria ser a cooperação entre
os diferentes centros de pesquisa dedicados ao assunto, foram
bastante influentes na comunidade que Licklider chamou de Rede
Intergalática de Computadores. Essa era uma comunidade pequena
e de alcance restrito, porém era quem se dedicava ao estudo de
426 “Consider the situation in which several different centers are netted together, each center being highly individualistic and having its own special language and its own special way of doing things. Is it not desirable, or even necessary, for all the centers to agree upon some language or, at least, upon some conventions for asking such questions as “What language do you speak?” At this extreme, the problem is essentially the one discussed by science fiction writers: “How do you get communications started among totally uncorrelated “sapient” beings?””(ARPA, 1963, p. 3 – tradução livre.)
276
computação em rede. Por influência dessa comunidade, redes de
computadores passaram a ser pensadas como facilitadores para
cooperação entre centros de pesquisa. Além disso, essa
comunidade, e os financiamentos da ARPA de Licklider, deram
origem aos programas de graduação e pós-graduação em Ciência
da Computação nos EUA.
A ideia de cooperação como fundamento de uma rede de
comunicação baseada em computadores foi extremamente
inovadora. Redes de comunicação já eram uma realidade na
época, telefones e telégrafos há muito operavam sobre linhas
de cobre interligadas. A transmissão de informações digitais,
destinadas ao processamento de dados por computação, era
também uma realidade: o modem telefônico, inclusive, já havia
sido inventado pelos Laboratórios Bell (vinculados à AT&T) em
1958. Porém cada rede seguia padrões técnicos diferentes. Como
cada fabricante de computador usava seus próprios padrões para
o funcionamento de seus sistemas, não havia redes de
computadores. Tampouco se pensava no uso de computadores como
instrumentos de comunicação e como meios para expandir
capacidades e competências humanas. Licklider foi o visionário
que influenciou o modo como os cientistas da época passaram a
ver o potencial de simbiose homem-computador427, e sua visão
impregnou as prioridades da ARPA na década de 1960.
O IPTO – departamento fundado por Licklider - passou
a investir em pesquisas que viabilizassem o uso de
computadores não apenas como instrumentos de realização de
cálculos complexos, mas como ferramentas para a expansão das
capacidades de interação homem-máquina. Compartilhamento de
427 Cf. LICKLIDER, 1960.
277
informações, interfaces gráficas, inteligência artificial,
todos esses temas foram objetos de pesquisas financiadas pelo
IPTO da ARPA. Essas pesquisas tornaram popular o processamento
de informações por compartilhamento de tempo (time-sharing
processing), em lugar do processamento por bandeja (batch
processing).428 Neste, o computador realiza uma tarefa de
processamento de dados por vez. Naquele, vários terminais
podem se ligar a um computador para compartilhar sua
capacidade de processamento – lembre-se que, nos anos 1960,
computadores eram máquinas enormes que ocupavam salas
inteiras, muito diferentes dos atuais computadores de mesa
(que por isso se denominam micro-computadores). Uma vez que se
adotasse o processamento de dados por compartilhamento de
tempo, passou a ser viável a conexão remota de terminais (sem
capacidade de processamento) e de teletipos (uma espécie de
máquina de escrever utilizada para digitar comandos para os
antigos computadores). Por vezes, terminais ou teletipos
utilizavam modems e a rede de telefonia para se conectarem aos
computadores, o que efetivamente deu início à comunicação de
dados por meios do sistema de telefonia. Essa comunicação de
dados, porém, ainda não era uma rede de computadores – era
apenas a ligação de um único computador a vários terminais.429
A implementação da primeira rede de computadores, a
ARPANET, se deu apenas em 1969. O projeto dessa rede, porém,
começou anos antes, em 1966. Nessa época, o IPTO criado por
Licklider já havia passado para a direção de outro psicólogo,
Robert Taylor. Taylor teve a ideia de financiar uma rede de
computadores como solução para as dificuldades que tinha ao
428 Cf. SWEDIN e FERRO, 2005, posições 1304 e ss. 429 Cf. SEVERANCE, 2013.
278
lidar com os três terminais remotos localizados em sua sala.
Esses terminais se ligavam a três computadores diferentes, que
ficavam em três localidades distintas nos EUA. Cada computador
(e, logo, cada terminal), exigia uma sequência distinta de
comandos para conexão, comando e operação, o que dificultava o
papel de pesquisadores. Além dessas dificuldades, os
diferentes programas de pesquisa financiados pela ARPA cada
vez mais necessitavam de capacidade de computação. Ao invés de
comprar um computador para cada universidade envolvida, Taylor
pensou que uma rede de computadores permitiria o
compartilhamento de computadores entre os pesquisadores.
Portanto, uma rede de computadores poderia simplificar
procedimentos de conexão e operação de computadores, e
economizar na compra de computadores. Por fim, a possibilidade
de economizar com compra de computadores atenderia a outras
necessidades do Departamento de Defesa, a que se vinculava a
ARPA. Computadores não eram compatíveis entre si. Se um
determinado órgão de defesa tivesse um computador fabricado
por A e necessitasse rodar um programa elaborado no computador
fabricado por B, outra saída não haveria que a compra de um
novo computador fabricado por B – além daquele já existente,
fabricado por A. O Departamento de Defesa, em decorrência
desse tipo de necessidade, era o maior comprador mundial de
computadores, e computadores eram caríssimos. Uma rede de
computadores permitiria que o órgão de defesa que só tivesse o
computador fabricado por A, mas necessitasse rodar um programa
elaborado em um computador fabricado por B, acessasse
remotamente o computador B por meio do mesmo terminal usado
para acessar o computador A. A ideia foi levada a Charles
Herzfeld, diretor da ARPA, que em uma famosa conversa de 20
279
minutos de duração, alocou um milhão de dólares para o projeto
(na época, isso era equivalente a um acréscimo de 5% ao
orçamento anual do IPTO).430
Antes do projeto da ARPANET, Taylor, por meio do
IPTO, financiara em 1965 a primeira conexão remota entre dois
computadores, um localizado no Lincoln Laboratory do
Massachusetts Institute of Technology (MIT), outro localizado
na System Development Corporation em Santa Monica, Califórnia.
O pesquisador do MIT responsável pela conexão, Lawrence G.
Roberts, foi recrutado por Taylor para planejar e coordenar a
execução da ARPANET. Roberts começou no final de 1966 e já no
início de 1967 apresentou para a comunidade de pesquisadores a
proposta de uma rede para ligar os computadores das diversas
universidades e centros de pesquisa envolvidas com projetos
financiados pela ARPA. A proposta se baseava no experimento
que Roberts havia desenvolvido dois anos antes, na ligação
entre dois computadores.
A proposta, porém, foi recebida com ressalvas.
Pesquisadores ficaram preocupados em ter de abrir mão de parte
da capacidade de computação de seus computadores para o que
reputavam um projeto com pequena probabilidade de êxito.
Computadores, como dito, tinham linguagens substancialmente
diferentes umas das outras. Ainda que fosse viável a
transmissão de informações entre os computadores, eles não
seriam capazes de compreender uns aos outros. Ao final da
reunião, contudo, o pesquisador Wesley Clark trouxe uma
solução: a criação de uma subrede de computadores dedicada
exclusivamente ao transporte de informações. Ao invés dos
430 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 571 e ss.; SWEDIN e FERRO, 2005, posições 2031 e ss.
280
computadores se ligarem diretamente entre si, eles se ligariam
aos computadores da subrede. Esses computadores, por sua vez,
teriam uma linguagem padrão. Ao invés de criar meios para
fazer com que cada computador na rede pudesse se comunicar nas
diversas linguagens de todos os demais computadores, cada
computador teria de aprender apenas a linguagem comum dos
computadores da subrede. A ideia de uma subrede, desse modo,
viabilizava uma espécie de língua franca que poderia ser
aprendida por todos os computadores, o que viabilizaria o uso
da rede.431
O passo seguinte foi dado ainda em 1967, em um
simpósio da Association for Computing Machinery, onde Roberts
apresentou o artigo Towards a Cooperative Network of Time-
Shared Computers. O artigo descrevia o funcionamento dos
computadores da subrede, chamados de Interface Message
Processors (IMPs), mas ainda não detalhava o modo como a
transmissão de informações entre os computadores ocorreria.
Nesse ponto, o design proposto por Roberts era o mesmo
utilizado em seu experimento dois anos antes: cada IMP seria
conectado a quatro linhas telefônicas, que realizariam a
transmissão de informações se valendo do sistema de telefonia
tradicional. Essa solução, porém, era custosa e fazia com que
a transmissão de informações fosse muito lenta. Todavia, no
mesmo simpósio, Roberts tomou conhecimento de um experimento
realizado por Donald Davies no National Physical Laboratory
(NPL) - uma instituição controlada pela Coroa da Inglaterra
(portanto, estatal) - e de uma proposta elaborada por Paul
Baran na RAND Corporation, sob contrato do Departamento de
Defesa americano.
431 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 1051 e ss.
281
O experimento conduzido no NPL e a proposta da RAND
Corporation, por caminhos diferentes, propunham um novo modo
de transmissão de informações, com base no uso de
computadores. Esse novo modo ficou conhecido pela denominação
adotada pelo NPL: comutação por pacotes (packet-switching).
Nesta, as informações a serem transmitidas são partidas em
pacotes (packets), e cada pacote segue um caminho diferente na
rede até chegar ao destino final. A comutação por pacotes, por
isso, permite uma arquitetura não-hierárquica, o que por sua
vez permite a construção de redes distribuídas (item (C) da
Figura 23 abaixo). Na época, o sistema de telefonia operava
com base na comutação por circuitos, em que a informação
transportada não é particionada e segue um caminho na rede
pré-definido (um circuito). Na comutação por circuitos, o
transporte de informações se dá por uma rede hierarquizada e
que, por isso, exige arquiteturas de rede em forma de estrela
– em que vários pontos se ligam pontos ou nós centrais (itens
(A) e (B) da Figura 23 abaixo). A comutação por pacotes,
alternativamente, prescinde de nós centrais, o que lhe confere
maior flexibilidade e robustez em comparação com a comutação
por circuitos. Além disso, a possibilidade de que pacotes
sigam diferentes caminhos na rede faz com que a comutação por
pacotes viabilize um transporte mais rápido de informações,
pois os pacotes podem ser direcionados de forma a evitar os
pontos da rede (ou nós) que estejam mais congestionados (e por
isso mais lentos).
282
Figura 12 - Redes em estrela (centralizadas e descentralizadas) vs. redes distribuídas
Fonte: Baran (1964, p. 2)
Embora o projeto de Davies previsse a construção de
uma rede de computadores, o experimento do NPL era apenas a
ligação de um único computador a vários terminais. O projeto
de Baran na RAND Corporation432, por sua vez, tinha sido
concebido como uma forma de assegurar que o sistema de
telefonia sobrevivesse a ataques em caso de guerra nuclear, um
cenário tipicamente adotado durante a Guerra Fria. A proposta
de Baran havia sido apresentada à AT&T e ao Departamento de
Defesa, mas fora arquivada por desinteresse, em razão de a
AT&T ter afirmado que uma rede de comutação por pacotes era
inviável tecnicamente. No momento em que Roberts tomou
conhecimento dos projetos do NPL e da RAND Corporation,
portanto, não se havia ainda implementado uma rede de
comutação por pacotes. A ARPANET seria a primeira.433
Incorporadas as ideias desenvolvidas pelo NPL e pela
RAND Corporation no projeto da ARPANET, a pedido do IPTO/ARPA,
o setor de compras do Departamento de Defesa dos EUA lançou em
432 BARAN, 1964. 433 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 1098 e ss.; SWEDIN e FERRO, 2005, posições 2042 e ss.
283
agosto de 1968 um request for quotation (RFQ) para o
fornecimento dos IMPs e para a construção e operação da
subrede de computadores. O RFQ era regido pelas normas de
contratação de produtos e serviços para a defesa dos EUA, em
que havia regras como a exigência de que a contratante fosse
de propriedade de cidadãos americanos, ou de que os produtos
incluídos fossem preferencialmente produzidos nos EUA (em
decorrência, era necessário discriminar se havia produtos
oriundos de outros países).434 Por outro lado, as regras de
contratação de defesa davam maior flexibilidade quanto a
objeto, formas de gestão do contrato e ingerência no objeto
contrato. Essa flexibilidade se aliava à estrutura
organizacional enxuta e direcionada à pesquisa de que dispunha
a ARPA. Essa estrutura enxuta e flexível era movida por uma
cultura que buscava resultados a longo prazo e em que a
tolerância a erros e fracassos era vista como essencial ao
processo de inovação tecnológica.435 Todos esses fatores
viabilizaram que o RFQ contivesse como objeto a construção de
uma rede de computadores sem que se tivesse a certeza da
viabilidade dessa rede, e segundo uma nova forma de
transmissão de informações (a comutação por pacotes) que fora
publicamente descreditada pela AT&T - empresa que até então
era a maior autoridade mundial acerca da transmissão de
informações em longa distância, e que havia inventado grande
parte das tecnologias empregadas para a construção.
A IBM, então maior fabricante mundial de
computadores, foi uma das primeiras a responder o RFQ. A
resposta, porém, foi uma negativa: a IBM se recusou a oferecer
434 Cf. DEFENSE SUPPLY SERVICE, 1968. 435 Cf. MAZZUCATO, 2013b.
284
proposta, por avaliar que a produção dos IMPs para a rede era
inviável economicamente. Outras grandes companhias seguiram o
mesmo caminho, afirmando seja a impossibilidade técnica de
construção da rede, seja sua inviabilidade econômica. De um
total de mais de 140 empresas consultadas, pouco mais de uma
dúzia apresentou proposta. Ao final, o contrato acabou sendo
celebrado com uma pequena empresa de consultoria sediada em
Boston: a Bolt, Beranek and Newman (BBN).436
A proposta da BBN utilizava computadores produzidos
pela Honeywell – que seriam adquiridos pela BBN e adaptados –
como base para os IMPs, e trazia uma proposta técnica
detalhada de como deveria ser a arquitetura da sub-rede que
ligaria os IMPs. O objeto do contrato se restringia a garantir
que um IMP conseguiria receber informações de um computador
conectado a ele e transmitir essas informações, via comutação
por pacotes, para os outros IMPs ligados em rede. Não era
objeto do contrato assegurar que o computador do centro de
pesquisa A conseguisse assimilar as informações recebidas pela
ARPANET e que tinham sido produzidas pelo computador da
universidade B. Em resultado, os IMPs eram computadores
especializados apenas no recebimento e encaminhamento de
informações, e não lidavam com o conteúdo das informações
transmitadas – tal como carteiros que soubessem ler apenas os
endereços dos envelopes, mas fossem incapazes de ler as cartas
contidas nos envelopes.
Por esse motivo, ficou fora das atribuições da BBN
resolver o problema de como fazer o computador do fabricante A
compreender informações produzidas pelo computador do
436 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posições 1157 e ss.
285
fabricante B. Esse, como visto, era um grande problema, porque
computadores eram projetados para operar em condições
autônomas e de forma isolada, e porque cada fabricante de
computadores adotava diferentes linguagens e sistemas
operacionais. Para resolver esse problema, um grupo composto
principalmente por estudantes de pós-graduação das
universidades que se ligariam à ARPANET passou a se reunir
informalmente. A ARPA passou a apoiar, também informalmente,
as atividades desse grupo, que ficou conhecido como Network
Working Group (NWG). O NWG nunca teve organização formal, nem
forma jurídica institucionalizada. Contudo, foi responsável
pela criação dos primeiros protocolos host-to-host, que
permitem a comunicação e interação entre os computadores
ligados a uma rede de computadores.
No processo de implementação da ARPANET, uma das
universidades a serem beneficiadas, a UCLA (University of
California Los Angeles), teve papel especial. Nessa
instituição trabalhava um antigo colaborador e amigo de Larry
Roberts (da ARPA), Leonard Kleinrock. Kleinrock havia
estabelecido as bases teóricas que viabilizaram o primeiro
experimento de Roberts na interligação entre dois computadores
– o mesmo experimento que servira de razão para que Roberts
fosse chamado a integrar o IPTO da ARPA. Por causa da presença
de Kleinrock, a ARPA alocou à UCLA a atribuição de montar e
operar um centro de medição da futura ARPANET. Com isso, sob a
direção de Kleinrock, um conjunto de pesquisadores financiados
pela ARPA se estabeleceu na UCLA com o intuito de testar e
avaliar a ARPANET. Dentro desse grupo estavam três estudantes
de pós-graduação que tiveram papel decisivo no desenvolvimento
da futura Internet: Steve Croker, Vinton Cerf e Jon Postel.
Croker foi o primeiro lider do Network Working Group. Cerf foi
um dos inventores do Protocolo Internet, juntamente com Bob
Kahn (que sairia da BBN e ingressaria na ARPA). Postel foi
286
responsável por organizar as deliberações do NWG em documentos
informais chamados requests for comments (RFCs) – que até hoje
são usados para registrar os protocolos e convenções
necessários ao funcionamento da Internet. Mais adiante, Postel
viria ainda a ser o responsável - informalmente designado pela
comunidade de pesquisadores – por atribuir números e endereços
IP, atividade que após sua morte prematura foi assumida pela
ICANN – Internet Corporation for Assigned Names and Numbers.
Em síntese, a implementação da subrede de IMPs e sua
operação foram contratados pela ARPA junto à BBN, mas a
operação em si da ARPANET dependeu também dos esforços do
Network Working Group e das universidades e centros de
pesquisa envolvidos – com destaque para UCLA. Fisicamente,
todavia, a ARPANET era interligada por linhas dedicadas
contratadas junto à AT&T – então monopolista de serviços de
comunicação de longa distância. O uso das linhas da AT&T para
o tráfego de informações geradas por equipamentos produzidos
fora do Sistema Bell, porém, era também algo muito recente.
Foi apenas em 1968, um ano antes da implementação da ARPANET,
que a decisão da FCC no caso conhecido como Carterfone passou
a obrigar a AT&T a aceitar que terminais produzidos por
empresas de fora do Sistema Bell fossem conectados à rede de
telefonia.437 Computadores não eram produzidos pelo Sistema
Bell, e quando conectados às redes de telefonia passam a ser
terminais dessas redes. Ao contrário do que se poderia
437 Carterfone era um dispositivo que conectava um rádio à linha telefônica, e seu uso foi autorizado pela FCC com base na justificativa de que deveria ser permitida a conexão de qualquer terminal do usuário (em inglês: customer premises equipment) se não se comprovasse que em resultado da conexão a rede telefônica sofresse impacto ou deterioração de sua qualidade. Antes da decisão em Carterfone, a AT&T e suas subsidiárias partiam de presunção oposta: todo terminal que não fosse produzido pelo Sistema Bell seria potencialmente danoso ao sistema de telefonia. Ver: HUBER et. al., 1998, pp. 667-673.
287
imaginar hoje em dia, a AT&T não via com entusiasmo a conexão
de computadores em sua rede (e a comutação por pacotes, que
dependia de computadores para ocorrer). Ao contrário, aquela
empresa se opunha a qualquer possível ameaça a seu modelo de
negócios, então baseado no completo monopólio de serviços e
equipamentos de comunicação pela rede de telefonia.438
438 Cf. HAFNER e LYON, 1998, posição 713.
289
A Figura 13 acima retrata as principais interações
institucionais e atividades de produção e alocação de recursos
envolvidas na criação e implementação da ARPANET. A primeira
evidência é o papel relativamente limitado e pequeno de
atividades mediadas por mecanismos de preços. As atividades
que criaram a ARPANET não foram determinadas pela perspectiva
de ganho individual. Não se quer com isso afirmar que foram
decisões altruístas, mas sim que a ARPANET foi produto de um
esforço coletivo de articulação e cooperação entre
instituições estatais e instituições privadas. Além disso, as
decisões centrais envolvidas na criação da rede não foram
mediadas pela moeda. Não foi em razão da estimativa de
utilidade, medida em moeda, que Licklider formou uma
comunidade de pesquisadores para pensar no papel de
computadores para computação, ou que Bob Taylor resolveu
propor uma rede para conectar os diferentes computadores com
que fazia time-sharing, ou que Larry Roberts decidiu utilizar
o compartilhamento por pacotes no projeto da rede, ou que
Crowther e os membros do NWG desenvolveram protocolos e
aplicações host-to-host. Efetivamente, todos envolvidos
atribuíam utilidade a uma rede de computadores, mas os
recursos alocados (tais como dinheiro, tempo, esforço, etc.)
para a criação e construção dessa rede não foram comensurados
pela utilidade derivada da alocação desses recursos.
A construção da ARPANET – e depois da Internet – foi
a construção de um bem comum no sentido que lhe atribui a
Economia Neoclássica, isto é, um bem que pode ser usado
igualmente por todos de uma comunidade, e cujo uso por uma
pessoa não obsta a que outra o utilize. Esse caráter
comunitário da construção da ARPANET deu o tom do longo
processo que culminou com o surgimento da Internet nos moldes
de hoje. Esse processo institucionalizou relações de
cooperação e foi pautado por atividades em que a conduta dos
290
agentes envolvidos não era resultado da perspectiva de ganho
em razão da utilidade atribuída. Por isso, a ARPANET
exemplifica um caso em que, embora direcionada por um ente
estatal, houve um processo desconcentrado de cooperação, mas
em que as instituições que mediaram a cooperação não foram
instituições de mercado.
3.3. Conclusões dos estudos de casos
O primeiro caso estudado foi a progressiva quebra do
monopólio da AT&T (American Telephone and Telegraph
Corporation) na telefonia de longa distância nos EUA, e que
veio a culminar com a cisão daquela companhia e a
implementação de um novo marco legal para as telecomunicações
americanas. O segundo caso foi o processo de criação e
implementação da ARPANET, a rede de computadores que daria
ensejo à Internet. Ambos os casos ocorreram durante o mesmo
período (final da década de 1960) e – essencialmente – no
mesmo lugar (EUA). Sob os olhos da visão paradigmática, são
casos que poderiam ser reduzidos à ideia de intervenção do
Estado na economia, o que pode passar a impressão de que
seriam dois exemplos de um fenônemo semelhante (a intervenção
estatal).
No primeiro caso – telefonia de longa distância -, a
visão paradigmática identificaria uma intervenção regulatória,
em que o Estado comparece para limitar ou constranger a
atuação do mercado. Vimos, porém, que a atuação do Estado
resultou na criação de um novo mercado – o de serviços entre
operadoras. No segundo caso – a criação da ARPANET -, a visão
paradigmática enfatizaria o papel do Estado na construção
dessa rede de computadores – qualificando-o como intervenção
291
direta ou como serviço público. Contudo, a ARPANET resultou de
um emaranhado de relações entre instituições estatais e
privadas que sequer pode ser descrito segundo a tipologia da
visão paradigmática, e desse emaranhado surgiu uma forma
peculiar de organização e alocação de recursos que, embora
descentralizada, não pode ser qualificada como uma instituição
de mercado, pois não assume um modo de coordenação da produção
e consumo baseado em mecanismo de preços.
Tratou-se de dois casos serem contemporâneos e
ocorridos no mesmo local (EUA), mas em que os resultados da
ação estatal não apenas foram bastante diversos, mas também
são disconformes ao paradigma. Em um caso, a regulação estatal
não conteve, nem limitou um mercado, mas constrangeu e
modificou instituições extramercado para criar um novo
mercado. Em outro caso, a atuação do Estado foi indutora de
uma teia de relações de cooperação baseadas na busca de um bem
comum, relações essas que criaram instituições e modos de
alocação de recursos até então inéditos – e que não foram
alcançados pelas instituições de mercado existentes.
Essas constatações apontam para a fragilidade da
ideia de que há um conjunto de instituições ótimo ou ideal,
que a humanidade alcançaria por um processo de evolução
baseado em tentativa e erro. Decerto, a ARPANET não teria
surgido se a atuação estatal fosse a mesma da cisão da AT&T. A
disciplina por regulamentos e a supervisão judicial,
determinantes no caso da telefonia de longa distância, tiveram
papel quase irrelevante na criação de uma rede de computadores
baseada na comutação por pacotes, e menos ainda na
implementação das instituições de cooperação que viabilizaram
que aquela rede se convertesse na semente de uma futura rede
mundial de comunicação – a Internet. Os casos ilustram, assim,
um dos temas centrais desta tese: não há fórmula pré-
292
determinada para uma boa ou má atuação das instituições
econômicas, e tampouco para disciplinar o papel do Estado.
Aceita essa constatação, isto é, na ausência de uma solução
universal para os problemas econômicos, o desafio do direito
passa a ser buscar alternativas ao determinismo institucional
na construção de múltiplos caminhos para a efetivação de
direitos individuais e sociais.
293
Conclusão
Como visto nos capítulos anteriores, a visão
paradigmática mantém a divisão público-privado com
características que remontam ao Pensamento Jurídico Clássico.
Neste, a divisão público-privado era estruturada segundo o que
Duncan Kennedy chama de teoria da vontade – vontade pública
absoluta no âmbito público, vontade privada absoluta no âmbito
privado. No Pensamento Jurídico Contemporâneo, a teoria da
vontade é substituída pelo neoformalismo e pela policy
analysis, mas mantém-se a distinção entre público e privado.
Identifica-se privado com economia, e toma-se economia como
sinônimo de mercado. O público, por oposição a essa ideia de
privado, seria o domínio do Estado, em que a política seria
instrumental na contenção do privado, mediante intervenção
neste. A caracterização de Estado e mercado se dá conforme o
que Mangabeira Unger chama de tese da convergência439 – a ideia
de que haveria um conjunto típico de instituições que
traduziriam o melhor modelo de interação entre Estado e
economia. Para tanto, a visão da Economia Neoclássica é
determinante no paradima, especificamente quanto a duas
ideias: mercados surgem espontaneamente, e agentes econômicos
agem racional e hedonisticamente na busca de seus interesses
pessoais.
Em decorrência, a tese da convergência descamba em
fetichismo institucional. Com base em Mangabeira Unger,
afirmamos que do fetichismo institucional resulta a
oportunidade perdida de construção institucional pelo direito.
439 Sobre a tese da convergência, ver item 2.1 supra.
294
Também com base em Mangabeira, defendemos que esse papel de
construção institucional é fundamental para que o projeto de
libertação social que representa a democracia contemporânea
seja efetivado. Caso contrário, a reafirmação das instituições
atuais manterá a sociedade no atual ciclo de profecias
autorrealizadas.440 Acerca das relações econômicas, essa visão
corresponde ao diagnóstico feito por Karl Polanyi quanto à
influência das ideias de Adam Smith na formação da economia
moderna:
Ninguém menos que um pensador do calibre de Adam Smith
sugeriu que a divisão do trabalho na sociedade era
dependente da existência de mercados, ou, como ele
expôs, da “propensão para barganhar, trocar e fazer
escambo de uma coisa por outra.” Essa frase
posteriormente resultaria no conceito do Homem
Econômico. Em retrospecto, pode-se dizer que nenhuma
imprecisão sobre o passado se provou mais profética do
futuro.441
Porque enxergaram o passado com os olhos de Adam
Smith, economistas e juristas construiram um futuro em que as
instituições econômicas são tais que a motivação de ganho
individual é determinante na alocação de recursos. O
fetichismo institucional obscureceu o caráter contingente das
instituições e de suas formulações jurídicas – na expressão de
Marcus Faro.442 Porque se ignora o caráter contingente, outras
instituições não são imaginadas. E porque outras instituições
440 Cf. item 2.1 supra. 441 “No less a thinker than Adam Smith suggested that the division of labor in society was dependent upon the existence of markets, or, as he put it, upon man’s “propensity to barter, truck and exchange one thing for another.” This phrase was later to yield the concept of the Economic Man. In retrospect it can be said that no misreading of the past ever proved more profetic of the future.” (POLANYI, 2001, p. 45 – tradução livre, grifo ausente do original.) 442 Ver item 2.5 supra.
295
não são imaginadas, as instituições que eram contingentes
passam a ser percebidas como imutáveis e a perdurar no tempo.
Esse círculo vicioso, em essência, é o que queremos nos
referir com a ideia de profecia autorrealizada. Profecias
autorrealizadas, hoje, tornam a sociedade prisioneira de um
mundo em que as instituições foram construídas para
privilegiar o comportamento autossuficiente (mais independente
e egoísta), em detrimento do comportamento baseado em relações
comunais (baseado na cooperação altruísta).443
Além de submeter o direito a um círculo vicioso de
profecias autorrealizadas, o fetichismo institucional
significou a desconsideração pela visão paradigmática de pelo
menos duas características fundamentais do papel do direito na
economia. A primeira é que o direito é instrumental tanto no
que diz respeito à existência de mercados, quanto no que
concerne à existência de instituições extramercados.444 A
segunda é que instituições econômicas atuam não apenas na
mediação das ações dos agentes econômicos, mas também na
formação de preferências e interesses.445
Quanto à primeira característica, uma decorrência é
a impossibilidade de se igualar economia – ou ordem econômica
– a mercado. Não apenas porque o mercado é uma abstração que
não guarda correspondência com a realidade, como já diversas
vezes reiterado nesta tese. Mas porque há um sem número de
atividades econômicas relevantes que são realizadas fora de
mercados. Essas atividades extramercados servem de suporte a
443 Ver supra, item 2.4.5. 444 Ver supra, item 2.3 – firmas como instituições alternativas a mercados por Ronald Coase - e item 2.5 – para a análise de Marcus Faro de Castro sobre instituições extramercados e seu papel na estruturação de instituições intramercados. 445 Ver item 2.4 supra.
296
mercados, mas também são uma alternativa a mercados no que diz
respeito à alocação de recursos (produção, troca e consumo de
bens e serviços). Isso significa que mesmo o singular problema
econômico da produção de riqueza não pode prescindir da
análise de atividades extramercados, dado que riqueza é
produzida e circulada também fora de instituições de
mercado.446
Tendo em vista que a formulação jurídica é
instrumental para a estruturação de mercados e para a
internalização de atividades pelos mercados, o direito
ordinariamente faz mais do que intervir na economia – tal como
descreve a visão paradigmática. Esse papel adicional do
direito na economia é largamente ignorado pela doutrina
jurídica hoje dominante. Mas ignorá-lo não faz com que esse
papel deixe de existir. O fetichismo institucional, logo, mais
do que eclipsar a possibilidade de construção institucional da
economia pelo direito, obscurece o papel que o direito
necessariamente já tem na economia.
Quanto à segunda característica ignorada - o papel
das instituições econômicas na formação de preferências e
interesses - novamente, a deficiência da visão paradigmática
está naquilo que é obscurecido. Os diversos insights
fornecidos pelas diferentes perspectivas analisadas no
capítulo 2 mostram que instituições não influenciam
comportamentos apenas quando buscam explicitamente condenar ou
recompensar determinadas atitudes. Por isso, o direito faz
mais do que estabelecer incentivos para agentes racionais. As
446 Nesse sentido, por exemplo, caminha a proposta elaborada por uma comissão presidida pelos economistas Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Jean-Paul Fitoussi, a pedido do então presidente da França Nicolas Sarkozy – STIGLITZ et. al., 2009.
297
escolhas individuais nas relações sociais em geral, e nas
econômicas em particular, são mediadas pelas instituições.
Como visto, essa mediação vai além da mera atribuição de
incentivos em face de preferências individuais pré-fixadas.447
Ao contrário, as preferências individuais são também uma
variável alterada pelas instituições econômicas. Ao se
considerar que o direito é meio de prescrição e controle de
comportamentos, a decorrência é que não apenas o direito afeta
as instituições econômicas, mas as instituições econômicas
afetam o direito.
Por conseguinte, a liberdade individual –
compreendida como o exercício de direitos de escolha
individuais448 - é constrangida institucionalmente. Esse
constrangimento se dá de três formas. Primeiro, pela limitação
das escolhas possíveis em razão das possibilidades abertas ou
implicitamente obscurecidas pelas instituições. Por exemplo,
um cidadão brasileiro de classe média pode optar entre
investir suas economias em uma poupança em um banco brasileiro
ou em ações na Bolsa de Valores de São Paulo, mas não pode
optar por investir na Bolsa de Valores de Nova Iorque. Um
cidadão brasileiro de classe alta, porém, pode também optar
por investir na Bolsa de Nova Iorque, pois seu maior poder
aquisitivo lhe dá acesso a instituições que o permitem fazê-
lo. O exemplo mostra que a liberdade individual do brasileiro
de classe média é constrangida, se comparada com a liberdade
individual do brasileiro de classe alta, e esse
constrangimento se dá pela limitação no acesso a instituições
447 Ver as contribuições da Economia Comportamental na análise da influência de fatores institucionais no comportamento - item 2.4 supra. 448 Sobre o papel do direito na proteção de direitos de escolha, ver item 2.1 supra.
298
– limitação essa que, no exemplo, está relacionada à renda,
mas também a outros fatores como educação (conhecimento do
idioma inglês), família (e.g., o filho de um brasileiro que já
trabalhou nos EUA poderá aproveitar o acesso que seu pai já
possui a instituições que viabilizem o investimento), etc.
Segundo, instituições podem sujeitar escolhas a
diferentes heurísticas e vieses cognitivos.449 Instituições
podem apresentar escolhas de modo a sistematicamente induzir
agentes a erros decorrentes do modo como as funções cognitivas
são exercidas pela mente. Isso significa que, nesses casos, as
escolhas não revelam as reais preferências do agente. O modelo
de agente racional – que sustenta a concepção do privado na
visão paradigmática – ignora os erros cognitivos e presume que
escolhas revelam as reais preferências.
Terceiro, instituições não mudam apenas
comportamentos, mas mudam também as preferências que
determinam esses comportamentos. Em outras palavras,
instituições influenciam não apenas aquilo que é escolhido,
mas também o que agentes querem escolher.
Cogitamos, desse modo, a possibilidade de que o
direito atue de forma a dar às instituições formas que
estimulam comportamentos não só por incentivos conscientemente
assimilados - como propõem as abordagens tradicionais de
Direito e Economia -, mas também pela influência que
instituições têm na formação subconsciente de preferências. A
perspectiva de que instituições jurídicas sejam usadas para
estimular a formação de preferências em nível subconsciente
pode parecer assustadora do ponto de vista da busca por
449 Ver item 2.4.4 supra.
299
autodeterminação. Todavia, a influência de instituições na
formação de preferências se dá pela ação do Sistema 1 – que,
como visto, não pode ser “desligado”.450 Isso significa que as
atuais instituições já nos influenciam quanto à formação de
nossas preferências, inclusive subconscientemente. Portanto,
ignorar o papel de instituições na formação de preferências é
um atentado ainda pior à autodeterminação.
Diante dessas considerações, cuidar da liberdade
individual não pode precindir da apropriação analítica do
papel de instituições na definição, constrangimento e
influência das escolhas que são postas aos indivíduos.
Instituições influenciam direitos de escolha, quer queiramos
ou não.
É todavia possível mudar as instituições e, com
isso, dar outra configuração a direitos de escolhas
individuais. Mas instituições não resultam da vontade
individual451 – e portanto não podem ser modificadas unicamente
por escolhas individuais. O que fazer se a preferência
individual for por opções que não são contempladas pelas
atuais instituições? Ou mesmo quando as condições
institucionais de escolha não forem as mais adequadas para que
as preferências individuais se manifestem?
Nessas condições, o fetichismo institucional pode
fazer da autodeterminação um mero jogo de cena, em que as
decisões que impliquem mudanças mais profundas são negadas aos
próprios indivíduos cuja escolha, retoricamente, se buscaria
450 Ver item 2.4 supra. 451 Ver a exposição feita na Introdução supra, em que identificamos que a ideia de instituição se refere a fatores exógenos à vontade individual, tal como argumenta GREIF, 2005.
300
privilegiar. Atrelarmo-nos a um conjunto de instituições em
decorrência do fetichismo institucional é assim obstaculizar a
possibilidade de escolher o novo. É amarrar a humanidade às
escolhas determinadas pelas instituições de seus antepassados.
A alternativa, nesses casos, é a mudança institucional, o que
só é possível pela ação política. Essa última conclusão vai ao
encontro da tese de que a liberdade individual não pode ser
descasada da liberdade coletiva, ou política. Essa tese é
defendida, por exemplo, por Hannah Arendt:
A conversão do cidadão das revoluções no indivíduo
privado da sociedade do século XIX tem muitas vezes sido
descrita, e geralmente nos termos da Revolução Francesa,
que falava de citoyens e bourgeois. Num plano mais
elaborado, podemos considerar este desaparecimento do
“gosto pela liberdade política” como a retirada do
indivíduo para um “domínio interior de consciência” onde
ele encontra a única “região apropriada da liberdade
humana”; desta região, tal como de uma fortaleza que se
desmorona, o indivíduo, tendo levado a melhor sobre o
cidadão, defender-se-á contra uma sociedade que, por sua
vez, “leva a melhor sobre a individualidade”.452
A síntese feita por Arendt nos permite ver que a
liberdade política – do citoyen, considerada como a
possibilidade de escolha entre diferentes instituições
sociais, atuais ou possíveis453 – não é apenas meio para
realização de projetos sociais. É meio para viabilizar a
própria liberdade individual – a do burgeois. Reconhecer a
autodeterminação implica não apenas dar ao homem o poder de
fazer escolhas individuais, mas também conferir-lhe o poder de
452 ARENDT, 2001, p. 172. 453 Essa definição se vale das ideias de Mangabeira Unger discutidas no item 2.1 supra.
301
mudar as escolhas que lhe são oferecidas e de superar suas
próprias limitações. É o que afirma Mangabeira Unger:
É o nosso mundo particular – o mundo que criamos pela
ação – o que podemos entender mais íntima e fielmente; o
resto da realidade nós dominamos apenas pela
extrapolação, que não podemos evitar e tampouco nela
confiar. Tendo feito nosso próprio mundo, podemos
refazê-lo. Podemos, como disse Marx, “fazer dançar as
circunstâncias cantando para elas sua própria melodia.”
[...]
Um dos serviços que a democracia presta à humanidade é
criar um clima mais favorável a tal exploração. Ela faz
isso tanto pelo ataque às formas extremas e
entrincheiradas de desigualdade, quanto por afirmar a
ideia da capacidade de homens e mulheres para
transformação e autotransformação.454
A visão paradigmática, e o próprio Pensamento
Jurídico Contemporâneo, se vinculam ao fetichismo de
instituições que assumem que a liberdade individual e o
exercício da política são necessariamente contrapostos. Essas
ideias se vinculam, nas relações econômicas, à concepção de
mercado como produto espontâneo da liberdade individual, e
limitam a autodeterminação a objetivos hedonistas manifestados
nas escolhas individuais que caracterizariam o mercado. Não
reconhecem que mercados são eles próprios produtos de escolhas
454 “It is our own world – the world we create through action – that we can understand more intimately and confidently; the rest of reality we master only by an overreaching that we cannot avoid and cannot trust. Having made our own world, we can remake it. We can, as Marx said, “make the circumstances dance by singing to them their own melody.” /§/ [...] Not the least service that democracy renders to humanity is to create a climate more favorable to such exploration. It does so both by its assault on the extreme and entrenched forms of inequality and by its espousal of the idea of the capacity of ordinary men and women fo transformation and self-transformation.” (UNGER, 2007a, p. 53 – tradução livre.)
302
humanas, e por isso sujeitos também à autodeterminação. E
desconsideram que a autodeterminação implica também reconhecer
aos indivíduos o direito a exercer escolhas que não sejam
egoístas. Reconhecer a liberdade e afirmar a autodeterminação
exige reconhecer o direito de escolher, por exemplo,
instituições baseadas em relações comunitárias. Exige também
afirmar o direito de que indivíduos manifestem escolhas
baseadas no bem-estar dos outros – ainda que em detrimento de
seu próprio bem-estar. Exige, enfim, abertura ao
reconhecimento de outras manifestações institucionais que não
sejam condizentes com as suposições de que indivíduos escolhem
racionalmente segundo preferências hedonistas.
Por isso, uma nova compreensão do papel do direito é
necessária, para substituir a visão paradigmática e ampliar as
possibilidades de efetivação de direitos de escolha individual
e política. Para tanto, essa nova visão deve se desvincular do
fetichismo institucional, o que significa abrir espaços para o
reconhecimento de mudanças institucionais e para a criação de
novas instituições, tanto como produto conjunto e espontâneo
de ações individuais, como da ação política conscientemente
mediada pelas instituições democráticas.
Essa nova visão sobre as relações entre direito e
economia deve ainda contemplar o papel de instituições
extramercados na alocação de recursos (produção, troca e
consumo de bens e serviços) e no suporte de outras
instituições extra e intramercados. Finalmente, deve também
considerar a influência recíproca entre comportamento e
instituições, abandonando a ideia de que seres humanos são
dotados de racionalidade absoluta, justamente para que possam,
por meio de instituições, superar suas limitações cognitivas e
dar melhor vazão a projetos individuais e também a projetos
comunitários.
304
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