o papel da filosofia na formação da cidadania

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2. Filosofia e Cidadania Melhor do que apenas não aceitar doutrinas que neguem a liberdade de outrem, injuriando a dignidade humana e engendrando a barbárie, é, além disso, promover uma reflexão filosófica que afirme a liberdade eticamente exercida de outrem, que suporte conceitualmente o ético exercício da liberdade humana, contribuindo com a afirmação da cidadania. Assim, ao lado da crítica que desvenda mecanismos alienadores e opressivos afirmam-se elementos filosóficos que permitem considerar a construção de novas relações humanas que ampliem as liberdades de todos. Como nenhum preconceito deve servir de referência para decidir sobre quais temas algum filósofo possa trabalhar, nada impede que um filósofo tome, como tema de sua investigação, questões éticas, estéticas, políticas, semióticas, gnosiológicas, entre tantas outras que emerjam da práxis social, com vistas à construção da cidadania. Como é de consenso na comunidade filosófica, não cabe à filosofia tornar-se baluarte na defesa de sistemas ideológicos e políticos. Pelo contrário uma de suas possíveis tarefas é criticar tais sistemas, como objetivo de produzir conceitos que permitam às pessoas viverem com sabedoria, ampliando e fortalecendo o exercício das liberdades públicas e privadas, considerando criticamente os elementos éticos, estéticos, políticos, semiológicos, gnosiológicos e tantos outros que perpassam as relações sociais. Esta idéia basilar é um dos fundamentos da assim chamada filosofia da libertação que destaca a necessidade de refletir-se filosoficamente a práxis social, considerando em particular as situações que caracterizam fenômenos de injustiça e opressão, a fim de promover a ampliação das liberdades públicas e privadas em sua máxima extensão possível, tendo a consciência de que, sendo a liberdade um exercício historicamente condicionado, não haverá jamais uma libertação total nem tampouco uma dominação absoluta, havendo sempre a possibilidade de os seres humanos decidirem libertar-se não apenas daquilo que os oprime,

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Page 1: O Papel da Filosofia na Formação da Cidadania

 

2. Filosofia e Cidadania

Melhor do que apenas não aceitar doutrinas que neguem a liberdade de outrem, injuriando a dignidade humana e engendrando a barbárie, é, além disso, promover uma reflexão filosófica que afirme a liberdade eticamente exercida de outrem, que suporte conceitualmente o ético exercício da liberdade humana, contribuindo com a afirmação da cidadania. Assim, ao lado da crítica que desvenda mecanismos alienadores e opressivos afirmam-se elementos filosóficos que permitem considerar a construção de novas relações humanas que ampliem as liberdades de todos.

Como nenhum preconceito deve servir de referência para decidir sobre quais temas algum filósofo possa trabalhar, nada impede que um filósofo tome, como tema de sua investigação, questões éticas, estéticas, políticas, semióticas, gnosiológicas, entre tantas outras que emerjam da práxis social, com vistas à construção da cidadania. Como é de consenso na comunidade filosófica, não cabe à filosofia tornar-se baluarte na defesa de sistemas ideológicos e políticos. Pelo contrário uma de suas possíveis tarefas é criticar tais sistemas, como objetivo de produzir conceitos que permitam às pessoas viverem com sabedoria, ampliando e fortalecendo o exercício das liberdades públicas e privadas, considerando criticamente os elementos éticos, estéticos, políticos, semiológicos, gnosiológicos e tantos outros que perpassam as relações sociais.

Esta idéia basilar é um dos fundamentos da assim chamada filosofia da libertação que destaca a necessidade de refletir-se filosoficamente a práxis social, considerando em particular as situações que caracterizam fenômenos de injustiça e opressão, a fim de promover a ampliação das liberdades públicas e privadas em sua máxima extensão possível, tendo a consciência de que, sendo a liberdade um exercício historicamente condicionado, não haverá jamais uma libertação total nem tampouco uma dominação absoluta, havendo sempre a possibilidade de os seres humanos decidirem libertar-se não apenas daquilo que os oprime, como também dos limitados horizontes de conhecimento nos quais se movem, a fim de poderem realizar aquilo que os humanize cada vez mais.

Esta perspectiva filosófica, foi coletivamente assumida no Brasil em setembro de 1988 no III Encontro Nacional de Filosofia, em Gramado-RS, por um conjunto de filósofos que subscreveu o que ficou conhecida como Carta de Gramado(12). Destacando que a filosofia, desde o seu surgimento na Grécia antiga, "manifestou-se como atividade intelectual que busca pensar o homem e sua realidade", o documento esclarecia que "a Filosofia da Libertação, no contexto da Filosofia Latino-Americana, constitui uma corrente de pensamento filosófico que busca a reflexão crítica sobre a opressão do homem, a partir de uma perspectiva latino-americana", tomando como questões para reflexão e ação os seguintes elementos: "a) a situação de exploração e dependência do terceiro mundo; b) a democracia; c) a educação; d) a justiça social; e) as situações de discriminação étnico, racial e sexual; f) a ecologia."(13)

Esse conjunto de elementos, que não pretende ser exaustivo mas apenas indicador do perfil das questões às quais prioritariamente se volta esta reflexão, possibilita considerar que os temas a serem refletidos advenham da práxis social que busca construir espaços mais amplos de exercícios de liberdade.

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A argumentação que articula filosofia e cidadania também está presente em um dos movimentos pela reintrodução da filosofia no ensino médio brasileiro, que, considerando a educação pública, gratuita e de qualidade como condição do exercício da cidadania, destacará a necessidade do ensino de filosofia no segundo grau como elemento da formação humanística necessário ao fortalecimento da democracia.

A Moção em Defesa da Filosofia no Segundo Grau, elaborada neste movimento em 1996, analisava que o ensino de segundo grau, voltado cada vez mais para o aspecto tecnológico - conforme a LDB então defendida pelo Governo e que foi aprovada pelo Congresso -, negligenciava conteúdos humanísticos fundamentais para a cidadania. Particularmente enfatizava o documento:

"entre as disciplinas humanísticas necessárias à educação para a cidadania ressaltamos a importância da Filosofia que deve constar nos currículos escolares. O seu papel é formar pessoas com pensamento crítico, solidário, criativo, que saibam distinguir argumentos, fundamentar posições e tomar decisões, habilidades necessárias ao mundo prático. Não se trata somente de apreender conteúdos tecnológicos já elaborados, mas desenvolver a capacidade de compreendê-los, criticá-los e de produzir ciência. Trata-se de manejar estruturas de pensamento e resolver problemas, formando as condições básicas para o pensar em todos os campos, inclusive o tecnológico."(14)

Assim, compreende-se a educação filosófica como capaz - entre outros aspectos - de formar pessoas que exercitem um pensamento criterioso, que desenvolvam semioticamente interpretantes afetivos solidários, que aprimorem a criatividade na inteligibilidade e intervenção sobre os eventos dos quais tomam parte, que saibam distinguir argumentos ponderando os diversos elementos neles envolvidos e sua articulação orgânica, fundamentar posições em bases conceituais mais sólidas e tomar decisões por conta própria nas diversas esferas do mundo da vida. Considerada deste modo, a filosofia possibilita desenvolver a capacidade geral de compreender os conhecimentos em suas complexidades, permitindo inteligir de maneira mais precisa tanto as elaborações humanísticas quanto tecnológicas e de criticá-las, formando certas bases valiosas à própria elaboração científica, uma vez que desenvolve a habilidade em manejar estruturas de pensamento, em realizar análises e sínteses, reimplantando os conhecimentos produzidos em horizontes mais amplos e orgânicos, possibilitando ordenar logicamente problemas complexos e de organizar a sua resolução.

Esta concepção de filosofia, como prática de cidadania, entretanto, enfrenta pesadas críticas formuladas a partir de uma falsa dicotomia subjacente a muitos cursos de graduação em filosofia no Brasil, a saber, de que não se pode ensinar alguém a ser filósofo, isto é, a criar novos conceitos e a ensaiar novas estratégias teóricas em que estes se articulem, mas que somente é possível formar bons professores de filosofia, isto é, pessoas que saibam ensinar filosofia, explicando adequadamente o que os filósofos escreveram ou ensinaram. Para estes, o fundamental não está em desenvolver a habilidade de refletir filosoficamente os desafios contemporâneos lançados à elaboração crítica a partir da realidade de cada qual, não está em criar novos conceitos possibilitando a cada um pensar por si mesmos a sua existência, mas basicamente em levar os alunos a apropriarem-se de reflexões e conteúdos reconhecidos como filosóficos pela comunidade acadêmica internacional. Em parte, em razão desta concepção, gerou-se mesmo um certo cuidado, no Brasil, no uso dos adjetivos filósofo e professor de filosofia. Nos jogos de linguagem habituais sobre o tema, quem se forma

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em sociologia é sociólogo, quem se forma em psicologia é psicólogo, mas quem se forma em filosofia é professor de filosofia. O fato de que possa existir bons professores de filosofia, que a cultivem sem se preocupar em criar novos conceitos ou estratégias teóricas inovadoras na resolução de problemáticas atuais, não significa que não sejam estas as principais tarefas para as quais os graduandos em filosofia devam progressivamente se voltar. Assim, os cursos de graduação em filosofia não podem ser reduzidos a excelentes cursos de história da filosofia européia e norte-americana, nos quais pouco se reflete a própria realidade em que vivemos. Pelo contrário, cursos que enfatizam a história da filosofia européia, norte-americana, latino-americana, africana e asiática devem contribuir também para aprimorar o exercício da crítica filosófica sobre problemáticas urgentes da realidade contemporânea na qual o pensador está inserido como cidadão. Tão imprescindível como não tergiversar acerca de uma compreensão rigorosa dos fundamentais textos clássicos de toda a história da filosofia, é não deixar de pensar a própria realidade em que se está, julgando por si mesmo as questões éticas, estéticas, políticas e científicas, entre tantas outras, que condicionam o exercício da liberdade que a reflexão filosófica visa ampliar.

Trata-se, pois, de uma falsa dicotomia porque é possível aprender a filosofar exercitando o pensamento a partir de qualquer área de investigação e, particularmente, estudando a própria filosofia. Com efeito, qualquer teórico de uma ciência específica, aprofundando os conhecimentos de sua área poderá atingir um patamar de reflexão reconhecida academicamente com o título de Philosophiae Doctor (Ph. D.) naquele assunto, isto é, alguém que se tornou um doutor filosófico naquela matéria. Embora esta expressão advenha do período medieval e seja comumente utilizada em universidades européias e norte-americanas como título conferido a quem conclui seu doutorado em qualquer área do conhecimento, cabe destacar que vários filósofos nunca se graduaram formalmente em filosofia, mas em matemática, direito, física, biologia, etc. Se é possível um pensador filosofar sem ter feito um curso acadêmico de graduação em filosofia, por outro lado também é possível aprender a filosofar participando-se de processos pedagogicamente organizados com vistas a exercitar a própria reflexão filosófica. A dupla fonte de elementos, neste caso, são os textos filosóficos e a própria realidade. Trata-se de problematizar a realidade, recuperando os elementos que a tradição filosófica - em seus textos - nos dispõe para considerá-la e avançar dialogicamente em uma reflexão que gere novos conceitos que permitam uma posição mais consciente e livre sobre os reais condicionantes da existência humana.