princípios, seu papel na filosofia e nas ciências

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Luiz Henrique de A. Dutra Cézar Augusto Mortari (orgs.) Núcleo de Epistemologia e Lógica Universidade Federal de Santa Catarina

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Princípios, seu papel na filosofia e nas ciências Luiz Henrique de A. Dutra & Cézar Augusto Mortari (Orgs.)

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Page 1: Princípios, seu papel na filosofia e nas ciências

Luiz Henrique de A. Dutra Cézar Augusto Mortari

(orgs.)

Núcleo de Epistemologia e Lógica Universidade Federal de Santa Catarina

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Princípios

Seu Papel na Filosofia

e nas C iências

Page 3: Princípios, seu papel na filosofia e nas ciências

Universidade Federal de Santa Catarina- UFSC Rodolfo Joaquim Pinto da Luz, reitor

Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação João Pedro Assumpção Bastos, pró-reitor

NEL - Núcleo de Epistemologia e Lógica Luiz Henrique de Araújo Dutra, coordenador

Page 4: Princípios, seu papel na filosofia e nas ciências

RUlYIOS DA EPXSTElYIOLOGXA., VOL. 3

Luiz Henrique de Araújo Dutra

Cézar Augusto Mortari

(orgs.)

Princípios

Seu Papel na Filosofia

e nas Ciências

NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica Universidade Federal de Santa Catarina

Florianópolis, 2000

Page 5: Princípios, seu papel na filosofia e nas ciências

© 2000, NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC.

ISBN: 85-87253- 04- 2

UFSC, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, NEL. Cx. Postal 4 76, 880 I 0-970 Florianópolis, SC (048) 331.8803, fax: 331.8808 nel@cfh. ufsc. br http://www.cfh.ufsc.br/~nel

Editoração Eletrônica: NEL -Núcleo de Epistemologia e Lógica Impressão e Acabamento: Imprensa Universitária, UFSC

Ficha Catalográfica (Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária da

Universidade Federal de Santa Catarina)

P957 Princípios : seu papel na filosofia e nas ciências I Luiz Henrique de Araújo Dutra, Cézar Augusto Mortari, orgs.- Florianópolis: NEUUFSC, 2000. 369p. -(Rumos da epistemologia ; v.3)

Inclui bibliografia. ISBN : 85-87253-04-2

I . Ciência - Filosofia . 2. Epistemologia. I. Dutra, Luiz Henrique de Araújo. TI. Mortari, Cézar Augusto.

CDU: 165

Reservados todos os direitos de reprodução total ou parcial por NEL- Núcleo de Epistemologia e Lógica, UFSC

Impresso no Brasil

Page 6: Princípios, seu papel na filosofia e nas ciências

coleção RUDIOS DA EPISTE:MOLOGIA

Editor: Luiz Henrique de Araújo Dutra

Conselho Editorial: Alberto Oscar Cupani, Cézar Augusto Mortari, Gustavo Andrés Caponi, José André Angotti, Luiz Henrique de Araújo Dutra, Marco Antônio Frangiotti, Sara Albieri.

Núcleo de Epistemologia e Lógica Universidade Federal de Santa Catarina

Criado em 1996, o NEL tem por objetivo integrar grupos de pesquisa nos campos da lógica, teoria do conhecimento, filosofia da ciência, história da ciência, e áreas afins, na própria UFSC e de outras uni~er­sidades. Um primeiro resultado expressivo de sua atuação é a n!vista Principia, publicada desde 1997, que possui corpo editorial interhacio­nal. Principia aceita artigos inéditos, além de resenhas e nota{ sobre temas de epistemologia e filosofia da ciência, em português, espanhol, francês e inglês. A coleção Rumos da Epistemologia aceita monogra­fias ou coletâneas, textos inéditos ou traduções de textos consagrados.

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Apresentação

Os textos reunidos neste volume foram apresentados no Primeiro Sim­pósio Internacional Principia, promovido pelo NEL -Núcleo de Epis­temologia e Lógica, da UFSC, de 9 a 12 de agosto de 1999, em Floria­nópolis, para comemorar os dois anos de existência de Principia - Re­vista Internacional de Epistemologia, publicada pelo NEL e pela Edi­tora da UFSC. O encontro contou com o apoio financeiro do CNPq e da CAPES, assim como da própria UFSC, do Centro de Filosofia e Ciências Humanas e do Departamento de F ilosofia.

O tema escolhido para o simpósio foram os princípios, quer com respeito às disciplinas filosóficas, quer com relação àquelas pertencen­tes ao domínio das ciências. Os trabalhos apresentados foram agrupa­dos em cinco seções, a saber: (I) lógica e matemática, (2) Lingüística e filosofia da linguagem, (3) epistemologia e filosofia da ciência, (4) filo­sofia da mente, e (5) filosofia moral e da ação. Eles refletem pesquisas recentes e inovadoras de pesquisadores brasileiros e estrangeiros sobre o papel dos princípios nestas disciplinas.

No simpósio foram também apresentados outros trabalhos que, em virtude de seu conteúdo, se ajustavam mais ao perfil de Principia, e que foram publicados nos números do volume 3 da revista, respectiva­mente, de junho e de dezembro de 1999.

Os organizadores do simpósio e desta coletânea agradecem imensa­mente a todos os autores e às entidades acima mencionadas pelo apoio que receberam. Por fim, desejam que este volume possa ser recebido como uma contribuição de valor à literatura fi losófica.

Luiz Henrique de A. Dutra Cézar Augusto Mortari

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Sumário

SEÇÃO 1 - LóGICA E MATEMÁTICA 9 Jorge Alberto Molina

Cambio de Problemas en la Cuestión de los 11 Principias de la Matemática

Cézar Augusto Mortari Against Modal Realism 31

Jean-Yves Béziau Y a-t-il des Príncipes Logiques? 47

SEÇÃO 2 -LINGÜÍSTICA E FILOSOFIA DA LINGUAGEM 55 Maria Victoria Rébori

The Principies of Identity and Continuity 57 in the History o f Linguistics

Adriano Naves de Brito Identidade, a priori e Necessário: 69 o que Pode a Semântica sem Epistemologia

Flávio Williges Conseqüências Lógicas, Alternativas Relevantes 83 e o Princípio do Fechamento Epistêmico

João Carlos Sales Pires da Silva Wittgenstein e o Projeto de uma Linguagem Primária 95

SEÇÃO 3 - EPISTEMOLOGIA E FILOSOFIA DA CIÊNCIA 109 Marco Antônio Frangiotti

Kant e o Caráter a Prior i do Espaço 111 Sônia Ribeiro Morais

Os Princípios da Inferioridade e da Exterioridade 143 no Estudo da Percepção

Eros Moreira de Carvalho Realismo e Relativismo como Faces de uma 157 Mesma Moeda

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Noeli Ramme Versões do Mundo e Mundo das Versões 177

Sofia Inês Albornoz Stein A Epistemologia Naturalizada e a Negação 19 I de Princípios a priori do Conhecimento

Anna Carolina Krebs Pereira Regner A Seleção Natural Darwiniana: 203

Discutindo a Justificativa de um Princípio João Luís da Silva Santos e Mariana Cláudia Broens

O Perspectivismo na Concepção Pascaliana 223

de Conhecimento

SEÇÃO 4- FILOSOFIA DA MENTE 231

Renato Schaeffer Princípios Neuropsicológicos Evolucionistas 233

e Antropologia Filosófica Luiz Henrique de A. Dutra

Quine on lhe Nature of Mind: 279 From Behaviorism to Anomalous Monism

Roberto Sáncbez Benítez Jntencionalidad y Persona en la Fenomeno/ogía 313 de Husserl

SEÇÃO 5 -FILOSOFIA MORAL E DA AÇÃO 325

Maria Cecília Maringoni de Carvalho Anti-Moralismo e Anti-Paternalismo no Ensaio 327 On Liberty de John Stuart Mil!

Alcino Eduardo BoneUa Intuições, Princípios e Teorias nas Filosofias Morais 345

de Rawls e Hare Delamar José Volpato Dutra

A Categoria do Direito na 6tica do Agir 36 I Comunicativo

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Seção 1

Lógica e Matemática

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CAMBIO DE PROBLEMAS EN LA CUESTIÓN DE LOS PRINCIPIOS DE LA MATEMÁTICA

Jorge Alberto Molina Universidad de Santa Cruz do Sul

I

El objetivo de este artículo es analisar los cambios que ocurrieron en la cuestión de los Fundamentos de la Matemática en este siglo. La tesis de este artículo es que el desarrollo de la Filosofia de la Matemática siguió el mismo esquema que la evolución de la Epistemologia de las Ciencias Naturales. En un primer momento el ideal justificacionista fue dominante. En ese período la tarea de la Filosofia de la Matemática fue concebida como fundamentar la Matemática a partir de un conjunto de princípios, caracterizados de forma diferente por cada una de las tres escuelas de fundamentación de la Matemática dominantes: logicismo, intuicionismo y formalismo.

Ese idealjustificacionista también predominó en la Epistemologia de las Ciencias Naturales dei Empirismo Lógico. Los filósofos dei Círculo de Viena se plantearon la tarea de justificar la Ciencia natural a partir de los datos sensoriales usando Lógica y Teoría de Conjuntos. La crítica de Popper al inductivismo y las dificultades inherentes ai programa cama­piano de construir una Lógica inductiva, que sirviese para fundamentar Ias leyes científicas derrumbaron la creencia en la posibi lidad de justifi­car de ese modo a la Ciencia Natural. La publicación de la Estructura de las Revoluciones Científicas de Kuhn fue reconocida, posteriormente como un golpe muy duro al idealjustificacionista. Después de ese libro,

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 11-29.

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12 Jorge Alberto Mofina

los intentos de construir una Epistemología a priori, de carácter normati­vo, independiente de la Historia de la Ciencia, fueron casi abandonados.

La permanencia del ideal justificacionista en Ia Fi losofia de la Ma­temática parecia tener en principio más chances, debido a Ia creencia, originada dentro dei Círculo de rdeas dei Empirismo Lógico, de que la Matemática por el hecho de ser analítica, tiene una naturaleza diferente de la de las ciencias empíricas. Sin embargo, alrededor de la década dei 60 podemos reconocer también la aparición de w1 nuevo círculo de pro­blemas, que no se encuadran dentro de los esquemas conceptuales de las tres escuelas de fundamentación de la Matemática. Esos nuevos proble­mas giran en tomo de la noción de verdad matemática y de conocimiento matemático. Esas nuevas cuestiones sólo pudieron ser planteadas des­pués de la formulación de la noción de verdad para sistemas formates por Tarski, y dei desarrollo de la Teoria de la Demostración. Tarski ca­racteriza la noción de verdad en términos de referencia, y esto tenclría como consecuencia la necesidad de admitir entidades abstractas como objeto de la referencia. Pero por otro lado, conocemos las verdades de la Matemática por medio de pruebas. Las exigencias espistemológicas de la Matemática nos llevarían así a una especie de verificacionismo. Có­mo conciliar ambas exigencias, la derivada de la concepción semántica de la verdad y aquella derivada de la Epistemologia de la Matemática se transformó en uno de los principales problemas de la Filosofia de la Matemática actuaJ. Ese dilema fue formulado por Paul Benacerraf en su artículo "La verdad matemática." O en otras palabras, la cuestión que surgió fue la de la relación entre verdad matemática y demostración, dos conceptos diferentes que desde el teorema de incompletud de Gõdel no podían más ser confundidos.

Una evolución análoga, que va dcl justificacionismo a problemas li­gados con la verdad y la referencia podemos percibir dentro de la Episte­mologia de la Ciencia Empírica. Los límites entre Matemática y Ciencia Natural podrían ser más difusos que lo que pensaron los empiristas lógi­cos quienes, siguiendo a Hume, separaban el conocimiento matemático (analítico) de la ciencia empírica.

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Cambio de Problemas en la Cuestión de los Principios de la Matemática 13

11

La necesidad de fundamentar una ciencia, como la Matemática, que has­ta fines del siglo pasado había sido considerada el paradigma de la certe­za se debió a dos hechos: la aparición de las paradojas de la teoria intui­tiva de los conjuntos, y el surgimiento de las geometrías no euclideanas. AI distinguir entre diversos grados de infinitud, mostrando que el infi­nito dei continuo geométrico era mayor que el infinito de los números reales, la teoria de los conjuntos se reveló un instrumento indispensá­ble para el matemático. Sin embargo dentro de la teoria intuitiva de los conjuntos de Cantor podían ser derivadas paradojas. 1 Esas parado­jas hicieron pensar a los filósofos, lógicos y matemáticos interesados en cuestiones filóso.ficas, que la Matemática precisaba de una refundación, que hiciera explícitos los conceptos y regias de inferencia permitidas, con el objeto de evitar la aparición de contradicciones. Por otro lado, el surgimiento de las geometrías no euclideanas inició una modifica­ción dei concepto tradicional de ciencia deductiva debido a Aristóteles. Hasta ese momento el paradigma de teoria deductiva era la geometria euclideana, cuyos axiomas se aceptaban por ser evidentes. Aristóteles caracterizaba la ciencia deductiva dei siguiente modo:

Es necesario que la ciencia demo.strativa parta de princípios que son ver­daderos, primeros, inmediatos, más conocidos que la conclusión, ante­riores a ella, y causas de ella. En cfecto, es bajo esas condiciones, que los princípios de aquello que cs demostrado serán apropidados a la con­clusión. Un silogismo puede existir sin esas condiciones, pero é! no será una demostración, pues no producirá certeza. (Segundos Analíticos A 2, 7lb 20.)

Un nuevo concepto de teoría deductivo surgió. Ya no se exigió que los axiomas de las teorias matemáticas fuesen evidentes sino sólo que no llevaran a contradicción. Sin embargo dentro de la Filosofia de la Matemática la ruptura con el ideal aristotélico de teoria deductiva no fue total. De algún modo, la Filosofia de la Matemática de! logicismo y la dei formalismo pueden ser interpretadas como un intento de res­taurar el ideal aristotélico de teoría deductiva, que la aparición de las

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14 Jorge Alberto Mofina

geometrias no euclideanas había colocado en cuestión. Si la evidencia ya no podia ser encontrada dentro de las teorias matemáticas, podia sin embargo, ser encontrada detrás de ella en la Lógica o encima de ella, en la Metamatemática. El logicismo de Frege y Russell consistió en la tentativa de reducir la Matemática a la Lógica a la que se consideraba el reino de las verdades evidentes. Ya no era necesario exigir que los axiomas de las teorias matemáticas fuesen evidentes. Para restaurar la certeza de la ciencia evidente era necesario que las verdades matemáti­cas pudiesen ser reducidos a axiomas lógicos, siendo estas últimas las verdades evidentes. Un abandono radical dei ideal aristotélico de teoria deductiva hubiese exigido admitir la existencia de lógicas divergentes.

Para obtener ese objetivo de redución de la Matemática a la Lógica, Frege reformuló la estructura de la Lógica tradicional. Entre las nove­dades introducidas por Frege podemos nombrar dos: una nueva teoria de la cuantificación2 y la introducción de sistemas formates o Cálcu­los. Actualmente llamamos Cálculo o sistema formal a un conjunto de expresiones simbólicas (fórmulas) dotado de regias de inferencia que permiten obtener una fórmula a partir de otras. Dentro de las fórmulas del sistema fonnal hay una clase de fórmulas escogidas que se llaman axiomas. En sí rnismas las fórmulas de un sistema formal no tienen sig­nificado, son meros signos. Pero Ias fórmulas pueden ser interpretadas de manera que den origen a enunciados pertenecientes a alguna teoria deductiva determinada T. En ese caso, decimos que el sistema formal es un cálculo para la teoria T, o que fue construido para formalizar T, o que T es un modelo dei sistema formal, todas estas formas de ex­presión son equivalentes. En principio el sistema formal fue construído para representar a T, pero sus fórmulas podrían ser interpretadas de for­ma de simbolizar otra teoria matemática S. En su Conceptograjia Frege presentó un sistema formal para la Lógica.3

Para derivar la Matemãtica a partir de la Lógica era preciso definir el concepto "número" a partir de conceptos lógicos como el concepto de "clase" y el de "identidad." La idea subyacente ai programa logicista es que la reducción de la Matemática a la Lógica permitiria superar las incertezas de la Matemática al permitir expresar las verdades matemá-

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Cambio de Problemas en la Cuestión de los Principias de la Matemática 15

ticas en términos de las verdades analíticas de la Lógica. La tradición asimilaba la Lógica a lo evidente, a lo que no podía ser colocado en duda.4

El programa formalista de Hilbert de fundamentación de la Matemá­tica consistió en justificar las diferentes teorias matemáticas por medi o de una prueba de que basándose en los axiomas de esas teorias, es irnpo­sible demostrar una contradicción, esto es, un enunciado de la forma p

y no p. Este tipo de prueba se llama prueba de consistencia. También el origen de las pruebas de consistencia se encuentra en las Geometrias no euclideanas. Como estas Geometrias no parecían tener una interpreta­ción física, a diferencia de la Geometria euclideana cuya interpretación es el espacio de la Física newtoniana, surgió la sospecha sobre si a partir de los axiomas de esas Geometrias no era posible demostrar una contra­dicción. Fue preciso entonces encontrar una prueba de la consistencia de esas Geometrias alternativas. Para realizar la prueba de consistencia de una teoria matemática T era preciso, pensaba Hilbert, encontrar en prirner lugar un sistema formal r que represente a T.5 Decimos que en un sistema formal r derivamos una fórmula A cuando a partir de los axiomas de r usando las regias de inferencia del sistema llegamos a A. 6

El concepto de derivación formal es la contraparte formal del con­cepto de deducción dentro de una teoría deductiva cualquiera. r de­be ser construído para representar T, no sólo en el sentido de que las fórmulas de r puedan ser interpretadas como enunciados de T (vimos también que ellas podrían ser interpretadas también como enunciados de otra teoria matemática S7) sino también en el sentido de que toda deducción en T pueda ser representada por una derivación formal en r . Luego para demostrar la consistencia de T es suficiente probar que en r no pueda derivarse ninguna fónnula del tipo p 1\ -,p. En términos más simples para probar la consistencia de T es suficiente probar la consis­tencia de r. A diferencia de los enunciados de T, las fórmulas de r son construídas de acuerdo con regias precisas. Eso facilita la construcción de una prueba de consistencia para r.

La prueba de consistencia de r consiste en examinar la estructura de las derivaciones en r , y usando herramientas tan simples y formas

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de razonamiento tan evidentes que no puedan ponerse en duda, mostrar que en r no puede derivarse ninguna contradicción. Esas herramientas y formas de razonamiento son llamadas por Hilbert métodos finitarios. Para que la prueba de consístencia sea realmente significativa desde el punto de vista fundacional, ella debe ser efectuada usando modos in­ferenciales más simples, más inmediatos y conocidos que aquellos que la teoria r intenta expresar. Operamos así con tres planos: por un lado tenemos la teoria matemática (informal) T cuya consistencia queremos probar, por otro lado tenemos el sistema formal r que representa T, cu­yas fórmulas ai ser interpretadas dan origen a enunciados de T, y que además representa todas las demostraciones que puedan realizarse en T por medio de derivaciones formates en r, y por último tenemos la me­tatearia donde se realiza la prueba de consistencia de r. Esa prueba de consistencia de r debe ser realizada con métodos de prueba más simples que aquellos que son usados en la teoria T.

Para el formalismo la evidencia no está en los axiomas de una de­terminada teoria matemática, que ai ser derivados de los axiomas de la Lógica serian evidentes (como pensaban los logicistas), mas es en la me­tatearia que debemos buscar la evidencia. Son los modos de inferencia finitarios los que garantizarian la evidencia. Las regias de inferencia que pueden ser aceptadas desde el punto de vista fonnalista son el principio de inducción completa8 y las regias usuales de la Lógica tradicional con excepción de la regia de reducción al absurdo, regia que permite inferir un enunciado A probando una contradicción a partir de la negación de A y de la regia que permite afirmar la existencia de un elemento que satisface la propiedad P a partir de haber probado que no se da el caso que ningún elemento satisfaga P.

El intuicionismo matemático también estuvo a la búsqueda de un fundamento evidente para la Matemática. Para evitar e l surgirniento de paradojas los intuicionistas limitaron el conjunto de regias de inferen­cia admisibles, eliminaron las definiciones impredicativas y rechazaron la admisión de conjuntos actualmente infinitos. Grosso modo las regias de inferencia que los intuicionistas aceptan son las regias de inferencia usadas en la Metamatemática hilbertiana. El uso de definiciones impre-

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dicativas ya había sido rechazado por Poincaré quien las responsabil izó por el surgimiento de las paradojas dentro de las teorías de conjuntos. Esas definiciones definen un elemento a partir de una totalidad que en­globa ese elemento.9 Para los intuicionistas como para Aristóteles sólo existe el infinito potencial de la serie de los números naturales. Para ellos no existen conjuntos actualmente infinitos.

Lo que hemos denominado justificacionismo consiste básicarnente en el intento de restaurar el ideal aristotélico de ciencia. Obtener por medio de inferencias todas las verdades de la ciencia a partir de una base de verdades evidentes (los axiomas). En la Epistemologia de la Ciencia Natural el programa justificacionista por excelencia es el de Carnap. Son sorprendentes las semejanzas entre el programa de Car­nap y el programa formalista de Hi lbert. La lógica inductiva de Carnap es una metateoría de la ciencia empírica cuyo objetivo es fundamentar la ciencia natural. La lógica inductiva es a la Ciencia natural, lo que la Matemática hilbertiana es a la Matemática. La lógica inductiva nos per­mite determinar con exactitud los grados de creencia de una hipóteses. La Lógica inductiva debería asignar medidas probabilísticas a las dife­rentes hipótesis empíricas. El programa justificacionista de Carnap se reveló irrealizablc. El mismo Carnap modificá sus concepciones reite­radas veces, pcro las diiicultades técnicas y conceptuales dei programa no pudieron ser resueltas. Por un lado eJ grado de corroboración de Car­nap, medida de la verosimilitud de las hipótesis cientificas no coincidía con la probabilidad tal como ella es definida en el Cálculo de probabili­dades, por otro lado la Lógica inductiva de Camap no parecía justificar con certeza la ampliación dei conocimiento.

En la Filosofia de la Matemática eljustificacionismo demorá un po­co más en ser abandonado, aún cuando ya fuesen conocidas a partir de fines de la década deJ 30 las dificultades presentt'S cn cada uno de los tres programas de fundamentación de la Matemática. La reconstmcción de la Matemática a partir de la Lógica, becha por Frege, resultó ser in­consistente como lo mostrá la paradoja de Russell. Russell presentó una nueva versión del programa logicista basada en la teoria de los tipos ló­gicos. En la derivación de la Matemática a partir de la Lógica por medi o

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18 Jorge Alberto Mofina

de la teoria de los tipos no se deriva la paradoja de Russell, n.i otras también conocidas. Eso debido ai hecho de que las definiciones impre­dicativas, culpables de la introducción de las paradojas, son eliminadas. Pero la intención original dei programa logicista que consistiá en redu­cir la Matemática a algo más simple que ella queda desdibujada, puesto que Russell para llevar a cabo su programa reducionista debió admitir el axioma de reducibilidad, que carece de toda justificación intuitiva. La Lógica dotada de la teoria de los tipos resulta ser tan compleja como las teorias matemáticas que se intentaba reducir. Por otro lado, los dos teoremas de Gõdel, el de incompletud de la aritmética formal, y el de la imposibilidad de probar la consistencia de la aritmética formal por métodos expresables dentro de ese mismo sistema formal colocaron un limite aparentemente infranqueable a las aspiraciones de! formalismo. Gentzen presentó una demostración de la consistencia de la aritmética formal pero con métodos que parecen extenderse más aliá del cuadro de los métodos finitarios recomendados por Hilbert. Si la prueba de Gentzen es de hecho una prueba finitaria es todavia uno de los asuntos discutibles dentro de la Filosofia de la Matemática. Finalmente muchas teorías matemáticas no pueden ser reconstruídas en términos intuicio­nistas.10

III

Era manifiesto entonces, a mediados de este sigla, que ninguno de los programas de fundamentación de la Matemática había conseguido sus objetivos. La reducción de la Matemática a la Lógica era posible, pero no en los términos de Frege. Para obtener ese resultado era preciso recu­rrir a toda la complejidad de la teoria de los tipos. El objetivo de obtener una reducción a algo más simple, a princípios inmediatos, más conoci­dos se perdia. Finalmente Gentzen había conseguido probar finalmente la consistencia de la aritmética elemental. Pero se había abierto una dis­cusión sobre si su prueba iba más aliá de los métodos finitarios. 11 Por último el intuicionismo parecía conducir a una mutilación dei contenido de la Matemática, teniendo en cuenta que una gran cantidad de teorias

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Cambio de Problemas en la Cuestión de los Principios de la Matemática 19

matemáticas no podian ser refonnuladas dentro de los esquemas teóri­

cos de los intuicionjstas. 12 Parecia como si la Filosofia de la Matemática se hubiera agotado: runguna de las fundamentaciones de la Matemática era satisfactoria y no había forma de mejorarlas.

En ese contexto no es sorprendente que los filósofos interesados en la Matemática comenzaran a interesarse por otras cuestiones diferentes dei problema de encontrar una fundamentación, en términos de restaura­ción solapada dcl ideal aristotélico de ciencia deductiva, que justificara el conterudo de la Matemática, cuestión esta última que parecía estar agotada. En su artículo dei aõ.o 1967, "Matemática sin fundamentos," Putnam presentó una crítica dei ideal justificacionista. Según lo expre­sado por Putnam en ese artículo la Matemática no precisa de una justi­ficación. No hay según Putnam una cuestión de los fundamentos de la Matemática porque la Matemática no precisa de una justificación exter­na. Ninguna de las razones enumeradas para creer que hay una crisis en los fundamentos de la Matemática (desarrollo de las geometrias no euclideanas, falta de una prueba de consistencia delas teorias matemáti­cas, falta de una solución universalmente aceptada de las antinornias)13

son para Putnam concluyentes. Según Putnam la característica principal de teorias matemáticas es la

gran variedad de formulaciones equivalentes que ellas poseen. "] don' t mean this in the trivial sense of cardinality ( ... ); what 1 mean is rather than in mathematics the number o f ways o f expressing what is in some sense the same fact (ifthe proposition is true) while apparently not talk­ing about the same objects is especially striking," afirma Putnam en ese artículo. En la ciencia natural sucederia lo rnismo con la dualidad onda­partícula en la mecânica cuántica. Para esa situación Reicbenbach usó el término "descripciones equivalentes." Hay dos formas equivalentes de describir el contenido de las teorias matemáticas. La primera forma es "Matemática como lógica moda!," la segunda forma es "Matemática co­mo teoría de conjuntos." Según la primera descripción, los enunciados de la Matemática podrian ser tratados como enunciados que contienen modalidades, pero ellos no se referirian a objetos especiales. Si tenemos en cuenta esta doble descripción de las teorias matemáticas las parado-

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20 Jorge Alberto Mofina

jas se resuelven. La razón para hablar de una crisis de los fundamentos de la Matemática y de la necesidad de unajustificación del contenido de la Matemática desaparece.

Por ejemplo, argumenta Putnam, consideremos el enunciado siguien­te: hay un contraejemplo al último teorema de Fermat. Esto es, para un n > 2, la ecuación r'+ y" = z" tiene solución. Podemos simbolizar ese enunciado en la aritmética de primer orden así: -.Fermat. Ese enuncia­does probable en la aritmética de primer ordena partir de un conjunto finito de axiomas de la aritmética de primer orden. Sea Ax la conjun­ción de esos axiomas. Luego el último teorema de Fermat es fa lso si Ax :::>-,Fermat es válido esto es si D(Ax :::>-,Fermat). Sustituimos los predicados aritméticos "x es la suma de y y dez" y "x es el producto de y y de z" por las letras de predicado S y T y tenemos el siguiente esquema de la Lógica moda I D[Ax{S, T) ::::> -.Fermat(S, T)]. Así podemos consi­derar las verdades de la matemática de dos formas: o como enunciados que se refieren a objetos (los números) o como enunciados que expresan qué es lo que se sigue de determinadas hipótesis.

In short, if one fastens on the first picture (the "objecr'' picture), then mathcmatics is wholly extensional, but presupposes a vast totality of eterna] objects; while i fone fastens on the second picture (the "moda!" picture), then mathematics has no special objects of its own, but simply tell us what follows from what.

Según Putnam toda proposición matemática puede ser tratada como una proposición que involucra modalidades, sin hacer referencia a determi­nados objetos. La noción de un modelo standard para la teoria de con­juntos también puede ser tratada en términos modales y de esta forma no nos veríamos obligados a bablar de conjuntos.

Mientras que Putnam di solvia la cuestión de la justificación de la Ma­temática, el artículo de Paul Benacerraf "La verdad matemática" abrió un nuevo âmbito de problemas para la Filosofia de la Matemática, dis­tintos de los colocados por las escuelas logicista, intuicionista y forma­lista. No se trataba ya de la reducción de la Matemática clásica a algo distinto de ella como la Lógica o la Metamatemática hilbertiana. En su

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Cambio de Problemas en la Cuestión de los Princípios de la Matemática 21

lugar los nuevos problemas propuestos por Benacerraf giraban en tomo de la noción de verdad matemática y de conocimiento matemático. Esas cuestiones ya habían sido tratadas por Kant, mas fueron formuladas por Benacerraf con un nuevo nivel de complejidad como resultado de la de­finción de verdad de Tarski para sistemas formales y de los desarrollos de la Teoría de la demostración.

Vrmos que un sistema formal r intenta representar el esqueleto de una teoria matemática T. Cuando las fórmulas de r son interpretadas dan origen a enunciados que pueden ser leídos como pertenecientes al universo de discurso dei que se ocupa T. Se dice que T es un modelo de r. Cuando una fórmula de r ai ser interpretada da origen a tm enun­ciado que puede ser demostrado a partir de los axiomas de T se dice que esa fórmula se satisface en T. AI intentar definir de forma precisa la noción de satisfacción en sistemas formales, Tarsk.i dio origen a una nueva teoría: la Teoría de Modelos. La noción de verdad caracterizada à la Tarski parece comprometemos con el platonismo matemático, esto es, con una forma de realismo, dado que la verdades caracterizada por Tarski en términos de referencia. Tarski presenta una definición recur­siva dei concepto de verdad. Esa recursión se basa sobre Ia estructura sintáctica de Ias expresiones en un lenguaje formalizado. Para frases atômicas, esto es, para frases que contienen un símbolo de predicado y constantes de individuo, como por ejemplo Pab, la defición de verdad dirá que esa frase es verdadera si y solamente si los objetos nombrados por a y por b caen bajo el concepto que está expresado por P. Así ve­mos cómo la definición de verdad de Tarski depende de la noción de referencia. 14

Además de la Teoría de Modelos surgió otra disciplina cuya tema son los sistemas formates: la Teoria de la Demostración. Mientras que el enfoque de la Teoria de Modelos es semántico, relacionado con la interpretación de los sistemas formates, el punto de vista de la Teoría de la Demostración es sintáctico. En la Teoría de la Demostración nos interesamos por Ia estructura de las pruebas (derivaciones) en los siste­mas forrnales. El intcrés por las pruebas surge a partir del hecho de que conocemos las verdades de la Matemática sólo por media de pruebas.

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Así por un lado, la caracterización de verdad de Tarski en términos de referencia nos lleva a la aceptación dei platonismo matemático, por el otro lado, el hecho de que conocemos las verdades de la Matemática sólo por medio de pruebas nos lleva a una especie de verificacionismo. Cómo conciliar ambas exigencias, la derivada de la concepción semán­tica de la verdad de Tarski y la derivada de la Epistemología de la Ma­temática? Una vez más observemos que problemas semejantes se pre­sentaron mutatis mutandis dentro de la Epistemología de las Ciencias Naturales. Pasado e! tiempo dei apogeo dei ideal justificacionista, las discusiones en ese ámbito tomaron la forma de disputa entre partidarios dei realismo científico y adversarios dei realismo científico (pragmatis­tas, convencionalistas y otros). Los partidarios dei realismo científico afirman que la ciencia intenta dar una descrpición dei mundo. Así co­mo e! matemático platonista afirma que la Matemática intenta dar una descripción adecuada de los objetos matemáticos. Los convencionalis­tas por e! contrario afirman que las teorias de la ciencia natural tienen como objetivo el cálculo y la predicción de fenómenos. Los objetos a los que el científico se refiere como electrón, molécula, vírus, son sólo ficciones, útiles para calcular y predecir, según Quine, más útiles que los dioses homéricos.

Dentro dei mismo círculo de cuestiones levantadas por Benacerraf se encuentra el artículo de Dummett "Las bases filosóficas de la Lógica intuicionista." En ese artículo Dummett argumentó en favor de una con­cepción verificacionista del significado de los enunciados matemáticos. El significado de estos debe ser dado en términos de condiciones de ase­veración, y las condiciones de aseveración de un enunciado matemático son las pruebas. El conocimiento matemático sólo puede ser caracteri­zado, según Dummett, en términos de prueba. Dummett extendió esta concepción a todo el lenguaje ordinario. El significado de los enuncia­dos dellenguaje ordinario debe ser dado en términos de condiciones de aseveración y no en términos de condiciones de verdad.

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IV

La estructura de las revoluciones científicas de Kuhn introdujo la His­toria de la Ciencia dentro de la Epistemologia. Hasta Ia aparición de la obra de Kuhn el abordaje de las cuestiones de la Epistemologia había si­do puramente lógico. A pesar de sus diferencias, Popper y los filósofos dei Círculo de Viena compartían un supuesto común, a saber, el de que Ias cuestiones de Ia Epistemologia podían ser resueltas ya sea por medi o de razones pertenecientes a la Lógica o teniendo en cuenta los datos ex­perimentales. Tanto Popper como Carnap querían construir una Lógica de Ia ciencia. Para Carnap, esa Lógica de la Ciencia era la Lógica lnduc­tiva cuya tarea consistia en asignar una medida ai grado de verosimilitud de las teorias científicas. La construcción de esa Lógica Inductiva debía ser hecha de manera tal que a las falsedades lógicas correspondiera una medida O, a las verdades lógicas una medida 1 y a Ias leyes de Ia ciencia natural, como medida un número real próximo a 1. 15 Para Popper la Ló­gica de la Ciencia es la Metodologia expuesta en su libro La Lógica de la lnvestigación Científica. Popper y Camap divergian en relación a la posibilidade de justificar las teorias científicas y en cuanto a los criterios para distinguir las teorias científicas de las no científicas. Mas para los dos, Ja última palabra en cuestiones epistemológicas Ia tenian la Lógica y la experimentación. Popper se valia de la Lógica deductiva tradicional en cuanto que Carnap intentó construir una Lógica inductiva.

A partir de Kuhn las consideraciones históricas se hicieron relevan­tes para la Epistemologia. La ciencia no podria ser más com prendida sin considerar la Historia de la Ciencia. Así como Kuhn introdujo la Histo­ria de la Ciencia dentro de la Epistemologia de las Ciencias Naturales, por la misma época Lakatos introdujo la Historia de la Matemática den­tro de la Filosofia de la Matemática. Una vez más vemos el paralelismo entre la evolución de Ia Epistemologia de las Ciencias Naturales y la Epistemologia de la Matemática.

En su libro Pruebas y refutaciones: la Lógica dei descubrimiento matemático Lakatos presenta una nueva visión de la Matemática. Sus fuentes son la heurística dei matemático húngaro G. Pólya y la filosofia

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de Popper. Lakatos, como Popper, es un falsifacionista. Según Lakatos, lo que en la Matemática está sujeto a falsificación (refutación) no son las conjeturas sino las pruebas que intentan demostrar esas conjeturas. El análisis de las pruebas, sus refutaciones, permiten mejorar Ias conjeturas hasta transformarias en teoremas susceptibles de prueba rigurosa, pero esto úJtimo sucede ya en un estado maduro de las teorias matemáticas.

Lakatos mostró que una prueba matemática errónea tiene valor. La critica de esa prueba permite mejorar la conjetura que ella intenta pro­bar. Los conceptos envueltos en la conjetura quedan mejor definidos, su ámbito de validez deviene preciso. Podemos mejorar nuestra conjetura al criticar la prueba. Y además de eso, la critica de la prueba permite dar origen a nuevos programas de investigación.

Lakatos aplicó su análisis a la conjetura de Euler de que existe una relación precisa entre las aristas, los vértices y e! número de caras de un poliedro. Esa relación es V- C+ A = 2.

Cauchy presentó una prueba de esa conjetura que fue criticada por muchos matemáticos dei siglo XJX. Se presentaron contraejemplos a la conjetura de Euler y a la prueba de Cauchy. Esos contraejemplos fue­ron clasificados por Lakatos en dos tipos: contraejemplos globales que son en verdad, contrajemplos a la conjetura de Euler y contraejemplos locales que son contraejemplos a alguno de los lemas usados (implíci­tamente) por Cauchy en su prueba. Los contraejemplos locales son los que permiten una crítica de la prueba. En el caso de un contraejemplo global pero no local podemos salvar nuestra conjetura redefiniendo los términos que aparecen en la conjetura. Si una figura refuta la conjetura de Euler diremos que esa figura no es un poliedro. En el caso de contrae­jemplos locales podemos colocar los lemas afectados como condiciones dei teorema. Uno de los lemas (implícitos) en el teorema de Cauchy es que cuando retiramos una cara de un poliedro podemos extender la figura restante en un plano, esto es planificar la figura. Si encontramos un poliedro que no puede ser planificado de ese modo, ese poliedro será un contraejemplo locaL Llamamos "simples" a los poliedros que pue­den ser planificados. Diremos entonces que para todo poliedro simple vale la relación V +C-A = 2. Ahora la aparición de un poliedro que no

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pueda ser planificado no constituirá una critica a la conjetura de Euler, pues ella vale sólo para los poliedros simples.

Lakatos aplicá su mismo método de análisis a la conjetura de Cauchy de que el límite de una serie convergente de funciones continuas es una función continua. Esa conjetura y la prueba de ella ofrecida por Cauchy fueron criticadas por muchos matemáticos en el siglo pasado. Se presen­taron una gran cantidad de contraejemplos. Pero así como en el caso de la prueba de la conjetura de Euler esas criticas fueron fecundas. En este último caso la critica permitió precisar el concepto de poliedro así como dió origen a un programa de investigación que con el tiempo constituyó lo que se llama hoy topologia algebraica. En el caso de la conjetura de Cauchy sobre las funciones continuas, la crítica permitió obtener el con­cepto de convergencia uniforme y el desarrollo de la teoria de las series de funciones convergentes.

EI interés de Lakatos es por la Matemática ordinaria, la Matemática hecha por los analistas, los algebristas y los geómetras. No demostró mayor preocupación con los sistemas forrnales de los lógicos matemá­ticos. Lakatos comparte con Popper la opinión de que es imposible encontrar una justificación concluyente de las teorias científicas. Para Lakatos la tentativa dei Logicismo de derivar las teorias matemáticas a partir dei contenido trivial de la Lógica es una tentativa fracasada. Y ello porque la Lógica que debe ser usada en la derivación de la Matemática no tiene un contenido trivial. También según Lakatos, la tentativa for­malista de justificar las teorias matemáticas por medi o de sistemas for­males está también condenada ai fracaso. Porque las mismas cuestiones que se presentan en la teoria objeto pueden ser levantadas en relación a la metateoría. Cómo sabemos que la prueba metamatemática de la consistencia de un sistema formal es correcta? En relación a ese punto no estamos mucho mejor que en relación a la corrección de la prueba de Cauchy de la conjetura de Euler. Sólo trasladamos las cuestiones dei lenguaje objeto al metalenguaje. 16

La Matemática sólo puede ser comprendida por medio de esta dia­léctica de pruebas y refutaciones. Como en la dialéctica hegeliana el error, la falsedad es un paso necesario para llegar a la verdad. La sínte-

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sis, la conjetura mejorada, contiene en sí la tesis (la conjetura ingenua) y su antítesis (la crítica de la prueba de la conjetura ingenua).

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Notas

1 La más conocida de esas paradojas es Ia paradoja de Russell. En lugar dei término "conjunto" Russcll usa el término "clase." Una clasc de objetos puede pcrtcnccer a si misma, csto cs, ser elemento de si misma. Por cjcmplo, Ia clase de los objetos abstractos pertence a la clase de los objetos abstractos por el hecho de que una clase cs un objeto abstracto. Por el contrario, la clase de los hombres no pertenece a Ia clase de los hombres dado que Ia clase de los hombres no es un hombre. Consideremos la clase y formada por todas las clases que no son elementos de si mismas. La clase de los hombrcs seria un elemento de y. Ahora, podemos preguntar si y es un elemento de y. Si y es un elemento de y entonces y no pertenece a si misma, lucgo y no es elemento de y. Si y no cs elemento de y, entonccs y pcrtenece a y, dado que la clasc y contiene todas Ias c lases que no son elementos de si mismas. Luego y es elemento de y. 2 EI análisis de Frege de enunciados universales como "todos los mamíferos son vertebrados" es completamente diferente de! análisis aristotélico. Para Aristóteles un enunciado de ese tipo ticne Ia forma sujeto-predicado, la pa-

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!abra "todos" calificaria ai sujcto "mamíferos" (según la terminologia aristo­télica diríamos que el sujcto ''mamíferos" está tomado en toda su extcnsión). Para Frege "todos los mamíferos son vertebrados" es un enunciado condicio­nal. Debería ser interpretado así: cualquicr cosa que consideremos, si ella es un mamífero cntonces es un vertebrado. Mientras que e l anál isis de Aristóteles nos obliga a aceptar la existencia de mamíferos, el análisis de Frege no. Asi para Frege "todos los mamíferos son vertebrados" y "no existen mamíferos" no son contradictorios. Ver Kneale y Kneale 1972, cap. VIII. 3 Ver Kneale y Kneale 1972, cap. Vlll. 4 Ni Frege ni Russell consideraron Ea posibilidad de lógicas divergentes. La aparición de las lógicas divergentes (intuieionista, polivalentes, cuántica) ocu­rrió después de la formulación dei programa logícista. Sobre Lógicas diver­gentes, ver Haack 1973. 5 El programa de Hilbert está claramente expuesto en su célebre artículo "Über das Unendliche." Ver Hilbert 1967. 6 En términos formates que A se derive en el sistema formal r significa que podemos encontrar una sucesión de fórmulas A1, A2, ... , An tal que An =A y cada A;, i< n, o es un axioma de r , o se infiere de las fórmulas anteriores de la sucesión usando alguna de las regias de infcrencia de r. 7 Por ejemplo la fórmula V'x3y(x * y =e) puede ser interpretada dentro de la teoria de los grupos y significa que todo e lemento de un grupo tiene inverso o puede ser interpretada dentro de la teoria de los números enteros y significa quetodo número entero ticne un opuesto. 8 Este principio sirve para inferir que una propiedad A es aplicable a todo nú­mero natural si A es aplicable a O y se cada vez que A es aplicable a n entonces A cs aplicable a n +I. En simbolos: inferimos V'xA(x) a partir de A(O) y de A(t) :J A(t + I) donde t es un parámetro. 9 Cuando un conjunto M u un objeto particular m son definidos de manera que por un lado m pertenece a M y por otro lado la definición de m depende de M decimos que el procedimiento de definición es impredicarivo. Para más dctalle sobre este asunto ver Kleene 1974, capítulo UI. 10 Para una aproximación general ai logicismo, formalismo e intuicionismo, y a los problemas levantados por cada uno de cstos programas de fundamentación de la Matemática ver Bcnacerraf y Putnam 1983, Kleenc 1974, Parte I, Kncale y Kneale 1972 Capítulo XI, Dummett 1977, y Molina y Legris 1997. 11 Gentzen presentó dos pruebas diferentes de la consistencia de la aritmética e1emental. Ver Gentzen 1969, Caps. 4 y 8. 12 En verdad los métodos intuicionistas han resultado más fructíferos de lo que pensaban sus detractores. Una gran cantidad de teorias matemáticas han

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conseguido ser construídas con los métodos intuicionistas. Muchas más de lo que cn un momento se pensó. Mas en todo caso subsiste el problema de la complejidad de las pruebas intuicionistas. En la prefercncia por la Matemática clásica hay una razón de simplicidad. Las prucbas clásicas, como era de esperar por el hecho de poder ser usadas en ellas más regras de inferencia y contener menos restricciones sobre las definiciones, son más simples que las pruebas i ntuicionistas. 13 E! artículo de Putnam dió origen a la intcrprctación moda! de las teorias matemáticas. 14 Ver Tarski 1956. 15 Es sorprendente el paralelismo entre e! programa de fundamentación de la Matemática de Hilbert y e! programa camapiano de justificación de la ciencia natural. En ambos casos la justificación debe ser metateórica. En el primer caso es la Metamatemática hilbertiana la que justificaria la Matemática, en el segundo caso es la Lógica Inductiva la que justificaria las teorías de Ia Ciencia natural. La Lógica lnductiva es una metateoria cuyo objeto son las teorias de la ciencia natural. Cuál es el fin de la Lógica lnductiva? Construir uma medida de la verosimilitud de los enunciados de la Ciencia Natural de modo tal que a las Leyes científicas les corresponda una medida próxima a I. Este paralelismo refuerza mi tesis de la similitud entre el desarollo de la Filosofia de la Matemática y el desarrollo de la Filosofia de la Matemática. 16 Ver Lakatos 1981, caps l y 2.

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AGAINST MODAL REALISM

Cezar A. Mortari Federal University o f Santa Catarina

In this paper I examine some objections to David Lewis' moda! realism -that is, the thesis that other possible worlds do exist, and are similar in kind to ours. I will consider two objections: that modal realism has a heavy ontological commitment, thus violating a Principie ofParsimony, and that modal realism leads to paradoxes, particularly in connexion with Lewis' Principie ofRecombination. Lewis has repiied to these and many other similar objections; however, I argue that his replies are not convincing, and that the objections still stand. The main point, thus, is that modal realism, in contrast to what Lewis maintains, is at least as problematic as rival explanations o f modality, i f not even more.

1. Introduction

This story begins with the problem o f interpreting modallogics, o r, more generally, modal expressions. 1 As is well-known, for moda! logics we have possible world semantics. For example, a model for a propositional modallogic can be defined as a triple (W,R, V), where W is a nonempty set o f objects called 'worlds', R is a binary accessibility relation, and V is a function from atomic formulas and worlds into truth-values. We then say that 'necessarily p' is true at a world w e W iff p is true in every world accessible to w; 'possibly p' is true at w iff p is true in some world accessible to w.

Now possible worlds semantics, as presented by logicians, are plain­ly justformalisms, and some authors contend that a formal semantics is not sufficient to characterize a formal system as a logic (instead ofbeing,

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 31-46.

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say, a mathematical or physical theory-see e.g. Plantinga 1974, p. 125). The objects called 'worlds' are aUowed to be any objects whatsoever­European capitais, for instance, in which case the accessibility relation could be represented by railway connections. One may rightly ask what has ali this to do with modality. Even though nobody denies that pos­sible world semantics is a powerful heuristic device, many feel that the very concept o f a possible wor/d should be explained.

A modal realist would say that, arnong ali objects which may stand for possible worlds, there are some which are possible worlds, and this would solve the problem. Indeed-if only we had a clear, intuitive ac­count of what a possible world is. Needless to say, such an account cannot-or, at least, shouldn't- be clone in a circular way. For instance, Lewis claims that this is precisely what happens when we define possi­ble worlds as, say, maximal consistent sets of sentences of some lan­guage. Jf consistency is semantically characterized- that is, a set S o f sentences is consistent iff the sentences in S can be simultaneously true--then we have a circular explanation, one which uses the notion of 'possible' (can) to explain possibility. And a syntactical characteriza­tion of consistency would have other problems; see Lewis 1974, ch. 4.

(I am not going to pursue here the question of whether it is at ali possible to give what Susan Haack ( 1978, ch. 1 O) calls an epistemologi­cally independent explanation o f possible worlds. For present purposes, I shall be supposing that such an explanation is feasible. I do suspect, however, that any independent explanation would very probably be open to the charge of modal irrelevance- that is, the proposed explanation does not have anything to do with modality.)

But let us get back to moda) realism. Roughly speak.ing, a moda! re­alist is someone who believes in the existence ofpossible worlds. How­ever, such a formulation does not do justice to Lewis, beca use someone could contend that yes, possible worJds exist- they are namely con­structions o f the human rnind, or they are sets o f sentences, or stories, or whatever. In fact, the modal realist-or extreme modal realist, as Stalnaker (1979, p. 227) puts it- holds that the other existing possible worlds are just like ours; that there is no ditference in kind between

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them. This is what Lewis does: he is a 'concrete' modal realist.2

Modal realism is thus the thesis that other possible worlds exist, and are similar in kind to our world. In fact, our world is but one of an im­mense plurality ofworids. The individuais which dwell in this world are but a small part ofthe individuais which inhabit ali the worlds. (Other­worldy individuais, however, although existent, are not actual.)

Lewis contends that modal realism provides a reasonable, non-circ­ular explanation o f moda I notions, and one which does not lead to trou­bie like rival accounts. My point in this paper, however, is that we have good reasons to think that this is not so. Of course, I have no hopes of ever refuting modal realism. Since arguments inevitably make use of this or that principie, a moda I realist has aiways the option o f rejecting any of these instead. However, I do hope to undermine the moda I realist position in sucb a way that the altematives will appear to be far more desirabie.

2. Tbe Principie of Parsimony

Obviously enough, the first objection against modal rcalism coming to one's mind is that it violates Ockham's principie: thou shalt not multiply thy entities beyond necessity. Lewis would be doingjust that, commit­ting us to an incredibly "bloated ontology". To put it in other words, moda) realism is not a parsimonious theory. (This objection was raised, for example, by Susan Haack; see 1977, p. 417.)

Lewis repiies to----or tries to preempt-this charge o f ontological un­thriftiness (1974, cb. 4, reprinted in Loux 1979) by saying that tbere are two ldnds o f parsimony we have to consider:

quantitative parsimony: a theory is quantitatively more parsimonious than another i f it postulates less entities of the same kind than the other. For instance, if one theory postuiates the existence of l()'B

e lectrons, and another 1044 electrons, thc first one is ontologically more economical.

qualitative parsimony: a theory is qualitatively more parsimonious

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than another if it postulates less kinds of entities than the other. For instance, if one theory postulates the existence only of brains, and another o f brains and minds, the fust one is ontologically more eco­nomical.

Now Lewís claims that only qualitative parsimony matters. After ali, what is the big difference between positing 1044 electrons, say, instead of 1043? Why should a few more electrons matter?

I do think Lewis has a point here----one, however, whích is beside the point. Ifl am right, there is one small fact the he is overlooking, and this is a fundamental asymrnetry between one and more than one, an asyrn­metry which is also qualitative in kind. Whereas it would make no great difference to have tenor twenty o r two thousand possible worlds- if you have more than one, why not have right away an infinity ofthem?-there is a huge difference between havíng one, and having more than one.

Suppose this were not so. Suppose there is no qualitative differ­ence between having one or more than one entity o f some kind. Then a function, say, could have more than one value for a given argument. A number could have more than one successor. Nobody would be fighting about having one or more than one god. And o f course I wouldn 't know about that, but I have heard it said that by having more than one spouse, you would add "spice" to your life--certainly a qualítative difference, ífthere ever was one. (You know: mouse-mice, spouse-spice.) lt is an easy task to come up with examples where having more than one entity o f a kind makes a consíderable difference with regard to quality. Thus, in my opinion, to postulate the existence of just one entity of a certain kind, or more than one of that same kind, does introduce a qualitative difference. Lewís' defence of the alleged parsimony of moda! realism consists in leading the reader to thlnk that having some electrons more, in a uni verse already full of them, amounts to the same as having one, or more than one, worlds. The ana logy, I claim, does not apply.3

But would a second world, say, really introduce a qualitative differ­ence? Yes. As I see things, the moment we have a second world, besides our actual one, the universe (totalíty of thíngs) is qualitatively different.

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According to Lewis' conception, this second world is not an extension o f reality; hence, there are things causally and spatiotemporally isolated from us, what is not the case with only one world. We have things non­actual, because reality is no more the totality ofbeing. In my opinion, this kind o f difference is qualitative.

Another way of showing modal realism to be qualitatively unparsi­monious is Melia's objection (1992, p. 192): when Lewis quantifies, he states that he is quantifying over everything there is, and this includes everything in every possible world. Now other worlds contain creatures and things of kinds not found in this one, like goblins, centaurs, and little green men. Therefore, by defending the ex.istence of other possi­ble worlds, Lewis commits himself to an inflated ontology, qualitatively different from ours.

A modal realist could reply that, whereas her ontology presupposes, in general, more kinds o f possible things, when it comes down to things that really, actually exist, there is no difference. She wouldn't be say­ing that there are more kinds of actual things than rival theories about modality say there are, since inhabitants of other worlds do not actually exist. But this won't do, of course, in view of Lewis' indexical treat­ment of actuality. According to Lewis, our world, the actual world, has no special status among the in.finity of ali worlds. So why should par­simony according to this world be granted special status? Remember, we do not make our theories pretending that they should be theories of 'here' and 'now' only, but intend them to apply to everything there is, wherever or whenever it is.

I won't dwell further on this point, thinking it is clear that moda! realism does comrnit us to many more things and kinds o f things than, say, actualist explanations of possible worlds, and this is the point I want to make in this paper.4 This is not to say that modal realism is wrong--only, against Lewis, that it presupposes way too much. If, how­ever, ontological unthriftiness is nota problem, then we shouldn't worry about it. And o f course, there is a way out: after ali, Ockham 's princi­pie is that one shouldn't multiply entities beyond necessity. Maybe it is so that there is no better explanation o f modality than modal realism;

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bence, it is unavoidable to posit ali those possible beings. This ques­tion, which I leave for future work on the subject, can only be settled by exarninining the altemative explanations, and looking whether we can obtain the same results as modal realism, but with a smaller ontological price. (Lewis, ofcourse, contends that we cannot-see 1986, ch. 3.)

3. Plenitude, Recombination, and Paradox

Surprisingly, one o f the woes o f moda! realism is that, as a thesis, it is bard to formulate precisely. Lewis maintains (1986, pp. 86ft), resorting to a Principie ofPlenitude, that there are worlds enougb to cover every possibility, that there are absolutely no gaps in logical space. But what does this exactly mean?

Let us recall Lewis' formulation o f bis plenitude thesis ( 1986, p. 86). lt goes as follows:

(I) absolutely every way that a world could possibly be is a way that some world is, and

(2) absolutely every way that a part o f a world could be is a way that a part of some world is.

Now, since Lewis identifies (for economy reasons!) 'ways that a world could possibly be' and the worlds themselves, what the above quoted principie says, as Peter van Inwagen aptly remarked, is just that every world is a world (cf. Lewis 1986, p. 86). Which is true no matter how many worlds there are: one, five, or a million. So what should be a principie o f plenitude, admits Lewis, amounts to triviality. (Other refor­mulations o f the principie, like saying that a 'way the world could have been' is a set whose only element is a possible world, meet the same or similar objections, so Lewis let (I) and (2) above "go trivial".)

In order to deflect this kind of objection, and to guarantee that there are indeed worlds enough, Lewis restates his thesis of the plurality of worlds appealing to a Principie of Recombination, which is formulated as follows:

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Anything can coexist with anything else, size and shape of spacetime permitting, and anything can fail to coexist with anything else. (1986, p. 87)

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Or, to put it into another words (since in the above version a modal word,

' can', appears),

Say that a world copies a class of possible individuais, perhaps from various different worlds, iff it contains non-overlapping duplicates of every individual in that class. The principie o f recombination ... says that, given a class of possible individuais, there is a world which copies that class. However I insisted on qualifying the principie by the proviso: 'sizc and shape permitting'. ( 1986, p. 101)

Now there is an argument by Forrest and Armstrong ( 1984) to the

effect that the principie of recombination would lead to paradox-or,

at least, to the nonexistence o f a class of all possible worlds. I quote

Lewis' concise formulation ofthe argument (1986, p. 102):

Start with ali thc possible worlds. Each one of them is a possible indi­vidual. Apply the unqualified principie ofrecombination to this class of possible individuais. Then wc have one big world which contains dupli­catcs o f ali our original worlds as non-overlapping parts. But we started with ali thc worlds; so our big world must have been one ofthcm. Then our big world is bigger than itself; but no matter how big it is, it cannot bc that.

(There is a subsidiary argument to this one, whose conclusion estab­lishes that thjs big world would indeed be bigger than itself- using as

measure the cardinality of the set o f ali electrons in a world. However,

the argument seems uncontroversial, and is anyway accepted by Lewis.

Cf. 1986,p. l02;alsoForrest&Annstrong l984,p. 165.) Lewis contends that Forrest and Armstrong's argument only goes

through because it relies on an unqualified version of the principie of

recombination, whereas Lewis himself adds the proviso 'size and shape

o f spacetime permitting' . My question is: why should we add this seem­

ingly ad hoc proviso? Sure, it is needed to avoid the conclusion that

modal realism leads to paradox. But since we are questioning modal

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38 Cezar A. Mortari

realism, independent reason should be given. And precisely this is what I think Lewis does not succeed in doing. As I see things, the proviso is either superfluous (size and shape will always permit) or ad hoc.

Lewis' reason for thinking that the proviso is not ad hoc is that "with­out it, the principie would deliver proofs that there are very large space­times, since i f we had a class o f more than continuum many possible individuais, they could not be copied into any merely continuum-sized spacetime" ( 1986, p. 1 O 1 ). He goes on saying that it would be fishy to begin with a principie stating how spacetirne might be occupied, and end up finding out that spacetime is much larger.

The upshot ofall this is that there should be some natura/limit to the possible size o f spacetime--else we would have those very large space­times. In other words, somewhere up in the hierarchy o f mathematical structures isomorphous to possible spacetimes there is what Lewis calls ' a break', to the effect that no larger spacetimes are possible. Now what is this supposed to mean? On the one hand, Lewis only hopes for such a natural break-and absolutely no evidence is provided that such a thing exists. On the other hand, even if there are limits to the size o f space­tirne as we know it- that is, spacetime according to our best physical theories; a continuum-sized spacetime according to the laws o f nature ofthis universe---what about other possibilities?

Here we touch a point about the organization ofthe possible worlds. On Lewis' view, worlds are unified according to certain spatiotemporal relations. Individuais a and b are worldmates (i.e., part of the same world) iff they are spatiotemporally related (cf. 1986, p. 71). How­ever, Lewis himself admits that there could be worlds ( or, that there are worlds, if we are realists) that do not have a relativistic spacetime like ours (assurning general relativity is correct), but are organized according to the laws o f classical, newtonian mechanics. And he allows that many other possibilities exist: worlds with almost disconnected spacetimes, like infinite copies of the real Iine Iaid end to end, or worlds with an extra dimension, having other world-like parts spread out like fiatlands in three-dimensional space (1986, p. 72). Thus, relativistic spacetime is not the only possible way o f organizing a world, and other "analogica/ly

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Against Moda/ Realism 39

spatiotemporal" relations will (have to) do (1986, p. 76). In view ofthis freedom of organization, I believe it unnatural to think

that there should be some natural logical limit to the size or shape of spacetime. We should here remember that the infinity o f worlds is sup­posed to be the infinity of the logically possible worlds, of which the physically possible, relatively to ours, constitute only a subset. Since physical laws can and do change through logical space, as Lewis says, a limit to the size o f possible spacetimes cannot be a physical one-it should be Iogical. Should we interpret ' no larger spacetimes are pos­sible' using a physical concept of possibility, we would not get ali the logically possible worlds. So 'possible' here has to mean 'logically pos­sible'. This being so, even i f there is some limit to the size o f space­times like ours, what about other worlds, unified by different kinds of relations, only analogically spatiotemporal?5

In conclusion, that such a "naturallimit" exists remains to be shown, and I don't think there is any reasonable way to justify that proviso on the principie o f recombination. Therefore, Forrest and Armstrong's ar­gwnent seems to go through, and the moda! realist will have to find another way o f guaranteeing that there are worlds enough.

4. More Worlds Than There Are

On the other hand, maybe there are worlds enough. Indeed, it may be that worlds are so nwnerous, that there are more ofthem than there are! Let us see how this could happen.

In On the Plurality ofWor/ds Lewis considers anotber argument, first formulated by David Kaplan, which purports to show that moda! realism leads to paradox. The argwnent goes as follows (I quote, pp. 104-5):

(I) Suppose that the cardinality o f thc set o f possiblc worlds is K.

(2) Each subset o f this set is a proposition, namely the proposition which would be expressed by a sentence which was true with re­spect to precisely the worlds in that subset.

(3) There are 2K such propositions, and 2K is strictly greater than K.

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40 Cezar A. Mortari

(4) Consider some man and some time. For each proposition, it is possible that he should have been thinking a thought at that time whose content would be specifiable by a sentence expressing that proposition; and that this should have been his only thought at that time.

(5) So there are at least 2K possiblc worlds, contradicting the assump­tion with which we began.

Lewis accepts that the argument is a valid one, however, he contends that it is not sotn1d. His strategy is to put in doubt either premiss (2) or pre­miss ( 4). I fone defines propositions as the things which can be contents o f thought, one could deny (2) by saying that not every set o f possible worlds is a proposition. Since Lewis, however, defines propositions as sets o f possible worlds, h e prefers to deny ( 4), thus claiming that there are propositions which cannot be the content of anybody's thought, be it man, god, or superhero. I quote (1986, p. 105):

Most sct o f worlds, in fact ali but an infinitesimal minority o f thcm, are not eligiblc contcnts ofthought. It is absolutely impossible that anybody should think a thought with content given by one ofthcsc ineligible sets ofworlds.

Now he candidly says that the paradox would be "reason enough to deny that just any set o f worlds gives the content o f some possible thoúght" (p. 106). Of course, we could reply by saying that it is reason enough to reject moda! realism. However, Lewis rejects (4) by independent reasons, mainly through the use of a ftn1ctionalist analysis of contents o f thought. A thinker "h as a thought with a certa in content in virtue o f being in a state wich occupies a certain functional role" (p. 1 06). And Lewis goes on to argue that there are not as many different functional roles as there are propositions.

I do not pretend to discuss this particular reply here, because I think the paradox can be reconstructed without reference to either proposi­tions or contents of thought. Ali we need for such an argument to

succeed is to find a way of associating every set of possible worlds with a distinct, tn1ique situation-and hence we would have 2K possible

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Against Moda/ Realism 41

worlds, according to Lewis' own analysis. I think we can do just this, in the following way:

(a) Suppose that the cardinality ofthe set W ofpossible worlds is K. (b) There are 2K subsets ofthis set, and 2K is strictly greater than K. (c) Consider some individual i and some time t. For each sE P(W),

it is possible that i should have been at t uniquely referring to that element s, and none other--by uttering a sentence referring to it, or whatever other means.

( d) So there are at least 2K possible worlds, contradicting the assump­tion with which we began.

Now the burden o f the proof lies in making (c) credible. I claim that, even if it sounds implausible, it must be true. Suppose (c) is false. lt follows (pushing negation inwards) that:

• for every individual i and every time t, there is at least one s E

P(W) such that it is not possible that i at t uniquely refers to s.

Let us now consider some individual i at some time t, say, Yoda just after Luke Sk:ywalker left Dagoba system to face Darth Vader-and let us consider the set U of every member s of P(W) such that it is not possible for Yoda at t to refer tos. Let us also consider U's complement, wbich I shall call R.

What can be said about R and U? First, it is obvious that, if Yoda can refer to some set of possible worlds, then he can also refer to its complement. Furthermore, given any collection of elements of R, it seems that he can refer to its union and to its intersection. Since he can also refer to the empty set, and to P(W), we have:

(i) 0 E R, P(W) E R;

(ii) s E R iff sE R;

(iii) let { S; }1e 1 be a fami ly o f sets o f possible worlds, such that every S; E R. Then n e /S; E R, Uie /S; E R.

Now, there are undoubtedly singletons among the sets of possible worlds which Yoda can refer to. For instance, Yoda can refer to his

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42 Cezar A. Mortari

own world, and thus to its singleton. Let thus Rs denote the set of ali singletons in R. Analogously, let Us be the set of ali singletons in U.

Let us denote the cardinality of R.Ç by IRsl· lt should now follow, from conditions (i)~iii) above, that 'P(Rs) ç R. That is, we have at least 21Rsl sets in R.

Next, it is obviously possible for Yoda to refer to the set whose only member is the worJd Yoda is in. Also, it is possible for Yoda to refer to the set {w} ifhe has a counterpart in w who refers to {w} (saying "the set whose only member is the actual world ... ", for instance). What I then intend to show is that for every world belonging to a member o f Us, there is in R a singleton of a similar world containing a counterpart of Yoda.

Let us imagine a small thought experiment. Yoda could be living in uncountably many different worlds. Yoda's world could be such that there are tiny flying horses, or more planets than stars, and so on. Now copy Yoda at some moment when he is referring uniquely to the set whose only member is bis own world, and paste him into any world whatsoever which is member of a singleton in Us. According to Lewis' own Principie of Recombination,6 Yoda can coexist with any­thing else-thus, he can coexist with (or exist in) every possible world, size and shape o f spacetime permitting. And indeed h e can- should the world be so tiny as not to comport Yoda, let us expand it a little bit. This should be no problem. (Yoda, as we well know, is not that big.) What the preceding considerations amount to, in short, is that for every world w such that { w} E Us, there is another world w+ (that is, w plus Yoda) such that { w+} E Rs. And for every w+, there is w (the original world w, w+ minus Yoda). So we have a l- I correspondence between Us and some subset of Rs.

We now come to the cardinality of R. Since Us and Rs are disjoint, and the cardinality ofthe set ofworlds is K, either !Rsl = K, or IUsl = K, or both. lfj~-1 =K then, in view ofthe above 1- l correspondence, IRsl =K. In any case, !Rsl = K and, since 'P(Rs) ç R, we reach the conclusion that IRI = 2K. Since R is the set o f ali sets o f worlds which Yoda can uniquely refer to, we thus have 2K distinct situations, hence 2K distinct

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Against Moda/ Realism 43

worlds, contradicting the assumption. Hence, moda! realism does lead to paradox.

A similar argument, by the way, could be brought against proposi­tions. Let us assume, with Lewis, that every set of possible worlds is a proposition; however, not every proposition is eligible, i.e., not every proposition can be the content of someone's thoughts. Let E be the set of eligible propositions. lt seems that, for every subset S of E, there is the proposition k(S) which says that every member o f S is true-k(S) would correspond to the intersection of S, of course. Similarly, we have d(S)- the proposition that at /east one member of S is trne, the union of S. Now it seems that, if every member of S is eligible, so should be k(S) and d(S). It follows that lEI = 21EI, what cannot be. Hence, not even recourse to a set ofeligible propositions will help to avoid Kaplan's problem.

5. Final Remarks

With the above considerations I intended to show that, contrary to what David Lewis says, moda! realism is a problematic account of possible worlds. That does not make it wrong, of course, but shows it has some troubles. (As a matter of fact, 1 think it has more troubles than other al­ternative explanations- after ali, i f I am right it does lead to paradox- , but thjs is beyond the scope ofthis paper.) So we have good reasons not to accept it.

As final remarks, I would likc to say some words about moda! re­alism and quantum mechanics. One might think that everytrung said above is just philosophical talking, and that whatever the philosophical reasons one may have to dislike moda! realism, there are nevertheless good scientific rcasons lending support to it. For instance, one could come to the conclusion, after reading David Deutsch 's The Fabric of Reality, that quantum mechanics, specially its interpretation (Wheeler­Everett) which suggests the existence o f the multiverse, or parallel uni­verses, would condone Lewis' moda! realism. In fact, Deutsch even mentions Lewis in his book, stating that Lewis, too, postulates a multi-

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verse, in his case for philosophical reasons (1997, p. 339). According to Deutsch, single-particle interference experiments show that the mul­tiverse exists (p. 46). The multiverse, of course, is the whole of physi­cal reality, and it comprises infinitely many parallel universes (like our own). Deutsch even suggests that counterfactual conditionals and talk o f possibilities only are meaningful because of the existence o f parallel universes- a thesis very similar to Lewis' own.

However, there are considerable differences between the multiverse ofquantum theory and Lewis' logical space. For starters, the multiverse is real; that is, every universe which is part of it really, actually exists. Reality is just bigger than we thought, whereas for Lewis the inhabi­tants of other worlds, though existant, do not actually exist. Secondly, only physically possible universes are part ofthe multiverse, which pre­cludes using it in an explanation oflogical necessity and possibility (if we admit this distinction between logical and physical necessity). Third, different universes in the multiverse internet, even i f slightly and only through interference phenomena, whereas the worlds of David Lewis are causally isolated from each other. No interaction between them is possible. I f it were, they would ali be part of one and the same world, of course. Fourth, in the multiverse it is theoretically possible to travei backwards in time, or to other parallel universes, whereas for Lewis there can be no such things. Travelling between possible worlds would imply that worlds are not isolated from each other; that there is causal interaction between them. Again, this is not possible in Lewis' frame­work. If I may say so, maybe the multi verse of quanturn theory is just a more complicated version of our actual world. I guess Lewis would agree and say that, besides and beyond our own multiverse, there are other possible ones, which exist, but are not real. 7

References

Asimov, Isaac. 1990 [ 1972]. The Gods Themselves. New York: Bantham Books.

Chihara, Charles S. 1998. The Worlds o f Possibility. Oxford: Oxford

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Against Moda! Rea/ism 45

University Press.

Deutsch, David. 1997. The Fabric of Reality. London: Penguin Books.

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Haack, Susan. 1977. 'Lewis' Ontological Slum.' Review of

Metaphysics 30: 415- 29. - . 1978. Plzilosophy of Logics. Cambridge: Cambridge University

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Loux, Michael J. (ed.) 1979. The Possible and the Actua/. Readings in the Metaphysics ofModality. lthaca: Comell University Press.

Melia, J. 1992. 'A Note onLew:is' Ontology.' Analysis 52: 191- 2. Plantinga, Alvin. 1974. Tlze Nature ofNecessity. Oxford: Oxford

University Press. Stalnaker, Robert C. 1979. 'Possible Worlds.' In Loux 1979,

pp. 225-34.

Notes

1 To be surc, the semantics of moda! Jogics is not Lewis' starting point. As hc says, hc is no big friend o f the language o f diamonds and boxes, preferring to use the possible worlds rramework directly. Even in this case, however, we nced an account o f possible worlds. 2 O f coursc, Lewis himsclf would not use the word 'concrctc'; see I 986, p. 8Jff. 3 A similar point is made by Jsaac Asimov (c f. 1990, p. 240), talking about parallel uni verses: ifyou can havc two univcrses, thcn you havc a whole infinity ofthem. Thc tough stcp, it is suggested, isto moving from onc to two. 4 A point that secms to bc acceptcd by Lewis himself: in his 1986 the argumcnt for the qualitative parsimony of moda! rcalism is mentioned no more, and he scems to admit that his ontology is indeed unusual. 5 More to thc point, in their papcr Forrcst and Armstrong do propose a mathe­matical modcl ofthc big world. Surprisingly enough, Lewis doesn't comment on this-not even to reject the proposed model as being wrong.

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46 Cezar A. Mortari

6 Actually, the argwnent does not depend on the Principie of Recombination. Ali we need is to recognize that for every world in which Yoda does not have a counterpart, that world could have been such as to contain a counterpart of Yoda's. Said counterpart would not even need to interact with other denizens o f that world-it could live far, far away in spacetime, and for a few seconds to boot. 7 I am indebted to CNPq (grant 200484/85-0) for financiai support, and to André Fuhrrnann, Luiz Henrique Dutra, and Roberta Pires de Oliveira for many helpful criticisms and suggestions. Thanks also to the Centrum fúr Informations- und Sprachverarbeitung, University of Munich, for providing me with a wonderful environment in which to think about possible worlds.

mortari@mboxl .ufsc.br

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Y A-T-IL DES PRINCIPES LOGIQUES?

Jean-Yves Béziau Université Federa/e Fluminense

Autrefois on considérait que des principes tels que le principe du tiers­exclu, de non contradiction et d ' identité étaient des principes fondamen­taux sans lesquels aucun raisonnement n'était possible, voire même sans lesquels il était impossible de penser.

Au cours des cent dernieres années, on a construit des logiques dé­

rogeant chacun de ces príncipes. Ces logiques sont-elles une illusion, de purs jeux formeis ne remettant que superficiellement en cause ces príncipes? Ou bien ces príncipes ont-ils été remplacés par d'autres plus fondamentaux? Ou encare s'est-on réellement débarassé de toutes bé­quilles, atteignant le stade de la maturité logique, du raisonnement libre et indépendant ?

La logique modeme, mathématisée, a permis d'avoir une meilleur idée des principes logiques considérés jadis comme fondarnentaux. En

formulant ces príncipes à l'aide d'outíls matbématiques, on s'est aperçu que l'on pouvait en donner différentes formulations non nécessairement équivalentes. Par ailleurs on a découvert qu'un même príncipe pouvait en cacber d'autres, qu'un même principe pouvait se décomposer en plu­sieurs príncipes plus simples.

L'exemple le plus frappant est celui sans doute du principe de con­tradiction. Pour certains, l'histoire de la logique moderne commence avec Frege, passe par Russell, Hilbert, et continue avec Gõdel, Gentzen, Churcb et Tarski. Cette histoire en fait est plutôt celle des fondements des mathématiques. Une autre histoire commence avec la monographie de Lukasiewicz de 191 O analysant en détails les argwnents d' Aristote en

faveur du príncipe de contradiction et continue avec le développement

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 47-54.

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48 Jean-Yves Béziau

progressif de la logique paraconsistante, logique rejetant le principe de contradiction, développée principalement par le logicien brésilien New­

ton da Costa. Cette autre histoire est celle de la naissance d 'une nouvelle conception de la logique issue du rejct du plus sacré de ses príncipes. Ces deux rustoires ne sont toutefois pas séparée, elles s'entrelacent, mais

leur signification est différente. L'erreur principale d ' Aristote est qu'il confondait le principe de con­

tradiction avec un príncipe plus fondamental, que l'on pourrait appeler le príncipe de non trivialité. Trivialité signifie évidcnce dépourvue de tout intérêt. On pourrait considérer que les tautologies sont des trivia­Iités. Lorsque certains logidens prétendirent réduire toute la mathéma­tique à un petit contingent de tautologies, cela sembla absurde aux yeux des mathématiciens qui ne pouvaient imaginer qu 'une activité à laquelle ils prenaient un intense plaisir se réduise à de telles trivialités. Toutefois il y a pire trivialité que la tautologie, c'est la trivialité du "tout est per­rnis," la loi de la licence absolue.

C'est ce qu'avaient bien compris les logiciens du début du siecle, lorsqu'apres avoir réduitla mathématique à la trivialité tautologique, ils voulurent montrer qu'une telle trivialité n'était pas sans signification, n'était pas totalement inconsistante. Mais, comme Aristote, ils conti­nuaient à confondre trivialité avec contradiction.

On peut si l'on veut déjinir le principe de contradiction à l'aide du príncipe de trivialité, en disant que si une théorie contient une proposi­tion et sa négation, alors cette théorie est trivial e au sens ou I' on peut en déduire ce que l'on veut, et c'est bien là la conception classique de la négation. Toutefois il est irnportant de remarquer que le príncipe de

contradiction concerne la négation, il définit la négation, .alors que lc principe de trivialité nous dit que l'on doit éviter d'admettre comme vé­

rité, comme théoreme, toute proposition. Le príncipe de trivialité est un príncipe qui concerne la vérité en soi, indépendamment de toute repré­

sentation ou manipulation de la vérité à travers d'opérateurs logiques. Comme l'a dit da Costa, " toute théorie est valable, des lors qu'elle

est non triviale" (da Costa 1958). C'est-à-dire que l'on peut admettre

des théorics avec des opérateurs nc vérifiant pas !e principe de contra-

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Y a-t-il des Príncipes Logiques ? 49

diction, ayant des propriétés plus ou moins proches de celles de la néga­

tion classique. Le principe de contradiction n 'est donc pas un principe fondamental de la logique. C'est tout au plus un principe qui gouverne

un certain type de négation. Le principe du tiers-exclu peut être formulé de façon duale au prin­

cipe de contradiction, ils ne sont donc que deux faces de la même piêce qui n'apparait plus aujourd'hui comme la monnaie fondamentale de 1 'économie logique.

Dans la formulation traditionelle les principes du tiers-exclu et de contradiction sont souvent confondus avec le príncipe de bivalence qui n 'est pas exprimé explicitement. En fait, de même que le principe de tri­vialité, le principe de bivalence est un príncipe plus fondamental qui ne concerne pas directement la négation ou les autres opérateurs logiques, mais la vérité elle-même.

11 est juste de remarquer que les instruments mathématiques utili­sés par les logicicns modernes ne font pas qu'éclaircir des problemes mal posés par la logique traditionelle, comme le prétend un certain cou­rant positiviste. Ces instruments mathématiques peuvent être la source d 'autres confusions, encore plus graves. En fait la mathématique est neutre et ne résout en soi aucun probleme philosophique. Le philosophe peut I 'utiliser pour résoudre des problemes ou en créer. Ces remarques s'appliquent à la logique polyvalente. Cette logique est un fruit de la ma­thématique qui a géré de nombreuses confusions philosophiques. Com­

me l'a bien remarqué Suszko, Lukasiewicz s'est leurré en pensant qu'un teUe logique violait le principe de bivalence (Suszko 1977). Si l'on veut vraiment rejeter I e principe de bivalence, ce qui n' est pas difficile, il faut aller plus loin que Lukasiewicz et ses épigones.

Ces remarques s'appliquent aussi au principe d'identité dont la signi­fication n'a guere été éclaircie par les logiciens modemes. Ce príncipe a en fait deux dimensions qui malheureusement ne sont en général pas considérées ensembles. D'une part il peut être analysé à un niveau pure­ment relationel, au sens ou il concerne certains types de relations entre

objets, qui peuvent être décrites à l'aide de la notion mathématique de congruence, d'autre part il peut être vu comme un principe lié à la notion

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50 Jean-Yves Béziau

de référence. Quoiqu'il en soit le pdncipe d'identité ne prend sens que par rapport à sa relativisation, puisque l'on cherche toujours à identifier deux choses différentes (Krause et Béziau 1997).

Un principe, énoncé par Leibniz, et qui fut tenu pendant plusieurs siecles comme un principe fondamental est le príncipe de raison suffi­sante: "rien n'est sans raison." Ce príncipe a complétement disparu des autoroutes de la logique modeme. D'apres Scholz, cela s'explique par le fait que "ce principe fait partie des choses qui échappent à toute for­malisation, et qui, par conséquent, ne peuvent pas être écrites avec des symboles, mais qui peuvent seulement être formulées." D'apres Scholz toujours, "c'est un grand mérite de la logistique que de distinguer net­tement, pour la premiere fois, dans les données de la logique, ce qui est formalisable de ce qui seulement peut être formulé'' et "le principe de raison suffisante ne peut en fait qu'êtreformulé" (Scholz 1968, p. 93).

En fait Scholz commet ici plusieurs erreurs qui montrent bien à que! point le développement de la logique modeme a donné lieu à de nom­breuses confusions philosophiques. On a confondu trois processus qui sont en fait indépendants : forrnalisation, symbolisation, mathématisa­tion. Lc príncipe de raison suffisante, comme n'importe quel príncipe, idée ou concept peut être mathématisé, la question de savoir si cette ma­thématisation est pertinente est un autre probleme. 11 peut être mathé­matisée de différentes manieres, de maniere inforrnelle ou à J'aide d'un formalisme comme la logique modale quantifiée, suivant la proposition de Newton da Costa (voir Béziau 1992).

La discussion précédente laisse clairement entrevoir qu'il existe en fait différentes sortes de principes logiques, certains étant plus fonda­mentaux que d'autres.

Il y a des principes, tel le príncipe de contradiction, qui concement les opérateurs logiques, et des príncipes, telle príncipe de bivalence, qui concement directement les notions de déduction ou de vérité. Appelons les premiers, príncipes opérationnels et les seconds príncipes stntctu­raux. Príncipes opérationels et príncipes structuraux étaient autrefois confondus et un des grands mérites de la logique modeme est d'avoir perrnis cette distinction. Mais là, encore une fois, tous les problemes

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Y a-t-il des Príncipes Logiques ? 51

n'ont pas été résolus et d'autres confusions sont apparues. La distinction entre ces deux sortes de príncipes commencent à se

dessiner avec les travaux de Tarski et Gentzen, à la fin des années 20 et au début des années 30. Mais c'est seulement récemment, avec la grande mode des logiques non stnJcturales - logique non monotone, puis lo­gique linéaire - que l'on a commencé à sérieusement s'intéresser à ces travaux.

11 importe d'insister sur deux points: tout d'abord la théorie de l'opé­rateur de conséquence de Tarski (Tarski 1928) est différente du calcul des séquents de Gentzen (Gentzen 1932), ensuite les principes qui ap­paraissent comme structuraux dans ces approches sont 1oin d'englober tous les principes logiques structuraux. S'est développée en fait ces der­nieres années une théoríe qui est un mélange de la théorie de Tarski et de Gentzen, qui pour être bien comprise doit être traitée comme une nouvelle théorie, intégrant des éléments disparates de ces deux théoríes.

Dans la théorie de I' opérateur de conséquence de Tarski, apparaissent trois príncipes fondarnentaux qui gouvement cet opérateur : réfl.exivité, monotonie, transitivité. Le choix de ces príncipes s'explique par l'ob­jectif de Tarski qui était d'axiomatiser la notion de preuve 1ogique à la Hilbert. Aujourd'hui aucun de ces principes ne semble pourvu d'une nécessité absolue et l'on peut construire des logiques violant chacun de ces príncipes, les plus connues étant les logiques non monotones.

La théorie de Tarski a été raffinée apres la guerre par Los et Suszko, qui y ont ajouté un autre principe, le principe de structuralité qui cor­respond au théoreme de substitution et caractérise le fait que la vérité logique dépend de la forme et non du contenu (Los et Suszko 1958). Mais un tel príncipe qui a dominé la logique depuis Aristote est aujour­d'hui aussi sérieusement remis en question par le développement de la logique informelle et des logiques qui cherchent à capturer la Significa­tion.

11 apparaí't aujourd'hui clairement que, si l'on veut développer une théorie générale des logiques, on ne peut présupposer aucun príncipes valables pour toute logique, que ce soit des príncipes opérationnels ou des príncipes structuraux.

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52 Jean-Yves Béziau

Se produit là un phénomene sirnilaire à celui qui s'est produit dans le cas du développement de l'algebre universelle. La théorie générale des structures algébriques telle que développée par Birkhoff (Birkhoff 1946) est une théorie qui ne présuppose aucun principe ou loi algébrique uni­versels valables pour toute structure algébrique. Cette théorie se fonde uniquement sur l'idée de structure algebrique et les concepts qui !ui sont relatifs telles que les notions de sous-algébre, homorphisme, etc.

De la même façon nous avons proposé le développement d'une lo­gique universelle fondée sur une notion trés générale et abstraite de structure Iogique (Béziau 1994, 2000).

Au tournant du 19e siécle on a voulu trouver les príncipes des ma­thématiques. Un gentleman tel que Russell a ainsi rédigé un premier ouvrage intitulé Principies of mathematics puis, avec son compatriote Whitehead, il a récidivé avec un autre ouvrage encore plus ambitieux intitulé Principia matematica. Avec le renouveau de la méthode axio­matique, dii à des mathématiciens tels que Hilbert et Peano, la nouvelle conception de la logique de Frege et l'essor de la théorie des ensembles, axiomatisée notamment par Zermelo, on a cru un bref instant que l'on avait enfin atteint l'essence graalique des mathématiques qui serait une poignée d'axiomes à partir desquels toute la mathématique se déduirait, se réduirait, se concentrerait.

Une telle vision aujourd 'hui non seulement a été sérieusement as­sombrie par les résultats d'indépendance de l'arithmétique et de la théo­rie des ensembles de Gõdel et Cohen, mais paralt en grande partie ab­surde. 11 est clair que la mathématique ne se réduit nullement à une poignée d'axiomes. Même si des axiomes tels que ceux de la théorie des ensembles ont un intérêt philosophique important, ils ne constituent point l'essence de la mathématique.

Parlallélement à cette vision axiomatique de la mathématique s'est développée une vision conceptue/le de la mathématique avec l'émer­gence de l'algebre universelle puis de la théorie des catégorie. Le but de la théorie des catégorie n'est pas de trouver les príncipes de la ma­thématique, de fournir une axiomatisation de la mathématique, mais de dégager certains concepts fondamentaux qui procurent une vísion gé-

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Y a-t-il des Príncipes Logiques ? 53

nérale de la mathématique. Malheureusement ces deux perspectives ont souvent étaient confondues au sein de la mathématique modeme promue par Nicolas Bourbaki, qui se présentait à la fois comme axiomatique et conceptuelle. Par ailleurs la vision axiomatique n'est pas forcément at­tachée à la théorie des ensembles et la vision conceptuelle à la théorie des catégories. On peut développer une vision conceptuelle de la mathé­matique à partir de la notion d 'ensemble et une vision axiomatique de la mathématique à partir de la théorie des catégories.

Au toumant du 20e siecle, la conception axiomatique de la mathé­matique semble avoir perdu de son attrait et c'est la vision conceptuelle qui semble dorniner.

Au niveau de la logique, il semblerait aussi que le future soit bien au niveau d'une théorie conceptuelle telle que la logique universelle, et non de la découverte de principes fondamentaux gouvernant le raison­nement, la pensée ou l'univers.

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54 Jean-Yves Béziau

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Seção 2

Lingüística e Filosofia da Linguagem

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THE PRINCIPLES OF IDENTITY AND CONTINUITY IN THE HISTORY OF LINGUISTICS

M. Victoria Rébori University ofSão Paulo

Among recent discussions about historical origins o f some Ordinary Language Philosophy concepts, there is one that suggests specific links between linguistic concepts and some of ordinary language philosophy. This is not new. Ali lingu.ists today have an idea, however vague it may be, about some concepts of'ordinary language' background, dueto their undergraduate formation. For this reason, lingu.ists, in general, take for granted 'ordinary language' concepts. Consequently, they think it is a minor or unimport~t task to analyse the links between the concepts in these two areas.

The novelty resides in the fact that the history of linguistics is starting to develop some hypotheses about the identity or continuity of some concepts across science and philosophy boundaries and the case focused constitutes a very incipient exarnple o f this move.

The search for the links between the concepts in these two areas poses the methodological problem of how to determine a principie of identity and/or a principie of continuity relating the concepts in each field.

The aim of this study was initially to analyse the connections be­tween some concepts in two areas of knowledge, linguistics and phi­losophy. Although th.is initial intention led us to raise other problems mostly related to the development of History, this work constitutes a first approach to the life and writings ofthe British linguist John R. Firth ( 1890-1960), central focus of a piece of research already in progress.

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 57-67.

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Questions about the criteria dividing semantics into three branches (linguistics, philosophy and anthropology) permeate the clima te of this inquiry. However, it occurs from the perspective ofthe way individuais and institutions interact to produce knowledge in view of their personal and social attitudes, some ofwhich should be investigated by means of historiography and others by mcans of an examination of the concepts involved - although historiography and concepts are separated only for description or exposition purposes.

The main picture of this work will illustrate two examples of the principies of identity and continuity based on the history of linguistics and related to J. R. Firth's life and writings. Looking through argumen­tative facts in linguistics and philosophy writings that denote personal attitudes facing tradition, we notice two kinds of attitudes. On the one hand., the explicit acknowledgement or recognition toward intellectual indebtedness; on the other hand, a lack of acknowledging attitude and thc astonishing similarity of the concepts as well as the coincidence of time and places.

1. Oo the Acquaintance ofthe Concepts o f Ordinary Language Philosophy by Lioguists

The data we discuss in this section are essentially, not exclusively, re­lated to the work of J. R. Firth, and Ordinary Language Philosophy is also considered. In fact, both were atfected by contemporary issues. For this reason, it is difficult to discem historical facts with complete accu­racy. Thus, it is important to bear in mind that we are in a 'penumbra' zone.1

In view o f this, we start from the verification that linguists today are acquainted with, at least, a meaningfu1 part of the Ordinary Language Philosophy concepts. Why is this so?

The obvious answer would be that the present acquaintance of ordi­nary language concepts by linguists has historical and epistemological roots. These roots are common to both, Linguistics and the Ordinary Language Philosophy, and should be considered as the sequeis of a con-

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The Principies of ldentity and Continuity in the History of Linguistics 59

troversy relating both areas in thc first decades o f the ccntury - even though in a fuzzy manner at the beginning.

Briefly speaking, one can say that in linguistics the controversy cen­ters around the discussion about the main purpose of linguistics as a science, i.e., whether the focus is on the description of the language as a system o f internai relations, or on the description o f Janguages in use. In pbilosophy, the controversy translates itself as (Philosophy of) Ideal Language vs. Ordinary Language, respectively. The coincidences be­tween controversies in the two arcas are evident and they reflect the style ofthinking ofthat time.2 The now classic Richard Rorty's The Linguis­

tic Tum. . . (Rorty 1967) shows not only the controversy in pbilosophy but also the contribution of linguistics to the debate in pbilosophy and the consequences oftheir interaction in the sixties and seventies.

Back to Firth's lifetime, we can verify the awareness oflinguists on the parallelism or brotherhood o f controversies by quoting Firth himself:

The Prague Circle and its many imitators, running in parallel with The Vienna Circle, have been formativc influences espccially in America, where a few distinguished Central European scholars wield great influ­ence. (p. 169)3

Therefore, and regardless of its institutional development, we can as­sume the strong historical affinity ofboth controversies and the fact that it constitutes one o f the reasons which explain the acquaintance o fOr­dinary Language concepts by present day linguists.

2. On tbe Meanings o f tbe Concept o f 'Context o f Situation'. Summary of Firtb's lnitial Concept

The 'Contexto f Situation' concept, our key-concept in the discussion o f the principies of identity and continuity, was first used in linguistics by the British linguist John R. Firth (1890-1960) in his book The Tongues ofMen.

This book was published in 1937. Although it is addressed to the general public, the density of its contents makes it hard to understand

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60 M. Victoria Rébori

some of its passages. It includes a three-page chapter named 'Con­text ofSituation'. lt has internai divisions: 1) Say When!; 2) Practical Speech; 3) The Language of Planning; 4) 'Sharing'; 5) Language and Society. These are intended to summarise the main points to consider when thinking about language behaviour. From Firth's perspective, a situation is a patterned process where language is practical speech. Ris examples of practical speech are orders, directions, guiding signs, etc. In the opening section (' Say when'), after a description of a linguistic example where the meaning of the words depends entirely on the con­text, Firth wrote the following sentence: " ... What do the words mean? They mean what they do." (Firth, 1964 [ 1937], p. 11 0).

Based on this concept, it is possible to illustrate two types of argu­mentation that contribute to reconstruct some passages from the history of linguistics. Both types of argumentation are linked to the explicit nature (or not) of the statement of indebtedness. By 'statement of in­debtedness' we mean the (conceptual, intellectual, etc.) indebtedness of one author to another.

First Type of Argumentation: Explicit lndcbtedness

Now we should bear in mind the fust situation mentioned at the begin­ning, in other words, the situatíon in whjch an author recognjses bis conceptual indebtedness to another. Thls ís the case of Firth regarding the Polish anthropologist B. Malinowski through the concept o f 'context ofsituation'. Here, we are interested in remaking on the passages ofac­knowledgement only. The comparison of the concept in both authors would deserve a deeper study, and we shall not attempt to do it here.4

The historiography of linguistics brings up a number of references not only about the knowledge by Firth ofMalinowski's writings but also about the fact that Firth and Malinowski attended the same semjnars in the thirties. For example, T. Langendoen says, in a work devoted to the bistory of"Thc London School ofLinguistics", that their interaction was so important to both of them that the traces ofthcir mutual influence are evident:

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The Principies of ldentity and Continuity in lhe History o f Linguistics 61

The !ater Malinowski, by contrast, espoused a much weakcr theoreti­cal position, one based on the tenets o f behavioristic psychology. This is most clcarly seen in his Coral Gardens, published in 1935 after the seminar in which he and Firth participated, and it is reasonable to sup­pose that Firth, always effective in arguing his position, actually had a considerable influcnce on Malinowski during the time that they worked together. (1968, p. 2)

Firth makes explicit references to Malinowski in severa! passages of bis writings5 recognising bis indebtedness to him explicitly when he mentions the Malinowskian notion of context of situation in his 1950 article "Personality and Language in Society":6

... The phrase 'context ofsituation' was first used widely in English by Malinowski. In the early thirtics, when he was especially interested in discussion problems of languages. I was privilcged to work with hím. H e also discussed similar problems with Alan Gardíner . .. (that) dedí­cated his book to one ofthe earliest users of the notion ofa situational context for language, Dr. Phíl ipp Wegener. . . ( op. cit., p. 181)

Starting from Firth's argumentation on the concept in focus, it is rel­atively easy to depict its history through the successive references of indebtedness.

In contrast, in Malinowski 's case we notice that his reference in lin­guistics is not to Firth but to the 1923 book by C. K. Ogden & I. A. Richards The Meaning of Meaning. It is worth noting that Malinowski wrote a supplementary essay to their book, entitled "The Problem of Meaning in Primitive Languages" (Malinowski 1923), in which he de­clares that his conception of meaning accords with that of Ogden & Richards.

Malinowski's position on the indebtedness matter poses a problem in view ofthe failure for him and Firth to coincide in their respective ar­gumentation. We cannot consider this event as a failure or discordance o f points o f view in terms of indebtedness; the latter is a relative con­cept, i.e., it is always tributary from a partia! perspective. This is the reason why we associated it to the author's argumentation and not to some instance of constant nature.

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From Firth's perspective, one can say that there is a principie ofiden­tity emerging from his argumentation. This principie connects the 'con­text ofsituation' concepts through Wegener, Gardiner, Malinowski and Firth himself; and it is based more on the 'native' argumentation about the concepts than on a deeper and extensive exaro of its history.

An exaro o f the broader context should force us to abandon the argu­mentative parameter from only one author and to consider a variety of views.

Second Type of Argumentation: No Explicit lndebtedness and Striking Similarities o f the Concepts

In recent years, some new clues about the meanings of the 'context of situation' concept have been yielded by some linguists. These clues are the possible links between Firth and Ordinary Language philoso­phers. According to them, these links are based on the knowledge of both works rather than on historical punctual facts; this is the reason why one has to consider firstly the alleged affinity of conccpts or no­tions instead of considering the author's argumentation itself- which used to be the previous situation.

The first clue is provided by John Lyons. In his Linguistics Semantics he has pointed out the link ofFirth's notion of 'context ofsituation' to that of Grice's 'conversational implicature'. Let us deepen this point. According to Lyons, in a section dcvotcd to define context:

One of the points that emerges from our discussion of Grice's notion o f conversational implicaturc in the previous section is the double role played by context. First o f ali, the utterance itself is embedded in what J. R. Firth and othcrs h ave called a contexto f situation ... (Lyons 1995, p. 290)

From this, one wonders which part ofFirth's 'context ofsituation' is the mentioned 'utterance'. The question demands to know, first, what, in fact, a utterance is according to Lyons; and we can say that for him one ofthe meanings ofthe verb 'say' is 'utter', which means 'perform a locutionary act' (Lyons 1995, p. 247). In this perspective, 'Say' and

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The Principies of Jdentity and Continuity in the History o f Linguistics 63

' Do' represent the primary relation or the foundational stone, and its different senses together with its contextual restrictions are the elements in which we can decompose an utterance.

It is obvious that when Lyons mentions the 'performance of a lo­cutionary act', he is thinking of Austin (op. cit., p. 240). Then, if we intend to know what the meaning of 'utterance' is according to Lyons, we are committing ourselves to reconstructing the present meaning by considering the contributions of, at least, Austin, Searle and Grice.

Hence, we cannot actually attempt to embed 'utterance' in Firth's 'context of situation' notion. Why? Because from Firth to Lyons some­thing called 'accumulation' happened: we can trace some 'evolution' from 'context ofsituation' to 'utterance' - in terms ofaccuracy of con­cepts - but we cannot do the opposite, i.e., to literally embed Lyons 'utterance' into Firth's 'contexto f situation'.

An example that will corroborate what we are arguing is the use of the term 'utterance' by Firth. In one of his last writings, "Linguistic Analysis as a Study of Meaning"/ the word 'utterance' is used. We cannot discern any specific technical use of it, but, in fact, one has to admit that the context in which the term appears is a technical one:

2. Ali language text in modem ~anguages has therefore: (a) the impli­cation of the utterance, and must be referred to (b) participants in (c) some generalised contexto f situation.

Thesccategories must also covcr 'talking to oneself'. (Firth 1968, p. 13)

How can we decide which is supposed to be the meaning of 'utterance'? Thus, the main concJusion is that Lyons's intention was to remem­

ber the possible matrix ofthe present 'utterance' rather than suggesting fitting it in to Firth 's 'contexto f siítuation'.

All this represents a part of a more general tendency toward the re­covery J. R. Firth's place in the history oflinguistics.

As we have mentioned earlier, the book The Tongues of Men was published for the first time in 193 7. fn 1964 a new edition of it together with Speech (first edition in 1930) from Oxford University Press in­cludes a very interesting editor's preface by Peter Strevens. He stresses

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the durability or present validity ofthe views there reprinted, principally these related to the meaning in language. Although we notice Strevens's preoccupation to situate Firth's writings within his context and to relate his work to that ofBloomfield - this one more familiar among linguis­tics students in Great Britain at the time when Strevens wrote the preface - the aim ofthis reprint isto do some kind of justice in order to delete the fact that these works had been out o f print for some twenty years:

The disappearance o f these two books from currency had three consc­qucnccs. In the first place, it contributed to the notion which is still widely hcld that the wholc of Professor Firth's writings on language were couched in a style of impenetrable obscurity. Secondly, it allowed the opinion to grow up that Firth wrote nothing o f consequence before the appearance in 1948 of his paper 'Sounds and Prosodies', and that in any case he neve r wrote anything longer than an article for a leamed joumal. And thirdly, it permitted the idea to burgeon that no thoughts on linguistic matters had been generated in Britain before 1948 and it even led to the furthcr implication that current British ideas on linguis­tics rcpresent merely a deviant conscquence o f having misunderstood American linguistics. (op. cit., p. vii)

In spite of possible objections to this view, we accept the historical unfaimess, highJighted by Strevens, surrounding the work of J. R. Firth. However, we should take these ideas as facts deriving from 'native' views about the problem which can help us to understand the reason why some linguists in Great Britain today are claiming for the recovery ofFirth's work. All these facts should be considered when discussing the mcaning ofthe 'context of situation' concept nowadays.

The second clue has just been produced by the history of linguistics. It is the article by Robert H. Robins in the centennial edition of the British linguistics journal Lingua, from 1997. Severa! questions related to the J. R. Firth's works and inftuence are raised by it.

Robins argues that the concepts of 'speech acts' and their 'felicity conditions' for their effective performance ... "were very much part of the contexts of situation that Firth had laid down as necessary for the full and proper understanding of the meanings of sentences in actual

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The Principies of ldenlity and Continuity in the History o f Unguistics 65

use." A little later he refers to an obscure episode related to this: "In 1959 in Firth's Jifetime and in his presence Austin read a paper to the Philological Society entitled 'Grammar'. It was not published and there is no record ofFirth's reaction to it." (Robins 1997, pp. 218-9).

At the beginning of this passage, Robins's argumentation is similar to that o f Lyons. The difference lies in the fact that Robins affirms that 'speech acts' and 'felicity conditions' were already in Firth. But the verification of the affirmation would su.ffer the same restrictions as in the case of Lyons's argumentation. We see the similarities but their verification, even in the field o f historiography, demands a new view o f the concepts in focus.

As to the obscure episode referred to, this research is in another type of 'penumbra'. This 'penumbra• is linked to some inconclusive inter­views: after having talked with some British linguists, we can say that, at least, one ofthem is familiar with this episode is known, even having no knowledge of details; in contrast, the same episode remain unknown to most o f them.

3. Conclusion

We can identify the activity ofthe Principie ofldentity when the explicit statement of indebtedness is present and, hence, the author authorises himselfto utilise and evento transform the concept in focus.

Problems related to the value of the concept transformation and to the validity of the indebtedness statement have been at the core o f in­temational meetings and controversies- as for example, Gross, Levitt & Lewis The F/ight from Science to Reason; and Sokal & Bricmont Les lmpostures Intelectuelles8 - and in view o f our discussion, they consti­tute a problem which has to be inscribed in the scope of history or/and philosophy o f science.

The activity of a Principie of Continuity should be identified when there is a variety o f views o r argumentation converging to the same con­clusion. The argumentation is the product of different authors stating the sirnilarities of concepts, time and places.

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We cannot deny the objection that the circumscription of both prin­cipies to the argumentative "levei" constitutes a reduction. The cause ofthis reduction could be explained in the following terrns: in this case we have considered a very short period o f time involving the situations discussed. Thus, time has a secondary relevance while the 'penumbra' notion has a primary one. In a short-term perspective, the low density of the principies is a consequence o f the high density o f the 'penumbra' .

However, there is another paradoxical consequence. The low den­sity of the principies acquires the definition of a style in a long-term perspective. Very probably, this style concept is useful to rejoin the rel­evant features that serve to define, through identity and contiouity, the unity oftradition and personality.

These final words are also very Firthian.9

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Notes

1 I want to thank Professor Robert H. Robins forthe idca of'penumbra', which he, in his tum, took from Wittgenstein. 2 For the conccpt ofstyle scc: Crombie, A. C. (1994); Grangcr, G.-G. (1988). 3 Firth, J. R., "Atlantic Linguistics", in Firth 1957, pp. 156-72. 4 This specific comparison was already started by Robins, R ( 1997). Before him, Langcndoen, T. ( 1968), Nerlich ( 1995). Even though thcy discuss the whole historical context they have sections dcvoted specifically to Malinowski and Firth. 5 For example, see Firth ( 1957, p. 170): "General Linguistics in London has had the advantage of association with two wcll-known schools - the School o f Phonetics founded at University College by Daniel Jones, and the School of Social Anthropology built up by Malinowski at the London School of Eco­nomics ... ". 6 Firth, J. R. "Personality and Language in Society." The Sociological Review 42(2), 1950 (rcprinted in Firth 1957). 7 Firth, J. R. ( 1968 [ 1952/3]) "Linguistic analysis as a study o f meaning"./n Palmcr, F. R. (ed.) Selected Papers of J. R. Firth (1952-1959). Bloomington & London: Indiana University Press ( 12- 26) 8 Gross, Lcvitt & Lewis ( 1996); Sokal, A. & Bricmont, J. ( 1994). 9 Thanks to Maria Teresa Maiztegui and Dr. Deusa M. Sousa.

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IDENTIDADE, A PRIORI E NECESSÁRIO: O QUE PODE A SEMÂNTICA SEM

EPISTEMOLOGIA

Adriano Naves de Brito Universidade Federal de Goiás

1. Identidade e Objeto

A concepção de que um objeto permanece, a despeito de qualquer cir­cunstâncias, idêntico a si mesmo através de todos os mundos possíveis apoia-se numa certa interpretação do princípio de identidade, sobre a qual, no entanto, se pode divergir. Frege apresenta, em "Sobre o Sen­tido e Referência", sua interpretação sobre o sentido dos enunciados de identidade, e gostaria de explicitar o que me parece equivocado na interpetação de Kripke para esses enunciados. Começo estabelecendo sumariamente a sua posição. Cito Kripke:

Deixemos 'R1' e 'R2 ' ser dois dcsignadores rígidos que flanquciam o sinal de identidade. Assim, 'R 1 = R2' é necessária se verdadeira. A re­ferência de 'R,' c 'R2 ', respectivamente, pode muito bem ser fixada por designadores não-rígidos '01' e '02 ': no caso de Hesperus e Phospho­rus eles têm a forma 'o corpo celeste em tal e tal posição no céu pela tarde (manhã)'. Portanto, embora ' R 1 = R2 ' seja necessária, '01 = D2 '

pode muito bem ser contingente e isto é o que comumente leva à vi­são errada de que 'R1 = R2 ' poderia ser de outro modo. (Kripke 1972, pp. 143-4)1

Isto posto, considerando dois designadores rígidos, uma sentença de identidade que os contenha será necessáriamente verdadeira, se verda­deira. Mas como estabelecer a verdade dessa sentença? O enunciado

Dutra, L. H. de A. & Mortarí, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 69-82.

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será verdadeiro se e somente se o objeto designado por, digamos, R 1 for o mesmo que aquele designado por R2• Um modo de garantir que isso seja o caso é estipular para dois nomes dados que eles devem referir ri­gidamente um certo objeto determinado. Mas fazê-lo só é possível se a identidade do referido objeto estiver já suficientemente determinada, de modo que se possa, então, simplesmente rotulá-lo duplamente com tal e tal nome.

Que isto, porém, nem sempre é possível, demonstra-o a informati­vidade de alguns enuncidados de identidade. Embora '(x)(x = x)' seja um enunciado trivial, 'a = b' e mesmo 'a= a' não o são, e a diferença está em que enquanto estes últimos enunciados referem-se a um obje­to específico, o primeiro é uma sentença com variáveis, para as quais não está ainda, e não poderia estar, especificada nenhuma instância de substituição, ou seja, nenhum tenno singular ocorre na sentença.

Ora, a especificidade dos termos singulares é justamente apontar não um certo objeto, qualquer que ele seja, mas um entre todos os outros objetos, tal que a verdade de enunciados de identidade entre termos sin­gulares depende de que nas duas ocorrências dos termos que ladeiam a identidade, os nomes estejam referindo o mesmo objeto. Isso, entre­tanto, não pode ser sempre determinado a priori e, de fato, não o é. Nem sempre podemos estipular de antemão a que nos referimos com o uso de um certo nome, mas muitas vezes usamos um dado nome jus­tamente para tentar determinar para o interlocutor sobre o que estamos falando. Além do mais, os objetos não são descritos ou especificados simplesmente mediante a indicação de seus nomes; é preciso para tanto um procedimento epistêmico qualquer, pelo qual o objeto seja suficien­temente determinado.

Uma alternativa para contornar essa condição seria estipular que qualquer nome, em todas as suas ocorrências, referiria o mesmo obje­to. ou seja, estipular para uma certa língua que nela não haveria objetos homônimos. Deste modo também se chega aos designadores rígidos de Kripke.2 O problema é que isso não pode ser feito para a língua na­tural em geral, mas apenas pontual c artificialmente, mediante acordos circunscritos, e, portanto, amparados pelo corpo adjacente da língua, o

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qual subjaz aos acordos possíveis e que não é, como um todo e de uma

só vez, susceptível a arranjos e reparos.

A verdade da sentença 'Hesperus = Phosphoms' fo i, historicamente falando, descoberta. E qual teria sido o procedimento disponível pa­ra se chegar a essa descoberta? Certamente, não a averiguação de se 'Hesperus' e 'Phosphorus' eram ou não designadores rigidos, pois eles poderiam sê-lo de objetos distintos, e, além do mais, o que estava posto em questão para a determinação do valor de verdade dessa sentença não era o caráter semântico desses nomes, mas a identidade de seu(s) refe­

rente(s). Ora, para a determinação da identidade de um objeto não está

disponível senão um procedimento empírico, a saber, a averiguação de que descrições, tais como 'o corpo celeste em tal e tal posição na ma­nhã' e 'o corpo celeste em tal e tal posição à tarde', correspondem a um e o mesmo objeto, quer dizer, pela verificação da verdade de sentenças contingentes de identidade, tais como 'D1 = D2 ', em que, se predicados distintos são atribuídos a um e o mesmo objeto, então elas são sentenças verdadeiras.

A verdade de sentenças com designadores rígidos como 'R 1 = R2' é, então, de fato necessária, mas parasitária da verdade de sentenças como 'D1 = D2 ' , sem as quais a verdade das primeiras é meramente formal e sem nenhum conteúdo específico. 3 Se, sem nenhuma determinação ulterior do(s) respectivo(s) objeto(s) referente(s), substituirmos 'Hespe­rus' e 'Phosphorus' como designadores rigidos e m 'R 1 = R2 ', tudo o que se poderá por meio disso enunciar é que o objeto, qualquer que ele seja,

designado4 por ' Hesperus' é idêntico a um outro objeto, qualquer que ele seja, designado por 'Phosphoms' , o que equivale ao enunciado de que qualquer objeto é idêntico a si mesmo. Que esse emmciado geral sobre todo e qualquer objeto possa ser a priori necessariamente verda­deiro, em nada nos ajuda na identificação de um objeto determinado ao qual deveríamos estar nos referindo com ' Hesperus' e 'Phosphorus', em sendo esses termos nomes próprios.

O argumento anterior põe-nos, entretanto, um problema. A verifica­ção do valor de verdade de enunciados do tipo 'D1 = D2' depende da constatação de que descrições distintas são atribuídas a um e o mesmo

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objeto. Mas se é assim, como é possível constatá-lo sem reconhecer de antemão que se trata de um e o mesmo objeto? Como determinar a identidade de um objeto sem já de antemão pressupô-la?

O paradigma empírico da determinação da identidade de um objeto é, sem dúvida, a comparação de suas propriedades ao longo do tempo, tal que se 'dois' objetos têm, tanto quanto se possa averiguar, as mesmas propriedades, então eles são idênticos.5 Mas se me proponho a compa­rar as propriedades de diferentes objetos para determinar a identidade dos mesmos, então o próprio propósito já não tem nenhum sentido, pois sei, de antemão, que se tratam de objetos distintos. Se, ao contrário, a comparação é feita com o mesmo objeto em tempos distintos, então, é claro que já tenho que estar de posse de um critério para a sua identidade e a comparação toma-se supérflua.6

Isso quer dizer, afinal, que Kripke tem razão e que não existem enun­ciados de identidade verdadeiros que não sejam necessários? Bem, num certo sentido a afirmação não é apenas verdadeira, mas também tautoló­gica, a saber, no sentido em que se pode afirmar com necessidade a iden­tidade de todo e qualquer objeto consigo mesmo. Como tal, a afirmação exprime a mera condição formal de que não é possível enunciar algo de alguma coisa, qualquer que ela seja, sem enunciar algo precisamente sobre essa coisa, o que quer que e la seja. Isso, contudo, não é suficiente para a verificação da verdade de enunciados de identidade concernentes a objetos determinados. A verdade de 'Hesperus = Phosphorus' depen­de, certamente, de que ambos os nomes se refiram ao mesmo objeto, o qual só mediante descrições pode ser especificado como algo determi­nado. Afinal, de que outro recurso dispomos para especificar um certo objeto no mundo senão a predicação, por meio da qual dizemos o que ele é e distingüímo-lo de outros objetos?

Por outro lado, como podemos predicar, sem predicar de algo? Para predicarmos temos que ter à disposição, de antemão, o conceito de um objeto em geral, ao qual corresponde necessariamente a propriedade de ser idêntico a si mesmo. Sem identidade não há entidade, mas sem a predicação não se pode saber que entidades há. Predicação e identidades são, pois, elementos básico do discurso sobre objetos. 7

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E o que podemos concluir agora? Em parte que a tese segundo a qual

a identidade entre 'dois' objetos é, quando verdadeira, então necessaria­

mente verdadeira, é, afinal, trivialmente correta, pois que sentido teria a idéia de um objeto não ser idêntico a si mesmo? Não obstante, é preciso

compreender muito cuidadosamente o conteúdo e o âmbito dessa tese verdadeira. Como formulada acima, ela tem duas características essen­ciais. Primeiro, não diz respeito a nenhum enunciado propriamente dito, mas às coisas elas mesmas, e favorece, portanto, a uma leitura de re da modalidade envolvida. Segundo, é urna tese que se refere a todo e qual­quer objeto simplesmente enquanto e le é um objeto, sem nada somar à determinação dos mesmo e é, enquanto tal, um truísmo.

A tese de Kripke, com a qual estivemos confrontados anteriormen­te, é a de que enunciados de identidade entre nomes próprios são, se verdadeiros, então necessariamente verdadeiros. Aqui, de acordo com a análise feita, a leitura da modalidade deveria ser apenas de dieta, pois deveria referir-se às sentenças, mas não diretamente ao que nelas é re­ferido pelos nomes próprios que a compõem. A tese só diria respeito aos objetos no caso dos nomes próprios serem designadores rígidos. Se nomes próprios não são, primitivamente, designadores rígidos, então a doutrina é, em princípio, falsa.

O recurso à tese dos nomes próprios como designadores rígidos ser­

ve, afinal, ao propósito de permitir urna leitura de re da modalidade nos enunciados de identidade e, embora tenhamos visto que é possível usar

nomes corno designadores rígidos, esse uso não constitui seu uso primá­rio e só é viável quando se pode estipular de antemão um vínculo entre um certo signo e um objeto determinado. A doutrina de Kripke só seria verdadeira sob a presuposição de que nomes são designadores rígidos, mas o comportamento de nomes próprios como designadores rígidos é parasitário do uso corrente desses termos, no qual sua relação com seus

referentes não é direta, mas mediada por descrições, tal que, por meio delas, os objetos referidos possam ser especificados. Uma teoria dos nomes próprios equivoca-se se torna um uso parasitário desses termos

corno o seu uso primário. Aceitar a tese de que nomes próprios são designadores rígidos irnpli-

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ca, portanto, como vejo, o compronússo com uma certa concepção de objeto e de acesso a ele que me parecem ambas inadequadas para carac­terizar o que em geral é o caso para a língua natural. Refuo-me à idéia de que o vínculo entre termos singulares, como são os nomes próprios, e seus referentes seja direto, tal que se afirme que eles os refiram sob quaisquer circunstâncias descritivas. O problema é que, mesmo consi­derando que não haja nenhuma circunstância em que um dado objeto não seja idêntico a si mesmo, isto por si não o identifica como um obje­to determinado, dintingüivel de outro qualquer. Se queremos nos referir a um objeto por meio de um nome, esse objeto tem que primeiramente poder ser especificado por descrições que o qualifiquem e que permi­tam a sua reidentificação posterior. Uma vez garantida a identidade do objeto, então se pode referi-lo rigidamente.

2. Metdísica, Semântica c Epistemologia

Uma das conseqüências da assunção de nomes como designadores rí­gidos é a dificuldade em explicar como sentenças de identidade podem chegar a ser informativas. Se 'a' e 'b' são designadores rígidos e enun­ciados de identidade são, se verdadeiros, sempre necessários, então por­que uma sentença do tipo 'a = b' não constitui um mero truismo?

A estratégia de Kripke para explicar o valor informativo de sentenças de identidade consiste em separar, relativamente a seus âmbitos, respec­tivamente a metafisica e a epistemologia, os conceitos 'contingente' e 'necessário' de um lado e 'a priori' e 'a posteriori' de outro. Seu argu­mento é de que muito embora enunciados de identidade, se verdadeiros, sejam sempre necessários, o que constitui uma verdade metafisica, tais enunciados podem muito bem ser conhecidos a posteriori e esse aspecto desses enunciados cai mais bem sob o âmbito de uma teoria do conhe­cimento. Nessa distinção está contido o cerne da idéia de Kripke do que seja 'desepistemologizar' a semântica.

Tomemos a sentença 'Hesperus = Phosphorus'. O que, por meio disso, se enuncia é verdadeiro e, por conseguinte, segundo Kripke, ne­cessário. Mas sua verdade foi descoberta a posteriori pelos babi lônios

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com base em observações empíricas. O sentido da necessidade desse enunciado está em que sejam quais forem as circunst.:'incias (ou o mun­do possível), Hesperus é idêntico a Phosphorus. Suponhamos agora que a astronomia conclua, no futuro, que, ao contrário do que se supõe cor­rentemente, Hesperus é distinto de Phosphorus. O que teríamos agora com respeito a 'Hesperus = Phosphorus'? Um enunciado falso? O pro­blema com enunciados necessários mas a posteríorí parece ser que, se os analisamos à luz de nossas intuições correntes sobre os conceitos 'necessário' e 'a posteriori', o máximo que se pode conceder é que eles parecem necessariamente verdadeiros, mas somente enquanto não for provado o contrário do que enunciam, o que toma claramente anacrôni­co o uso do conceito 'necessário'.

O argumento contrário a esse resultado consiste em propor que este tipo de raciocínio se baseia numa interpretação dos conceitos 'contin­gente', ' necessário', 'a priori' e 'a posteriori' que não parte de uma rigorosa separação entre metafísica e epistemologia, o que resulta num entendimento inadequado da conjunção entre necessário e a posterio­ri. Penso que, segundo Kripke, poder-se-ia dizer que o modo como se conhece que um enunciado de identidade é verdadeiro pode ser a pos­teriori, mas o que se conhece é sempre necessário. Entretanto, se faz algum sentido dizer que enunciados de identidade podem ser necessá­rios, mas conhecidos a posteriori, então isto só pode significar que não é possível provar empiricamente que esses enunciados são falsos e, por conseguinte, também não que são verdadeiros, muito embora seja pos­sível conhecer, pela experiência com enunciados de identidade, que são necessariamente verdadeiros. Cada experiência com tais enunciados é uma instância que nos dá a conhecer que são necessários. Isso, contudo, equivale a aceitar um outro âmbito de prova que não seja suscetível à empiria, que não pode ser outro senão a própria semântica, que é aquilo que, afinal, sobra como espaço de manobra para a metafísica. Enun­ciados de identidade seriam então necessários em virtude do próprio significado, isto é, por serem, por definição, analíticos (a contraparti­da semântica da modalidade metafisica), e poderiam ser a posteriori, porque que o referente de nomes distintos que ladeiam um enunciado

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de identidade seja o mesmo, pode ser objeto de descoberta. Mas até que ponto esta alternativa leva de fato a uma separação rigorosa entre semântica e epistemologia?

Consideremos que 'Hesperus = Phosphorus' tem de ser verdadeiro em todos os mundos possíveis, porque os nomes que ladeiam a identi­dade nomeiam o mesmo objeto. Agora, se a deliberação acerca de que o objeto nomeado é o mesmo objeto não conceme a uma investigação em­pírica, então com base em que podemos deliberar sobre isso? O recurso semântico seria a definição, a saber:

def: Hesperus é o objeto, qualquer que seja ele, que é idêntico ao objeto Phosphorus, qualquer que seja ele.

Mas do que estamos falando aqui? Ainda de determinados objetos no mundo, ou já simplesmente de um critério para a aplicação de um nome a objetos ideterminados no mundo? E, neste último caso, como podería­mos determinar tais objetos, senão por uma especificação empírica dos mesmos mediante descrições que os distinguissem univocamente dos demais objetos do mundo? Em que ponto se dá o contato do discurso metafísico-semântico com o mundo objetivo?

Se, obstinadamente, desvinculamos a semântica de relações epistê­micas, então é preciso dar ainda mais lastro ao lado metafísico, o que significa formular uma concepção de objeto e de identidade de objeto que seja independente das determinações empíricas. Os problemas que se põem com as dificuldades criadas com a separação entre semântica e epistemologia podem ser em geral superados, se se está disposto a acei­tar uma adequada concepção metafísica de objeto. Kripke insiste que o aparato de descrição qualitativa do mundo não esgota todas as possibi­lidades de contato com o mundo e seus objetos. Os objetos são mais do que uma coleção de qualidades. Cito Kripke:

O que eu de fato nego é que um particular não seja nada mais do que um feixe de qualidades, o que quer que isso possa significar. Se a qualidade é um objeto abstrato, um feixe de qualidades é um objeto de um nível ainda mais alto de abstração, não um particular. Filósofos têm chegado

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à opinião oposta através de um falso dilema. Eles têm perguntado: esses objetos estão atrás do feixe de qualidades ou o objeto não é nada além do feixe? Nenhum dos dois é o caso; esta mesa é de madeira, marrom, está na sala etc. Ela tem todas essas propriedades e não é uma coisa sem propriedades que está atrás delas. Contudo, ela não deveria ser identificada com o conjunto, ou feixe, de suas propriedades, nem com o subconjunto de suas propriedades essenciais. (Kripke 1972, p. 52)

e numa nota em "Identity and Necessity":

Deixem-me, pois, enfatizar que embora uma propriedade essencial seja (trivialmente) uma propriedade sem a qual um objeto não pode ser a, não se segue de modo algum que propriedades essenciais, puramente qualitativas de a formem juntas uma condição suficiente para ser a, nem que quaisquer condições puramente qualitativas sejam suficientes para um objeto ser a. (Kripkc 1971, p. 152)

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O parti cu! ar 'a' é simplesmente o particular 'a', e isto deveria pôr fim a qualquer especulação sobre a identidade de 'a'. Mas mesmo a disposição irrestrita em aceitar essa caracterização metafisica do objeto não pode sustar a pergunta por aquilo que, enfim, seja 'a'. A questão é inevitável, pois ela tem que ser satisfatoriamente respondida se que­remos nos referir a algo determinado (ou, se se quiser, a um particular determinado) ao longo do tempo. E como identificar positivamente e em seguida reidentificar o objeto sem recurso a suas qualidades? Kripke é renitente em aceitar a questão nesses termos:

Não pergunte: como posso identificar esta mesa em outro mundo pos­sível senão por suas propriedades? Eu tenho a mesa em minhas mãos, eu posso apontá-la c quando eu pergunto se ela poderia estar em outra sala, estou falando, por defin ição, sobre ela. (Kripkc 1972, pp. 52- 3)

O ponto de Kripke é aparentemente o seguinte: como posso me equi­vocar sobre a identidade desta mesa que tenho frente a mim? Mas que privilégio cognitivo é esse que tem a familiaridade com os objetos? A al­ternativa ao reconhecimento do objeto por suas qualidades apoia-se num pressuposto privilégio epistêmico do conhecimento do objeto por conta­to perceptivo direto, tipicamente requerido, por exemplo, para o uso de

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expressões dêiticas. Mas mesmo concedendo esse privilégio epistêmico ao contato perceptivo direto com os objetos e, por conseqüência, às ex­pressões dêiticas, não se mantém justamente por meio desse privilégio um vínculo, ainda mais poderoso do que o negado, entre a semântica e a epistemologia, dado que agora ele é postulado como sendo um víncu­lo direto? E por outro lado, se se opera uma separação rigorosa entre semântica e epistemologia, que sentido sobra para as sentenças de iden­tidade senão o de wna definição, a saber, a de que por 'a = b' define-se que 'a' e ' b' refem-se ao mesmo objeto qualquer que ele seja? Mas se é isso, o que sobra, então, para os enunciados de identidade que diga respeito ao mundo objetivo? Como agora vinculá-los ao mundo e seus objetos de forma determinada?

A separação entre semântica e epistemologia consiste, segundo en­tendo, simplesmente na diferença que há entre conhecer um objeto e determinar o sentido de um termo (ou o que se dá a entender com wn ter­mo). Se esses procedimentos são distinguíveis, não significa que sejam independentes. O que se dá a entender com um nome próprio, define­se por sua referência a wn determinado objeto. Esclarecer o que esse nome significa implica, então, em determinar sua referência, isto é, em identificar o objeto ao qual se refere.

Se o uso do nome se toma aos poucos independente de uma identifi­cação precisa do objeto, isso não se dá graças a uma relação metafísica direta entre um nome próprio e seu referente, mas às convenções que regem ordinariamente o uso dos nomes próprios e que tornam possível , muna comunidade lingüística, a estabilização das ligações referenciais entre termos e objetos.

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Notas

1 Todas as traduções no presente artigo são de minha autoria. 2 Somente numa língua para a qual se pudesse elencar num dicionário todos os seus nomes com seus respectivos referentes, a averiguação da equivalên­cia entre nomes seria uma questão meramente lingüística. Para uma tal língua poder-se-ia, sem nenhuma averiguação dos objetos eles mesmos, decidir sobre o valor de verdade dos enunciados de identidade contendo nomes. Cf. a pro­pósito a discussão de Kripke e R. B. Marcus em "Modalities and intensional

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languages." Op. Cit., p. 115. 3 Quero dizer com isso que, considerando o princípio de identidade e a no­ção de designador rígido, tais sentenças são verdadeiras por definição. Elas não apenas independem de que haja condidatos que a ratifiquem, como, e isto é o que defendo, não tratam de modo algum de objetos determinados. Caso se queira vinculá-las de modo espedfico ao mundo objetivo, então a atribui­ção de um valor de verdade para essas sentenças dependerá da verificação de sentenças de identidade onde nomes não ocorram como dcsignadores rígidos. 4 Note-se que não falo do objeto, enquanto o objeto ao qual se deu o nome ' Hesperus'. Ser Hesperus e ser chamado Hesperus envolve uma diferença no uso do signo 'Hesperus'. No primeiro caso, o signo é usado como nome pró­prio, no sentido estrito, e, no segundo, como parte de uma descrição. O pri­meiro uso é, evidentemente, o único que interessa para uma teoria dos nomes próprios. Neste sentido, nomes próprios não fornecem, por si mesmos, nenhu­ma resposta à pergunta pela natureza de seu referente. Se isto vale para nomes próprios em geral e se considerarmos que designadores rígidos são nomes pró­prios num sentido muito estrito, aos quais não se vincularia nenhuma descrição c tampouco a descrição 'ter tal ou tal nome', então, dos designadores rígidos eles mesmos não se pode esperar qualquer indicação para a determinação da natureza de seus referentes. Cf., a respeito, a argumentação que se segue. 5 A doutrina remonta a Aristóteles e é o que expressa o princípio da identidade dos indiscemíveis. 6 A propósito ver aforismos 5.5303 c seg. no Tractatus logico-philosophicus nos quais Wittgenstein dá a sua interpretação da relação de identidade. 1 A mesma tese é defendida, embora com motivações diferentes, por Wiggins num artigo sobre sentenças de identidade. Cito:

Predicação pressupõe identi ficação. Identificação pressupõe a possibi­lidade de sentenças de identidade. Por outro lado, identificação e refe­rência pressupõem identificação sob algumas descrições, o que pressu­põe predicação. Se identidade pressupõe predicação e predicação pres­supõe identidade, então ambas devem ser primitivas. (Wiggins 1968, ' ldentity-statements', p. 69.)

Confrontar também a este respeito o minucioso trabalho de Tugendhat: Vor­/esungen zur Einführung in die sprach-analitische Philosophie (1976). A tese conclusiva do autor, se bem a entendo, é de que a teoria da verdade sobre sentenças constatativas termina por revelar a interdependência, na enunciação, entre termos singulares e predicação. Isso se deve entender no sentido de que as regras de verificação do objeto, pelo qual o termo singular está, pressupõem a predicação, ao passo que a predicação só se pode entender como a atribuição

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de um predicado a algo, quer dizer, um certo objeto determinado, de sorte que as condições de emprego que valem para termos singulares e predicados são mutuamente recorrentes. Cf. especialmente Cap. 26 e seg.

[email protected]

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CONSEQÜ:ítNCIAS LÓGICAS, ALTERNATIVAS RELEVANTES E O PRINCÍPIO DO FECHAMENTO

EPISTÊMICO

Flávio Williges Unisc

No texto que segue farei, em primeiro lugar, uma análise da estratégia de Dretske contra um certo grupo de argumentos céticos, a qual consis­

te, basicamente, em rejeitar o princípio do fechamento epistêmico. Em segundo lugar, pretende-se, com base numa critica da noção de proposi­

ção empregada por Dretske, indicar uma forma alternativa de tratamento desse problema.

1. A Ilegitimidade das Condições Exigidas pelo Cético

Em nossa vida cotidiana é comum fazermos afirmações como: "isso é um tomate," "eu sei que isto é urna árvore," "isso é uma zebra" etc. E quando um filósofo nos pergunta: "como é que você sabe que isso é uma zebra, um tomate etc.?" temos a impressão de que essa pergunta é um

pouco despropositada, pois o conhecimento dessas "coisas" parece-nos deveras óbvio, evidente. E seria realmente assim, não fosse a insistência de alguns filósofos em "lançar dúvidas" sobre a possibilidade de conhe­cermos a verdade de afirmações cotidianas dessa natureza. Mas, quais as razões que um filósofo apresenta para mostrar que não dispomos de evidências para determinar se " isso é um tomate" é verdadeiro? A razão para isto é, antes de tudo, bastante simples: mostrando que as evidências que dispomos para afirmar que sabemos que p não são suficientes. Os

filósofos que fomllllam argumentos para mostrar que muitas de nossas

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 83-93.

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84 Flávio Williges

afinnações ordinárias podem não ser verdadeiras são convencionalmen­te chamados de "céticos." O cético é, portanto, aquela espécie de filóso­fo que afirma que as condições freqüentemente empregadas para saber que p (onde p é uma afirmação ordinária qualquer como, por exemplo, aquelas citadas acima) não são suficientes. Ele afirma que as condi­ções que geralmente seguimos não bastam para assegurar que, quando dizemos sinceramente "isso é um tomate," estejamos fa lando algo ver­dadeiro. Mas, como poderíamos mostTar que o cético está enganado quando procura fazer objeções ao nosso conhecimento ordinário? Co­mo podemos mostrar que sabemos o que são tomates, zebras, árvores?

Uma forma de fazer frente ao desafio representado pelo ceticismo poderia ser a seguinte: argumentar que as condições exigidas pelo cé­tico para que possamos afirmar que sabemos algo não são condições legítimas e que, por isso, não necessitam ser preenchidas. Propostas de refutação do ceticismo que seguem essa estratégia, apresentam co­mo característica fundamental o abandono da tentativa de mostrar que podemos satisfazer as condições exigidas pelo cético, procurando pavi­mentar um segundo caminho mais promissor, o qual consiste justamente em rejeitar a legitimidade das condições requeridas. A noção de condi­ção ilegítima está relacionada àquilo que é exigido como justificativa para uma afinnação. Afirmar de uma determinada condição que ela é ilegítima consiste em dizer que não é legítimo exigir que se tenha veri­ficado se esta condição está satisfeita quando se pede justificativas para uma afirmação qualquer. Esse ponto pode ser compreendido através do argumento abaixo, estruturado em 6 etapas:

1. Para que x seja f (p. ex., " isso é uma zebra"), x deve satisfazer as condições para ser f.

2. a, b, c são condições para x ser f. 3. Se x satisfaz as condições a, b, e c, então x é necessariamente um

f. 4. d não é uma condição legítima para que x seja f. 5. sei quex satisfaz as condições a, b, e c, mas ignoro sex satisfaz a

condição d.

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Conseqüências Lógicas, Alternativas Relevantes ... 85

6. Logo, sei que x é f, x não pode satisfazer as condições a, b, e c, e

não ser um f. 1

A questão fundamental em argumentos que procuram rejeitar a legi­timidade das condições requeridas pelo cético consiste em fundamentar a alínea 4, isto é, dar razões que sejam capazes de mostrar que uma determinada condição (nesse caso, a condição d) não é uma condição legítima. A razão da importância é esta: se fosse possível mostrar que uma determinada condição não necessita ser preenchida, mesmo que não soubéssemos se a condição ou possibilidade aludida ocorre ou não, aquilo que afirmamos permaneceria sendo verdadeiro. Afinal de contas, ignorar se X satisfaz a condição d, quando d não é uma condição que deve ser verificada para o conhecimento de X, não representa nenhum prejuízo à verdade daquilo que é afirmado através de X.

Os dois lados dessa djsputa discutem se a, b, e c são condições ne­cessárias e suficientes para que algo seja f. Argumenta-se, de um lado, que as condições especificadas em a, b, e c são necessárias e suficientes, enquanto que, do outro lado, argumenta-se que a, b e c são condições necessárias, porém não suficientes para o conhecimento de f. Uma con­dição d deveria então ser preenchida e, se acaso não ficar determinado se a condição d foi satisfeita, então aquilo que afirmamos a respeito de f pode ser falso. A questão que nos interessa aqui é especificar como é possível mostrar que a condição d é uma condição ilegítima de conhe­cimento.

2. Operadores Epistêmicos, Alternativas Relevantes e Conseqüências Lógicas

Uma forma de mostrar que um grande número das condições exigidas pelo cético são ilegítimas no sentido acima especificado foi introduzida por Fred Dretske num artigo intitulado "Epistemic Operators." Nesse artigo, Dretske procura mostrar que um certo grupo de operadores sen­tenciais chamados de operadores epistêmicos (saber que p, ter razões para acreditar que p) são semi-penetrantes, o que equivale a dizer, en­tre outras coisas, que esses operadores não penetram em todas as con-

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seqüências lógicas conhecidas de uma proposição. Conforme Dretske, a maioria dos argumentos céticos assumem que os operadores epistêrni­cos são inteiramente penetrantes. Ora, se os argumentos céticos admi­tem que os operadores epistêmicos são inteiramente penetrantes, uma maneira fácil de fàzer frente ao ceticismo seria mostrar que o grau de penetrabilidade dos operadores epistêmicos é menor do que supõe o cé­tico. Mas, o que significa dizer, de um operador epistêmico, que ele é inteiramente penetrante? Um operador epistêmico é inteiramente pe­netrante quando, seja qual for o "valor (worth) epistêrnico de P, pelo menos o mesmo valor deve ser transmitido para as conseqüências de P" (Dretske 1970, p. I O 11 ). Em outras palavras, isto significa que, quando P implica Q, se sei que P, então devo saber que Q. Aquilo que é impli­cado por P tem, por assim dizer, o mesmo valor para o conhecimento, o mesmo peso epistêrnico que P. Em lógica epistêmica, essa idéia aparece esboçada no seguinte princípio "Se S sabe que P e sabe que P implica Q, então S sabe que Q" (que, doravante, chamarei de princípio do fecha­mento epistêrnico ). À primeira vista, esse princípio parece plausível, pois é evidente, por exemplo, que se não sabemos que "isso não é uma mula habilmente disfarçada para parecer zebra", quando é sabido que "ser uma zebra" implica em "não ser uma mula habilmente disfarçada" então, não sabemos que "isso é uma zebra" é verdadeiro. Todavia, pou­cos (e dentre esses poucos está Dretske) estariam inclinados a conceder que para saber que " isso é uma zebra" é verdadeiro, devemos determinar que "isso é uma mula disfarçada de zebra" é falso.

Assim, todo o problema consiste em oferecer razões para a rejeição deste princípio. Como foi dito, a estratégia de Dretske consiste em mos­trar que os operadores epistêmicos não são inteiramente penetrantes. Para compreender a explicação de Dretske acerca do grau de penetra­ção dos operadores epistêrnicos, devemos examinar com maior atenção a noção de conseqüência lógica por ele empregada.

A noção de conseqüência lógica de Dretske pode ser explicada do seguinte modo: para cada proposição P há um conjunto de proposições CL que são as conseqüências lógicas de P. O conjunto CL de P pode ser desmembrado em diferentes classes de conseqüências lógicas. Dretske

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distingue duas classes de conseqüências lógicas associadas às proposi­ções:

1. a classe das conseqüências que são pressuposições de uma pro­

posição,

2. a classe das conseqüências que são conseqüências contrastantes.

Segundo Dretske, muitas objeções céticas ao nosso conhecimento ordi­nário repousam na exploração das conseqüências contrastantes relacio­nadas a urna proposição. Assim, o ponto que nos interessa é examinar o modo como Dretske irá mostrar que os operadores epistêmicos não penetram na classe das conseqüências contrastantes.

O primeiro passo nesta direção pode ser dado verificando de que ma­neira as conseqüências contrastantes são exploradas em argumentos cé­ticos. A estrutura dos argumentos céticos que exploram conseqüências contrastantes pode ser representada através da passagem abaixo:

Suponha que x é A. Considere algum predicado, B, que é incompatível com A, tal que nada pode ser A c B. Segue-se do fato que X é A, que X não é B. Além disso, se conjugamos B com algum outro predicado, Q, segue-se do fato que x é A que x não é (B e Q). (Dretske 1970, p. I O 15)

A conjunção de (B e Q) é denominada por Dretske de conseqüência contrastante. A estratégia cética, nesse caso, consiste em sustentar que:

( L) para cada uma de nossas proposições empíricas (P) há uma con­traparte (Q) que, se for verdadeira, é prova de que estamos enga­nados quando afirmamos sinceramente que sabemos que (P).

Assim, se (1) é verdadeiro, então é possível que não conheçamos nada. Em particular, se é verdade que para afmnar que "isso é uma zebra" devo saber que a conseqüência conhecida "não ser uma mula habilmen­te disfarçada" é o caso, e se não disponho de evidências para afastar a possibilidade expressa nessa afirmação, então é possível que não conhe­çamos nada sobre essa espécie de animais.

Podemos ilustrar esse ponto, examinando mais atentamente o exem­plo das zebras criado por Dretske.

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Você leva seu filho ao zoológico, vê várias zebras, e quando questiona­do por seu filho, você diz a ele que elas são zebras. Você sabe que elas são zebras? Bem, muitos de nós poderiam ter pouca hes itação em dizer que sabe que são zebras. Nós sabemos como as zebras se parecem, e, ao lado disso, estamos num zoológico e os animais estão identificados por escrito como "zebras." Todavia, ser uma zebra implica em não ser uma mula e, em particular, em não ser uma mula habilmente disfarçada pelos responsáveis pelo zoológico para parecer zebra. Você sabe que es­ses animais não são mulas habilmente disfarçadas pelas autoridades do Zoológico para parecerem zebras? Se você está tentado a dizer "sim" para esta questão, pense um pouco sobre as razões que você tem, as evidências que podem ser produzidas em favor dessa afinnação. A evi­dência que você teve para pensar que elas eram zebras foi efetivamente neutralizada, pois não estava sendo contada a possibilidade de serem mulas habilmente disfarçadas para parecerem zebras. Você verificou isso com as autoridades responsáveis pelo zoológico? Você examinou os animais próximo o bastante para detectar a fraude? Naturalmente é possível fazer isso, mas em muitos casos não fazemos nada dessa es­pécie. Existem uniformidades gerais em que confiamos, regularidades que expressamos por observações como: "isto é muito improvável" ou "por que os responsáveis pelo zoológico fariam isso?" É claro que a hipótese (se é que podemos chamar assim) não é muito plausível, dado nosso conhecimento de pessoas e zoológicos. Mas, a questão aqui não é se esta alternativa é plausível, nem se é mais plausível do que os animais identificados por escrito serem zebras reais, mas se sabemos que essa hipótese alternativa é falsa. Eu penso que não. Nisso estou de acordo com o cético. Mas, eu abandono o cético quando ele conclui que não sabemos que os animais são zebras. Eu o abandono, por que eu rejeito o princípio que ele emprega para alcançar esta conclusão - o princípio que se você não sabe que Q é verdadeiro, quando é sabido que P implica Q, então você não sabe que Pé verdadeiro. (Dretskc 1970, p. I O 16)

Se aceitamos que os operadores epistêmicos são inteiramente pene­trantes, as evidências para saber que P (isto é uma zebra) são também evidências para saber que -Q (isto não é uma mula habilmente disfar­çada para parecer zebra) e assim, se tenho evidências suficientes para afinnar que sei que P, então tenho evidências suficientes para saber que -Q. A passagem deixa claro que Dretske recusa-se a aceitar que os

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operadores epistêmicos penetrem na classe das conseqüências contras­tantes de uma proposição. Dretske recusa a idéia de que as evidências que temos para afirmar que P, quando são evidências suficientes são, do mesmo modo, evidências para saber que -Q. Por conseguinte, ele deverá fundamentar a idéia bastante contraintuitiva de que não se segue do fato que eu conheço que aqueles animais são zebras, que eu conheço que eles não são mulas habilmente disfarçadas para parecerem zebras.

Mas, como ele pode mostrar isso? Para fundamentar esse ponto, Dretske faz uso de uma analogia. Ele

toma três operadores que possuem características similares aos operado­res epistêmicos e então, pelo fato de ambos partilharem a mesma lógica, as conclusões acerca de um grupo são transferidas para o outro (o grupo dos operadores epistêmicos). A lição extraída por Dretske desta análise é que, quando colocamos um fato (uma proposição) num contexto expli­cativo, se tentamos explicar esse fato, ele sempre aparecerá numa rede de fatos relacionados, uma rede de alternativas possíveis que definem o que está sendo explicado (Dretske 1970 p. 1021). Ou seja, quando ex­plicamos um fato, nem tudo aquilo que é possível deve, por assim dizer, merecer nossa atenção. Quando estamos explicando um fato, devemos examinar o fato e aquilo que Dretske chama de "alternativas relevan­tes." As alternativas relevantes são aquelas que poderiam ocorrer se um determinado estado de coisas não estivesse materializado. Dretske pa­rece supor que uma proposição Q pertence ao conjunto das alternativas relevantes de P

1) se Q for uma conseqüência lógica de P conhecida e

2) se Q for definida em função de possibilidades competitivas ou contrastantes.

As possibilidades competitivas ajudam a definir o que está sendo ex­plicado ou conhecido. Seja o caso da proposição: "Oswald matou Ken­nedy." Essa frase pode significar, por exemplo, que S conhece a iden­tidade do assassino de Otto. Mudando o contraste, entretanto, ela pode representar que Otto foi morto, ao invés de ser apenas machucado, etc.

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90 Flávio Williges

Assim, o que conta como uma razão para o conhecimento de P, de­pende do conjunto de contrastes ou alternativas relevantes que estrutu­ram uma proposição. Se uma possibilidade D não está dentro da rede de alternativas relevantes, então mesmo que não-D siga-se necessariamente de P, nós não explicamos não-D. É justamente por isso que os opera­dores epistêmicos são considerados semj-penetrantes, pois ele penetram apenas naquele conjunto de conseqüências contrastantes que formam parte da rede de alternativas relevantes que estruturam o contexto em que uma afirmação é enunciada.

3. Verdade e Sentido Proposicional

O problema introduzido por Dretske parece conduzir a uma discussão em tomo do que constitui o sentido de uma proposição, pois somente se a identidade proposicional de p está determinada poderemos, com segu­rança, decidir se uma determinada condição (d) deve ou não ser preen­chida. A argumentação de Dretske parece levar finalmente a conclusão que o sentido proposicional pode ser determinado abstratamente. Ele parece acreditar que o que dizemos com um enunciado é independente do contexto em que o enunciamos e, por conseguinte, que as conseqüên­cias lógicas de um tal enunciado também são independentes do contex­to. A principal falha no conceito de proposição de Dretske é conceber, como diz Wittgenstein, o "sentido como uma atmosfera que acompanha e é carregada pela palavra em toda espécie de aplicação" (Wittgenstein 1995, p. 117). Dretske concebe que o sentido proposicional pode ser detenninado independentemente dos diferentes contextos particulares de emprego de uma proposição, os diferentesjogos de linguagem. Ele parece acreditar que (a) "Isto não é uma mula habi lmente disfarçada" é uma conseqüência lógica de (b) "isto é uma zebra", independentemente do fato de (b) ser enunciado por uma criança que visita um zoológico pela primeira vez ou por um zoólogo experiente. Se uma criança afir­ma no Zoológico: "veja, ali está uma zebra" ela está querendo dizer: "Veja, al i está algo que não é uma mula habilmente disfarçada?" Ob­viamente não. Se houvesse um escândalo envolvendo zoológicos que

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exibiam mulas habilmente disfarçadas de zebras, então seria possível

usar a sentença "Ali está uma zebra" para dizer: "ali está algo que não é uma mula habilmente disfarçada," após o exame cuidadoso do animal. Senão, considere a seguinte passagem do Da Certeza:

'Eu sei que aquilo é uma árvore' - isto pode significar muitas espécies de coisas: olho para uma planta que considero ser uma bétula jovem e que outra pessoa julga ser uma groselheira preta. Essa pessoa diz 'é wn arbusto'; eu digo que é uma árvore. Vemos qualquer coisa no nevoeiro que um de nós pensa ser um homem e o outro diz 'eu sei que aquilo é uma árvore'. Alguém pretende testar os meus olhos, etc, etc. De todas as vezes, 'aquilo' que declaro ser uma árvore é diferente. (Wittgenstein 1969, p. 101)

Agora considere a seguinte situação: Eu e um amigo estamos num

zoológico e afirmo, estando na frente de um cercado: "isso é uma ze­bra." Qual o sentido dessa proposição e, por extensão, quais são as

conseqüências lógicas dessa proposição? Suponhamos que alguns ins­tantes antes de afinnar essa sentença, tivéssemos discordado sobre os aspectos de uma zebra. Digamos que meu amigo tenha dito que uma zebra é um animal totalmente branco, semelhante a um cavalo, apenas um pouco menor. Quando eu disse então "isso é uma zebra, o que eu es­tava querendo dizer é que uma zebra é muito diferente daquilo que meu amigo descreveu (é listada em branco e preto). Tanto nesse caso quanto no exemplo de elaborado por Wittgentein pode ser visto que o sentido

da uma proposição pode mudar conforme o emprego que dela for feito em certas circunstâncias. Ou seja, "é um engano pensar que as pala­vras possuem um sentido à parte de sua capacidade para ter um sentido quando empregadas em vários contextos de uso" (Conant 1998, p. 241). Em outras palavras, o sentido de uma proposição depende daquilo que é dito com a enunciação de uma determinada sentença. Isso significa que o sentido não é algo que a sentença carrega consigo independentemen­te dos seus usuários e do contexto de enunciação. Por isso a pergunta "Quais são as conseqüências lógicas de 'isso é uma zebra'?" não faz

sentido, se o que se deseja como resposta é o sentido que a sentença tem independentemente de quem a profere, para quem, quando, onde, com

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que entonação etc. Da mesma forma, a determinação das condições que devem ser preenchidas para que "Isso é uma zebra" seja verdadeiro não definem-se independentemente do sentido que a sentença "Isso é uma Zebra" possui, nos diferentes contextos que a empregamos. À pergunta: devo saber que "isso não é uma mula habilmente disfarçada para pare­cer zebra" é verdadeiro, para saber que "isso é uma zebra," deveríamos responder: "depende do que você quer dizer com ' isso é uma zebra' ".

Referências Bibliográficas

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Wittgenstein, Ludwig. 1969. Da Certeza. Tradução de Maria Elisa Costa. Lisboa: Edições 70.

- . 1985. Investigações Filosóficas. Tradução de Mário Bruni. São Paulo: Abril Cultural.

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Notas

1 Em contrapartida, do lado cético, esse argumento poderia ser representado através dos seguintes passos:

I. Para que x seja f, x deve satisfazer as condições para ser f. 2. a, b, c, são condições para x ser f. 3. Se x satisfaz as condições a, b, e c, então x é necessariamente um f. 4. Para que x seja f , x deve satisfazer também a condição d. S. Sei que x satisfaz as condições a, b e c, mas ignoro se x satisfaz a con­

dição d. 6. Logo, não sei se x é ou não é um f, ou seja, x pode satisfazer as condi­

ções a, b e c e não ser um f.

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WITTGENSTEIN E O PROJETO DE UMA LINGUAGEM PRIMÁRIA

João Carlos Salles Pires da Silva Universidade Federal da Bahia

Meses após a redação de "Some Remarks on Logical Form," Wittgens­tein retoma ao tema das cores e se prepara, com algum eventual recuo, para repelir de vez a tentação de uma linguagem primária. Por volta de agosto de 1929, ainda procura por uma linguagem fenomenológica, resquício do desventurado artigo. Uma linguagem ao modo da fisica não descreveria o fenômeno - volta a argumentar - , uma vez que, se a for­ma do fenômeno é, por exemplo, o tempo, ele não tem qualquer lugar no tempo, é zeitlos, enquanto a linguagem seria sempre zeitlich, algo físico, da ordem do mecanismo. Entretanto, essa objeção pode ser facilmente generalizada, e toda linguagem, em confronto com o fenômeno, perten­ceria a um sistema segundo. Caso a descrevamos, qualquer que ela seja, descreveremos algo fisico. "Mas, como pode uma linguagem ao modo da fisica descrever o fenômeno?" 1 A ameaça de dissolução começa a recair também sobre a linguagem fenomenológica e sua possibilidade: a linguagem fenomenológica e a ordinária descreveriam talvez o mes­mo, não mais se distinguindo em essência uma linguagem "plástica" de uma "hipotética." No limite, a descrição mais imediata não mais seria uma descrição, tornando-se uma voz inarticulada. Em outras palavras, o limite da linguagem conteria a linguagem limite; e qualquer coisa mais imediata deixaria simplesmente de ser linguagem.2

A linguagem fenomenológica seduz e desencoraja o filósofo, como um pântano enfeitiçado "onde todo o tangível desaparece.''3 Porém, se a almejada descrição dos fenômenos atuais faz recuar a reflexão ao ter­reno da possibilidade de qualquer conhecimento e, por isso, à "solução

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 95-108.

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fmal do problema filosófico,"4 a procura sempre volta a justificar-se: "É claro, em contr'dpartida, que precisamos de um modo de expressão no qual possamos apresentar, por exemplo, os fenômenos do campo visu­al isolados como tais."5 Além disso, outras distinções solicitariam tal linguagem impossível e mesmo a apresentariam como vantajosa, por­que menos propícia ao engano. Assim, localizar-se no campo visual, identificar-lhe uma estrutura, seria tarefa de uma linguagem primária. A linguagem ordinária, obliquamente fenomenológica, não conseguiria separar-se da multiplicidade dos sentidos a que se vincula, sendo seu espaço a conjunção dos espaços referentes aos vários sentidos, porque linguagem para falar de objetos. No caso, a própria expressão 'campo visual' ainda seria enganadora, indicando a dependência de um órgão inessencial, como é inessencial para um livro pertencer a alguém. 6 De qualquer modo, dada a distinção entre campo visual e espaço da física, seria preciso dispor de uma linguagem que apresentasse objetivamen­te o campo visual, cuja descrição, não tendo ele um dono, não deve sugerir-nos um sujeito. Até mesmo o ter olhos deve apenas fazer parte de um modo de apresentação, e propriedades como as da perspectiva (que nos ensinam ser maior a árvore que todavia vemos contida em uma minúscula janela) tomam-se simples regras da visão e não propriedades da visão de fu lano ou beltrano. 7 Em outras palavras, o campo visual, assim autônomo,8 é condição da descrição do espaço físico, no qual o olho de um alguém tem claro privilégio, embora não como algo a ser descrito, pois ponto excelso.

A sedução é forte. Dada a diferença entre o olhar instalado e com­prometido a que se desvela o espaço fís ico e as regras da visão que o condicionam, parece ainda haver lugar para uma linguagem primá­ria como correspondente a esse mecanismo primário (e, não obstante, conceitual), a este solo de experiência (resistente contudo a qualquer contestação). Não seria preciso aqui qualquer experimento, sendo tal campo objetivo e autônomo, embora expresso pela linguagem da fi sica apenas de modo "instintivo" e por demais complicado. Falamos então absurdos por empregarmos nossa linguagem nessa empreitada impos­sível, pois com ela (a analogia é de Wittgenstein) não nos situamos no

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Wittgenstein e o Projeto de uma Linguagem Primária 97

campo da imagem projetada, mas no campo do filme.9 Toda emprei­

tada filosófica para agarrar em sua pureza essa realidade enfrenta pois dificuldades imensas e parece fadada ao fracasso: .. E, entretanto, pode

haver uma linguagem fenomenológica."10 Tratemos então de ver o que levou Wittgenstein a renunciar realmente a esse projeto, a cujo apelo vez por outra cedera.

A linguagem fenomenológica, a exata afiguração do campo visual, pode ser comparada a um plano euclidiano em que tivéssemos dado uma sacudidela, tomando nebulosos os limites de suas construções geomé­tricas refinadas. 11 Seria nebulosa, porém, abaixo do limiar de nossa per­cepção, de modo que o não notássemos e pudesse a geometria fisica ser a imagem de uma geometria fenomenológica. Entretanto, a representação imprecisa não é o correlato da imprecisão do visto, não sendo transpos­

ta a indefinição do fenômeno por uma precisa inexatidão do desenho. 12

Uma lembrança esmaecida não é transposta pelo simples esmaecimento dos matizes (por sinal, nitidos em sua palidez), nem um ver pouco claro coincide com um desenho borrado.13 O campo de variação do visto não se traduz, portanto, numa variação geométrica, como se enquadrada ca­da figura dentro de duas outras (seus limites) ou carregasse cada figura uma sombra, e figura e sombra encontrassem juntas sua expressão exata em uma terceira figura, com a qual partilhassem as mesmas proprieda­des lógicas, de sorte que, no campo visual, fossem indiscerníveis um círculo e um polígono de rnillados. 14

É verdade que a linguagem ordinária não parece afeita ao propósi­

to de colher o imediato no fluxo da percepção. Se, em "eu percebo x,"

'x ' deve estar no lugar de um Datum fenomenológico, essa aplicação ao campo do imediato lançaria uma luz enviesada sobre o objeto ... Eu per­cebo x" seria uma Redensart tomada ao modo <;le expressão do mundo dos objetos, do mundo da física, sendo falso empregá-la para significar

um Datum, caso em que 'eu' e 'percebo' não podem conservar o signi­ficado anterior. O modo de expressão na linguagem da fenomenologia e na linguagem da física jamais seria univoco, nunca teria nos dois casos o mesmo resultado. Afinal, enquanto os objetos podem ser confrontados com medidas, pois com eles ser e parecer podem se separar e, pensando

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ter visto Pedro, podemos constatar que em verdade vimos Paulo, apli­cada a linguagem ao imediatamente dado, à mancha ("oder wie man es nennen will"), o visto é critério de si mesmo, não tendo sentido dizer que não seja vermelho o vermelho que vemos. 15 Isto é, enquanto a per­cepção de um objeto, hipótese cristalizada em palavras, sempre pode ser corrigida, não teria sentido, no campo visual, falar em ilusões de ótica, pois aí não há hipóteses nem medidas: "Im Gesichtsraum gibt es keine Messung." 16

A palavra 'exatidão', relativa a comparações na linguagem ordiná­ria, perde seu sentido quando aplicada ao campo visual, nele não se tra­tando do que, por exemplo, está realmente desenhado num papel, mas do que simplesmente vemos. 17 Como ter então uma expressão exata num campo não-hipotético? "Precisamos de novos conceitos," afirma Wittgenstein, "mas tornamos a servir-nos dos conceitos da linguagem ordinária.'' 18 Neste caso, a palavra sob critica é 'exatidão'. Quando se trata de comparar objetos na linguagem ordinária, estão presentes tanto um certo grau de inexatidão como a possibilidade da completa exatidão; entretanto, no campo visual, a palavra perde seu sentido. 19 O concei­to exato da medida, se aplicado à experiência imediata, choca-se com sua característica indefinição. E essa nebulosidade típica não é uma que possa ser afastada por um conhecimento posterior e mais exato. Essa singularidade é essencial, é uma característica lógica.20 'Beilãufig',21

'ungefãhr' (aproximadamente) etc. são então necessários, caracterizam "a natureza de nossa experiência; não como em si inexata ou difusa, senão como inexata e difusa em relação a nossos meios de apresenta­ção."22 A persistência de um interesse fenomenológico nesse campo coloca então o desafio de colher relações internas em experiências que não podem ser descritas mais exatamente, assim como não podemos descrever o leve desvio entre a imagem de um círculo sobre um fundo azul e a de um outro semelhante que acaso conservamos na memória.

Os dados dos sentidos não apenas desafiam o projeto de uma lingua­gem primária. Este projeto toma-se absurdo porque ameaçada qualquer linguagem, embora, por isso mesmo, seja reabilitada a linguagem or­dinária e aceita a legitimidade de suas luzes. Seria preciso, reafirma

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Wittgenstein e o Projeto de uma Linguagem Primária 99

Wittgenstein, afastar as falsas teorias filosóficas sobre o espaço visu­

al, que nos impõem conceitos fora de sua situação natural. Muita vez,

portanto, a dificuldade de retomar o fluxo da experiência na linguagem

assenta-se em um mal-entendido, a saber, "que se quer aplicar à expe­riência imediata uma categoria aplicável tão-somente na linguagem do mundo fisico.'>23 Assim, que a lembrança seja secundária é algo que só tem sentido na linguagem ordinária. Na linguagem da física, decerto tem sentido dizer: "Eu só consigo lembrar-me vagamente dessa casa,"24

mas não posso dizer secundária a lembrança para a possibilidade da ex­

periência do passado, sendo esse o único caminho para ela e interna a relação.

Outras palavras ('scheinen', 'Irrtum'- 'parecer', 'erro ' ) perderiam seu sentido se aplicadas ao fenômeno por terem uma acentuação ligada à vontade, em nada essencial a ele.25 Tudo isso o leva a reafirrnar, em 21 de dezembro de 1929, pela terceira vez em um curto período: "Ao

contrário de como antes acreditei, não há urna linguagem primária por oposição à nossa linguagem usual, a 'secundária'."26 A geometria do espaço visual, antes cifrada em uma linguagem primária (que precisaria ser "absolut sachlich"),21 outra não é senão "a sintaxe das proposições que tratam de objetos no campo visual,"28 assim como a "geometria é a sintaxe das proposições sobre objetos espaciais."29 A analogia, aos pou­cos, vai providenciando seu nome. Wittgenstein aproxima-se de uma

geometria que é, como a euclidiana, um conjunto de "regras camufladas de urna sintaxe."30 Do mesmo modo, uma Farbengeometrie é a sintaxe (logo, a gramática) das proposições sobre objetos no espaço das cores. Tal sintaxe, tal gramática, dispõe sobre possibilidades, sendo gramatical um axioma da geometria euclidiana por decidir se pode ter sentido urna proposição sobre o espaço.31 E assim a análise gramatical pode perfazer tudo que se exigia de uma fenomenologia.

Os enigmas da percepção escancaram a diferença, exibem a vigência de regras diversas no terreno do campo visual, no qual ser e parecer não se distinguem.32 O ver divisível ao infinito, por exemplo, é próprio do

espaço euclidiano, mas falso do espaço visual; por conseguinte, aplicá­lo ao campo visual gera paradoxos e dificuldades clássicos, nos quais

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colidem espaços com gramáticas diferentes. Na geometria do campo visual, não há um polígono de mil lados, o círculo e a reta podem ter

um trecho em comum (o que, na geometria euclidiana, deveria supor um círculo infinito dado a um olhar divino); não há um ponto ou uma distância exata em que uma figura perde seu contorno, nem uma quan­tidade precisa para fazer com grãos de areia um monte. "O problema da "indeterminação" dos dados dos sentidos"33 mostra-se um enigma com uma infinidade de exemplos, para o qual uma geometria flexível, tole­rante, cujas descrições facultassem variações marginais, não nos ofere­ceria uma solução, já que os pontos limítrofes, as margens, tampouco

são essenciais ao conceito que descrevem, assim como 1 O grãos e 100 grãos não são os extremos necessários do conceito ' monte de areia' .34

Na verdade, não há sequer tais limites, ou uma reta e um círculo dados à percepção jamais teriam um trecho em comum.

Um claro exemplo de confusão entre linguagem da física e expres­são fenomenológica do campo visual, acusa Wittgenstein, é este célebre desenho do campo visual a partir do olho esquerdo, no qual Ernst Mach pretendeu reproduzir a nebulosidade marginal do campo por um dese­nho "nebuloso."35 O desenho dota de limites (mesmo imprecisos) o que precisamente não tem limites, tendo sido ademais possível pela sobre­

posição das imagens de um olho que se deslocou, fixando o nítido ou o nebuloso de cada ponto da revolução de sua órbita. Não se pode, contu­do, fazer uma imagem visível da imagem visual. O campo visual não se

duplica, sob pena de perder sua autonomia~ de passar a ter um dono, com ou sem bigode. A indistinção dos limites do campo visual e a indistinção do desenho não se equiparam, pois 'indistinção' significa diversamente nesses contextos. Tentar tal reprodução é oferecer uma nítida imagem do indistinto, uma imagem exata do confuso. É pôr limites (borrados, é verdade) a isso que não tem limites nem se deixa referir sem indistinção.

A nebulosidade do desenho elimina a nebulosidade do campo que, en­tretanto, deseja representar; e a ausência de limites, essencial ao campo,

anula-se com ele. 36 Em outros termos, a geometria do campo visual não pode derivar, digamos, da geometria euclidiana pela mera introdução de

um fator de indeterminação. Nada se a lcança substituindo uma geome-

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Wittgenstein e o Projeto de uma Linguagem Primária IOI

tria refinada por uma grosseira; afinal, "uma geometria rudimentar seria geometria tão e quanto uma refinada" ou não seria geometria alguma. 37

Elas teriam a mesma multiplicidade, enquanto, ao contrário, a multipli­cidade do círculo que vemos distingue-se da do círculo que medimos, assim como a verificação da série de traços que podemos distinguir pela visão integra um sistema com multiplicidade diversa daquele com que verificamos os traços que podemos distinguir contando.38

ESBO ÇO DE MACH39

A proposta de uma geometria tosca apenas tornaria essenciais os aci­dentes da representação, como o lápis com que traçamos as linhas. O essencial ao campo visual, entretanto, o modo como se nos aparecem, e.g. , um circulo e uma tangente, ele não coincide com o recurso usado ao

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102 João Carlos Salles Pires da Silva

desenhar, que assim não dá conta do ungenau característico do campo visual: "Este fenômeno do campo visual é o essencial, e não as proprie­

dades dos instrumentos de desenho.'>4° Aprendemos a palavra 'unge­nau' e tem sentido aplicá-la na geometria euclidiana. Porém: "É agora a inexatidão da medida o mesmo conceito que a inexatidão da imagem visual? Eu acredito: certamente, não.'>4 1 E o projeto de uma linguagem fenomenológica falha, então, de modo semelhante, por pretender aplicar a noção de exatidão em campo que não admite hipóteses, em campo em que tal palavra não conserva seu sentido. Por conseguinte, a indetermi­nação do fenômeno não pode ser colhida por uma geometria imperfei­ta, pois uma descrição nebulosa, indeterminada, descreve alguma coisa apenas em certos contextos (como em uma fotografia galtoniana). Lo­go, a grande dificuldade de uma linguagem fenomenológica não reside tão-somente em não ser possível uma representação exata do visto, mas sobretudo em ser impossível a exata demarcação da inexatidão, assim como não falamos e ouvimos respeitando alguma medida exata e estrei­ta da variação aceitável para a pronúncia de um fonema.42 A imposição de limites coloca falsos dilemas, a exemplo de: ou se tem a memória exata ou não se tem memória alguma; ou se tem a imagem da idéia abs­trata de homem ou não se tem qualquer critério para o ser homem, etc. - quando é preciso aceitar que, em certo sentido, um pântano não tem limites e a linha de demarcação até de uma figura eucl idiana não pode ser efetivamente traçada.

Nesse período extremamente fecundo de reflexão, a procura por uma linguagem fenomenológica é descartada em favor de uma investigação

gramatical, que cumpriria entretanto os compromissos anteriores: pro­cura não-hipotética da significação, das condições da experiência, etc. Mas, se a linguagem só pode descrever o que não pertence à essência do mundo, isto é, se diz apenas o que pode negar significativamente,

como tocar com a linguagem o solo da experiência, as suas condições de possibilidade? Antes da resposta, a pergunta já estava equivocada, não se tratando mais de tocar tal solo, mas de reconhecê-lo expresso no

emprego da linguagem. E o que é então o emprego? Segundo a posição

algo verificacionista desse momento,43 o emprego é o que faz de traços

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Wittgenstein e o Projeto de uma Linguagem Primária 103

no papel wna linguagem, assim como o emprego da trena a toma em parâmetro, em critério, em metro. Emprego é pois o aplicar, o acostar, o dispor a linguagem sobre a realidade, isto é, a verificação das propo­sições. Não no que diz, portanto, mas em sua essência, a linguagem é wna imagem da essência do mundo, não podendo esta ser agarrada nas proposições da linguagem, senão nas regras que lhes conferem sentido. E a tarefa de discernir tais regras só pode ser filosófica. Com efeito, a filosofia quer expressar o que não se deixa dizer e, se pode dizer algo, deveria descrever a essência do mundo excluindo combinações de sinais sem sentido, wna vez que a regra também dispõe quais os desvios into­leráveis. A filosofia torna-se assim a "Verwalterin der Grammatik.'144

A mancha que vemos, essa devemos poder ver, não vemos algo a ela semelhante.45 Tudo isso pode independer do visto, mas não da gramá­tica de wna linguagem que pretenda expressar o campo visual. Nele, se não podemos ver um círculo perfeito, tampouco poderíamos ver wn aproximado, assim como, sendo possível dizer que nunca vemos wna linha precisa, uma precisa seria pensável. A dificuldade enfrentada não é contingente, é determinada como intransponível em uma gramática. A expressão deixaria de estar conceitualmente em ordem quando o exato não pode significar o exato, mas também este "não pode" é determina­do por wna gramática e sempre a pressupõe. 46 Com isso, o abandono do ideal de exatidão, porque inaplicável significativamente neste campo, redundará na rejeição de uma linguagem fenomenológica. Wittgenstein constata enfim que, paradoxalmente, sua procura não poderia expres­sar o que não é hipotético, salvo hipoteticamente, quando seu lugar é o da possibilidade, o do sentido, e não o da verdade. Se o campo visu­al é tratado de modo absoluto, como deve ser, nosso modo de expressão mostra-se unzulii.nglich. Pode, porém, tal insuficiência ser corrigida pela simples perspectiva gramatical? De algum modo, sim, embora tal des­locamento ainda deva radicalizar-se. Em todo caso, em 22 de outubro de 1929, Wittgenstein já enuncia: "A suposição de que wna linguagem fenomenológica seria possível e mesmo de que ela unicamente viria a dizer isso que, na filosofia, precisamos expressar, tal suposição é -creio eu - absurda.'>47

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Em 25 de novembro de 1929, reafirma não mais visar a urna lin­guagem fenomenológica ou "linguagem primária."48 Mais do que isso: não a considera sequer possível, sendo todavia possível e necessário se­parar o essencial do inessencial em nossa linguagem.49 Para tanto, afir­ma, apenas precisamos compreender melhor nossa linguagem ordinária. Afinal de contas, a linguagem ordinária ela própria (por complicada que seja a forma) refere-se já à experiência imediata. 50 Assim, ao abandonar o projeto de uma linguagem fenomenológica, está desistindo apenas de uma reprodução estrita (de resto, condenada ao fracasso) do exato cam­po visual. Witttgenstein deixa de pretender descrever a tela para contar o filme, ou melhor, a gramática do filme, uma vez que será sinal o que na gramática se chama de sinal. Também a linguagem ordinária só pode lançar uma luz oblíqua sobre os dados dos sentidos, mas, caso procu­remos as condições gramaticais de enunciação da experiência sensível, podemos tocar com ela esse terreno condicionante do mundo da física.

O que se almejava com a construção de uma linguagem fenomeno­lógica perfaz-se agora com a descrição disso que essencialmente parti­lham as linguagens que alcançam seu objetivo - com o que represen­tam de modo imediato a experiência imediata.51 Desse modo, com as considerações anteriores sobre a vagueza, um passo notável foi dado por Wittgenstein, reafirmando a seu modo sua antiga intuição de que a lin­guagem ordinária, em sendo urna linguagem, só pode estar em ordem, mesmo com relação aos fugidios dados dos sentidos. Se não se pode representar o inexato pelo inexato, a linguagem ordinária serve bem ao propósito de representar determinadamente o que envolve vagueza, sen­do sua luz oblíqua a luz possível e suficiente, contanto que, resistindo à linguagem com seus meios, não nos concentremos na verdade da per­cepção mas na sua possibilidade gramatical.

Referências

Ebner, Jakob. 1980. Duden "Wie sagt man in Osterreich? ": Worterbuch der osterreichischen Besonderheiten. Mannheim: Duden Verlag.

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Wittgenstein e o Projeto de uma Linguagem Primária 105

Mach, Emst. 1985. "Antimetaphysische Vorbemerkungen." In Mach, Emst. Die Analyse der Empjindungen und das Verhéiltnis der

Physischen zum Psychischen. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft.

Stem, David. 1995. Wittgenstein on Mind and Language. New York, Oxford: Oxford University Press.

Wittgenstein, Ludwig. 1973. "Some Remarks on Logical Form." In Copi, Irving & Beard, Robert ( orgs.) Essays on Wittgenstein 's Tractatus. New York: Hafner Press, pp. 31-7.

- . 1984. Wittgenstein und der Wiener Kreis. In Wittgenstein, Ludwig, Werkausgabe, Frankfurt, Suhrkamp.

-. 1994. Wiener Ausgabe. 2 vols. Wien: Springer.

Notas

1 Wittgenstein, Ludwig, Wiener Ausgabe, vol. 1, p. 191; MS 105, p. 114. 2 Cf. Wiener Ausgabe, vol. 1, pp. 190-1; MS 105, pp. 108, 110, 112 e 114. 3 Wiener Ausgabe, vol. I, p. 192; MS 105, p. 116. 4 Wiener Ausgabe, vol. 1, p. 192; MS 105, p. 118 5 Wiener Ausgabe, vol. I, p. 192; MS 105, p. 118. 6 Cf Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 4; MS 107, p. 4. 7 "Im Gesichtsraum ist nicht ein Auge welches mir gehõrt und Augen di e ande­ren gehõren. Nur der Raum selbst ist unsymmetrisch, die Gegenstiinde in ihm sind gleichberechtigt. Im physikalischen Raum aber stellt sich dies so dar, daf3 eines unter den an gleichberechtigten Stellen liegenden Augen ausgezeichnet wird und mein Auge heillt." (Wiener Ausgabe, vol. I, p. 195; MS 105, pp. 132-3) 8 "Der Gesichtsraum hat wesentlich kcincn Bcsitzer." ( Wiener Ausgabe, vol. 1, p. 193; MS 105, p. 124) 9 Cf Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 3; MS 107, p. 2. 10 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 3; MS 107, p. 3. 11 C f. Wiener Ausgabe, v oi. 2, p. 96; MS 107, p. 165. 12 Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 96; MS 107, p. 166. 13 Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 96; MS 107, p. 166. 14 Nada sugere que, por oposição ao traço virtual da geometria euclidiana, essa tosca geometria a traços de giz seja realmente a do campo visual: ''Vielmehr ist sie es gewiss nicht" (Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 97; MS I 07, p. 167).

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15 Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 93; MS I 07, p. 161. 16 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 94; MS 107, p. 162. 17 Vale reconhecer aqui um esboço de solução aos problemas postos por ilusões como as de Müller-Lyer, em relação às quais o pensamento revelar-se-ia im­potente por colocar em mesmo plano a linguagem para objetos e a linguagem para fenômenos. Essa abordagem sabe, aliás, difusamente, a mais uma espécie de recusa à tradução indevida do qualitativo pelo quantitativo. 18 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 95; MS 107, p. 163. 19 "Was soll es aber hei13en wcnn ich sagc ich kann nie cinen genauen Kreis sehen und dieses Wort jctzt nicht relativ, also absolut, gebrauche?" ( Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 95; MS I 07, p. 163) 2° Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 122; MS I 07, pp. 212-213. 21 Na Áustria, ' beiHiufig ' também significa •ungefàhr' , 'ctwa', como em "Jch weil3 es uicht genau, ich kann nur eine beilãufige Zeit angcben" (Ebner, Ja­kob, Duden "Wie sagl man in Osterreich?": Wõrterbuch der õsterreichischen Besonderheiten, p. 41). 22 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 122; MS 107, pp. 212-213. 23 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 144; MS 108, p. 27. 24 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 145; MS 108, p . 28. 25 Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 145; MS 108, p. 28. As ilusões óticas, que tanto ocuparam Brentano, causam um elucidativo mal-estar, não como pro­cesso a ser explicado mas como situação anômala de emprego de palavras que descrevem a experiência visual. Entretanto, nunca há aí um erro essencial, pois mesmo a superioridade da medida sobre o aparecer condiciona-se ao usitado na vida, ou seja, Wittgenstcin já sugere nesse momento, embora sem a devida radicalidadc, uma determinação da gramática pelos fatos da vida - uma das expressões posteriormente correlatas a "Lcbensformen." 26 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 145; MS I 08, p. 29, grifo nosso. 27 Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 145; MS I 08, p. 29. 28 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 123; MS 107, p. 213. 29 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 125; MS 107, p. 218. 30 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 123; MS 107, p. 213. 31 "Das Axiom - z. B. - da/3 durch je 2 Punkte sich eine Geradc ziehcn lãfit hat hier den klaren Sinn dafi zwar nicht durch je zwei bclicbige Punktc cine gerade gezogen ist aber dafi es mõglich ist eine zu zichen und das hcil3t nur dafi der Satz "cinc Geradc geht durch diese Punkte" Sinn hat." ( Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 123; MS 107, p. 214) 32 "The primary world, a paradoxica1 place where our ordinary conccpts of ob­jects, causality, self, and temporality no longer apply." (Stem, David, Wittgen-

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Willgenstein e o Projeto de uma Linguagem Primária

stein on Mind and Language, p. 14) 33 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 99; MS I 07, p. 171. 34 Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 98; MS 107, p. 168. 35 Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 152; MS 108, p. 40.

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36 "Dic Grenzlosigkeit dcs Gcsichtsraums ist ohne jenc "Vcrschwommenheit" nicht I denkbar // vorstcllbar //." ( Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 152; MS 108, p. 40) 37 Wittgenstein, Ludwig, Willgenstein und der Wiener Kreis, p. 57, nota. 38 Cf. Wittgenstein, Ludwig, Willgenstein und der Wiener Kreis, pp. 66-7, nota. 39 "Liege ich z.B. auf einem Ruhebett, und schliel3e das rechte Auge, so bietet sich meinem linken Auge das Bild der nebenstehenden Figur I. In einem durch dcn Augenbrauenbogen, dic Nase und den Schnurrbart gebildetcn Rahmen er­scheint ein Teil mcines Kõrpers, so wcit cr sichtbar ist, und dessen Umgcbung." (Mach, Emst, "Antimetaphysischc Vorbemerkungen," §I O) · 40 Wittgenstein, Ludwig, Wittgenstein und der Wiener Kreis, p. 57. 41 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 154; MS 108, p. 43. Também a palavra ' igualda­de', caso concernente a segmentos no campo visual, tem significação diversa de quando aplicada ao espaço da física, como o atestam os típicos embaraços das ilusões óticas, que nos levam a confundir os critérios. 42 "Es scheint ais wãre auch die cxacte Begrenzung der Unexacthcit unmõg­lich." (Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 100; MS 107, p. 172) 43 Ser vcrificacionista não é aqui ser referencialista ou depender da fumiliarida­de com objetos que suportem a verificação, porquanto ser capaz de reconhecer o azul celeste não é ter dele uma amostra no cérebro, mas sim ter um caminho para ele, estar provido dos recursos de um sistema que o pode localizar. Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 164; MS 108, pp. 61- 3. 44 "Das Wesen der Sprache abcr ist cin Bi1d des Wesens der Welt und dic Phi­losophic ais [Verwalterin der] Grammatik kann tatsãchlich das Wcscn der Wclt erfasscn nur nicht in Sãtzen der Sprache sondem in Regeln für dicsc Sprachc die unsinnige Zeichenverbindungcn ausschlicl3en." ( Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 132; MS 108, p. 2) 45 Esta é uma idéia importante, a ser aprofundada adiante: uma expressão que constitui a identidade da cor, que não é a ela semelhante (Cf. Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 94; MS 107, p. 161). Por essa via, poderemos ver como a noção de paradigma, respondendo à exigência de laços internos entre linguagem e realidade, toma-se necessária à consideração fenomenológica após a negação de uma linguagem primária. Mais do que isso, sendo esboçada a idéia de paradigma ao tempo dessa transformação da fenomenologia em gramática, não estará enfim em conflito com a crítica feita à sua unilateral idade.

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46 " Hat es Sinn zu sagcn "ich sehe nie cincn genauen Kreis" dann heiJ3t das: cin gcnauer Kreis ist im Gcsichtsraum denkbar. lst ein genauer Kreis im Ge­sichtsfcld undenkbar dann muf3 der Satz "ich sehc nie einen genauen Kreis im Gesichtsfcld" von der Art dcs Satzes sein "ich schc nic das hohe c im Gcsichts­feld."" (Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 95; MS 107, p. 164) 47 Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 102; MS 107, p. 176. 48 "Di e phãnomenologische Sprachc oder "primare Sprache" wie ich si e nannte schwebt mir jctzt nicht ais Ziel vor; ich halte sie jctzt nicht mehr fiir mõglich." (Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 118; MS 107, p. 205) Vale observar que nosso cuidado com tais datas não visa a uma cronologia, pois o que nos importa nisso tudo é antes um andamento, através do qual, de tempos em tempos, avançando ou retrocedendo em seu movimento de deliberação, a obra se retoma e se repõe em um diálogo consigo mesma. 49 C( Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 118; MS I 07, pp. 205-6. Uma vez descrita, toda linguagem que é autêntica linguagem mostra em sua essência como a ex­periência imediata é imediatamente representada. Cf. Wiener Aúsgabe, vol. 2, p. 123; MS 107, p. 213. 50 "Alies wesentlichc ist, daB die Zeichen (aquilo que na gramática se chama de sinais] sich in wic immer complizierter Wcise am SchluB doch auf die un­mittelbare Erfahrung bezichen und nicht auf e in Mittclding ( ein Ding an sich)." (Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 103; MS 107, p. 177) 51 "Eine Erkenntnis dessen was an unscrer Sprache wesentlich und was ihr zur Darstellung unwcscntlich ist, eine Erkenntnis wclche eine Teile unserer Sprache leer laufende Riidcr sind kommen auf die Konstruktion einer phiino­menologischen Sprachc hinaus." (Wiener Ausgabe, vol. 2, p. 119; MS 107, p. 206)

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Seção 3

Epistemologia e Filosofia da Ciência

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KANT E O CARÁTER A PRIORI DO ESPAÇO

Marco Antônio Frangiotti Universidade Federal de Santa Catarina

O idealismo transcendental de Kant tem sido freqüentemente considera­

do como uma forma de fenomenalismo. Dessa forma, alguns comenta­dores de Kant tem procurado equiparar a sua doutrina à de Berkeley. Os proponentes desse ponto de vista argumentam que, ao limitar o campo

do conhecimento à experiência possível, Kant teria reeditado a princi­pal tese do pensamento de Berkeley e reduzido os elementos do mundo exterior a meras representações ou idéias. Embora seja possível detec­

tar várias aparentes simiJaridades entre eles, eu acredito que a tentativa de classificar Kant como um Berkeleiano é equivocada. Portanto, meu objetivo neste artigo é o de distanciar Kant de Berkeley. Isso é realiza­do por meio de uma avaliação detida da tese kantiana da aprioridade do espaço e do tempo.

1. Aparentes Similaridades

A visão de que o idealismo transcendental é uma versão sofisticada do pensamento de Berkeley não é de modo algum recente. Ela foi defen­

dida por vários filósofos contemporâneos a Kant. Garve e Feder, por exemplo, comentando a Crítica da Razão Pura em 1782, apresentaram Kant como um idealista radical cujo sistema "mescla( ... ) espírito e ma­téria" e "transforma o mundo e a nós em meras representações" (Garve & Feder 1787, p. 40). Tal siste ma estaria baseado na tese de que as "sensações" são meras "modificações de nós mesmos" (Ibid., p. 41 ).

Mais recentemente, Turbayne argumentou que o pensamento de Kant é

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosqfia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 111-141.

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apenas uma variação do de Berkeley, de modo que "as inúmeras tentati­vas por parte de Kant de refutar o idealismo dogmático fracassam antes mesmo de começar" (Turbayne 1955, p. 225). Wilkerson, por seu turno, afirma que Kant é um Berkeleiano, porque "ele pretende reduzir os obje­tos a coleções de percepções" (Wilkerson 1976). Finalmente, Strawson desafia os idealistas transcendentais a se distinguirem dos fenomenalis­tas, tendo em vista que para Kant os objetos espaciais são vistos como meras percepções e, "aparte tais percepções, os corpos não são absolu­tamente nada" (Strawson 1966, p. 57).

Uma leitura superficial de Berkeley e Kant poderia nos levar a con­cordar com tais autores. De fato, parece haver várias afinidades entre eles. Ambos, por exemplo, criticam aqueles que advogam a realidade absoluta do espaço e do tempo. Como Berkeley afirma nos Princípios, "parece( ... ) evidente que as várias sensações ou idéias implantadas nos sentidos ( ... ) não podem existir de outro modo que não na mente que as percebe" (Princípios, §3). Em sintonia com isso, Kant diz que "não há nada no espaço a não ser aquilo que nele representamos( .. . ), pois o espaço é ele mesmo nada senão represen tação, e o que quer que nele es­teja deve portanto estar contido na representação" (A 374a). Os motivos

que levam Berkeley e Kant a descartarem a noção de espaço e tempo absolutos são praticamente intercambiáveis. Berkeley assinala que uma noção como espaço puro requer a assunção de que ele "exista mesmo após a aniquilação de todas as entidades existentes, incluindo Deus" (c f.

De Motu, p. 53). Nesse sentido, nós somos levados a acreditar que "há algo além de Deus que é eterno, não-criado, infinito, indivisível, imutá­vel" (Princípios, § 117). Ora, visto que essa alternativa aponta para uma noção inconsistente de espaço divino , que faria o papel de condição pri­

mária da existência de todos os seres ( incluindo Deus), a noção de espa­ço puro é perniciosa e absurda (c f. ibid). Quanto a Kant, espaço e tempo absolutos, enquanto "duas não-entidades auto-subsistentes, eternas e in­

finitas," devem ser encaradas como "condições necessárias da existência de todas as coisas, e além disso devem continuar a existir, mesmo que

todas as coisas sejam removidas." Sendo assim, "eles devem ser tam­

bém as condições da existência de Deus" (B 71 ). Uma vez dependentes

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Kant e o Caráter a Priori do Espaço 113

de nada, todas as coisas são ipso facto "transformadas em mera ilusão."

Assim, Kant também chama essas noções de "absurdas" (B 70).

Kant e Berkeley parecem também estar de acordo com respeito à inadequação do realismo metafísico, ou a doutrina segundo a qual os

objetos reais jazem para além do campo experiencial. Tal doutrina ins­tala um abismo intransponível entre as substâncias materiais ou as coisas

em si mesmas e as idéias ou os objetos sensíveis. Os filósofos que de­fendem essa visão, afinna Berkeley, iludem-se ao pensar que "os corpos existam ( ... ) sem a mente; embora ao mesmo tempo sejam apreendi­dos ou existam em si mesmos" (Princípios, §23). Kant endossa essa idéia ao dizer que os realistas transcendentais são " levados ao esforço

infantil de perseguir bolhas, porque as aparências, que são meras repre­sentações, são tomadas por coisas em si mesmas" (Prol., p. 292; cf. A 491 ). Nada é mais pernicioso à filosofia do que a defesa da concepção de objetos que se encontrariam para além da experiência. "É evidente,"

diz Berkelcy, que "não pode haver nenhum substrato a( ... ) qual idades (sensíveis) ( ... ). Eu nego portanto que haja ( ... ) qualquer substância material" (Diálogos, p. 71 ). Ele define substância material como "um algo desconhecido (se é que se pode chamá-lo de algo) que é totalmente desprovido de todas as qualidades sensíveis, e que não pode ser percebi­do pelos sentidos, nem apreendido pela mente" (lbid., p. 92). Uma vez que tal noção pode nos levar à conclusão de que nós não conhecemos na­

da de real no mundo, sua aceitação deve ser vista como "extravagante" (Ibid., p. 62). Em virtude disso, Kant é por muitos visto como inspirado na noção Berkeleiana de substância material ao introduzir a noção de

coisa em si mesma, que não pode ser conhecida porque é por definição independente dos sentidos e ipso facto não espaço-temporalizada. ( cf. B 45, 67, A 369, B 522; passim.)

Uma vez que a idéia de objetos fora do campo experiencial é trazida

à baila, Kant e Berkeley argumentam que a filosofia toma-se uma presa fácil do ataque cético. Kant, por exemplo, afirma ser incompreensível "que possamos chegar a um conhecimento da realidade externa de tais objetos, tendo em vista que nós só podemos contar com a idéia que está

em nós" (A 378). Berkcley parece ter antecipado tal visão ao afinnar

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114 Marco Antônio Frangiotti

que, "quando atribuímos uma existência real ( ... ) a coisas distintas das percepções que delas temos, é não apenas impossível que conheçamos

com evidência a natureza de qualquer ser real não pensado, mas também que ele exista" (Princípios, §87; cf. Ibid., §88). Se as idéias forem "encaradas como notas ( ... ) que se referem a coisas ou arquétipos que existem sem a mente, então nos envolvemos com o ceticismo," pois não temos condições de dizer com certeza que tais coisas existem (Princí­pios, §87).

Os aparentes pontos de contato entre Kant e Berkeley não param aí. Não é difícil notar uma sintonia entre eles com respeito à solução para tais complicações. Kant afirma que o único "refúgio" que o cético ain­da deixa em aberto para nós é "a idealidade de todas as aparências" (A 378). De fato, ''todas as aparências não são em si mesmas coisas; elas nada são senão representações, e não podem existir fora da mente" (A

492). Levando isso em conta, nós devemos considerar "nosso conheci­mento da existência das coisas" como alcançando "apenas a percepção" (A 226). Berkeley, por seu turno, parece defender uma tese similar. "O esse das coisas," diz ele, "é percipi ," e não é de modo algum possível que "deva haver qualquer existência fora das mentes ou das coisas pensantes que os percebem" (Principios, §3). As coisas sensíveis são "imediata­mente percebidas; e coisas imediatamente percebidas são idéias; e idéi­as não podem existir sem a mente; a existência de tais coisas portanto consiste em serem percebidas" (Diálogos, p. 64).

Conseqüentemente, Kant e Berkeley afirmam que não há necessida­de de iriferir a realidade dos objetos externos. Tendo que eles são apenas aqueles encontrados em nossa experiência, eles podem ser conhecidos

imediatamente. Isso pode ser confirmado quando nos remetemos à se­guinte afirmação de Berkeley: "cu sou tão certo de meu próprio ser, quanto de que há corpos ou substâncias corporais (querendo dizer as

coisas que eu percebo pelos meus sentidos)" (lbid., p. 71). Tal afirmação

parece ecoar na afirmação de Kant de que "as coisas externas existem tanto quanto eu mesmo existo, e ambos, realmente, a partir do testemu­nho imediato de minha autoconsciência" (A 371). De fato, "a inferência

a partir de um dado efeito para uma determinada causa é sempre incer-

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ta, uma vez que o efeito pode ser devido a mais de uma causa" (A 368). Ao estabelecermos a existência de objetos externos por inferência, nós jamais podemos estar completamente certos das causas reais da nossa concepção do mundo exterior. Mais exatamente, nós nos encontramos impossibilitados de determinar se tal concepção tem como causa os pró­prios objetos externos ou se algo mais interveio para produzir os efeitos disponíveis, como é o caso em algumas hipóteses céticas, por exemplo, o gênio maligno, o cientista louco, etc.

A esses tópicos deve ser adicionado que Berkeley e Kant distinguem realidade de ilusão invocando um argumento similar. Berkeley afirma que as idéias percebidas pelos sentidos "possuem ( . .. ). uma força, or­dem e coerência, e não são excitadas ao acaso, como aquelas que são os efeitos das vontades humanas" (Ibid., §30). Kant, por seu lado, não está de modo algum longe de dizer a mesma coisa. "A diferença entre rea­lidade e sonho," ele explica, "é ( . .. ) decidida pela ( ... ) conexão( ... ) entre representações de acordo com regras que determinam a combina­ção delas no conceito de um objeto" (Prol., p. 290). Por meio disso, fica claro que tanto Kant quanto Berkeley argumentam que a distinção em questão não está baseada numa suposta relação de idéias com um mun­do supra-sensível, mas na coerência e na obediência a leis dos dados empíricos. (cf. A 493; cf. também Princípios, §35.)

2. A Aprioridade do Espaço c do Tempo

Levando em conta esses pontos, é compreensível que alguns comenta­dores tenham equiparado o idealismo de Kant ao de Berkeley. Kant, no entanto, esforça-se por evitar essa interpretação do idealismo transcen­dental em inúmeras passagens. A mais longa e incisiva delas pode ser encontrada no Apêndice aos Prolegômenos. Lá ele afirma que, enquanto Berkeley afirmara que espaço (e tempo) são empíricos, ele por sua vez defende a tese de que espaço e tempo são a priori (cf. A 493; Principies §35). Isso equivale a dizer que, quando o fenomenalista refete sobre a sua experiência de ver, por exemplo, esta impressora ao meu lado, ele conclui que a sua extensão, figura, solidez, permanência no tempo, sua

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cor, i.e., suas características espaço-temporais, são todas empíricas, ou apreendidas por nós através dos sentidos. Somando-se a isso, o feno­menalista considera os próprios conceitos de espaço e tempo como de­rivados da experiência. Somente através da observação da interrelação dos itens dados em nossa sensibilidade é que podemos obter a ordena­ção espaço-temporal. Espaço e tempo são características que podem ser descobertas num mundo já pronto e acabado, que nos é dado através da experiência. Se o fenomenalista afirma que espaço e tempo são obtidos através de nossas sensações, é plausível afirmar que, de acordo com ele, os aspectos sensórios dos objetos antecedem logicamente o espaço e o tempo. A fim de avaliar tal suposição, eu analisarei de agora em diante a concepção kantiana do espaço e do tempo. Para efeitos de atingir o objetivo colimado, vou restringir essa abordagem a alguns pontos que considero fundamentais para a compreensão das diferenças entre Kant e Berkeley.

Para tanto, é necessário considerarmos a Estética Transcendental, em particular os argumentos sobre o caráter a priori, intuitivo e ideal do es­paço e do tempo. Comecemos pela tese da aprioridade. Isso porque é por meio da defesa do caráter a priori do espaço e do tempo que Kant acredita mostrar como é possível conceber objetos no espaço (e no tem­po) sem recorrer a meras sensações ou estados mentais, em oposição ao fenomenalista, para o qual esses objetos, sendo nada mais do que fei­xes de idéias, são em última instância redutíveis a estados subjetivos da mente. De fato, quando o fenomenalista reflete sobre a sua experiência de ver, por exemplo, um computador à sua frente, ele argumenta que a extensão, a figura, a cor, a solidez e a permanência no tempo, em su­ma, as características espaço-tempomis do computador, são todas elas empíricas, ou apreendidas por nós através dos sentidos. Somando-se a isso, o fenomenalista considera que as próprias noções de espaço e tempo são derivadas da experiência. Somente através da observação das inter-relações dos dados da nossa sensibilidade é que podemos apreen­der as ordenações espacial e temporal. Espaço e tempo são deduzidos dos dados sensíveis. Sobre o espaço, por exemplo, Berkeley afirma que "a alteridade" é sugerida "a nossos pensamentos por certas idéias visí-

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veis ... que se apresentam aos sentidos da visão" (Principies, §43). Hu­

me vai na mesma direção ao afirmar que a idéia de espaço "é tomada de empréstimo de, e representa, alguma impressão, que se apresenta nesse momento aos sentidos" (Trearise, p. 34). Do mesmo modo, com respeito ao tempo, Berkeley afirma que e le não é nada se abstrairmos "da suces­são de idéias em nossas mentes."1 Uma abordagem similar é oferecida por Hume. Ele afirma que o tempo é "sempre descoberto por intermédio de alguma sucessão perceptível de objetos mutáveis" (Treatise, p. 35).

Se o fenomenalista advoga que o espaço e o tempo são obtidos a partir de nossas sensações, é plausível dizer que, de acordo com ele, os aspectos sensíveis dos objetos são logicamente anteriores ao espaço e ao tempo. A fim de avaliar tal assunção, permita-me recorrer à Estética Transcendental da Crítica da Razão Pura. Vou me restringir aos aspec­tos da argumentação kantiana que mais expressamente representam uma critica ao fenomenalismo. Consideremos um exemplo. Quando refleti­mos sobre a nossa experiência de uma maçã, deixando de lado a sua cor, cheiro, gosto, etc., ainda podemos pensar no formato e na exten­são circular geral que lhe é pecu liar. O mesmo ocorre com os objetos do meu quarto de estudo. Se removermos de nosso pensamento todos os elementos empíricos peculiares a esse objetos, e.g., o som vindo do meu aparelho de som, a suavidade do forro da cadeira, a cor marrom do meu violão, e assim por diante, podemos ainda concebê-los como possuindo certas características, como por exemplo, localizações espa­ço temporais entre si (contigüidade, profundidade, etc.). Esses exemplos mostram que, à parte os aspectos sensíveis particulares, somos capazes de conceber os objetos por intermédio de algumas características espa­ciais gerais, a saber, a extensão e figura ou forma.

Consideremos agora a partitura de uma música. Se deixarmos de lado o som de cada nota, o que teremos é apenas a concepção de uma sucessão de notas no papel, i.e., a seqüência que elas constituem. A pró­pria partitura é uma organização espacial e suas partes são simultâneas, tal como no caso do exemplo da maçã. Mas se considerarmos a consci­ência do ato de ver as notas na partitura representadas uma ao lado da outra, obteremos uma coleção de elementos precedentes, subseqüentes

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e simultâneos entre si, i.e., obtemos uma sucessão temporal. De acordo com Kant, teremos de considerar como temporal o fluxo de percepções que se seguem do ato de observar cada uma das notas em sucessão ( cf. B 49-50). Assim, as próprias coisas não possuem partes temporais. Se eu considero um maçã, eu devo de um modo tal que as suas partes produ­zam um determinado formato numa certa extensão, e simultaneamente. As partes temporais, como no caso das notas na partitura, são, antes, propriedade do processo ou da ' história' de um objeto em termos da nossa consciência de sua presença em diferentes momentos ou eventos.

Desses comentários esquemáticos se segue que, quando abstraímos dos aspectos sensórios da nossa idéia de objeto, somos deixados com a concepção de um conjunto de relações espaço-temporais entre eles. Isso é o mesmo que dizer que, à parte as suas propriedades particulares evi­denciadas através dos sentidos, é possível conceber os objetos do ponto de vista de suas características espaço-temporais gerais (e.g., extensão, permanência em diferentes momentos, etc.). Isso posto, Kant inverte agora o raciocínio anterior, i. e., ele examina se é possível pensar objetos desconsiderando não mais suas características sensórias, mas sim su­as características espaço-temporais. Esse momento é crucial no debate com o fenomenalista. Se for possível conceber os objetos sem as suas determinações espaço-temporais e concomitantemente preservar a idéia mesma de objeto, o fenomenalista terá a última palavra na discussão sobre o espaço e o tempo. Isso porque, para ele, as determinações tem­porais são obtidas mediante a observância das inter-relações de nossas sensações. Se, por outro lado, não for possível pensar um objeto sem as suas determinações espaço-temporais, e, além disso, se for possível pensar tais determinações sem se levar em conta os dados dos sentidos, estaremos em posição de afinnar que o pensamento dos objetos requer espaço e tempo, enquanto o próprio espaço e tempo podem ser pensados sem recorrência aos aspectos sensórios dos objetos. A vantagem filosó­fica desse raciocínio será a de estabelecer que espaço e tempo são a priori, ou que devem ser pensados como logicamente anteriores à nossa experiência dos objetos.

Ora, quando abstraímos das determinações espaço-temporais do ob-

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jeto, descartamos a extensão, a figura, a sucessão em diferentes momen­tos, etc. De acordo com Kant, nenhum objeto pode ser propriamente representado ou descrito sem tais componentes. Se descartamos as pro­priedades espaço-temporais, acabamos por perder as próprias concep­ções que fazem desse objeto qua objeto pensável ( cf. Dreams, p. 46). De acordo com Kant, embora possamos pensar espaço e tempo vazios de objetos, não podemos pensar objetos à parte as suas determinações espaço-temporais.2 Disso se segue que espaço e tempo não podem ser concebidos enquanto dedutíveis dos dados dos sentidos, como defen­de o fenomenalista. Quando refletimos sobre a nossa experiência de um objeto, espaço e tempo não são elimináveis. Ao contrário, o pensamento de um objeto requer necessariamente a concepção de suas características espaço-temporais. Assim, o sistema espaço-temporal "não é urna deter­minação dependente dos objetos"; antes, esse sistema "deve ser consi­derado como condição de possibilidade deles" (B 39). É por isso que Kant também denomina espaço e tempo de formas, i. e., condições para a nossa representação de objetos (B 322, passim). Conseqüentemente, espaço e tempo devem ser caracterizados como condições a priori pa­ra pensarmos objetos, e não características empíricas subordinadas às sensações subjetivas, como quer o fenomenalista.

3. Confrontos

Como já foi indicado, é no Apêndice aos Prolegômenos que Kant procu­ra esclarecer mais detidamente os motivos que o distanciam do fenome­nalismo de Berkeley. Lá ele afirma que, enquanto Berkeley considerava o espaço (e o tempo) como meramente empíricos, ele os considera como sendo a priori.

Disso se segue que, uma vez que a verdade repousa sobre leis necessá­rias e universais que atuam como critérios, a experiência para Berkeley não pode ter nenhum critério de verdade, porque nada foi (por ele) co­locado como a priori enquanto fundamento das aparências ( ... ). Por causa disso, nada havia senão ilusão; enquanto que para nós o espaço e o tempo (em conjunção com os conceitos puros do entendimento) pres­crevem suas leis a priori a toda a experiência possível, e isso produz

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ao mesmo tempo o critério seguro para nela se distinguir verdade de ilusão.(Pro/., p. 374)

Ora, Kant não está equivocado em tentar distanciar-se de Berkeley dessa forma. Berkeley lida com o espaço ou "alteridade;' por exemplo, como "apenas sugerido aos nossos pensamentos por certas idéias visíveis e sensações que atendem a visão" e ipso facto "a nós ensinadas pela expe­riência" (Princípios, §43). Todavia, parece um tanto obscuro entender porque este é um ponto crucial para distinguir esses dois filósofos e de­cidir qual dos dois é capaz de separar efetivamente verdade de ilusão. Se ambos possuem o mesmo critério parra realizar tal distinção, somos levados a supor que Kant quer dizer que tal critério simplesmente não funciona quando se considera o espaço e o tempo como empíricos. En­tretanto, isso não é exatamente o que é dito por Kant quando ele afirma a origem da ilusão:

se eu me aventuro a ir para além da experiência possível com os meus conceitos de espaço e de tempo ( ... ) então um erro grave pode surgir devido à ilusão na qual eu proclamo ser universalmente válido o que é meramente uma condição subjetiva da intuição das coisas( ... ) Eu refe­riria tal condição a coisas em si mesmas e não a limitaria às condições da experiência. (Prol., pp. 291-2)

Se a ilusão surge, de acordo com essa passagem, quando o espaço e o tempo são tomados como propriedades das coisas em si mesmas, a tentativa de Kant de superar Berkeley parece nos levar a um impasse, pois Berkeley não pode ser acusado de aplicar o espaço e o tempo ao mundo supra-sensível. O espaço e o tempo são para ele propriedades das idéias e não das substâncias materiais.

Ora, será que Kant está correto ao dizer que Berkeley, por não con­siderar o espaço e o tempo como a priori, acaba reduzindo os corpos a meras "ilusões" (cf. B 71; Prol., p. 473), ou "fantasmas"? (Prol., p. 293) Será que é realmente verdade que Berkeley não considerou a diferença entre, vamos dizer, meu maço de cigarros ali na mesa e a imagem de um centauro em minha mente? Aparentemente, ele fez essa distinção. Algu­mas de nossas idéias realmente vêm de fora (cf. Diálogos, p. 82). Kant

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parece então errar o alvo ao tratar do pensamento Berkeleiano. É claro

que Berkeley reconhece que há uma diferença entre objetos empíricos

e estados mentais. Ninguém jamais poderia levar a sério uma doutrina

que fizesse uma equivalência entre eles sem maiores problemas. Apesar de todas as obscuridades de Kant, eu creio ser possível rea­

valiar a sua posição e, em assim procedendo, estabelecer uma fronteira entre ele e Berkeley. Se eu considero o meu maço de cigarros em relação

à imagem de um centauro, a diferença óbvia entre eles é que, enquan­to o último é apenas wn item na seqüência de meus estados mentais, o

primeiro preenche espaço e possui uma localização específica no espa­ço (e no tempo). Por um lado, a imagem de um centauro é organizada primariamente no tempo, isto é, ela é um item que precede e que sucede

outros item mentais, e ipso facto carece de localização espaciaL Por ou­tro lado, meu maço de cigarros é organizado não apenas temporal mas também espacialmente, isto é, ele possui algumas propriedades que me permitem tanto caracterizá-lo como se encontrando fora e ao lado de outros objetos quanto distingui-lo de meus estados mentais.

Mas será que Berkeley diria o contrário? Certamente que não. No entanto, sua posição é problemática e encoraja uma visão de que os obje­tos empiricos não podem ser distinguidos de estados mentais. Por quê? Porque, de acordo com Berkeley~ o espaço é empirico: nós aprendemos sobre o espaço tal como aprendemos sobre as cores; por exemplo, ob­servando aspectos de nossas idéias ou estados mentais e suas relações. A ordem espacial, então, acaba sendo derivada da ordem por meio da

qual as idéias se relacionam entre si. Ora, tal ordem pressupõe que as idéias são dadas a mim. Eu não posso falar das relações entre idéias sem previamente conceder que tais idéias me são dadas de algum modo. Mas a ordem segundo a qual essas idéias se me apresentam é uma ordem sucessiva (cf. Princípios, §98). Enquanto Berkeley diz que somente tal

sucessão nos permite obter a noção de tempo, Kant afirma que é a forma do tempo que primeiramente toma possível a sucessão de nossas idéias. É por tal motivo que o tempo deve ser a priori e não empírico. Para

Kant, não se trata de obter a noção de tempo mediante a maneira pela qual as idéias se nos apresentam, quer dizer, não se trata de obter a noção

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de tempo empiricamente. Trata-se exatamente do contrário. O caráter sucessivo de nossas idéias só pode ser considerado mediante a condição do tempo. Isso sugere que, de acordo com Berkeley, os aspectos espaci­ais dos objetos externos, isto é, os aspectos a partir dos quais tais objetos devem ser caracterizados como realmente distintos de minhas idéias ou estados mentais, acabam sendo paradoxalmente derivados, no final das contas, da ordem segundo a qual as idéias se me apresentam, ou seja, da ordem temporal.

Isso posto, Berkeley só pode lidar com a ordem espacial dos dados sensíveis a partir da ordem temporal. Por isso, ele acaba tratando to­dos os dados da sensibilidade da mesma forma. Em última instância, tanto os empíricos (espaciais) quanto os estados mentais acabam sen­do vistos como dependentes da ordem temporal. Conseqüentemente, é razoável dizer que Berkeley não consegue explicar como objetos es­paciais externos são realmente independentes de estados mentais. Em outras palavras, ele não consegue separar estados mentais, por exemplo, a imagem de um centauro, dos dados externos do mundo, por exemplo, meu maço de cigarros. A fortiori, ele é incapaz de sustentar qualquer distinção legítima entre ilusão e realidade.

Será que Kant evita esse problema? Eu creio que sim. De acordo com Kant, espaço e tempo precedem os objetos dados à sensibilidade. Eles não são adquiridos através da observação de nossas idéias e suas relações. Na verdade, eles constituem o campo da experiência possível. A partir desse ponto de vista, a ordem espacial não depende da ordem na qual os objetos se nos apresentam. Nesse sentido, os aspectos espaciais dos objetos podem ser adequadamente considerados como distintos da ordem temporal. Ora, uma vez que os estados mentais são ordenados primariamente no tempo, é razoável dizer que Kant tem à sua disposi­ção os meios para caracterizar os aspectos espaciais dos objetos como independentes dos estados mentais.

Tal linha de raciocínio permite a Kant conceber a sensibilidade como exibindo um duplo caráter, que nos permite ordenar os dados sensíveis de duas diferentes maneiras, a saber, espacial e temporalmente. Nossa sensibilidade é de fato composta por um sentido interno e um sentido

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externo.3 Por um lado, a sensibilidade me apresenta estados mentais que abrangem toda a esfera de minha estória mental, independente de representarem objetos empíricos ou não. Eu posso dizer que os esta­dos mentais que ora entretenho, e.g., a imagem da casa em que eu nasci (há não muito tempo), a imagem de um centauro, etc., sucedem-se num fluxo constante. Esse aspecto de minha sensibilidade é chamado por Kant de "sentido interno" ( cf. B 37, passim ). Se tivéssemos apenas um sentido interno, ou se nossa sensibilidade fosse apenas interna, tudo o que teríamos à nossa disposição seriam dados fugidios que constituem a ordem temporal. Por quê? Porque a ordem temporal é apenas uma or­dem de sucessão, precedência e simultaneidade, enquanto que a ordem espacial é uma ordem por meio da qual os objetos são representados em diferentes lugares e, acima de tudo, como distintos de meus pensa­mentos ou, como diz Kant, "de uma maneira distinta de mim mesmo" (Ak XVIII, p. 309). Kant assinala ipso facto que o tempo é a forma do sentido interno e o espaço a forma do sentido externo (cf. B 42 e B 49, respectivamente). Através do sentido interno apenas é impossível repre­sentar os objetos sensíveis como distintos não apenas de outros objetos mas também, e especialmente, de meus pensamentos porque o sentido interno ordena os dados temporalmente e não espacialmente. Somente o sentido externo pode realizar a tarefa de representar objetos espacial­mente, isto é, como fora de nós. Através do sentido externo podemos dizer que os aspectos espaciais dos objetos externos são ordenados de uma outra maneira que os meus estados mentais.4

Uma objeção poderia ser levantada aqui. Mesmo que aceitássemos a crítica de Kant de que a ordem espacial não está subordinada à ordem temporal, o espaço é de algum modo dependente da sensibilidade. Em­bora Berkeley argumente que o espaço é obtido através da experiência e Kant argumente que o espaço é constitutivo dessa experiência, ambos parecem acreditar que o espaço é um aspecto de nossa sensibilidade e, por tal motivo, dependente de nós. Nesse sentido, dir-se-ia que Kant também defende a idéia de que os aspectos espaciais dos objetos são de algum modo dependentes da mente.

A réplica a tal objeção é a seguinte. Por não dispor dos elemen-

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tos priori da nossa experiência, Berkeley não pode estabelecer em que

sentido essa dependência da mente deve ser entendida. Assim, pode-se dizer que ele confunde as duas esferas de discurso sobre a experiência, a saber, a reflexiva ou transcendental e a empírica (a primeira chamada por Kant de reflexão transcendental, cf. B 317). Ao nível empírico, nós apenas descrevemos o que experienciamos, vamos dizer, este livro que estou vendo ao meu lado, a cadeira em que estou sentado, o tabuleiro de xadrez em cima da mesa da sala, etc. Ao nível reflexivo, nós exami­namos a experiência em termos das condições unicamente as quais ela

ocorre. Kant discorda de Berkeley nos dois níveis. Numa consideração reflexiva, quando procuramos determinar as condições de possibilidade da experiência, o espaço e o tempo devem ser pensados como (logi­

camente) precedendo-a e não, como Berke ley pensava, derivada dela. Numa considera empírica, o objeto externo é considerado independente

da mente e não apenas uma coleção de dados dependentes da mente, ou de idéias.

Um filósofo Bcrkcleiano poderia perguntar o que tudo isso signifi­ca. Um resposta kantiana poderia ser a seguinte. Quando refletimos sobre a experiência, isto é, quando consideramos a experiência ao nível transcendental, nós consideramos o papel desempenhado pelo sujeito na constituição dos objetos da experiência. Somente a partir desse ponto de

vista nós podemos fa lar desses objetos como transcendentalmente ide­ais, isto é, dependentes da mente. Isso não quer dizer que tais objetos

sejam considerados dependentes da mente ao nível empín"co. O que é dado aos sentidos, esta cadeira, meu computador, a impressora, etc., é considerado como empiricamentc real, isto é, independente da mente. Eles constituem o mundo empírico publicamente perceptível e ordena­do espacio-temporalmente ( cf. Altison 1983, p. 7). Por não ser capaz de

determinar as cond ições a priori da experiência, Berkeley não pode con­siderar os objetos da experiência como dependentes da mente ao nível transcendental. Conseqüentemente, ele não pode considerar tais objetos

como independente da mente ao nível empírico.

Na terminologia de Kant, Berkeley não consegue distinguir a forma por meio da qual nós representamos os objetos empíricos e que é subje-

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tiva, dos aspectos empíricos que não são contribuídos pelo sujeito, mas

que são por este encontrados no mundo. O idealismo transcendental en­

tão diz respeito somente ao primeiro e não ao segundo. Kant é bastante claro sobre isso numa carta a Be<:k:

A opinião apresentada por Eberhard e Garve de que o idealismo de Ber­keley é semelhante ao da filosofia crítica ( ... ) não merece a menor atenção. Pois eu falo da idealidade em referência à forma das represen­tações, mas eles interpretam tal idealidade como se aplicando ao objeto e à sua própria existência.5

A partir da doutrina de Berkeley, de fato,

um ceticismo ainda maior se origina, a saber, que nós não podemos de modo algum saber se nossas representações correspondem a algo (en­quanto objeto),( ... ) isto é, se uma representação é uma representação ( ... ). Pois "representação" quer dizer uma determinação em nós que é relacionada a algo. (lbid.)

Em outras palavras, não é possível a Berkeley distinguir meros aspectos subjetivos da experiência real dos objetos fora de nós. Por tais moti­vos, Kant afmna nos Prolegômenos que seu idealismo poderia também ser chamado de "formal" ou "crítico," a fim de distingui-lo do idealis­mo dogmático de Berkeley e do idealismo cético de Descartes" (Prol.,

p. 375; cf. B 519). A essa altura, mediante a posição de Kant, é possível considerar Ber­

keley como um realista ao nível transcendental, ou mais precisamente, um realista transcendental. À primeira vista, parece estranho colocar Berkeley junto com outros realistas metafísicos, como Descartes, por exemplo. Descartes pode servir como exemplo daqueles filósofos acu­sados por Berkeley de supor a existência de substâncias materiais para além dados sensíveis. De fato, o idealismo de Descartes reside na supo­sição de que o mundo real é inacessível a nós porque tudo o que temos à nossa disposição são representações (idéias) de objetos. Descartes ins­tala, assim, um abismo entre a nossa concepção do mundo e a maneira pela qual esse mundo supostamente é em si mesmo. Ele então procu­ra conectar esses dois extremos recorrendo à benevolência divina. Ora,

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uma vez que Berkeley repudia essa concepção de mundo, parece não ser prudente descrever Berkeley dessa forma.

A meu ver, porém, é possível sustentar a posição de que Berkeley é um realista transcendental. Segundo Berkeley, os objetos reais, embo­ra acessíveis a nós, são concebidos como independentes das condições subjetivas da experiência (espaço, tempo e categorias) do mesmo modo que os objetos reais caracterizados por Descartes. Eles nos são dados já constituídos, sem qualquer relação com o sujeito o qual, por seu turno, se limita simplesmente a conceitualizá-los. Eles nos são dados, pode-se

dizer, como eles são em si mesmos - isto é, como eles são independen­temente da intervenção do sujeito que os produz.6 Desse modo, embora Descartes acreditasse que os objetos reais fossem inacessíveis e Berke­Iey acreditasse no contrário, ambos cometem o mesmo erro: eles não consideram os elementos subjetivos a priori unicamente mediante os quais tais objetos são constituídos. Com isso em mente, fica claro por­que Kant afirma que Berkeley concebe o espaço e o tempo em conexão com as coisas em si mesmas.

Ao mesmo tempo, Berkeley pode ser classificado como um idealista empírico. Ao nível empírico, os objetos Berkeleianos são em última ins­tância derivados de nós. Não é possível caracterizar os dados empíricos como colhidos do mundo exterior. Dessa maneira, aspectos tanto sub­jetivos quanto objetivos dos dados da experiência são considerados em última instância como dependentes da mente. Essa descrição ajusta-se à definição kantiana do idealismo empírico. Ele afirma que, ao supor que os objetos, a fim de serem considerados externos, devam ter uma exis­tência independente dos sentidos, o idealista empírico "conclui que sob tal ponto de vista, todas as nossas representações sensíveis são inade­quadas para estabelecer a sua realidade" (A 370). O idealismo empírico é inconsistente porque ele apresenta o espaço c o tempo como empíricos

e ao mesmo tempo como meras idéias, isto é, como dados subjetivos. Is­so posto, pode-se dizer que o idealismo empírico de Berkeley é frágil , pois a partir dele os objetos externos são reduzidos a meros dados men­

tais. O que é experienciado acaba sendo considerado como uma mera

modificação da mente, isto é, um episódio mental, interno na estória

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de um sujeito (por exemplo, a imagem do rosto de minha filha em mi­nha mente, a adaga de MacBeth em sua mente, etc.). A árvore que eu concebo ao fechar os olhos e a árvore que eu experiencio e que supo­nho encontrar-se fora de mim são vistas como exibindo o mesmo status epistemológico de qualquer outro dado dependente da mente ao nível empírico.

4. Kant e o Fenomenalismo

O que até agora foi dito fornece-nos as credenciais para determinar se Kant era um fenomenalista ou não. Antes de realizar tal tarefa, permita­me primeiramente deixar claro o que é fenomenalismo. Podemos di­zer que o fenomenalista defende a idéia de que os objetos externos são constituídos inteiramente a partir de dados sensíveis. Desse modo, sen­tenças da linguagem objeto, a fun de adquirirem significado, têm que ser redutíveis a sentenças de dados sensíveis. 7 Podemos por meio dessa definição caracterizar Berkeley como um fenomenalista sem qualquer hesitação. Uma "cereja," diz ele, "nada mais é do que um agregado de impressões sensíveis, ou de idéias percebidas por vários sentidos" (c f. Diálogos, p. 81 ). Ao mesmo tempo, nós somos autorizados a concluir que Kant não é um fenomenalista. Isso porque, segundo ele, o objeto real não é constituído inteiramente a partir de dados sensíveis, isto é, ele não é uma mera coleção de idéias Berkeleianas. Ele é, na verdade, constituído a partir de condições a priori intelectuais e sensíveis forneci­das pelo sujeito. Se insistirmos em rotular Kant de fenomenalista, então devemos modificar o sentido do termo "fenômeno" em Kant, ou consi­derar que a noção kantiana de "fenômeno" ou de objeto sensível é muito diferente da noção Berkeleiana.

Ora, qual a vantagem filosófica de se distanciar Kant de Berkeley? A resposta a tal pergunta pode ser encontrada mediante remissão à maneira pela qual tais filósofos lidam com o critério de verdade. Já mostrei que ambos possuem o mesmo critério, a saber, a coerência e a regularidade dos objetos da nossa experiência. Berkeley, porém, utiliza tal critério de um modo equivocado. Por não dispor da noção de que os objetos empí-

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ricos são constituídos por elementos a priori, Berkclcy só pode afi.nnar que as leis de regularidades são dadas à nossa mente juntamente com os objetos empíricos. Tais leis são por nós encontradas em tais objetos e assimiladas no decorrer de nossa experiência, isto é, elas são estabele­cidas por meio de um conjunto de proposições empíricas. O problema dessa posição é que, através de proposições empíricas apenas, vemo-nos impossibilitados de explicar a regularidade do mundo exterior. Como Hurne tão oportunamente observa, não há como justificar nossa experi­ência mediante certas leis ou princípios que são eles mesmos baseados na experiência. (Cf., por exemplo, Investigação, §22.)

Em Kant, no entanto, a coerência e a regularidade do mundo exterior é tratada de um modo bem diferente. A aprioridade do espaço e do tem­po permite-lhe estabelecer a estrutura geral dos princípios que regem o mundo empírico. Mais exatamente, tal estrutura deve ser considerada como constitutiva da experiência e não, pace Berkeley, simplesmen­te descoberta a partir dela. Do mesmo modo, por meio de sentenças empíricas somente não é de modo algum possível decidir o valor de verdade de sentenças não-empíricas, pois sentenças empíricas precisam conforma-se elas mesmas a uma estrutura estabelecida por regras a pri­ori (cf. Walker 1985, pp. 111-2). Através da observância das condições subjetivas a priori, então, urna certa classe de sentenças ou princípi­os não-empíricos que governam o mundo empírico é constituída sem qualquer referência a sentenças empíricas. De fato , os primeiros, no final das contas, fornecem as condições para a determinação do valor de verdade das últimas (cf. B 273). Ao mesmo tempo, se as sentenças não-empíricas devem ser mais do que apenas um conjunto de princípios lógicos, então e las devem ser não-analíticas. Em termos kantianos, elas devem ser princípios sintéticos a priori, que são também chamados de "princípios do entendimento puro" (cf. B 790).

Com isso em mente, creio ser possível, mediante investigações poste­riores, entre outras coisas corrigir parte dos comentários kantianos sobre Berkeley. Como já foi dito, este último possui sim um critério de verda­de. Nesse sentido, é incorreto dizer, como faz Kant, que Berkeley não o possui (cf. A 375). Entretanto, o que Kant está rea lmente querendo

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dizer é que tal critério é inútil numa doutrina que considera o espaço e o tempo como empíricos. No interior da doutrina filosófica de Berkeley, tal critério não pode servir de base para uma concepção consistente do mundo exterior.

5. A Intuitividade e a ldealidade do Espaço e do Tempo

Outro importante fator que impede muitos comentadores de percebe­rem as diferenças entre o idealismos kantiano e berkeleyano consiste na incompletude da resposta de Kant. Isso porque a tese da aprioridade, por si só, não fundamenta o idealismo transcendental. Para se obtê-lo, é necessário recorrer igualmente à tese da intuitividade do espaço e do tempo. Permita-me apresentar de modo breve o argumento kantiano so­bre a intuitividade do espaço e do tempo. Minha preocupação a partir de agora é a de complementar a resposta kantiana a Berkeley, aprofundada e esclarecida nos itens anteriores. Além disso, minha análise dos textos kantianos possibilitará uma avaliação da posição mais influente do ide­alismo transcendental, a saber, a posição de Strawson de que a tese da intuitividade do espaço e do tempo são insustentáveis.

Kant primeiramente aconselha-nos a considerar os objetos como in­teragindo dentro de uma estrutura espacial comum. Se eu concebo os objetos do meu quarto de estudo como formando uma coleção de ele­mentos contíguos, atrás ou na frente, ao longo, acima ou abaixo, uns dos outros, eu tenho que pressupor que todas essas interações têm lugar dentro de um único sistema espacial. A alternativa seria considerar cada um desses objetos como pertencentes a diferentes domínios espaciais. Nesse caso, porém, eles não compartilhariam de nenhuma característi­ca comum a partir da qual eles pudessem estabelecer relações entre si. Assim, é razoável dizer que, para Kant, é inconcebível que elementos pertencentes a sistemas de configuração espacial supostamente diferen­tes entre si possam interagir. Por essa razão, temos que pensar o espaço como uma unidade que preenche um padrão de relações que os obje­tos estabelecem entre si (cf. B 39). O mesmo raciocínio aplica-se ao tempo. Não podemos consistentemente conceber objetos que obedecem

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ordenações temporais supostamente diferentes umas das outras e, con­comitantemente, tomá-los como exigindo relações de simultaneidade, precedência e sucessão entre si. Assim, a ordem temporal também deve ser concebida como unitária ( cf. B 47). O sistema de relações espaço­temporais tem que ser pensado como abarcando todas as ocorrências ou estados de coisas possiveis. Isso sugere que, em qualquer ocorrência ou qualquer estado de coisas que possamos conceber, esse sistema unitário tem de estar pressuposto.

Assim, uma vez que, segundo a tese da aprioridade, a concepção de objeto pressupõe o espaço e o tempo, e uma vez que, de acordo com a tese da unidade acima apresentada, qualquer região do espaço na qual encontramos objetos e qualquer comprimento de tempo através do qual os objetos perduram, tem que ser parte de um único sistema de relações espaço-temporais, pode-se concluir que as partes constituintes desse sis­tema espaço temporal pressupõem esse mesmo sistema, e não vice ver­sa.8 Por isso, Kant afirma que o sistema de relações espaço-temporais deve ser considerado como precedendo as partes espaço-temporais. Se desejamos representar uma certa quantidade de espaço, por exemplo, o Shopping Eldorado em São Paulo, não há outra maneira de fazê-lo se­não pensando-o como rodeado por mais espaço. O mesmo se dá com relação a um perímetro maior, por exemplo, a Universidade de São Pau­lo. Quando pensamos nela, está pressuposto que tal área se apresenta cercada por mais espaço. Ao progredirmos para áreas maiores, como a Grande São Paulo, o Estado de São Paulo, etc., percebemos que o pensa­mento de uma extensão fin ita de espaço, não importa quão vasta ela seja, pressupõe o pensamento de uma ta l extensão limitada por mais espaço. Isso sugere que um fim ao espaço não é algo que, segundo Kant, possa ser concebido. Para imaginar o espaço como finito temos que pensá­lo como possuindo fronteiras ou limites e, em assim o fazendo, somos obrigados a conceber esses limites como rodeados por mais espaço ao longo deles. De acordo com Kant, é dessa forma que "o espaço é pen­sado; pois todas as partes do espaço coexistem ad in.finitum" (B 39.40). Ora, se não é possível supor que o espaço é finito, somos obrigados a pensá-lo como ilimitado ou infinito (cf. B 39). O mesmo pode ser di-

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Kant e o Caráter a Priori do Espaço 131

to com respeito à ordenação temporal. A fim de pensar num limite de

qualquer sucessão temporal finita, não importa quão longa ela seja (se

este mês, os últimos três anos, minha inrancia, etc.), temos que pensá­la como uma limitação de um único sistema tempora l (cf B 47). Kant

afirma que nossa concepção de um certo comprimento de tempo nos le­va sempre mais além, de modo que obtemos a idéia de "um progresso ilimitado da intuição" (A 25).

Com base em tais considerações, Kant afinna que as ordenações es­paciais e temporais constituem um todo unitário e ilimitado que prece­dem logicamente as suas partes. Como é de costume, ele prefere utilizar

o seu próprio jargão e afirmar que espaço e tempo são "formas da intui­ção pura."9 Que espaço e tempo sejam puros é uma afirmação que de­corre da tese da aprioridade. Já indiquei na seção anterior que a palavra 'forma' quer dizer condição essencial' daquilo que é dado na sensibi­lidade. Do mesmo modo, o termo ' intuição' serve para enfatizar que o

espaço e o tempo não são meros conceitos. Um conceito é um totum pre­cedido por suas partes, i.e., um agregado formado das partes. O conceito 'vermelho', por exemplo, é formado através da consideração de uma ca­racterística comum de alguns objetos, por exemplo, maçãs, tomates, a capa do volume Four Quartets de Eliot, etc. Um conceito, assim visto, nada mais é do que um conector que reúne uma coleção de elementos

sob um certo traço comum a todos eles (no caso, vermelho). Pode-se portanto dizer que a ordenação espaço-temporal é pré-conceitual (cf. Melnick 1973, p. 11 ). É por isso que Kant se refere ao "múltiplo puro

da intuição," quer dizer, a um agregado de elementos pré-conceituais ( cf. B 102, passim ).

Além disso, diferentemente da intuição, o conceito tem uma forma lógica mais complexa. É um todo que não pode ser infinito em sua defi­nição (intensão), embora possa ter infinitas instâncias sob ele (extensão) (cf. AJ!ison 1983, pp. 9 1- 3). A diferença, assim, é que, enquanto o todo intuitivo tem partes infinitas nele, o todo conceitual tem partes infinitas sob ele (cf. Walsh 1975, p. 18). A razão para Kant introduzir a distinção

intuição-conceito e para a defesa enfática do caráter intuitivo da estru­

tura espaço-temporal repousa na tentativa de reforçar a idéia de que os

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132 Marco Antônio Frangiolli

dados sensíveis aparecem-nos já espaço-temporalizados independente­mente da qualquer atividade intelectual. As conseqüências disso são, em primeiro lugar, que estamos seguros de que o objeto do mundo ex­terior não é alcançado através do mero exercício de conceitualização. Nossos recursos intelectuais sozinhos jamais podem nos dar o objeto. A sensibilidade também deve ser levada em conta. Em segundo lugar, e o que é crucial para a nossa discussão com o fenomenalista, podemos rejeitar a idéia de uma apreensão puramente receptiva do objeto de co­nhecimento sem qualquer trabalho do entendimento. Contrariamente ao que pensa o fenomenalista, o objeto não é dado já constituído na sensi­bilidade. Ele é produzido pela nossa capacidade discursiva. Os dados sensíveis constituem apenas a matéria bruta do conhecimento à espera da síntese intelectual.

Dentre os opositores da abordagem kantiana sobre o caráter intuiti­vo do espaço e do tempo, podemos destacar Walker. Ele afirma que os argumentos de Kant sobre a intuitividade do espaço e do tempo "são completamente inadequados; de fato, e les dificilmente podem ser vis­tos como argumentos ... " Para ele, Kant apresenta-a "sem urna defesa exaustiva." Mas a complexidade da questão exige uma defesa; afinal, "[q]ue não possamos imaginar mais do que um espaço e mais do que um tempo não é uma coisa óbvia" (Walker 1978, p. 43). Contra Kant, Walker toma de empréstimo um exemplo de Quinton, que conta a estó­ria de um mito sobre urna pessoa que, após ter vivido um dia normal na Inglaterra, vai dormir e se dá conta de que acordou à beira de um lago tropical. Depois de viver ali durante todo o dia, essa pessoa adormece e acaba acordando na Inglaterra novamente. Temos, assim, a concep­ção de uma única pessoa vivendo em dois sistemas espaciais distintos, o que implica ser de fato possível se pensar em dois espaços distintos entre si. Walker é cuidadoso ao lapidar o exemplo. Ele indica que "os dois mundos ocuparão dois espaços distintos somente se não houver, em princípio, nenhuma maneira de viajar através do espaço de um mun­do para outro." Do mesmo modo, é concebível que as leis da natureza sejam diferentes nesses espaços. Assim, "é realmente difícil resistir à

conclusão de que uma pessoa esteja habitando dois mundos diferentes,

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Kant e o Caráter a Priori do Espaço 133

mas igualmente reais" (Ibid., p. 55).

Embora Walker proponha um exemplo similar para o tempo, vou me limitar, por urna questão de brevidade, a comentar o caso do espaço apenas. É necessário destacar que o exemplo só é concebível a partir de premissas tácitas. A conclusão de que há dois espaços distintos e reais só se justifica se formos capazes de estabelecer previamente o mundo da Inglaterra e o mundo do lago tropical como espaciais. Mas isso só pode ser feito se já tivermos a nosso dispor um conjunto de características unicamente a partir das quais algo pode ser considerado corno espa­cial. Melhor dizendo, somente se pudermos de antemão reconhecer o que conta corno espacial é que seremos capazes de classificar esses dois mundos corno espaciais. Ora, esse conjunto de características espaciais é tudo o que precisamos para descartar o exemplo de Walker. A tese da aprioridade determina que eu só posso imaginar um corpo qualquer no espaço, quer dizer, eu só posso representar esse objeto num espaço já dado enquanto condição de sua representação. Se isso for concedi­do, devemos concluir que, para podermos representar a pessoa corno estando à beira do lago tropical, recorremos inevitavelmente ao mesmo espaço por intermédio do qual nós a representamos como estando na Inglaterra. Ao mesmo tempo, a representação da pessoa à beira do lago tropical traz junto com ela a idéia de urna limitação dessa região do es­paço. O mesmo se aplica ao caso da pessoa na Inglaterra. Corno mostra Kant, porções do espaço só podem ser pensadas corno possuindo limi­tes, fora dos quais não pode haver nada senão mais do mesmo espaço. Se assim é, o lago tropical e a Inglaterra devem ser pensados como ro­deados por mais partes de um único e mesmo espaço, ou de uma mesma realidade. Portanto, mesmo que eles não exibam um ponto de contato determinado, ele está pressuposto e deve ser encontrado à medida em que "progredimos em nossa intuição." Desse modo, não importa quan­tos espaços supostamente alternativos possamos imaginar; a concepção dessa pluralidade estará sempre subordinada à concepção de wn único espaço que toma possível a determinação de cada um dos espaços en­quanto tais. Nesse sentido, se analisarmos os pressupostos implicados no exemplo, o ponto de vista de Walker serve mais para apoiar Kant do

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134 Marco Antônio Frangiotti

que para rivalizá-lo. ''Nossa exposição," diz Kant,

estabelece a realidade, isto é, a validade objetiva do espaço com respeito a tudo que possa ser representado a nós externamente como objeto, mas também ao mesmo tempo a idealidade do espaço com respeito às coisas quando são consideradas em si mesmas por meio da razão, isto é, sem levar em conta a constituição de nossa sensibilidade. (B 44)

Se o espaço e o tempo não são deriváveis da experiência, pois a experi­ência não pode ser pensada sem eles (tese da aprioridade), e se espaço e tempo são formas a priori da nossa sensibilidade (tese da intuitividade), então a idéia de uma ordem espaço-temporal isenta da noção de sujeito não pode caracterizar o objeto. Isso quer dizer que a noção de sujeito de­ve ser vista como necessariamente pressuposta nessa ordem e não, como querem o fenomenalista e o realista transcendental, independentemente dela. Obviamente, precisamos ter cuidado neste momento. Ao afirmar­mos que a noção de sujeito está necessariamente ligada às noções de espaço e de tempo, não devemos interpretá-la no sentido empírico, quer dizer, como se referindo aos dados de um sujeito individual (empírico). Devemos, antes, entender a afirmação acima no sentido transcendental: pensar as noções de sujeito e de ordem espaço-temporal como neces­sariamente interligadas significa simplesmente assumir o ponto de vista idealista transcendental segundo o qual o objeto do conhecimento deve ser visto como submetido às nossas condições de experiência e a forti­ori como encontráveis dentro do domínio da experiência possível. Ora, essa nada mais é do que a tese da idealidade do espaço e do tempo (cf. B 52). Eles devem ser vistos como contribuições do sujeito, ou como condições subjetivas sine quibus non do conhecimento (cf. B 244-5; cf. também A 127). Como Kant afirma, "somente do ponto de vista huma­no é que podemos pensar o espaço."10 A ordem espaço-temporal dos objetos "somos nós que introduzimos" (A 126). Disso se segue que não é possível sustentar a tese da aprioridade sem ao mesmo tempo susten­tar a tese da idealidade. É plausível supor que Kant omita as teses da intuitividade e da idealidade em sua discussão com o fenomenalismo porque ele, de um lado, já as pressupõe e, de outro lado, porque ele

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Kant e o Caráter a Priori do J::spaço 135

acredita que a mera ênfase na tese da aprioridade já basta para revelar a

incongruência da proposta fenomenaJista. Tendo em vista que as teses da aprioridade, intuitividade e idealida­

de estão necessariamente interligadas, a interpretação de Strawson sobre Kant deve ser impugnada. Ele concede que espaço e tempo sejam a pri­ori. No entanto, continua ele, isso não implica, como o idealista trans­cendental defende, que eles estejam 'em nós' (cf. Strawson 1966, p. 49). Ao invés disso, Strawson propõe o que ele denomina de 'interpretação austera' de 'a priori ', de acordo com a qual podemos nos referir a ''um elemento estrutural essencial em qualquer concepção de experiência que

possamos tomar inteligíveis a nós" (Jbid., p. 68). A noção de experiên­

cia, ele afirma, "parece ser verdadeiramente inseparável do espaço e do tempo" (Ibid., p. 50). A idéia de urna experiência não espaço-temporal é simplesmente ininteligível, pois a experiência é sempre sucessiva e espacialmente determinada. Surge então a questão, no entanto, sobre se o sistema espaço-temporal pode ser considerado à parte a experiên­cia. Strawson não esclarece esse ponto. Ele não parece se interessar por ele. Mas ele é fundamental para o tema em questão. Se, de um lado, o espaço e o tempo puderem ser pensados independentemente da no­

ção de experiência, então os momentos de tempo e as partes do espaço devem ser concebidos, respectivamente, como sucedendo e estando ao lado uma da outra à parte o pensamento de um sujeito do conhecimento.

Isso requereria a assunção de uma ordem espaço-temporal absoluta, i.e., real, auto-regulável e hermética. Se, por outro lado, espaço e tempo não puderem ser pensados sem a noção de experiência, então somos levados a admitir que a posição idealista transcendental de espaço e tempo é o caso, i.e., que espaço e tempo são condições subjetivas da experiência de objetos.

É oportuno neste momento relembrarmos a abordagem newtoniana do espaço e do tempo, pois ela representa um grande exemplo de urna

concepção de espaço e tempo absolutos. De acordo com Newton, o

tempo é uma entidade que, por sua própria natureza, flui uniformemen­te sem relação a nada externo a si mesmo, subsumindo sob si mesmo toda a ocorrência no universo. Ele também é independente de tudo, de

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136 Marco Antônio Frangiotti

modo que, enquanto as coisas mudam, o tempo é imutável. Ele é, assim, indiferente às coisas mutáveis e 'precede' não apenas as coisas mas tam­

bém as quantidades temporais. O espaço absoluto é descrito de modo similar. Ele é descrito como uma entidade que, pela sua própria nature­za, permanece imutável e fixo, sem relação a nada externo a si mesmo, subsurnindo sob si mesmo toda parte de espaço no universo (c f. Newton 1980, p. 8).

Ora, se levarmos em conta que nada pode ocorrer fora do espaço e do tempo, então a experiência teria que ser pensada como ocorrendo por in­termédio deles. Desse modo, a experiência poderia ser concebida como inseparável do espaço e do tempo, mas o inverso não seria necessaria­

mente o caso. Nesse sentido, os conceitos de espaço e tempo absolutos harmonizam-se perfeitamente com a concepção strawsoniana de que a experiência nada é tão logo abstraímos do espaço e do tempo. Strawson parece, assim, deixar de lado um ponto crucial em sua abordagem. A questão não é somente se espaço e tempo podem ser classificados de modo austero como noções a priori que estão embutidas em nossa con­cepção geral de experiência. A questão é também se espaço e tempo são

entidades transcendentalmente reais. O objetivo de Strawson é o de se livrar da tese da idealidade do es­

paço e do tempo. Em assim procedendo, contudo, ele inadvertidamente incentiva a concepção de uma estrutura espaço-temporal que se ajus­ta perfeitamente às noções de espaço e tempo absolutos. Entretanto, a principal objeção de Kant a essas noções é que as posições de objetos no espaço c tempo absolutos não são por definição perceptíveis (B 245). Não há como ter acesso à posição correta dos objetos no espaço e tempo absolutos, por meios dos quais quaisquer objetos podem ser determina­dos sem maiores problemas. O objeto não aparece com a sua posição espacial absoluta j á determjnada nem tampouco existe um procedimen­

to infalível por meio do qual se possa medir a passagem dos momentos

no tempo absoluto, como um relógio eterno no pulso de Deus. 11

Melhor dizendo, para o idealista transcendental, as noções de espaço e tempo absolutos violam a idéia da unidade da intuição. De acordo com

ela, como vimos, o sistema espaço-temporal é um todo que precede as

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suas partes. Isso é o mesmo que dizer que esse sistema é logicamente anterior ''em minha mente a todas as impressões reais" dadas na sensi­bilidade (Prolegômenos, em Ak. IV pp. 283-4). Ora, espaço e tempo absolutos não podem ser pensados da mesma forma, pelo simples fato de que eles não são dados na experiência. Disso se segue que, se acei­tamos as teses da aprioridade e da intuitividade da ordenação espaço­temporal, temos de descartar as noções de espaço tempo absolutos. Ao mesmo tempo, não é possível sustentar a tese da aprioridade e deixar de lado a tese da intuitividade, na medida em que a primeira sozinha é plenamente compatível com a noção realista transcendental de espaço e tempo absolutos, a qual é repudiada por Kant.

Na verdade, Strawson se esforça para se livrar da tese da idealidade porque ele interpreta a expressão kantiana 'em nós' como se referin­do às nossas mentes individuais. Mas o que Kant quer dizer com ela é simplesmente 'aquilo que está subordinado às condições da experiên­cia possível'. Essa distinção nada mais é do que aquela apontada por Allison entre uma consideração empírica e uma transcendental: a tese da ideal idade deve ser tomada desde um ponto de vista transcendental e não empírico (Allison 1983, pp. 240ft). Strawson não é capaz de ofere­cer uma abordagem adequada das duas maneiras pelas quais a afirmação em questão deve ser considerada. Ele então rejeita a tese da idealidade porque ele confunde o sentido empírico e o sentido transcendental. Em conseqüência disso, ele acaba supondo uma aproximação entre Kant e Berkeley que, na verdade, é equivocada:

[S]omos deixados com o resultado de que as aparências, i.e., nossas representações ou percepções temporalmente organizadas, realmente ocorrem no tempo, enquanto o que somos obrigados a representar como corpos no espaço são realmente nada à parte essas próprias representa­ções. Nesse caso, a diferença entre o idealismo de Kant e o de Bcrkeley não é, afinal de contas, tão grande como ele supõs."12

Além disso, a conclusão a que chegamos acima, malgré Strawson, impe­de-nos de supor erroneamente uma terceira alternativa, freqüentemente chamada de 'alternativa negligenciada'. Ela originar-se-ia da possibili­dade de que espaço e tempo possam ser ideais e que as coisas em si mes-

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138 Marco Antônio Frangiolli

mas possam por mera coinc idência ser espaciais. Como Kemp Smith faz notar, a noção de que o espaço é ideal não exclui a possibilidade de que

ele também possa ser "uma propriedade inerente às coisas em si mes­mas." 13 Ora, se foi já mostrado que espaço e tempo são formas da nossa sensibilidade, somente o que for apreendido através dos sentidos é que terá de ter características espaciais. Mas a coisa em si mesma, por de­

finição, não está disponível na sensibilidade. Portanto, não faz sentido supor que a coisa em si mesma seja espacial (e temporal). Em swna, espaço e tempo não são dependentes dos dados da sensibilidade (tese da aprioridade); não são entidades absolutas, mas formas da sensibili­dade (tese da intuitividade), e não são aplicáveis à coisa em si mesma, mas têm que ser pensadas como contribuições do sujeito no processo de aquisição do conhecimento (tese da idealidade).

6. Conclusão

Hoje em dia, a teoria do conhecimento de Kant ainda exerce influências marcantes, principalmente no que se refere à discussão sobre o ceticis­mo. Putnam talvez seja o exemplo mais notório de um kantiano tardio, pelo menos em uma de suas muitas fases fi losóficas. Em sua luta contra o realismo metafisico, ele chega a apresentar o seu 'realismo interno' como um "kantianismo desmitologizado," sem "coisas em si mesmas e egos transcendentais" (Putnam 1978, pp. 5-6). Um retomo aos textos de Kant, assim como uma reavaliação da eficácia e consistência de seus argumentos, como a que procurei realizar nesta pesquisa, pode lançar luzes em inúmeros debates epistemológicos contemporâneos e contri­

buir para o enriquecimento das discussões fi losóficas relativas aos temas ligados ao conhecimento e à sua legitimidade.

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Notas

1 Principies, §98. Para uma defesa da posição berkeleyana do tempo, ver Tip­ton 1994, p. 275 ff. 2 Cf. B 38 para espaço e B 46 para o tempo. 3 Com um propósito deferente do meu, Fõrster levanta um ponto levemente similar (cf. Fõrster 1985, p. 297). No entanto, ele parece desprezar o fato de que a doutrina dos sentidos externo c interno é baseada na tese da aprioridade do espaço e do tempo. Por isso, ele erroneamente diz que a concepção de uma sensibilidade dupla é a espinha dorsal da discórdia entre Kant e Berkeley. 4 Disso se segue que, de acordo com Berkeley, nós temos apenas um sentido interno, pois a ordem espacial (enquanto forma do sentido externo) é em última instância reduzida à ordem temporal (enquanto forma do sentido interno). 5 Carta a Beck de 4 de Dezembro de 1792, in Zweig 1967, p. 198. 6 Essa interpretação foi originariamente defendida por Allison (cf. allison 1983, pp. 16-9). 7 Esta definição é baseada em Bennett (c f. Bennett 197 1, pp. 136-7). 8 Cf. B 39 para o espaço e B 46 para o tempo. 9 Cf. B 40 para o espaço e B 48 para o tempo. lO B 42; cf. B 51 para o tempo. 11 Cf. Guyer 1987, p. 170; cf. Walsh 1969, p. 160. 12 Strawson 1997, p. 251. Essa idéia já se encontra no The Bounds of Sense: "Kant, como um idealista transcendental, está mais próximo de Berkeley do que ele pensa" (Strawson 1966, p. 22). 13 Smith 1984, p. 113; cf. também Parsons 1992, p. 84 e Guyer 1992.

marcofk@mbox l.ufsc.br

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OS PRINCÍPIOS DA INTERIORIDADE E DA EXTERIORIDADE NO ESTUDO DA PERCEPÇÃO

Sônia Ribeiro Morais lJNESP - Campus de Marília

A proposta deste trabalho é desenvolver uma análise crítica dos prin­cípios de interioridade e exterioridade no estudo da percepção. Neste

sentido, inicialmente, delimitaremos a concepção destes princípios; a seguir, examinaremos o campo em que eles estarão atuando, isto é, a percepção segundo a concepção intemalista de Descartes ( 1973) e Rus­

sell ( 1954) e externalista de Hume (1973) e Gibson (1979). Finalmente, apresentaremos a crítica de Ryle (1949) a essas posturas.

Por princípio entendemos, como já propunha Aristóteles e os esco­lásticos, a fonte, a procedência, o ponto de partida da realidade do mo­vimento (geração) ou do conhecimento. É importante ressaltarmos que o princípio tem necessariamente de ser a própria origem não podendo ele mesmo originar-se de outro, principalmente de outro de sua espécie ou categoria.

Os princípios de interioridade e exterioridade, nesse trabalho, re­ferem-se ao problema do conhecimento perceptual, apontando para a

questão sobre os fundamentos que possibilitam o conhecimento. Numa perspectiva geral, podemos dizer que os filósofos que têm como parâ­metro o princípio internalista, argumentam que estão na razão, no pen­samento ou na mente os dados inquestionáveis da realidade, seja como sujeito psicológico, cognitivo ou metafísico. O conhecimento percepti­

vo que se estabelece como um entre os outros tipos de conhecimento, por exemplo, o matemático, tem o ato da percepção como dependente das estruturas dadas a priori pelo entendimento que o limitam e organi­zam.

Outra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 143- 156.

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Já as filosofias apoiadas no princípio externalista têm no objeto exte­rior ao sujeito uma realidade a ser conhecida. O mundo é transcenden­te, ontologicamente falando, ao sujeito cognitivo. Nesta perspectiva, a percepção não é como uma apreensão subjetiva, mas uma apreensão im­pessoal em que o objeto se reflete como um todo na ação expressa pelo sujeito. A percepção, segundo os empiristas ou externalistas, possibilita o primeiro contato do homem com o mundo externo. Seja esse indi­víduo um mero espectador ou um pesquisador criterioso, sua imediata relação com o meio será perceptiva.

Essa experiência perceptiva, que nos parece tão evidente num pri­meiro momento, não é de fácil compreensão e muito menos fornece uma única resposta inquestionável a respeito da natureza do conheci­mento obtido através da percepção.

Na Filosofia Moderna, esta tendência em considerar o conhecimento proveniente da percepção como muito ou pouco significativo caracteri­zou a divisão entre os empiristas e racionalistas, realistas e idealistas. Estes posicionamentos antagônicos fundamentam-se, entre outros, nos princípios da interioridade e da exterioridade. Questiona-se, portanto, a localização do mundo com relação ao suj eito cognitivo, seja esta relação de transcendência ou imanência.

Este problema gnoseológico, referente aos princípios internalista e externalista, tem-se delineado de forma mais evidente no confronto en­tre os idealistas e os realistas. René Descartes é o representante mais autêntico da postura internalista que delineia esta linha do pensamento. Ao questionar e recusar os sistemas que constituíam o conhecimento de então, ele buscava um método que levasse, por uma via legítima, à des­coberta de verdades fundadas em idéias claras e distintas. Esse método rigoroso, arduamente procurado por Descartes, surge a partir de sua dú­vida não só sobre os sistemas filosóficos, mas sobre a validade de seus próprios pensamentos.

A crítica de Descartes ao conhecimento vigente era dirigida à in­coerência e à falta de base racional dos conteúdos que compunham as " letras" ou humanidades. Para ele, a cultura acadêmica, que consistia em leituras eruditas fundamentadas na metafisica aristotélica, era base-

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ada em idéias que continham em si contradições e pouca consistência; idéias sem qualquer critério demonstrativo. Quanto aos mais diversos pensamentos que lhe ocorriam, ao analisá-los, observava que apenas os referentes aos elementos da matemática (figuras e números) apresenta­vam clareza e identidade próprias, independentes de qualquer experiên­cia subjetiva.

Porém, embora a matemática se caracterizasse pelo rigor e distinção de idéias, era necessário descobrir o método que articulasse as leis da matemática com as leis da natureza de tal forma que unificasse todos os campos do conhecimento.

Como o ponto de partida de Descartes era a construção de bases sóli­das para a aquisição e o desenvolvimento do conhecimento, ele encontra na dúvida o método radical de análise e construção de um sistema filo­sófico verdadeiro. Partindo da verificação de suas próprias idéias, Des­cartes distingue as que são obscuras e duvidosas das que aparecem de forma clara e permanente. No primeiro caso, temos as idéias dos obje­tos físicos que nos são dadas pelos sentidos e são individuais e mutáveis. No segundo, as idéias dos elementos da matemática que se apresentam sempre iguais e nítidas para todos os indivíduos. Isto significa que es­sas idéias não estão sujeitas à subjetividade das experiências sensíveis. Elas, na verdade, formam a base inata do pensamento.

Se Descartes mantém o conhecimento do mundo físico como secun­dário, já com o pensamento o mesmo não ocorre. Sendo a dúvida o ponto de partida, ela implica necessariamente a existência do pensamen­to para que possa viabilizar-se. Inclusive, de sua máxima "Se duvido, penso. Penso, logo existo" Descartes infere que a existência do sujeito cognitivo está condicionada ao pensar.

Temos então, na concepção de Descartes, o bem conhecido dualismo corpo e alma. O corpo que se constitui enquanto substância material, extensa, com características de autômato; e a alma, substância imaterial, não extensa, que constitui a fonte da racionalidade e do conhecimento por excelência. É apenas na mente que se pode buscar o conhecimento. O conhecimento proveniente da experiência, quando ocorre, pode nos remeter a erros.

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Um outro pensador que também parte do princípio intemalista co­mo condição para o conhecimento é Russell. Porém, este fllósofo não separa mente e corpo. Ele argumenta que o dualismo tradicional é um erro conceitual que tem como premissa a existência de duas substâncias distintas e necessárias para que haja movimento e pensamento, ou seja, a substância corpórea e a substância mental.

Para Russell (I 954) o pensamento proveniente de experiências per­ceptivas é mais seguro que as imagens que temos dos objetos externos que acreditamos serem como são. Na medida que a percepção nos per­mite algum conhecimento do mundo externo, este não resulta de uma revelação direta, como alguns acreditam. De acordo com sua argumen­tação, na fisica, o próprio objeto não passa de uma ilusão quanto ao seu aspecto primitivo, ou seja, aquele que vemos cotidianamente em relação ao qual inferimos dados, falsos ou verdadeiros. Os objetos são consti­tuídos de elétrons e prótons que nada se parecem com o que vemos.

Para que um objeto seja percebido, são exigidos certos critérios fisi­cos (como a dimensão do objeto) e fisiológicos (os órgãos dos sentidos do perceptor e seu perceptivo). Russell (1954, p. 89) comenta que nos­sos sentidos resultam de uma "seleção acidental" entre outros proces­sos fisicos na "luta pela existência." Deste modo, suprimos os limites através dos "perceptivos" internos que nos fornecem estruturas básicas subjetivas tais como a forma num espaço e a ordem no tempo, o que vem facilitar o trabalho dos sentidos.

Para Russell, o que há de mais indubitável com relação ao nosso co­nhecimento do mundo externo é o que ele denomina de "perceptivo." Os perceptivos se encontram em nossa cabeça. Eles são privados e contêm nossas informações particulares do mundo fisico, inclusive a noção de espaço que cada indivíduo possui.

É importante distinguirmos aqui os conceitos de espaço fisico e de espaço perceptivo. O espaço fisico para Russell (1954) é um conceito "neutro" e "público," resultante de inferência e construção a partir do espaço perceptivo que é individual. O espaço perceptivo, por sua vez, sendo individual é produto de experiências sensíveis interpretadas, tidas como ocorrências "mentais." Russcll é taxativo quanto à definição de

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jisico e mental. Físico, para ele, é o que se refere à fisica, ou às ciências naturais; mental é o objeto de estudo da psicologia. Mas, se o percep­tivo nos dá um conhecimento fundamentado em suas interpretações das ocorrências no mundo físico e essas interpretações podem não ser corre­tas, entretanto, é preciso pressupor a ocorrência de algo que nos chame a atenção. Este algo é a garantia que o perceptivo não nos engana. Por isso, quando nos damos conta dos erros cognitivos, resultantes da ex­periência perceptiva, não demolimos a própria experiência (de vermos algo ou ouvirmos algo), mas questionamos a nossa interpretação a seu respeito.

Desta forma, como o que vemos no mundo real não é o que a físi­ca afirma, então, não há qualquer dado fornecido por nossa percepção que garanta o conhecimento do objeto real estabelecido por esta ciên­cia. Contudo, não podemos negá-los também. Assim, se a física pode ser considerada um campo de conhecimento verdadeiro, o resultado de nossa percepção, ou seja, os processos fisicos que percebemos, não pas­sam de subjetividades. Contudo, é "o único ponto de partida possível para nosso conhecimento do mundo físico," diz Russel (1954, p. 162)

Em contraposição aos pensamentos de Descartes e Russell até aqui citados, temos aqueles que tomam o conhecimento como resultado de um contato do homem com o mundo concreto em que está inserido. A percepção, neste caso, não seria uma ilusão, um erro cognitivo ou pouco preciso, mas o primeiro momento em que há um processo consciente de entendimento e estruturação do conhecimento propriamente dito. Neste caso, o princípio que dá sustentação a esta teoria é o da exterioridade no qual o objeto real a ser conhecido é exterior ao sujeito cognitivo.

Entre os representantes desta linha de pensamento ressaltamos os teóricos da escola da percepção direta que têm como líder Gibson (1979). Porém, antes de começarmos a análise da teoria gibsoniana, achamos interessante e ilustrativo comentarmos a lilosofia de Hume que também expressa de forma clara as bases do princípio externalista.

Hume (1973) separa em dois grupos tudo o que é possível conhecer. No primeiro grupo estão as impressões fornecidas pelos sentidos, sendo estas internas (percepção de um estado psicológico, por exemplo) ou ex-

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temas (como a visão de um objeto). Já o segundo grupo é formado pelas idéias que são representações da memória e da imaginação resultantes da filtragem das impressões sensoriais. Na verdade, as idéias seriam co­mo cópias (algumas vezes aumentadas ou diminuídas) semelhantes às impressões provenientes de associações por semelhança, contigüidade espacial e temporal e causalidade.

O conhecimento empírico para Hume ( 1973) é constituído pela inte­ração do indivíduo com o meio, interação esta que gera as impressões sensíveis. Ou seja, o conhecimento de fatos dar-se-ia mediante a experi­ência sensível do indivíduo com o meio, de forma direta e sendo aceita como real. Além do mais, qualquer mudança possível nos dados dare­alidade não seria motivo de contradição lógica, pois os fatos não seriam passíveis de demonstração lógica, já que não possuem urna estrutura es­pecífica à qual devem se ajustar. Podemos citar como exemplo a cor das rosas que embora variem não se contrapõem; ou seja, as rosas não deixam de pertencer a uma determinada classificação de flores devido a alteração de sua cor.

Porém, Hume (1973) não se atém às explicações do conhecimento empírico. Ele discute sobre a existência do conhecimento que se com­põe de relações entre idéias caracterizadas como entes de razão, cujas relações lógicas desdobram-se através de um controle racional. Neste caso temos as figuras geométricas como o triângulo, que implica a exis­tênc ia dos ângulos, e os conceitos como o de movimento, que pressupõe tempo e espaço. Este conhecimento nem sempre requer confirmação de sua veracidade na realidade física, pois se suje ita a demonstração dedu­tiva lógica.

Um fator importante decorrente do posicionamento de Hurne a favor do princípio extemalista é sua problematização da relação de causa e efeito como função demonstrativa do conhecimento. Partindo da aná­lise de fenômenos naturais, ele conclui que normalmente percebemos uma conexão causal entre dois fenômenos sensíveis por simples hábito de associação que se estabelece entre um primeiro que antecede no tem­po um outro que vem sucedê-lo, gerando assim um vínculo. Contudo, para Hume, este vínculo entre fenômenos é subjetivo, ligado as nossas

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crenças e expectativas.

Uma conseqüência desta teoria é a impossibilidade de um conheci­mento demonstrativo da ciência da natureza. Porém, de acordo com Hume, esta ciência apenas existiria devido à necessidade de uma or­dem que garantiria a sobrevivência do homem. Portanto, esta ciência fundamenta-se numa necessidade fisio-biológica e não numa estrutura lógica necessária.

Esta critica de Hume à causalidade como garantia do conhecimento tem o objetivo de desmistificar as garantias das verdades inquestioná­veis da metafisica que se fundamentavam na primeira causa geradora do mundo e nas idéias inatas, causa inicial de todo o conhecimento sub­seqüente.

Em resumo, sem nos prendennos a detalhes, podemos afirmar que Hume fundamenta sua teoria no princípio externalista. Duzentos anos após Hume teremos outro representante expressivo do princípio externa­lista no campo da cognição que dará sustentação empírica a sua teoria. Este pesquisador é Gibson. Segundo Gibson (1979), existe uma inte­ração real, não mediada por representações, entre o organismo humano e o mundo externo graças à própria constituição de ambos. Conforme ressalta Lombardo ( 1987), Gibson de tende uma postura ecológica co­nhecida como "princípio de reciprocidade." Por reciprocidade Gibson entende as diferentes realidades que se sustentam mutuamente; ou seja, o mundo e o sujeito constituem um sistema integrado, cujos elementos (mundo e sujeito) interrelacionam-se como complementares. De acor­do com esta concepção os órgãos sensoriais, devido às suas estruturas podem detectar informações. Por sua vez, estas informações estão dis­poníveis no mundo para serem percebidas.

As constantes mudanças sofridas pelo organismo humano ocorrem graças a sua necessidade de adaptar-se ao meio para sobreviver e às in­formações que recebe permanentemente. Para que o organismo apreen­da as informações não há necessidade de interpretações, processamen­tos, esquemas ou estruturas. Segundo Gibson ( 1979), elas estão dispo­níveis numa relação direta entre sujeito-ambiente em que há inúmeras informações potencialmente acessíveis à estimulação sensorial. No ca-

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so da visão, o próprio mundo exterior fornece a informação necessária e precisa ao organismo, pois um padrão de luz ao atingir os órgãos da visão contém toda a informação visual do meio ambiente, permitindo, assim, que o organismo forme a noção de espacial idade dos objetos.

A esse padrão de luz captado pela visão, Gibson denomina de ma­triz óptica. Entre as informações da matriz óptica temos o gradiente de densidade da textura que permite supor com bastante precisão o tama­nho, por exemplo, de uma toalha apenas pela observação de sua textura, não necessitando de cálculos mais elaborados. Como também, o padrão de informações do fluxo óptico que fornece, por exemplo, a um piloto, direção, velocidade e altitude para a aterrissagem do avião. Esses dois tipos de padrão de informações (os gradientes de densidade da textura e os do fluxo óptico) são próprios da matriz óptica e fornecem ao agente um arranjo (layout) espacial exato. Da mesma forma, o movimento do seu corpo permite-lhe uma maior exploração visual, absorvendo infor­mações que resultam na formação da base da percepção cotidiana.

Uma das questões enfatizadas por Gibson, segundo Gardner (1995), é a da constância das percepções, embora constituídas a partir de sen­sações variantes. De acordo com seu ponto de vista, essa constância da percepção, por exemplo a óptica, é proveniente da própria realidade, sem qualquer tipo de construção ou dedução.

O ponto central da análise de Gibson ( 1979) a respeito da relação organismo/ambiente está na noção de possibilidade (affordances). Por possibi lidade compreende-se a capacidade potencial de um organismo para uma determinada ação ou ocorrência quando frente a um objeto em determinada situação específica. Ou seja, é a predjsposição do or­ganismo a uma atividade, desde que os fatos ocasionais sucedam. Daí inferir-se que o organismo possui capacidade de ação independente de interferências psicológicas ou de esquemas mentais; como também os objetos têm significados na medida que estimulam a capacidade dos or­ganismos.

Portanto, affordance é um conceito relaciona!; isto é, depende tanto da disponibilidade do objeto como do organismo; ocorre nesta relação ação/percepção. Podemos dizer, que só percebemos porque agimos e

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agimos porque percebemos. A possibilidade (ajjordance) não é um con­ceito subjetivo. Ela remete à relação objetiva das possibilidades do uso de um objeto, situação ou evento em relação a um organismo.

O conceito de possibilidade fornece a Gibson meios para explicar como ocorre a percepção dos organismos e o controle de suas ações no meio ambiente. Assim, podemos dizer que a relação organismo­ambiente é exclusivamente extemalista e os problemas relacionados a inferências ou cálculos simbólicos não têm qualquer significado para a percepção no sentido gibsoniano. "Consciência" para Gibson, segun­do Gardner (1995, p. 331), implica sempre "'consciência de alguma propriedade"' existente no mundo do agente.

Para os adeptos de Gibson, como Lombardo (1987), a percepção ocorre nas relações em que as "leis naturais" coordenam organismo e meio. Essas leis são, na verdade, princípios científicos que elucidam a percepção e o comportamento dos organismos em uma determinada situação. Elas resultam da observação e experimentação sobre os or­ganismos enquanto estes obtêm informações no meio ambiente e agem dentro deste contexto. Com isso a função das leis naturais está centrada nas possibilidades (o que é possível acontecer) e nas efetividades (con­dição para que uma possibilidade aconteça, se atualize) entre organismo e mundo exterior.

Por conseguinte, os fundamentos da ciência para os gibsonianos es­tão nas leis naturais e não em leis cognitivas que operam sobre as repre­sentações mentais. Para entender a percepção como também a cognição, é preciso buscar no campo da psicofisica e parcialmente na biologia e da fisica (porque lhes falta as leis de ação dos organismos) o respaldo cientifico, pois só aí encontraremos a ordem natural que coordena as re­lações agente/ser corporificado e mundo. Assim, podemos afirmar que fundamentalmente Gibson tem sua teoria apoiada no princípio externa­lista.

Em resumo, vimos até aqui as posições intemalista e extemalista a respeito da percepção. No entanto, existe uma terceira posição interme­diária que é sugerida por Ryle (1949) na qual ele acrescenta uma critica tanto à versão intemalista como à externalista. Para Ryle, a percepção

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ocorre em diferentes estágios, desde a sensação até a observação, em um situar-se no tempo e no espaço, no qual sua capacidade, pré-disposição e inclinação permitem o sujeito cognitivo agir diretamente como qualquer outro indivíduo.

A crítica de Ryle aos defensores de um princípio intcrnalista, dirige­se, principalmente, àqueles enquadrados na linha cartesiana que susten­tam a existência de um "mundo mental" independente do "mundo físi­co," no qual determinados acontecimentos como sensações, sentimentos e imagens sucederiam apenas no mental. Para Ryle, essa necessidade de um lugar especial para as sensações resulta do fato dos cartesianos pre­cisarem explicar, primeiro, por que os especialistas não percebem as sensações de dor ou prazer ao verificar qualquer parte do corpo; segun­do, como se dá a conscientização destas sensações no indivíduo que as tem.

As sensações, afirrna Ryle (1949), não possuem em sua constituição propriedades observáveis como forrna, tamanho, localização, tempera­tura, cor ou cheiro. Não pertencem ao "mundo concreto," nem são coi­sas ou episódios (ocorrências de fatos). Isso, no entanto, não impede que as pessoas tenham sensações e descrevam suas experiências atra­vés de comparações. Como também não quer dizer que estejam num "mundo mental," incorpóreo e interno ao sujeito que só ele conhece. As sensações são individuais, mas não um mistério do indivíduo.

Por outro lado, a crítica de Ryle aos defensores do princípio da ex­terioridade na percepção está ligada à Teoria dos Dados dos Sentidos que e les endossam. Segundo esta teoria, nossas sensações são dadas em ocorrências momentâneas ou fugazes que nos sucedem individualmente e que são propriedades, como objetos sensíveis, da pessoa que tem a per­cepção. Elas são produzidas peJa visão de objetos comuns, porém estes mesmos objetos são descritos como uma mistura de cores na extensão do campo visual de alguém, apesar da tentação de relacioná-la com as coisas de nosso cotidiano. Entretanto, os dados dos sentidos (que, de acordo com os extemalistas, são sensações individuais e inacessíveis a qualquer outra pessoa) não precisam ser categorizados como mentais, pois sua constituição é proveniente de condições fisicas e fisiológicas e

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não, necessariamente, psicológicas.

Para Ryle, o erro da Teoria dos Dados dos Sentidos é lógico e está

ligado a uma confusão conceitual entre os termos sensação e observa­

ção. Como ele diz, se ao vermos um objeto temos uma sensação da qual intuímos uma mistura de cores, então, a própria mistura de cores deve produzir outra sensação e assim por diante. Porque, de acordo com este

conceito, a sensação seria gerada no ato de ver algo como uma espécie de intuição de ver a própria sensação, pois é ela o objeto dos sentidos. Contudo, argumenta Ryle, embora tudo ocorra quase ao mesmo tempo, para que possamos ter uma intuição, ao vermos um objeto precisamos, primeiro, ser afetados pela visão deste objeto, o que consiste na sensa­ção. Em segundo lugar, termos a intuição deste mesmo obj eto, mas já

como observação. Assim, há dois momentos da percepção: a sensação causada ao visu­

alizarmos o objeto e a observação que pode ser gerada pela sensação de vermos o objeto (e não de vermos a sensação "em si"). A sensação não pode ser objeto da observação, como também não é ato de observar.

Ryle concorda com a Teoria dos Dados dos Sentidos no que se refere à presença do objeto real como um fàto. Também concorda que dados dos sentidos produzidos pela visão dos objetos são sensações que ocor­

rem verdadeiramente, ou seja, não são entidades fictícias imaginadas. Porém, elas não são objetos sensíve is particulares c sim wn discerni­mento dos objetos e dos fatos.

A idéia apresentada pela Teoria dos Dados dos Sentidos de que "as­pectos," "aparências" e outros termos implicam a existência dos objetos dos sentido, não é correta, diz Ryle ( 1949). Os aspectos dos objetos são resultados de comparações que fazemos com outros objetos dos quais somos estimulados, pelas sensações, a lembrar. Quando nos referimos "a aspectos, sons e cheiros, sobre extensões, formas e cores, assim como de perspectivas, neblinas, tocos e penumbras" (1949, p. 208), estamos nos referindo a objetos comuns que temos memorizados de percepções

aprendidas anteriormente e que empregamos nesse momento. As descrições de um objeto apresentadas por um observador não são

descrições de sensações particulares daquele indivíduo c tão somente

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ele pode narrar a seu respeito. Quando um objeto é descrito, a ele são atribuídas propriedades que são comuns a todos os seres humanos e,

portanto, compreensíveis por qualquer um. Embora a sensação seja par­ticular, sua descrição não resulta do histórico de vida de uma pessoa e s im, de seu aprendizado no meio social.

SegWldO Ryle ( 1949), a criação de um objeto sensível que nos remete a idéia de sensações "em si," mantém a Teoria dos Dados dos Sentidos presa ao mesmo problema dualista dos cartesianos, pois cria um campo interno ao sujeito onde ocorrem suas sensações, ou seja, seus objetos invisíveis.

Quanto à percepção no estágio de observação, Ryle procura salien­

tar que a observação não significa busca ou investigação, mas detecção de algo em que a atenção está incluída. Entretanto, é muito importante esclarecer que, embora a sensação e a observação sejam dois momentos

da percepção, isso não sign ifica dois lugares diferentes como os adeptos do dualismo alegariam. Não temos, num primeiro momento, uma visão imprecisa que nos causa, num segundo momento, a sensação que nos re­mete à conscientização de dados precisos, fornec idos pela razão. A per­cepção, enquanto observação, implica uma sensação inicial que desperta a atenção. Mas, para que haja a percepção, entendida como detecção de algo, é preciso que também haja identificação ou reconhecimento deste

objeto que causa a sensação. Poder reconhecer e identificar, no está­gio da percepção, não é um processo reflexivo que elaboramos, segundo Ryle. É ter uma "organização (frame) especial da mente, a organização da mente de estar pronto" ( 1949, p. 215) para um fato ou episódio.

Do enunciado "estar pronto para" infe rimos que houve um apren­

dizado empregado em determinado mome nto. "Estar pronto para" não significa rememorar fatos do passado, mas utilizar aquisições passadas que desenvolvem propensões, capacidades para ações futuras. Portanto,

perceber as coisas não é como os dualistas afirmam, ou seja, primeiro há uma detecção física e depois uma elaboração mental do fantasma da

máquina. Osservar é ver e detectar que aquilo é o que é porque a organi­

zação Urame) mental do observador lhe permite reconhecer ao mesmo tempo que tem a sensação de ver tal objeto ou fato.

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A organização iframe) da mente que capacita o indivíduo a perceber e agir é formada no aprendizado prático diário. O aprendizado de quase tudo que fazemos como andar de bicicleta, jogar xadrez, reconhecer um objeto, ocorre por inferência de fatos sucedidos previamente. Assim, o aprendizado da percepção se dá na observação constante das coisas que nos rodeiam sem necessariamente existir correlações imediatas entre es­sas coisas.

Uma observação importante é que a capacidade de perceber não se identifica à capacidade de comunicar-se. A percepção é uma disposição comum ao ser humano que o ajuda sobreviver. Porém, como sua exis­tência não depende da capacidade de teorizar, criar regras e transmiti­las, então, esta é uma disposição que para o homem possuir deve ser ensinada e praticada à medida de sua necessidade.

Assim, podemos concluir que, de acordo com Ryle (1949), as pers­pectivas intemalista e externalista não apresentam uma análise correta do conceito de percepção, pois, para ele, sentir ou ter sensações é uma ocorrência normal à qual nos referimos, usando uma linguagem coloqui­al. Não é um lugar especial ou uma noção elaborada como os filósofos acreditam tais como "impressões" ou "sensações em si." Conseqüente­mente, a pouca clareza conceitual sobre a percepção não se deve à falta de um vocabulário que expresse esses objetos sensíveis. A inexistência desse vocabulário resulta do próprio questionamento quanto a existência de objetos sensíveis.

Concluindo o trabalho, parece-nos que a transferência, algumas ve­zes, feita por Ryle de problemas intuitivamente reais (como é o caso da natureza das sensações) para o âmbito dos problemas lingüísticos não soluciona as dificuldades próprias da questão. Tal abordagem frente ao contexto apresentado pelas posições intemalista e extemalista vem re­forçar a complexidade da questão da percepção que continua em aberto a reflexões.

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Bibliografia

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REALISMO E RELATIVISMO COMO FACES DE UMA MESMA MOEDA

Eros Moreira de Carvalho Universidade Federal de Minas Gerais

A sugestão de que o realismo e o relativismo conceitual possam ser con­cebidos como faces de uma mesma moeda pode parecer absurda. Afinal, dentre outras coisas, o que se entende geralmente por relativismo con­ceitual não é a afinnação de que só há os objetos a que podemos nos referir por meio de nossos conceitos e que, portanto, a existência des­tes objetos depende de esquemas conceituais e, de outro lado, não é o realismo entendido, em geral, pela afinnação de que existem objetos in­dependentemente de termos quaisquer esquemas conceituais através dos quais possamos nos referir a esses objetos? Se colocarmos realismo e relativismo nestes termos, de fato parece inconcebível uma convivência pacífica entre ambos. Não só isso: do ponto de vista do realista, o re­lativismo conceitual parecerá nos levar para uma espécie de idealismo lingüístico. Se tudo existe dependentemente dos esquemas conceitu­ais, então, na medida em que criamos esquemas conceituais, criamos a própria realidade. Neste texto, seguindo a filosofia de Hilary Putnam, argumentarei que tanto o conflito entre realismo e relativismo conceitu­al, nos termos colocados, quanto a idéia de que o relativismo conceitual nos leva ao idealismo lingüístico dependem de que interpretemos am­bos os lados pressupondo a noção de coisa-em-si e que, urna vez des­vencilhados desta noção, vemos o realismo e o relativismo conceitual de maneira diferente: vemo-los como faces de uma mesma moeda. Não só isso: vemos também que o relativismo conceitual não nos leva ao idealismo lingüístico.

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 157- 176.

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O conflito entre realismo e relativismo surge porque, enquanto o primeiro afirma a existência de objetos independentemente de termos quaisquer esquemas conceituais para nos referirmos a eles, o segundo afirma que só existem os objetos que conhecemos ou a que podemos nos referir. Putnam argumenta que foi justamente essa noção de objeto independente de qualquer concepção que possamos ter dele, noção esta que herdamos da filosofia moderna, que amtinou não só o realismo, mas que também fez com que o relativismo conceitual parecesse nos levar ao idealismo lingüístico. Em As várias faces do realismo, explica Putnam, diante desta noção moderna de objeto externo, nossas descrições se di­vidiram em dois tipos: as descrições de como o objeto é em si mesmo, ou seja, descrições de propriedades intrínsecas do objeto, e descrições que são meras projeções nossas, ou seja, descrições de propriedades ex­trínsecas do objeto. As descrições das propriedades intrínsecas, foi su­gerido, consistem em fórmulas matemáticas e aquilo que não pode ser descrito matematicamente termina por ser uma projeção nossa, uma des­crição de uma propriedade extrínseca. Essa concepção de objeto externo arruína o realismo, diz Putnam, porque, no final das contas, vamos ter que negar realidade a mesas e cadeiras, por exemplo. Somente átomos, elétrons, enfim, somente as entidades supostas pela teoria física existem realmente, pois elas são descritas por equações matemáticas. Por outro lado, se suspeitarmos que nem mesmo as equações matemáticas des­crevem as propriedades intrínsecas dos objetos, e há bons motivos para suspeitar que seja este o caso, então vamos pensar que todas as nossas descrições são projeções e que tudo não passa de pensamentos. Este é o paradoxo que, no final das contas, comenta Putnam, parece estar presen­te no Realismo com 'R' maiúsculo, o Realismo que afirma a distinção entre propriedades intrínsecas e propriedades extrínsecas. Se suspeitar­mos que nenhuma de nossas descrições são descrições de propriedades intrínsecas de objetos, então, ao invés de ter salvado o realismo, o Rea­lismo com 'R' maiúsculo vai ter feito aquilo de que sempre são acusados os idealistas terem feito: ter transformado tudo em pensamentos.

Esse paradoxo surge para o Realista com 'R' maiúsculo devido ao seu apego à noção de coisa-em-si, à noção de um objeto "à parte de

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qualquer contribuição feita pela linguagem ou pela mente" (1987: 8). O realismo que Putnam defende, o realismo com 'r' minúsculo, ou rea­lismo pragmatista ou ainda realismo do senso comum, que é como ele tem denominado o seu realismo em textos mais recentes ( 1994b: 489), renuncia à noção de coisa-em-si e, por conseguinte, à dicotomia entre propriedades intrínsecas e extrínsecas. A renúncia à noção de coisa-em­si é reforçada por um movimento duplo diretamente relacionado ao re­alismo e ao relativismo conceitual tal como Putnam os entende. De um lado, para resgatarmos a realidade das mesas, cadeiras e de tudo aquilo que uma pessoa normal diria como real, exige-se a renúncia da noção de coisa-em-si e a respectiva distinção que ela acarreta entre proprie­dades intrínsecas e extrínsecas, e, como nós vimos, esta é a exigência do realismo com 'r' minúsculo e, de outro lado, o fenômeno do relati­vismo conceitual faz com que a noção de coisa-em-si entre em colapso ou mostra que ela é destituída de significado. Vejamos, assim, primei­ro, pelo relativismo conceitual, o colapso da noção de coisa-em-si, pois enquanto ficamos presos a ela, enquanto ficamos presos à noção de um objeto exterior "à parte de qualquer contribuição feita pela linguagem ou pela mente," o apelo ao realismo de Putnam parece fraco.

São abundantes, na obra de Putnam, exemplos e situações que refor­çam o fenômeno do relativismo conceitual. Para os nossos propósitos, cumpre observar apenas um deles. Putnam nos convida a supor um mundo no qual só há três indivíduos: xl, x2 e x3. 1 Em seguida, ele nos lança a pergunta: quantos objetos há neste mundo? Três, obviamente. Mas Putnam observa que esta é apenas uma resposta possível. Alguns lógicos poloneses, por exemplo, acreditam que para cada dois objetos particulares há um objeto que é a soma destes dois ( 1987: 18). Assim, se formos fazer a contagem novamente, vamos encontrar sete objetos nes­te mundo que estamos considerando: xl, x2, x3, xl+x2, xl+x3, x2+x3 e xl+x2+x3. Ambas as contagens, afirma Putnam, segundo a lingua­gem que escolhermos, estão corretas e não faz sentido perguntar qual das duas é mais verdadeira. O fenômeno do relativismo conceitual mos­tra que, dependendo das nossas escolhas conceituais, vamos encontrar um número diferente de coisas neste mundo e o que conta ou não co-

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mo sendo um objeto também depende de nossas escolhas conceituais. O que faz, entretanto, o Realista com 'R' maiúsculo diante desta situa­ção? Simples, ele diz que "há um único mundo que pode ser dividido de diferentes maneiras" (1987: 19) e que, se fosse possível, a descrição verdadeira deste mundo seria a descrição que o descreve tal como ele é em si mesmo. Putnam descreve essa manobra do Realista com 'R' maiúsculo pela metáfora do "cortador de bolo." O Realista metafísico pensa o mundo como uma massa de bolo (a coisa-em-si) e o fato de es­colhas conceituais diferentes terem implicado uma contagem diferente do número de objetos é explicado da mesma forma que explicamos o fato de que uma única massa de bolo possa ser dividida em várias par­tes de diferentes maneiras. Contudo, observa Putnam, já que o Realista metafísico pensa nessa massa de bolo como algo mais real do que as diferentes fatias que possamos fazer dele, se perguntarmos ao Realista com 'R' maiúsculo quais são as partes reais dessa massa de bolo, que resposta ele nos dará? Se ele nos responder, por exemplo, que são os objetos xl, x2, x3, xl+x2, xl+x3, x2+x3 e xl+x2+x3, então, do ponto de vista do próprio Realista metafísico, "nós não temos uma descrição neutra, mas sim uma descrição parcial" (1987: 19). Essa, inclusive, foi a descrição dada pelos lógicos poloneses. E não temos porque pensar que essas partes que descrevemos são menos reais do que quaisquer outras partes que possamos descrever. O que escapa aos realistas metafísicos é a percepção de que:

As próprias noções lógicas primitivas, em particular a noção de objeto e de existência. possuem uma multiplicidade de usos diferentes em vez de um 'significado' absoluto [ênfase do autor] ( 1987: 19).

O apego do Realista metafisico à massa de bolo é o apego à idéia de que a noção de objeto possa ter uma absoluta interpretação ou um absoluto significado, o significado que o descreve tal como ele é em si mesmo. Mas enquanto não fazemos nossas escolhas conceituais, não faz sentido falar de objeto e, por conseguinte, da noção de coisa-em-si.

No caso em que contamos três objetos, um significado para a noção de 'objeto' foi estipulado; quando contamos sete objetos, um outro signifi-

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cado de 'objeto' foi estipulado. E supor que uma das duas contagens é

mais correta do que outra é supor que há uma noção absoluta de objeto

que, se considerada, nos levará à contagem do número de objetos que de fato existe naquele mundo. Mas isso é o que nós não podemos fazer;

não porque está além de nossas capacidades, mas porque não faz sen­tido. Não faz sentido falar de uma noção de objeto independentemente de nossas escolhas conceituais. A metáfora do "cortador de bolo," que pressupõe essa noção absoluta de objeto, longe de explicar o fenômeno do relativismo conceitual, nega-o (1987: 34), mas o faz supondo noções que não fazem sentido. A resistência do Realista metafísico ao fenô­meno do relativismo conceitual, ao fato de que, em certas situações,

podemos ter várias descrições corretas dessa situação, é a resistência à percepção de que a noção de coisa-em-si é destituída de sentido e, por conseguinte, a idéia de uma descrição de como essa coisa-em-si é.

A esperança do Realista metafísico de que haja a massa do bolo é a

esperança de que haja um mundo à parte de qualquer descrição que pos­samos fazer desse mundo. O que o relativismo conceitual afirma não é que não haja esse mundo, mas que não faz sentido falar dele. Mas o Re­alista com 'R' maiúsculo replica: o que faz, então, com que a descrição que diz que, no mundo considerado, há três objetos e a descrição que

diz que há sete objetos sejam descrições de um mesmo mundo senão que haja um mesmo mundo, uma mesma massa de bolo, à parte dessas descrições? É esse mundo em si mesmo, diz o Realista metafísico, que faz a cola entre as duas descrições. Todavia, o relativista conceitual in­terpela o Realista metafisico a dmzer que mundo é esse. É o mundo em que só há os indivíduos xl, x2 e x3 que pode ser descrito, dependendo da linguagem que utilizarmos, como tendo três ou sete objetos? Se for, então não estamos falando de wn mundo à parte de qualquer descrição que possamos dar deste mundo. O que irá dizer o Realista com 'R' maiúsculo agora? Que há um mundo em si mesmo fazendo a cola não

mais entre duas descrições, mas entre três descrições, a descrição de um mundo em que só há os indivíduos xl , x2 e x3, a descrição de que, neste

mundo, há três objetos e a descrição de, neste mundo, há sete objetos?

Que haja um único mundo descrito por essas três descrições o relativista

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conceitual não nega, o que ele nega é que faça sentido falar deste mun­do como um mundo à parte de qualquer descrição que possamos fazer dele, pelo simples fato de que a noção de "mundo" à parte de qualquer interpretação da noção de mundo é vazia de sentido.

Podemos achar tentadora a noção de um objeto com uma interpreta­ção absoluta, porque somos tentados pela idéia de que algumas coisas são simples e outras compostas e que, no limite, aquelas coisas mais simples seriam os verdadeiros objetos e isso daria sentido à idéia de que há um significado absoluto de 'objeto'. Mas isso também não funciona. Da mesma forma que não faz sentido falar de objeto independentemente de nossas escolhas conceituais, não faz sentido falar de simples e com­posto independentemente de nossas escolhas conceituais. A pergunta "que objeto é absolutamente simples?" é uma que não faz sentido tanto

quanto a pergunta "quais são as partes mais reais da massa de bolo do Realista com 'R' maiúsculo?." Nas Investigações Filosóficas (§47~4), Wittgenstein dá uma série de exemplos para mostrar o quão absurda é a idéia de que haja um sentido absoluto de 'simples' e que, para decidir­mos o que seja simples e o que seja composto, temos que ter um jogo de linguagem em mãos que nos forneça os parâmetros para decidir, numa

dada situação, o que seja simples e o que seja composto. Deste modo, se nem a idéia de um objeto absolutamente simples faz

sentido, tampouco a idéia de que há um significado absoluto de 'objeto'. A partir dessas considerações fica claro que a noção de coisa-em-si entra em colapso. Como observa Putnam, "o que há de errado com a noção de objeto existindo 'independentemente' de esquemas conceituais, ou seja, de qualquer concepção que possamos ter dele, é que não há critério para o uso nem mesmo de partículas lógicas à parte de escolhas conceituais" (1987: 35~). A noção de coisa-em-si é, assim, vazia, destituída de qualquer sentido.

Todavia, uma vez que o relativismo conceitual mostrou o absurdo da

noção de coisa-em-si e uma vez que ficamos privados dela, não caire­mos então num idealismo Iingilistico? Afinal, se não faz sentido falar

de um objeto existindo independentemente de nossas escolhas conceitu­ais, não se segue disto que só faça sentido falar de objetos que existem

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dependentemente de nossos esquemas conceituais? Se concluíssemos

isso, se concluíssemos que só faz sentido falar de objetos que existem dependentemente de nossos esquemas conceituais, então, ao invés de

termos mostrado ao Realista com 'R' maiúsculo a saída da garrafa, te­ríamos nós mesmos entrado na garrafa. O Realismo com 'R' maiúsculo

sucumbe junto com o colapso da coisa-em-si, mas também sucumbe a sua tese contrária, a de que só existem objetos dependentemente de

esquemas conceituais. Aqueles que vêem no relativismo conceitual o idealismo lingüístico falham em perceber que, se não fàz sentido falar da coisa-em-si, se não faz sentido falar de um objeto independentemen­te de nossas escolhas conceituais, então tampouco faz sentido falar na negação disto; tampouco faz sentido falar de objetos existindo depen­

dentemente de nossas escolhas conceituais.2 Que eu só possa falar de um objeto depois que escolhi uma linguagem é uma coisa e é isto o que

o relativismo conceitual afirma, mas que o objeto sobre o qual falo exis­ta dependentemente da linguagem que escolho é outra coisa e isso é tão vazio de sentido quanto a noção de coisa-em-si.

O erro comum, observa Putnam, é pensar que o relativismo conceitu­

al afirma que tudo é questão de escolhas conceituais, que tudo é conven­ção. Isso é falso. Se a nossa contagem do número de objetos no mundo que consideramos há pouco resultaria em três ou sete dependia de qual linguagem estávamos usando, mas. uma vez escolhida a linguagem, uma

vez que escolhemos, por exemplo, a linguagem dos lógicos poloneses, não é uma questão de convenção ter seis ou sete objetos no mundo em questão. Da mesma forma, é uma questão de convenção qual calendário vamos usar, mas uma vez escolhido um calendário, não é uma questão de convenção saber que dia é hoje. Temos que evitar a tentação que o seguinte argumento falacioso nos provoca: se eu escolho a linguagem dos lógicos poloneses, então há sete objetos no mundo em questão; se eu não escolhesse a linguagem dos lógicos poloneses, então não haveria sete objetos no mundo em questão; logo, a linguagem que escolho de­

termina o número de objetos que há no mundo em questão. O absurdo deste argumento fica mais claro se prestarmos atenção neste outro argu­mento que tem a mesma forma: se uso o calendário romano, então hoje é

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11 de agosto de 1999; se eu não usasse o calendário romano, então hoje não seria 11 de agosto de 1999; portanto, o calendário que uso determina que dia é hoje; logo, o dia de hoje dos judeus não é o mesmo que o dia de hoje dos católicos. A conclusão deste argumento, além de absurda, é falaciosa. Nos dois argumentos, terminamos por afirmar uma rela­ção de determinação que vai da linguagem selecionada para aquilo que é descrito por essa linguagem. Mas essa relação não é de modo algum implicada pelas premissas que lhe antecedem, embora seja ardilosamen­te sugerida por elas. Quando dizemos que se escolhemos a linguagem dos lógicos poloneses, então há sete objetos no mundo em questão, não estamos dizendo que a linguagem dos lógicos poloneses implica seja ca­sualmente, seja logicamente a existência de sete objetos no mundo em questão. O que dizemos é que, dada a linguagem dos lógicos poloneses, contamos sete objetos no mundo em questão. A linguagem dos lógicos poloneses nos fornece critérios e regras para identificar e contar objetos, mas se os critérios e as regras se aplicam ou não, depende da situação e a situação ela mesma não é determinada pela linguagem dos lógicos poloneses. Se a situação fosse diferente, se, ao invés dos indivíduos xl, x2, x3, tivéssemos apenas os indivíduos xl e x2, então, de posse da lin­guagem dos lógicos poloneses, contaríamos três objetos c não sete. A utilização de uma linguagem envolve a aplicação de regras e critérios, mas a utilização de urna linguagem não implica por si só a aplicação ou não de suas regras e critérios; a aplicação ou não de suas regras e critérios depende da situação em que essa linguagem é empregada. Da mesma forma, urna vez estabelecido os critérios e as regras do calen­dário romano, este não determina por si só que dia é hoje e que dia é amanhã. Antes de mais nada, para que o calendário romano tenha algu­ma utilidade, é preciso que os dias transcorram e que amanhã será um novo dia não é algo que seja implicado ou causalmente ou logicamente pelo calendário romano. Se não observarmos essas nuanças, caímos na tentação daqueles argumentos falaciosos e incorremos no erro de pen­sar que o relativismo conceitual afirma que tudo é convenção e que, por isso, estamos enredados no mais profundo idealismo lingüístico.

Se nos sentimos tentados pelos ar&run1entos falaciosos acima, então é

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porque o fantasma da coisa-em-si ainda nos assombra. Vejamos, porém,

o percurso que fizemos até agora: partimos, inicialmente, do conflito entre relativismo conceitual e realismo. Mas prestemos atenção em co­

mo era definido antes este conflito. O realismo baseava-se na noção de coisa-em-si, na noção de que existem objetos independentemente de qualquer interpretação que demos a noção de 'objeto'. O relativismo, de

outro lado, afinnava que só fazia sentido falar de objetos uma vez que estamos de posse de uma determinada noção de 'objeto' . Alguns pros­seguiam, tendo a noção de coisa-em-si como contraposta, dizendo que o

relativismo conceitual afinnava que os objetos existem dependentemen­te da linguagem. Mas o que nós vimos pelo relativismo conceitual, pelo fato de que só faz sentido falar de objetos depois que tenho uma lingua­gem em mãos, foi que a idéia de que existam objetos independentemente

de qualquer interpretação que demos à noção de 'objetos', que. enfim, a idéia da coisa-em-si é um contra-senso. É um contra-senso afinnar que há objetos, usando o conceito de 'objeto' e, em seguida, fa lar que está usando o conceito de 'objeto ' independentemente de qualquer interpre­tação da noção de 'objeto', ou seja, independente de qualquer esquema conceitual. O realista não consegue, assim, dar conteúdo a noção de coisa-em-si. Não consegue porque ela é vazia, é um contra-senso. Mas, uma vez que entra em colapso a noção de coisa-em-si, aquele passe a mais dado pelos relativistas conceituai:; tendo como contraste a coisa­em-si também entra em colapso. Em outras palavras, se a noção de

coisa-em-si entra em colapso, o relativi::>ta conceitual não pode avançar além da afinnação de que só faz sentido falar de objetos uma vez que estamos de posse de uma determinada noção de ' objeto'. Aquele pas::;o adicional, a saber, a afinnação de que objetos existem dependentcmente da linguagem, uma vez que ainda pressupõe a noção de coisa-em-si, é tão sem sentido e tão vazio quanto a noção de coisa-em-si.

feilo esses esclarecimentos, agora que ficamos com o relativismo conceitual sem a assombração da coisa-em-si, agora que ficamos com o relativismo conceitual tal como Putnam o entende, um relativismo con­ceitual que afirma que a noção de 'objeto' e muitas outras tem uma mul­tiplicidade de interpretaçõe::; e usos e que só faz sentido fa lar de objeto:;

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uma vez que temos em mãos uma linguagem e que, dependendo da situ­ação, podemos ter várias descrições igualmente corretas dessa situação, então esse relativismo conceitual abre as portas para o realismo com 'r' minúsculo, o realismo pragmatista de Putnam. Podemos falar, como fa­lamos habitualmente, que essa mesa e essa cadeira realmente existem e que essa mesa e essa cadeira também são um amontoado de elétrons e átomos; mas nenhuma dessas descrições é mais verdadeira do que a outra ou mais próxima da descrição correta da coisa-em-si do que a ou­tra, pelo simples fato de que a noção de coisa-em-si não tem sentido. A correção ou não dessas descrições depende da situação que descrevem, mas a situação que descrevem é uma que podemos conceber e dizer qual seja. Podemos agora também, como qualquer pessoa normal, falar que os objetos existem independentemente das palavras. Quais objetos? Es­ta mesa, essa cadeira, eu e todos vocês existimos independentemente de termos palavras como 'mesa', 'cadeira', 'eu' e etc. Lembremos que o que não fazia sentido era a noção vazia de objeto, vazia porque não era interpretada segundo alguma noção de 'objeto' corrente e adicionar o qualitativo independente do que quer que seja a essa noção vazia só nos fazia produzir um novo contra-senso. Agora que estamos libertos dessa noção de coisa-em-si, podemos falar, sem medo do retorno deste fantasma, que esta mesma e esta cadeira existem independentemente da palavra 'mesa' e 'cadeira', assim como o fato de hoje ser 11 de agosto de 1999 não é determinado apenas pelo calendário romano. A ilusão da dependência das coisas às palavras nos importunava enquanto nos deixávamos ser enfeitiçados pela noção de coisa-em-si. Se nossas des­crições, pensava o Realista com 'R' maiúsculo, não descrevem a coisa­em-si, então aquilo que é descrito é pura projeção, puro pensamento. Mas nós vimos que a noção de coisa-em-si é vazia e sem sentido e, por conseguinte, vazia é também a afinnação de que nossas descrições são puras projeções e pensamentos, pois essa afirmação dependia, para ter sentido, da noção de coisa-em-si como contraposta. Portanto, uma vez desfeito o feitiço da coisa-em-si, não precisamos mais hesitar em dizer que as coisas com as quais lidamos habitualmente existem independen­temente do modo como falamos.

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Putnam apenas nos alerta para não evocarmos sentidos metafísicos

para o termo " independente" quando falamos que os objetos com os

quais Lidamos ordinariamente são independentes da maneira como nós falamos. Na verdade, diz Putnarn (1994a: 301 ), é até estranho que ques­tões como a de se o céu azul existe ou não independentemente da nossa maneira de falar nos perturbe. Em qualquer sentido de "independente"

que temos disponível, seja a independência lógica, seja a independên­cia causal, não há nenhuma dúvida de que o fato do céu ser azul seja causalmente independente do fato de termos palavras para cores e lo­

gicamente independente da maneira como nós falamos. Assim, conclui Putnam, "em qualquer sentido de 'independente' que eu posso enten­

der, que o céu seja azul é independente da maneira como nós falamos" (1994a: 301).

Também não precisamos mais ter receios em dizer que são as coisas e os fatos do mundo que fazem com que nossas sentenças sejam verda­

deiras ou falsas. Como observa Putnam, o que faz com que a sentença "o céu é azul" seja verdadeira é o fato do céu ser azul (1994a: 302). O que não há, ou o que não faz sentido dizer, é que as coisas ou os fatos que fazem com que nossas sentenças sejam verdadeiras são fatos que não podemos nem conceber e nem descrever. Para falar de fatos não é menos necessário ter uma linguagem em mãos do que para falar de obje­tos e supor que possamos dizer o que são os fatos independentemente de todas as nossas escolhas conceituais é um grande equívoco e não pode­

mos dizê-lo porque isso não faz sentido. Há fatos e nós podemos dizer o que eles são. Contamos sete objetos no mundo que consideramos an­teriormente não porque a linguagem dos lógicos poloneses determinou que houvesse sete objetos naquele mundo, mas porque a aplicação cor­reta da linguagem dos lógicos poloneses naquela situação em específico nos levou a contabilizar sete objetos. Se a situação fosse outra, se no mundo em questão só houvessem os indivíduos xt e x2, não contabi­lizaríamos sete objetos e se contabilizássemos sete objetos, a sentença

"há sete objetos no mundo em questão" seria falsa e seria falsa porque

ela não se ajusta à situação que descreve. E falar de 'ajuste' aqui não é nenhum equívoco e nem nostalgia da coisa-em-si. Não estamos falando

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de uma relação misteriosa entre um fato·inconcebível e um amontoado de palavras. Estamos fulando da ~elação entre wn situação concebível, uma situação com a qual nos defrontamos, e uma de suas possíveis des­crições, no caso, uma descrição incorreta da situação. No mundo em que só há os indivíduos xl e x2, se usarmos a linguagem dos lógicos poloneses e dissermos que há sete objetos neste mundo, então fi zemos uma descrição da situação que não se ajusta a ela, mas se dissermos que há três objetos, então fizemos uma descrição correta da situação e não precisamos ter receios de dizer que essa situação é responsável pela cor­reção ou verdade da nossa descrição de que há três objetos no mundo em questão. A relação entre a linguagem e o mundo não é misteriosa, como supõem alguns, e nós podemos descrevê-la de diferentes manei­ras; acontece apenas que, em alguns casos, essa tarefa pode ser difícil, mas não inconceblvel.

Falar que coisas e fatos do mundo fazem nossas afirmações verda­deiras ou fa lsas pode encontrar ainda resistência em algumas pessoas e elas poderiam, neste exato momento, replicar o seguinte ao realista com ' r' minúsculo: "você diz que a sentença 'o céu é azul' é verdadeira pelo fato do céu ser azul e em seguida diz que a realidade ou os fatos do mundo fucram aquela sentença verdadeira, mas para dizer isso, para dizer que a realidade fez isso, você usou palavras. Você descreveu o mundo com palavras para depois dizer que este mundo que acabou de descrever fazia esta ou aquela sentença verdadeira. Não pode esperar ter, com isso, comparado a linguagem com o mundo, pois o tempo todo esteve a usar a linguagem!." O realista com 'r' minúsculo, diante desta réplica, se desespera. Desespera-se por não ter obtido êxito ainda em mostrar ao Realista com ' R' maiúsculo a saída da garrafa, ou, se obteve, não conseguiu persuadi-lo ainda de que o lado de cá é melhor. Desa­fortunadamente, a crítica de nosso contendor ainda pressupõe a noção de coisa-em-si. Dizer que nós não fa lamos efetivamente da compara­ção entre o mundo e a linguagem porque descrevemos o mundo com a linguagem é pensar que nós só poderíamos falar desta comparação se, de alguma forma, nos despojássemos da linguagem e, do lado de fora, a comparássemos com a realidade em si mesma. Alguns Realistas com

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'R' maiúsculo se martirizam por pensar que isto está além de nossas ca­pacidades. Mas o que esses Rea listas com 'R' maiúsculo não percebem não é que fazer isso seja impossível ou esteja além de nossas capacida­des, mas que isso não faz sentido. Não faz sentido falar de uma situação em que temos a linguagem de um lado e a realidade em si mesma de outro lado e não faz sentido porque a noção de realidade em si mesma é vazia, não tem nenhum sentido. Podemos contrapor a linguagem a coisas reais, como, por exemplo, esta mesa e essa cadeira. Mas não faz sentido falar que vamos contrapor a linguagem à .. . ao que? O que é in­dicado peJa expressão "realidade em si mesma"? Se a idéia é que temos a linguagem de um lado e a realidade em si mesma do outro, então nem mesmo conceitos básicos como o de 'objeto' e 'coisa' podem ser apli­cados à realidade em si mesma. Mas não podem ser aplicados porque, com efeito, não há nada ao qual possamos aplicar esses conceitos. A ex­pressão "realidade em si mesma" não denota nada, não diz nada e, por conseguinte, não tem sentido algum. Não podemos nem mesmo falar que ela se refere a um algo, pois falar de algo pressupõe que tenhamos uma linguagem em mãos. Na verdade, o Realista com ' R' maiúsculo tinha, paradoxalmente, que ficar mudo na hora de fazer as suas formu­lações. Pelo menos assim, ao invés de dizer o contra-senso "contrapor a linguagem à realidade em si mesma," diria apenas a frase incompleta "contrapor a linguagem à ... . " Quando percebemos isso, percebemos que a réplica de nosso contendor residia ainda em seu apego à noção de coisa-em-si e que o problemático não está na comparação entre a lin­guagem e a realidade, a nossa realidade, a realidade em que vivemos, mas sim na comparação entre a linguagem e . . . O que o Realista com 'R' maiúsculo não percebe, observa Putnam (1992: 122), é que o fato da realidade não poder ser descrita independentemente de nossas descri­ções não faz da realidade menos realidade ou não faz da realidade mais uma descrição. Pensar que tomamos a realidade LUna descrição devido ao fato de só podermos descrever a realidade descrevendo-a implica em fazer um uso que nos é desconhecido do conceito de "descrição." A des­crição não tem o poder de transformar o seu descrito em uma descrição e o fato de que alguns descritos possam ser descrições não implica que

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todos os descritos sejam descrições. Com este movimento, o realista com ' r' minúsculo espera finalmente

ter persuadido o Realista com 'R' maiúsculo a sair da garrafa; espera ter mostrado ao Realista metafísico que a imagem de uma situação em que ternos a linguagem de um lado e a realidade em si mesma de outro era urna imagem enganosa, e que, uma vez libertos dessa imagem, nos li­vramos da outra imagem que acompanha esta última: a imagem de que a comparação da linguagem com a realidade que descrevemos é uma comparação entre linguagem e linguagem. O que essas considerações nos levam a perceber é que as noções de "realidade" e " linguagem," mas não a própria realidade e a linguagem, são interdependentes. A imagem de uma situação em que temos a linguagem de um lado e realidade em si mesma de outro é esperança de que pudéssemos ver a Realidade a partir de lugar nenhum. Mas nós não temos uma noção de "realidade" para essa esperança. A noção de "realidade" que nós temos está profun­damente relacionada com a nossa noção de " linguagem," pois, como já dissemos várias vezes, não há nada que possamos entender da noção de " realidade" enquanto não temos uma linguagem em mãos. Da mesma forma, a nossa noção de " linguagem" está profundamente relacionada com a nossa noção de "realidade," pois grande parte dos usos que fa­zemos da linguagem, embora nem todos eles, visa descrever aquilo que está diante de nós: a realidade. Assim, tanto faz parte de nossa com­preensão da linguagem a compreensão que temos da realidade quanto faz parte de nossa compreensão da realidade a compreensão que temos da linguagem. Isso é o que quer dizer, no fundo, a metáfora de Putnam de que "a mente e o mundo conjuntamente forjam a mente e o mun­do" ( 1987: 1 ). O que não devemos pensar é que a interdependência das noções de "linguagem" e "realidade" implique a dependência da rea­lidade à linguagem ou vice-versa. Cadeiras continuam sendo cadeiras independentemente de tennos palavras para elas e a palavra "unicórnio" continua a ter sentido independentemente de termos unicórnios reais.

Contudo, resta ainda uma névoa que o realista com ' r' minúsculo precisa dissipar. Quando foi dito, ao falarmos do relativismo conceitual, que só tàz sentido falar de objetos, ou mesmo de fatos, uma vez que

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estamos de posse de uma linguagem, alguém poderia sugerir que a in­venção de novas linguagens implicaria a criação de novos fatos e objetos e que se pensannos que houve uma época em que nossos ancestrais não possuíam linguagem alguma, então podemos pensar a invenção da lin­guagem e a criação do mundo como duas coisas que se deram ao mesmo tempo e que na medida em que fomos criando novas linguagens, fomos criando novas facetas e meandros dessa realidade que nós mesmos for­jamos. O que há, porém, de errado com essa suposição? O que há de errado com essa suposição é que se ela for correta, então ela é incorreta. O argumento é simples: se a realidade e tudo mais foram criados junto com a invenção da linguagem, então todo esse cenário da passagem de nossos ancestrais não falantes para nossos ancestrais falantes é também uma criação; logo, é falso que algum dia houve essa passagem e que nesse dia inventamos a linguagem e criamos o mundo. 3 O paradoxal dessa suposição, e o que faz com que ela seja auto-refutável, é que ela precisa pressupor uma situação não criada para, a partir dela, afirmar o momento em que se deu a invenção da linguagem e a criação do mundo. Mas se temos essa situação não criada, de duas uma: ou ela de fato não é criada e, portanto, a nossa conclusão de que a invenção da linguagem criou o mundo é falsa (pois tal situação não criada faz parte do mundo), ou essa situação é ela mesma uma criação e, portanto, é uma ilusão que algum dia inventamos a linguagem e, por conseguinte, criamos o mun­do. Nos dois casos, a conclusão a ser tirada é uma só: a linguagem não cria o mundo.

De qualquer modo, não podemos negar que criamos novas lingua­gens e que, ao criar novas linguagens, passamos a falar de coisas no­vas. Como lidar com esse fato sem cairmos novamente na suposição inconsistente de que criamos o mundo ou mundos quando inventamos linguagens? A sugestão de Putnam ( 1994b: 516) é que consideremos a linguagem, assim como a percepção, a memória, a imaginação, como capacidades cognitivas que dispomos e que desenvolvemos e aprimora­mos ao longo do tempo na medida em que interagirnos com o mundo. Capacidades essas que nos permitem, quanto mais as desenvolvermos e aprimorarmos, descobrir coisas novas. Assim, não é que a invenção

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de uma linguagem crie as coisas sobre as quais podemos falar com essa linguagem, mas sim que ela nos pennite ter acesso a essas coisas que an­tes desconhecíamos ou que não reconhecíamos por não ter ainda o ins­trumental ou o equipamento apropriado. Devemos pensar a linguagem similarmente ao modo como pensamos o microscópio ( 1994b: 503). O microscópio expande os nosso poderes naturais de observação e da mes­ma forma que não falamos que a invenção do microscópio criou micró­bios e moléculas microscópicas, não temos porque dizer que a invenção de novas linguagens cria os objetos sobre os quais falamos com elas. A invenção de novas linguagens é uma das maneiras que temos de me­lhorar as nossas capacidades cognitivas e de estender o nosso acesso cognitivo a coisas que antes não nos eram acessíveis. Com a inven­ção de novas li nguagens, podemos descobrir novos fatos e novas coisas, pois, no fundo, é isso o que significa dizer que aprimoramos e melhora­mos as nossas capacidades cognitivas com a invenção de novas lingua­gens. Inventar linguagens, desde que bem sucedidas, significa aumentar a nossa capacidade de reconhecer coisas distantes de nós, assim como a invenção do microscópio nos possibilitou reconhecer c descobrir coisas e fatos que antes nos passavam desapercebidos.

O engodo no qual não devemos nos deixar cair é pensar que, pelo fato de falarmos que a linguagem não cria o mundo e sim que inventa­mos linguagens para descobrir como o mundo é, estamos reavivando a noção de coisa-em-si. O que nós descobrimos com a invenção de novas linguagens, ou de novos equipamentos como o microscópio, são obje­tos que, até então, estavam além de nosso poder de reconhecê-los, mas não além de nosso poder de conceber. E o que não podemos conceber, como por exemplo, a coisa-em-si, não é algo que seja impossível para as nossas capacidades cognitivas reconhecer, mas sim algo que não faz sentido. Os objetos que descobrimos são os objetos dos quais podemos falar com as linguagens que temos em mãos e se antes não os havíamos notado, é porque não tínhamos ainda em mãos a linguagem adequada para falar deles ou não tínhamos ainda aprimorado nossas capacidades cognitivas suficientemente a ponto de podermos reconhecê-los. Certa­mente, pelo que dissemos, há muitos objetos e fatos distantes de nós

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para descobrirmos ainda e para descobri-los, teremos que desenvolver e aprimorar as nossas capacidades cognitivas, ou seja, teremos que inven­

tar muitas linguagens novas. Mas estes objetos que estão por descobrir

não são coisas em si mesmas, pois, ainda que estejam além de nossas capacidades atuais de reconhecê-los, não estão além de nossas capaci­dades de concebê-los.

A conclusão a que chegamos nessas últimas linhas é que a nostalgia da coisa-em-si ou a turvação que a imagem dela causa em nossos pen­samentos é que tem tomado difícil reconhecermos as trivialidades do realismo com ' r' minúsculo. Todas as vezes que chegamos a pensar ou que as coisas existem dependentemente da maneira como nós falamos, ou que somos nós quem fazemos as nossas sentenças verdadeiras ou que somos nós que criamos a realidade, tínhamos a noção de coisa-em-si co­mo contraposta. Portanto, não é o relativismo conceitual que nos leva ao

idealismo lingüístico, mas sim relativismo conceitual acompanhado de nostalgia da coisa-em-si. Mas nós vimos que o relativismo conceitual, longe de requerer a noção de coisa-em-si, mostra a completa falta de sentido que tem essa noção. Não é nenhuma realidade à parte de qual­quer descrição que possamos dar dela que faz a cola entre a descrição de um mundo em que só há os indivíduos xl, x2 e x3, a descrição de que, neste mundo, há três objetos e a descrição de, neste mundo, há sete obje­tos. Não é este mundo à parte de qualquer descrição que possamos fazer dele que faz a cola entre essas três descrições porque não faz sentido falar de mundo nestes termos. O mundo que faz a cola entre essas três

descrições é, por exemplo, o mundo em que só há os indivíduos xl, x2 e x3 e pensar que pudesse haver um mundo à parte de qualquer descrição que possamos fazer dele é pensar no vazio, pois, enquanto não dispomos de uma linguagem, é inútil pensar que a noção de "mundo" ou "objeto" tenha algum sentido. Isso é o que nos mostra o relativismo conceitual. E depois de nos ter mostrado isso, depois de nos ter mostrado que a noção de coisa-em-si ou a noção de um mundo à parte de qualquer descrição que possamos fazer dele não tem sentido, reconhecemos a trivialidade de que é o mundo descrito por qualquer uma das três descrições que faz

a cola entre as três descrições. Eis que o relativismo conceitual nos abre

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as portas para o realismo com 'r' minúsculo. Distanciados da noção de coisa-em-si, reconhecemos com naturalidade que o mundo descrito por qualquer uma daquelas três descrições é o mundo descrito por qualquer uma daquelas três descrições e que procurávamos em vão por um mundo mais real que esse mundo descrito por qualquer uma daquelas três des­crições. Procurávamos em vão porque, na verdade, não tínhamos o que procurar, já que o termo coisa-em-si ou "realidade em si mesma" sequer denota algo. Realismo e relativismo conceitual são faces de uma mesma moeda. O relativismo conceitual mostra que a coisa-em-si é destituída de sentido e, ao fazer isso, espantamos o idealismo lingüístico que o as­sombrava. Dissipada a névoa, nos reencontramos com o realismo com 'r' minúsculo, o realismo do senso comum, através do qual, parafrasean­do Davidson (1985: 198), restabelecemos o contado não mediado com os nossos objetos familiares cujas travessuras fazem nossas sentenças e opiniões verdadeiras ou falsas.

Bibliografia

Davidson, D. 1985. "On the very Idea ofa Conceptual Schemc." lnquiries into Truth and Interpretation. Oxford: Clarendon Press, pp. 183- 98.

Carnap, R. 1950. "Empiricism, semantics, and ontology." Revue Intemationale de Philosphie 4: 20-40.

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1.992. - . 1992. Renewing Philosophy. Harvard University Press, 1995. - . 1994a. Words and Life. Harvard University Press, 1996. -. 1994b. "Tbe face o f Cognition." The Journal o f Philosoplzy 91(9):

488-517. Wittgenstein, L. 1979. Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril

Cultural.

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Realismo e Relativismo como Faces de Uma Mesma Moeda 175

Notas

1 Este exemplo está em The Many Faces of Realism (18- 20), mas ele aparece também em Rea/ism With a Human Face (1990: 96-1 04). 2 O ponto que estou assinalando equivale ao rompimento com a distinção feita por Carnap entre questões internas c externas relativas à existência ( 1950: 20-40). Segundo Camap, as questões internas são relativas a estruturas lingüís­ticas. Uma vez que aceitamos, por exemplo, a linguagem dos objetos fisicos, toma-se uma questão interna a esta linguagem e relativa as suas regras saber se um determinado objeto fisico existe ou não. Questões externas, por outro lado, dizem respeito àquilo que realmente existe, independentemente de qual­quer estrutura lingüística. Acontece, porém, que não dispomos de linguagens nas quais possamos formular as questões externas. E toda vez que tentamos formulá-las, produzimos contra-sensos. Essa distinção claramente pressupõe a noção de coisa-em-si. A coisa-em-si é o domínio externo propriamente dito, sobre o qual não podemos falar, pois nossas linguagens só falam das entidades que elas mesmas supõem em suas regras definidoras. Porém, como argumen­tei, uma vez que não só são contra-sensos as questões externas, mas também a própria noção de exterioridade cnqua nto coisa-em-si, falar de questões internas perde o sentido. Depois que abandonamos a noção de coisa-em-si, as entidades sobre as quais falamos com as nossas linguagens perdem o seu ar de posil, pois só eram assim considerados em contraposição a algo que não fosse meramente suposto, a saber, a coisa-em-si. 3 Esse argumento é francamente inspirado no argumento de Putnam contra a hipótese de que possamos ser cérebros numa cuba. Diz ele: "embora as pessoas desse mundo possível (o mundo em que elas são cérebros numa cuba] possam pensar e "dizer" quaisquer das palavras que nós podemos pensar c dizer, não podem (afmno eu) referir-se àquilo a que nós nos podemos referir. Especial­mente, não podem pensar ou d izer que são cérebros numa cuba (mesmo que pensem "somos cérebros numa cuba')'' [ênfase do autor] ( 1981: 31). O ponto chave do argumento de Putnam é a observação de que a referência dos termos dos cérebros numa cuba não é a mesma que a dos nossos termos, ainda que empreguemos os mesmos termos. Os cérebros numa cuba não interagcm com cérebros c cubas e, portanto, seus termos 'cérebro' e ' cuba' não se referem a cérebros e cubas, quando muito, à cérebros-na-imagem e cubas-na-imagem. Portanto, a hipótese de que somos cérebros numa cuba é inconsistente, pois se formos cérebros numa cuba, então não podemos pensar que somos cérebros numa cuba, pois nossos termos 'cérebro' e 'cuba' não se referem a cérebros e cubas. De maneira similar, a referência dos termos do "criacionista" são coisas

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criadas, pois ele, no seu modo de ver, só interagc com coisas criadas. Assim, a hipótese de que criamos o mundo quando inventamos a linguagem é incon­sistente, pois se criamos o mundo quando inventamos a linguagem, então essa situação é ela mesma uma criação c quando falamos "ao inventar a linguagem criamos o mundo" não estamos nos referindo à situação em que inventamos a linguagem, mas s im à situação criada e não real de que inventamos a linguagem e criamos o mundo.

eros77 @gold.com. br

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VERSÕES DO MUNDO OU MUNDO DAS VERSÕES?

Noeli Ramme Universidade Federal de Sa111a Catarina

O plurdlismo de Goodman fala que vivemos em mundos construídos através do uso de símbolos. Mundos da linguagem, que podem ser tanto o mundo da ciência, quanto o mundo da arte, da religião ou da filosofia. Em Ways of Worldmaldng, ele diz que fazemos estes mundos fazendo versões, usando versões preexistentes como pontos de partida. E acres­centa: se existe algum mundo, existem muitos. Mas, qual é, na filosofia de Goodrnan, a relação entre o mundo e as versões do mundo? ou, entre mundos e versões? Até que ponto mundos podem ser identificados com versões? Em que sentido podemos dizer que existem vários mundos e, fina lmente, como mundos da linguagem podem ser considerados mun­dos reais? Este artigo pretende encaminhar algumas respostas a estas questões.

1. Versões do Mundo

Um dos modos possíveis, talvez o mais simples, de entender a relação entre mundo e versão é dizer que as versões são versões do mesmo mun­do. Putnam, por exemplo, diz que a idéia de uma pluralidade de mundos está conectada com a idéia de que não existe uma única versão correta do mundo, mas uma pluralidade de versões corretas dele. No seu exemplo: não existe uma única versão corre ta da relação entre objetos ordinários e objetos científicos. Podemos escolher falar de objetos fisicos em termos de porções espaço-temporais, ou em termos de moléculas, ou em ter­mos de campos eletromagnéticos. Cada um destes modos é admissível.

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Principias: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 177- 190.

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Neste caso, a descrição de objetos em termos de linguagem ordinária é tomada como um mesmo mundo que pode ser descrito, ou formalizado, de várias formas (Putnam 1995, p. 1 09).1

O problema que Goodman coloca é que, quando falamos em termos de cadeiras, mesas, árvores, pessoas, isto já é uma descrição, ou seja, uma versão, e não o mundo. Por isso mesmo, diz Goodman, não pode­mos falar como se a relação entre esses objetos existisse como um fato independente de todas as descrições, porque eles não são independen­tes da experiência que é sempre organizada por um sistema simbólico. Putnam diz que essa objeção é trivial:

Por que alguém deveria supor que a realidade pode ser descrita indepen­dente de nossas descrições? E por que deveria o fato de que a realidade não pode ser descrita independentemente de nossas descrições nos le­var a supor que existem somente descrições? Depois de tudo, de acordo com nossas próprias descrições, a palavra "quark" é uma coisa, e wn quark é wna coisa muito diferente. (Putnam 1995, p.l22)

Goodman diria que entre a palavra "quark" e a coisa quark existe a ex­periência do quark. Aliás, o que nós temos é a palavra "quark" e uma experiência dele, mesmo porque, o quark mesmo, ninguém nunca viu, e isso é literal.

2. O Irrealismo

Com a esperança de uma firme fundação do conhecimento na experiên­cia abandonada, diz Goodman, ficamos mais com a forma de descrever do que com o que é descrito. Se toda afirmação que tenta descrever um fenômeno, mesmo uma sentença simples como "verde, aqui, ago­ra" não está livre de influências e nem de possíveis correções - isto é, se toda descrição é passível de correções, sendo somente uma "versão" do fato, porque é impossível falar dele tal qual ele é -não faz sentido afirmar sua existência, e toma-se inútil qualquer esforço para sustentar a existência de um mundo autônomo com relação ao pensamento. Pa­ra Goodman, a questão de saber como as coisas são em si mesmas não importa muito, ele pensa que devemos nos preocupar mais em discutir

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Versões do Mundo ou Mundo das Versões? 179

os usos, as propriedades, os modos como construúnos as versões e os

critérios que usamos para distinguir as versões válidas daquelas que não são. O que importa são as versões e não o mundo além delas, ou se ele existe ou não. A esse ponto de vista Goodman dá o nome de irrealismo.

Irrealismo não sustenta que todas as coisas ou mesmo alguma coisa é irreal, mas vê o mundo dissolvendo-se em versões e versões fazendo mundos, descobre a ontologia evanescente, e investiga o que torna uma versão correta e um mundo bem construído. (Goodman 1984, p. 29)

O que Goodman propõe com o irrealismo é, como veremos mais adian­te, identificar o mundo com versões de mundo. O que não significa que perdemos a realidade, mas, que seu conceito é redefinido. Esta tese anti­metafísica pretende refutar não só o realismo, mas também qualquer es­pécie de anti-realismo ou idealismo, dizendo que a diferença entre eles é puramente convencional (Goodman 1978, p. 1 19). Ele defende uma idéia pragmática semelhante à de Quine, dizendo que quando suspeita­mos estar dissolvendo o tudo em nada falando de versões, voltamos a falar como se as versões verdadeíras descrevessem mundos, ou, como quer Quine, voltamos a nossa ontologia segura de objetos físicos (Quine 1975, p. 253 ).

De qualquer modo, o irrealismo é, antes de tudo, uma refutação do realismo metafísico. De acordo com Putnam, esta é uma versão que sus­tenta que cada objeto e cada propriedade tem somente um "significado" filosoficamente sério, e que o mundo é em si mesmo dividido em objetos e propriedades de um único modo definido (Putnam 1995, p. 123). O realismo metafísico carrega ainda a dicotomia sujeito-objeto, ou mundo e linguagem, um tipo de dualismo que Goodman pretende superar ao identificar mundos com versões.

A tese do irrealismo, da qual Goodman apresenta uma prúneira ver­

são no artigo "The Way the World Ts" vai diretamente contra a filosofia do atomismo lógico, que sustentava a possibilidade de um isomorfismo estrutural entre a linguagem e o mundo, com fatos atômicos correspon­dendo a sentenças atômicas, e objetos atômicos correspondendo a no­mes próprios. Para isso, Russell e Wittgenstein forneceram uma teoria

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sobre a estrutura última do mundo e sobre a possibilidade de wna lin­guagem ideal.2 Mas, segundo a lguns críticos, entre eles Susan Haack, a própria idéia de isomorfismo estrutural entre proposições e fatos não é suficientemente clara. Por exemplo, a proposição "o gato está a esquer­da do homem" tem, no mínimo, três e lementos, enquanto que o fato correspondente tem apenas dois (Haack 1978, p. 92).

Também nesse sentido, Goodman diz que o problema de comparar a linguagem com o mundo aparece quando percebemos que uma seqüên­cia de palavras como, por exemplo, "está chovendo lá fora," é tão dife­rente quanto possível da tempestade. E isso vale tanto para uma descri­ção falsa quanto para uma descrição verdadeira. Na verdade, o problema é que não temos como comparar o mundo com a linguagem, uma vez que não temos o mundo sem a linguagem. Goodman diz que o que o atomismo lógico fazia era endossar wna tendência natural de pensar a verdade como algo que espelha ou reproduz fie lmente a realidade, e que a estrutura da linguagem era igual à estrutura do mundo. Seguindo essa tendência, teríamos descrições simples somente se o mundo fos­se simples, ou descrições coerentes também somente se o mundo fosse coerente. E chegaríamos ao absurdo de que, para sabermos se um enun­ciado em português corresponde à realidade, teríamos que saber se essa realidade também é expressa em português (Goodman 1972, p. 29).

Nesta discussão com o atomismo lógico, o que está em jogo é uma teoria da verdade como correspondência, isto é, a possibilidade de defi­nir quando uma sentença é verdadeira confrontando-a com os fatos do mundo. Aqui, o mundo é entendido como a realidade da qual falamos, uma realidade que, para Goodman, é externa ao discurso, e que é, justa­mente por isso, inacessível. Por isso mesmo, ele continua, não se pode falar em fatos do mundo: os fatos são apenas ficções, porque são cons­truídos dentro das versões.

O papel da linguagem não é do dizer o mundo como ele é, mas, mais do que isso, fazer o mundo ser como ele é. Em outras palavras, o que o mundo é, depende da versão que usamos para falar dele. Ou então, o mundo é uma versão de mundo.

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3. Mundo das Versões

Segundo Israel Scheffler, existem duas interpretações possíveis da rela­ção goodmaniana entre "o mundo e suas representações, ou versões." Na primeira, chamada interpretação versional, um mundo é um verda­deiro (ou correto) mundo-versão, e o pluralismo simplesmente reflete, e estende para versões, generalizando a doutrina de Structure of Appe­arance, segundo a qual podem ser encontradas generalizações confli­tantes para qualquer assunto pré-filosófico. Na segunda, chamada inter­pretação objetual, o mundo é um domínio de coisas (versões ou não­versões) referidas para, ou descritas por um correto mundo-versão. E, todas as coisas, incluindo objetos como estrelas, mesas, cadeiras, são construídos dentro das versões. O discurso pluralístico aqui não fala simplesmente de versões conflitantes; "múltiplos mundos reais" é o le­ma de Goodman, e ele nos previne que isso não deve "ser tomado sim­plesmente como puramente retórico" (Scheffler 1997, p. 188).

Na interpretação versional de Scheffier, os mundos são identificados com as versões. Goodman identifica mundos com versões quando fala no mundo da fisica, ou da arte, aquilo que ele chama de mundos sim­bólicos. Se mundo é identificado com versão desse modo, obviamente, Goodman deve reconhecer que existem vários mundos, aliás, é exata­mente a isso que o pluralismo se propõe. Mas essa é uma definição fraca de mundo, porque ninguém vive dentro de um mundo desses.

Na interpretação objetual, o mundo é um construto, mas nem tudo o que está no mundo é exatamente versão. Em Of Mind and Other Matters, Goodman diz que versões e mundo não são o mesmo:

O mundo de uma versão verdadeira é um construto; as características não são atribuídas a alguma coisa independente, mas combinada com uma outra versão para fazer o mundo daquela versão. O mundo não é a própria versão; a versão pode ter características - tal como ser em inglês ou consistir de palavras - que seu mundo não tem. Mas o mundo depende da versão ( ... ). Nós fazemos versões, e versões verdadeiras fazem mundos (Goodman 1984, p. 34).

Para Scheffier, está tudo bem com a interpretação versional, mas ele não

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aceita a interpretação objetual. Esta última teria, para ele, a conseqüên­cia absurda de que nós fazemos objetos com as estrelas, por exemplo. O problema da interpretação de Scheffier é que, na interpretação objetual, ele coloca a questão de um ponto de vista externo, como se uma estre­la pudesse ser um objeto independente de nós. Este é um modo de ver as coisas que Goodman jamais aceitaria porque, para ele, o que existe depende do que nós fazemos. Mais adiante, no texto de Schcffier, ele mesmo reconhece as razões de Goodman ao falar do seu construtivismo radical, que está muito próximo, como o próprio Goodman reconhece em O f Mind and Other Matters (p. 32), do realismo interno de Putnam.

De acordo com o realismo interno, por exemplo, só faz sentido falar do mundo, ou falar da realidade, de dentro de uma versão. Assim, um objeto do mundo, como uma estrela, é um objeto percebido, descrito, ao qual corresponde um conceito. Neste sentido, uma estrela é um objeto construído por nós, primeiro por nossa percepção que o distingue dos outros objetos, e depois pelo uso da linguagem, quando aplicamos um conceito a ele.3

A diferença entre o irrealismo de Goodman e o realismo interno de Putnam, e também o motivo pelo qual Scheffier, não aceita a versão ob­jetual é o fato de que tanto ele como Putnam acreditam na existência de um mundo fora das descrições. Para eles, há uma só realidade, ou mun­do, embora múltiplas versões ou esquemas dessa realidade possam ser igualmente conflitantes e corretos. Putnam persegue um realismo ordi­nário, do senso comum e, como tal, não aceitará jamais a idéia bizarra de que habitamos múltiplos mundos. Isto não significa, no entanto, que Putnam seja um realista externo, se por tal expressão, se entende um realismo que postula um mundo cujo mobiliário já está pronto de an­temão, embora não possamos conhecer como esse mobiliário é em si mesmo. Nesse sentido, ele concorda com Goodman que não faz sentido falar da coisa em si, ou uma realidade determinada independentemente de nós. O ponto que ele assinala quando diz que há uma só realidade se sustenta pragmaticamente e conceitualmente. Putnarn diz que é assim que encaramos o mundo, e o conceito que temos dele impUca que ele seja um só e não vários. O fato de que não podemos falar do mundo sem

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descrevê-lo não implica que ele seja a descrição, mas que ele seja aqui­lo que descrevemos. E ser aquilo que descrevemos é uma propriedade diferente de ser a descrição. Finalmente, para Putnam, a multiplicidade de descrições não implica a multiplicidade de mundos, mas somente que aquilo que o mundo é depende e varia de acordo com nossas concepções e valores.

E é exatamente do ponto de vista desse realismo comum que Putnam diz, contra Goodman, que o fato de aplicarmos um conceito a um objeto não implica que ele seja construído por nós. Isto é, o fato que aplicamos o conceito estrela a um objeto não torna esse objeto uma estrela - a mesma objeção feita por Scheffler. É tal como dizer que alguém é sol­teiro, não faz com que tal pessoa seja efetivamente solteira. A resposta de Goodman a essa objeção é que não podemos traçar uma linha clara entre aquelas características do mundo que são dependentes do discurso e aquelas que não são. O que ele quer dizer é que a estrela só existe como um "tipo natural," porque temos para ela um nome e um conceito. E ele responde a Scbeffler com uma outra questão, pedindo a ele para dizer uma característica da estrela que não é feita por nós.

Putnam vai um pouco mais longe afirmando que há em Goodman um idealismo do tipo de Hegel ou F ichte (Puniam 1995, p. 111). E talvez Putnam tenha razão ao sugerir que Goodman é um tipo de idealista por­que o construtivismo radical é semelhante ao idealismo no sentido de que, para o construtivista, o mundo é conhecido pela imposição de um esquema perceptivo e conceitual.

Isso coloca um outro problema para o construtivista, que é o de ex­plicar o papel que a experiência desempenha na cognição. Se, como sustenta Goodman, a mente é ativa desde a percepção, e é influenciada pelo conhecimento e pela informação que o sujeito já possui antes de perceber, como podemos explicar que, às vezes, mudamos nossa forma de perceber, e que essa mudança é provocada justamente por aquilo que chamamos, "um fato novo"?

Goodman diz que o fato de que o conhecimento organiza a experi­ência não significa que nossas crenças ou expectativas sobre o mundo sejam sempre confirmadas. O processo de construção de uma versão in-

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clui o trabalho dificil de fazer com que essa versão se adapte ao mundo que ela descreve. Mas, mais uma vez, os critérios pelos quais dizemos que uma dada versão é verdadeira, correta ou adequada, dependem da

versão. O realismo interno está também ligado à tese da relatividade onto ló­

gica. Se só podemos falar da realidade de dentro de uma versão, segue­

se que a realidade é relativa as versões. Por exemplo, pontos no espaço podem ser definidos como "porções espaço temporais" e, alternativa­mente, como " meros limites." Goodman vê essas duas teorias como

incompatíveis, porque se há duas definições contrárias elas não podem estar falando da mesma coisa. Ao mesmo tempo, as duas são corre­tas. Como Goodman considera que elas são logicamente incompatíveis, conclui que, se são verdadeiras sobre algum mundo, são verdadeiras a respeito de mundos diferentes (Putnam 1995, p. 116).

Goodman considera que não podemos aceitar duas verdades confli­tantes no mesmo mundo, porque o que define se um enunciado é verda­deiro é o fato de ser ele verdadeiro em a lgum mundo-versão. Por outro lado, um enunciado é falso se não é verdadeiro em nenhum mundo. As­sim, um mesmo mundo não poderia conter dois enunciados contraditóri­

os, sob pena de tomar-se inconsistente. E consistência é, para Goodman, um critério óbvio de adequação de uma versão, ou sistema. Um mundo válido não pode ser inconsistente. Porque como ele mesmo diz, de uma contradição, segue-se qualquer coisa. Por outro lado, o pluralismo de Goodman não pode rejeitar a possibilidade de versões conflitantes. A acomodação de um rigor lógico ao plural ismo paga o preço da inflação de mundos. Mas talvez pudéssemos definir esses múltiplos mundos de Goodman como mundos lógicos. Assim, temos tantos mundos quanto

temos versões. As versões são, como já vimos, sistem as de símbolos que ordenam,

classificam e categorizam os objetos de seu domínio, isto é, seus referen­tes. Esses sistemas são artefatos no sentido de que suas características não são impostas pela espécie de coisas que constitui o domínio que o

sistema organiza, mas são o resultado de livres decisões nossas quanto

à forma de organizá-lo. Em particular, são os sistemas que determinam

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as condições para a individualização dos objetos. Quando dois siste­

mas ou versões individualizam diferentemente, discordam nas respostas as questões de saber o que é o mesmo e o diferente, a permanência e

a mudança. Então, não podemos dizer que duas versões diferentes são versões do mesmo mundo, uma vez que não podemos saber o que é o mundo independentemente dessas versões. Toda vez que mudamos o

modo de dizer, dizemos uma coisa diferente. Na sua review de Ways o f Worldmaking, Quine diz ironicamente que

o livro de Goodman é uma coleção. Nele, diz Quine, Goodman apresen­ta uma filosofia do estilo, uma filosofia da arte, uma filosofia da citação e uma filosofia da ilusão de ótica. Toda essa coleção de temas, diz Qui­

ne, poderia formar uma "filosofia da natureza." Uma filosofia absurda, é claro, porque ele não aceita a tese pluralista de Goodman de que há

muitos mundos e que nenhum deles pode conter o todo. Para ele, mes­mo que possamos admitir a existência de várias teoria físicas, falar para além delas é apenas uma "tênue metáfora" (Quine 1982, p. 96).

Quine rejeita os múltiplos mundos de Goodman, dizendo que separar a realidade em vários mundos é violar o princípio de parcimônia. Me­lhor seria tomar uma dessas versões no momento que está sendo usa­da como verdadeira e a outra como falsa, e vice-versa. (Quine 1982, pp. 21- 2)

Na verdade, o próprio Goodman diz que, muitas vezes, duas versões aparentemente contraditórias podem ser acomodadas no mesmo mundo.

Por exemplo, os enunciado "O Partenon está intacto" e o enunciado "O Partenon está em ruínas" são an1bos verdadeiros para partes temporais diferentes da mesma construção, assim como "O sol move-se em tomo da terra" e "A terra move-se em tomo do sol" podem ser reconciliados se entendidos como enunciados elípticos, isto é, como partes de enun­ciados maiores e entendidos como "Dentro do sistema ptolomaico o sol move-se em tomo da terra" e "Dentro do sistema copemicano a terra move-se em tomo do sol." Assim, esses dois enunciados poderiam ser reconciliados dentro de um mesmo mundo, ou dentro de uma mesma versão.

Putnam diz que Davidson concorda com Goodman que, se existem

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dois enunciados contraditórios, é ininteligível mantê-los a ambos como verdadeiros (Putnam 1995, p. 116). Mas não concorda com a prolife­ração de mundos goodmanianos. Para Davidson, só seria válido dizer que há vários mundos se pudéssemos provar o relativismo conceitual e a tese da incomensurabilidade entre mundos. Em "The Very ldea of a Conceptual Scheme," Davidson diz que sustentar a idéia de que existe um só esquema conceitual é tão absurdo quanto dizer que existem vá­rios. Isso poderia ser tomado como uma critica à idéia relativista de Goodman de que existem vários mundos, uma vez que a definição de esquema conceih1al é semelhante à de mundo-versão no sistema good­maniano. Esquemas são definidos por Davidson como "modos de orga­nizar a experiência" e "sistemas de categorias que dão forma aos dados dos sentidos." O relativismo conceitual sustenta que diferentes esque­mas são incomensuráveis, isto é, são intraduzíveis, o que equivaleria a dizer que pessoas com esquemas conceituais diferentes vivem em mun­

dos diferentes. O argumento de Davidson contra essa idéia relativista é que não há um critério seguro para saber se dois esquemas conceitu­ais são incomensuráveis. Se alguma coisa é entendida como linguagem, diz Davidson, então é porque alguma coisa de seu conteúdo foi com­preendida; logo não faz sentido falar em incomensurabilidade total. Por exemplo, se alguém aponta para duas versões, ou linguagens, e diz que elas são incomensuráveis, pode-se perguntar como ele sabe que elas são versões. Se ele não pode dizer nada sobre seu conteúdo, então não pode dizer nem mesmo que ela é uma versão de algo. Por outro lado, diz Davidson, os casos de falha parcial de tradução também não são claros, porque eles pressupõem a possibilidade de tradução completa.

A possibilidade de traduzir completamente uma versão em outra é questionada também por Quine, que apresenta em Word and Object a sua tese da indeterminação da tradução. Também no artigo "A relativi­

dade ontológica" (Quine 1975, p. 139), ele diz que a possibilidade de

tradução completa pressupõe uma teoria da linguagem como o "mito do museu," onde cada palavra é a etiqueta de um objeto que seria o seu

significado. A lição da indeterminação da tradução que ele nos dá é jus­tamente essa: não há tal significado além das nossas práticas de tradução

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Versões do Mundo ou Mundo das Versões? 187

e interpretação. Dizemos que duas sentenças têm o mesmo significado quando traduzimos uma na outra. A tradução e a interpretação são o critério para atribuir igualdade de significado, e não o contrário. Não temos, antes, a identidade de significado, para depois julgar se a tradu­ção é correta ou não. O critério para julgar se uma tradução é correta ou não é o comportamento verbal e não-verbal observado dos locutores. A partir da observação do comportamento aberto daquele que fala, cons­truímos hipóteses sobre o significado das palavras. Uma tradução é dita incorreta se ela não se adequa ao comportamento aberto dos locutores.

Mas a critica de Davidson perde sua força se considerarmos que Go­odman não sustenta a idéia de que seus vários mundos são incomensurá­veis. Goodman é negligente com relação ao problema da tradução entre versões. Mas, pode-se dizer que ele concordaria com Quine e também com Davidson. Em "On Likeness ofMeaning," ele persegue um critério pelo qual podemos dizer que dois predicados têm o mesmo significado, e o resultado ao qual ele chega é que não há como falar de dois predi­cados tendo o mesmo significado, mas que há uma gradação que vai do pouco parecido ao muito parecido. Talvez o motivo pelo qual Goodman não trate do problema da tradução seja justamente o fato de que sua teo­ria dos símbolos enfatiza justamente as relações entre os diferentes tipos de sistemas simbólicos ou linguagens. Ele seria talvez o último filósofo a sustentar a idéia de que não há possibilidade de traduzir uma versão ou linguagem em outra. Mas, mais do que isso, Goodman enfatiza que podemos combinar ou juntar versões para fazer mundos, com a restri­ção de que eles sejam logicamente compatíveis. Por exemplo, podemos agrupar num mesmo mundo do Renascimento, uma versão que fale da arte, com uma que fale das guerras e outra que fale dos costumes. A sua própria teoria dos símbolos tem a intenção de dizer o que há de comum entre todas as versões, ou todos os mundos.

Goodman diz, em Ways o f Worldmaking (p. 2), que a questão de sa­ber se existe um mundo ou muitos é vazia. Se dissermos que existe somente um mundo, temos que concordar que ele tem múltiplos aspec­tos. Se dissermos que existem muitos, podemos dizer que o conjunto de todos eles forma um só. Mas um mundo neutro e subjacente, um mundo

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188 Noeli Ramme

sem espécies, ordem, movimento ou padrão é um mundo pelo qual não valeria a pena lutar nem contra nem a favor. Na prática, traçamos limites entre os mundos de acordo com nossa conveniência e nossos propósitos, os mesmos critérios que usamos para agrupar mundos.

Podíamos, contudo, assumir que o mundo real fosse o mundo de algu­mas das versões alternativas corretas (ou grupos delas ligadas conjunta­mente por algum princípio de redutibilidade ou tradutibiüdade) e todas as outras como versões do mesmo mundo diferindo da versão padrão de modos explicáveis. O fisico considera o seu mundo como o mun­do real, atribuindo as supressões, adições, irregularidades, ênfases das outras versões às imperfeições da percepção, às urgências da prática, ou à liberdade poética. O fenomcnista considera o mundo perceptivo e fundamental , e as excisões, abstrações, simplificações e distorções das outras versões como resultantes das preocupações científicas, práticas ou artísticas. Para o homem da rua, a maioria das versões da ciência , da arte e da percepção afastam-se de várias maneiras do mundo útil e familiar que ele construiu a partir dos fragmentos da tradição científica c artística, e afastam-se também da sua própria Juta pela sobrevivência. Este mundo, na verdade, é aquele que mais freqüentemente se consi­dera como real; porque a realidade num mundo, como o realismo num quadro, é largamente uma questão de hábito. (Goodman 1978, p. 20)

Assim, a realidade do mundo é preservada. A mudança que Goodman introduz é que não podemos falar da realidade como algo externo, como aquele mundo do qual falamos e que poderia existir independentemente de nossas descrições. O mundo real é o mundo construído dentro da nossa experiência. Mas o fato de que podemos satisfazer nossa neces­sidade de um mundo de diferentes modos não impede a distinção entre mundos corretos e incorretos. Os múltiplos mundos de Goodman não são apenas possíveis, mas reais, e um mundo real deve ser adequado a algum propósito.

O que tentamos mostrar é que, inicialmente, Goodman rejeita a idéia realista de que nossas versões falem de um mundo neutro subjacente à todas as versões. Ele propõe que passemos a falar de múltiplas versões de mundo e que cada versão é um mundo-versão. Apesar de se apro­ximar do realismo interno de Putnam dizendo que a realidade é relativa

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Versões do Mundo ou Mundo das Versões? 189

às versões, ele se afasta quando diz que não há como dizer que há um mundo que é descrito de modo diferente por todas versões, e que não há uma linha clara para diferenciar a descrição do mundo no qual vivemos.

De fato, Goodman parece fazer uma volta de 360 graus e chegar ao ponto onde partiu. Primeiro, ele diz que nossa linguagem não diz o mundo como ele é, que linguagem é uma coisa e o mundo é outra, que as qualidades que atribuímos ao mundo, como coerência, simplicida­de ou complexidade são características da linguagem e não do mundo. Depois ele assume uma posição relativista, dizendo que existem várias descrições possíveis do mundo. Mas essa posição é fraca porque ele insiste na tese irrealista de que só temos descrições e não o mundo, e como tentamos mostrar, se assumirmos que o relativismo depende da distinção esquema-conteúdo e da incomensurabilidade, Goodman não pode ser chamado propriamente de relativista. Finalmente, ele assume uma postura pluralista e, mais do que isto, construtivista, dizendo que o mundo é construído pela linguagem, ou seja não há como separar lin­guagem e mundo. Isto pode ser entendido que o mundo é como a nossa descrição diz que ele é. A diferença entre a posição inicial, da crítica ao realismo, e a posição final, construtivista é que o dualismo realista entre linguagem e mundo foi finalmente rejeitado.

Referências

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190 NoeliRamme

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Scheffier, I. 1997. Symbo/ic Worlds . Cambridge: Cambridge UP.

Notas

1 A construção de versões é uma tese já delineada por Goodman em Structure of Appearance. Ali, ele propõe que um sistema construcional é uma formali­zação de algum domínio de conhecimento, o qual pode ser pensado como um conjunto de sentenças formuladas em um discurso pré-sistemático, elaborado em uma linguagem natural. 2 Esta tese é apresentada em Russell, B. "The philosophy ofLogical Atomism." In: Logic and knowledge. Londres: Marsh, 1956. 3 A noção de Scheffier de menção-seleção poderia ajudar a entender como po­demos construir estrelas. Segundo essa noção, um termo está relacionado não só com o que ele denota, mas também a outros tipos de representação. Assim, a palavra "estrela" não serve apenas para denotar o objeto estrela, mas serve também para desenhos de estrelas, fotografias de estrelas, descrições de estre­las e usos metafóricos da palavra estrela. Talvez o que Goodman queira dizer é que nós realmente fazemos estrelas porque ele entende a palavra "estrela" não só no seu uso denotativo. Denotar é apenas uma das funções das linguagens e dos sistemas simbólicos. Além do mais, nós literalmente construímos coisas manipulando símbolos como quando programamos um computador ou quando projetamos wna casa (Scheffier 1997, p. li).

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A EPISTEMOLOGIA NATURALIZADA E A NEGAÇÃO DE PRINCÍPIOS A PRIORl DO

CONHECIMENTO

Sofia Inês Albornoz Stein Universidade Federal de Goiás

1. Introdução

Este trabalho visa mostrar, a partir de textos e artigos de Willard V. O. Quine, Peter Strawson e Susan Haack, a maneira pela qual é descri­ta uma epistemologia, ou, tomada de forma mais abrangente, filosofia, naturalizada, que, em uma de suas muitas possíveis versões, nega a exis­tência de princípios a priori do conhecimento e defende que a filosofia, apesar de continuar tendo a tarefa de responder a perguntas estritamente filosóficas, como a pergunta acerca de como conhecemos o mundo, só pode desenvolver-se com o auxílio dos conhecimentos da ciência empí­rica.

O texto terá como guia o artigo de Susan Haack "Between the scylla of scientism and the charybdis of apriorism" (1998), no qual a autora confronta as posições de Quine e de Strawson com relação ao papel que deve assumir a atividade filosófica. Susan Haack levanta a questão de se a filosofia deve ser vista com uma análise das estruturas conceituais do pensamento (Strawson), se deve ser considerada uma extensão da ciên­cia empírica (Quine 1) ou se as questões filosóficas devem ser resolvidas no interior da ciência empírica (Quine 2). Respondendo a essa questão, Susan Haack propõe uma resposta que situa-se, segundo ela, em uma posição intermediária entre as de Strawson e de Quine.1

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 191- 202.

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192 Sofia Inês Albomoz Stein

2. O Naturalismo na Filosofia

A epistemologia naturalizada pode ter, segundo as várias formulações históricas que encontramos, diferentes significados. O que significa na­turalizar a epistemologia é algo relativo se observamos as posições de di­ferentes autores. Tanto Strawson, em Skepticism and Naturalism: some varieties (SN), quanto Susan Haack, em Evidence and lnquiry (EI), ten­tam exemplificar alguns possíveis significados do que pode ser entendi­do por uma epistemologia naturalizada, ou simplesmente por uma posi­ção naturalista em filosofia.

Como nos mostra Strawson, o naturalismo filosófico está represen­tado por grandes filósofos da história da filosofia como Hume e Witt­genstein. A característica comum a esses filósofos é a recusa de tentar "fundamentar" o conhecimento humano em princípios primeiros que ga­rantam, sem apelo a quaisquer outros conhecimentos, a verdade daquilo que afirmamos acerca do mundo. Em Hume, pode-se encontrar um ape­lo constante ao conceito de Natureza como aquilo que devemos aceitar como inevitável: por natureza, somos levados a crer na existência dos corpos, a raciocinar indutivamente e, logo, a ver uma ordem no mundo à nossa volta. A posição de Hume, segundo Strawson, defende que: "Es­sas inevitáveis convicções naturais, compromissos, ou preconceitos são irremediavelmente implantados em nossa mente pela Natureza" (SN, p. 18).2

Apesar de Wittgenstein não falar de uma Natureza, mas de uma práti­ca social da linguagem que desenvolve nossa capacidade de julgamento e a elaboração de crenças inseridas em uma certa estrutura ou em certas "regras" que determinam, por sua vez, a maneira como julgamos, há em comum entre ele e Hume a confiança na nossa crença na existência dos corpos e na confiabilidade da indução.

Apesar da impossibilidade de "fundamentarmos" essa nossa maneira de julgar acerca do que experimentamos, as dúvidas céticas não são, segundo Hume e Wittgenstein, dúvidas que possam colocar em xeque nossos conhecimentos. Essa mesma concepção, de que a filosofia não pode, nem tem o dever, de "fundamentar", em um sentido metafísico,

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A Epistemologia Naturalizada e a Negação ... 193

o conhecimento do mundo exterior, mas pode partir de certas crenças

"justificadas" acerca desse mesmo mundo, para explicar a maneira como

conhecemos, também é compartilhada por Willard Quine.

3. O Naturalismo Liberal de Strawson e Sua Crítica ao Naturalismo Estrito

Mesmo encontrando traços em comum a muitos tipos de naturalismo, são os traços distintivos que são levados em conta por Strawson ao con­trapor sua posição filosófica à de Willard Quine. Strawson argumenta em favor de sua inclusão na corrente naturalista, mas de um naturalismo

moderado, denominado por ele de "naturalismo não-redutivo", que tam­bém pode ser chamado de liberal ou católico. Utilizando-se da questão filosófica acerca da existência de ações morais ou de atos intencionais qualificáveis moralmente, Strawson faz a distinção entre dois tipos de interpretações dessas ações identificadas pelo senso comum como mo­rais.

Em uma primeira abordagem naturalista, naturalismo este ao qual Strawson chama de redutivo ou estrito, a moral é vista como uma ilu­são, pois só são observáveis os fatos empíricos das atitudes ou reações humanas frente a certos eventos ou comportamentos alheios e, portanto, só esses podem ser descritos de forma "objetiva". Os conceitos mo­rais, tais como "atitude moral", "liberdade", "ação moralmente boa", etc., não fazem, segundo essa visão, sentido, na medida em que são

expressões que não tem uma referência a fatos empíricos observáveis. Como descreve o próprio Strawson: "Ver seres humanos e ações huma­nas deste ponto de vista é vê-los simplesmente como objetos e eventos na natureza, objetos naturais e eventos naturais, a serem descritos, ana­lisados, e eventualmente explicados em termos nos quais a avaliação

moral não tem lugar ... " (SN, p. 40). Devemos ver a filosofia de Qui­ne como incluída nessa corrente "naturalista estrita", pois Quine afirma que a irredutibilidade das atitudes proposicionais intencionais a termos

comportamentais demonstra a "falta de base dos idiomas intencionais e o vazio de uma ciência da intenção" (Word and Object!WO, p. 221).

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194 Sofia Inês Albornoz Stein

Quine concede que o uso de idiomas intencionais é praticamente útil no cotidiano, mas, ao mesmo tempo, as atitudes proposicionais intencio­nais não resistem à análise mais apurada do "espírito científico estrito" (WO, p. 219).

Já do ponto de vista do naturalismo não-redutivo, em cujo âmbito Strawson se inclui, o ser humano é visto também como participando do fenômeno natural, porém não apenas como ser fisicamente objetivo, co­mo também como participante do fenômeno social enquanto ser moral, determinante de suas ações. Esse ponto de vista é o ponto de vista do senso comum, das pessoas que vivem em comunidade e que avaliam as suas ações conforme certos critérios de avaliação morais. Como diz Strawson:

Visto a partir de um ponto de vista, o ponto de vista que nós ocupamos naturalmente enquanto seres sociais, o comportamento humano apare­ce como um objeto próprio de todas aquelas reações pessoais e morais, afirmações e atitudes às quais, enquanto seres sociais, nós estamos na­turalmente propensos; ou, para apresentar o mesmo ponto de maneira diferente, ações humanas e agentes humanos aparecem como portado­res de propriedades morais objetivas (SN, p. 35).

Em "Two conceptions of Philosophy" (TCP), Strawson volta a de­senvolver a idéia de que é possível termos como objeto de estudo filo­sófico conceitos que não satisfazem ao critério de identidade de Qui­ne, ou seja, que é possível falarmos acerca de idéias ou conceitos que participam da "estrutura do nosso pensamento comum", mas que nem todos satisfazem os requisitos de clareza científicos estipulados por Qui­ne. Entre esses conceitos, Strawson elenca os seguintes: "idéias como aquelas de espaço e tempo, objeto e propriedade, evento, mente e cor­po, conhecimento e crença, verdade, sentido e significado, necessida­de e possibilidade, existência, identidade, ação, intenção, causalidade e explicação" (TCP, p. 312). A empresa filosófica de quem adere à sua concepção alternativa de filosofia, que permite essa "ontologia liberal", é, segundo Strawson, a de "elucidar o caráter de conceitos como esses e suas interconexões" (TCP, p. 313). O esclarecimento das interconexões

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entre esses tipos de conceitos expõe a estrutura que está pressuposta em nossas teorias acerca de "como são as coisas".

Segundo Strawson, se optamos por um visão mais liberal da tare­fa filosófica, em contraposição ao "cientificismo" próprio à filosofia de Quine, podemos perder em precisão científica, mas ganhamos em fide­lidade a como de fato se estrutura o nosso pensamento comum. Para exemplificar a sua postura frente à filosofia e esclarecer a divergência com Quine, Strawson elabora um critério ontológico mais flexível que o de Quine, que permite inclusive a identificação ou individuação de "ob­jetos abstratos" como propriedades ou atributos. Strawson descreve o seu critério da seguinte maneira: "O critério de aplicação do predicado é o critério individual de identidade da qualidade ou relação individual. O sentido do termo geral dá a essência do termo geral. Assim, não há

necessidade de um critério geral comum de identidade para todas as coi­sas do tipo ao qual a coisa geral pertence" (TCP, p. 314). Ele admite que o conceito de "sentido", pelo qual pretende individuar um termo geral, também não satisfaz aos critérios ontológicos de Quine, porém pretende demonstrar a necessidade da aceitação da identidade de objetos gerais, inclusive porque a individuação de objetos particulares somente é pos­sível, segundo ele, a partir da individuação de objetos gerais.

4. Três Versões de Naturalismo

Susan Haack, em "Between the Scylla of Scientism and the Charybdis of Apriorism" (BSC),3 seguindo a linha de raciocínio de Strawson de que Quine tem um "compromisso cientifico" ao colocar a filosofia "em continuidade com" a ciência, distingue entre três elementos (não neces­sariamente harmoniosos), entre outros possíveis, desse compromisso de Quine. O primeiro elemento seria a afirmação de Quinc de que a filoso­fia difere da investigação científica apenas em grau de abstração e gene­ralidade, que seu método não difere do método científico e deve aspirar aos mesmos padrões de rigor e precisão das ciências naturais na procura pela verdade. O segundo elemento seria a afirmação de Quine de que as questões filosóficas deveriam ser resolvidas no interior das ciências

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empíricas, tal como a psicologia empírica (essa posição é chamada por Haack de "cientismo reformista"). Por vezes, Quine chega a dizer que

as questões filosóficas que não podem ser respondidas pela ciência (co­mo a acerca do mundo do exterior) não são "questões genuínas" (essa posição é chamada por Haack de "cientismo revolucionário"). Susan Haack observa que há uma incompatibilidade lógica entre o primeiro e o segundo elemento, já que estar "em continuidade com" a ciência é incompatível com ''ser idêntica" à ciência. Ao terceiro elemento, Haack chama de "o tema extensionalista" e refere-se à rejeição de Quine de

todos os conceitos filosóficos que não podem ser explicados em termos puramente extensionais, tais como 'significado', 'analítico', os termos

modais, propriedades, proposições etc. A defesa do critério extensiona­lista para a aceitação de conceitos e, portanto, também de questões acer­ca desses conceitos, "sugere", como nos diz Haack, "que Quine aceita, de fato, somente um tipo de investigação, somente um tipo de verdade - a empírica" (BSC, p. 51). Haack observa que o primeiro elemento, que prega a continuidade entre ciência c :filosofia, é independente logi­camente, como o próprio Quine afirma, do terceiro, ou seja, da defesa do extensionalismo.

Assim como em Quine, Haack faz a distinção de três elementos na filosofia de Strawson. Um primeiro elemento constitutivo da concepção filosófica de Strawson seria a defesa de que a filosofia não deve tra­tar exclusivamente dos conceitos e categorias da ciência empírica, mas também de outras disciplinas, assim como, e principalmente, da "es­

trutura do nosso pensamento comum". A essa posição defendida por Strawson, Haack chama de "o tema do âmbito extra-científico". O se­gundo elemento elencado por Haack é o " tema da análise conceptual",

que descreve como tarefa central da filosofia a análise das estruturas e interconecções conceituais. O terceiro elemento citado é a afirmação de Strawson de que a empresa filosófica deve ser exercida com espírito mais descritivo do que crítico (tema este chamado por Haack de "te­

ma descritivista"). Haack observa que esses três elementos inseridos na

fi losofia de Strawson são independentes entre si. Após resumir as posições de Quine e Strawson com relação ao lugar

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A Epistemologia Naturalizada e a Negação ... 197

e papel da filosofia, Haack sintetiza o que entende ser a sua concepção

de filosofia. Distingue, para tanto, entre quatro elementos ou temas que determinariam sua posição. O primeiro elemento é semelhante ao "te­

ma do âmbito extra-científico de Strawson", pois consiste na afinnação

de que há diversas questões filosóficas, tais como questões de escolha ontológica, questões acerca de quando considerar uma teoria verdadeira,

ou questões acerca de qual a maneira pela qual percebemos os objetos

exteriores, além das questões e1encadas por Strawson, como as ques­tões estéticas, éticas, históricas etc., que não podem ser respondidas no interior da ciência empírica, que devem ser tratadas no âmbito próprio à filosofia. O segundo elemento da posição de llaack aproxima-se da concepção de Quine de que há uma continuidade entre a ciência e a

filosofia. O método filosófico deve almejar o mesmo rigor e precisão do método científico em sua procura pela "verdade", e, em um sen­tido bem geral envolve "elaborar conjeturas", desenvolvê-las, testá-las

e julgar a probabilidade delas serem verdadeiras. O terceiro elemento, chamado por Haack de "o tema do entrelaçamento do conceitual e do

empírico", representa a afirmação de que a investigação filosófica é uma combinação de questões empíricas (como defende Quine) e conceituais (como defende Strawson). A filosofia trata de questões empíricas em parte porque trata de problemas resultantes da atividade científica, em parte porque algumas de suas questões estão relacionadas, mesmo que não à ciência propriamente dita, à experiência ordinária, cotidiana, e, por último, em parte porque os conceitos dos quais trata a filosofia, cu­jas estruturas e interconexões, como nos diz Haack, são o "foco de aten­ção filosófica de Strawson" (BSC, p. 55), dependem em sua comple­xidade interna de pressuposições empíricas, tais como a pressuposição de que nossos sentidos são fonte de informação sobre coisas e eventos ao redor de nós, ou, dito de outra maneira, a pressuposição da realidade do mundo exterior. Ao quarto elemento de sua filosofia, Haack deno­mina "doutrina do senso comum critico". Essa denominação provém

de Peirce, que pretendia ter, como o descreve Haack, como ponto de partida as crenças naturais e instintivas do senso comum, porém não sem crítica, pois essas crenças, apesar de parecerem indubitáveis, ne-

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198 Sofia Inês Albornoz Stein

cessitam reformulação e crítica para serem despojadas de sua vaguidade inerente.

5. O Naturalismo de Susan Haack

Em seu livro Evidence and lnquiry (EI), Susan Haack faz, entre outras, a distinção entre uma concepção filosófica apriorista e uma concepção aposteriorista de filosofia. Segundo Haack, um naturalismo aposterio­rista se caracterizaria pela tese de que os problemas da epistemologia podem ser resolvidos a posteriori, no interior da rede da crença em­pírica. O naturalismo reformista e aposteriorista de Quine é, segundo Haack, consequência da negação de Quine das verdades a priori, "da sua concepção gradualista de filosofia como diferindo das ciências naturais somente em grau de generalidade e abstração, não no status metafísi­co ou epistemológico das verdades que procura" (EI, p. 122). Haack trilha um caminho semelhante ao de Quine, igualmente assumindo que não haja conhecimento a priori de fatos empíricos, porém deixando em aberto a possibilidade de desenvolvimento de uma teoria da justificação a priori que explique de que maneira uma crença verdadeira poderia ter uma justificação que independesse da experiência.4

Apesar dessa concessão, não compartilha da visão apriorista de Strawson, de que a fi losofia, além de ter questões próprias a serem res­pondidas, também deve responder a essas questões de forma indepen­dente da experiência ou da ciência empírica, utilizando apenas a obser­vação de " fatos lingüísticos" originados no "pensamento comum''. Nos diz Haack:

De alguma maneira, eu vejo a filosofia como dependendo, como a ciência o faz, da experiência; um tanto diferente dela em grau de "in­direção" da dependência, e no tipo de experiência da qual depende -em requerer atenção especial de características da experiência tão om­nipresentes que quase passam desapercebidas, mais do que em esforços especiais e aparatos que nos permitam experimentar o que não está dis­ponível à observação sem auxílio cotidiana (EI, p. 213).

Apesar de aceitar a posição de Strawson de que há questões fi losó-

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A Epistemologia Naturalizada e a Negação ... 199

ficas que não podem ser respondidas pela ciência e que a filosofia tem

a tarefa de investigar problemas e conceitos da vida cotidiana de um

ponto de vista que difere, em certo sentido, do ponto de vista da ciência empírica, Haack procura perpetuar uma visão cientificista de filosofia, cujo método se assemelha ao das ciências e que se preserva ligada ao "tribunal da experiência", mesmo que indiretamente, ou quando trata de

questões metacientíficas ou quando trata, de um ponto de vista bastan­te geral, da experiência cotidiana. Mesmo nas estruturas conceituais e interconexões, que são o foco da atividade filosófica segundo Strawson, Haack observa a participação de "pressuposições empíricas".

Respondendo a Haack, Strawson discorda de que as "pressuposi­

ções" que participam da "prática conceptual comum" ou do nosso "pensamento ordinário" sejam de caráter empírico. Compara as pressu­posições das quais fala Haack com as "proposições" descritas por Witt­genstein em On Certainty como "o substrato" de toda nossa investigação ou asserção empíricas, "pano de fundo" contra o qual nós distinguimos entre o verdadeiro e o falso, "andaime de nossos pensamentos" ou ainda "armação da referência". Diz Strawson:

Assim, apesar, como Wittgenstein observa, delas terem 'a forma de pro­posições empíricas', elas não são realmente tais, nem, certamente, elas são garantidas logica ou analiticamente. Pode-se até desafiadoramente sugerir que elas lembram aquelas às quais Kant chamaria proposições sintéticas a priori. (Reply to Susan Haack, p. 65)

6. Conclusão

Segundo o "fimderentismo" elaborado e defendido por Susan Haack, todas as nossas crenças dependem em certo grau da experiência. Uti­lizando-se da alegoria de Quine acerca da tradição lingüística herdada socialmente, na qual Quine atribui a cor "cinzento claro" à trama de

sentenças que herdamos historicamente, sendo que, para se formar essa trama "cinzenta clara", são necessários de um lado os fatos (cor preta) e de outro, as convenções (cor branca), Susan Haack elabora um dia­

grama de quadrados representando sentenças, cada um dos quais é, em

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200 Sofia Inês Alborno= Stein

parte, branco e, em parte, preto. O grau de dependência da experiência é representado pela maior ou menor superficie preta. Porém, nenhum dos quadrados que simbolizam as possíveis sentenças de nossa "rede de crenças" é totalmente branco. 5

O que transparece deste diagrama é a crença de Haack de que todas as sentenças de nossa "rede de crenças", como também o afirma Quine, estão "contaminadas" em certo grau pela experiência. O que nos leva a questionar em que sentido Haack pretende "combinar o conceitual e o empírico", ou, como o interpreta Strawson, o a priori e o a posteriori.

Se Haack não concede a Strawson a existência de proposições a priori,

então sua posição não parece distinguir-se da de Quine a não ser na abrangência das questões postas pela fi losofia. Isto é, concordaria com Quine de que todo o universo lingüístico está impregnado de empiria, mas acreditaria em que há questões filosóficas relevantes que extrapolam o âmbito da ciência empírica propriamente dita.6

A essas visões aparentadas de Quine e Haack, que vêem a atividade filosófica influenciada por questões empíricas, apesar de não ser idênti­ca às ciências naturais, contrapõe-se frontalmente Strawson ao afirmar que: "Eu não vejo razão para supor que descobertas científicas futuras, por mais que sejam interessantes em si mesmas, possam ter qualquer in­fluência significante sobre as questões substanciais em debate" (Reply to Susan Haack, p. 66).

Apesar de minha simpatia, por questões de temperamento ou não, pelas posições aparentadas de Quine e Haack, não é possível, no âmbito deste artigo, apresentar a defesa dessas posições, a não ser apontando para a constante dívida que a filosofia acumulou com as ciências ditas empíricas na sua história. Por mais que as questões filosóficas possam ser consideradas peculiares à uma área singular do conhecimento huma­no, as respostas a essas questões não parecem ter sido encontradas sem o auxílio dos conhecimentos das outras áreas do saber humano. Devo admitir, entretanto, a impossibilidade de, no espaço restrito deste traba­lho, poder discutir com mais profundidade a respeito dessa contribuição da ciência empírica à filosofia.

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A Epistemologia Naturalizada e a Negação . .. 201

Bibliografia

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- . 1990. "Two Conceptions ofPhilosophy". In Barrett & Gibson 1990. - . 1998. "Reply to Susan Haack". In Hahn 1998. Wittgenstein, Ludwig. 1974. On Certainty. Oxford: Basil Blackwell.

Notas

1 A apresentação dessa posição de Susan Haack pode ser encontrada em for­ma detalhada em seu livro "Evidence and Tnquiry'' (1993), no qual também é discutida a epistemologia naturalizada defendida por Quine (cf. Cap. 6). 2 Todas as citações inclusas neste artigo foram traduzidas por mim do inglês ao português. 3 É interessante notar que a expressão "between Scylla and Charybdis" dá a entender que estamos frente a um dilema, sem escapatória. Mas no texto Haack oferece uma terceira via, ou seja, uma maneira de escapar do dilema. 4 Sua visão da filosofia será, como já o descrevi acima, próxima, em diferentes aspectos, às visões de Quine, Strawson e Peirce. 5 Vale observar que Quine ainda afirma que não se deve supor que haja nem traços pretos, nem traços brancos, no "cinzento claro". O que se oporia ao diagrama construído por Haack.

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202 Sofia Inês Albomoz Stein

6 Não me parece, no entanto, que Quine, apesar dos seus critérios ontológicos rígidos, não conceda à filosofia a possibilidade da indagação extra-científica, como as interrogações de sua própria obra o demonstram.

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A SELEÇÃO NATURAL DARWINIANA : DISCUTINDO A JUSTIFICATIVA DE UM PRINCÍPIO

Anna Carolina Krebs Pereira Regner Universidade Federal do Rio Grande do Sul

A teoria darwiniana exposta na Origem das Espécies tem na seleção natural seu princípio explicativo central, cuja justificativa pode ser exa­minada em dois momentos do "um longo argumento" (como Darwin se refere à Origem) em que se constitui a obra: na etapa de sua funda­mentação teórica e na de discussão e justificação do poder explicativo do princípio. Essa dupla condição de análise vem ao encontro da multifacé­tica acepção de "princípio" na Origem. "Princípios" aí aparecem como entidades normativas, freqüentemente dotadas de poder causal, tanto na condição de agentes causais como reguladores da ação causal, regendo tanto a esfera fática como a teórica, regulando tanto o nosso proceder como o proceder da e na Natureza, operando em diferentes níveis e num contexto explicativo constituído por uma estruturação lógico-conceitual que se revela não-linear. Mesmo aqueles princípios que exibem a condi­ção de "cânones da Natureza" ou que sejam centrais à teoria darwinia­na, são passíveis de esclarecimento/justificação c devem mesmo sê-lo, na perspectiva de uma sólida sustentação da rede argumentativa, que, como tal, não está restrita a uma argumentação linear, vertical.

Usualmente, as reconstruções do argumento geral da "Origem das Espécies" pretendem assumir o caráter de reconstruções hipotético­dedutivas e omitem o papel daquela segunda etapa, embora algumas reconstruções mais recentes, como a que é oferecida por Philip Kitcher em Darwin 's Achievement (1984), apontem noutras direções. Nas re­construções em pauta, o Princípio de Seleção Natural aparece como a conclusão de um argumento que tem, por premissas, um princípio de

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciencias. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 203- 221.

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Variação, de Luta pela Existência (às vezes referido como Princípio de Malthus), de Variação em Aptidão e de Hereditariedade.

No presente trabalho, criticarei as reconstruções hipotético-deduti­vas, com base numa análise dos conceitos chave da teoria darwiniana presentes nas premissas de tais reconstruções, envolvendo uma conside­ração atenta das "definições" oferecidas para "Seleção Natural," "Natu­reza" e "Luta pela Existência" e de suas relações. A partir dessa análise lógico-conceitual, será proposta uma reconstrução do argumento cen­tral da "Origem" calcada na leitura dessa obra como uma narrativa com uma estrutura não-linear, com sucessivas projeções e retomadas em ca­da etapa do ''um longo argumento" (como Darwin refere-se à sua obra), constituindo um movimento conceitual de mútuo esclarecimento entre o argumento (a obra) como um todo e cada argumento particular (cada capítulo) ou parte do longo argumento (narrativa).

Essa proposta igualmente contempla o nível de justificação do prin­cípio constituído pelo exame do seu poder explicativo e permite ver de que modo a discussão de sua justificativa encerra tanto questões relati­vas à sua fundamentação teórica como a seu escopo enquanto princípio explicativo.

1. A Reconstrução Hipotético-Dedutiva do Argumento Geral da Origem das Espécies

O argumento gera l da Origem das Espécies teve uma trajetória inter­pretativa curiosa e reveladora de sua condição inovadora. Inicialmente, sofreu duras críticas, por ferir os preceitos indutivos. Conforme Adam Sedwigck, em carta dirigida a Darwin em 24 de dezembro de 1859): "You have deserted ... the true method of induction ... " (Darwin 1896, vol. ll, p. 43). Ou, a crítica apontava ao caráter imaginativo de seus mé­todos, como diria William Whewell, ao comentar as explicações dadas por Darwin para a formação de órgãos complexos como os olhos:

For it is assumcd that the mere possibility o f imagining a series o f steps oftransition from one condition o f organs to anothcr, isto be accepted as a reason for belíeving that such transition has taken place. And next, that

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A Seleção Natural Darwiniana

such a possibility being thus imagined, web may assume an unlimited number of generations for the transition to take place in, and that this indefinite time may extinguish ali doubt that the transitions really have taken place. (Himmelfarb 1968, pp. 333-4)

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Em ambos os casos, trata-se de um implícito reconhecimento de que a teoria darwiniana fugia a uma reconstrução indutiva, ainda que tal­vez não se possa atribuir a Sedgwick e a Whewell wn mesmo entendi­

mento do que fosse a " indução,"1 cuja novidade argumentativa também anuncia-se numa certa ambigüidade do próprio Darwin face à natureza de seu argwnento. De um lado, parece ter-se antecipado a tais críticas, alegando, mais de uma vez, sua obediência aos padrões indutivos: "I

worked on true Baconian principies and without theory collected facts on a wholesale scale ... " (Darwin 1896, vol. I, p. 68). Diz que abando­nou mesmo a suas hipóteses mais queridas, quando os fatos se opunham

a elas (Darwin 1896, vol. I, p. 83), embora saibamos o quanto aprecia­va os seus "fool experiments" e que igualmente se ressentia quando se lhe atribuía grandes virtudes como observador, mas não como teórico (Darwin 1896, vol. I, p. 126). E, em passagens centrais de sua obra, enfatiza que a Origem das Espécies deve ser lida e avaliada como "um longo argwnento." Essa recomendação é feita em sua Introdução e na abertura de seu capítulo conclusivo:

... Iam well aware that scarcely a single point is discussed in this vol­ume on which facts cannot be adduced, often apparently leading to con­clusions directly opposite to those at which I have arrived. A fair result can be obtained only by fully stating and balancing the facts and argu­ments on both sides of each question ... (Darwin 1993, p. 18)

As this whole volume is one long argument, it may be convenient to the reader to have the Jeading facts and inferences briefly recapitulated. (Darwin 1993, p. 612)

Reforçando essa ênfase no "argumento como um todo," Darwin oferece, em pontos chave de sua exposição, como na sua Introdução, Capítulo IV

e Conclusão, passagens que viriam a ser consagradas, contemporanea­mente, nas reconstruções hipotético-dedutivas de seu argumento. São

elas:

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From these considcrations, I shall devote the first ehapter of this Ab­stract to Yariation under Domestication. We shall thus see that a large amount of hercditary modification is at least possible; and, what is equally o r more important, we shall see how great is the power o f man in accumulating by his Selection successivc slight variations. I will then pass on to the variability o f species in a state o f nature; but I shall, un­fortunately. be compellcd to treat this s ubject far too briefly, as it can be treated properly only by giving long catalogues o f facts. We shaJI, however, be enabled to discuss what circumstances are most favourable to variation. In the next chapter the Struggle for Existence amongst ali organic beings throughout the world, which inevitably follows from the high gcometrical ratio of their increase, will be considered. This i$ the doctrine of Malthus, applied to the wholc animal and vegetable kingdoms. As many more individuais of each species are bom than can possibly survivc; and as, consequently, there is a frequently recur­ring struggle for cxistence, it follows that any being, if it vary however slightly in any manner profitable to itself, under the complex and some­times varying conditions of life, will have a bctter chance of surviving, and thus bc naturally selected. From the strong principie o f inheritance, any selected variety wi ll tend to propagate its new and modified form. (Darwin 1993, p. 21)

Let it also be borne in mind how infinitely complcx and close-fitting are the mutual relations o f ali organic beings. to eaeh othcr and to their phys­ical conditions o f life; and consequently what infinitely varied diversi­ties o f structure might be of use to each being under changing conditions oflife. Can it, thcn, be thought irnprobable, sccing that variations uscful to man have undoubtedly occurred, that othcr variations useful in some way to each bcing in the great and complex battle o f life, should oceur in the course of many successive generations? I f sueh do oceur, can we doubt (remembcring that many more individuais are bom than can possibly survive) that individuais having any advantage, however slight, over others, would have the best chance o f surviving ando f procreating their kind? On the other hand, we may feel sure that any variation in the least de~:,rrcc injurious would be rigidly destroyed. This preservation o f favourable individual differences and variations, and the destruction o f those whieh are injurious, I have ealled Natural Selection, or the Sur­vival of thc Fittest. Variations neither useful nor injurious would not be aiTected by natural selection, and would be left either a fiuctuating element, as pcrhaps we see in certain polymorphic species, or would

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A Seleção Natural Darwiniana

ultimately become fixed, owing to the nature of the organism and the nature o f the conditions. (Darwin, 1993, p.l 08)

Nothing at first can appear more difficult to believe than that the more complex organs and instincts have been perfectcd, not by means supe­rior to, though analogous with, hwnan reason, but by the accumulation of innumerable slight variations, each good for the individual posses­sor. Nevertheless, this difficulty, though appearing to our imagination insuperably great, cannot be considered real if we admit the follow­ing propositions, namely, that ali parts o f the organisation and instincts offer, at least, individual differences-that there is a struggle for cx­istence leading to the preservation of pro:fitable deviations o f structure or instinct- and, lastly, that gradations in the state of perfection o f each organ may have existed, each good o f its kind. The truth o f these propo­sitions cannot, I think, be disputed. (Darwin 1993, pp. 612- 3)

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Já na época de Darwin, o enfoque hipotético-dedutivo do argumento darwiniano encontrou respaldo na defesa da cientificidade de seu méto­do feita por Stuart Mill, nos termos em que esse entendia o "método das hipóteses." Segtmdo Mill, a indução consiste na "operação de desco­brir e provar proposições gerais" (I 979, pp. 165-8), numa inferência que vai do conhecido para o desconhecido, devendo ser universalmen­te irrestrita e trazer algo "novo," que não estava contido nas premissas. O método científico (também chamado "método dedutivo'') compreen­de 3 etapas -indução direta de leis, que, por sua vez, compreende os métodos da concordância, diferença, concordância e diferença, re­síduos, variações concomitantes; raciocínio dedutivo, estabelecendo as conseqüências a serem testadas; verificação, permitindo uma contrapro­va e resposta (por indução, através da observação direta) a dificuldades reais levantadas às conclusões obtidas por dedução (1979, pp. 228-31). O procedimento por hipótese, suprimindo apenas o primeiro estágio, mas submetendo as hipóteses ao terceiro, da verificação, corresponde a uma indução completa (1979, p. 235).

De Thomas Huxley a Richard Lewontin, como assinala Philip Kit­cher (1984), incluindo, entre outros, Michael Ruse, Michael Ghiselin, David Hull e Ernest Mayr, as reconstruções hipotético-dedutivas do ar-

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gumento geral da Origem apresentam, com pequenas modificações, o seguinte fonnato:

l. Há variação entre os membros de uma espécie (PV: Princípio da Variação - capítulos 1-2)

2. Em cada geração, mais indivíduos nascem do que podem sobre­viver (PLE: Princípio da Luta pela Existência - capítulo 3. Tam­bém referido como Princípio Malthusiano)

3. Algumas variações afetam a capacidade dos organismos para so­breviverem e se reproduzirem; alguns organismos são portado­res de variações que favorecem sua sobrevivência e reprodução (PVA: Princípio da Variação em Aptidão - capítulos 2-4)

4. A hereditariedade é a nonna (PH: Princípio de Hereditariedade - capítulo 1)

5. Preservação das variações favoráveis a seus portadores e elimina­ção das injuriosas (PSN: Princípio da Seleção Natural - capítu­los 3 e 4)

PSN é justificado como a conclusão que necessariamente segue da con­junção dos princípios arrolados, cuja verdade revela-se indisputável a qualquer observador atento aos fatos da natureza. Essa relação entre premissas e conclusão confere ao argumento caráter dedutivo. Numa outra etapa, PSN será justificado pelo seu poder expl icativo com rela­ção a fatos , mesmo os mais "estranhos," regularidades empíricas, leis, outros princípios, procedimentos, superação de dificuldades, sentimen­tos estéticos e religiosos, incentivo a novas demandas de conhecimento. Essa última etapa, porém, não é tematizada nas usuais reconstruções hipotético-dedutivas do argumento central da Origem.

2. Dificuldades Encontradas nas Reconstruções Hipotético-Dedutivas Usuais

A condição acima, de que a verdade da conclusão (PSN) necessaria­mente segue da verdade das premissas (PV, PLE, PVA, PH), certamente é uma condição a ser satisfeita pelos argumentos dedutivos. Todavia, há

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pelo menos duas outras condições a serem satisfeitas pelos argumentos dedutivos na sua versão usual, que não são satisfeitas pela reconstrução apresentada: as premissas (pelo menos a 1, 2 e 3) não são independentes entre si, de modo que não podem ser independentemente corroboradas, e não há independência dessas premissas com relação à conclusão, da qual dependem para sua própria inteligibilidade.

Comecemos com a primeira premissa. Para a presente discussão, deixa de ser relevante como "espécie" deve ser conceituada. Aqui é suficiente a observação que Darwin faz em seu segundo capítulo:

Nor shall I here discuss the various definitions which have been given o f the term species. No one definition has satisfied all naturalists; yet every naturalist k.nows vaguely what he means when he speaks o f a species. (Darwin 1993, p. 95)

A clarificação desse conceito é parte do próprio processo de estabe­lecimento da "seleção natural" como o meio ou causa pela qual novas espécies são produzidas na Natureza. De um lado, à luz desse processo, espécies serão apenas "variedades bem-marcadas." De outro, esse pro­cesso só funciona se espécies forem "variedades bem-marcadas." Não há, pois, argumento independente para a conceituação de espécies como variedades bem-marcadas e para o processo de sua origem por "seleção natural." Esclarecer o processo de sua produção e esclarecer o que se­jam espécies são duas faces de uma mesma moeda. No que se refere a "variação," Darwin refere-se a modificações, essas incluindo "meras diferenças individuais":

Some authors use the term "variation" in a technical sense, as implying a modification directly dueto the physical conditions of life; and "vari­ations" in this sense are supposed not to be inherited; but who can say that the dwarfed condition ofshells in the brackish waters ofthe Baltic, or dwarfed plants on Alpine summits, or the thicker fur of an animal from far northwards, would not in some cases be inherited for at least a few generations? And in this case I presume that the form would be called a variety. (Darwin 1993, p. 65-66),

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Para a explicação da produção de novas espécies, são relevantes aquelas variações que sejam herdáveis, como está indicado na presunção de que formas possam vir a ser chamadas de "variedades."

É na segunda premissa que se concentra o grande eixo conceitual do argumento, com o conceito de " luta pela existência." Esse conceito, na sua dimensão darwiniana, contém em si o de "variação" e, mais ain­da, o de "variação em aptidão," fornecendo a medida para "aptidão"­conceito que, na Origem, é sempre relaciona!, dependendo da nature­za do organismo e das suas condições de vida, essas abrigando as mú­tuas relações dos organismos entre si e com as condições fisicas do seu ambiente. Assim Darwin conceitua a " luta pela existência":

I should prcmise that J use this term in a large and metaphorical sense including dependence of one being on another, and including (which is more important) not only thc life o f the individual, but success in leav­ing progeny. Two canine animais, in a time o f dearth may be truly said to struggle with cach othcr which shall get food and live. But a plant on the edge of a desert is said to stmggle for life against thc drought, though more properly it should be said to be dcpendent on the mois­ture. A plant which annually produces a thousand sceds, o f which only one o f an averagc comes to maturi ty, may bc more truly said to strugglc with the plants of the same and other kinds which already clothe thc ground. The mistletoe is dependent on the applc and a few other trees, but can only in a far-fetchcd sense be said to strugglc with thcsc trees, for, i f too many o f these parasites grow on the samc tree, it languishes and dies. But sevcral seedling mistletoes, growíng closc together on the same branch, may more truly bc said to struggle with each other. As thc mistletoe is disscminated by birds, its existcnce depcnds on them; and it may methodically be said to struggle with other fruit-bearing plants, in tempting the birds to devour and thus dlisseminatc its seeds. In these severa! scnses, which pass ínto each other, J use for convenience' sake the general tenn o f Struggle for Existencc. (Darwin I 993, p. 90)

A descrição que Darwin nos fornece da " luta pela existência" certa­mente cobre mais do que o princípio malthusiano, embora afirme, em passagem logo subseqüente à anterior, que a "luta pela existência" ine­vitavelmente segue da a lta taxa a que todos os seres orgânicos tendem a

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A Seleção Natural Darwiniana 211

crescer e que se trata da aplicação da doutrina de Malthus com desdo­

brada força a todo o reino animal e vegetal:

A struggle for existence inevitably follows from the high rate at which all organic beings tend to increase. Every being, which during its nat­ural lifetime produces severa} eggs or seeds, must suffer destruction during some period of its life, and during some season or occasional year, otherwise, on the principie of geometrical increase, its numbers would quick.ly become so inordinately great that no country could sup­port the product. Hence, as more individuais are produced than can pos­sibly survive, there must in cvery case be a struggle for existence, either one individual with another ofthe same species, or with the individuais of distinct species, or with the physical conditions of life. It is the doctrine of Malthus applied with manifold force to the whole animal and vegetable kingdoms; for in this case there can be no artificial in­crcasc of food, and no prudential restraint from marriage. (Darwin 1993, pp. 90-I)

Todavia, os ingredientes que perfazem seu quadro da "luta pela existên­cia" não são obtidos apenas do princípio malthusiano e fogem bastante do escopo desse. Levando à preservação dos mais bem equipados para a luta e à destruição dos portadores de variações injuriosas, o quadro le­va a sobreviventes "aperfeiçoados." As mútuas relações de dependência entre os seres orgânicos entre si e em relação às suas condições físi­cas presentes na tela darwiniana da "luta pela existência" trazem-nos os demais componentes dessas relações. Esses incluem as condições da natureza dos organismos, tais que a variabilidade, uma vez iniciada, tende a continuar, a tendência a um aumento geométrico das populações e à hereditariedade como norma. O princípio malthusiano apenas não nos garante que hajam sobreviventes e nada nos diz sobre a natureza dos organismos e de suas relações, tal como visualizadas na "luta pe­la existência" darwiniana. Nessa, a depreender-se do traço que Darwin lhe atribui como mais importante - não apenas a vida do indivíduo, mas seu sucesso em deixar descendência -encontra-se o critério para a avaliação da "variação em aptidão" e seu resultado mais significativo, na tarefa de explicar a "origem de novas espécies."

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Entendida em termos darwinianos, a "luta pela existência," retratan­do antes uma visão de Natureza, contém em si a terceira premissa. Mes­mo a autonomia de um princípio de hereditariedade (PI) passa a ser de­terminada no âmbito que nos assevera a segunda premissa, a fim de de­sempenhar sua função no argumento. As premissas, pois, encontram-se todas contidas naquela que encerra PLE e o papel que possam desempe­nhar para obtenção de PSN está determinado pelo papel que desempe­nham naquela premissa. Há uma mútua dependência ~ntre as premissas, e, resta-nos ver, entre as premissas e a conclusão.

No terceiro capítulo da Origem, Darwin explicitamente nos diz que PSN segue de PLE, reforçando as considerações acima quanto ao papel determinante de PLE no argumento. PLE é a condição para a ocorrência dePSN.

Examinar as relações entre premissas e conclusão consistirá em exa­minar de que modo se dá a relação entre PSN, como "efeito," e "luta pela existência," como "causa." Trata-se de uma relação causal que deve compreender uma dupla condição exibida por PSN na passagem acima. De um lado, PSN é o meio pelo qual se exerce a atividade que opera­cionaliza o poder da " luta pela existência" na produção dos resultados que incluem, de modo privilegiado, a produção de novas espécies. De outro lado, PSN é o poder mesmo de tal produção. Há, desse modo, um mútuo condicionamento entre PLE e PSN, entre premissa e conclusão. Tal condicionamento foge à causalidade humeana freqüentemente pos­ta à base dos modelos dedutivos de natureza causal, onde se supõe que "causa" e "efeito" sejam eventos independentemente descritíveis e irre­dutíveis, sem laços internos ou dependências semânticas. Todavia, nos termos acima, pelos quais Darwin nos oferece a primeira conceituação de PSN na Origem, PSN, o "efeito," já está lá, no quadro que constitui e integra a " luta pela existência," sua "causa." Como pensar essa últi­ma, do modo como Darwin a apresenta, sem ter presente, nas condições da luta que fornecem o critério de aptidão, a preservação das variações favoráveis, a vitória dos mais bem equipados, e a destruição das varia­ções injuriosas - ou seja, sem já pensar PSN? E como pensá-lo, sem as

condições que o quadro da "luta" estabelece? Num sentido estrito das

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exigências a serem cumpridas pelos argumentos hipotético-dedutivos, as usuais reconstruções do argumento darwiniano falham em dar conta de taiB relações.

3. Uma Proposta de Análise

A proposta a ser feita para reconstrução do argumento darwiniano rom­pe com as tentativas dedutivas tradicionais, sem recorrer a uma discu­tível proposta indutiva. Ao invés, começa por situar a questão na pers­pectiva solicitada pelo próprio Darwin de entender sua obra como "um longo argumento," como um todo. Esse todo surpreende-nos como uma narrativa, tanto pela abrangência de seu escopo, quanto pela sua estru­turação e uso de recursos tais como as metáforas. Tal como indicado no seu índice, cobre todos os ramos da História Natural e sugere um longo percurso ao longo da Natureza. Uma narrativa que, puxando uma grande diversidade de fios, tece uma rede, cujo mote central é claramente posto em sua Introdução: ao tratar da "origem das espécies," não é suficiente concluir que as espécies não foram criadas independentemente. Trata­se de mostrar como espécies originam-se umas das outras. Essa questão aparece sob diferentes versões: como são produzidas espécies na Natu­reza? Como se dão as maravilhosas co-adaptações? Como variedades tomam-se boas espécies? Como formam-se os gêneros e os grupos sob grupos? (Darwin 1993, capítulo lll, pp. 87-8). E a mensagem a ser transmitida é a de que

... I am convinced that Natural Selection has been the most important, but not the exclusive, mcans o f modification. (Darwin 1993, Introdução, p.23)

Qual a estrutura mais adequada a tal narrativa/argumento? A abran­gência de perspectiva deixa de ser surpreendente, a partir da "atitude" epistemológica, metodológica e, mesmo, ontológica que norteia seu in­vestigador, e da estruturação temática e lógica que relaciona os diversos ramos que perfazem a Origem, delineando o contexto da investigação. Para entender tal atitude, há que prestar atenção ao que Francis Darwin

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diz sobre seu pai: "He was a naturalist in the old sense ofthe word, that is, a man who works at many branches of science, not merely a spe­cialist in one" (Darwin 1896, v. I, p. 132). Uma visão da investigação da Natureza tal como a empreendida por Darwin tem o sabor de uma história da Natureza, não apenas no sentido de cobrir o que pertence à História Natural, mas no de algo a ser contado a um amigo numa lon­ga conversa, consideração essa presente nas palavras de Francis Darwin (1896, v. I, p. 132), quando diz: "The reader fe.els like a friend who is being talked to by a courteous gentleman, not like a pupil being lectured by a professor."

Sob esse enfoque, a exposição/defesa da teoria a ser feita por Darwin assume o tom de uma eslhis-tória a ser contada. Seu tema é a origem das espécies. A mensagem básica que Darwin quer transmitir é a de que es­pécies originam-se umas de outras por seleção natural. Por que, então, ocupar-se com um quadro temático que se afigura como uma história da Natureza? O ponto central a essa resposta diz respeito à relação que se estabelece entre a idéia básica a ser veiculada através dessa história, ou seja, a de que a origem das espécies dá-se segundo PSN e o escopo que a história adquire, remetendo a uma dada visão de Natureza. Seu motor, a idéia de que espécies originam-se umas de outras por seleção natural, apresenta-se como a parte cuja clarificação, através das suas relações com o todo, reverte também numa clarificação e fortalecimento desse. Clarificada, a idéia básica a ser transmitida exerce uma função articula­dora das demais partes em suas relações de dependência e integração. A Origem passa, assim, a ser lida como um movimento todo-parte de mútua constituição e esclarecimento do objeto de investigação.

Desde o ponto de vista temático e estrutural, cada capítulo, cada parte, ao longo da obra, representa um ponto de sustentação da rede argumentativa, do todo representado pelo "um longo argumento." Ca­da avanço em sua tessitura leva a retomar, num novo reforço, o ponto anteriormente estabelecido, revertendo numa crescente inteligibilidade do todo, da parte e da natureza de sua mútua sustentação. O movi­mento lógico-conceitual assim estabelecido procede de modo "circular," em patamares crescentes de inteligibilidade, através de contínuas reto-

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A Seleção Natural Danviniana 215

madas e avanços, e exibindo três etapas principais. Do capítulo I ao V, estabelecem-se os fundamentos da teoria. Do capítulo VI ao XIV, examina-se a corroboração de seu princípio-chave, o Princípio de Se­leção Natural, com sua crescente explicitação, (a) pelo tratamento das dificuldades, (b) transformação da evidência aparentemente "desfavorá­vel" em "favorável" (capítulo X) e (c) exploração dos casos nitidamente favoráveis à teoria darwiniana (capítulo XI ao XIV). No capítulo XV, com uma recapitulação e avaliação geral do argumento, as partes são dimensionadas pela contribuição trazida ao amadurecimento do todo. Desse modo, o "um longo argumento," que só cabe avaliar, segundo Darwin, na sua integridade, como um "todo," estrutura-se como uma rede cuja força depende dos nós, das "partes" que se entrelaçam e que, desse entrelaçamento, por sua vez, recebem sentido e sustentação.

Desde o ponto de vista conceitual, a "luta pela existência," por for­ça do tratamento que Darwin lhe confere, tanto retrata um dado estado de coisas, perfazendo uma "visão" da Natureza como um sistema de relações orgânicas e inorgânicas, quanto um princípio causal que, de algum modo, determina tais reJações. Ou seja, a "luta pela existên­cia" desdobra-se em Natureza e PSN. PSN é o meio pelo qual a Natu­reza, concebida através da imagem da "luta pela existência," revela-se responsável pelos resultados (surgimento de novas espécies a partir de variedades, e de gêneros distintos, num processo de crescente diferenci­ação, bem como os "aperfeiçoamentos" das adaptações e co-adaptações das formas orgânicas) que a Origem das Espécies deverá explicar.

Logo após introduzida a relação entre PSN e PLE (capítulo III), o esclarecimento conceitual de PSN e de seu poder explicativo passa a ser fundado na relação entre PSN e Natureza, que tem lugar nos capítulos III e IV. Tal relação justilica o papel do exame da domesticação para a elaboração e defesa do princípio em pauta (capítulos I e li), bem como das leis da variação (capitulo V) e do exame do poder explicativo de PSN com que se ocupa o resto da obra. A mútua clarificação dos con­ceitos de Natureza e de Seleção Natural é o suporte central da etapa de fundamentação teórica que tem lugar do capítulo I ao V, onde a metáfo­ra desempenha papel fundamental para esclarecimento conceitual. Em

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sua primeira apresentação de PSN, Darwin compara seus efeitos aos potentes efeitos da seleção pelo homem (Darwin 1993, pp. 87- 8). No capítulo IV, quando encontramos as relações entre PSN e Natureza, o tom é oscilante, entre urna visão com cores "mecanicistas" e com cores "teleológicas," parecendo reservar à última a condição metafórica, mas valendo-se de metáforas para refutar as "objeções" que lhe foram feitas. Logo a seguir, fornece uma definição de Natureza, com tom metafórico, e sem a condição de um "poder ativo de seleção":

... it is difficult to avoid personifying thc word Naturc; but I mean by Naturc, only the aggregate action and product of many natural laws, and by laws the sequencc of events as ascertained by us. With a little familiarity such superficial objections will be forgotten. (Darwin 1993, p. 1 09)

Vista corno sendo apenas um conjunto de leis, traz um tom "positivista," excluindo qualquer conotação "teleológica," como se resultante de uma ação "mecânica" das leis, tanto no sentido da consagrada validade das leis da Mecânica, a desempenharem um papel modelar, como no de sua constitutiva aplicação, com relação ao objeto de investigação Natureza, prescindindo de qualquer consideração em termos de "fins" ou "dispo­sições." À luz dessa versão "mecanicista," PSN seria uma parte daquele complexo de leis que constituem a Natureza, uma lei que expressaria uma seqüência de eventos, que pode ser tomada como a "descrição" do mecanismo da produção de novas espécies Esse é o tom da definição apresentada no parágrafo anterior:

this preservation of favourable individual dilfercnces and variations, and thc dcstruction o f thosc which are injurious, I havc called natural selection, o r the survival o f the fittcst. (Darwin 1993, p. I 08)

Três parágrafos adiante, contudo, temos wna definição de Natureza e "seleção natural" num tom metafórico e nitidamente teleológico:

As man can produce, and certainly has produced, a great result by his methodical and unconscious means o f sclcction, what may not natural selection etfect? Man can act only on externai and visible characters:

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A Seleção Natural Darwiniana

Nature, ifl may be allowed to personify the natural prcservation or sur­vival of thc :fittest, cares nothing for appearances, except in so far as they are useful to any being. She can act on evcry internai organ, on ev­ery shade of constitutional differencc, on thc whole machinery of life. Man selects only for his own good: Nature only for that of the being which she tends. Every selected character is fully exercised by her, as is implied by the fact oftheir selection. ( ... ) How flceting are the wishes and cfforts of man! how short his time! and consequcntly how poor will be his results, compared with those accumulated by Naturc during whole geological pcriods! Can we wonder, thcn, that Nature's produc­tions should be far "truer" in charactcr than man's productions; that they should be infinitely bettcr adapted to the most complex conditions of life, and should plainly bear the stamp of far higher workmanship? (Darwin 1993, pp. I I l-2)

217

Essa definição lembra a referência feita à "seleção natural," ao explici­tamente introduzi-la no capítulo IJJ, como um poder imensuravelmente superior aos débeis esforços do homem. Também lembra a concepção de Natureza na sua visão como "luta pela ex istência," enquanto aqui­lo que produz os resultados a serem explicados ao longo da Origem,

colocando-se antes como "sujeito" da ação, do que como "objeto" a ser determinado. PSN, por sua vez, nessa versão " teleológica," deixa de ser um mero mecanismo através do qual se operacionaliza o processo da Natureza na produção de novas formas orgânicas, e passa a ser a Natu­reza, que o "personifica." Como entender essa relação? Corno superar a aparente dificuldade da passagem, sem qualquer esclarecimento explíci­to, de uma versão "mecanicista" a wna versão "teleológica," sendo nos termos dessa última que PSN exercerá seu poder explicativo ao longo da Origem?

O tratamento adequado dessas questões demanda uma exploração conceitual que mostre serem ambas versões, mesmo na sua oposição, mutuamente necessárias. A "mecanicista" torna a Natureza, que nos é "dada" através de suas partes, empírica e operacionalmente determiná­vel, detectável e analisável. Mas, para que esse conhecimento das partes permita visualizar a rede de suas mútuas relações- sugerida pela pró­pria conceituação da "luta pela existência" num sentido amplo e meta-

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fórico, no capítulo m (Darwin 1875, p. 50) - , deve haver um princípio unificador. Esse princípio é fornecido pela Seleção Natural, presente na dimensão "teleológica" do conceito de Natureza como um poder ativo. Sob tal dimensão, PSN identifica-se com Natureza, à medida em que se dá como atualização do ser da Natureza, o modo pelo qual a Natu­reza ganha sua objetiva determinação. PSN e Natureza diferenciam-se enquanto PSN for entendido apenas como a descrição de um mecanis­mo, através do qual aquela capacidade ou poder se expressa e aquela visão de Natureza, no sentido amplo e metafórico de "luta pela existên­cia," se operacionaliza. É, pois, através dessa condição diferenciada que PSN torna-se expressão da própria Natureza enquanto poder atualizado e, assim, PSN é a Natureza na essencial atualização dessa. E, ao sê-lo, PSN ganha uma legitimidade como poder explicativo que ultrapassa a dimensão da mera "descrição" de um mecanismo e alcança a condição de um princípio "causal," a dar conta da "produção" de novas formas orgânicas e de suas co-adaptações.

Fundado o poder explicativo de PSN pela sua relação com uma da­da "visão" de Natureza, essa mesma fundação requer que tal poder seja examinado no seu exercício para dar conta do que objetivamente ocorre na Natureza assim concebida. No capítulo IV é mostrada a natureza da exigência explicativa em questão, suas estratégias básicas e característi­cas, e o escopo de suas possibilidades, cobrindo diferentes níveis e áreas, a serem exploradas nos capítulos subseqüentes. Assim, para que a visão de Natureza como " luta pela existência" possa fornecer um fundamen­to para PSN como princípio explicativo, deve ela mesma objetivamente explicitar-se, isto é, mostrar como se faz presente na determinação dos fatos e relações que a constituem como um sistema. E essa objetivação deve ser operacional~zada através de PSN, apresentado como tal prin­cípio sistêmico. Desse modo, a justificativa daquela visão de Natureza como sendo adequada para dar conta da rede de fenômenos que englo­ba é viabilizada através de PSN. A legitimidade explicativa de PSN a ser obtida da relação fundante entre Natureza e PSN, vem a par e passo com o poder explicativo que possa ser exibido por PSN com relação aos componentes daquele sistema. Há, portanto, uma dupla e mutuamente

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A Seleção Natural Darwiniana 219

relacionada demanda no exame das relações entre PSN e Natureza -

uma diz respeito à exploração conceitual de ambos e a outra, à explora­ção/ilustração do poder explicativo de PSN. Tal exploração/ilustração é detalhada do capítulo VI ao XIV. O percurso é, por fim, retomado num só fôlego, no capítulo XV.

A imagem da "luta pela existência" provê fundamento para a articu­lação de ambas definições de PSN e Natureza. O processo de esclareci­mento dessa articulação inicia-se com o concentrado potencial explica­tivo contido na imagem metafórica da " luta pela existência." Continua através da exploração conceitual das "definições" de PSN e Natureza apresentadas. Termina com o exame das relações entre ambas provendo um fundamento para que a Natureza, em sua objetividade, seja compre­endida não apenas como "mero agregado de leis," mas como um poder que se exerce através dessas leis, leis da Natureza, "leis naturais." Nesse processo de esclarecimento conceitual, o "literal" e o "metafórico" ga­nham novos patamares. O inicialmente "metafórico" revela-se fundao­te para o "literal" ("real"). Ao ganhar a metáfora fórum de realidade, o processo pelo qual isso ocorre modifica, para nosso entendimento, o sentido inicial dos termos envolvidos e da distinção "metafórico/literal." O movimento empreendido permite entender a Seleção Natural como o "meio" através do qual a visão de Natureza como um poder explicativo, objetivo, se exerce. Nesse exercicio, como poder atualizado, identifica­se com a Seleção Natural. Por fim, ganha-se uma nova inteligibilidade da imagem da "luta pela existência" como fundante do processo. Percor­rido o caminho, o conceito de Natureza que permeia a Origem revela-se como o de uma metáfora realizada.

As relações entre PLE e PSN não cabem, assim, nos moldes hu­meanos das relações causais que usualmente aparecem nos argumentos dedutivos. De fato , a relação todo-parte ora proposta pam reconstruir o argumento darwiniano escapa a moldes estritamente "dedutivos" e, mais ainda, a moldes própria ou impropriamente "indutivos." Não se trata de um argumento linear. Antes, é um argumento tipo-rede, com projeções e retomadas, que reserva um papel essencial a todas as três grandes etapas do "um longo argumento" antes referidas. Há urna certa "circularidade,"

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conforme já referido, no processo argumentativo da Origem que vincula suas partes (capítulos, argumentos parciais) ao e no todo que configura esse "um longo argumento." Não se trata, contudo, de uma "circulari­dade" meramente repetitiva, vazia enquanto instrumento de inteligibili­dade. Ao contrário, leva a uma crescente explicitação dos fundamentos explicativos da teoria estruturada na Origem, operando em diferentes ní­veis, levando da explicação de fatos à de procedimentos e à exigência de redefinição e criação de novas áreas de pesquisa. A flexibilidade do procedimento explicativo de Darwin vem ao encontro daquela postura assumida, de um "naturalista" com urna visão abrangente de um todo integrado, exibindo uma multiplicidade de aspectos, e com a conota­ção própria ao tema assim investigado. Se o "cientista" toma-se alguém que "conta uma história," deve ter em mente a importância de trazer, ao seu ouvinte/leitor, todas as partes dessa história capazes de suscitar um entendimento compreensivo da narrativa e da mensagem que pretende levar. Mas, só conectando todos os fatos e razões relevantes na narrativa em uma totalidade significativa e significante com relação às suas par­tes , pode o narrador prover a seu ouvinte I leitor um bom quadro de sua "história."

Referências

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Notas

1 Whewell admite que, na indução, trata-se da inferência feita com a introdução de uma concepção geral, à luz da qual fatos são reunidos, coligados. Essa concepção, uma vez aceita, passa a ficar inseparavelmente ligada aos fatos, e consiste no ceme da indução, da novidade trazida pela inferência indutiva (Whewell 1967, vol. li, p. 469).

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0 PERSPECTIVISMO NA CONCEPÇÃO PASCALIANA DE CONHECIMENTO

João Luís da Silva Santos

Mariana Cláudia Broens UNESP - Campus de Marília

Pascal é indiscutivelmente um dos mais importantes pensadores france­ses do século XVII. Para Pascal, conhecer era possível, mas que tipo de conhecimento era por ele apontado como passível de realização? Essa questão será o principal objeto de nossa análise, na medida em que tra­ta do esforço para encontrar respostas a uma das mais problemáticas e significativas interrogações da história do pensamento moderno: a pos­sibilidade (ou não) de fundamentar o conhecimento verdadeiro em prin­cípios racionalmente alcançados e de produzir verdades indubitáveis a partir deles.

No presente trabalho examinaremos o problema apontado a partir de dois textos de Pascal: Pensamentos e Do Espírito Geométrico.

Podemos considerar que o interesse epistemológico pelas obras de Pascal surge quando o autor considera os termos primitivos do conhe­cimento em sua reflexão sobre o modelo geométrico, isto é, quando considera que termos (indefiníveis) possam de algum modo "fundar" o conhecimento geométrico.

Na obra Do espírito geométrico e da arte de persuadir, Pascal, desde as linhas iniciais, deixa claro que sua principal preocupação é a inves­tigação da natureza da verdade de modo a garantir (contra o ceticismo) que é possível produzir verdades geométricas. Com efeito, aponta o filósofo que cabe postular três principais objetivos no estudo da verda­de: " . .. um, encontrá-la quando a procuramos; o outro, demonstrá-la

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 223- 230.

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quando a possuímos; o último, de discerni-la do falso quando a exami­narmos" (Pascal 1954, p. 575). Em seguida Pascal aponta que não falará do primeiro ponto (não pretende investigar os processos específicos uti­lizados pela geometria para conduzir suas investigações). Quanto aos outros objetivos, Pascal afirma que se soubermos provar a verdade, tam­bém saberemos discerni-la do falso, o que é prova do respeito às leis da lógica por parte do autor.

Entretanto, para que cheguemos a urna demonstração satisfatória, é necessário que utilizemos um método. Como dissemos, Pascal respeita princípios lógicos elementares que norteiam e articulam a linguagem. Porém, Pascal não se detém no estudo da silogística, pois quer ir além. Pascal, portanto, pretende analisar um método que forneça demonstra­ções em um nível mais elevado e geral. Para se chegar a tal estágio de perfeição demonstrativa, os geômetras afirmam ser necessário duas coisas: "definir todos os termos e provar todas as proposições" (Pascal 1954, p. 576). As definições tratadas por Pascal são somente as chama­das definições de nome ou nominais. Uma definição nominal é aquela que tem seu sentido estabelecido unicamente pelo que nós queremos escolher como sendo o seu sentido. E serve para abreviar e esclarecer o discurso que necessitamos, por uma razão ou por outra, efetuar. As definições nominais jamais são sujeitas a contradição, pois seu uso é limitado, porque não podemos dar o mesmo nome a duas coisas dife­rentes. Se quisermos nomear duas coisas com o mesmo nome temos que entender que isso pode causar confusão e contradição, pois ao nos referirmos em um discurso a um objeto, os que forem interpretar o dis­curso poderão tomar como significado outro objeto e assim encontrar uma contradição no discurso. Pascal adverte que se cairmos na falta de duplicar o sentido de uma definição nominal é possível, através de um exercício, eliminar o defeito discursivo. Devemos nesse caso substituir a definição pe~_definido e, deste modo, corrigir o erro. Tenhamos bem clara a idéia de que uma definição nominal tem uma função num sentido geral refutatória de ambigüidades.

Então, a grande característica da geometria é seu método de, como já dissemos, tudo demonstrar e tudo definir; assim queriam os geômetras

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O Perspectivismo na Concepção Pascaliana de Conhecimento 225

contemporâneos de Pascal. Pretensão que Pascal critica após especificar

as características das definições nominais:

certamente esse método seria belo, mas ele é absolutamente impossível: pois é evidente que os primeiros termos que queiramos definir, supo­riam precedentes para servir a sua explicação, e que mesmo as primei­ras proposições que nós queiramos provar suporiam outras que as prece­dessem; e assim é claro que nós não chegaríamos jamais aos primeiros" (Pascal 1954, p. 578).

Esse trecho é o cerne da obra Do espírito geométrico e da arte de per­suadir. Nele Pascal focaliza a impossibilidade de se chegar à explicação, por via de definições nominais, de verdades primeiras. Para Pascal, as definições nominais conseguem demonstrar e definir, mas não tudo. É preciso parar em um determinado momento, é preciso encontrar, portan­to, elementos que desempenhem o papel de "sustentar'' o conhecimento geométrico, apenas para servir como ponto de partida das investigações. Tais elementos Pascal denomina "termos primitivos": "nós chegamos necessariamente a termos primitivos que nós não podemos mais definir" (Pascal 1954, p. 578). Assim, Pascal consegue preservar a possibilidade de conhecimento, mas somente de um conhecimento limitado, finito, ou seja o conhecimento humano. Através do método geométrico é possível formular discursivamente explicações sobre o mundo, como são pos­síveis determinados fenômenos ou como a matemática consegue seus resultados. Mas nunca conseguiremos definir os termos primitivos: "ela [a geometria] não define algumas dessas coisas, espaço, tempo, movi­mento, número, igualdade" (Pascal 1954, p. 579). Para esclarecer esse ponto notemos que os termos prinútivos não são, digamos, "em si mes­mos." São o fruto de nossa vontade de conhecer e da necessidade de discorrer sobre o mundo. Essa vontade de entender o mundo explicitada na obra de qualquer cientista, faz com que seja necessária a utilização dos termos primitivos que bastam a si mesmos no interior da investiga­ção, não necessitando de definições, e mais, não sendo possível defini­los. Pascal pode defender com propriedade a indefinibilidade dos termos primitivos, porque todas as tentativas de defini-los foram malogradas. O Padre Noel (intelectual de inspiração tomista), segundo Pascal, tentou

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definir absurdamente uma palavra por ela mesma: "a luz é o movimen­to luminar dos corpos luminosos; como se nós pudéssemos entender as

palavras luminar e luminosos sem a palavra luz" (Pascal 1954, p. 580). Pascal faz a brincadeira, que é um exemplo de circularidade lógica, de uma proposição física que o Padre Noel tinha como séria, justamente para evidenciar o problema lógico.

Para aprofundar sua análise, Pascal dá-nos o exemplo do termo ser: "para definir o ser, é necessário dizer é, e assim empregar a palavra definida na definição" (Pascal 1954, p. 580). Esse exemplo é muito

forte e com ele temos uma refutação de qualquer tentativa de definir o ser. Essa idéia é tanto mais interessante quando consideramos que o ser tem sido, ao longo da história do pensamento, um dos principais temas

filosóficos. Pascal limita desta maneira as pretensões da metafisica, que utilizou-se largamente dessa estratégia de definição do ser.

Pascal insiste em dizer que as definições nominais não se prestam ao estudo direto das essências: "as definições somente são feitas pa­ra designar as coisas que nós nomeamos, e não para mostrar a nature­za" (Pascal 1954, p. 580). O método da geometria não pretende partir dos fundamentos em si mesmos e isso Pascal defende, mais adiante, ao apontar: " ... a geometria não pode defmir algumas das coisas que ela tem por principais objetos: pois ela não pode definir nem o movimento, nem os números, nem o espaço" (Pascal 1954, p. 583). Nesta passa­gem, Pascal faz wn refinamento de sua crítica à concepção de que os saberes devem basear-se nos princípios em si mesmos do conhecimento verdadeiro (metafisicamente determinados) e constata a indefinibilida­

de de termos básicos para três ciências "geométricas" (em um sentido amplo, quase sinônimo da expressão contemporânea "ciências exatas"), a mecânica, a aritmética e a geometria propriamente dita. Portanto, o movimento, o número e o espaço são os termos mais básicos presentes

no conhecimento geométrico. Esses termos, por serem indefiníveis, não são, contudo, obscuros, pelo contrário, são tão evidentes que não é pre­

ciso demonstrá-los. Somente aceitar os termos primitivos é suficiente para adentrarmos no estudo da natureza.

Para Pascal os três termos primitivos são realmente muito abrangeo-

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tes, compreendem todo o universo, pois interpenetram-se: "nós não po­

demos imaginar o movimento sem qualquer coisa que se mova; e esta coisa é una, essa unidade é a origem de todos os números; enfim o movi­mento não pode existir sem espaço, nós vemos essas três coisas contidas na primeira" (Pascall954, p. 583). E, por serem relativos um ao outro o tempo e o movimento são interdependentes. A idéia do "duplo infinito" (conceito básico da reflexão pascaliana) surge nesse momento.

Com efeito, Pascal diz ser possível conceber grandezas infinitamen­te grandes ou pequenas na natureza. As grandezas podem ser divididas ao infinito ou multiplicadas infinitamente. Graças à concepção do duplo infinito, para Pascal, o homem tem meios de desenvolver teorias científi­cas capazes de explicar a complexidade de estados em que se encontram os fenômenos naturais, ou, ao menos, capazes, pela experimentação e pela observação - como aponta no Prefácio para um tratado sobre o

vácuo - sem reproduzir opiniões preconcebidas. O próprio discurso científico ganha, com a divisibilidade das grandezas dos termos primi­tivos, uma malha de possibilidades que se inicia com a aceitação das grandezas (fisicas ou matemáticas) que podem ser abarcadas pelo al­cance dos termos primitivos. Deste modo justifica-se a noção de termo primitivo, que tem seu significado estabelecido no determinado estado de coisas espelhado pelo discurso, este analisador do estado de coisas do mundo.

A luz natural, tal como Pascal a concebe, é a responsável pela pos­tulação, no âmbito discursivo, dos termos primitivos. O movimento, o número e o espaço, pontos de partida do conhecimento científico, são gerados pela luz natural, que, curiosamente (e ao contrário do que en­tendia Descartes por luz natural) não é de ordem racional. Com efeito, Pascal afinna que a ordem geométtica:

Não define tudo e não prova tudo ... Apenas supõe coisas claras e cons­tantes pela luz natural, e é por isso que é perfeitamente verdadeira, sus­tentada pela natureza na falta do discurso. Esta ordem, a mais perfeita entre os homens, não consiste em tudo definir ou tudo demonstrar, nem em nada definir ou nada demonstrar, mas em manter-se no meio entre não definir as coisas claras e entendidas por todos os homens, e definir

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todas as demais.. . Contra esta ordem pecam igualmente aqueles que se propõem a tudo definir c tudo provar e aqueles que negligenciam de fazê-lo nas coisas que não são evidentes por si mesmas (1963, p. 350)

No fragmento Br. 282 dos Pensamentos, Pascal aponta que a evidên­cia dos termos primitivos como princípios possíveis do conhecimento é "sentida" (e não demonstrada) pelo coração (que entendemos tratar-se de um tipo de princípio vital). O coração sente que há termos primitivos, a razão executa demonstrações a partir deles. Nesse fragmento Pascal observa:

Conhecemos a verdade não só pela razão mas também pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los .... Pois o conhe­cimento dos princípios, como o da existência de espaço, tempo, movi­mentos, números, é tão finne como nenhum dos que nos proporcionam nossos raciocínios. E sobre esses conhecimentos do coração e do ins­tinto é que a razão deve apoiar-se e basear todo seu discurso (1979, pp. 107-8).

Pascal alerta-nos sobre o ridículo em que cai a razão quando tenta demonstrar aquilo que se sente ou sentir o que se demonstra. Entre­tanto, para ele, o sentimento do coração apresenta uma relação com o mundo mais refinada do que aquela que a razão permite, como aponta, por exemplo, no fragmento Br. 277: "o coração tem suas razões, que a razão não conhece" (Pascal 1978, p. 1 07).

O método pascaliano pode ser considerado perspectivista, porque o método científico bem como a concepção de que o conhecimento de­ve fundar-se em princípios necessários, assim como entendia Descartes, mostrou-se insatisfatório, talvez a concepção pascaliana de método re­solva alguns dos problemas levantados pelo cartesianismo.

Com efeito, um dos interlocutores privilegiados da reflexão pascali­ana é o pensamento cartesiano, particularmente no que se refere à ten­tativa exposta nas Meditações de fundar o conhecimento verdadeiro em alicerces metafisicos e propor um método único para todos os saberes.

Por considerar ilegítimo o ponto de partida adotado por Descartes, qual seja, o de que o conhecimento sobre a natureza deve fundar-se

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em princípios necessários alcançados por um esforço especulativo que abre mão da experiência perceptiva, Pascal observa no fragmento Br. 78: "Descartes, inútil e incerto" (Pascal 1979, p. 58).

Encarar o mundo da maneira perspectivista é aceitar que cada fenô­meno natural ou humano pode ser interpretado de várias maneiras. O que abre novos horizontes para o conhecimento e também é fonte de enorme e vantajosa variação do ato de interpretar.

O conhecimento em Pascal pode ser dito perspectivista " ... quer di­zer, relativo às necessidades" (Lalande 1996, p. 810). Se temos uma necessidade que precisa ser satisfeita, devemos encontrar uma verdade que caiba exatamente a essa satisfação . . Tal idéia pode soar um pouco estranha, pois tendemos a procurar verdades absolutas. O movimen­to intelectual que Pascal nos convida a realizar, porém, considera que, diante da finitude de nossa razão (e a decorrente incapacidade de chegar aos princípios em si mesmos do conhecimento verdadeiro) somos bar­rados quando tentamos encontrar uma verdadf' absoluta. Essa idéia está exemplarmente ilustrada no fragmento 863 dos Pensamentos: "Todos erram tanto mais perigosamente quanto cadâ qual busca uma verdade. Seu erro não consiste em seguir uma falsidade, mas em não seguir outra verdade (Pascal 1979, p. 266).

Sempre que teorias não são suficientes para explicar, por exemplo, um fenômeno físico qualquer, devemos jnvariavelmente abondoná-las e propor uma nova teoria. Porque se estivermos insistindo em uma te­oria falha, não comprovada pela experiência ou incapaz de dar conta de todos os casos particulares, podemos efetuar a pergunta: qual é o propósito da atividade cognitiva? Note-se que essa concepção refere-se apenas às ciências da natureza e que pressupomos, nesse raciocínio, que a comprovação de teorias científicas deve ser realizada a posteriori.

Com o desenvolvimento, por exemplo, da medicina, o mundo assis­tiu a queda do cartesianismo. A própria experiência provou a necessida­de de produzir verdades que pudessem ser substituídas por outras assim que necessário. Deste modo, o perspectivismo pascaliano é produto de uma necessidade inseparável do ato de teorizar. Uma certeza absolu­ta não recebe refutação e é aceita como tal, mas nada garante que a

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irrefutabilidade desta certeza teórica não seja superada assim que se de­senvolva um raciocínio mais complexo e abrangente, ou mesmo assim que se desenvolva novas tecnologias.

No fragmento Br. 916, Pascal escreve: "eles têm alguns princípios verdadeiros; mas abusam deles. Ora, o abuso das verdades deve ser punido da mesma maneira que a introdução à mentira" (1979, p. 274).

Com cuidado, sem exagerar em nossa confiança nas verdades já con­seguidas, podemos caminhar em direção ao conhecimento, aquele obti­do através do perspectivismo, isto é, da multiplicidade de possibilidades de interpretação, obtido através da satisfação da necessidade que se nos apresenta. Portanto, embora seja agradável a idéia de verdade absoluta fundada em princípios necessários, a reflexão pascaliana aponta dificul­dades quase insuperáveis para sua determinação.

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Seção 4

Filosofia da Mente

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PRINCÍPIOS NEUROPSICOLÓGICOS EVOLUCIONISTAS DO ETOS HUMANO

Renato Schaeffer FEUFRJIFAPERJ

O objetivo principal do presente trabalho é chamar a atenção do meio fi losófico para o modelo neuropsicológico evolucionista da mente-cére­bro triúna reptiliana/paleomamífera/neomamífera, de Paul O. MacLean, - um modelo bastante ambicioso que pretende descrever, de modo sis­temático, a estrutura psicológica do etos humano. 1 Um segundo objetivo é, a partir desse modelo científico de antropologia evolucionista, propor, em linhas gerais, um programa de pesquisa naturalista esclarecido para uma antropologia fi losófica mais especulativa. A sugestão aí levantada de modo muito breve é a de combinar o insight etológico esvolucionista de MacLean com a concepção semiótica de Peirce acerca da vida men­tal. Este modelo complexo neuropsicológico-serniótico poderia, ainda, ser enriquecido com uma teoria da comunicação intra e intersubjetiva, a partir de: (1) uma concepção não-reducionista de auto-organização, co­mo a proposta por Debrun ( 1996, 1997); e (2) uma concepção discursiva da vida mental, como a de Bruner (1995) e Harré e Gillett ( 1999), apro­fundada tecnicamente pela teoria da intencionalidade mental das forças ilocucionárias, de Searle ( 1989).

1

Na monumental obra The triune brain in evolution: role in paleocere­bral functions ( 1990), MacLean (então Chefe do Laboratório de Evo­lução do Cérebro e do Comportamento do Instituto Nacional de Saúde Mental, em Maryland, EUA) desenvolve um modelo que parece um ex­celente candidato para preencher uma inaceitável lacuna na produção

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 233- 278.

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acadêmica, hoje, tanto na filosofia, quanto nas ciências sociais, antropo­

logia, educação, neuropsicologia e ciência cognitiva, no que se refere à inteligibilidade da interação biologia-cultura na conduta humana, vista como um todo sistemático.

O modelo da mente-cérebro triúna sugere, em resumo, que, por de­trás da enorme diversidade das formas de vida humanas, estão em jogo

três princípios etológicos básicos, filogcncticamente distintos, em per­manente e multiforme interação e iteração. Estes três vetores funcionais, que orientam a conduta individual intra- e intersubjetiva, do encontro face a face à interação coletiva de larga escala, e que estão mesmo, por assim dizer cristalizados nas micro e macroformas culturais, cor­

respondem a três sucessivos estágios filogenéticos na carreira evolutiva do Homo sapiens, três mentalidades que MacLean designa por reptilia­na, paleomamífera e neomamífera. São os padrões etológicos compul­são/rotina, afetividade/brincadeira, e imaginação/pensamento - rela­cionados, no prosencéfalo humano, respectivamente ao complexo estria­do dos núcleos ganglionares basais, ao sistema límbico (circuito ligando regiões do tálamo, hipotálamo, hipocampo, giro cingulado, amígdala, septo) e aos hemisférios do neocórtex.

O padrão geral reptiliano, a conduta primai no modus compulsão, distribui-se nas subespécies elementares tropismo, isopráxis reciproca­tiva, exibição (assinatura, corte e o par complementar intimidação/sub­missão), acumulação/empilhamento, rotina/ritual, territorialismo, dis­simulação, perseverança/rigidez, repetição e "deslocamento." A nota geral aqui é a radical heteronomia e automatismo do comportamen­

to. O padrão paleomamifero compreende afetos básicos/vitais, específi­cos/sensoriais, gerais/ideativos (derivados culturais dos padrões univer­sais desejo, carinho, alegria, tristeza, raiva, medo) e especiais (variantes de estranheza e familiaridade, e afetos ligados a espaço e tempo). Uma

nota característica aqui é o intenso envolvimento da enervação corpo­ral via sistema autônomo simpático. E o padrão neomarnífero envol­ve o pensar em suas diversas formas (imaginar, lembrar, antecipar, in­

terpretar, argumentar, calcular, compreender, deliberar, julgar, avaliar).

Notável aqui é inteligência criativa social ou moral, função cujo órgão

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específico é a região neocortical pré-frontal. É importante neste ponto, antes de prosseguir, declarar o mais enfa­

ticamente possível que o modelo evolucionista da mente/cérebro triúna deve ser encarado no espírito do que bem poderíamos batizar de natura­lismo esclarecido, na linha da critica de Searle ( 1978) ao reducionismo da atual sociobiologia (Wilson 1982); trata-se, em última análise, de apreciar a significância conceitual da biologia para a antropologia (mais ou menos no espírito, aqui no Brasil, de Werner ( 1997)). A complexida­de intrínseca reptiliana-paleomarnífera-neomamifera do fenótipo mental humano não deve ser considerada como efeito de causação) genótipo fe­nótipo mecanicista/determinista- mas emergencial (Lencastre 1999). A epigênese - e não epifenomenalidade - da intencional idade menta l assenta, em última análise, sobre o fenômeno da neotenia humana: a di­ferenciação ontogenética retardada, no plano comparativo filogenético, que se mostra no fato da complementação da gestação humana por uma fase extra-uterina e, finalmente, na plasticidade estrutural prolongada de que se vale o mecanismo da "seleção neurofisiológica do percurso mais empregado," o darwinismo neural (Prochiantz 1989)2

- mecanismo que, teoricamente, se estenderia por toda a vida do indivíduo.

Toda a riqueza existencial hmnana, na presente teoria, seria fruto, em última análise, para o bem ou para o mal, do jogo funcional interativo­iterativo das três mentalidades compulsiva/repetitiva, afetiva/lúdica e ideativa/imaginativa: compulsões e/ou afetos e/ou idéias gerando e/ou facilitando e/ou dificultando compulsões e/ou afetos e/ou idéias.

É oportuno, neste ponto, citar MacLean (1990: 9), para desfazer o equívoco cometido por alguns autores, os quais

interpretam mal o conceito triúno, como se implicasse que os três gran­des conjuntos estão depositados em camadas sucessivas, de modo mais ou menos análogo a estratos de rocha. Outros, em sua critica, parecem ser da opinião de que o conceito nos leva a crer que a contrapartida nos mamíferos dos gânglios do prosencéfalo reptiliano é exatamente a mes­ma que o que há nos répteis existentes. Isso seria o equivalente a afirmar que o motor do automóvel moderno é o mesmo que o do primeiro carro.

Cito ainda uma vez MacLean (1975: 195):

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Meu esquema de divisão do cérebro pode ser criticado por ser simplista, mas graças a técnicas aperfeiçoadas neuroanatômicas, histoquímicas e fisiológicas, os detalhes das três formações básicas do prosencéfalo sur­gem com mais clareza do que nunca. E mais, deveria ser enfatizado que apesar de suas extensas interconexões, cada tipo de cérebro é capaz de operar de modo algo independente. [ ... ] há indicações clinicas de que as formações reptiliana e paleomamífera carecem da maquinaria neural para a comunicação verbal com o neocórtex humano. Dizer que elas carecem do poder da fala, contudo, não diminui sua inteligência, nem as coloca subjetivamente no domínio do "inconsciente." A maquinaria neural básica requerida para a auto-preservação e a preservação da espé­cie está embutida no chassi neural que compreende o tronco encefálico e a medula espinhal. Por si, o chassi neural é tão inútil quanto o chassi de um carro sem um motorista. Mas essa é uma analogia pobre, porque com a evolução do prosencéfalo, o chassi neural adquire três motoris­tas, todos eles sentados no banco dianteiro e brigando por sua vez na direção.

O resultado no Homo sapiens, portanto, do processo evolutivo da ence­falização (e, mais especificamente, da "prosenccfalização"), é a coexis­tência de três diferentes modos - até certo ponto autônomos e mesmo conflitantes- de tratar a infonnação sobre o mundo, de estar no espaço e no tempo, de habitar e "comandar" o soma - três regimes existenci­ais de operação solo ou conjunta. A experiência do indivíduo humano, segundo a presente teoria, se dá, de modo alternado ou simultâneo, em três "mundos psicológicos" ou ecológicos ( Umwelt): a cada momento, "meu mundo" -minha situação eto-ecológica -é predominantemente reptiliano e/ou paleomamífero e/ou neomarnífero.

2

Pensemos no tipo de hierarquização neuropsicológica da conduta ani­mal aceita por etólogos: ( 1) o nível da unidade neuromotora individual; (2) o conjunto de tais unidades pertencentes a um músculo; (3) o ní­vel da coordenação funcional dos complexos musculares relacionados a uma junta; ( 4) o movimento coordenado de um membro como um to­do; (5) a locomoção resultante da coordenação de movimentos de um

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conjunto de órgãos motores; (6) "o nível mais elevado, comum a to­dos os animais," ou seja, o nível "do animal como um todo" (modelo do biólogo-filósofo Paul Weiss, citado por Tinbergen (1989: 122). Em termos do modelo da mente-cérebro triúna, a integração mais elevada, para o Homo sapiens, poderia se dar, portanto, de acordo com o que temos visto até aqui, de três modos distintos; e possivelmente o modus dessa integração não deixa de determinar também o modus qualitativo do que acontece nos níveis inferiores (com exceção, provavelmente, dos níveis mais baixos- digamos, um e dois-, que presumivelmente não distinguem os pilotos reptiliano, paleomamífero e neomamífero ).

Comentando que Nietzsche "encarava a vontade-de-poder como a força vital básica de todo o universo," MacLean (1978: 316) sugere que "os escritos de Nietzsche sobre esse assunto devem ter seu mérito reco­nhecido como os de um etologista pioneiro e uma autoridade em com­portamento humano reptiliano!" Nietzsche generalizou, assim, como se fosse o etos total humano, o particular e tos reptiliano (ergo transcultu­ral) dos legendários governantes da Roma antiga, e de Alexandre, Átila, Gengis Khan, Frederico Barba Roxa, Pizarro, Cortez (e Montezuma), Ivan ("o Terrível"), Napoleão, Hitler, Mussolini, Stalin, Tito, Franco, Salazar, Pol Pot, Saddam Hussein, Kadafi, Idi Amin, Somoza, Porfuio Diaz, Trujillo, Torrijos, Stroessner, Banzer, Pinochet etc. (cruzados me­dievais, corsários, bandeirantes, desbravadores do oeste norte-america­no, ases da aviação do início do século como o "Barão Vermelho," ex­pansionistas japoneses, gangsters e mafiosos ... ) - mas também de to­dos nós em nossos momentos mais reptilianos, o etos do "conquistador" de mulheres, de todo e qualquer chefe enquanto tal, dos pais tirânicos, dos filhos onipotentes, o etos dos "animal spirits" (Adam Smith) doca­pitalismo (a estratégia agressiva de vendas, a luta pela conquista do mer­cado etc.), do argumento ad baculum, da ultrapassagem na rodovia, do furar a fila, do "machismo" (e do "feminismo"), da bandeira de posse fincada no alto do Everest, no Pólo Norte ou na Lua (ou mesmo na ór­bita terrestre), da disputa pela anterioridade cronológica de descobertas científicas etc. A etologia unilateral (reptiliana) nietzscheana é compar­tilhada, também, para dar um exemplo recente, por Lebrun ( s.d., 118-9):

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Suponhamos, porém, este minuto de verdade. Suponhamos que os po­deres larguem essa sua linguagem melíflua, e se apresentem de peito aberto, como vontades de potência não disfarçadas: por que se enver­gonhar? Os homens talvez se tomassem espíritos livres. Parariam de vituperar o "Poder" c se perguntariam quem é capaz, num dado mo­mento, de exercê-lo com menor detrimento de todos aqueles que, por princípio, são excluídos dele. Não depositariam mais as suas esperan­ças, tolamente, no dia em que o poder não passasse de urna triste lem­brança - mas agiriam para que os dominadores do futuro estivessem mais perto do Soberano hobbesiano do que do tirano. ( ... ] Mas como esta rude franqueza poderá ser possível num mundo que foi, e continua a ser, educado pelo racionalismo grego e pelo cristianismo?"

Lebrun se mostra, então, como Nietzsche, um expert unilateral em eto­logia reptiliana- tanto que deprecia explicitamente os elementos pale­omamífero (a afetividade compassiva do "cristianismo") e neomamífero (o "racionalismo grego"). Mas a teoria evolucionista do cérebro triúno nos permite dar um passo à frente de Nietzsche e Lebrun em matéria de antropologia filosófica, reconhecendo que o chassi neural possui ainda dois outros importantes comandantes, cujos princípios seriam, digamos assim, a "vontade-de-sentir/gostar"- das grandes navegações em bus­ca de especiarias ao moderno consumismo, (para não falar do "cristi­anismo," referido por Lebrun) - e a "vontade-de-pensar/imaginar" -dos movimentos intelectuais e das invenções técnicas, da mais remo­ta antiguidade até nossos dias. É ainda este etos reptiliano, tão caro a Nietzsche e Lebrun, o que impregna os aspectos da cultura brasilei­ra da primeira metade do século descritos com perspicácia por Freyre (1998: 51):

Transfonnava-se o sadismo do menino e do adolescente no gosto de mandar dar surra, de mandar arrancar dente de negro ladrão de cana, de mandar brigar na sua presença capoeiras, galos e canários - tantas ve­zes manifestado pelo senhor de engenho quando homem feito; no gosto de mando violento ou perverso que explodia nele ou no fi lho bacharel quando no exercício de posição elevada, política ou de administração pública; ou no simples e puro gosto de mando, característico de todo brasileiro nascido ou criado em casa-grande de engenho. Gosto que tanto se encontra, refinado num senso grave de autoridade e de dever,

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num Dom Vital, como abrutalhado em rude autoritarismo num Floriano Peixoto. Resultado da ação persistente desse sadismo, de conquistador sobre conquistado, de senhor sobre escravo, parece-nos o fato, ligado naturalmente à circunstância econômica da nossa formação patriarcal, de a mulher ser tantas vezes no Brasil vítima inerme do domínio ou do abuso do homem, criatura reprimida sexual e socialmente dentro da sombra do pai ou do marido. Não convém, entretanto, esquecer-se o sa­dismo da mulher, quando grande senhora, sobre os escravos, principal­mente sobre as mulatas; com relação a estas, por ciúme ou inveja se­xual. Mas esse sadismo de senhor c o correspondente masoquismo de escravo, excedendo a esfera da vida sexual c doméstica, têm-se feito sentir através da nossa formação, em campo mais largo: social e políti­co. Cremos surpreendê-los em nossa vida política, onde o mandonismo tem sempre encontrado vitimas em quem exercer-se com requintes às vezes sádicos; certas vezes deixando até nostalgias logo transformadas em cultos cívicos, como o do chamado marechal-de-ferro [Floriano Pei­xoto).

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DesfiJam aí, em abundância e de modo exemplar, as inconfundíveis mar­cas comportamentais da vida eminentemente reptiliana - as condutas encontradiças sem tirar nem pôr entre todos os machos mamíferos cujos núcleos ganglionares basais estão intactos, e em particular entre pri­matas superiores. O prosencéfalo mais complexo do Homo sapiens -o sistema límbico e o neocórtex enormemente mais desenvolvidos -propicia, contudo, sofisticação afetiva e cultural, requintes ideativos a serviço do que, no fundo, não passa de compulsão primai, tropística, por dominação, sexual ou não. (É interessante que a conduta reptilia­na em machos primatas não-humanos emprega praticamente os mesmos padrões corporais gestuais e vocais na exibição sexual e na exibição de intimidação dirigida a outros machos.)

3

MacLean divide a experiência humana em (1) sensações, (2) percep­ções, (3) compulsões, (4) afetos e (5) pensamentos. As últimas três mo­dalidades, que correspondem, respectivamente, às mentalidades reptili­ana, paleomarnífera e neomamífera, se relacionam de diferentes manei-

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ras com as informações sensoriais do mundo "externo" (incluindo o so­

rna), sensações e percepções. No Homo sapiens, é o córtex neomarnífe­ro o substrato praticamente exclusivo da informação sensorial. O modus reptiliano de tratar a informação sensorial é quase-automático, a cons­ciência estando reduzida a um nível mínimo- é uma mera consciên­cia "cornportamental," digamos assim, do tropismo positivo ou negativo

suscitado pelo estímulo - ambiental ou interno, mental. É deste modo, por exemplo, que localizamos uma moeda no bolso da calça ou o inter­ruptor de luz na parede - ou nos sobressaltamos, no interior da nossa experiência do know-how-to-do, se não topamos com o que buscávamos.

Já o modus paleomamífero de tratar os dados sensíveis é via algo co­

mo uma integração afetiva, integração internamente estruturada ou pelo menos diferenciada - não mera confusão -; em suma, um mapa afeti­

vo holístico da situação. Como diz Peirce (1990: 274 - 5.292): "Assim, uma emoção é sempre um predicado simples que substitui, através de uma operação da mente, um predicado altamente complicado." Tal em­penho da mente afetiva não deixa de ser uma interpretação unificadora estética - que pode ter um escopo simples, como os elementos dados da situação existencial presente, ou complexo como o conjunto de experi­ências de uma vida inteira. Teríamos que distinguir, portanto, nos casos de "conhecimento tácito" analisados por Polanyi ( 1973 ), entre a esfera

reptiliana do know-how-to-do - do ciclista, do surfista, do pianista -e a esfera paleomarnífera do connaisseur - do provador de café, vinho, tabaco, perfume. O /uthier emprega as duas formas de tratamento da informação sensorial -e sem dúvida também a terceira, neomamífera.

Esta forma, a do tratamento neocortical de dados, é ideativa, imagi­nativa, operando num circuito que traz o passado e o futuro à ação/con­sideração presente. É interessante lembrar que o processo evolutivo da encefalização hominizadora se traduziu num desenvolvimento explosivo

do setor visual do neocórtex - daí a afinidade congênita entre pensa­mento e visualização (quando falamos em "imaginação" ou "imagem," a qualificação semântica "visual" parece estar implicita - quando, a

rigor, não há qualquer razão conceitual para associar o pensamento ima­

ginativo a esta ou aquela modalidade de percepção sensorial). O enxa-

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drista age nos três modos mentais, como o luthier, com maior ênfase no modus neomamífero, contudo: daí a derrota de Kasparov para o compu­tador Deep Blue da IBM - e, por outro lado, até hoje não foi possível analisar e reproduzir, com a moderna tecnologia disponível, a qualidade de desempenho de um violino Stradivarius!

4

É nas correspondentes três formas distintas de comunicação e interação social humana que fica particularmente flagrante o significado da gran­de distância filogenética entre um estágio evolutivo e outro. Barbosa (1999: 26, n.9)) faz referência à "famosa frase de Margaret Thatcher, imortalizada como símbolo do neoliberalismo: 'There is no suclz tlzing as society. There are individual men and women and tlzere are fami­lies .' " Bem, da presente perspectiva, se um argumento em defesa do neoliberalismo dependesse de uma premissa como essa, estaria mal das pernas: o argumento cometeria falácia de premissa falsa. Pois That­cher está enganada por exatamente três razões - uma razão reptiliana, uma paleoruarnífera e uma neomamífera. Isto é, há três distintas formas sociais naturalmente experienciadas pelo ser humano em seu Umwelt. Assim, o nível reptiliano do que MacLean rotula de "isopráxis," o ti­po de comunicação primai que se manifesta como tropismo reciprocati­vo, constitui as diversas formas das mais rudimentares possibilidades de conexão comportamental coletiva - na diade interpessoal, no pequeno grupo, na multidão ou na massa (sincronicamente existente, mas não espacialmente reunida)-: a interconexão vital-cultural que vai dos mi­crofenômenos como a torcida aqui e agora por um time de futebol aos macrofenômenos das modas e modismos (locais ou planetários).

É aindo no nivel comunicativo reptiliano, a despeito da terminologia paleomamífera, que pertencem os "afetos de vitalidade" de que trata, em psicologia do desenvolvimento, Stem (1992: 47, 49):

Essas qualidades indefiníveis são mais bem capturadas or termos di­nâmicos, cinéticos, tais como "surgindo," "desaparecendo," "passando rapidamente," "explosivo," "crescendo," "decrescendo," "explodindo,"

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"prolongado" e assim por diante. Essas qualidades da experiência são, com toda certeza, sensíveis para os bebês [ ... ] respirar, ficar com fome, eliminar, adonnecer ou acordar, ou sentir o ir e vir das emoções e pensa­mentos. As diferentes formas de sensação eliciadas por esses processos vitais influenciam o organismo a maior parte do tempo. [ ... ) O bebê experiencia essas qualidades interiormente, assim como no comporta­mento de outras pessoas. ( ... ] O bebê está imerso nesses "sentimentos de vitalidade." ( ... ] A expressividade dos afetos de vitalidade pode ser comparada à de um show de marionetes. As marionetes possuem pouca ou nenhuma capacidade de expressar categorias de afeto através de sinais faciais, e seu repertório de sinais de afeto convencionalizados gestuais ou posturais usualmente é pobre. É através da maneira como elas se movem em geral que inferimos os diferentes afetos de vitalidade a partir dos contornos de ativação traçados por elas. [ ... ] uma pode estar letárgica, com membros pendentes c cabeça pendurada; uma outra enérgica c ainda uma outra animada. A dança abstrata e a música são exemplos, por excelência, da expressividade dos afetos de vitalidade.

A noção de "afetos de vitalidade," se interpretada segundo o quadro con­ceitual do modelo da mente-cérebro triúna, faria referência à operação combinada dos níveis reptiliano e paleomamJfero. É obviamente uma questão empírica em aberto a de saber se em alguma momento na vi­

da do neonato poderíamos falar de uma comunicação social meramente comportamental, isto é reptiliana, sem o concomitante elemento experi­encial do sentir apontado por Stem. A sugestão deste autor indicaria que o nJvel reptiliano na comunicação humana - o nível vital da isopráxis

reciprocativa de que fala MacLean - provocaria quase que de modo inevitável um acompanhamento experiencial afetivo, isto é, "sentido."

Mas nesse caso, sou da opinião que, pelo menos do ponto de vista do modelo da mente-cérebro triúna, seria preferível dividir a experiência do "afeto de vitalidade" em dois momentos experienciais distintos: o afe­to propriamente dito seguindo-se a uma "impressão de vitalidade" ou

"sensação de vitalidade." Aproveitando o paradigma de Aristóteles, no

De Anima, de tratar da percepção sensorial em termos de "apreensão de formas sensíveis," diriamos aqui que nesse nível reptiliano, comporta­

mental de comunicação, dá-se uma apreensão-resposta comportamental de formas vitais. Ou: uma ressonância vital-comportamental a uma im-

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pressão vital. O sentir seria um estágio psicológico posterior - não importa quão íntima seja a conexão funcional entre o afeto e a ressonân­cia vital que lhe deu origem.

É o mesmo tipo de fenômeno, se não estou enganado, que ocorre na comunicação entre mães e filhos, e responsável pela diferença entre "filhos chorões" e "filhos sossegados," retratada por Morris (s.d., 103, 1 07), sendo as mães daqueles, segundo este autor, "hesitantes, nervosas e ansiosas nas suas relações com os filhos"; as dos segundos, "decididas, calmas, serenas." "Uma mãe agitada não pode deixar de manifestar ao bebê a sua própria agitação"; este caráter necessário da comunicação, pelo qual "mesmo em tenra idade, os bebês percebem a diferença entre 'segurança' e 'proteção' táteis, por um lado, e 'insegurança' e 'sobres­salto' táteis, pelo outro," parece indicar que se trata de isopráxis reptili­ana, padrão em que as respostas são primais, isto é essencialmente com­portarnentais, compulsivas, tropísticas. É interessante notar que temos aí um circuito fechado - próprio da influência reciprocativa: quando "o bebê, por seu lado, manifesta-lhe de forma apropriada a necessidade de proteção contra a causa da agitação," a resposta é o agravamento da "agitação materna" - e, novamente, o agravamento da inquietação e do choro do bebê. Morris lembra que mesmo os adultos conservam tal sen­sível capacidade ("muito usada pelos cartomantes, para avaliar quando estão seguindo uma boa pista") de responder a indícios corporais mi­nirnalistas, capacidade que data de "antes de sermos capazes de falar, antes de nos afundarmos no complicado maquinismo da comunicação cultural e simbólica." O importante para nosso estudo da mente-cérebro triúna é a identificação teórica precisa desse tipo de fenômeno comuni­cativo, através das categorias etológicas, neuropsicológicas filogenéti­cas de MacLean. O conceito de "impressão de vitalidade" que introduzi se restringiria aqui à isopráxis reciprocativa entre mãe e filho, enquanto que o de "afeto de vitalidade," de Stem, incluiria ainda o estágio afetivo subseqüente na interação - em que a isopráxis reciprocativa é experi­enciada como um sentir, sentir por sua vez comunicado a outro sentir via impressão de vitalidade que o provoca.

É também possivelmente esse mesmo tipo complexo de comunica-

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ção imitativa - envolvendo, em estreita conexão, o nível essencialmen­te comportamental e o afetivo - que está envolvido na surpreendente "sintonia" que ocorre na relação entre animais e seus treinadores. Lem­bremos do famoso cavalo do século XIX - "der kluger Hans" ("o João inteligente")--, capaz de "operações aritméticas" simples com os cas­cos na presença de seu treinador; jamais os cientistas que investigaram o caso foram de fato capazes de detectar os sinais fisicos corporais ou quirnicos/hormonais efetivos da comunicação - sinais ignorados mes­mo pelo treinador que supostamente "soprava" o resultado das contas elementares que propunha ao cavalo.

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O patamar propriamente paleomarnífero na comunicação inter-humana se mostra por toda a parte, a começar pela própria linguagem natural, na produção do material fonético que transporta o significado. Palavras de freyre (1998: 332) acerca da influência do falante negro na formação da língua brasileira: "E não só a língua infantil se abrandou desse jeito mas a linguagem em geral, a fala séria, solene, da gente grande, toda ela sofre no Brasil, no contato do senhor com o escravo, um amolecimento de resultados ãs vezes deliciosos para o ouvido." Tal "amolecimento" e tais "delícias," não há dúvida, estão em plena esfera paleomamífe­ra. Embora os cinco grandes tipos de "forças" ilocucionárias existentes num língua natural- assertivo, diretivo, compromissivo, expressivo e declarativo-instituinte (Searle 1990, cap. 6) - sejam antes de tudo es­sencialmente ideativos, os atos de fala expressivos são, ainda, constitu­tivamente afetivos - isto é, a afetividade possui aí, no tipo expressivo, função lingüística essencial (ilocucionária), e não apenas acidental (per­locucionária).

A comunicação paleomamífera está presente, ainda, nas variações sobre os temas do contágio da expressividade afetiva e dos processos de identificação empática centrípeta e centrífuga - na brincadeira, na vaidade, na inveja, no desculpar-se, no culpar, no agnldecer, no cuidar, no reconfortar, no desprezar, no admirar, no orgulhar-se.3 É fácil com­preender que toda a vasta esfera abordada pela psicanálise - com seus

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mecanismos de defesa e persecutórios, transferências e contratransfe­rências - tem suas raízes no terreno da comunicação, intra- e intersub­jetiva, paleomamífera; por exemplo, o fenômeno central do narcisismo: o auto-investimento afetivo, o "gostar de si mesmo," isto é, do próprio eu, pressupõe, ao que parece, a capacidade de se comunicar afetivamen­te consigo mesmo (com ou sem espelho ... ). E na medida em que o eu é um complexo ideativo-afetivo, o modus neomamífero da simboliza­ção também está aí presente nessa "auto-empatia." Também o amplo fenômeno de nossa relação com fotografias de entes queridos, e de nós próprios no passado, e até mesmo com retratos de artistas, cantores e personalidades, e de seres humanos em geral que sofrem ou riem de­ve ser incluído na categoria da comunicação afetiva paleomamífera. Os fenômenos de grupo ou de massa via de regra conjugam este elemento empático, o sentir, à mera isopráxis reciprocativa centrada- resultando formas culturalmente elaboradas do "sentimento de vitalidade" conce­bido por Stern. O "sucesso" da interação sadomasoquista depende não menos essencialmente de processos de identificação empática centrífu­ga e centrípeta - veículos, por assim dizer, do padrão reptiliano de exibição (subtipos dominação e submissão) aí maciçamente presente.

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A comunicação neomamífera, finalmente, está instanciada na ação com fins objetivos compartilhados, lingüisticamente significativos; na parti­cipação coletiva ideológica (nos dois sentidos - descritivo e depreci­ativo) - por exemplo, num projeto de desenvolvimento nacional (Pin­to 1956). "Mãe da invenção e pai do pensamento abstrato, o neocór­tex promove a preservação e a procriação de idéias," afirma MacLean (1978: 332). Podemos ver que a noção de intenção coletiva (we-inten­tion), que fundamenta essencialmente a de fato social institucional (Se­arle 1995), espelha diretamente o nível neocortical/neomamífero de so­cialidade - uma intenção, prévia ou -na-ação (Searle 1990), sendo por excelência uma instância do animus ideativo. O locus privilegiado da comunicação neomamífera é sem dúvida o meio simbólico da língua-

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gem natural, da tradição oral à internet. É claro que também outras linguagens comunicam idéias - matemáticas, musicais, arquitetônicas, artísticas em geral.

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Um aspecto intrigante do modelo triúno da comunicação - reptiliana­paleomamífera-neomamífera - é que cada estágio parece depender da existência do filogeneticamente precedente. Assim, a comunicação afe­tiva, empática do segundo nível requer, digamos assim, um meio com­portarnental primai; e a comunicação lingüística, ideativa, apóia-se na experiência da comunicação afetiva. São imensas as conseqüências filo­sóficas desse "princípio da comunicação social da mente triúna." Costu­mamos pensar, por exemplo, que a interação lingüística é essencialmen­te, se não exclusivamente, cognitiva; que é possível dar "informação" meramente ideativa, sem um suporte afetivo - mas tal não é o caso, se aceitamos o referido princípio. Uma nova luz também é lançada so­bre o processo de aprendizado da linguagem natural pela criança: esta aprenderia, nesse caso, antes de mais nada a mover-se com desenvoltura na ambiência afetiva da língua materna; aprenderia primeiro o peculiar modo de sentir o mundo que é próprio da sua cultura, isto é, aprende­ria inicialmente a ser afetivamente brasileiro, chinês, esquimó ou russo. Mas este estágio depende da ressonância comportameotal via impres­sões de vitalidade. As imagens parecem funcionar na interface entre afetos e idéias, são idéias acerca de objetos particulares, e, nessa me­dida, providas de carga afetiva. Acho que é isso que explica a tese do lingüista McNeill (1992: 2), de que

gestos são uma parte integral da linguagem tanto quanto palavras.fra­ses e sentenças- gestos e linguagem são um único sistema. [ ... ] a linguagem é mais que palavras, uma verdadeira psicologia da lingua­gem requer que alarguemos nosso conceito de linguagem para incluir o que parece, na visão da lingüística tradicional, o oposto da linguagem - o imagístico, instantâneo, não-segmentado e holístico. Imagens e fala estão igual e simultaneamente presentes na mente.

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Imagens - e seus gestos - fazem o significado lingüístico aterrar no aqui e agora dos atos de fala - não apenas metafóricos, mas atos ilo­cucionários "normais" em geral (Searle 1990, cap. 6). Os afetos que MacLean chama de gerais seriam os temperos capazes de tomar tragá­veis as idéias que não são imagens. Um idealista é alguém em quem uma idéia geral é capaz de despertar afetividade - mas mesmo o ide­alista precisa de gestos para falar consigo mesmo, para aplicar idéias gerais a seu discurso particular. Para falar e compreender um idioma uma criança precisa, de certa forma, ser como que um pouco idealista - pois responder a palavras em contextos proposicionais é responder a significados ou idéias gerais. Sentir um afeto sempre inclui intensa e extensa atividade somática, vegetativa, via sistema nervoso autônomo simpático - por isso uma experiência só é real enquanto sentida; e é pela experiência afetiva que desperta, e só por ela, que o pensamento é capaz de ser comunicado, intra- e intersubjetivamente. Cito Colling­wood (1993: 250-1):

A expressão de um pensamento em palavras não é nunca uma expressão direta ou imediata. Vai mediada pela emoção peculiar que é a carga emocional do pensamento. Desta maneira, quando uma pessoa expõe seu pensamento em palavras a outra, o que faz direta e imediatamente é expressar a seu ouvinte a emoção peculiar com a qual ela o pensa, e o persuade a que pense esta emoção por si mesma, isto é, a que redescubra por si mesma um pensamento o qual, uma vez que o descobriu, pode o ouvinte reconhecer como o pensamento cujo peculiar tom emocional o falante expressou.

E devemos acrescentar o seguinte a essas palavras, lembrando o que foi anteriormente dito: assim como a expressão e comunicação ideativa é mediada pela comunicação afetiva, esta também o é pela comunicação primai de sensações comportamentais de vitalidade.

Podemos dizer que presumivelmente mesmo nossa relação comuni­cativa com o design industrial, arquitetônico, de mobiliário etc. segue o "princípio da comunicação triúna," a recepção das idéias (estéticas e não-estéticas) apoiando-se no sentir, e este, na reprodução comporta­mental "interior" dos ritmos vitais impressos no design.

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Um dos aspectos centrais do fenômeno da comunicação humana é o relacionado com a noção de "personalidade básica." Nas palavras do próprio MacLean (1978: 333-4):

Podemos perguntar com o que um animal se pareceria tendo apenas seu cérebro recente e não os dois outros. Uma aproximação a uma tal con­dição é fornecida por experimentos com macacos, em que as principais conexões do complexo reptiliano e do sistema límbico com o chassi neural são destmídas. Com as conexões maciças de e para o neocór­tex grandemente intactas, esses animais recuperam a habilidade de se locomover e se alimentar. A profunda alteração nesses macacos é que embora se pareçam macacos, não majs se comportam como macacos. Quase tudo que se associa com o típico comportamento símio desapa­receu. Esses tipos de experimentos, junto com certos achados em pa­cientes com desordem cerebral, indicam que o complexo reptiliano e o sistema límbico provêem o substrato neural para a personalidade básica e a expressão organizada do comportamento prossemático.

Este ponto é à primeira vista surpreendente: se MacLean tem razão, en­tão nossa "personalidade básica"- aquilo que cada ser humano apre­senta de mais "fisionômico," com a correspondente "expressão organi­zada do comportamento prossemático," enquanto membro da espécie e enquanto indivíduo particular - assenta nas mentalidades que cor­respondem a nossos centros ncurofisiológicos filogeneticamentc mais arcaicos, e não na mentalidade neocortical, evolutivamente mais recen­te! Mas uma vez enunciada tal tese, um momento de reflexão parece bastar para apagar o caráter " inédito" da primeira impressão: pois não deixa de parecer até mesmo quase-intuitivo que aquilo que toma uma pessoa qualitativamente "única," " inanalisávcl," " indefmivel," esta " fi­sionomia" carregada de " idiossincrasias de expressão vital," isto não pode senão situar-se no nivel da comunicação expressiva psicocorporal "prossemática" (isto é, proto-semântica ou pré-verbal). É interessante observar que MacLean aponta uma razão empírica e uma razão analíti­ca, a priori, para a íntima conexão entre o complexo "vital-fisionômico," digamos assim, que constitui a personalidade básica, e o fenômeno da

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ação comunicativa primai, isopráxica ("imitativa" e "contra-imitativa"

ou complementar). A razão empírica, para além do inventário etoló­

gico, é que a mesma estrutura neurofisiológica está por detrás de uma coisa e outra: "os achados indicam que em animais tão distantes como répteis e primatas, o complexo reptiliano está basicamente implicado na expressão organizada, de natureza ritualística, do comportamento pros­

semático" (MacLean 1978: 319). A razão analítica: "em linguagem

circular, podemos definir uma espécie como um grupo de animais que adquiriu geneticamente a perfeita capacidade de imitar-se a si próprio" (320). Lembremos, ainda, ser bem clara a diferença fundamental en­tre funções psicológicas arcaicas, isopráxicas e recentes, neocorticais:

"A criança autista [cuja inteligência é, em geral, normal] exemplifica os efeitos devastadores de uma incapacidade de imitar. Crianças mental­mente retardadas, pelo contrário, podem exibir considerável disposição para imitar, e esta inclinação tem sido aproveitada para lhes ensinar ha­bilidades" (320).

MacLean aplica um conceito correlato ao de "personalidade básica" (da espécie ou do indivíduo) para o de identidade social, em geral (hu­mana ou não): ''Nunca é demais enfatizar que a isopráxis é básica para manter a identidade da espécie ou de um grupo social" (320). É sobre uma base reptiliana-paleomamífera, então, que o indivíduo humano vem a erigir e sustentar socialmente, como pensa Goffinan ( 1999), represen­tações de papéis no contato face a face, visando o que ele chama de "manipulação da impressão" (218); o indivíduo "pede" a seus "observa­dores" "para acreditarem que o personagem que vêem no momento pos­sui os atributos que aparenta possuir" (25). De acordo com o modelo da mente triúna de MacLean, devemos entender tal colocação como corres­pondendo apenas à parte da verdade: "pedir" e "acreditar" são funções neocorticais, a "ponta do iceberg" situado à superfície de um proces­

so que assenta na comunicação prima] que se dá através da conduta de exibição - mais ou menos ritualizada, não importa - pertencente a

uma esfera filogeneticamente muito mais arcaica, a reptiliana. Pode­mos aceitar que a "personalidade representada" (o papel social), uma

vez vitalmente incorporada sob a forma de habitus, situa-se, tanto quan-

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to a "personalidade básica" acima mencionada, igualmente no referido âmbito filogeneticamente arcaico. Parece teoricamente relevante aplicar o mesmo tipo de interpretação para observações como as seguintes, de Etcoff ( 1999):

O vestuário muitas vezes reflete o status elevado no passado, tais como caça, golfe, iatismo ou pólo. O paletó c chapéu do caçador inglês inspi­raram a cartola e as abas compridas da casaca do traje a rigor, os botões de metal e blazers do mundo do iate se tomaram trajes esporte para ter­ra firme, e o cardigã e a camisa pólo migraram do campo de pólo para a nossa casa. Hoje temos o que foi cognominado "patagonia couture:· vestuário derivado do mergulho, snowboarding e alpinismo. Como o papel do guerreiro sempre foi associado à classe mais alta, vestimentas de batalha também são um símbolo de status. Dos militares vieram a capa impermeável (cruzada como jaquetão), as dragonas, relógios, ja­ponas c a cor cáqui, entre outras coisas. [ ... ] Outra maneira de alguém comunicar que leva uma vida ociosa é usar tecidos que requerem muito cuidado. O linho é um bom exemplo, pois é um tecido de muito pres­tígio que amassa no momento em que é vestido. O brocado de cetim e os sapatos bordados da aristocracia francesa do século XVII mostra­vam que as mulheres nunca caminhavam na lama. Não precisavam: as fiteiras eram levadas diretamente às salas públicas de Versalhes. Os vestidos-combinação de hoje não parece que resistiriam a qualquer de­safio. O ócio é demonstrado mais obviamente por modas que tomam o trabalho físico impossível. Aristocratas chineses usavam unhas grandes para mostrar que não executavam trabalho manual. Como um repórter de moda observou recentemente [1. Stcinhauer, New York Ttmes]: "Os saltos altos são para quem paga aos outros para caminharem por eles­para ir à lavanderia, para chamar um táxi, para comprar o a lmoço."

Como foi dito há pouco com respeito ao que afirma Goffinan, devemos entender tal tipo de comunicação como envolvendo as três mentalidades de nosso cérebro triúoo - não como um processo funcionando mera­mente no nível "simbólico," ideativo-imaginativo, mas como essencial­mente apoiado nos níveis da afetividade e do comportamento isopráxico primai. Na medida em que, para MacLean ( 1975: 207), "como Plutar­co nos ensinou, 'o hábito é quase uma segunda natureza'," então não só a "personalidade básica" derivada diretamente das propensões inatas,

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mas também qualquer padrão habitual incorporado na existência do in­divíduo, é uma função psicológica dos centros filogeneticlamente mais arcaicos do prosencéfalo humano. As idéias simbólicas veiculadas pe­las vestimentas de que fala Etcoff nessa passagem, independentemente de sua gênese cognitiva, acabam por se sedimentar em costumes - e na concomitante experiência vivida da afetividade vital veiculada na co­municação isopráxica (imitativa). Isto quer dizer, no modelo da mente triúna, que a experiência comunicativa que realmente tem lugar pertence a camadas mais profundas, é do tipo isopráxis reciprocativa cum afeti­vidade - a ressonância prossemática da moda enquanto apêndice vital da "personalidade básica," que, como vimos, liga-se aos fa tores filoge­neticamente arcaicos.

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Na ação coletiva - como, al iás, na ação em geral -, os três modos de mentalidade e conduta do Homo sapiens dificilmente ocorrem com l OO"tipos ideais," no sentido de Weber (1993). Assim, por exemplo, a paranóia de um movimento coletivo possui uma complexa estrutura lógica triúna reptiliana-paleomamifera-neomarnifera: a compulsividade tropística dos atos consumatórios comportamentais propriamente ditos repousa tanto numa isopráxis reciprocativa com "solda" afetiva, quanto numa ideologia mais ou menos sofisticada, e, ainda, na identificação­submissão (repti liana-paleomamífera) diante da figura de um líder caris­mático. Deixo que a estrutura triúna da paranóia coletiva seja explicada pelo próprio MacLean ( 1970: 261, 262, 273-5):

O elemento emotivo na "tendência paranóica" cai sob a descrição de um afeto geral. Essencialmente, equivale a um sentimento desagradável de medo atrelado a algo que não pode ser claramente identificado. O sen­timento tem a capacidade de persistir ou retornar muito tempo após a circunstância incitante, c pode se aplicar a uma situação ou coisa, um indivíduo ou grupo de indivíduos. [ ... ) [Há uma] forma de ignorância que transtorna o homem c o distíngue de todos os outros animais. [Tem a ver com] a imagem fracamente delineada e incerta de eventos futuros que ele está sempre procurando discernir. Quando a natureza lhe deu o

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neocórtex pré-frontal para a antecipação c o conectou com as áreas cor­ticais visuais, ela deixou de prover uma antena de rddar e um monitor de vídeo. Em conseqüência, todas as suas investidas na direção do fu­turo devem ser efetuadas com imagens obscuras, lembradas do passado combinadas com um quadro do presente. Como o futuro está sempre gerando mais "futuros" ad infinitum, é claro por que suas incertezas são responsáveis pela maior parte da formas humanas crônicas de descon­fiança. [ ... ] Sensações afetivas fornecem a ponte entre nossos mundos interno e externo, c talvez mais que qualquer forma de informação psí­quica, nos assegura da realidade de nós mesmos c do ambiente à nossa volta: daí porque afirmo que "um homem louco seria louco se não acre­ditasse na realidade de seus loucos sentimentos." [ ... ] Quais são al­gumas das condições que geram sentimentos desconfortáveis persisten­tes numa sociedade? [ ... ) Talvez o fator de distúrbio de predomínio mais geral seja a pressão que surge da superpopulação. [ ... ) Para o ho­mem na rua, ela significa uma batalha por espaço vital, uma batalha por comid~. por recreação, para chegar ao trabalho, uma batalha pelo pró­prio emprego. [ ... ] Quão influente, podemos perguntar, é a contrapar­tida rcptiliana do cérebro humano no escolher c seguir um líder? É pos­sível que este cérebro, em conjunção com o cérebro límbico, de baixo poder discriminatório, confunde a caricatura de um líder com um líder genuíno? Um particular sucesso em ludibriar parecem ter as qualida­des assertivas, agressivas do psicopata, que lhe possibilitam exibir um grande espetáculo c falar mais alto e mais longamente que qualquer um.

É teoricamente importante discernir em que reside, sob as semelhanças aparentes, a diferença essencial entre o tipo de explicação que MacLean dá da essência da paranóia coletiva e a interpretação dada por Lindholm (1993: 203) ao fenômeno do movimento carismático:

Argumentei neste livro que há no homem um profundo desejo para es­capar aos limites do cu; um desejo que assume aspectos variados de acordo com as circunstâncias sociais. Vimos que uma das maneiras pelas quais os indivíduos podem atingir este extraordinário estado de desprendimento é através de um grupo unido pela figura inspiradora de um líder carismático volátil. [ ... ] há muitos aspectos do nosso mundo, inclusive o isolamento pessoal c a mobilidade rápida, a competitividade e uma ausência de valores, além daqueles do emotivismo, que deveriam produzir algum tipo de revelação carismática compensatória nos pontos frágeis da estrutura social.

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Do ponto de vista da antropologia evolucionista de MacLean, há forças arcaicas reptilianas na origem do movimento coletivo carismático -poderíamos mesmo dizer: entre as condições antropológicas de possibi­lidade. O "desejo de escapar aos limites do eu," de que fa la Lindholm, na medida em que existe, deveria ser entendido, se não como mera raci­onalização (espécie do gênero ideação neomamífera), então como pro­duto imaginativo que se mistura com um impulso prima/ que extrapola os limites da mente neocortical, neomamífera; o eu triúno, porém, en­globa tal fator extrarracional reptiliano (de imitação prossemática). Um tal "desejo," como tipo de mentação (mentation) evolutivamente mais recente, afetiva/ideativa, se ocorre, deve ser ulterior ao comportamento coletivo primai, a ele se sobrepondo.

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Não poderíamos achar um único setor da vida- isto é, experiência ­humana no qual o jogo tríúno das mentalidades reptiliana, paleomamí­fera e neomamífera não esteja em cena. Mesmo quando dormimos: a "função autocriativa dos sonhos" (Hobson 1988: 297), reflete uma espé­cie de manipulação lúdica, pelo modus ideativo/imaginativo neocortical, de material afetivo, positivo ou negativo, recordado ou esperado, a que náo deixa de comparecer o elemento obsessivo, repetitivo - a idéia fi­xa, isto é, a ideação que insiste tenazmente em representar episódios, passados ou futuros, de sign ificância afetiva.

A discussão muito atual acerca dos prós e contras, para a socieda­de brasileira, da Lei dos Crimes Hediondos passa pela consideração das três finalidades básicas de qualquer sansão penal: (1) a mera punição ou castigo, como imposição retributiva devida pela ação criminosa; (2) a intimidação desestimuladora ao criminoso potencial; (3) a recupera­ção ou reeducação socializadora do condenado. Parece fácil detectar o predomínio, em (1 ), da mentalidade reptiliana, tropística e compulsiva ("escreveu, não leu: pau comeu"), em (2), da mentalidade neomamí­fera, calculista-planejadora, e em (3), da mentalidade paleomamífera, empática-compreensiva.

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As núriades de variações sobre os temas do hedonismo consurnista e do romantismo (Campbell 1995) carregam inequivocamente a marca registrada do sistema límbico paleomarnífero. (Tais variações são ide­ativas/imaginativas, ergo neocorticais/neomamíferas.). O mesmo vale, já podemos ver, para todo o campo das experiências lúdicas, a diver­são, com sua ênfase na fruição inconseqüente, irresponsável do aspecto qualitativo, estético do presente - extensão infinitamente sofisticada do singelo comportamento típico dos filhotes mamiferos (a expressão "re­gressão" adquirindo assim um sentido filogcnético mais forte que o psi­canalítico - e sendo mesmo fundamento ontológico dele). A obstinada manutenção de padrões experienciais afetivos infantis na vida adulta, por outro lado, ilustra a eficácia da aplicação do modus reptil iano do ha­bitus enquanto repetitividade viciosa. Outro caso notável (mencionado mais acima) é o da complexa estrutura lógica da identificação bipolar sadomasoquista, em cuja base não é difícil perceber o fator determi­nante reptiliano da dominação - o "ser dominado," experienciado por identificação simpática, constituindo uma (per)versão reptiliana da ex­periência paleomamífera de "ser cuidado."

A teoria de Bergson ( 1988a) acerca do fenômeno antropológico do riso e do cômico também parece obter importante confinnação ou pelo menos reforço no modelo da mente-cérebro triúna de MacLean. Segun­do Bergson, o riso é um fenômeno essencialmente biossocial: sua fun­ção original, pura é promover uma espécie de crítica, por parte do grupo, ao indivíduo que se descuida e contraria de alguma forma as normas da vida comunitária da sua gente. O riso é, assim, essencialmente agres­sivo, mesmo quando não chega à gargalhada ostensiva; só o elemento humano é capaz de veicular, em sua conduta, o cômico (se julgamos um animal engraçado, é que a circunstância faz com que o associemos de alguma forma ao ser humano); a plenjtude da experiência do cômico se dá no interior do grupo. É um mecanismo biológico de preservação da ordem social- e, com isso, da sobrevivência. É um sinal de alerta enviado pelo grupo para que o indivíduo não tome a comprometer a ca­dência utilitária da vida coletiva - como o proverbial pensador ou poeta apaixonado que caminha olhando para as estrelas e cai num buraco. O

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cômico sofisticado das piadas e comédias seria uma elaboração imagi­

nativa visando a produção deliberada de situações análogas àquelas que suscitam naturalmente a experiência do cômico. O riso diante do cômi­

co - e a gargalhada, o deboche, o escárnio etc. - não se confunde, portanto com o sorriso de satisfação e deleite, cuja forma mais pura é,

decerto, o sorriso infantil, ou dos jovens namorados. Podemos dizer que

o riso-gargalhada está para o espírito reptiliano, agressivo, assim co­mo o sorriso está para o espírito paleomamifero, afetivo. E, contudo, trata-se de uma agressão que se apropria de urna forma de expressão corporal empática; pois o tipo de ofensa cometida não justificaria pe­nalidade mais séria, diz Bergson. Mesmo o riso zombeteiro, maligno do xenófobo reptiliano diante de um indivíduo "diferente" em algum aspecto- cultural ou fisico ("nariz grande") - ainda guarda um vestí­

gio, não importa quão ínfimo, do sorriso da empatia intersubjetiva a que o sistema límbico capacita o Homo sapiens, de direito se não de fato. A gargalhada possui algo de rígido, frio, mecânico e repetitivo -nada dis­so há no sorriso. A propagação incontrolável da gargalhada exemplifica a comunicação prossemática de expressividade vital própria da mentali­dade reptiliana, compulsiva; o sorriso, em sua doçura e delicadeza, não

se presta a semelhante mecanismo. Um ponto dos mais relevantes é a dupla tese de MacLean (conforme

citação acima), segundo a qual ( 1) cada uma das três mentalidades pode

asstunir controle exclusivo da conduta, e (2) as mentalidades mais arcai­cas reptiliana e paleomamífera não se fazem entender lingüisticamente à mentalidade neocortical (neomamífera). Há toda uma famíl ia de condu­tas compulsivas- ergo reptilianas-notoriamente refratárias aos trata­

mentos teóricos predominantes nas ciências sociais, que ficam facilmen­te explicadas à luz desses princípios- da independência e da incomu­

nicabilidade. Refiro-me aqui às sofisticadas (porque imaginativas/idea­tivas) versões, no Homo sapiens, daqueles padrões comportamentais elementares facilmente detectáveis no cotidiano dos répteis (MacLean 1990), que transcrevo uma vez mais: tropismo, isopráxis reciprocati­

va, exibição (assinatura, corte e o par intimidação/submissão), acumula­ção/empilhamento, rotina/ritua l, territorialismo, dissimulação, perseve-

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rança/rigidez, repetição, "deslocamento." A semântica desse conjunto

de termos remete para bem conhecidas zonas de nossa conduta - e con­tudo, "incompreensíveis," isto é, inatingíveis para o discurso, para a ló­

gica da narrativa neocortical. Para ficar no último item dessa lista, a con­duta "deslocada": poucas vezes a curiosidade de psicólogos-filósofos se detém diante da família de curiosos comportamentos que incluem "cui­

dar" masculino de utensílios e ferramentas em geral - automóvel ou motocicleta, cachimbo, armas, prancha de surf, computador pessoaL .. a lista é intcnninável). E, contudo, sua origem pode ser rastreada filoge­neticamente ao elos reptiliano - a conduta "deslocada" do Homo sapi­ens sendo uma versão tccnoculturalmente sofisticada das formas simples estudadas por Maclean, seus colaboradores e outros em répteis. Como poderia ser tal etos arcaico compreensível para a mente neocortical?

E como poderia a mente neocortical do terrível psicopata - sacio­pata - , a cada compulsivo surto destrutivo do arcaico réptil sediado

nos núcleos basais do seu prosencéfalo, deixar de ficar simplesmente estarrecido diante do ocorrido - uma vez mais, sem aviso prévio, sem aparente explicação! Quantas vezes não vimos, diante de uma câmara de

TV, o seu impressionante pedido para ser definitivamente afastado da so­ciedade - para ser condenado à prisão perpétua, ou mesmo sentenciado à morte (quando não tenta o suicídio)-, por considerar líquido e certo que voltará, como a uma rotina inquebrantável, a praticar o que, para as mentalidades evolutivamente mais recentes, constitui uma atrocidade sociopática. Como, em poucas palavras, resistir à inescrupulosa direção

do arcaico réptil proscncefálico quando, por razões decerto fisiológicas, inatas ou não, estão inoperantes a empatia paleomamífera e a razão neo­mamífera, capazes, se não de desativá-lo, ao menos de abrandá-lo e socializá-lo? Eis a função da "cordialidade," imposta nem sempre com facilidade à criança; e notemos que a conduta cordial, enquanto não sen­

tida de modo paleomamífero, precisa ser exibida de modo reptiliano ­com fingimento e rigidez.

E o desejo humano? Este, pertence, a um só tempo, aos três reinos

filogenéticos. Estruturalmente falando, desejos são idéias: idéias cujo

conteúdo proposicional é do tipo "A é bom," ou "A seria bom." Mas

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é claro que um desejo é mais que isso- é uma idéia motivadora. A causação mobilizada via desejo não é, contudo, por si própria, causação eficiente - como o é a causação intrínseca a uma intenção (prévia ou -na-ação (Searle 1990, cap. 3)) - ; trata-se de uma motivação genui­namente afetiva. Mais que a mera constatação ou asserção de que "A é bom," o desejo corresponde essencialmente ao ato (afetivo) de sen­tir tal conteúdo intencional na ausência de A. E mais: o afeto positivo essencial ao desejo prende-se à própria ideação imaginativa do desfru­te de A, qua imaginação e não qua desfrute: um desfrute imaginado é propriamente imaginação do desfrute (e não desfrute imaginado). No limite, o desejo é compulsivo e sua qualidade experiencial verdadeira­mente hedonística se perde: o prazer (paleomamífero) tende agora à tirania obsessiva da obrigação (reptiliana) de satisfação. A lógica de tal metamorfose perversa desejo compulsão vale, por exemplo, tanto para o consumismo de massa (Campbell 1995), quanto para a toxicomania (Sissa 1999); e ainda, por paradoxal que pareça, se aplica de um só gol­pe à submissão- primeiro hedônica, depois tropística- quer ao ócio quer ao trabalho (De Massi 1999).

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Mesmo o às vezes desanimadoramente lento processo histórico de rein­venção estrutural do tecido social obedeceria, também, inevitavelmente, a tais condições de possibilidade etológicas evolucionistas - unicamen­te sobre as quais, portanto, é que pode se dar a poiesis empreendida pelo imaginário instituinte social, de que fala, contra o determinismo histó­rico, Castoriadis (1975). Podemos legitimamente supor que até mesmo as diversas línguas naturais refletiriam, em suas particulares fisionomi­as qualitativas, o resultado de diferentes processos criativos históricos agindo sobre a inevitável matéria prima triúna constitutiva de toda con­duta e realização do Homo sapiens - isto é, as forças mentais rep­tilianas, paleomamíferas e neomamíferas. Não seria uma especulação gratuita sugerir que o processo histórico civilizador, conforme aborda­do por Elias (1994), não deixa de espelhar forçosamente- mas sem

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determinismo causal - , em seus diversos aspectos e infinitos detalhes, a própria tendência filogenética que sustenta o processo evolutivo da encefalização. Nesse caso, estaríamos aceitando a hipótese de que a mentalidade neomamífera- na fonna frontooeocortica l da espécie hu­mana - estaria historicamente "subjugando"-moldando e sendo por elas moldada - as mentalidades reptiliana e paleomamífera. Eis um interessante processo histórico que parece exemplificar o que está sendo dito, relatado por Simmel (1993: 42-7, 50):

Mas a organização dos casamentos que vem à luz com a compra das mulheres representa um imenso progresso diante das condições mais grosseiras do rapto nupcial, ou ainda diante dessas relações sexuais de todo primárias, que não conheciam, sem dúvida, a promiscuidade abso­luta, mas ignoravam, muito provavelmente também, a firme referência normativa que a compra socialmente regulada proporciona. [ .. . ] A evolução da humanidade sempre atravessa estágios em que a opressão da individualidade é o ponto de passagem obrigatório de seu livre de­sabrochar posterior, em que a pura exterioridade das condições de vida se toma a escola da interioridadc [ ... ] a ordem relativamente fixa e o esquematismo algo exterior do casamento por compra foram uma pri­meira tentativa, violentíssima, pouquíssimo individual, de dar às rela­ções conjugais certa expressão, tão adaptadas a estágios ainda rústicos quanto as formas de casamento mais individuais a tempos mais evoluí­dos. ( ... ] Portanto, embora a compra de mulheres exprima no imediato sua opressão, sua exploração, sua reificação, ainda assim elas adquiri­ram valor com isso [ ... ] as diferenças de preço- socialmente fixados ou estabelecidos por negociação individual - traduzem diferenças de valor entre as esposas. [ ... ] Relata-se que as mulheres cafres não sen­tem em absoluto sua venda como um aviltamente; ao contrário, a moça orgulha-se dela, pois quanto mais bois e vacas custou, mais atribui va­lor a si mesma. ( ... ] a compra de mulheres comporta um primeiro meio, grossciríssimo decerto, para fazer sobressair o valor individual de determinada mulher em particular, portanto também [ ... ] o valor das mulheres em geral. [ ... ] pelo dote, aos presentes do noivo corres­pondem os dos pais da noiva. Portanto, o poder absoluto de dispor da mulher é, em principio, quebrado, porque o valor recebido pelo homem comporta em si certa obrigação; já não é ele o único a oferecer uma prestação, a outm parte também tem pois um direito a exigir. [ ... ) a diminuição e o aviltamento do valor do ser humano assim adquirido são

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Princípios Neuropsico/ógicos Evolucionistas do Elos Humano

inversamente proporcionais às somas pagas. Porque, num nível muito elevado, o valor monetário possui uma raridade que lhe confere uma cor mais individual, menos intercambiável, e que portanto faz dele um me­lhor equivalente dos valores pessoais. Entre os gregos da época heróica, há presentes oferecidos pelo noivo ao pai da noiva, mas que não repre­sentam uma verdadeira compra, ao passo que a situação das mulheres é particularmente boa. Esses donativos, sublinha-se, eram consideráveis. Por mais humilhante que pareça comprometer contra dinheiro seja a in­terioridade do ser humano, seja a totalidade deste, o montante inabitual das somas em jogo poderá no entanto criar [ .. . ] uma espécie de com­pensação tendo em vista, em particular, a posição social do interessado. ( ... J na Grécia como em Roma, o dote se torna o critério da esposa legítima por oposição à concubina.

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Se aceitannos a interpretação de Símmel a respeito da evolução históri­ca do reconhecimento do papel social de esposa - e, ao mesmo tempo, o de sua personalidade -, parece que assistimos igualmente à evolu­ção de uma dinâmica entre as três mentalidades, os elementos paleoma­

míferos da afetividade se impondo lentamente num quadro a princípio saturado de esquemas consuetudinários de predominante rigidez e au­tomatismo reptiJianos, e crescentemente organizado segundo diferentes fonnas (neomamíferas) de "cálculo." Uma mentalidade " morai" vai sur­gindo- como veremos adiante, associada fisiologicamente à vasta rede de conexões entre o sistema limbico paleomamífero e o neocórtex pré­frontal do Homo sapiens.

MacLean insiste em que a evolução cultural é apenas mais um grande capítulo - para nós, decerto o mais importante - na evolução natural de nossa espécie, possibilitado pelo fato de a cultura integrar constitu­

tivamente a ontogênese do indivíduo humano. A emergência do afeto entre a fêmea e seu fi lhote- essa exclusiva invenção do reino mamífe­ro4 - terá sido um antecedente "histórico" crucial, condição sine qua

non de relações afetivas mais generalizadas - o eros humano - pro­piciadas pela interação funcional do sistema límbico com o neocórtex pré-frontal. A empatia, que um dia brotou no estreito círculo familiar

dos mamíferos mais primitivos, não-placentários, agora, no mundo dos homens, se irradia para círculos concêntricos de diâmetros crescentes,

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incluindo, para além da família , a vizinhança imediata, depois as mais remotas, toda a humanidade, todas as formas de vida do planeta - e

mesmo este próprio planeta que nos abriga, e o sistema solar, as estrelas mais distantes ... As relações afetivas humanas se estendem mesmo às idéias mais abstratas - políticas, matemáticas, musicais, religiosas.

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Real e ( 1998) divide a vida ética em "cinco modalidades fundamentais: religiosa, amorosa, moral, costumeira e jurídica" (404). Do ponto de vista do presente trabalho, podemos dizer que nas duas primeiras mo­dalidades prevalece a mentalidade paleomamífera, como quer que en­tendamos o vasto fenômeno natural da a morosidade (eu concordo com Alberoni (1999), Brown (1990) e Simmel (1993)) e da religiosidade (eu concordo com CaiU ois ( 1988) e Otto ( 1992)). O elemento de apego à

tradição herdada confere à quarta modalidade, os costumes, em prin­cípio, um traço estrutural mínimo francamente reptiliano. O que não implica forçosamente inexistência de uma afetividade consuetudinária: " no campo das normas consuetudinárias é possível plena adequação en­tre a intenção e a exterioridade, assim como também é possível a sua obediência fria e gélida [ergo reptiliana], sem qualquer 'participação ' [afetiva, ergo paleomamífera] do sujeito" (Reale 1998: 402). Por ou­tro lado, a modalidade jurídica, na medida em que se caracteriza por uma "objetividade discriminadora de pretensões" ( 403), isto é, por "en­lace objetivo de conduta que constitui e delimita e exigibilidades entre dois ou mais sujeitos, ambos integrados em algo que os supera" ( 403), parece se dar na interseção dos planos reptiliano e neomamífero. O contexto psicológico que permite a operação quase-tropística (o habitus reptiliano) da "motivação jurídica" envolve intimamente a aceitação ne­ocortical da razoabilidade ("transubjetiva," como diz Real e) da norma; o elemento afetivo paleomamífero, por outro lado, é claramente opcional

aqui - mas a adesão afetiva do c idadão à rigidez impositiva (reptiliana)

da nom1a é obviamente algo desejável para a própria preservação das

instituições.

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Princípios Neuropsicológicos Evolucionistas do Eros Humano 261

Com isso tocamos num ponto fundamental da relação cultura-biolo­

gia, e em que, como já veremos, o modelo de MacLean parece teori­

camente relevante. Pois se a adesão experiencial afetiva do indivíduo

à norma institucional é desejável, então parece natural que a vigência quase-automáticada, quase-tropística (reptiliana) da racionalidade abs­trata das normas (neomamífera, neocortical) requer que as instituições

sejam continuamente reafirmadas afetivamente (a dimensão paleomanú­fera). Isto se dá precisamente pela via da ritualística cerimonial, cívica (herança da conduta reptiliana de rotinas e subrotinas ritualizadas de

exibição vital, territorial). Cito Searle (1995: 118):

Porque as instituições sobrevivem através de sua aceitação, em muitos casos um elaborado aparato de prestígio e honra é invocado para asse­gurar reconhecimento c manter a aceitação. [ ... ] Onde a instituição demanda mais de seus participantes do que ela pode extrair pela força, onde o consenso é essencial, grande dose de pompa, cerimônia e show é empregada de tal modo a sugerir que algo mais está se passando do que simplesmente a aceitação da fórmula X conta como Y no contex­to C. Forças armadas, cortes judiciais, e em menor grau universidades, empregam cerimônias, insígnias, togas, honras, classificações e mesmo música para encorajar continuação da aceitação da estrutura.

Searle não está contudo interessado em explicar, na medida em que não

se ocupa de uma antropologia evolucionista como a de Maclean, por que afinal são capazes tais mecanismos rituais, com toda a sua rígida, embo­ra pomposa, fixidez, de funcionar como causa eficiente de uma experi­ência de continuada aceitação ou reaceilação, isto é, reafirmação afeti­va, existencial da validade do sistema de normas. Ora, este ponto parece de importância capital para a antropologiafilosófica. É preciso menci­onar, a este respeito, a clássica contribuição de Collingwood (1993) na explicação do mecanismo da eficiência causal da conduta ritualizada no reforço continuado da aceitação vital-afetiva, pelo indivíduo, das insti­

tuições humanas. Ele desenvolve wna penetrante análise do processo pelo qual o ser humano potencializa seu continuado envolvimento afeti­vo na vida coletiva, valendo-se do conceito de "representação mágica";

e tal análise pode ser complementada e reforçada, acredito, recorrendo-

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se ao modelo etológico evolucionista da mente-cérebro triúna. Leiamos as palavras do próprio Collingwood (1993: 71- 2, 7~9):

Se nos perguntarmos como produz a magia estes efeitos emocionais, a resposta é fácil. Realiza-o pela representação. É criada uma situa­ção (guerreiros brandem suas lanças, o camponês ergue seu arado etc., sem que ocorra qualquer batalha nem seja semeada semente alguma) representando-se a situação prática para a qual deve dirigir-se a emo­ção. É essencial para a eficácia mágica do ato que as pessoas sejam conscientes dessa relação, e reconheçam que o que realizam é uma dan­ça guerreira, um ritual de arar [ ... 1 A magia é uma representação em que a emoção evocada é uma emoção valorizada por sua função na vida prática, evocada com o fim de poder desempenhar essa fimção [ ... ] A atividade mágica é uma espécie de dínamo que supre o mecanismo da vida prática com a corrente emocional que a dirige. [ ... 1 a poesia pa­triótica, a canção na escola, as efígies dos próceres ou as estátuas dos estadistas, o monumento comemorativo, os quadros ou dramas que re­cordam feitos históricos, a música militar e todas as numerosas formas de marchas e cerimônias cujo propósito é estimular a lealdade para o país, a cidade, o partido, a classe, a família o qualquer outra unidade social ou política. [ ... 1 as cerimônias da vida social, coisas tais como bodas, funerais, ceias; formas de espetáculos [ ... 1 Todas essas coisas são em essência mágicas. Implicam um engalanar-se que não se faz por diversão ou complacência ao gosto individual [ ... ] Todas elas supõem formas prescritas de linguagem e em todo caso rudimentos de um vo­cabulário ritual. Todas elas implicam instrumentos rituais: um anel, um carro fünebre, um peculiar e complicado arranjo de facas, garfos c co­pos, cada um com sua função prescrita. Quase sempre todas elas abran­gem o uso de flores de tipos prescritos, arrumadas de maneira prescrita, oferecidas no espírito do ritual. Sempre supõem um comportamento prescrito, uma alegria ritual ou uma tristeza ritual. No que se refere a seu propósito, cada uma tem por objeto suscitar de modo consciente c explícito certas emoções que se espera que frutifiquem nas obrigações subseqüentes da vida prática. O fausto do casamento nada tem a ver com o fato, quando é um fato, de que os participantes principais es­tão enamorados um pelo outro. [ ... ] Seu propósito é criar um motivo emocional para manter uma associação de certa classe, não a associa­ção dos amantes, mas a das pessoas casadas, reconhecida como tal por todos, exista ou não amor. O funeral é uma reorientação emocional de um tipo diferente. Os enlutados não fazem, em essência, uma exibição

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Princípios Neuropsicofógicos Evolucionistas do Etos Humano

pública da sua dor; mas põem publicamente de lado sua velha relação emocional com uma pessoa viva e assumem uma nova relação emocio­nal com a mesma pessoa, embora morta. O funeral é seu compromisso público de que no futuro vão viver sem a pessoa. [ ... ] A cerimônia de um banquete trata de criar ou renovar um vínculo, não de compre­ensão, interesse ou procedimento, mas simplesmente de emoção, entre os comensais c, mais particularmente, entre o anfitrião e cada um dos convidados. Consolida c cristaliza um sentimento de amizade [ ... ] O baile sempre foi mágico e continua sendo-o entre nós. Em sua forma moderna e "civilizada" é essencialmente um ritual de cortejo. [ ... ] O interesse dos jovens de cada sexo, longe de se satisfazer e portanto se esgotar no próprio baile, tem como propósito frutificar numa associação futura. No fundo, como nossas mais francas avós muito adequadamente o colocam, um baile é a ocasião em que as moças encontram marido. Todas essas cerimônias mágicas, cada tipo a seu modo, são represen­tativas. De modo literal, ainda que seletivo, representam as atividades práticas que tratam de suscitar. [ ... ] Desse modo, no matrimônio, os participantes principais tomam-se as mãos e caminham de braços dados entre os assistentes, para simbolizar sua associação diante do mundo. No funeral, os enlutados abandonam o defunto para simbolizar sua re­núncia à atitude emocional que mantinham com ele em vida. Em um banquete o anfitrião e o convidado comem a mesma comida para sim­bolizar o sentido de intimidade e amizade que há de reger suas relações, mais cordiais, futuras. Num baile, o abraço dos pares é um símbolo do abraço de amor.

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Uma complementação etológica à penetrante análise de Colling­

wood, já podemos adivinhar, faria referência muito simplesmente -

mas de modo emergencial, não-reducionista - à conexão neuropsico­

lógica entre o complexo estriado ganglionar basal e o sistema límbico - entre a vida primai, reptiliana e a afetiva, paleomamífera, entre a co­

municação de expressões vitais e a experiência de sentir tais impressões

vitais. As forças existenciais afetivas (paleomamíferas) estão profunda­

mente, intrinsecamente atadas às forças primais vitais (reptilianas) ­

sendo prontamente, tropisticamente acionadas por elas (como vimos).

Assim, nas infinitas formas ritualísticas das diversas culturas, formas

transculturais ergo antropológicas (evolucionistas, filogcnéticas) - dos

costumes informais às instituições formais-, teríamos mecanismos efi-

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cazes de concentração e direcionamento institucional de emoções paleo­marniferas via padrões reptilianos de exibição cerimonial.

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Também a vida moral possui uma estrutura lógica que pode ser melhor entendida a partir do modelo evolucionista da mente-cérebro triúna. Co­mo sempre, aqui também se trata de desvendar as especiais conexões entre a mentalidade primai, vital, a afetiva, empática e a racional, res­ponsável (porque capaz de previsão). Antes de mais nada, a vida moral "ideal" - o reino humano dos puros fins em si, de que fala Kant assenta e se desenrola lústoricamente de bases primais da rígida soci­alidade consuetudinária. É o que está por trás da conhecida distinção que faz Bergson ( 1988b) entre a verdadeira moral criativa, "dinâmica" e "aberta," com o etos "estático" e "fechado" dos costumes tradicio­nais - o apego compulsivo à autoridade do antecedente. E, contudo, a mentalidade reptiliana não deixa de ser e la própria uma força bioló­gica subsidiária imprescindível: no esforço, impetus rumo à mudança, no ser atraído tropisticamente por um projeto moral de autotransforma­ção e transformação social. Mas qual a natureza da verdadeira operação moral criativa de que fala Bergson, que ousa até mesmo abalar a es­trutura do superego freudiano e da rotina normativa herdada (formal e informal)? Cito Alberoni e Veca ( 1992: 58- 9):

A fraternidade, a solidariedade, o amor são dados. Regeneram-se con­tinuamente, são produzidos continuamente na sociedade. Não é a razão que os produz. Mas a razão encarrega-se deles. A razão não pode fa­zer com que o amor desabroche. Não pode provocar o surgimento do amor maternal. Não pode destilar o amor-amizade. Pode entretanto considerá-los bens preciosos a serem reconhecidos, recebidos, cultiva­dos, protegidos e incentivados. Pode tornar-se vigia e protetora deles. Interpretar o ímpeto deles, transformá-los em atividade inteligente, con­tinuada, racional em relação a finalidade. Deste encontro nasce a moral. A moral tem uma natureza dupla. [ ... ] o mero amor, o mero altruísmo, não são, por si só, morais. [ ... ] A moral só aparece quando surge a razão. A razão, entrando em contato com o altruísmo, transforma-o,

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Princípios Neuropsicológicos Evolucionistas do Etos Humano

muda sua natureza e torna-o moral. [ ... ] Cada um de nós, na base de suas próprias experiências, sabe que, ao refletir acerca das suas esco­lhas emocionais, muda realmente a sua disposição de ânimo. A simples experiência de procurar manter-se imparcial, objetivo, faz com que haja uma modificação na nossa maneira de ver as coisas, modifica a nossa sensibilidade emocional, a qualidade do nosso amor. O hábito da refle­xão moral modifica o nosso caráter, toma-o virtuoso. Temos, portanto, que concluir o seguinte: é verdade que a razão sem altruísmo é vazia, mas também é verdade que o altruísmo sem a razão é cego. Altruísmo c razão, j untos, produzem uma coisa diferente, a moral. Esta, às vezes, poderà passar sem o altruísmo, agindo como se. Mas tem que voltar pe­riodicamente a ele, reencontrar as suas raízes emocionais, se não quiser perder o caminho.

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Este trecho, vertido para termos da antropolog ia evolucionista da mente­

cérebro triúna, afirma que a verdadeira moral é uma realização conjunta afetivo-ideativa - paleomamífera e neomarnifera, portanto (desprezan­do aqui o elemento comportamcntal primai, que, sob a influência tro­pística de atratores ideativos, constitui aforça de vontade). O fator afe­tivo, empático- altruísmo, para Alberoni e Veca- parece constituir o cimento social propriamente dito, e o elo, por assim dizer, entre con­duta vital primai (reptiliana) e ideativa racional (neomamífera). Não é o legendário "contrato social" o que opera para minar o impulso repti­liano de dominação e poder, mas é o cálido magma paleomamífero que desconcerta e imobiliza Tanatos e lança os germes da possibilidade de

convívio humano. (É o que tem em mente Peyrefitte (1995), ao afirmar que a sociedade humana pressupõe já, desde sempre, o irredutível fator da confiança; c Godbout e Caíllé (1999), que dizem o mesmo acerca do espírito da dádiva). A questão da evidente especificidade psicológica, funcional (ergo estrutural, neurofisiológica?) da conduta moral nos leva a uma última consideração a respeito do modelo de MacLean.

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Detenhamo-nos por um instante na seguinte declaração de Bally ( 1986: 11 2): "O amor se converte em 'altruísta' ao estar a serviço da conser­

vação da continuidade humana. [grifo meu] Por isso deve haver urna

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atitude amorosa que mantenha o eros livre das cadeias de todo laço es­treito." Não é preciso, de forma alguma, dar conotação reducionista à

atribuição de uma função biológica ao que há de melhor na vida mo­ral; então, deixando intacta a hipótese de que a experiência moral só tem sentido com relação à possibilidade de uma liberdade antropológica exercida com consciência, nada mais natural que supor que à excelência de tal fim biológico da conduta moral - "a conservação da continuidade humana"-, corresponde uma excelência neurofisiológica constitutiva do organismo do H orno sapiens - e trata-se precisamente do neocórtex pré-frontal. Cito MacLean (1978: 339-40):

É já sabido há muito que o quociente de inteligência, como usualmen­te medido, não é afetado pela perda do neocórtex pré-frontal. Qual a razão então do desenvolvimento deste córtex? Antes sugerimos que o neocórtex tem a capacidade de operar mais ou menos como um frio ra­ciocinador, um computador sem coração. É o tipo de computador que toma possível aos macacos esquematizar sua investida como gangsters sobre outro bando, matar o macho dominante e cometer infanticídio na presença das mães aflitas. É desnecessário traçar aqui paralelos com o ser humano. Agora, por alguma inexplicável razão, a natureza parece ter concluído que um gênio- um verdadeiro Frankenstein - tinha si­do deixado fora da garrafa, e se esta fosse deixada tampada isso poderia levar à destruição da espécie. [ ... ] Então por que a natureza, lenta mas progressivamente, acrescentou algo ao neocórtex que pela primeira vez traz um coração c um senso de compaixão para dentro do mundo? Al­truísmo e compaixão - eis palavras quase novas. [ .. . ] No progresso do homem de Neandertal para o de Cro-Magnon, vê-se a fronte humana se desenvolver de uma testa baixa para uma testa alta. Sob esta testa elevada está o córtex pré-frontal. Há indicações clínicas de que o córtex ncofrontal provê intuição para planejarmos para nós e para os outros e de que ele também nos ajuda a compreender os sentimentos dos ou­tros. O córtex pré-frontal é a única parte do neocórtex que olha para dentro do mundo interior. Clinicamente, há evidência de que o córtex pré-frontal, ao olhar para dentro, por assim dizer, obtém o sentimento víscera! requerido para a identificação com outro indivíduo. É este novo desenvolvimento que toma possível a intuição requerida pela previsão para planejar para as necessidades dos outros tanto quanto do eu ( ... ] Ao projetar pela primeira vez uma criatura que mostra preocupação pc-

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Principias Neuropsicológicos Evolucionistas do Etos Humano

lo sofrimento de outras coisas vjvas, a natureza parece ter efetuado uma virada de 180 graus a partir do que era um mundo de réptil-come-réptil, fera-come-fera.

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É, portanto, à associação entre o sistema límbico humano - de­senvolvimento complexo do arcaico sistema paleomamífero responsá­vel pela função empática mãe-filhote - e o neocórtex pré-frontal que devemos a especificidade psicológica da conduta moral. Mencione­mos, de passagem, que aparentam ser funcionalmente afins o discer­nimento moral e o tipo de inteligência compreensiva social (tratada com profundidade pelo neurologista-filósofo Damásio ( 1998)) que está na base do "raciocínio plausível," prudencial, informal, irredutivelmente não-silogístico ou "não-mecanizável," característico das sentenças judi­ciais, como argumentou recentemente o juiz( -filósofo) de Suprema Cor­te Hogdson (1993, cap. 5). Assim, qual é a diferença essencial, por exemplo, entre Martin Luther King e Malcolm X, na luta anti-racista norte-americana? A resposta que se insinua aqui é que a conduta do primeiro- não-violência, fraternidade e a ideação esperançosa (como no famoso pronunciamento em que aparece repetidas vezes a frase "/ have a dream") - atesta o franco predomínio do etos frontoneocorti­cal (neomamífero-paleomamífero); a do segundo, por outro lado, com sua ênfase no "orgulho racial," revela boa dose do padrão reptiliano de resposta primai - sem o devido contrapeso das mentalidades paleoma­mífera e neomamífera. (Mas não esqueçamos a necessária conexão do neocórtex pré-frontal com os núcleos ganglionares basais por detrás da dita "força de vontade": a firmeza de propósito de Luther King não dei­xa de ser um traço reptiliano. Aliás, a própria repetição, enquanto tal, de "/h ave a dream," é um padrão elementar reptiliano - aqui, a serviço da retórica (estilo, traço paleomamífero, e idéias, neomamífero).)

Papel crucial desempenha, pois, a afetividade empática na conduta humana, contrabalançando a perigosa aliança entre a mentalidades rep­tiliana e a neomamífera- mais especificamente, a instrumentalização fria e calculista, pela mente neocortical, do comportamento inflexível, intransigente ("os fins justificam os meios," "custe o que custar," "não descansarei enquanto não obtiver êxito") próprio da mente primai do

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complexo dos núcleos prosencefálicos ganglionares basais. Impossível exagerar a importância do mecanismo desvendado por MacLean na pas­sagem acima para a compreensão da vida moral: "o córtex pré-frontal, ao olhar para dentro, por assim dizer, obtém o sentimento visceral reque­rido para a identificação com outro indivíduo." Como quem olha para dentro é neocórtex, e, na verdade, ele "olha" para o sistema límbico, fica claro que temos aí um perfeito correlato neurofisiológico da aliança compreensiva ou prudencial entre razão e afeto. A coligação dos pa­drões reptiliano e neoma.mífero - eficiência e firmeza com raciocínio e cálculo-previsão - , sem esse "toque feminino," moderador, do sentir paleomamífero, é um fator responsável por situações sócio-históricas de racionalidade moral problemática, como ocorre, por exemplo, no caso da meritocracia, segundo nos diz Barbosa (1999: 34-5):

Em suma, a meritocracia, enquanto sistema de valores, baseia-se na rejeição de qualquer tipo de privilégio hereditário; na igualdade j urídi­ca; na pressuposição de que o talento é aleatoriamente distribuído entre as pessoas; nas diferenças inatas entre as pessoas; na competição dos indivíduos entre si; na comparação relativa dos resultados individuais; numa perspectiva sincrônica da avaliação do desempenho; na responsa­bilidade do indivíduo pelos seus próprios resultados; e na recompensa conferida aos melhores. [ . .. ] ocorre uma transformação da lógica me­ritocrática, que de uma forma de combater privilégios e injustiças se converte numa ideologia que confere honra, status e prestígio exces­sivos a determinados indivíduos em virtude de seus méritos e reserva punição severa para outros em conseqüência de seus fracassos.

Esse estado de coisas- essa perda de controle da situação por falta da retroalimentação (feedback) da ideação-imaginação empática, compre­ensiva - é típico da "lógica do masculino" - a lógica, repetindo, da associação das mentalidades reptiliana e neomamífera, sem a delicada consultoria especializada em assuntos humanos oferecida pela mentali­dade paleomamífera ao neocórtex pré-frontal.

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Isso nos conduz, finalmente, a um ponto talvez não suficientemente de­senvolvido por MacLean: justamente o da especificidade qualitativa da

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mentalidade hwnana vis-à-vis a mentalidade neomamífera em geral ­a dos primatas -, e em particular a dos antropóides. O elemento da afetividade empática caracteriza, no próprio mundo paleomamífero em que filogeneticamente se originou, principalmente o contexto restrito das relações sociais entre mãe-filhote e fi lhote-filhote; o macho adulto está praticamente ausente desse universo lúdko/hedônico - mas não se deve esquecer que esta é uma máxima etológica, não uma equação nomológica! (Entre machos antropóides adultos, a "conversa catado­ra" (grooming talk) se situa na sempre tênue fronteira entre a atenção amável, não concedida mas trocada como favor higiênico, e a exibi­ção reptiliana de submissão.) Não seria o caso, então, de se considerar talvez em sua plena especificidade um quarto vetor funcional psicoló­gico - além do reptiliano, do paleomarnifero e do neomamífero - , correspondendo à ação moral livre tipicamente humana- e sua contra­partida fisiológica estrutural, o neocórtex pré-frontal? Os lobos frontais dos hemisférios neocorticais - e suas ligações com as duas unidades mais arcaicas, sistema limbico e núcleos basais - constituem indis­cutivelmente a marca registrada biológica do Homo sapiens - apogeu do processo evolutivo da encefalização (ou "prosencefalização"). E, co­mo mostra o neurologista Damásio (1998), deles depende estritamente, mais que o esprit géométrique, o esprit de finesse do próprio sentido sociocultural humano. Chauchard (1965: 26-41) considera a seguin­te divisão tripartite macrofuncional do cérebro: (1) o "cérebro afetivo e instintivo"; (2) o cérebro noético (inteligência e linguagem)"; e (3) o "cérebro pré-frontal," responsável por "integração e unidade," órgão não da "inteligência, mas do domínio da utilização do conhecimento para uma vida que outorga seu justo lugar ao instinto e ao sentimen­to." Qual a relação funcional que pode ser estabelecida entre o "eu" do Homo sapiens c seu neocórtex pré-frontal? Nunca é demais notar que uma das grandes virtudes teóricas do modelo de MacLean para a aná­lise precisa da conduta humana, com relação a uma formulação como a de Chauchard, é a substituição da vaga noção de "cérebro afetivo e instintivo" pela noção de duas subunidades perfeitamente distintas -estrutural e funcionalmente - , a reptiliana e a paleomamífera. (Não

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posso me estender nesse ponto, mas além de tudo parece errado contra­por "instinto" a outras funções, que seriam então não-"instintivas" -pois o pensamento ou ideação/imaginação neocortical, com toda a sua criatividade, parece igualmente um "instinto" humano.) Por ora, perma­nece então no ar a questão: seria teoricamente conveniente, para a an­tropologia filosófica evolucionista, considerar seriamente um conceito como o de "mente-cérebro quadriúna" humana? E não seria a seguinte terminologia mais indicada, mais conceitualmente apropriada: em vez de mente-cérebro triúna reptiliana/paleomamífera/neomarnífera, mente­cérebro quadriúna reptiliana/mamíferalprimata/humana?

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Gostaria, finalmente, de sugerir o que me parece uma associação teó­rica relevante: combinar o material empírico fornecido pelo modelo evolucionista da mente-cérebro triúna com a concepção semiótica de Wiley (1995) acerca da mente humana (desenvolvendo idéias de G. H. Mead e Peirce). Segundo a concepção peirceana (ontológica) de semio­se, o funcionamento mental poderia ser representado por um proces­so irredutivelmente triádico objetolsigno/interpretante, em que o estado mental presente é o signo, para um estado mental futuro ou interpretan­te do signo, de um estado mental passado ou objeto do signo. Noutros termos: o estado mental presente determina o estado futuro de acordo com a determinação recebida do estado passado. Duas observações são aqui necessárias:

(1) a relação triádica objeto-signo-interpretante é irredutível a um par de relações diádicas causais;

(2) Peirce não está falando de um eu-intérprete, um eu substancial que interpreta seus estados mentais, existindo em acréscimo a eles, à vida semiótica da mente: trata-se de um processo ontológi­co autônomo -sem superviso~ -de geração de interpretantes, processo contínuo, interminável e auto-reprodutivo em que cada interpretante do signo passado se toma, por sua vez, signo para a auto-geração de um novo interpretante.

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Há três tipos (em princípio, ontológicos, mas para nossos fins, psi­cológicos) de interpretantes: ativos ou energéticos, qualitativos ou emo­cionais e informativos ou lógicos. Isto quer dizer: três modalidades de processo de geração de interpretantes. E parece então tentador, neste ponto, tentar uma aproximação - algum tipo de aproximação - en­tre esses processos de geração de interpretantes e, respectivamente, os processos elementares reptilianos ou compulsivos/repetitivos, paleoma­míferos ou afetivos/lúdicos e neomamíferos ou imaginativoslideativos. Falaríamos, nesse caso, na descrição da experiência humana, na geração de interpretantes reptilianos, paleomamíferos e neomamí feros, ou com­pulsivos, afetivos e ideativos. Falando de maneira geral, a tarefa teórica central aqui seria a de cotejar as condições formais semióticas específi­cas de geração de cada tipo de interpretante com as condições materiais psicológicas ou etológicas de geração de compulsões, afetos e idéias. Será um tal programa de pesquisa realizável?

Uma versão mais extrema, radical do modelo semiótico se escon­de sob a máxima de Peirce de que "o homem é um signo." Aqui, a vida mental semiótica é considerada também como processo dialógico ou conversacional interior do eu consigo mesmo: por um lado, o eu­presente é tido como signo, do objeto que é o eu-passado, para o inter­pretante que é o eu-futuro; e por outro, há uma dinâmica de conversação interna do eu-presente - que é o agente efetivo - com o eu-passado e o eu-futuro.

Resumindo este ponto: parece teoricamente promissor explorar urna formulação que reúna o modelo cientifico de Maclean e o modelo filosó­fico de Peirce, visando algo tão pretensioso como a descrição científico­filosófica da estrutura lógica da ação humana.6

Há ainda duas perspectivas teóricas- e que também pretendem ser, a seu modo, científico-filosóficas - que parecem se recomendar aqui bastante naturalmente. A primeira é a perspectiva baseada na noção de auto-organização, em particular conforme desenvolvida por Debrun (1996, 1997); a segunda, a da noção de intencionalidade i1ocucionária (Searle 1979).

Assim, no primeiro caso, com relação, por exemplo, aos scripts ou

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papéis existenciais individuais (Mead 1964) e aos "mecanismos de de­fesa do ego," que, para Bourguignon (I 991 ), devem ser entendidos co­mo processos auto-organizarivb~, o material empírico de MacLean per­mitiria dar um interessante pa~So adiante. Pois falaríamos de auto­organização - ou hetero-organização, conforme o caso - dos vetores etológicos reptiliano, paleomamífero e neomarnifero - ou seja, auto ou hetero-organização, conforme o caso, das mentalidades compulsi­va/repetitiva, afetiva/lúdica e irnaginativa/ideativa.

Já podemos vislumbrar urna das questões cruciais com que nos de­frontaremos ao pensar na operação da mente-cérebro tri úna em termos de auto-organização, se aceitarmos, o que parece mais que razoável, urna afirmação como a de Bally (1986: 113): "Os homens protegem sua vida da fome e dos inimigos; ademais, mantêm sua dignidade fren­te à avidez erótica. Com isto, se asseguram a margem de jogo para as atividades humanas livres." Pois em tal caso - e esta sugestão me foi feita pelo próprio Debrun, em conversa particular - , seria preciso investigar em que medida, e segundo que mecanismo interativo com as demais mentalidades da mente-cérebro triúna, poderá a mentalidade pri­mai reptiliana - tão rígida, compulsiva, tropística (ergo heterônoma) - participar de um legítimo processo auto-organizativo. Tendemos a acreditar que o aspecto de autonomia e criatividade que caracteriza a auto-organização tem seu "órgão" antes de mais nada no neocórtex pré­frontal; mas também no sistema límbico paleomamífero, na medida em que a criatividade parece andar lado a lado com curiosidade e brinca­deira. Isto parece tanto mais verdade quanto é observável, em seu esta­do mais (filogeneticamente) original, na conduta de filhotes mamíferos; entre os filhotes dos primatas antropóides, em particular, o fator criati­vidade parece sobressair mais claramente do fundo hedônico indiferen­ciado da brincadeira (ver os apontamentos etológicos de Lorenz (1995, cap. 6)). Fica por enquanto no ar, assim, a pergunta de Debrun: em que medida a mente reptiliana - "sediada" no complexo dos núcleos basais, tão próximo fisicamente, mas tão distante filogeneticamente, dos dois outros centros prosencefálicos - , pode efetivamente participar de um processo auto-organizativo- intra- e interpessoal, acrescentemos?

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No segundo caso, diríamos, analogamente, que o modelo da mente­cérebro triúna seria aplicado ao modelo da conversação interior do eu­

presente com o eu-passado e o eu-futuro- conversação que seria, ago­ra, mais claramente entendida como interação auto-ilocucionária (isto é, auto-assertiva, ou auto-diretiva, ou auto-promissiva, ou auto-expressiva, ou auto-declarativo-institutiva) entre eus que são predominantemente compulsivos, ou afetivos, ou ideativos. A intencionalidade ilocucio­nária seria entendida aqui segundo uma dimensão essencialmente inte­rior, reflexiva; esta aplicação não parece fantástica , se levarmos a sério o programa de pesquisa esboçado no início do século por G. H. Mead (que tem frutos recentes como Bruner 1995 e Harré e Gíllett 1999) ­segundo o qual o pensamento deve ser concebido como geneticamente resultante da introjeção da interação social discursiva/narrativa da crian­ça, e, por isso mesmo, como essencialmente estruturado de acordo com um padrão discursivo/narrativo. E acrescentemos: é sem dúvida o neo­córtex pré-frontal, como parece legítimo inferir do que vimos há pouco, o responsável filogenético neurofisiológico pela habilidade epistêmica de compreender o mundo - social e natural - unicamente como cená­rio de possíveis histórias hwnanamente significativas, pensadas ao lon­go de uma incessante conversação interior. Os atos dessa conversação do eu-presente com o eu-passado e o eu-futuro, movidos a compulsão reptiliana, afeto paleomamífero e ideação neomamífera, possuiriam in­tencional idade auto-ilocucionária.

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Notas

1 Ledoux ( 1996) apresenta urna crítica (parcial) - infundada, a meu ver -do modelo de MacLean. A única eventual "censura" que poderia ser dirigida

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278 Renato Schaeffer

à teoria do cérebro-mente triúno, até onde posso ver, seria o relativamente pe­queno espaço concedido ao tópico da diferenciação funcional ·dos hemisférios neocorticais esquerdo e direito- diferenciação entre ( 1) informação geral, es­quemática (no sentido, acredito, da noção de "esquema dinâmico," de Bergson (1990)), e (2) específica (segundo a recente interpretação de Omstein (1997)). Mas mesmo isso parece justificado pela ênfase, no programa de pesquisa do autor, nas funções mentais c condutas humanas mais arcaicas. 2 A teoria segundo a qual neurônios cerebrais competem epigeneticamentc para estabelecer e consolidar padrões conectivos, a vantagem fisiológica estando, portanto, intimamente ligada à operação psicológica - e eis aqui o problema da relação corpo-mente em toda a sua crueza. 3 O quadro conceitual de Maclean parece muito útil para interpretar, à luz da moderna ncuropsicologia, o impressionante estudo do desenvolvimento "bio­psicológico" da comunicação social empreendido por Wallon ( 1972) c a inte­ressantíssima teoria da "nutrição psíquica" inter-humana de Ruycr ( 1975). 4 Entre répteis e aves, mesmo quando a fêmea protege o fiU10te, numa relação compulsiva instintiva, não se verifica uma experiência afetiva - função que depende da existência de uma estrutura fisiológica complexa como o sistema límbico dos mamíferos. 5 Como diria Michel Debrun. 6 Isso estaria de acordo com o tipo de teoria social crítica de base científico­filosófica apresentada por Honncth (1995) e Joas (1992).

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QUINE ON THE NATURE OF MIND: FROM BERAVIORISM TO ANOMALOUS MONISM

Luiz Henrique de A. Dutra Fecleral University o f Santa Catarina

Quine conceives of naturalized epistemology as an empírica! discipline which investigates human knowledge. For him it is a branch o f empírica!

psychology and linguistics. Just like every science, naturaJized episte­mology presupposes some basic notions, which guide naturalized epis­temologists' research. According to philosophers of science the study of such basic notions constitutes the very foundations of a discipline, its fundamentais. As regards an investigation about the fundamentais ofnaturalized epistemology, although l do not aim at giving a complete

account of all relevant features, I would like, to begin with, to mention some o f the main concemed notions.

Consider tirst the concept of knowledge itself. Traditional, a priori epistemology - that is, non-naturalized epistemology, which includes, by the way, some contemporary doctrines - construes knowledge as justified true belief. 1 Philosophy o f science, in its turn, as it is seen by logical positivists, for instance, is concemed with justification, not dis­covery.2 On the other hand, in "Epistemology Naturalized," as Quine

proposes that epistemology be naturalized, he gives a different account of knowledge, an account in tenns of the relation between theory and evidence. For him what counts as knowledge is a scientitic theory, but the question is not how certain observation statements justity tbeoreti­cal, scientific statements. 3 Scientitic theories are not thought o f ideally and abstractly but as a result of the functioning of the human cognitive (physical) apparatus. The question therefore is: how we build up a the­ory out of tbe data experience gives us. Given a certain input - the

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A.. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 279- 312.

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stimulation upon our receptors, which are responsible for our getting information from the environment - we deliver as output a description of the world: a theory.4 The traditional view according to which epis­temology and philosophy of science are concemed with justification is replaced by the program of a scientifi c search for the mechanisms of discovery.

Nonetheless, in Quine's paper it is not quite clear in what exactly the relation between theory (as he sees it) and the evidence for it (in that new, naturalized setting) consists. This feature is no clearer in Quine's later writings, either, when he retums to this issue. In arder to under­stand this point better it is worth remembering that in "Epistemology Naturalized" Quine criticizes Camap's foundationalism. Important dif­ferences between Camap and Quine are disclosed as we focus on de­tails. For instance, remember that Quine propounds to give up the Car­napian dream o f deducing science from sense data (Quine 1969, p. 83-4). Moreover, given Quine's characterization of observation sentences, we can see that both his conception oftheory and his idea ofwhat counts as evidence are notions very different from those maintained by Camap. The evidence for a certain theory is notjust the observation statements into which a given theoretical statement might be translated, as Carnap put it. In addition, remember Quine's discussion respecting indetermi­nacy of translation.

To sum up what I said so far, in Quine's naturalism not only the very notion o f knowledge but the related concepts o f meaning, truth, subject, and so on, are very different from those belonging to traditional epis­temology and philosophy of science. Consider a further example: the question whether epistemology has a normative status or merely a de­scriptive one. For naturalists this is a very important methodological is­sue. As an epistemologist investigates cognitive processes empirically, it is worth asking whether he just describes those processes as they occur. Epistemologists might also formulate methodological rules in arder to improve (and perhaps correct) our cognitive processes. Quine changed his mind from an earlier, stronger view - according to which normativ­ity isto be ruled out altogethe~ - to a !ater, more moderate stance -

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Quine on the Nature o f Mind 281

according to which normativity belongs to applied epistemology, not to pure epistemology proper (Quine 1986). That is to say, epistemologists do not aim at nonnative results, but their achievements in explaining human knowledge may be used by a sort of engineering o f knowledge, whose aims are, in their turn, prescriptive or normative.

Amongst other fundamenta is of Quine's naturalism, I would like to díscuss the very concept o f rnind associated to it. Traditíonal epistemol­ogy is mentalist, that is, it sees knowledge as a mental phenomenon: a subject's beliefs, which are supposed to correspond to facts in the world. TradítionaJiy, beliefs are seen as pictures of facts; the set o f those pic­tures is supposed to give us a kínd of image o f the world. 6 Hence, lhe mind is a sort inner space of the subject, where a replica or facsimile ofthe externai world is built. Those remarks are obviously reminíscent of Descartes, Locke, Leibníz and other Modem philosophers and their dualist doctrines. According to them lhe nature of rnind is other than the nature of the physical world and the science of the mind is differ­ent from the science of the physical, outer world. Metaphysics or first philosophy is therefore to give epistemology its very foundations.

Analytic philosophy in the XXth Century, in its turn, breaks with mentalism in the philosophy of mind. lt is worth remembering the lin­guístic turn maintained by Russell and the Vienna Circle and, most im­portantly, by Wittgenstein in bis two periods. We can say that Quíne's naturalized epistemology emerges in a non-mentalistic philosophical ambiance in the analytic tradition. More specifically, Quine's natural­ism presupposes a new conception ofmind, which stems from not only philosophy but from empírica! psychology as well, for instance Ryle's and Skínner's behaviorist approaches.

Notwithstanding, behaviorism, in its turn, is given many different formulations, and it is not enough to characterize it just as an anti­mentalistic stance intended to challenge traditional dualism. After ali, this is the character o f almost all present philosophíes of rnind and even of much epistemology nowadays. As respects Quíne's case for episte­mology as a branch of psychology, since he maintains a behavioristic stance, it is necessary to investigate to what extent Quine 's ideas are

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kin to behavioristic doctrines such as Ryle's or Skinner's. For it is a matter of fact that Skinner's Verbal Behavior influenced Quine during his Word and Object period. There is not only a clear similarity between Skinner's account oflinguistic issues and Quine's, but, moreover, in that book, Quine explicitly refers to Skinner's work. The similarity between Quine's approach and Ryle's, in its turn, can also be shown in some passages we shall see in next section.

In the remainder ofthis paper, first, I will try to explain briefl.y some varieties ofbehaviorism, in order to compare Quine's stance with them. Later on, I will discuss the way Quine h imself characterizes his behav­iorism, as he criticizes mentalism in traditional epistemology and resorts to other doctrines in order to solve certain problems which stem from his behavioristic approach. Most recently, Quine resorts to Dennett's and Davidson's doctrines, particularly Davidson's anomalous monism. As a result of Quine's reflections on issues conceming the mental he progressively weakens bis behaviorism till he finally gives it up in favor of anomalous monism.

1. Mentalism and Bebaviorism

'Positivism' refers to different but related doctrines. Primarily, it is a kind of movement and nota single, unitary view. Behaviorism seems to be in the same condition as positivism. The term 'behaviorism' refers primarily to an attitude and to a specific way of accounting for issues in philosophy of mind and empirical psychology. To talk about behavior­ism in an unqualified way is to talk about a class of different but related doctrines as well. Here we meet the same difficulty we face whilst we seek to describe the many more specific formulations ofpositivism. Ire­fer to positivism not only for sake of comparison with behaviorism but also because there is an important relationship between the former and the latter. The kinship between behaviorism and positivism is manifest not only in Carnap's work, for instance, but in Quine's as well.

Among psychologists Skinner is obviously the leading figure, but be­haviorism goes back to Pavlov and includes Thorndike and Watson and

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many others. 7 In this case, behaviorism is meant as a methodological doctrine, that is, a set o f theses respecting the better way o f investigat­ing in empirical psychology and of accounting for behavior, human or animal. This doctrine is generally called methodological behaviorism. 8

Responding to dualism and mentalism in traditional philosophy and psy­chology behaviorists in psychology maintain that there is no inner (psy­chic or mental) mechanisms responsible for overt behavior. The same stance is adopted by some empiricists and positivists in the XXth Cen­tury. For some of them overt behavior is not an effect caused by inner mechanisms; on the contrary, it isto what 'mind' may refer. Behavior­ists say that the only methodology admissible in psychology consists in observing overt behavior. Behaviorism forbids therefore introspection, which is a fundamental methodological tool for traditional psychology. 9

Notwithstanding, if behaviorists tried to avoid any metaphysical commitment to the existence of a spiritual or mental substance so as to rule out all the difficult problems which stem from traditional dualism, then, in principie, behaviorism would be compatible with other accounts of behavior, for instance, physical or physiological and hence some monist accounts. Thus, we can distinguish the behavioristic method­ological prescriptions - according to which we ought to resort merely to behavior in order to explain behavior itself, with no resort to intro­spection or to unobservable, inner or mental structures and entities -from hypotheses which are not, in principie, incompatible with behav­iorism, although they can be unnecessary from the behavioristic view­point, such as the hypotheses about neuro-physiological structures, which wouldn't be committed to dualist, traditional mentalism. Hence, in addition to a strong variety ofbehaviorism referred to in the previous paragraph, there are weaker varieties of behaviorism, which associate a behavioristic attitude regarding methodological strategies and proce­dures with some theory about the nature of mental phenomena, philo­sophical or scientific, under the condition that it is nota mentalistic the­ory, that is, i f such a theory maintains monism and rules out tbe idea of a mental substance.

It is necessary also to clear up the very terms 'mentalism' and 'du-

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alism' I have been using so far. Traditional theories of mind are dualist

theories. Going back to Descartes and other Modem philosophers, they argue for the existence of a spiritual substance or imply that idea. How­ever, in a broader sense, 'mentalism ' may refer to a doctrine according to which mental phenomena are irreducible to physical ones. So, men­talism is generally identified with dualism. But, ifwe identify dualism with the traditional position that goes back to Descartes, we can ob­viously think of a sort of non-spiritualist mentalism, which would be in agreement witb physicalism or materialism. Apparently, this kind of mentalism - in the sense just explained - is what Davidson maintains: anomalous monÚm. According to Davidson, there is no mental sub­stance, but mental phenomena are irreducible to physical phenomena. We can 't explain mental events resorting merely to physical properties of matter. Given Quine's recently explicit commitment to Davidson's position, I will discuss this subject in the last section. Anyway, gener­ally, when we use the term 'mentalism' we are referring to traditional, dualist mentalism; we are not talking about those non-dualist kinds of menta/ism, iike Davidson's.

On the other hand, there are behaviorists in the philosophical as well as the psychological camp, even though some philosophers do not like to be called behaviorists and some of them are not quite aware of their kinship to behaviorism. Camap is one ofthose philosophers who explic­itly maintained a behavioristic doctrine, for instance in his "Psychology in the Language o f Physics" (Carnap 1996 [ 193 I]).

Camap was concemed with the reduction oftheoretical terms in uni­fied science to observation terms. ln the Aujbau (Camap 1967 [ 1928]) he elaborates a hierarchy of concepts, beginning with concepts at the autopsychological levei, the immediately given (o r sense data), and go­ing through higher leveis o f concepts (physicai, heteropsychologicai and

cultural concepts), which were to be reduced to the fundamental levei

of autopsychological concepts. PsychoJogy as a branch of unified sci­ence lies in the heteropsychological levei; it uses concepts about other

minds. Thus, psychological concepts have to be reduced to the previous

or lower leveis of concepts soas to be admitted as cognitively iegitimate

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Quine on lhe Nature o f Mind 285

concepts. This is how behaviorism enters Camap's analysis. He says we can give an account ofmental phenomena using a mentalistic tallc, but it has to be translated into a purely physicallanguage, that is, a description ofpeople's overt behavior.

Carnap also criticizes introspectionistic psychology and says that h.is position is a behavioristic one. In the paper I referred to above, he writes:

The view put forward bcre corrcsponds in its main points to thc move­ment in psychology callcd 'behaviourism' or 'bchavioural psychology', providcd that we consider thc basic epistemological thcsis ofthis move­mcnt rather than its special method or empirical rcsults. We have not based ou r own presentation on that ofbehaviourism beca use we are only interestcd in fundamental epistemological positions while behaviourism is primarily intcrcsted in particular methods of inquiry and particular ways o f forming concepts. ( 1996 [ 1931 ], p. 60)

As we can see and according to what was said above, Camap's doc­trine is a kind of behaviorism that is not concerned with the method­ological domain, that is, his is not a doctrine giving prescriptions to guide our empírica! investigation in psychology. It is rather because he argues for the possibility and necessity of reducing psychological terms to physical terms that he views himself as a behaviorist. Just like behaviorists in psychology Carnap denies the existence of the mental entities postulated by traditional metaphysics and psychology. Just as regards other scientific disciplines, so Carnap's endeavor respecting the foundations ofpsychology is devoted to exempting unified science fi-om metaphysics, that is, to free it from theses about irreducible concepts. 10

Carnap's behaviorism isto be seen therefore as a linguistic behaviorism, say, to distinguish it from methodological behaviorisrn, discussed above in this paper. Camap's main point is: the sole meaningful psychological terms are those which can be reduced to physical tenns.

Amongst philosophers another position viewed as behavioristic is Ryle's in The Concept of Mind. It is Ryle himself who recognizes that bis book would be stigmatized as behavioristic (Ryle 1984 [ 1949], p. 327). Ryle tried to denounce the myth of the ghost within the machine o f traditional dualism. However, Ryle criticizes the program of method-

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ological behaviorism, even though he acknowledges its fruitfulness in empírica! psychology. He explains why he rejects methodological be­haviorism as follows:

But it has not bcen a part of thc objcct of this book to advance the methodology ofpsychology or to canvass the spccial hypothescs ofthis or that science. lts object has been to show that the two-worlds story is a philosophers' myth, though nota fablc, and, by showing this, to begin to rcpair the damagc that this myth has for some time been doing inside philosophy. (P. 329)

Ryle's reasons are similar to Wittgenstein's in the Philosophicalln­vestigations, which is another book associated with the behavioristic stance, though Wittgenstein is strongly opposed, officially, to philosoph­ical "isms." Both Ryle and Wittgenstein refrained from propounding theories. For them philosophy is an activity devoted to clear up con­cepts and rule out the pseudoproblems of traditional philosophy. After denouncing the traditional philosophers' myths Ryle and Wittgenstein couldn't replace them with new ones. This kind ofbehaviorism is called ana/ytica/ (or logical) behaviorism. Ryle and Wittgenstein's strategy is clearly behavioristic beca use it resorts to a procedure of analysis o f men­tal events based on observable behavior. Ryle 's discussions throughout his book are quite clear in this connection, even though he is not in­vestigating behavior empirically. Ryle does not aim at systematically reporting the behavior of actual individuais; he merely discusses certain general cases that could be instanced by actual bits ofbehavior. Anyway, Ryle's analysis o f mental events is akin to that adopted by behaviorists in empirical psychology. In both cases we can find the same antimen­talistic stance according to which mental events are to be explained in tenns of observable features ofbehavior.

To sum up what I said so far: philosophers such as Carnap, Ryle and Wittgenstein provide the behavioristic setting in analytic philosophy in the context if which Quine focuses on some issues in philosophy of mind. Quine offers us another version ofthis kind of doctrine. To begin with, let me examine the distinction h e proposes in Pursuit of Truth as he comes back to the theme of indetenninacy of translation. He says

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behaviorism may be associatcd with two different fields: linguistics and

psychology. Quine writes as follows:

Critics have said that the [indeterminacy] thcsis is a consequencc ofmy behaviorism. Some havc said that it is a reductio ad absurdum of my bchaviorism. I disagree with this second point, but I agrcc witb thc first. I hold further that the behaviorist approach is mandatory. In psychol­ogy one may or may not be a bchavioríst, but in linguistics onc has no choice. Each ofus leams his languagc by observing other pcople's ver­bal behavior and having bis own falteríng verbal behavior observed and reinforced or correctcd by othcrs. Wc dcpend stríctly on ovcrt behavior in observable situations. {P. 3 7-8)

Consider again the strong behavioristic stance referred to above in this paper. A closer examination ofQuine's works reveals that he is not fully committed to behaviorism in psychology. However, the distinction he himself argues for leads us to think that as far as linguistic matters are concerned- more specifically as regards a theory o f meaning - he is quite committed to behaviorísm. Nevertheless, even in this connec­tion Quine's behaviorism is to be replaced by a more moderate position: Davídson's anomalous monísm.

Moreover, and more noteworthy, it turns out that according to Quine even mentalísm could be gíven an important role in epístemological in­vestigations. As a result o f this move we have an association between a kind of heuristic behaviorism, say, with an also heuristic mentalism. 11

Hence, Quíne's behaviorism seems to be solely a motto against mental­ism. But mentalism seems to be given more room in Quine's philosophy, beyond the mcrely hcuristic character that, at first sight, it sccms. The next sectíons will be devoted to a closer examination of some passages in Quine's works where he makes important comments about issues be­longing to philosophy o f mind.

2. Empiricism, Naturalism and Behaviorism as Quine Views Them

In "The Problem o f Meaning in Linguistics" ( 1980) Quine comments on the job o f a lexicographer investigating the meaning o f tenns to find

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288 Luiz Henrique de A. Dutra

synonyms for them in a given language or in different languages; he compares the lexicographer's job with that o f the ancient astronomers,

who were acquainted with the movements of the planets, but who did not know what the planets are, that is, what their nature is. Now, the tra­ditional answer to the equivalent question about the meaning ofterms is: the meaning o f an expression is the idea it expresses (Locke ). However,

to resort to the idea of idea, says Quine, gives us nothing but the illu­sion of an explanation, as with the virtus dormitiva in Moliere's satire (Quine 1980, p. 47-8). For the linguist the notion of idea i:> quite worth­less. Rather than dealing with mental entities, says Quine, the linguist

must investigate the circumstances in which the terms are uttered and the effect they cause on the hearer (p. 60). Quine rules out the thesis that two terms are synonyms because they both express the same idea; he avoids any commitment to mentalism in this respect and says the only arguable notion of synonymy is the following:

Synonymy of two forms is supposcd vaguely to consist in an approxi­matc likeness in the situations which evoke the two forms, and an ap­proximate likeness in thc effcct o f cithcr form on the hcarer. (P. 60)

From a methodological point o f view this is the only valuable no­tion for the linguist if he seeks to investigate the synonymy of terms

empirically (p. 60). Quine holds this methodological point as regards linguistics and he argues also that mentalism is inappropriate in psy­chology, too. According to him, "behaviorists are right in holding that talk of ideas is bad business even for psychology" (p. 48). Quine main­tains therefore that both in psychology and in linguistics mentalism is a bad choice from a methodological viewpoint as far as tbe strategies for empírica! investigations are concerned.

This is a point already discussed in Word and Object (1960). Af­ter arguing for the thesis of indeterminacy of translation (in chapter 2)

Quine tricd to find out the causes rcsponsible for our failure to perceivc the indeterminacy (§ 16). Mentalism is one ofthe many differcnt causes

Quine points out (p. 74 and 79). Nevertheless, we could think o f a bilin­

gual person as evidence against the indeterminacy of translation thesis.

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Quine says that a non-critical, mentalist theory ofideas prevents us from

seeing indeterminacy because it suggests that "each sentence and its ad­missible translations express an identical idea in the bilingual's rnind"

(p. 74). However, Quine adds that this objection to the indeterminacy of

translation thesis may be sustained in a new formulation even if we

give up mentalism. Here Quine focuses on the doctrines according to which we may locate mental phenomena in the brain. We could think

of a bilingual person as a means to refute the indeterminacy thesis as follows: "one can protest still that the sentence and its translations ali correspond to some identical even though unknown neural condition in the bilingual" (p. 74).

Later in his book, as Quine examines the hypothesis that the same verbal behavior could be produced by different dispositions (for men­talism these dispositions lie on ideas, for neurology, in neural connec­tions), he goes back to this point and challenges such speculations in ncurology. Quine argues for a reasonable positivism and says: "i f two speakers match in ali dispositions to verbal behavior there is no sense in imagining semantic differences between them" (p. 79).

Again, we meet the idea that what counts for the issues about mean­ing is the circumstances of utterance of a sentence, including obviously the hearer's dispositions to assent to or dissent from it. This is why the translation of sentences (in different languages, 'gavagai' and ' there is a rabbit', for instance) isto remain indeterrninate. Linguistic investiga­

tion can't go beyond this limit. Hence, any one ofthose hypotheses ­about ideas in the mind or about neural connections in the brain- are supcrfluous from a mcthodological point o f view; they yicld no gain for our empirical investigation of meaning. In addition, they also miscarry from the theoretical viewpoint because they prevent us from recognizing indeterminacy.

In Ways of Paradox Quine challenges mentalism again. Here, for the first time, he faces the problem of giving a definition of behavior­

ism. In "Linguistics and Philosophy" (Quine 1976a), his comments are prompted by Chomsky's criticisms of Skinner's behaviorism. 12 Along

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with his defense o f rationalism against empiricism, Chomsky maintains that behaviorism fails to explain language learning with such notions as stimulus and reinforcement. According to Chomsky it is rather nec­essary to postulate innate structures res:ponsible for language leaming. They are the only satisfactory explanation o f this issue.

Quine accepts Chomsky's criticisms, but he does not agree with Chomsky that the objections raised are strong enough to refute behav­iorism. However, just after, Quine meets the problem o f defining behav­iorism more exactly and he writes as fotlows:

This would be no refutation of behaviorism, in a philosophically sig­nificant scnsc of the term; for l see no interest in restricting the term 'behaviorism' to a specific psychologicaJ schematism of condítioned response. (1976a, p. 57)

To revert to the issue o f indeterminacy o f translation, Quine says that the anti-empiricism and anti-behaviorism maintained by Chomsky do agree with the ide a o f an indeterminacy o f translation. Quine says that to be a behaviorist is rather to choose to deal with issues by means of observations. However, he explains why he prefers not to call his stance simply empiricism. It is because Modem empiricists such as Locke were mentalists. What Quine pursues is a non-mentalistic empiricism, that is, an externalized empiricism, he says (p. 58). But this kind ofbehaviorism as a non-mentalistic empiricism, adds Quine, is compatible with the idea of innate dispositions to behavior. In this respect he writes as follows:

When empiricism is externalized, on the other hand, the idca ítsclf passes under a cloud; talk of idcas comes to count as unsatisfactory cxcept insofar as it can be paraphrased into terms of dispositions to ob­servable behavior. Extemalized empiricism or behaviorism secs noth­ing uncongenial in the appeal to innate dispositions to overt behavior, innate readiness for language-learning. What would be intcresting and valuable to find out, rather, is just what thesc endowments are in fact like in detail. (P. 58)

What Quine's definition of an extemalized empiricism makes clear, however, is only Quine's reaffirmed anti-mentalism. For, as far as be­haviorism proper is concerned, it does not add so much. Indeed, this

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stance does not fit either Skinner and Watson 's behaviorism o r the strong kind of behaviorism discussed above in this paper. Again, Quine's be­haviorism seerns rather rnerely a methodological plea to observe behav­ior; it is just a strategy for fighting mentalism in metaphysics. The sci­entific question here, however, is whether a strict behavioristic account o f language learning in terms of stimulus and reinforcement and other items relating merely to behavior isto be seen as good enough.

Now, if an account or explanation is to be seen as good enough or convincing, this depends upon the approach adopted by somebody. From Chomsky's point of view, which is quite different from the be­haviorist's, we certainly are bound to see behavioristic explanations as tmsatisfactory. The problem in this caseis: Quine's defense of behav­iorism does not save it. Behaviorism seems to remain as a mere slogan against mentalism. A consistent case for behaviorism, on the other hand, to revert to Skinner's stance - according to which we can 't resort to any inner mechanisms to explain behavior - would consist in stand upon a basically non-internalistic approach. Contrary to what Quine allows, if we want to maintain behaviorism fully and consistently we are bound to prevent any intemalist strategy. For hirn an approach postulating physi­ological structures (which are physical entities and hence which are not mental entities) is acceptable, as we shall see !ater. Again, Quine's rea­sons for thinking so do not seem to be o f a rnethodological order, but o f a metaphysical one.

The indeterminacy of translation theme is reexamined by Quine in "Ontological Relativity" ( 1969, chapter 2). Here Quine assoei ates inde­terrninacy with what he calls behaviorist philosophy oflanguage (p. 47). Ilc says that he is assurning Dewey's stance on this mattcr and affums that behaviorism is naturalism. 13 Following Dewey, Quine holds the thesis according to which meaning is nothing but a property of behav­ior; it is not a mental entity. Quine writes as follows:

When a naturalistic philosopher addrcsses himselfto the philosophy of mind, hc is apt to talk of languagc. Meanings are, first and forcmost, meanings of language. Languagc is a social art which wc ali acquire on the evidencc solely o f othcr pcople's overt behavior undcr publicly

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rccognizablc circumstances. Mcanings, thcrcfore, thosc very models of mental cntities, end up as grist for the behaviorist's mill. Dewey was cxplicit on thc point: "Meaning ... is not a psychic cxistence; it is primarily a property ofbehavior." (P. 27; the passage quotcd by Quinc is from Dcwey 1997 (1925]) 14

In addition, Quine comments on Dewey 's arguments against a pri­vate language and observes that in this respect Dewey was discussing this subject long before Wittgenstein díd (Quine 1969, p. 27). Quine's reason to argue for Dewey 's naturalistic conception o f language and bis behavioral conception o f meaning is clearly methodological. Although linguistics is dominated by a pernicious mentalism, says Quine (p. 27), our language learning takes place on purely behavioral bases. Thus, what the linguist must do is to adopt the same attitude we ali adopt as we learn our language, that is, the linguist must be "a student of his neighbor's behavior; and conversely, insofar as his tries are approved or corrected, he is a subject of his neighbor's behavioral study" (p. 28). Thjs is why the naturalist must adjust himselfto indeterminacy of trans­lation. He must avoid mental entities, that is to say, he must avoid the ide a o f meaning as something in the speaker's mind, besides its bebav­ioral determination.

As we have seen, for Quine empiricism, naturalism and behaviorism itself are nothing but slogans against traditional mentalism. In addition, the alleged reasons against mentalism in the texts just discussed do not seem strong or fully convincing. In otber passages we shall examine later in this paper, on the other band, Quine's arguments are more co­gent. Interestingly enough, however, at the same time, mentalism itself is allowed more room in Quine's views.

3. Dispositions to Behavior

ln "Natural Kinds" (1969, cbapter 5) Quine also discusses the subject of innate dispositions. He affirms they are not contrary to empiricism; according to him they are rather commonplace in behavioristic psychol­ogy (p. 123). Here, again, bebaviorism is identified with empiricism. Ln

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order to explain how we recognize natural kinds Quine says that certain pattems of similarity allowing us to do that job must be in some sense innate. For i f it was not so we couldn 't acquire habits, since ali stimuli would be indistinguishable for us. Quine writes as follows:

I f thcn I say that there is an innate standard o f similarity, I am making a condensed statement that can be interpreted, and truly interpreted, in behavioral terms. Moreover, in this behavioral sense it can be said equally of other animais that thcy havc an innatc standard of similarity too. It is part o f our animal birthright. (P. 123)

Quine's point is: behaviorism is seen as compatibJe with hypotheses about hidden structures responsible for behavior. Quine resorts here as well to a sort o f Darwinism (p. 126); h e holds that our capacity to know the world inductively is a genetically transmissible trait. This suggests what Quine has in mind as he talks about innate standards of sirnilar­ity. Consider again the strong sort of behaviorism discussed above in this paper; according to this we must avoid hypotheses about hidden mechanisms. So we can see that Quine is not committed to this kind ofbehaviorism. Again, his behaviorism seems to be reduced to a sheer anti-mentalistic empiricism.

On the contrary, the first part o f The Roots o f Reference ( 1974) is clearly behavioristic. Quine begins by criticizing Modem empiricists such as Berkeley and Hume because of their atomism regarding sense data. Against those empiricists Quine cites the results of Gestalt psy­chology, accorL111g to which what we perceive is structured totalities. Moreover, Quine says that that atomism maintained by Modem empiri­cist philosophers was supposed to be based in introspection, but it was in fact based on our knowledge ofthe externai world (p. 1-2). Quine's way o f discussing this matter resembles Ryle's in The Concept o f Mind; this resemblance is to be explored in other texts we shall examine in what follows.

Although Quine resorts to Gestalt psychology in order to criticize Modem empiricists, he rejects Gestalt psychology as well. For !1im Gestalt psychology's notion of perception is also mentalistic (p. 4);

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Quine seeks to account for epistemological issues merely in physical and behavioral terms. The very notion of perception is to be reinter­preted in behavioral tenns, says Quine.

When conceived thus in behavioral tenns, the notion o f perception be­longs to the psychology of leaming: to the theory of conditioning, or ofhabit formation. Habits, inculcated by conditioning, are dispositions. The subject, having leamed his lesson, is thereafter disposcd to makc the response in question whenever activated by the stimulus in ques­tion. (P. 4)

This is why we can say that an animal who pressed a lever because it saw spots set in a semi-circular way, and is given food, will continue to press the lever whenever it sees another picture where further spots are added in order to complete the semi-circle. This could be construed as ifthe animal perceived the circular Gestalt (p. 4). Quine's behavioristic stance in that book seems to be more straightforward than in bis previous works.

In order to elaborate his notion o f reception merely in physical terms soas to replace the mentalistic notion o f perception Quine propounds to construe the notion of cause as a ffow of energy: there is a causal rela­tion wherever energy is transmitted (p. 5-6). Quine remarks, by the way, that his concem is different from Hume 's, since he is not concemed with the epistemological basis o f the causal relation but with the ontological nature of that relation. In this sense Quine assumes a clearly material­istic stance; he says his answer is materialistic, and adds the following comment: "Causality is a relation of events, and all events, mental and social ones included, are a matter ultimately of the action of physical forces upon particles" (p. 6). Now, we can see that this is a radical sort o f materialism or reductionistic physicalism.

Quine reaffirms his physicalistic point o f view as he comments on the notion o f dispositions to behavior. He says that dispositions of this sort are related to a physiological hypothesis (p. 13); a distinct mech­anism or long standing condition in the body of the individual is sup­posed to exist (p. 15). For Quine, even perception of similarity itself, which is necessary for learning, is to be reconsidered from a behavioral

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viewpoint. Any standards of perceptual similarity belonging to a certain individual must be known on the basis o f his behavior (p. 20). In addi­tion, Quine distinguishes three kinds of similarity: receptive, behavioral and, in between, perceptual similarity. The first two sorts of similarity are explained solely in physical terrns. Reception is merely a question of stimulus on the sense organs, and behavior can be seen as muscle reactions (p. 21 ). Perceptual similarity, in its tum, is to be viewed as dispositions to behavior. Quine writes as follows:

Perccptual similarity is a question ofthe subject's d isposition to submit to conditioning in one way and another; hencc o f his disposition to ac­quire or change his habits o f response. These perceptual similarity is a bundle o f second-order disposi tions to behavior. (P. 18)

An individual's perceptual similarity dispositions, Quine continues to argue, are mirrored in bis behavior, in the reinforcement or extinction of his responses, in his learning process (p. 24). Quine intends to go farther than behaviorist psychologists, who, according to him, restrict their account only to stimulus. Quine wants to discuss also salience and traces o f certa in episodes, something he considers necessary if we want to explain our learning processes (p. 24ft). Quine maintains that salience itself can be disclosed by means o f the observation o f behavior whenever behavior shows perceptual similarity. However, here, Quine is aware he reintroduces a mentalistic mode o f speech. But, for him, this is tolerable, since the mentalistic talk can be reduced to the physical. The color of an object, for instance, is salient in an episode because of brightness and saturation, which are physical notions. Any reaction to this stimulus is always a matter of physiological mechanisms, whose effects can be seen in behavior (p. 26).

Even though Quine reaffirrns his anti-mentalistic stance here, he rec­ognizes an important heuristic role to be played by the mentalistic mode o f speech in epistemology. H e writes as follows:

Mentalism thus has its uses as a stimulant. Like other stimulants, it should be used with caution. Mental entities are unobjectionable i f con­ceived as physical mechanisms and posited with a view strictly to the

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systcmatizing of physical phcnomcna. They should bc posited in thc hopc oftheir submitting somcday to a full physical explanation in tum. (P. 33-4)

Bearing this in mind Quine allows himselfa certain relaxation ofhis behaviorism, as he says (p. 48), in order to make research go forward more rapidly. Summing up, mentalism as a methodological tool may be allowed ifwe never forget it can be reduced to physicalism.

As we have seen. although Quine seems to adopt a more clearly be­havioristic stance in the texts just discussed, he makes more room for mentalism. First, there is only the recognition that mentalism is impor­tant from a heuristic point of view, but more than this is to come, as we shall see !ater, as we examine Quine's discussions about intensional tenns. On the other hand, conceming metaphysical issues, as Quine discusses the relation between body and mind he goes on fighting men­talism and dualisrn, as we shall see in next section.

4. The Mind-Body Distinction

In Word and Object, §54, Quine deals with the problem of the mind­body distinction. For one thing, he holds that, generally speaking, ex­pressions for abstract entities are useful in practice; they have heuristic value. In particular, this is the case as far as mentalistic expressions are concerned. To posit mental states, as well as to posit molecules, says Quine, is a productive way to develop theory ( 1960, p. 264). For another, however, Quine argues for physicalism and against mentalism, that is, dualism. Quine says that his physicalísm is merely exp/anato1y, instead of eliminative (p. 265f). The difference this makes is that he can avoid arguing for physicalism as a metaphysical theory, which maintains that only physical objects exist. Rather, terrns for mental entities are given the sarne status as any other theoretical tenns, such as 'molecule' and many others. As molecular theory, in its tum, posits such entities as molecules, it does not deny the existence of the solid macroscopic objects of our ordinary experience. Molecules are rather supposed to explain the objects of ordinary experience (p. 265). It is how Quine

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hopes that his defense ofphysicalism, as regards mental entities, isto be

seen. However, Quine's analogy between mental entities and molecules

does not work well; for the analogues corresponding to 'molecule' and 'macroscopic object' would be respectively either 'mental state' and 'behavior' or 'mental state' and 'physiological state', for instance. To follow the analogy would be to propose a mentalistic account of either physiological events or behavior. But this is not the way Quine himself put things. Rather, in a passage to be quoted next, he starts up with the correct analogy between mental states and molecules, but some lines later he tums it in the opposite direction, that is to say, he seems to be arguing for a physiological explanation, instead of allowing a mental ex­planation. As Quine inverts the analogues he shows his real intention in denying mentalism; it is physiological states, in their turn, that explain mental states.

If there is a case for mental events and mental states, it must be just that the positing o f them, like the positing o f molecules, has some in­direct systematic efficacy in the development o f theory. But i f a certa in organization of theory is achieved by thus positing distinctive mental states and events behind physical behavior, surely as much organization could be achieved by positing merely certain correlative physiological states and events instead. Nor need we spot special centers in the body for these seizures; physical states o f the undivided organism will serve, whatever their finer physiology. Lack o f a detailed physiological expla­nation o f the states is scarcely an objection to acknowledging them as states o human bodies, when we reflect that those who posit the men­tal states and events have no details o f appropriate mechanisms to offer nor, what with their mind-body problem, prospects o f any. The bodily states exist anyway; why add the others? (p. 264)

Therefore, Quine's supposed methodological tolerance regarding mentalistic expressions is reduced to a certain resignation to the fact that they seem to be irreducible to physical terms, as we shall see later. Quine does not seem willing to give mentalism any room at ali, since he seems to be rather willing to accept any physiology, even if it is not a very good one. It is obvious however that a similar argument could be

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made to refute either molecular theory or any other theory postulating unobservable entíties.

To sum up, for Quine dualism is not tmacceptable because it posits unobservable entitíes. If, as Quine suggests, bodily states are real states and this allows us to get rid o f mental s tates, then, following the analogy, we could say that macroscopic objects are real and this would allow us to get rid of molecules as well. Now. to be fair, in this case, we have to recognize that physicalism and mentalism are competing programs. Remember, for instance, the similar competition between wave and par­ticle theories of light. Even though Quine is aware that physicalism is no more free of objections than mentalism, he decides himself for the former, despite some virtues he acknowledges the latter has.

Quine's metaphysical concems are apparent, on the other hand, in "On Mental Entities," (Quine 1976b) a paper also collected in The Ways o f Paradox. But here Quine 's accotmt is given also a methodological character. As Quine criticizes phenomenalism in logical positivism (the sense data doctrine), he denies the existence of mental entities, such as sense data. For him it is a mistake to suppose that sense data are immediate and evident real entities and that they have a privileged sta­tus regarding physical objects (p. 225). Here Quine's argument, again, resembles some of Ryle's in The Concept of Mind. Quine writes as fol­lows:

So thc notion o f purc sensc datum is a pretty tenuous abstraction, a good deal more conjecturai than the notion o f an externai objcct, a table or a sbeep. lt is significant that when wc try to talk o f the subjective we borrow our terrninology from the objcctive: I feel as i f I wcrc falling, I have a sinking scnsation, I feel on top ofthe world, I see pink elephants (bettcr: I fecl as i fi were really seeing real pink elephants), etc. (P. 225)

Now, the argument is clearly formulated in a Rylian style, that is to say, according to it the idea of an internai, mental space is conceived in analogy with the outer, physical world. We would be led to this notion in virtue of new customs in particular circumstances. 15 As well as Ryle, Quinc points out thc fact that we do not havc a specific vocabulary to describe our supposed inner or mental states. For him this is an evidence

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that mental states probably do not exist. Quine challenges also the no­tion of mental states as private states in opposition to physical states, which in their tum are public. Any privacy is a purely physical matter. So, Quine writes the following:

If we repudiate mental entities as entities, therc ceases to be an iron curtain between the private and the public; there remains only a smoke screen, a matter o f varying dcgrees o f privacy o f events in the physical world. Consciousness still rctains a place, as a state o f a physical object, if [ ... ] we construe consciousness as a faculty of responding to one's own responses. The responses here are, o r can be construed as, physical behavior. (P. 227)

Quine is aware he has to deal with consciousness, but he tries to account for it in physical and behavioral terms. He thinks this is possible and it is why it is methodologically superfluous to posit mental entities along with physical entities (p. 227).

Again Quine compares mental entities with other unobservable en­tities postulated by science, such as nuclear particles (p. 223f). But, again, mental entities are not giiven the same status as other unobserv­able scientific entities. Moreover, for Quine human history gives physi­cal objects a privileged status, which is a condition apt to be preserved in the future, given the role physical objects play in language leaming, even though they are posits as well as nuclear particles (p. 224). Never­theless, although nuclear parti eles may be disrnissed, they are a resulto f scientists' serious work; such entities may be preserved in our knowl­edge system, since they are related to other parts o f the system, which, in their turn, are closely related to experience (p. 223). This is not the case, says Quine, as regards mental entities. However, besides Quine's explicit preference for physicalism and his case for it in the metaphysi­cal domain, no further methodological reason is added to preserve phys­ical entities and rule out mental entities. Remember that for Quine both kinds o f entities are sheer posits.

In "Propositional Objects" (1969, chapter 6) Quine discusses propo­sitional attitude terms and he again establishes an opposition between overt behavior and hypotheses about hidden mechanisms responsible for

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behavior. H e begins by examining the problem o f the meaning o f obser­vation sentences. Two individuais who assent to the same observation sentence are supposed to have the same stimulation. This is possible because of the same standards of stimulation in both subjects. Quine maintains that stimulation in the one individual has to be equivalent to the stimulation in the other, but this does not imply we must interpret any standards of stimulation in terms of a homology between the recep­tors in both subjects. He says, first, that such a homology is impossible and, second, that it does not matter at ali (p. 157). 16

The most interesting as regards our evaluation ofQuine's conception ofrnind is the reason he adduces to hold that such a homology does not rnatter. Quine resorts to an analogy with machines (p. 157). Consider two different machines; the input for each one of them has nothing to do with their exact physical constitution; it has to do with how simple is the theory we use to program them. Now, the analogy Quine aims at is immediately understandable: two organ.isms may be physiologically very different, but even so, we can say they have the same stimulation; for wbat counts, says Quine, is only surface stimulation (p. 158). Thus, from a behavioristic point o f view, in order to understand a word uttered by someone, for in.stance, it is necessary that an object in the neigh­borhood is referred to and that we perceive that the speaker is seeing it as well. In this case we are merely referring to tbe individual's sur­face stimulation; we are not referring to "deep events in his body," says Quine (p. 158). Despite Chomsky 's protests, indeed, according to Quine it is how we can imagine the possibility o f commun.icating with other in­telligent beings i f ever we meet them. Quine writes as follows:

Thc bodily surface would thus seem to bc, for an activity ever sub­ject to social adjustrnent as language is, thc bcst boundary at wlúch to define input. And yet, wben we come to the seem.ingly essential busi­ness of saying what it is for two people to be srimulated alike, wc tangle with the myth o f homologous nerve cndings. What will wc do when wc get to Mars? Just becausc we and the Martians cannot match up nerve endings, must we despair o f relating our Janguages?

There is an odd irony here. We had been worrying whcther scicn­tific sense could be made ofmentalistic idioms ofpropositional attitudc,

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Quine on lhe Nature o f Mind

and now we seem unablc cven to negotiatc the A-B-Cs ofbehavioristic psychology; we are stopped by the notion o f a stimulus? (P. I 58)

301

To revert to Quine's question in the last quotation, bis answer is obvi­ously that there will be no problems o f comrnunication with people from Mars, since surface stimulation (in a receptor) alone will do. Thus, be­haviorism can be restored. Quine acknowledges we could go on search­ing guided by a program according to which the cause of synonymy o f observation sentences lies in the similarity or quasi-homology of our nerve endings, but this would be a very long-terrn project (p. 159).

There are two further important points to comment on here. For one thing, contrary to other texts, in this one Quine seems to support be­haviorism more resolutely, that is, he seems to refrain from allowing hypotheses about hidden mechanisms. For another, as far as his anal­ogy between machines and organisms is concemed, he seems willing to allow functionalist theories. Apparently, for Quine, the functionalist basic idea o f structures and mechanisms built differently and delivering the same output if submitted to the same input is compatible with be­haviorism. We can say that two different organisms ( or two different machines) detiver the same output ifthey are given the same input be­cause we observe both the same stimulation impinging on their surfaces and their simi lar behavior as response.

In "Things and Their Place in Theories" ( 1981) Quine goes back to the theme o f the mind-body distinction. According to him any dualism is reducible to physical monism, unless somebody wants to support the thesis accorcüng to which there are djsembodied spirits (p. 18). Even the dualist, says Quine, would accept such a reduction:

Readily specifiable certainly; the bodily state is specifiable simply as lhe statc o f accompanying a mind that is in that mental state. But thcn we can settle for thc bodily states outright, bypassing the mental states in terms o f which I specified them. We can just reintcrpret the mentalistic tcrms as dcnoting these correlatcd bodily states, and who isto know the difference? (P. 18- 9)

Thus, again, Quine adopts an anti-mentalistic, physicalistic stance. Since mentalism is methodologically useless and dispensable, it is fully

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dispensable, even in metaphysics. Hence, there is no reason to adhere to mentalism. However, in the texts to be exarnined in next section, even though Quine continues to stress the methodological role mental­ism plays in our investigations about mental events, as he deals with the problem of reducing intensional expressions to physical ones, mental­ism is given a role more important than the metbodological role Quine had previously given it.

5. Intensional Expressions and Anomalous Monism

Tbe theme o f behaviorism and its methodological superiority reappears in §45 of Word and Object, but this time it is associated with the idea of the usefulness of propositional attitude expressions. Quine agrees with Brentano that intensional expressions are not reducible to non­intensional ones, but,just like Brentano, he does not infer from tbis that an intensional science is necessary. Rather, says Quine, what counts for science, generally speaking, is notbing but the physical constitu­tion and behavior of organisms (p. 221), even though we must tolerate propositional attitude expressions. For not only they are not reducible to behavioral tenns but they are indispensable in practice (p. 221- 2n). In previous sections in the same book Quine had already adduced the reasons why he thinks so. 17

However, from a theoretical point of view Quine goes on rejecting mentalism and he says that the boundary line between tractable expres­sions and intensional expressions (which are not tractable) is the same as between referential and non-referential expressions. In this connection he adds: "Moreover it [that division] is intirnately related to the division between behaviorism and mentalism, between efficient cause and final cause, and between literal theory and drama ti c portrayal" (p. 219, note ornitted). That is to say, propositional attitude verbs, for instance, such as 'to want' and 'to beüeve', have no meaning; they are nothing but a dramatized mode of speech. Hence, here, insofar as Quine acknowl­edges that mental entities have a heuristic value and that they are not reducible, regarding theoretical matters, he denies that mental entities

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Quine on the Nature o f Mind 303

exist. The heuristic role mentalism is given is emphasized by Quine again

in "States o f Mind" ( 1985) and in Pursuit o f Truth ( 1993). This time our use of a menta1istic talk is s.een as important not only for theorists o f language and knowledge but also for ordinary people, ali ofus, when we learn our language. Consider the example proposed by Quine: suppose Martha is teaching Tom by ostension the sentence 'it's raining'. She must encourage him to utter the sentence only i f he perceives the phe­nomenon concemed. Thus, Tom's 1eaming depends also on the mental­istic sentence 'Tom perceives it's raining' uttered by Martha (actually or not) (p. 61).

Now, the question lies in Martha's use of 'perceives' in the sentence containing 'Tom' as subject. Martha must suppose the occurrence o f a mental event (in Tom) of Tom's perception of the rain. How could Martha know that Tom perceives it is raining? Yet, Quine acknowl­edges that a behaviorist can give us an acceptable answer, that is, he can account for that situation in solely behavioral terms (p. 63).

An analysis o f Tom's behavior can lead Martha to infer that he per­

ceives it is raining. Thus, this term occurring in the mentalistic talk may be reduced to behavioral, non-mentalistic terms. In a behavioris­tic approach the fact that Tom says he perceives it is raining couldn't take place in Martha's observation of Tom's behavior, since Tom has not yet been told by Martha what 'it's raining' means and, in addition, Tom does not even know the noun 'rain'. But by other means (which are indirect) Martha may have enough information to raise the hypothesis according to which Tom observes o r perceives it is raining. Tom 's ver­bal behavior may be excluded from such indirect means for Martha to observe him and raise that hypothesis, but those means include ali other items in Tom 's behavior. However, at last, it is by an act o f empathy that we attribute to other people, on the basis o f their behavior we observe, what happens with ourselves, says Quine. We project ourselves in other people's situations (p. 63).

Nevertheless, Quine goes even farther as he discusses the possibility ofregimenting propositional attitude expressions in a purely extensional

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304 Luiz Henrique de A. Dutra

language. He maintains that they can't be fully reduced, that is, he rec­

ognizes that there is something in mental phenomena that can 't be re­

duced. There is a significant passage wherc Quine trics to characterize his physicalism more clearly, getting closer to Davidson 's anomalous monism. 18 For the first time mental entities and events are assigned a status that is not merely methodological.

Perceptions are neural realities, and so are the individual instances of belicfs and other propositional attitudes insofar as thesc do not fade out into irreal ity altogether (§27). Physicalistic explanation of neural events and statcs goes blithely forward with no intrusion o f mental laws o r in­tensional conccpts. What are irreducibly mental are ways of grouping them: grouping a lot o f respectably physical perceptions as perceptions that p, and grouping a lot ofrcspectably physical belief instances as thc belief that p. I acquiesce in what Davidson calls anomalous monism, also known as token physicalism: there is no mental substance, but therc are irreducibly mental ways of grouping physical states and events. (P. 71- 2)

Later in his text Quine mentions Davidson again, along with Dennett, and reaffirms that mental predicates have an important role to play in our investigations; Quine says that they "complement natural science in their incommensurable way, and are indispensable both to the social sciences and to our everyday dealings" (p. 73). The reason is tbat they help us to predict and to explain human action efficiently.

In From Stimulus to Science ( 1995) Quine expresses again his com­mitment to Davidson's anomalous monism. Again he discusses the issue

o f mental predicates. He writes as follows:

Assimilation of the mental to lhe physical, however, invites the gentler phrasing: thc assimilation seems rcasonable as applied to pain and other sensations and emotions. Whcrc it perhaps secms less compelling is in application to thinking. The notion o f an exhaustive class o f states each o f which qualifies as thinking about Fermat's Last Theorcm, and each ofwhich is specifiablc in purely physiologicaltenns, seems discourag­ingly unrealistic even i f rcstricted to a single thinker. lt is at this point that we must perhaps acquiesce in the psychophysical dualism o f pred­icatcs, though clinging to our effortless monisrn o f substance. It is what

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Quine on the Nature o f Mind

Davidson has called anomalous monism. Each occurrence of a men­tal state is still, we insist, an occurrence of a physical state of a body, but the groupings o f these occurrences under mentalistic predicates are largely untranslatable into physiological terms. There is token identity, to give it the jargon, but type diversity. (P. 87)

305

Quíne goes back to this issue later in his text; he acknowledges that, even though each single mental event might be physiologically specifi­able, propositional attitude verbs can't be translated ínto physiological terrns. "By courtesy o f anomalous monism," says Quíne, an extensional language for epistemology would still include mentalistic predicates, that is, íntensíonal expressions ofpropositional attitude (p. 98).

As we have seen ali along these many texts discussed in this paper, in summary, for Quine mentalism resists to ali attempts to ru1e it out. Finally, Quine still denies the existence of a mental substance, as we have seen, but he acknowledges the irreducibility of the mental to the physical. Thís ís much more than the merely heuristic status mentalístíc jargon has been gíven by Quine previously. In íts tum, behaviorism is not characterízed better than before, and, indeed, ít ís given a merely heuristíc character. We investigate linguistic and epistemological issues starting from behavior, but hypotheses that go beyond overt behavior are welcome. Generally, for Quine, such hypotheses are allowed i f they help to prevent us from any commitment to mentalism; they are hence hypotheses that imply physicalism in any o f its forms.

6. Some Concluding Remarks

We bave seen tbat tbe net result (so far!) ofQuine's reftections on issues conceming the rnind, since Word and Object (1960) till From Stimulus to Science (1995), consist in accepting that some sort of mentalísm ís inelirninable. More precisely, the fact that certain íntensional expres­sions seem to be irreducible to extensional expressions leads Quine to accomrnodate hís thought to Davidson 's anomalous monism.

As far as behaviorism is concemed - the approach Quine for so long and repeatedly supported - we can see, finally, that Quine gives

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306 Luiz Henrique de A. Dutra

it up, maybe rashly. To revert to my previous distinction among dif­

ferent kinds of behaviorism, consider again the strong and weak kinds

o f behaviorism I referred to in section 1. We can say that Quine holds behaviorism in its weak version, since he gives behaviorism a merely heuristic status. Mental phenomena are investigated by means of a be­havioristic strategy, but Quine's approach, in the long run, results in his comrnitment to anomalous monism as regards metaphysical issues.

Quine's commitment to that doctrine, maybe, stems from the fact that throughout his texts he resorted increasingly to physicalism, despite his

official "ontological relativity." As I said in previous sections, in virtue of the alleged ontological relativity Quine stresses time and again, a mentalistic ontology couldn't be rejected so vehemently by him, despite the historical and biological explanation he gives for our general pref­erence for an ontology of physical objects. In ontological crises, says Quine, we always resort to our basic ontology of bodies. If tbe main

virtue ofmentalism is its heuristic role, time and again also stressed by Quine, in its tum, physicalism as our ontological resort, say, is not supe­rior to mentalism. For its main virtue is therefore to have also a practical character.

There is an interesting passage where Quine, by the way, seems will­ing to concede an equal status to physicalism and mentalism. He says man is a "forked animal" (1993, p. 61-2). We are at afork oftwo differ­ent modes of speech, the physicalistic and the mentalistic talks. Beca use of our biological constitution both talks are inescapable for us, at least

as regards our language learning and our use o f language, even though they are not always and fully compatible. But this does not necessarily (or naturally) imply anomalous monism. For, in its turn, this doctrine includes a positive cboice in metaphysics, since it is a particular way o f relating the mental to the physical. l f Quine is right in what he says

about our natural condition, and i f the dispute between physicalism and mental ism is merely a dispute between our preferences for two differ­

ent and equivalently ineliminable talks, in different moments and for

different practical reasons, then a commitment to any metaphysical doc­

trinc (for instance, anomalous monism) isto be considered superfiuous.

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Quine on lhe Nature o f Mind 307

Hence, from the Quinian point o f view the coherent position would be:

let us remainforked animais, but animais without metaphysics. 19

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Notes

1 See, for instance, Haack 1993, chaptcr 6, and Kim 1994, for interesting dis­cussions conceming the task ofnaturalized epistemologies as the aims oftradi­tional theory ofknowlcdgc are concemed; and Gettier 1963, for thc notorious chaJlenge to the notion of knowledge as justified true belief, which had been anticipatcd by Russell ( 1980 [ 1912 ], chapter 12). 2 Sec Rcinchenbach 1938, p. 6-7, wherc he proposes the distinction between a contcxt of justification and a context of discovery, to which Camap, Pop­per and many others are also committed. According to this vicw, as regards human knowledgc, epistemology and pllllosophy of sciencc dcal with justifi­cation while empirical psychology deals with discovery. 3 As regards Quine's naturalistic stance, according to which philosophy is con­tiguous with science, another rclated topic to be discussed is obviously Quine's conccption of science. For a clarifying discussion about this point, see Haack 1993, chapter 6. 4 lt isjust bccause ofthis that Kim (1994) criticizes Quinc's projcct ofa natu­ralized cpistemology. Kim argucs that as Quine keeps away from the notions o f traditional theory ofknowledge his naturalizcd cpistemology lies out ofthe do­main o f epistemology propcr. Kim 's stance is obviously too conservative and perhaps reactionary as regards the rise of so many naturalist projects nowa­days. lt would be more reasonable to see things as though there is a revolution in epistemology which revises some of epistemology's fundamentais. That might be the case conceming the concepts T presently discuss. 5 See Putnam 1982. Quine's first stance is supposed to be held in his "Epis­temology Naturalized" period's tcxts, such as that paper itsclf and "Natural Kinds" (Quine 1969, chapters 2 and 5 respectively). 6 It is worth reroembering Rorty's account o f this issue ( 1980). Modem phi­losophers since Descartes up to Kan t - who, according to Rorty, are the found-

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310 Luiz Henrique de A. Dutra

ing fathers ofepistemology - conceived ofthe mind as a sort ofmirror, some­thing ablc to reflect the world. 7 For a comprehensive account o f bchavioral science as regards its theoretical and experimental features as wcll as its successful applications, see Lacey & Schwartz 1982. 8 Skinner tries to make clear the difference between his radical behaviorism and other !Onds ofbchaviorism in psychology and he rejccts to be associated to Watson's mcthodological behaviorism (Skinner 1974, chapter I). Howevcr, I use here the expression 'methodological behaviorism' in a broader sense, that is, the stance according to which the aim o f psychology is to investiga te bchav­ior empirically as Watson put it (Watson 1996). In this case, Skinner's bchav­iorism is seen as complcmenting the (methodological) behaviorism previously held by Watson and others. 9 See Watson 1996 and Skinner 1953 and 1974. 8oth of them agrec about this point, in spite of their differences. In particular, Skinner intents to com­plement prcvious forms ofbehaviorism cxploring also what is within the skin, as he says. That is to say, radical bchaviorism maintains the idca that we can investigate a sort of covert behavior in addition to investigating overt behavior. 1° Camap gives up a prcvious phenomenalistic position (maintained in thc Auf­bau) and (in further texts) adheres to physicalism. But in his first Aujbauian period, Camap indeed maintains a mcntalistic doctrine, as many of his crit­ics say (including Quine). According to his critics, given Camap's doctrinc of sense data (which, in their tum, are mental cntitics), in this connection he is as mentalist as traditional, Modem philosophers, such as the British Empiricists and Descartes and his European rationalist followers. The comments I have just madc about Camap's behaviorism neglect these different periods of his philosophy respecting the choice of an empirical basis because his main idea o f a reduction o f concepts is the same onc in both periods, that is, psychological concepts must always be reduced to lower levei concepts. 11 Since I used the expression 'mcthodological behaviorism' to refer to the psychologists' doctrines, such as Watson's and Skinner's, I introducc hcrc the idiom ' heuristic bchaviorism'. Howevcr, what I bear in mind hcrc is thc same methodological role played by behavioristic concepts in Quine's epistcmolog­ical invcstigations. I f generally speaking behaviorism is the defense of an ap­propriate way of invcstigating in psychology, in order to avoid the introspec­tionism o f traditional psychology, then it is the same strategy Quine proposes as an appropriate way of investigating in naturalizcd epistemology, sincc any hypotheses about the existence o f inner processes in the subject are forbiddcn. lt is worth noting, on the other hand, that Skinner's radical behaviorism is a

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means to accounting for (part ot) this problem, since he talks about covert be­havior. We may say that Quine's recent commitment to Davidson's anomalous monism aims at solving the samc problem. Hence, despitc what Quine says in some texts to be examined late r in this paper, he does not restrict himself to a methodological point ofview. 12 Conceming the criticisms Chomsky addresses to behaviorism, sce Chomsky 1959, where he reviews Skinner's Verbal Behavior. For an appraisal of this controvcrsy, see Lacey 1974. 13 Quinc refers to many passagcs in Dewey's Experience and Nature (1925); curiously enough and differently from Word and Object, "Ontological Rclativ­ity" contains no refercnccs to Skinner. 14 It is worth fully quoting Dewey in this connection; he says: "Thc heart of Ianguage is not 'expression' of somcthing antecedent, much lcss expression of antcccdent thought. It is communication; the establishment o f coopcration in an activity in which there are partncrs, and in which the activity o f each is modified and regulated by partnership. To fail to understand is to fai l to come in to agreement in action; to misunderstand is to set up action at cross purposes. Takc speech as behavioristically as you will, including the elimination of ali private mental states, and it remains truc that it is markedly distinguished from the signaling acts of animais. Meaning is not indeed a psychic cxistcncc; it is primarily a property of bchavior, and secondarily a property of objccts. But the bchavior of which it is a quality is a distinctive behavior; coopcrativc, in that rcsponse to another's act involves contcmporaneous response to a thing as entering into the other's behavior, and this upon both sides." (P. 148- 9.) 15 Among some facts responsiblc for this phenomenon Ryle points out our changc from the habit of rcading aloud, which was commonplace in thc Mid­dle Ages, to the new habit of rcading in silence, the latter being supposed to require some learning; see Ryle 1984 [ 1949], p. 27. Even though Ryle's point is disputable, it is very suggestive and intercsting from a behaviorist point of view. 16 It is worth adding that sueh a homology is impossible becausc thcre is no pai r of identical organisms; they can be at most very similar, givcn a close or common origin and similar histories, as Quine says in The Roots of Reference {1974). 17 See chapter 5, §§40ff. Thc kind of language regimentation designcd by Quine does not rulc out either sentcnces about abstract objccts or intensional objects in virtue of nominalism and extensionalism, respcctivcly, because of their economy and simplicity; see p. 191 ff. In doing so, Quinc proceeds dif­ferently from Carnap's reductionism in the Aujbau (Carnap 1967 [ 1928]) and

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312 Luiz Henrique de A. Dutra

in agreement with the criticisms he addresses to Carnap in "Two Dogmas of Empiricism" (From a Logica/ Point o f J!iew). 18 Davidson's doctrine had been already rcfcred to by Quine in "States of Mind" (1985, p. 7). It is worth mentioning, in addition, that some topics dis­cussed by Quine in chapter IV of Pursuit ofTmth are anticipated in "States of Mind." 19 I am indebtcd to CNPq for financiai support and to Cézar Mortari, Hugh Lacey and Susan Haack for their helpful criticisms and suggestions.

[email protected]

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• INTENCIONALIDAD Y PERSONA EN LA FENOMENOLOGÍA DE HUSSERL

Roberto Sánche;z Benítez Universidad Michoacana de San Nicolás de Hidalgo, México

Los objetos sólo son para nosotros, y sólo son para nosotros lo que son,

en cuanto objetos de una conciencia real y posible.

Husserl, Meditaciones cartesianas

De acuerdo con Paul Ricoeur, la fenomenología y la hermenéutica pue­den entenderse a partir de lo que se deben mutuamente (Ricoeur 1994: 101). La hermenéutica contemporánea, que lo tiene a él como llllO de sus más destacados representantes, ve en la primera ciertas Jimitaciones, a la vez que le resulta imposible desentenderse de presupuestos feno­menológicos, tales como: a) la noción de "sentido"; b) la "reducción fenomenológica" entendida como "resignificación"; o bien c) la feno­menología de la percepción cuya orientación ha sido continuada por la hermenéutica de la experiencia histórica. En conjunto, Ricoeur críti­ca ciertos aspectos idealistas de la fenomenología husserliana, entre los que ubica a la "intencionalidad" y su nexo con el criterio de cientificidad sostenido por esta postura. Según ello, dicha noción permanece todavía presa dei planteamiento esquemático sujeto-objeto. Se trata de una cri­tica que abarca la forma en que la fenomenología concibe a la intuición como la necesidad de que todo entendimiento se encuentre mediado por la interpretación, así como del lugar que ocupa la subjetividad como sede de toda fundamentación.

Adicionalmente a esta crítica habremos de citar otro momento desta­cado en el cualla fenomenología fue incorporada en la filosofia francesa

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 313-323.

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314 Roberto Sánchez Benítez

en las primeras décadas de este siglo. Para Emmanuel Livings, traductor de Husserl, la "reducción fenomenológica" conduce a una "subjetiva­ción dei ser'' en la que tiene cabida el plano de la sensibilidad -esfera inagotable dei sentido-, reivindicando con ello el privilegio impercep­tible dei mundo percibido por el hombre concreto. La sensibilidad, Ie­jos de convertirse en un punto arbitrario y epistemológicamente incon­sistente, constituye e! movimiento de retroceso hacia el inicio de toda adquisición, hacia e! "aquí" y "ahora" a partir dei cual todo se produce por primera vez en términos de conocimiento. Es en la medida en que el concepto de "sujeto" es vinculado a Ja sensibilidad, o que la indivi­duación coincide con la arnbigüedad de la "impresión primera," o que el "ahora" es anterior ai conjunto histórico que va a constituir, que la fe­nomenologia conserva a la "persona" de manera trascendente. Se trata de lo que Husserl denomina "subjetividad trascendental absoluta," en la que la persona no se absorbe en lo pensado, en la etemidad de! discurso, ya que la sensibilidad hace que la" 'etemidad' de las ideas reenvie a una cabeza que piensa, a un sujeto que es presente temporalmente." A partir de lo anterior la intencionalidad podrá plantearse, a su vez, como una recuperación imprescindible de los sentidos ocultos, implícitos, anóni­mos y oscuros que existen en los objetos. La fenomenologia deviene entonces una forma de pensar que no es más puro presente ni pura re­presentación. Con la argumentación de esta última tesis creemos estar recordando aspectos de la fenomenologia husserliana que escapan al es­quematismo idealista asignado por Ricoeur, a la vez que no dejamos de aplaudir los alcances de su crítica.

I

Se ha Uegado a decir que fenomenologia es intencionalidad, que a su vez constituye el rasgo esencial de la conciencia encontrado a través de la "reducción fenomenológica."' La intencionalidad es "lo que caracte­riza la conciencia en su pleno sentido y Jo que autoriza para designar a la vez la corriente entera de las vivencias como corriente de conciencia y como unidad de una conciencia" (Husserl 1986). Es decir, toda con-

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ciencia es conciencia de algo; toda percepción lo es de algo, así como todo juicio lo es de un estado de cosas juzgado. Se llega a descubrir este rasgo de la conciencia a través de la reducción fenomenológica, que es el proceso de suspender no la existencia de las cosas, sino su validez y sentido para poder evaluarlos precisamente. Esta reducción representá para Husserl la posibilidad de seguir pensando una actividad así llama­da "espiritual" o de "psicologia profunda, pura" como ciencia objetiva dei alma, que diera cuenta de la manera en que nos vinculamos a las cosas desde una doble situación: la ser afectados por ellas y la de hacer posible su sentido o comprensión. De esta manera, ejemplos de "actos intencionales" lo serían la imaginación, la representación, las experien­cias de I otro, intuiciones sensibles y categoríales, actos de receptividad y espontaneidad. Aspectos que, por otro lado, pueden corresponderse con la célebre caracterización cartesiana dei yo pensante como lo que duda, entiende, concibe, afinna, niega, quiere, no quiere, imagina y siente.

El resultado de la "epojé" no puede ser una nada temática, vacío metafísico o soledad anímica, ni un "yo psicológico" abrumado por sus contrariedades o sinsentidos, sino todo lo contrario, "pura vida yoica" intencional afectada por los objetos intencionales, un estar-orientados­bacia ellos y estar ocupados de ellos de múltiples maneras, en suma, vivencias. Husserl agregará que existen varíos "niveles" en esta tarea de autopercepción, partiendo de las nociones o apariencias inmediatas, naturales, dadas en nuestra relación con las cosas, de tal manera que la percepción de las almas según su "propio ser puro" es "algo que hasta tal punto no es inmediato, ni cotidiano, ni susceptible de ser alcanzado por media de la lisa y llana 'epojé' del prímer comienzo" (Husserl 1991: 259). Lo que a su vez queda claro en esta reducción es que tal tarea es infinita, csto es que nadie podria jamás alcanzar cn su autoconocimiento su rnisrnidad real y autêntica, "el ser propio de sí mismo en tanto que sujeto-Yo y en tanto que sujeto de todos sus conocimientos de I mundo y realizaciones mundanas."

El aspecto positivo de lo anterior radica en que es de esta manera que el individuo sabe de sí rnismo y de! mundo que lo soporta y ai cual tiende como horizonte de posibilidad renovadora, inacabable. Husserl mismo

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se encarga de enfatizar este rasgo cornplejo de la intencionalidad que remite tanto a la actualidad como a cierta potencialidad: "toda vivencia tiene un 'horizonte' cambiante en su conexión con la conciencia y en las fases de su propia corriente, un horizonte de remisión intencional a po­tencialidades de la conciencia inherentes a la vivencia misma" (Husserl 1986b: 93). Estos "horizontes" son "potencialidades predeterminadas" que pueden ser indagadas, exploradas, interpretadas, descubiertas para que muestreo lo que hay de implícito en ellas. Es por ello que resul­ta esencial a la conciencia, por un lado, continuarse en modos siempre nuevos, mientras que, por el otro, no poder hacerlo más que en el modo de Ia "expuesta intencionalidad del horizonte," de forma que su objeto será siempre el "índice de una intencionalidad noética que /e corres­ponde conforme a su sentido" (Husserl 1986b: 95). Lo que el análisis intencional descubre son estas potencialidades implícitas en las actua­lidades de la conciencia, de tal manera que el cogito va más aliá de sí mismo; con la "epojé" fenomenológica la conciencia sale de sí misma. De ahí que, dicho con insistencia, Husserl sostenga que la tarea que el fenomenólogo realiza no tiene que ver con una mera descripción o con­templación de los objetos en cuanto referidos al correspondiente "yo," sino como "correlatos de la conciencia": poner la mirada en la anónima vida cogitativa, ahí donde es posible observar las ocultas variantes noé­ticas de la conciencia y la unidad sintética de ellas, ya que cada objeto intencional corresponde a un modo de la conciencia.

No habria que olvidar que, dentro de los "modos" que la reducción encuentra del "yo puro," existe el que lo descubre en la intersubjetivi­dad, la cultura y el tiempo. El mundo pasa de ser un mero hecho o dato para transformarse en fenómeno, a la vez que "estoy fácticamente en un presente co-humano y en un horizonte humano abierto, me sé fác­ticamente en una conexión generativa, en la corriente unitaria de una historicidad en la que este presente es el presente humano y el presente histórico de su mundo consciente de un pasado histórico y de un futuro histórico" (Husserl 1991: 266). En la reducción, el "yo puro" encuentra una "única conexión animica" de almas unidas por un "entrejuntarniento intencional de la mancomunación de su vida." Así como cada yo-sujeto

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tiene un campo perceptual original en un horizonte que ha de abrir len­

tamente, horizonte que conduce a campos perceptuales siempre nuevos, siempre predibujados de nuevo de forma determinada-indeterminada,

así cada cual tiene su horizonte de "compenetración empática," el de la co-subjetividad que hay que abrir por medio del trato directo e indi­recto, con el encadenarniento de los otros que "entre sí son otros." La

reducción Husserl rechaza la distinción kantiana de noúmeno y fenóme­no para insistir en que el "ámbito" de la intencional idad aparece y debe aparecer como temporal. La experiencia intencional queda así mostra­

da en Las investigaciones lógicas como, y en cada instancia, un flujo en el cual Ia unidad se constituye en un tiempo inmanente (el juicio, el deseo, etc.). La conciencia absoluta o subjetividad absoluta consiste

en este flujo primario que, si bien no puede ser conocido como objeto si puede, en cambio ser experimentado. Por lo demás, el autor de las Medi/aciones cartesianas encuentra sus diferencias con Kant, a pesar de las profundas similitudes, en el hecho de que éste quisiera hacer dei campo fenomenológico un asunto de mera psicología, y no objeto de una "ciencia esencial rigurosa y aparte."2

11

Ricoeur considera que la intencionalidad, tal y como es planteada por Husserl, Ie impide ai sujeto atender la necesidad de pensar en algo que

unifique el sentido de los objetos y fundar esta unidad en una subjeti­vidad constituída. Como lo hemos mencionado, lo que se encuentra en cuestión es la tarea trascendental de la fenomenología ligada a cierto criterio de cientificidad el cual, de acuerdo con el filósofo francés, i) no se encuentra vinculado a las ciencias rnismas en la medida en que só­lo contiene axiomas fundacionales de carácter general y "último," cuya forma de declaración evita la argwnentación o su puesta prueba; y ii) ha­ce dei estudio de lo que ha motivado los "verdaderos cornienzos" de las ciencias algo imposible ai sos.tener que en los mismos existe una "abso­

luta ausencia de presuposiciones." Frente a lo anterior, la hermenéutica

plantearia, por ejemplo, la categoria de "pertenencia" que, a su vez, alu-

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de a la finitud dei conocimiento humano. Así, lo que se cncuentra cn juego es cierta concepción de la objetividad y de la verdad misma.

La noción de "pertenencia" denota la experiencia hermenêutica en la que el sujeto y el objeto se encuentran en una relación de inclusión mutua; dicha noción permite realizar la distinción entre una fundamen­tación trascendental de otra de carácter epistemológica. Ricoeur extrae esta noción de la obra de Gadarner, en donde la misma refiere, en sentido metafísico, a la relación trascendental entre el ser y la verdad, es decir, piensa el conocimiento como un momento dei ser mismo y no primaria­mente como un comportamiento del sujeto (Gadamer 1988: 552 y ss.). Lo que es, es por esencia verdad. De esta manera existe una pertenencia mutua de lo objetivo y subjetivo que llega a constituir a la experiencia hermenêutica en su modo de realizarse por medio dellenguaje, ahí don­de la tradición y el intérprete plantean una "conversación" en la que, sostiene Gadamer, "ni la conciencia dei intérprete es sefiora de lo que accede a él como palabra de la tradición, ni es adecuado describir lo que tiene lugar aquí como un conocimiento progresivo de lo que es, de manera que un intelecto infinito contendria todo lo que de un mo­do u otro pudiese llegar a hablar desde el conjunto de la tradición."3

E! problema de la objetividad, ai cual se agrega el de la interpretación y/o comprensión, no puede plantearse sin tomar en cuenta nuestro "ser­en-ei-mundo" (Heidegger), que es el substrato que antecede a cualquier proceso de conocimiento.

Es por ello que Ricoeur reconoce que la más importante presuposi­ción fenomenológica de la "filosofia de la interpretación" ( otro nombre para la hermenêutica), es el hecho de que cada cuestión que compete ai "ser" concieme a su significado: la cuestión de! ser se convierte en fenomenológica, como en el caso de Heidegger. Así, la tesis de la inten­cionalidad sostiene que si todo sentido es para una conciencia, entonces ninguna conciencia es autoconciencia antes de serlo de algo que la so­brepasa, como ya hemos visto. Lo que encontramos es una prioridad dei sentido sobre la autoconciencia, bajo la .guía del concepto de "sig­nificación." Más aún, fenomenología y hermenêutica coincidirão en el carácter subordinado del significado lingüístico, esto es, en la existencia

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de un plano pre-predicativo o prelingüístico correspondiente ai análisis noemático. Se trata dei desplazamiento dei modelo intencional dei pla­no lógico ai perceptivo, ahí donde se da la primera forma de relación con las cosas.

Adicionalmente, el modelo de verdad encontrado por la fenomeno­logia de la percepción ( carácter presuntivo, inadecuado, inconcluso) es el que puede ser transpuesto al domínio de las ciencias histórico­hermenéuticas. Verdad entendida como una experiencia de ella rnisma, es decir, evidencia. La evidencia es el modo originario de la intencio­nalidad, es decir, el momento de la conciencia en que la cosa rnisma de la que se habla se da en carne y hueso, o bien, que la intuición "se llena." La evidencia es el sentido de toda justificación o racionaliza­ción. Verdad que se define más por su devenir, su revisión, corrección o superación de sí misma. Así, la verdad de cualquier juicio supondrá la intuición y la evidencia, aunque habrá que precisar que la primera no se define por los rasgos de la percepción sensible, sino por la intención que confiere plenitud de presencia ai objeto visto. Husserl insistirá, en Crisis, en la relación que existe entre la verificabilidad de un juicio y el proceso "regresivo" mediante el cual somos conducidos a una "ex­periencia pre-categorial," ante-predicativa que no representa sino una presuposición o condiciónjilosójica de posibilidad. A lo que refiere el "ego trascendental," que constituye el sentido de los objetos, es a una complicidad primordial que mantiene con ellos. Es así que la reducción fenomenológica no puede sino conducir a un reencuentro de las expe­riencias vividas sobre las que se sustenta el conocimiento teórico, como lo hemos seií.alado. Y esto, creemos, eludiría el esquematismo de la re­lación sujeto-objeto, en el cual Ricoeur quiere ubicar el problema de la intencionalidad.

Cuando Husserl habla del "ego trascendental" se refiere ai ''yo" dei ser humano al cual corresponde cierto "a priori universal" que es más bien una "forma esencial que encierra en sí una infinidad de formas, de tipo aprioristico, de posibles actualidades y potencialidades de la vida, con los objetos por constituir en ella como realmente existentes" (Hus­serl 1986b: 129). El contenido de este "ego" lo integra un "universo de

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vivencias" que só lo es "composible" en la universal forma de unidad de/ transcurrir, dentro de la cual se ordenao dichas vivencias. Forma que lo enlaza todo, que impera de manera especial en cada vivencia y que hace posible la constitución en unidad de un pasado, presente y futuro; forma que a su vez puede ser entendida como "ley formal de una géne­sis universal" que permite comprender la constitución dei "ego" en su historia en la medida en que toda vivencia "dura," se inserta en un con­tinuo sin término de duración; continuo lleno e infinito. A la vivencia la caracterizao por tanto dos horizontes y una situación de simultaneidad. Por un lado, posee un horizonte dei antes y otro dei después que nunca están vacíos y sin solución de continuidad; por el otro, todo ahora de vivencias tiene un horizonte de éstas que a su vez poseen precisamente la forma originaria dei ahora; en cuanto tales constituyen el "horizon­te originaria" y unitario del "yo puro," "el ahora originaria y total de la conciencia correspondiente" (Husserl l986a: 195). Es en la tarea de reftexión que el yo potencial se manifiesta como constituyéndose prirni­geniamente en la génesis que impera a lo largo dei flujo de vivencias, de tal forma que no es posible encontrado como un "sí mismo" constituído ahi, predado delante como objeto; es decir, "está completamente latente para sí mismo y para otro, por lo menos en la intuición."

La presencia de "lo inactual," posible o latente ha sido, en cambio, muy bien sefialada por otros intérpretes continentales de la fenomeno­logia, como pueden ser Francois Lyotard y eJ ya citado Emmanuel Lé­vinas. Para el primero, la "epojé" revela la necesidad del mundo y la libertad de! "yo," como torrente de vivencias que no sabría ponerse en duda (Lyotard 1989: 33). El yo habrá de encontrarse en lo que le ro­dea aún y cuando él sea un resultado de lo que habrá de resignificar. Es por ello que, y he aqui lo importante, a lo que se dirige es apenas un aspecto de lo que puede descifrar gracias a lo "inactual" de su rela­ción intramundana. Es esta reserva de significación Ia que hace posible a su vez ai pensarniento: existe pensarniento en la medida en que nos ubicamos en un horizonte a partir dei cual lo dado se nos presenta, a la vez que determinado, como constituyendo una cuasi-ausencia de ello mismo. Indeterminación de lo dado, Iibertad dei pensamiento.

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Por su parte, Lévinas insistirá en que de la intencionalidad depende la totalidad dei proyecto fenomenológico y sus aspectos como la indaga­ción de la autoconciencia sobre el tiempo inmanente; la fundamentación trascendental dei ego; la formulación de la intersubjetividad y relación con el "otro," o lo oculto de cada objeto. Asimismo destaca el hecho fenomenológico de la reducción del significado al sentido, así como el hacer dei lenguaje un problema derivado de condiciones existenciales más originarias. Aqui significación es igual a intencionalidad, y repre­senta Ia forma en que el pensamiento puede contener idealmente algo distinto a él en la medida en que el signo no sólo es algo convencional, externo, asociado o impuesto al objeto al que remite, sino que constitu­ye una "expresión" dei mismo, una "puerta" a través de la cual observa­mos lo que significa. Este proceso se encuentra caracterizado a su vez por una tarea sintética en la cual es formulada la identidad y unidad de los objetos a partir de la diversidad. Tal identificación concluye en la "evidencia," que es la " luz" que el sentido busca, la penetración en "lo verdadero": comprensión, intelección entre el sujeto y el objeto, dei uno por el otro.

Forma parte dei idealismo y optimismo husserliano e l suponer que nada dei mundo escaparia al pensamiento, aún cuando reconoce que pueden existir zonas de la realidad a las cuales accedemos de manera aproximada o imperfecta, comparadas con otros criterios de verdad y existencia. En este sentido, la reducción fenomenológica no só lo descu­bre el carácter intencional e inacabado de la conciencia, sino que mues­tra ai objeto en cierto reclamo hacia ella: suscita a la conciencia, y lo que en ella aparece es el "modo" de su ser. El objeto " resplandece" en la conciencia y, por ello mismo, aparece. En otras palabras, el sujeto no es puro sujeto ni el objeto puro objeto: juntos constituyen un fenómeno que a la vez se revela y revela, que es y que representa un acceso ai ser. Así es como podemos entender e l que e! hombre fundamente un mundo ai cual ya pertenece.

Lo que plantea el carácter trascendental de la reducción es un entre­veramiento de significaciones a partir de las cuales es posible reconstruir en todo la histeria digamos de las ideas o pensarnientos. Los objetos son

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"devueltos" a la unidad productora de su sentido verdadero que es la his­toria y, en última instancia, el tiempo. Lo que realiza la intencionalidad es situar al objeto en todos sus posibles horizontes de sentido, ahí donde puede adquirir verdadera concreción o realidad. Es por ello que el ser no se encuentra ni fuera ni dentro dei pensarniento, sino que éste últi­mo se trasciende a una conciencia segunda que le permite descubrir el horizonte de sentido en el cual se encuentra ubicado. Cuando el pensa­rniento "piensa" al objeto, en realidad no "ve" más allá de él, sino a su lado, a lo implícito o coexistente en él, a los "horizontes innombrables" de sus posibles implicaciones: es por ello que va más aliá de sí mismo, trasceniliéndose, según hemos insistido. Heidegger en su momento su­po sacar provecho de este planteamiento. Tal es la razón por la cual, para Lévinas, la fenomenología se muestra deudora de una vida anóni­ma y oscura, de pasajes olvidados que hay que restituir ai objeto, de tal manera que con este planteamiento no se hacen depender las estructu­ras dei objeto de las de Ia conciencia, sino que se recurre a un domínio "subjetivo más objetivo que toda objetividad," en palabras de Husserl.

En conclusión, lo que Husserl demostró fue que el pensamiento que va hacia su objeto encierra pensamientos que desembocao sobre hori­zontes noemáticos, los cuales ya soportan ai sujeto en este movirniento. Estas horizontes refieren a la situación dei sujeto, la cual tiene que ver con su cuerpo, la sensibilidad y demás cualidades perceptivas. EI mo­vimiento bacia lo representado se enraíza en horizontes implícitos, no representados, de la existencia encarnada. Es a partir de lo anterior que quedaron abiertos los caminos para una filosofia existencial, cl análisis de lo sensible, de lo predicativo, de la impresión originaria, así como la filosofia de! cuerpo propio.

Bibliografia

Gadamer, Hans-George. 1988. Verdad y método. Salamanca: Sígueme. Husserl, Edmund. 1986a. fdeas relativas a una.fenomenología pura y

unafilosofia.fenomenológica. México: FCE. -. 1986b. Meditaciones cartesianas. México: FCE.

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lntencionalidad y Persona en la Fenomenología de Husserl

- . 1991. La crisis de las ciencias europeas y la fenomenología

trascendental. Barcelona: Crítica.

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Lévinas, Emmanuel. 1994. En découvrant l'existence avec Husserl et

Heidegger. París: Librairie Philosophique J . Vrin. Lyotard, Jean F. 1989. Lafenomenología. Barcelona: Paidós. Ricoeur, Paul. 1994. "Phenomenology and hermeneutics."

Hermeneutics and the Human Sciences. Edited & translated by John B. Thompson. New York: Cambridge University Press.

Notas

1 Todos los entrecom illados refieren a palabras o frases de Husserl, salvo otra indicación. 2 De acuerdo con Husserl, el empirismo psicologista de Kant impide que su "lector'' transforme los resultados de su proceder regresivo "en conceptos in­tuitivos, e impide todo intento de I levar a cabo una construcción progresiva que parta de intuiciones originarias y puramente evidentes y que discurra en pasos individuales realmente existentes" (Husserl 1991: 120). EI método regresivo en cuestión es en realidad un método de exploración absolutamente intuitivo que puede hacer emergcr las "autoevidencias" que configurao, tanto para e! filósofo como el científico, un "fundamento tácito" de sus realizaciones cog­noscitivas. Este mundo de autoevidencias será precisamente el "mundo de la vida," reino de evidencias originarias. Kant sólo habria fundamentado "mítica­mente" sus conceptos trascendentales, en la medida en que remi te a una forma de lo subjetivo que no es posiblc ser apropiada intuitivamente ni en ejemplos fácticos ni por medi o de una analogia auténtica. 3 El autor de Verdad y método concibe la intencionalidad como una crítica al "objetivismo" en la medida en que con ella el espíritu es llcvado ai campo de la experiencia sistemática y de la ciencia. Lo que manifiesta el examen de las "vivencias intencionales" es que, por ejemplo, cl significado de las palabras no puede seguir siendo confundido con el contenido psíquico real de la con­ciencia, o sea, con las representaciones asociativas que dcspierta una palabra. El análisis de las vivencias intencionales desemboca en un "horizonte vacío" de dos caras constituído por aquello a lo que no se refierc, pero a lo que en cualquicr momento pucdc orientarse y hacer de ello una rcfcrcncia real.

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Seção 5

Filosofia Moral e da Ação

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ANTI-MORALISMO E ANTI-PATERNALISMO NO ENSAIO "ON LIBERTY" DE J. S. MILL

Maria Cecilia Maringoni de Carvalho PUC-Campinas

O objetivo deste trabalho é prover subsídios para a discussão de algumas questões atinentes à concepção milleana de liberdade, como defendida em seu ensaio On Liberty, quais sejam: 1) se do texto de Mill se pode

inferir um veto claro e decidido ao Moralismo legal; 2) se da posição de Mill decorre algum comprometimento com alguma forma de Paterna­

lismo estatal - fraco ou forte. O exame do ensaio milleano parece nos levar à conclusão que o autor de On Liberty repudia tanto o Moralismo

quanto o Paternalismo legal.

1. A Esfera de Ações Auto-Referentes e o Dano a Outros

O Princípio de Liberdade foi concebido por J. S. Mill para garantir aos indivíduos uma esfera de ação no âmbito da qual eles seriam soberanos,

permanecendo, pois, desobrigados de prestar contas de seus atos a quem

quer que seja. Tal princípio não permite que o Estado cerceie a liber­dade de um indivíduo em assuntos que tão-somente lhe digam respeito; permite, por outro lado, uma interferência qualificada em ações que afe­tem adversamente a terceiros, ou seja, o Estado só pode exercer sua autoridade para impor limites à liberdade individual se for para prevenir dano a outros e na medida em que isso for exigível pelo Princípio de Utilidade ou, pelo menos, não incompatível com este. Com efeito, em Sobre a Liberdade, Mill reitem a supremacia da Utilidade para arbitrar

em qualquer questão de ordem é tica. 1 Parece que uma das formulações

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 327- 343.

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do Princípio de Liberdade contém em seu bojo um repúdio ao paterna­lismo como também ao moralismo legal. O referido princípio estatui que:

O indivíduo não pode legitimamente ser compelido a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, porque tal seja melhor para ele, porque tal o faça mais feliz, porque na opinião dos outros tal seja sábio ou reto.2

O ensaio Sobre a Liberdade sempre ensejou, desde a época de sua pu­blicação, muitas interrogações, incontáveis críticas, como também in­gentes esforços por parte de estudiosos da obra milleana no sentido de demarcar o alcance e clarificar o significado daquele famoso princípio, do qual já se tomou usual dizer que, contrariamente ao que declarara seu autor, de simples não tem nada. O próprio termo "dano", a despeito de sua importância para uma compreensão adequada do princípio, tem contornos vagos e imprecisos e o emprego que Milllhe dá não contribui muito para diminuir-lhe a vaguidade ou livrá-lo de ambigüidades: nem sempre resulta claro, por exemplo, se Mill tem em vista somente da­nos físicos ou se sua concepção dá conta também de prejuízos morais; igualmente se pode indagar se o dano a ser prevenido é apenas aquele que afeta indivíduos singulares ou se o princípio levaria em considera­ção também prejuízos a instituições e a bens públicos; cabe perguntar, por outro lado, se ofensas a sentimentos são contempladas ou não. Ade­mais, a aplicação do princípio exige não apenas que se conheça seu alcance, mas que se tenha igualmente decidido quão grave há de ser um dano para que o mesmo incida na alçada do princípio em questão, pois é concebível que nem toda lesão a interesses deva ser contada como da­no relevante, dado que o custo associado a isso seria muito alto. Tais questões estão longe de receber por parte de Mill uma resposta capaz de pôr fim às dúvidas. Um ponto todavia parece incontroversível: o Princí­pio de Liberdade pressupõe seja possível identificar uma "self regarding area," vale dizer, uma esfera de ações auto-referentes que, por concernir tão-somente ao próprio agente, deveria permanecer imune a uma inter­ferência coativa do Estado, livre de qualquer ingerência da sociedade. Todavia, a existência de uma esfera de ações auto-referentes foi algumas

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vezes objeto de questionamento; se se interpreta a questão como factual, empírica, então o Princípio de Mill repousaria, ao que parece, sobre um postulado falso, uma vez que aparentemente inexistem ações destituídas <;le repercussões/efeitos sobre terceiros. Dado que o ser humano não vive isolado, mas imerso em uma teia de relações, dificilmente o que ele faz ou deixa de fazer é isento de conseqüências sobre terceiros. A delimi­tação de uma esfera de ações auto-referentes é, portanto, dependente de uma decisão: isso posto, o que Mil! decidiu que deveria ser tratado co­mo auto-referente e permanecer portanto protegido contra interferência? Noutros termos, o que Mill considerava como dano relevante a ponto de tornar exigível a aplicação de seu princípio? Há evidências textuais de que para Mill a linha de demarcação separava ações que afetam dire­tamente e de modo adverso apenas o próprio agente, e ações que, ao afetarem diretamente seu próprio agente, atingem indireta ou remota­mente os interesses de terceiros. Ao que parece, somente o primeiro tipo de ação era visado por Mill, como reconhecido por J. Feinberg.3

Em sentido análogo argumenta John C. Rees ao mostrar que o ensaio de Mil! não pressupõe a existência de ações destituídas de repercussão sobre outros; o Princípio de Liberdade requer tão-somente a existência de ações que não afetem importantemente a terceiros, não lesando, por­tanto, os interesses-direitos de outros.4 Trata-se de uma distinção que faz sentido, a despeito de não haver uma fronteira nítida a separar o que afeta diretamente do que só indiretamente afeta a outrem. Trata-se ade­mais de uma distinção relevante uma vez que o conceito de "interesse" ou de "interesse-direito" é normativo, ao passo que o de "repercussão" ou "efeito" é descritivo. Ademais, Mill admite a relação entre dano e interesses e estabelece uma conexão entre interesses e direitos. Assim, no capítulo IV de Sobre a Liberdade, ao buscar elucidar que tipo de conduta deveria permanecer livre de interferência, Mi ll alude àquelas que não ocasionam dano a interesses de outros ou, mais precisamen­te, a determinados interesses que, "por expressa cláusula legal ou por tácito entendimento, devem ser considerados direitos,"5 acrescentando que, "desde que algum setor da conduta de uma pessoa afete de maneira nociva interesses alheios, a jurisdição da sociedade o alcança."6

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Com efeito, parece injustificável falar-se em dano, se os interesses essenciais ou os direitos de uma pessoa permanecem ilesos. Todavia, o intento de se reconstruir/elucidar o conceito de dano por meio do con­ceito de interesses-direitos, malgrado sua plausibilidade e o fato de ter sido sugerido pelo próprio Mill, enfrenta um grave inconveniente: em decorrência de tal reconstrução o risco de circularidade parece contami­nar a concepção milleana de dano: dado que, ao que parece, é o con­ceito de dano que funda os direitos de uma pessoa - uma vez que Mill renunciara explicitamente a qualquer fundamentação contratualista ou jusnaturalista dos direitos individuais- então ele tem precedência ló­gica sobre o conceito de direito; por outro lado, uma vez que dano é definido como o tipo de lesão que viola direitos de uma pessoa, nessa medida tal conceito deixa de ter prioridade sobre o de direitos; preci­samos, pois, conhecer previamente quais são os direitos de uma pessoa para saber se houve ou não dano.7

Malgrado o risco de circularidade, John Gray, importante estudioso de Mill, propugna por uma interpretação do conceito de dano que re­corre à noção de interesse, entendendo o dano relevante, isto é, aquele que incide no escopo do Princípio rnilleano, como violação dos inte­resses vitais de um indivíduo. De acordo com sua leitura, os interesses mais fundamentais e dignos de proteção seriam, para Mill, os interesses em autonomia e segurança, considerando-se dano qualquer lesão grave a esses interesses vitais de terceiros. 8

Questões relacionadas ao significado e ao alcance do conceito dano na obra de Mill não estão ao abrigo de controvérsias. Além das conhe­cidas dificuldades interpretativas do texto de Sobre a liberdade, cabe­ria discutir também a legitimidade ou adequação do conceito escolhido. Que razões existem para se optar por um determinado conceito de dano em detrimento de outro? A discussão em torno do Moralismo legal e do Paternalismo estatal tem por exemplo uma importância que ultrapassa a de se oferecer uma exegese correta do texto de Mill, dado que põe em cena a questão da pertinência de o Estado zelar pela moralidade de seus cidadãos, de protegê-los contra danos auto-infligidos ou mesmo de lhes impor um comportamento que supostamente lhes acarrete benefícios.

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2. O Moralismo Legal

A questão de saber se a sociedade deve ou não exig ir de seus membros

um comportamento que seja ético, isto é, se lhe cabe proibir legalmente

condutas que, malgrado não causem dano a terceiros, são tidas por imo­rais, é uma questão sempre relevante, independentemente de qual seja a posição de Mill a respeito. A moralidade parece um assunto impor­tante demais para permanecer relegada apenas aos agentes envolvidos, excluindo-se dela qualquer participação da sociedade. Mesmo em se admitindo que certas opções sejam exclusivamente de foro íntimo de um indivíduo - por exemplo, a escolha de um adulto por uma determi­

nada religião - já não é tão c.onsensual que condutas envolvendo, por

exemplo, homossexualidade, prostituição, profanação de símbolos, etc., devam permanecer imunes à interferência do Estado. Admitindo-se que haja comportamentos que a sociedade considera atentatórios à moral, ou que constituam - como se tomou usual dizer - de I i tos sem vítima, ca­be indagar de que forma a autoridade deve reagir face a eles. Parece que o reconhecimento de um direito geral à liberdade ou de uma forte pre­sunção contrária à sua limitação não implica que tenhamos de admitir o direito de se praticar atos mora lmente ilícitos. Não por acaso H. L. A. Hart, nas primeiras páginas de sua obra Law, Liberty and Morality, for­

mulou a seguinte questão: "Será que o fato de uma determinada conduta

ser tida por imoral quando medida pelos padrões comuns, é suficiente para justificar que ela venha a ser considerada punível pela lei?"9

O moralismo legal responde afirmativamente à pergunta: defende que as leis devem incorporar os conteúdos da moralidade positiva, a qual não se pautaria tão-somente pela noção de dano. Sustenta que o fato de determinadas normas morais serem vigentes em uma comuni­dade constitui uma razão suficiente para que se outorgue a elas a força de leis positivas. Em contrapartida, da concepção milleana de liberdade

parece derivar um veto ao moralismo legal, uma recusa a que se consi­dere a moralidade ordinária apta a fornecer razões para que a lei coíba determinadas condutas. Como j á ressaltado, segundo Mill, ninguém po­

de ser obrigado a fazer ou deixar de fazer isso ou aquilo com base em

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que a opinião da maioria assim o requer, ou porque proceder desta ou

daquela forma seria mais sábio ou correto. Ademais, são muitas as pas­sagens textuais de On Liberty das quais se segue um voto de louvor à dissidência, à tolerância, aos experimentos de vida, aos intentos de ino­vação e à exigência de proteção política das minorias, dado que sem elas o progresso moral resultaria ameaçado. Basta ainda lembrar que

Mill deplora as perseguições de que foram alvo figuras como Sócrates e Cristo, ao que parece, acusados de imoralidade pelos padrões vigentes na sociedade. 10

A discussão em torno da pertinência de o Estado chamar para si a proteção da moralidade foi especialmente importante nos anos 50 so­bretudo na Inglaterra, quando foi criada uma comissão- sob a direção de John Wolfenden - com a incumbência de discutir a legislação penal no que diz respeito à homossexualidade e à prostituição. Também nos

Estados Unidos instituiu-se uma comissão dirigida por Herbert Wechs­ler pard redigir um projeto de Código Penal que delimitasse o alcance do Direito Penal em relação a condutas privadas. Ambas as comissões chegaram a uma conclusão semelhante: a de que se deve manter uma es­fera de moralidade privada que permane-ça longe do alcance da lei: uma posição que se inspirou explicitamente em Mill. 11 Os resultados dessas

comissões não contaram com a aquiescência de todos. Patrick Devlin­especialista em Direito Penal, e depois membro da Câmara dos Lordes -em um ensaio intitulado The enforcements of morais, publicado em 1965, se posicionou contrariamente à tese de que se há de manter um

âmbito da moralidade que deveria permanecer à margem da lei. Ademais, algumas passagens no ensaio de Mill parecem não deixar

dúvidas sobre sua recusa em admitir que a sociedade esteja legitima­

da a impor restrições ao comportamento de indivíduos, apenas porque a tomada de conhecimento de tal conduta por parte de outros lhes pro­

vocasse sentimentos de repulsa, horror ou rejeição. Sentimentos desse tipo, por maior que seja a intensidade com que se manifestem, não cons­

tituiriam motivo suficiente para se legitmmar interferência na liberdade

do indivíduo. Mill parece claro ao recusar que os limites da liberdade de um indivíduo sejam determinados pelas "preferências e aversões da

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sociedade." 12 Escreve que:

( ... )o princípio requer a liberdade de gostos e de ocupações: de dispor o plano de nossa vida para seguirmos nosso próprio caráter; de agir como preferirmos, sujeitos às conseqüências que possam resultar; sem impedimento da parte dos nossos semelhantes, enquanto o que fazemos não os prejudica, ainda que considerem a nossa conduta louca, perversa ou errada. 13

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Para reforçar ainda mais a tese de que Mill repudia uma imposição le­gal da moralidade, pode-se lembrar ainda que tal imposição geraria a médio ou longo prazo um enfraquecimento do discernimento moral dos indivíduos; com efeito, na medida em que eles fossem forçados a se abs­ter de determinados comportamentos - porque imorais - suas ações deixariam de ter a marca de sua opção e, com o tempo, isso acabaria es­tiolando sua capacidade de escolha, impedindo-lhes o desenvolvimento de um caráter genuinamente moral.

O principal trunfo do Moralismo Legal parece residir na facilidade que ele encontra para proibir determinadas condutas ou ações que nossa consciência moral tende a considerar imorais e desejaria vê-las repri­midas e proscritas da sociedade, sem fazer apelo à noção de dano. O moralista não aceita que algumas condutas que ele deseja ver proscritas da sociedade permaneçam na dependência de uma avaliação dos even­tuais danos que possam causar. Ele está convicto de que muitas con­dutas inaceitáveis pela moralidade ordinária ou por nossa consciência moral escapam da alçada de um Princípio do Dano. Um dos exemplos aduzidos na literatura para expor a suposta inadequação do Princípio do Dano é o da crueldade contra animais. Alega-se que o Princípio do Dano não teria como excluir ou proibir a crueldade contra animais. Des­de que esta seja, obviamente, praticada reservadamente, de sorte a não causar ruídos, mau cheiro ou qualquer tipo de incômodo ou tristeza a ninguém. Aparentemente, este seria um caso que exporia a inadequação ou insufiCiência do Princípio do Dano o qual deveria ser suplementado pelo Princípio do Moralismo Legal. Contudo, tal dificuldade pode ser contornada, estendendo-se o escopo do Princípio do Dano também aos animais. Assim, a inflição de maus-tratos a estes incidiria no âmbito da

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lei, por se tratar de um caso de dano e não pelo fato de a lei reconhecer

razões que se situariam para além da noção de dano. 14 Ainda assim os

adeptos de um Moralismo podem não se dar por satisfeitos, alegando que o importante não é apenas a restrição de certos comportamentos, mas as razões de sua restrição; isso posto, a crueldade para com animais deveria ser proibida por ser intrinsecamente má e não por causar dano ou em razão de se haver ampliado, de forma ad hoc, a noção de dano para fazer frente à dificuldade.

Em que pese a força das afirmações de Mill em favor da liberdade, existe uma passagem do ensaio On Liberty que parece criar dificuldades à tese do anti-moralismo de Mil!. Refiro-me àquela passagem na qual Mil! faz referência à violação de boas maneiras, as quais entrariam, se­gundo ele, na categoria de ofensas a outros, podendo ser proibidas. Mill menciona também os agravos contra a decência, como se pode averi­

guar:

... existem muitos atos que, sendo diretamente injuriosos somente aos próprios agentes, não deveriam ser legalmente restringidos, mas que, se praticados publicamente, constituem violações das boas maneiras, e incidiriam, pois na categoria de ofensas contra outros, podendo ser legitimamente proibidos. Desse gênero são os agravos à decência.15

O texto acima não deixa de ser desconcertante. Afinal, não é Mill o grande paladino da liberdade, o crítico da submissão aos costumes e da tirania da opinião pública? Inesperadamente ele parece se postar ex­

plicitamente a favor de uma restrição legal de atos que violam as boas maneiras, ou que constituem agravos contra a decência, aparentemente por ofenderem a sentimentos de terceiros. Ora, é forçoso que se admita que agravos à decência somente ofendem às pessoas através da media­

ção de suas crenças ou convicções mora is. Portanto, se não se tratar aí de uma concessão de Mill ao moralismo puro, que apregoa a condena­ção legal de atos - a despeito de sua inocuidade - pela simples razão de serem imorais, parece tratar-se todavia do reconhecimento de que há

ofensas a sentimentos que contam como dano e, mais ainda, de que exis­

tem danos que, aparentemente, se originam em razão das crenças morais sustentadas pela pessoa atingida.

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Contra a interpretação que busca derivar da passagem acima um comprometimento de Mill com alguma forma de moralismo legal, ain­da que atenuado, inclino-me a acreditar que não se possa/deva conceder peso excessivo a uma passagem de On Liberty que, admito, possa ge­rar alguma perplexidade, pois vai contra o espírito da obra e contra o que decorre das afirmações de Mill no restante de seu ensaio. No meu entendimento, comportamentos que podem ser tipificados como viola­ções às boas maneiras ou como agravos à decência podem ser considera­dos como ofensas a terceiros, mas não propriamente como danos, dado que não lesam interesses vitais de pessoas, mas apenas lhes causam al­guma tristeza, frustração, decepção. No intuito de tentar uma leitura da passagem acima que preserve a coerência com o restante do ensaio rnilleano, gostaria de lembrar que reações de indignação, perplexidade, tristeza, resultam normalmente de ações inusitadas; originam-se quase que inevitavelmente de ações contestadoras, que desafiam os costumes e questionam o estabelecido. Mas isso quer dizer que resultam de ações que, a rigor, são valorizadas por MHI, apóstolo da diversidade, da dissi­dência, da originalidade. Não se concebe, pois, que Mill possa invocar uma ofensa a sentimentos, que surge de modo quase inexorável quan­do o habitual é desafiado, como razão para se suspender a proibição de interferência na liberdade individual, como quer o moralismo legal.

Se Mill reconhece ser necessário promover a diversidade, dado que esta é condição necessária da autonomia, por sua vez indispensável ao progresso moral e social, 16 e se o progresso não se obtém de forma indolor, mas somente através do embate de opiniões ou de atitudes que impõem tristeza àqueles que consideram determinados comportamentos como imorais ou depravados, ele não pode considerar como dano aquilo que decorre de um meio para se a lcançar o progresso moral e social.

3. O Anti-Paternalismo de Mill

Mill se posiciona claramente contra o paternalismo. Ao estabelecer que o dano a outros é condição necessária para se justificar uma restrição à liberdade individual, o Princípio de Liberdade exclui toda uma gama de

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razões potencialmente invocáveis para se justificar qualquer restrição, entre as quais estariam as razões paternalistas, destinadas a proteger o indivíduo de danos auto-infligidos ou a compeli-lo a ações que suposta­mente lhe trariam beneficio.

As razões do veto milleano ao paternalismo são de ordem conseqüen­cialista. O autor de On Liberty julgava positivas as conseqüências de se permitir que os indivíduos tomem suas próprias decisões e exercitem sua autonomia. A interferência na conduta de uma pessoa, ainda que vi­sando seu próprio bem, costuma acarretar mais dano do que beneficio. 17

A despeito de seu posicionamento declaradamente anti-paternalista, existe entre os comentadores da obra milleana uma vertente influente, inaugurada por J. Feinberg, 18 segundo a qual Mill não teria mantido consistentemente seu anti-paternalismo, incidindo em um tipo de pater­nalismo fraco ou até mesmo forte. Examinemos primeiramente por que se atribui a Mill uma versão fraca ou moderada de paternalismo e depois voltemos nossa atenção para o suposto paternalismo forte de Mill.

Aqueles que atribuem a Mill um comprometimento com uma versão fraca de paternalismo costumam aduzir a conhecida passagem da ponte como uma instância clara de paternalismo ainda que fraco ou modera­do. Se uma pessoa está prestes a atravessar uma ponte ameaçada de ruir, Mill considera lícito impedir sua travessia com o fito de alertá-la sobre o perigo, pois é de se presumir que ignore o risco e não queira cair no rio. Tratar-se-ia de paternalismo, na medida em que a pessoa em ques­tão teria sido coagida, tendo tido sua liberdade cerceada. Tratar-se-ia, todavia, de paternalismo mitigado ou fraco, uma vez que a intervenção teria sido apenas temporária, estendendo-se tão-somente pelo tempo ne­cessário para informá-la do perigo. Se, uma vez informada, subsistisse ainda seu desejo de cruzar a ponte, e se se presume que seu estado emo­cional não cria obstáculos a uma deliberação racional, não mais seria legítimo impedir sua travessia.

Segundo Gray, o princípio de liberdade milleano permite que o Es­tado e a sociedade limitem a liberdade de uma pessoa para protegê-la de sua ignorância ou ilusão, sempre que as circunstâncias autorizem a supor que uma escolha desinformada ou baseada em informações equi-

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vocadas não corresponda ao que a pessoa faria se tivesse conhecimen­to dos fatos relevantes. Assume-se a verdade de alguns contrafatuais que repousam em hipóteses gerais sobre o comportamento humano nor­maJ.l9

Parece, todavia, que a imputação de paternalismo a Mill na passagem da ponte é questionável. Quem melhor interpreta este ponto é Samuel LaSelva que, em um importante artigo,2° rebate com êxito a acusação de paternalismo levantada contra Mill, procurando restaurar a coerência de Sobre a Liberdade. O referido comentador lembra com propriedade que ao defender que se impeça momentaneamente uma pessoa de atravessar uma ponte insegura, Mill não diz - como um paternalista o diria -que em tais circunstâncias uma violação da liberdade estaria justificada. Afinna, ao contrário, que não há, em rigor, violação de liberdade. E a razão apresentada para repelir a tese de violação de liberdade não tem a ver com a prevenção de um dano auto-infligido, mas com sua definição de liberdade. Uma vez que "liberdade," escreve Mill, "consiste em fazer o que se deseja" e dado que não se pode presumir que a pessoa que faz menção de atravessar uma ponte insegura queira cair no rio, não consti­tui violação de liberdade detê-la para alertá-la do perigo.21 A imputação de paternalismo parece dar por assente que "liberdade" para Mill signi­fica pura e simplesmente "ausência de coação," deixando de contemplar outros aspectos constitutivos da liberdade humana, como a autarquia e a autonomia.

Em geral os críticos entendem que a forma de paternalismo fraco, que teria sido tacitamente endossada por Mill, é não apenas sensata, mas plenamente aceitável até mesmo por um liberal. J. Feinberg, por exemplo, acha que não há por que se considerar que o paternalismo nunca possa se justificar, tampouco que se possa sempre justificá-lo; há circunstâncias22 que, segundo este autor, o tornam defensável.

Alguns parâmetros podem orientar quanto a este ponto: em primeiro lugar, faz-se necessário distinguir entre os casos em que alguém direta e voluntariamente causa danos a si próprio - como aquele que, infor­mado, ingere uma dose letal de arsênico - sendo o dano o próprio alvo da ação, e os casos em que alguém assume o risco de se auto-lesar -

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como aquele que fuma cigarros ou dirige em alta velocidade. É possível ainda distinguir-se entre riscos sensatos e insensatos. Somente algumas poucas ações são totalmente isentas de riscos. Alguns porém são pouco razoáveis, como resistir a um assaltante armado para não lhe entregar a carteira ou o boné. Pode-se distinguir ainda entre correr um risco voluntariamente - conhecendo-se suficientemente as possíveis conse­qüências, estando em estado de vigília e de clareza mental, inexistindo coação interna ou externa- e o assumir riscos em uma situação em que uma ou outra dessas condições não esteja preenchida. Feinberg conclui que, de acordo com Mill, a sociedade estaria autorizada a interferir na liberdade de um agente adulto que exibe uma conduta auto-lesiva, desde que a) tal conduta represente um risco não-razoável para si próprio, b) sempre que a decisão em favor de uma conduta auto-lesiva for involuntá­ria - de acordo com o significado acima especificado de "involuntário" - ,c) quando urna intervenção se faz necessária para se poder apurar se a decisão foi ou não livre. 23

Há ainda outra vertente interpretativa da passagem da ponte, muito comum entre os primeiros críticos de Mill, a qual faz valer que, na re­ferida passagem, o autor de On Liberty estaria dando voz a uma suposta "vontade real" do indivíduo e fazendo calar sua "vontade aparente." Ou ainda que Mill estaria priorizando a "liberdade positiva" do agente, em detrimento de sua "liberdade negativa." Esta interpretação, pode-se con­ceder, se beneficia de alguma evidência textual, pois, ao descrever a pas­sagem da ponte, Mill faz notar que o indivíduo que se põe a atravessá-la "não deseja cair no rio,"24 presumindo que ele não deseja morrer. Trata­se, todavia, de urna interpretação que não desfruta de maior respaldo no restante do ensaio milleano, além de ser uma leitura que favorece uma vinculação de Mill a paternalismos e a ditaduras benévolas que, sob ale­gação de conhecerem melhor a "verdadeira vontade" do indivíduo, se permite / se obriga a todo tipo de invasão na esfera privada. Parece que a leitura proposta por S. LaSelva,25 além de ser mais fiel ao texto de Sobre a liberdade, tem a vantagem de preservar a coerência deste, sem atribuir a seu autor concessões tácitas ao paternalismo. A interpretação que vê Mill enredado em um paternalismo fraco na passagem da ponte repousa,

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no entender de LaSelva, sobre o pressuposto equivocado de que Sobre

a liberdade entende a liberdade tão-somente como ausência de coação e

que esta acepção esgotaria o significado do termo tal comó empregado por Mill no referido ensaio. É preciso todavia que se leve a sério a de­

finição milleana de liberdade, formulada no parágrafo da passagem da ponte, como sendo a capacidade de o indivíduo fazer o que deseja. Uma leitura atenta permite reconhecer que a preocupação central de Mill em

seu ensaio é com a soberania, e esta não deriva simplesmente da ausên­cia de coerção, mas consiste na possibilidade de um indivíduo realizar aquilo que ele quer realizar; a prevenção de acidentes, longe de impor freios à soberania, pelo contrário, é condição de sua possibilidade, na

medida em que remove os obstáculos que a impedem. Se esta inter­pretação estiver correta, então a passagem da ponte não conflita com o restante da obra, porém mostra como a soberania há de ser assegurada quando acidentes ameaçam miná-la. Outrossim, a passagem da ponte não representa - como já afirmado - uma concessão tácita ao pater­nalismo, mas instancia o valor atribuído a Mill a ações benevolentes, a comportamentos solidários, ou àquilo que a ética tem por hábito cha­mar de "bom samaritanismo." Paternalismo e bom samaritanismo têm

um ponto em comum, que é a motivação da benevolência; todavia, se o paternalismo é compatível com restrições temporárias ou permanentes à liberdade, o bom samaritanismo repudia quaisquer restrições desse teor, ainda que as mesmas se revelem necessárias para se obter um supos­

to bem maior. Há outras passagens de Sobre a liberdade que parecem sustentar essa interpretação e mostram que Mill acreditava que o bom samaritanismo era um dever a ser imposto por sanções morais e legais. Assim Mill escreve:

Existem muitos atos positivos em beneficio alheio que o indivíduo pode legitimamente ser compelido a praticar - tais como depor num tribu­nal, suportar a sua parte razoável na defesa comum, ou em qualquer outro trabalho coletivo necessário ao interesse da sociedade cuja prote­ção goza; a executar certos atos de beneficência individual, tais como salvar a vida de um semelhante, ou intervir para proteger o indefeso contra o abuso - coisas essas que, sempre que o dever de um homem

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seja patentemente fazê-las, pode ele legitimamente ser responsabilizado perante a sociedade por não fazer. Uma pessoa pode causar dano a ou­tra, não apenas pelas suas ações, mas ainda pela sua inação, e em ambos os casos é justo responda para com a outra pela injúria.26

Isso não significa - como na seqüência argumenta LaSelva - que Mill tenha incorrido no erro de identificar o deixar de prevenir dano com o causar dano. Tal equivalência só existe em casos de omissão, isto é, quando há um dever de prevenir e este é negligenciado. Mill defende

o dever de ser um bom samaritano e sua argumentação longe de com­prometer os princípios assumidos em Sobre a Liberdade, encontra seu fundamento no fato de que todos os que recebem a proteção da socie­dade estão moralmente obrigados a retribuir semelhante beneficio; tal obrigação não consiste apenas em não causar dano aos interesses de ou­trem, mas também - como se deprende do texto acima citado - , em que cada pessoa arque com a parte que lhe cabe na defesa da sociedade e de seus membros conlra a injúria e o abuso.

Outra passagem na qual os críticos de Mill viram um indício claro de que ele teria resvalado para um paternalismo - desta vez, forte ou ex­tremado - , é aquela na qual o autor de On Liberty afirma que o Estado

não pode sancionar contratos voluntários de escravidão. Também no que se refere a esse ponto a imputação de paternalismo é gratuita: o próprio Princípio de Liberdade requer que o Estado não exija o cumprimento de contratos de escravidão. Isso não deriva de urna eventual concessão ao paternalismo, nem implica em violar o princípio segundo o qual "sobre si mesmo, sobre seu próprio corpo e espírito o indivíduo é soberano"27

mas resulta do paradoxo da soberania,28 do fato de que uma soberania ilimitada seria auto-anulante. Como veremos na passagem citada abai­xo, a fundamentação que Mill apresenta não faz menção à prevenção de

um dano auto-infligido, não sendo, portanto, paternalista, mas repousa sobre considerações de liberdade.

Neste e na maior parte dos países civilizados, por exemplo, uma con­venção pela qual alguém se venda, ou se dê para ser vendido, como escravo, seria nula c sem efeito - nem a lei nem a opinião lhe atribui­riam validade. O fundamento para assim limitar o poder de voluntaria-

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mente dispor da própria sorte na vida é visível, e muito claramente se patenteia nesse caso extremo. A razão para não interferir nos atos vo­luntários de alguém a não ser tendo em vista os outros é a consideração pela sua liberdade. A sua escolha voluntária é prova de que o assim escolhido lhe é desejável, ou ao menos suportável, e atende-se melhor ao seu bem, em conjunto, permitindo-lhe que utilize os seus próprios meios de o buscar. Mas, vendendo-se a si mesmo como escravo, ele abdica da liberdade, renuncia a qualquer uso futuro dela para lá desse único ato. Portanto, anula, no próprio caso, a verdadeira finalidade que justifica permitir-se-lhe dispor de si. Já não é mais livre, mas está, daí por diante, numa posição que não mais se presume surja da sua vontade de permanecer nela. O princípio de liberdade não pode implicar que ele tenha a liberdade de não ter liberdade. Não é liberdade ser autorizado a alienar a liberdadc.29

4. Concluindo

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No que diz respeito à concepção milleana de liberdade existem ainda di­versos problemas conexos que, malgrado sua importância, não puderam ser tratados no curto espaço deste trabalho .. Questões - dentre outras­relacionadas ao lugar sistemático atribuído por Mil! aos chamados deve­res positivos e negativos, à possibilidade de se causar dano por omissão - para mencionar apenas alguns exemplos - , aqui tão-somente suge­ridas ou mencionadas lateralmente, estão a demandar ainda uma inves­tigação aprofundada.

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Notas

1 Cf. Mill 1991, I, p. 54. "Eu encaro a util idade como a última instância em todas as questões éticas, mas a utilidade em seu mais largo sentido, a utilidade baseada nos interesses permanentes do homem como ser progressivo." 2 Idem, ibidem, p. 53. 3 Cf. Feinberg 1974, p. 55. 4 Cf Rees 1960, pp. 142-8. 5 Cf. Mill 1991, IV, p. 117. 6 Cf. Idem, ibidem, p. 118. 7 Devo esta importante observação a M. D. Farre1l. Cf. seu livro E/ derecho liberal, p. 152.

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8 Cf. Gray 1983, pp. 50,52 e 57. 9 Cf. Hart 1963, p. 9. Há tradução brasileira: Direito, Liberdade e Moralidade. 1° Cf. Mi111991, II, p. 67-8. 11 Cf. Laporta 1989, pp. 257- 8. 12 Cf. Mil11991 , I, p. 51. 13 Milll99l,Ip.56. 14 Cf. Feinberg 1974, pp. 66, 67. 15 Mil11991, V, p. 141. 16 Ver sobretudo o Cap. In de Sobre a liberdade. 17 Cf. Mil11991, IV, p. 126. 18 Ver o artigo "Legal patemalism," re-impresso em Feinberg 1980. A atribui­ção de paternalismo fraco a Mil! é adotada por J. Gray em Mil/ on liberty: a defence (1983, pp. 91-2), por C. L. Ten em Mil/ on liberty (1980, pp. 109-14) e por autores alemães como B. Grãfrath em John Stuart Mil/: Über di e Freiheit (1992), e B. Brülisauer em Moral und Konvention (1988, pp. 64-7). 19 Cf. Gray 1983, pp. 90-2. 20 LaSciva 1988, pp. 489-96. Ver também o interessante artigo de Ana de Miguel A1varez (Alvarez 1994), pp. 59- 70. 2 1 Cf. Mill1991, pp. 139-40. 22 C f. Feinberg I 974, p. 74. 23 Cf. Idem, ibidem, pp. 77-8. 24 Mil! 1991, V, p. 140. 25 Cf. LaSelva 1988. 26 Mil11991, pp. 54-5. 27 Mill1991, p. 53. Isso é sustentado por J. Feinberg. Cf. "Legal Patemalism" reimpresso em Feinberg 1980, p. 123. 28 Ver o artigo de S. LaSelva (1987), pp. 211- 23. 29 Mill1991, pp. 145- 6.

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INTUIÇÕES, PRINCÍPIOS E TEORIAS NAS FILOSOFIAS MORAIS DE RAWLS E HARE

Alcino Eduardo Bonella Universidade Federal de Uberlándia

Neste trabalho examinamos e discutimos alguns aspectos centrais do construtivismo de Rawls e do prescritivismo de Hare, duas propostas em filosofia moral. Algumas semelhanças e diferenças são apontadas. Rawls propõe um tipo de intuicionismo: não é possível escapar ao uso de intuições em qualquer teoria moral, e os fatos a que se conforma nosso pensamento normativo são nossas convicções bem ponderadas mais fortes. Hare propõe um tipo de racionalismo e sugere que qual­quer enunciado normativo precisa ser testado com requisitos teóricos que uma análise lógica dos conceitos morais nos fornece. Porém, tanto Rawls reserva um papel importante para a critica racional das intuições, quanto Hare o reserva para as intuições cotidianas, o que mitiga as dife­renças.

1. Filosofia Moral e Objetividade

É difícil negar que preocupações morais e considerações ligadas à éti­ca fazem parte dos fatos cotidianos. Discutimos cotidianamente sobre o certo e o errado, sobre se certas leis são boas ou más, nos posicio­namos a favor ou contra sobre ecologia, direitos humanos, igualdade sexual, auxílio aos pobres. Uma política ou uma lei podem ser aprecia­das pelos cidadãos de várias maneiras: como leis tolas ou inteligentes, econômicas ou custosas, como exageradamente repressivas ou frouxas. Uma maneira especialmente importante é quando julgamos se as leis são justas ou injustas, certas ou erradas. Este julgamento é, em geral,

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A. (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 345- 359.

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identificado como julgamento moral. (Cf. Feinberg 1973: 155; Lyons 1990: 15.)

Uma boa maneira de interpretar a demanda por avaliações morais é a compreensão de que o que queremos em tais problemas é uma orienta­ção objetiva, ou racional, para tomar decisões que estariam justificadas de um modo especial, ou seja, imparcialmente. Rawls sustentou em seu ''Esboço de um procedimento de decisão para a ética" (1951 ; c f. 1999, cap. 1) que a questão da objetividade ou subjetividade do conhecimen­to moral não se liga à questão de saber se existem entidades ideais de valor, ou se julgamentos morais são causados por emoções, ou sobre a existência de uma variedade de códigos morais no mundo. Ela se liga simplesmente à questão: existe um método razoável para validar ou in­validar regras morais dadas ou propostas, e as decisões feitas com base nelas? Para estabelecer a objetividade de regras morais e das decisões baseadas nelas nós deveríamos mostrar, como fazemos na ciência, que o procedimento de decisão é razoável e confiável (c f. Rawls 1999: 1- 2).

Hare sustenta em sua teoria 1 que a natureza e a lógica dos conceitos morais, especialmente da palavra "devo'', como empregados em proble­mas práticos, implicam na necessidade prática de realizar a exigência (prescritividade) e na universabilidade de sua aplicação. Isto significa que um juízo moral emprega um tipo de lógica que exige considerar a exigência nele contida como impessoal e não escapável para quem o utiliza, o que se aproxima do que entendemos ser um enunciado obje­tivo em geral. Por se basear numa lógica da linguagem moral que se diferencia da lógica da linguagem descritiva, Hare não gosta do tipo de aproximação com a objetividade que estamos sugerindo.

Para ele "juízos morais não são nem objetivos nem subjetivos, e a crença de que sejam uma coisa ou outra é resultado de um erro funda­mental ( descritivismo )" ( 1981: 206). Mas essa indicação do erro descri­tivista se aproxima da distinção feita por Rawls, acima, entre objetivida­de em sentido metafísico e em metodológico. Além disso, Hare defende que sua abordagem é cognitivista se isto significa que ela é racional. Pa­ra ele, não há prejuízo em dizer que o correto é o que seria prescrito por um obseiVador ideal qualificado (idem, p . 46).

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A aproximação entre objetividade e ética é, groso modo, adequa­

da para as abordagens de Rawls e Hare. Como esclarece Kymlicka

(1990: 7- 8), uma filosofia mora l assim esboçada acredita que nossas crenças morais podem ser certas ou erradas, que podem ser defendidas

ou atacadas com base em razões, e que tais crenças e razões podem ser organizadas em princípios morais sistemáticos e teorias da justiça. Isto excluiria compreensões do problema moral, e das respostas morais, em termos céticos (que não aceita a afirmação de que juízos morais podem ser certos ou errados, adotando a tese de que juízos morais são apenas estabelecimentos de preferências pessoais), subjetivistas (que não ex­cluiria a possibilidade de que os juízos podem ser certos ou errados, mas

não aceita a possibilidade de organizá-los sistematicamente em teorias da justiça) e relativistas (que não excluiria nem a possibilidade do certo

e do errado nem a de sistematizarmos uma teoria da justiça, mas defende que o tipo de razão a ser oferecida, e o tipo de princípio a ser sistema­tizado, não depende da racionalidade, mas sim das tradições históricas e costumes de cada comunidade). Assim, Rawls e Hare não possuem meta-éticas nem céticas, nem subjetivistas, nem relativistas, mas o que isto implica principalmente é que eles defendem um papel relevante para a critica racional.

Segundo Brandt ( 1998, cap. 1) há dois caminhos básicos que os filó­sofos tem tentado para responder à questão tradicional do bem e do di­reito: um analítico e um intuicionista. Hare está no primeiro, Rawls no

segundo. O analítico tenta colocar as questões em termos suficientemen­te mais claros e precisos para que se possa utilizar, para respondê-las, algum modo familiar de raciocínio. Para saber que tipo de apoio pode ser dado a certos tipos de asserções ou reivindicações é preciso ter claro o tipo de asserção que está em jogo, e este esclarecimento será dado ou por uma análise lógica dos termos lingüísticos utilizados nas asserções morais (o caso de Hare) ou por uma análise cognitiva do que seria ra­

cional desejar e fazer. caso fôssemos maximamente influenciados pela lógica e pela evidência factual (caso de Brandt).

O segundo caminho, o intuicionista, segue a idéia de que já temos opiniões bem justificadas sobre as respostas para as questões morais

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tradicionais, faltando apenas sistematizá-las coerentemente, o que pode gerar certa revisão das opiniões em algum grau. Se o caminho analíti­co busca conhecer com mais clareza e precisão o tipo de questão e de conceito presentes em questões morais, o caminho intuicionista segue a idéia de que o melhor modo de encontrar tal conhecimento consiste em olhar para os princípios que nós já possuímos e tentar construir as questões e conceitos de um modo consistente com a aceitabilidade des­tes princípios. Este é um dos aspectos que fizeram Rawls chamar tal abordagem de construtivista.

Há várias semelhanças entre os dois paradigmas, tanto em termos gerais, quanto em alguns cspecí.ficos. Os gerais são importantes dada a existência de outros paradigmas mais, como os relativistas e comunita­ristas. Porém, podem ser ainda muito superficiais para o debate entre os dois. Em geral pode-se dizer que ambos defendem abordagens normati­vas que operam com a possibilidade de que a moralidade não seja mera expressão de preferências particulares arbitrárias; que ambos fazem isto com um padrão analítico de elucidação de conceitos e formulação de teorias; que ambos são kantianos; que ambos tem um papel importante para a intuição moral entendida como opinião recebida, e para princí­pios gerais. Mas eles se dividem em vários pontos importantes sobre a noção de teoria moral e sobre o papel das intuições e dos princípios.

2. Concepções de Teoria Moral

Para Rawls a filosofia moral tenta descrever nossa capacidade moral de julgar e agir segundo avaliações do que é correto/justo, e uma teoria da justiça tenta descrever a capacidade de um senso de justiça como guia tanto das instituições quanto das ações individuais. Isto exige certa construção teórica, e uma teoria moral envolve a construção de certos princípios e argumentos que estão para além da vida cotidiana e suas intuições. No caso, a teoria da justiça como eqüidade se utiliza de ele­mentos da teoria da decisão racional, de conceitos abstratos como o de "posição original" e "véu de ignorância", da noção de um acordo unâ­nime sobre princípios de justiça, etc. Mas estas construções teóricas são

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apenas um lado da filosofia moral. Outro aspecto sempre presente são os juízos bem ponderados em que confiamos mais, como os que con­denam a escravidão, a discriminação racial e a intolerância religiosa. Eles são os fatos ou os dados de nossa teoria. Este apelo ao aspecto de congruência moral dos princípios de justiça com nossas convicções bem ponderadas, ou seja, este apelo acerca da razoabilidade da teoria da jus­tiça social, dentro de uma teoria moral mais ampla, é a principal forma de justificação de enunciados normativos elaborada por Rawls.

É plausível pensarmos que, se há alguma objetividade em nossas crí­ticas e/ou justificação de normas, esta objetividade consiste na adequa­ção dos juízos normativos às nossas intuições morais, entendidas como nossas convicções morais e politicas bem refletidas e aceitas generaliza­damente (cf. Lyons 1989: 145-6; Kyrnlicka 1990: 5-8). Rawls, apesar de recusar o intuicionismo moral como um tipo de pluralismo sem crité­rio de decidibilidade (1971: ss. 7-8), e como um tipo de realismo moral inadequado à democracia (1980: 1993), é um filósofo intuicionista do tipo apontado. Ou seja, ele é um intuicionista coerencial.

Parece estranho considerar deste modo a filosofia de Rawls. Ele ex­plicitamente diz que busca uma alternativa ao intuicionismo. Por outro lado, parece estranho a vários filósofos que Rawls chame de intuicionis­mo a um tipo de pluralismo moral, enquanto apele às intuições em todos os pontos cruciais de seu argumento, o que significa que ele concorda com este tipo de método (cf. Hare 1981: 75). Isto é tanto um modo não usual de caracterizar o intuicionismo, quanto um modo de adotar a caracterização usual, para a qual intuicionismo é o apelo às intuições morais como critério de validez última do argumento. Assim Rawls, na acepção não usual, não seria um intuicionista, mas na acepção usual, o seria(cf.Farrell994: 118-119).

Para Hare, o argumento da coerência toma a teoria de Rawls seme­lhante a uma teoria empírica. Os fatos contra os quais nossas hipóteses acerca da justiça devem ser checadas são nossos juízos bem ponderados em equilíbrio reflexivo. Esta aproximação parece mesmo sugerida por Rawls, para quem a característica falibilisl.d, presente na filosofia moral, é semelhante àquela presente no método científico, ainda que ele a re-

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cuse em alguns outros aspectos, como quando sugere que a física não pode alterar os dados observados para se adequarem a uma teoria mais atraente, enquanto o equilíbrio reflexivo, em sua abordagem, sugere isto. Isto resulta em muitos problemas, como o subjetivismo resultante desta "construção" de premissas. O que podemos por ora ressaltar é que os fatos morais para Rawls são o que as pessoas dizem ou pensam acerca de questões morais quando o fazem cuidadosamente.

O principal problema para este tipo de intuicionismo de Rawls é o que justificaria as intuições elas mesmas. Hare sugere que é plausível pensarmos que a objetividade em ética não consiste na adequação a in­tuições, nem a fato nenhum, pois isto incorreria numa falácia lógica trivial (derivar o "deve" do "é") e nos confinaria num tipo de subjetivis­mo. Se, em última instância, apelamos para as convicções partilhadas em algum tipo de consenso, o que podemos fazer quando não há con­vicções comuns e um consenso ao qual apelar? Este parece ser o caso em muitas e importantes questões morais.

Para evitar estes problemas, Hare sugere que não devemos compre­ender a teoria moral como uma teoria descritiva, cuja objetividade de­pende de um tipo de adequação entre certos enunciados teóricos, no ca­so, princípios de justiça, e certos fatos, no caso, as intuições que são partilhadas em urna dada comunidade. Também não devemos, para Hare, acatar a suposição básica do intuicionismo: que em algum mo­mento ou outro devemos apelar para as nossas convicções mais fortes para resolver o problema. Estas duas teses seriam um empecilho ao bom argumento em ética, pois excluem o objetivo de encontrarmos um apoio racional independente para o que devemos apoiar ou rejeitar mo­ralmente ( cf. Hare 1993: 2- 7 e 99- 107; 1981: 65-86).

A descrição da adequação a fatos não tem sentido em enunciados normativos do tipo "Devo dizer a verdade." Estes enunciados são apelos para que se atue de uma dada maneira, são prescrições. Quando utili­zamos este tipo de asserção, queremos a conformação da atitude prática de alguém, ou a nossa, com certa exigência. Não tem sentido interpretar que podemos justificar isto com condições de verdade do tipo descriti­vo, pois, ou a descrição estaria sujeita ao mesmo déficit de justificação e

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esclarecimento, ou estaria sujeita a variadas definições, tão variadas que

qualquer asserção normativa poderia ser dita verdadeira, dependendo do

que se define como objeto de adequação.

Fazer filosofia moral é uma contribuição para pensarmos com mais racionalidade nas questões normativas, principalmente através do escla­recimento da lógica contida em certos conceitos que são utilizados em

nossa linguagem. Para saber que apoio e que defesa podem ser dados a certos tipos de asserções ou reivindicações, é preciso ter claro o tipo de questão que está em discussão. Segundo Hare, o filósofo esclarece isto com um método lingüístico, que esclarece as questões pela análise cuidadosa do modo como as pessoas enunciam certas expressões. Com

esta análise seria possível obter o tipo de argumento que será razoável oferecer, dada a lógica dos conceitos utilizados.

Uma observação: quanto à concepção de uma teoria moral, a filoso­fia de Rawls pode colocar problemas para enquadrá-la como analítica, pois ela representou uma ruptura com a redução da filosofia à análise da linguagem, colocou em foco a necessidade de elaboração de teorias nor­mativas substantivas, e incorporou temas e idéias que estavam distantes

dos filósofos analíticos, como o contratualismo, e mais recentemente, o comunitarismo. Entre os dois filósofos, somente Hare é, de fato, um filósofo analítico. Isso sugere, porém, que esta tradição não silenciou-se totalmente quanto aos temas da filosofia normativa, o que é comum ser sustentado por pensadores rawlsianos.

3. O Papel das Intuições c dos Princípios

Para Rawls não é possível escapar ao uso de intuições em qualquer teo­ria moral. As convicções mais fortes que informam nossa teoria ou são coisas que partilhamos em nossa experiência humana comum ou são fruto de nossas tradições políticas (Rawls 1971, ss. 7, 9 e 87). Se, para os analíticos, primeiro temos de ter definição clara dos conceitos que utilizamos e sua lógica, para obter com isto um modo de argumentação, e com este modo, apoiar certas conclusões normativas acerca de proble­

mas práticos, para os intuiocionistas o caminho seria o inverso: primei-

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ro nós já temos crenças normativas abalizadas, depois nós olhamos para aquelas informações gerais da ciência ou da observação comum, pa­ra, com isto, por fim, conseguimos as definições mais apropriadas, que são generalizações normativas, ou seja, princípios morais (cf. Brandt 1998: 16, 234-5).

Rawls não toma tais intuições, porém, sem qualificá-las. Nossos juízos bem ponderados são o padrão de adequação, desde que tais juí­zos sejam os que expressem nossas convicções mais básicas (morais?), evitando-se tomar qualquer juízo para ser usado, e desde que, levando­se em conta vários juízos alternativos, tenhamos adotadas as convicções mais apropriadas a "dados morais." O chamado equilíbrio reflexivo de Rawls expressa tal argumento de coerência. Nossos juízos bem ponde­rados são os juízos intuitivos mais básicos, selecionados dentre vários juízos práticos pelas circunstâncias especiais de sua formulação (elimi­nação da atenção excessiva ao interesse próprio) e pelo acordo que existe em torno deles, de que são os mais fortes moralmente.

Nossos juízos são bem ponderados quando são feitos em circunstân­cias especiais que não permitam que ocorram distorções do interesse próprio excessivo, por exemplo, que sejam feitos com certa habilidade adequada de raciocínio (inferências, generalização, etc.), com oportu­nidade de desenvolvê-lo (não estejamos pressionados pelas necessida­des e pela parcialidade do envolvimento, por exemplo), com um dese­jo de acertar. Esses juízos podem conter muitas irregularidades, pois nem sempre estão presentes tais circunstâncias. Para superar tais irre­gularidades e distorções, a fi losofia moral se esforça por confrontar os princípios gerais, subjacentes a nossas convicções bem ponderadas, e os j uízos particulares que as expressam diretamente.

Já para Hare, o apelo a intuições morais não é adequada. Em argu­mentos morais, estamos exigindo um comportamento, e isto suscita a questão de sua justificação prescritiva, já que o uso de enunciados pres­critivos, com o operador "devo", implica entre outras coisas que qual­quer pessoa deve o mesmo em situações semelhantes, e, por isso, "eu devo." Não estamos enunciando uma asserção descritiva que levanta a questão de sua verdade factual. Esse tipo de justificação é explicado por

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Hare como exigência lógica presente na linguagem moral. Se nós usa­mos o operador "devo", então, fazer julgamentos diferentes para situa­ções exatamente similares em suas propriedades descritivas, é incorrer numa contradição. Então, não precisamos apelar para nossas próprias intuições morais, pois podemos oferecer um argumento para qualquer prescrição, argumento baseado na lógica da universalização. Isto ofere­ceria, para Hare, a chave para nos livrarmos do subjetivismo diante dos conflitos morais, presente no intuicionismo.

Poderíamos pensar que as intuições, como dados, são elas mesmas prescrições aceitas, e não fatos; são exigências. Mas o problema é que elas são, para Rawls, exigências morais e exigências morais partilhadas pelos ouvintes do argumento. Por isso podem ser usadas como premis­sas nas discussões morais. Então, julgamos prescrições e exigências morais com outras prescrições e exigências morais, o que parece cir­cular. Poderíamos dizer que é o equilíbrio reflexivo entre intuições e princípios que serve de padrão, mas este equilíbrio pode ser apenas a sistematização coerente de um conjunto de crenças, algo que as expõe ordenadamente e, assim, as explica. Mas o problema está em mostrar que estão justificadas, ou seja, que não são arbitrárias.

Para Rawls, o não arbitrário depende das crenças morais e é ele pró­prio uma intuição presente na nossa cultura política pública. Então, dois conjuntos de crenças opostas, mesmo quando refletidas com mais cuida­do, não renderão um equilíbrio. Se o renderem, permanecerá a questão acerca de sua natureza, se será um bloco mais justificado que o anterior, daí sugerindo aos ouvintes um compromisso racional com ele, ou se será uma solução de compromisso entre posições divergentes, daí sugerindo um equilíbrio, o que Rawls chamará de um consenso como "mero mo­dus vivendi". Mas porque tal equilíbrio, na forma de uma solução de compromisso, seria moral?

Para Hare, o apelo a intuições possui uma vantagem prática, pois ele ressalta aquelas opiniões mais abalizadas que recebemos da tradi­ção. Estas intuições são importantes por razões psicológicas e práticas ligadas ao ensinamento moral e à ação cotidiana, onde a ação é feita sem a oportunidade de uma reflexão cuidadosa e demorada sobre seus

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muitos aspectos. As intuições apontam para tipos de ação que em ge­ral nos conduzem para as decisões mais acertadas, ou seja, aquelas que, quando analisadas criticamente, passariam no teste racional da universa­lização da prescrição de Hare, teste que implica na busca das melhores conseqüências para todos os envolvidos. As intuições não são fatos pa­ra adequarmos nossas hipótese, no caso, nossos princípios. Elas são os próprios princípios gerais, ou seja, cursos de ação simplificados e generalizados em máximas para efeito de aprendizado e uso prático cor­riqueiro.

Neste sentido, continua a existir em Hare uma função metodológica para nossas intuições: enquanto num nivel crítico pensariamos com cui­dado em quais princípios específicos de ações são corretos, porque são melhores para o interesse geral, no nível prático da atuação cotidiana, em razão de limitações psicológicas, apoiamos aqueles princípios ge­rais que temos recebido por educação moral, e que tendem a expressar economicamente (e isto é uma hipótese) nossas prescrições críticas. Em momentos de "strees" da vida prática, sem tempo e condições de ponde­ração detalhada, adotariamos tais princípios gerais em nossa vida diária, sem nos perturbarmos muito, ou seja, de uma maneira intuitiva.

Em Rawls, a confrontação entre intuições mais firmes e princípios gerais pode mostrar que certos princípios (ou que certos juízos particu­lares, pois não se dá preferência a priori a qualquer das duas instâncias) não satisfazem pressuposições mais razoáveis de que não abrimos mão, então nós precisamos modificá-los. Isso parece significar que há intui­ções mais importantes que outras, mas não fica claro como saber disto a não ser intuitivamente, ou seja, tomando as convicções que estão presen­tes em nossa cultura. Isso se dá porque Rawls admite que os princípios e os argumentos em seu favor devem ser construídos de modo a render conclusões congruentes com estas convicções. Aceita-se que já temos um certo padrão nonnativo abalizado. Nossa reflexão posterior modi­fica, ora os princípios gerais, ora os juízos particulares, tendo em vista algo como que o total de asserções abalizadas resultantes. Mas como quantificar ou medir de alguma maneira tal coisa?

Rawls adota uma forma de deontologia em que os princípios de jus-

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tiça operam como mandamentos restritivos quase-absolutos. Os prin­cípios seriam definidores de uma prática institucional para a qual jul­gamentos particulares acerca das conseqüências de sua aplicação em casos concretos não podem servir de desculpa para desvios da norma. Por causa disto, Rawls sustenta que o utilitarismo, que possibilita ra­ciocínios críticos acerca das conseqüências para qualquer princípio ou ato, seria contra-intuitivo e "sacrificiaJ", ou seja, aceitaria o sacrifício de uns em favor de outros, sem restrições. Num texto anterior à Teoria da Justiça (1954; cf. Rawls 1999: cap. 2), Rawls sustentou um tipo de utilitarismo de regras que solucionava o problema distinguindo justificar wna nonna e justificar uma ação que cai sob ela. Mas ele modificou sua posição para defender uma teoria alternativa para a justificação das nor­mas, uma teoria construtivista coerencial como a que vimos. As críticas a esta teoria, no final, parecem bem colocadas e sugerem-nos discordar do anti-conseqüencialismo de Rawls.

Para Hare, princípios gerais são uma forma inteligente de organizar a opinião recebida da tradição em uma forma geral e simples. Tais prin­cípios são necessários por motivos práticos e psicológicos. Para que possam ser ensinados, princípios morais não podem ser muito especí­ficos, que conteriam muitas palavras e diretivas, além de ser necessá­rios para situações específicas. O ensino moral quer, e de certo modo precisa, preparar o educando para situações padrão. Daí a simplifica­ção e a generalização em forma de princípios, o que tradicionalmente ocorre, por exemplo, nas grandes religiões. Além disso, na vida co­tidiana, em geral, não temos tempo e condições subjetivas adequadas para pensarmos criticamente em todas as decisões que devemos tomar. Os princípios bem fincados em nossa consciência são uma das soluções para este problema, já que, por hipótese, serão os princípios que mais levarão a adotarmos a conduta melhor. Mas para a sua escolha e para a sua justificação, especialmente no caso de conflitos morais que nos exi­gem decisões importantes, precisamos que o raciocínio crítico entre em cena, e então, princípios específicos podem ser formulados e justifica­dos. Nesta visão, exceções a regras gerais podem não só ser formuladas, como podem consistir na coisa certa a fazer.

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Esta teoria meta-ética da lógica dos conceitos morais fornece a base para a teoria normativa propriamente dita. Para Hare, a idéia de pres­

crição universal implica em bases utilitaristas de raciocínio normativo, pois universalizar a prescrição implicaria em dar igual peso a todos os interesses afetados, e dar igual peso implica no princípio utilitarista, que manda escolher a ação que, dentre as alternativas, maximiza o interesse geral de todos os afetados. Este é o tipo de argumento racional que po­demos oferecer para defender uma intuição diante de outra, para apoiar um princípio diante de outro, para escolher entre princípios em conflito.

As intuições e princípios gerais precisariam ser justificados de um modo independente, ou seja, sem apelar para eles próprios e para um suposto consenso. Então eles devem ser testados e desafiados pelo ti­po de utilitarismo apontado, ou seja, pela lógica dos conceitos morais vinculada a conhecimentos empíricos relevantes sobre a implicação da universalização da prescrição para os interesses dos seres afetados. Te­mos então os princípios metodológicos para justificarmos os princípios gerais e para defendermos princípios mais específicos para situações di­ferentes. Estes princípios metodológicos são os princípios lógicos da prescritividade e da universabilidade, o princípio empírico, decorrente para Hare dos lógicos, da implicação utilitária (o significado factual das várias prescrições alternativas), os princípios psicológicos da aprendi­zagem moral, dentre os quais o da simplificação de exigências para a capacidade de avaliação bem ponderada. As avaliações e os cálculos constituem o raciocínio crítico, que nos ajuda na decisão diante de con­flitos.

4. Algumas Reflexões Conclusivas

Ambos os filósofos se pretendem, com suas teorias e princípios nor­

mativos, herdeiros de Kant. Vimos que Rawls adota um tipo de cons­trutivismo coerencial e deontológico, enquanto Hare adota um tipo de racionalismo analítico e utilitarista. Poderíamos pensar que, neste caso,

somente Rawls seria de fato um kantiano. Mas, além de desconside­

rar o que o próprio Hare defende de sua abordagem, desconsideraria a

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alegação de compatibilidade entre o utilitarismo e Kant, já defendida

por Mill, ao sustentar algo parecido com o argumento de Hare, ou se­ja, que o princípio de utilidade implica na igual consideração dos seres

afetados e vice versa, e que isto equivale ao imperativo categórico de Kant, que diz para adotarmos somente as máximas que possam servir como lei universal. Além disto há muitos problemas levantados quanto

ao kantismo de Rawls também, já que ele interpreta Kant com a mes­ma idéia coerencial de razão prática, desconsiderando a semântica dos juízos morais de Kant e sua vinculação com os sentimentos (cf. Lopa­rié 1998: 73- 86). Neste ponto, Hare possui uma teoria mais adequada, especialmente quanto à oposição entre deontologia e utilitarismo.

Rawls e outros filósofos kantianos recentes colaboraram para uma maior compreensão da necessidade de uma ampliação e de um enrique­

cimento do papel de uma teoria filosófica para a resolução de questões substantivas. Neste ponto, podemos dizer que Rawls possui uma vi­

são mais adequada e mais rica do que seja uma teoria moral. A obra de Rawls tomou vitoriosa a demanda de Frankena, para quem investi­

gações analíticas de pequena escala não seriam suficientes para escla­recer a natureza e as funções da moralidade, para o que precisaríamos

de estudos de história da ética, sociologia e psicologia, como também epistemologia.

Por outro lado, sua teoria normativa intuicionista abre o flanco pa­ra a crítica de relativismo subjetivista. O problema do intuicionismo é

não ter uma boa metodologia para lidar com o conflito moral. Nele, as pessoas que têm convicções divergentes ficarão sem apoio. Mesmo as que têm as mesmas convicções podem ficar sem um esclarecimen­to adequado da justificação delas. Eu posso acreditar profundamente que não devo mentir e que não devo colaborar com assassinos. Então, numa situação em que não mentir colocará seriamente em risco a vida

de a lguém, encontro-me num di lema. Estes dilemas nos levam, ora ao questionamento do que recebemos da tradição e da educação recebida, ora ao questionamento da situação em que aplicamos os princípios re­

cebidos e da possibilidade de novos princípios. Para nenhum destes o apelo à intuição funcionará.

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Também a concepção dos princípios de Rawls e dos deontologistas não parece muito razoável como descrição da prática real das pessoas como a percebemos, o que literalmente não é um argumento a seu fa­vor, mas pelo menos contrabalança a opinião de que os intuicionistas se enquadram melhor na moralidade cotidiana. A questão é que a depen­dência de intuições e de princípios gerais apoiados nestas não é uma boa maneira de argumentar em ética. Como escreve Hare, os intuicionistas, antes de retirar muito conforto de seu apoio nas intuições, deveriam ter uma conversa séria com um racista branco, para quem é errado tratar os negros com igualdade, e com um machista que acha correto assassinar mulheres em nome da honra (cf. 1994: 462).

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Notas

1 Cf. Hare 1981: cap.l; 1993: cap.ll; 1994.

abonella@ufu. br

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A CATEGORIA DO DIREITO NA ÓTICA DO AGIR COMUNICATIVO: UMA ARMADURA PARA O

SENTIDO NOS LIMITES DA LINGUAGEM

Delamar José Volpato Dutra Universidade Federal de Santa Catarina!CNPq

A racionalidade comunicativa implica num poder de questionamento in­finjto sobre todas as proposições, com o objetivo de chegar a um con­senso, a um entendimento. Ela instaura um processo discursivo sem garantias, falível, implicando, também, na medida em que se desvincu­la de formas de vida tradicionais, apenas uma fraca força motivacional, não garantindo força a um agir motivado por ela, como era o caso da ra­zão prática trarucional. Assim, nós estamos condenados a não poder sair da absoluta liberdade e indeterminação da linguagem e da argumenta­ção e somos, por conseqüência, condenados a compreender a realidade a partir daquilo que aí é estatuído. O presente trabalho visa a demonstrar como, dentro desse contexto, o mundo vivido, as instituições e, princi­palmente, o direito têm a função de amortizar as instabilidades de tais formas de vida no que concerne à ação. Assim, descortina-se porque a moral comunicativa remete ao direito complementarmente e como, por outro lado, fornece uma explicação plausível enquanto filosofia do di­reito.

1. O Sentido nos Limites da Linguagem

Trinta anos depois da publicação de "A mudança estrutural da esfera pública," Faktizitiit und Ge/tung culmina aquele projeto. Sua filosofia do direito oferece um conceito sociologicamente informado de direito e do sistema direito, uma consideração normativa do princípio do direito e

Dutra, L. H. de A. & Mortari, C. A (orgs.) 2000. Princípios: seu Papel na Filosofia e nas Ciências. Coleção Rumos da Epistemologia, volume 3. Florianópolis, NEL, pp. 361-369.

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do estado constitucional, uma tentativa de unir um tratamento empírico e normativo da democracia e uma consideração sobre o contexto social exigido pela democracia. 1

A racionalidade comunicativa, composta por pressupostos quase­transcendentais de coerção contra-fáticos, implica num poder de ques­tionamento infinito sobre todas as proposições, com o objetivo de chegar a um consenso, a um entendimento. Ela instaura um processo discursivo sem garantias, falíve1 ,2 implicando, também, na medida em que sedes­vincula de formas de vida tradicionais- onde cujo risco de dissenso é interceptado na própria dimensão de validade, ligando, ambivalente­mente, nessa dimensão, faticidade e validade, do que é índice, ainda hoje, o tabu do incesto3 - apenas uma fraca força motivacional, não garantindo força a um agir motivado por ela, como era o caso da razão prática tradicional.4 Temos, assim, uma "tensão entre idéia e realida­de que irrompe na própria facticidade de formas de vida estruturadas linguisticamente."5 Um tal dissenso, constitutivo da racionalidalidade comunicativa,6 decorre de uma indecidabilidade7 última de tudo o que é vaporizado no âmbito do nomos comunicativo. Aí, "como ninguém dis­põe diretamente de condições de validade que não sejam interpretadas, a 'validade' [ Gültigkeit] tem de ser entendida epistemicamente como 'va­lidade que se mostra para nós' [Geltung]."8 Nós estamos condenados a não poder sair da absoluta liberdade e indeterminação da linguagem e da argumentação e somos, por conseqüência, condenados a compreender a realidade a partir daqui lo que aí é estatuído.9 Dentro desse contexto, o mundo vivido, as instituições e o direito têm a função de amortizar as instabilidade de tais formas de vida. 10 Assim, descortina-se porque a moral comunicativa remete ao direito complementarmente e como, por outro lado, fornece uma explicação plausível ao nível da filosofia do direito. 11

Trata-se, agora, portanto, de aplicar urna tal perspectiva, inicialmen­te posta ao nível do significado, à teoria da ação, caso queiramos ou venhamos a coordenar nossas ações com os outros por intermédio das forças ilocucionárias dos atos de fala. Nesse sentido, o conceito de agir comunicativo, 12 no qual os agentes orientam-se por pretensões de va-

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!idade, adquire relevância para a "construção e manutenção de ordens sociais: pois estas mantêm-se [bestehen] no modo do reconhecimento de pretensões de validade normativas." 13 Quer-se dar conta de uma in­tegração social não violenta, despida de garantias meta-sociais. Para isso Habermas parte da consideração, sociológica, da necessidade do agir comunicativo para dar conta da integração social: "se for verdade, como eu penso, seguindo Durkheim e Parsons, que complexos de inte­ração não se estabilizam apenas através da influência recíproca de atores orientados pelo sucesso, então a sociedade tem que ser integrada, em úl­tima instância, através do agir comunicativo."14 O que implica em dizer que uma regulamentação normativa de interações estratégicas carecem de força social integradora, pois não conseguem revestir a validade, já separada da faticidade, com a força do fático. 15

2. Uma Armadura Para o Sentido nos Limites da Linguagem

Para dar conta desse problema é que surge o direito, provido pela coa­ção do direito objetivo.16 Quando o direito natural, cujo ponto de par­tida são os direitos naturais subjetivos, cede lugar ao direito positivo, momento no qual o uso legítimo da força passa a ser monopolizado pe­lo estado, surge, ao mesmo tempo, em contrapartida, direitos de defesa contra o poder do estado. 17 Kant, a partir do conceito de legalidade, busca explicar o modo complexo de validade do direito a partir da no­ção de direitos subjetivos. Para Kant, a validade jurídica estabiliza a relação entre validade e faticidade, a qual se apresenta a partir da rela­ção entre liberdade e coerção. 18 Kant constrói, então, a partir disso, o conceito de legalidade, pois por razões analíticas não é possível exigir, coativamente, a obediência das normas jurídicas por dever, mas, observa Habermas, por outro lado, a associação de arbítrios entre si, ou seja, o problema da integração social, só pode ser resolvido sob o ponto de vis­ta moral, 19 o qual, como sabemos, introduz a questão da legitimidade ou da validade normativa das regras, as quais merecem o reconhecimento não coagido e racionalmente motivado, isto porque "o embate contin­gente de interesses não é capaz de produzir uma ordem social,"20 o que

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levou Durkheim a postular um consenso prévio sobre valores para ex­plicar a formação e a estabilidade de padrões de comportamento. Isso é tarnbém o que é apresentado por Kant na segunda parte do imperativo categórico jurídico: limitar a minha liberdade para poder conviver com a liberdade dos outros segundo uma lei universal de liberdade.21 O con­ceito kantiano de legalidade resolve o paradoxo de normas que têm que ser obedecidas independentemente de sua avaliação moral: "normas de direito são, ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, leis da coerção e leis da liberdade.'>22

Temos, aqui, uma dupla validade do direito, coerção e liberdade. As­sim, sob um ponto de vista empírico, o direito pode ser analisado somen­te a partir do ponto de vista da coerção. Porém, sob o ponto de vista da validade encontramos um amálgama de conceitos complexos, ou seja, o sentido da validade do direito só se explica pela referência simultânea à sua validade social ou fática [ Geltung] e à questão da legitimidade [ Gül­tigkeit]. Essa validade social decorre de uma aceitação fática ou natural por parte dos membros da sociedade. O direito, por seu lado, apóia-se sobre uma faticidade artificial, estabelecida a partir de sanções.23 No que conceme à legitimidade, ela faz referência ao próprio caráter dis­cursivo do resgate da validade de uma proposição.

Desta forma, o direito refere-se tanto à faticidade da validade so­cial, quanto à legitimidade strictu sensu e pode, portanto, ser cumpri­do a partir de uma dupla perspectiva: a do agir estratégico e a do agir comunicativo. Isso é possível porque o direito libera os motivos morais para a obediência ao seu regramento. Por outro lado, observa Habermas, ao mesmo tempo esse regramento ergue uma pretensão de validade nor­mativa, a qual implica um reconhecimento racionalmente motivado e, portanto, uma obediência às regras por respeito à lei; isso mostra que o direito positivo tem que legitimar-se.24 Na dimensão da validade do di­reito, a faticidade interliga-se com a validade "porém não chega a formar um amálgama indissolúvel - como nas certezas do mundo da vida."25

As certezas do mundo vivido, segundo Habermas, subtraem-se à dis­cussão. No direito essas duas dimensões são descoladas, isso na medida

em que a imposição do direito pelo estado interliga-se com a força nor-

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mativa do direito, que tem a pretensão de ser racional, já que pretende garantir a liberdade e fundar a legitimidade.26 Para dar conta dessa no­ção de legitimidade, tensa entre faticidade e validade, o direito moderno absorve o pensamento democrático de Kant e Rousseau.

Devemos distinguir um direito que impõe sanções e a faticidade da legislação.27 No primeiro caso, a permissão para a coerção passa pelo conceito de autonomia, sendo deduzida de uma expectativa de legitimi­dade. A isso podemos chamar de positividade do direito, a qual vem acompanhada por essa expectativa de que haja uma aceitação racional da norma pelo sujeito autônomo, como lei de sua liberdade, mediante o processo democrático. Nessa positividade não se mostra a faticidade de qualquer norma, mas daquelas que se pretendem legítimas. Numa so­ciedade pós-tradicional, o direito coercitivo, segundo o comportamento legal, só consegue garantir sua força integradora se os destinatários sin­gulares puderem se considerar como autores dessas regras. O direito coercitivo moderno pode apenas mediar a liberdade comunicativa, mas não substituí-la.28

Essa conexão interna entre faticidade, validade da imposição do di­reito e legitimidade é uma hipoteca demasiado pesada para a integração social, a qual é descartada do ponto de vista sociológico. 29 Entra em jogo, nesse ponto, uma faticidade social que não mantém mais conexão com a legitimidade da ordemjuridica. Faticidade e validade se separam e o índice da eliminação da legitimidade da ordem do direito está na introdução de fatos sociais que intervêm de fora na ordem jurídica. Ora, é por isso que Habermas trabalha um "princípio extremamente amplo, capaz de incorporar as teorias filosóficas da justiça e as teorias socioló­gicas do direito,"30 com a finalidade de tratar o direito de um ponto de vista mais realista: "sem a visão do direito como sistema empírico de ações, os conceitos filosóficos ficam vazios. Entretanto, na medida em que a sociologia do direito se empertiga num olhar objetivador lançado a partir de fora e insensível ao sentido da dimensão simbólica que só pode ser aberta a partir de dentro, a própria contemplação sociológica corre o risco de ficar cega."31 Porém, a tarefa própria da fi losofia consiste em "tomar transparentes os conceitos fundamentais."32

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Ora, introduzido o conceito de legitimidade como fundamental para a filosofia do direito e mesmo para a sociologia do direito, Habermas pode tomar "como ponto de partida os direitos que os cidadãos têm que atribuir uns aos outros, caso queiram regular legitimamente sua convi­vência com os meios do direito positivo.'>33 Por isso, para Habermas, o direito deve comportar uma relação dupla: com a moral e com a política. Ou seja, "a positividade do direito não pode fundar-se somente na con­tingência de decisões arbitrárias, sem correr o risco de perder seu poder de integração social. O direito extrai sua força muito mais da aliança que a positividade do direito estabelece com a pretensão à legitimidade.''34

Essa questão da integração social surge em sociedades pós-tradicio­nais, as quais não podem contar mais com um complexo de normas regradas pela autoridade e pelo costume sem maiores questionamentos, ou seja, formas de vida para além da tradição. Nessas sociedades surge uma situação paradoxal, nas quais o agir comunicativo não-circunscrito não tem condições de dar conta, por si só, do fardo da integração social, mas também não pode se livrar desse fardo. "Se depender dos próprios recursos, ele apenas consegue domesticar o risco de dissenso embutido nele, porém através de uma intensificação do risco, ou seja, prolongan­do os discursos.''35 A positivação do direito, antes apoiado no sagrado e na eticidade, vai fornecer urna saída para esse problema, para esse paradoxo, constituindo-se num "mecanismo, com o auxílio do qual uma comunicação não-circunscrita pode aliviar-se das realizações de integra­ção social sem se desmentir;'36 isso na medida em que, ao mesmo tempo circunscreve e libera o risco de dissenso. Tal circunscrição dá-se no âm­

bito do mundo vivido, onde acontece, como nas sociedades tradicionais, uma fusão entre faticidade e validade. Por isso, é preciso compreender a diferença categoria! entre aceitabilidade e simples aceitação.

Nas sociedades tradicionais, a convicção pagava o preço de uma li­mitação à comunicação; as sociedades pós-tradicionais substituem essa convicção pela sanção,37 implicando, também, a separação do momento da faticidade e da validade juridica. De um lado, isso garante um míni­mo de integração social. Por outro lado, essa separação que possibilita

que uma norma se mantenha somente pela sanção, determina que tanto

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a positividade do direito, quanto a sua legitimidade façam jus à comu­nicação não circunscrita. Dado esse caráter dual do direito moderno, capaz de estabilizar os riscos da comunicação, mas também a eles sub­metido, podemos compreender dois aspectos do direito: a positividade e a legitirnidade.38 Temos o entrelaçamento estrutural entre aceitação [fática] e aceitabilidade. No direito essa tensão é fortíssima, pois, ao ní­vel político, ele remete à idéia de autolegislação, ou autonomia política dos cidadãos, que dá legimidade às regras. A idéia de estado de direito visa a circunscrever o poder político à idéia da autonomia política dos cidadãos. 39 Trata-se, nesse caso, bem entendido, de uma subjugação da auto-compreensão normativa do direito, tratando-se de uma relação externa entre faticidade e validade, mas, mesmo assim, o importante é que o direito, enfim, nutre-se de da tríplice fonte de integração social: solidariedade [comunicação], mercado [$]e estado [poder], por isso o direito continua sendo um meio ambíguo de integração social, podendo conferir aparência de legitimidade a um poder ilegítimo. Nesse sentido, a tensão entre o idealismo do direito constitucional e a materialidade do direito econômico, que reflete a distribuição desigual do poder social, encontra eco no desencontro das abordagens empíricas do direito e das abordagens filosóficas do direi to, o que nos permite concluir com Kant "a ciência puramente empírica do direito é (como a cabeça das fábulas de Fedro) urna cabeça que poderá ser bela, mas possuindo um defeito - o de carecer de cérebro.'"'0

Bibliografia

Habermas, J. 1996. Between Facts and Norms: Contributions to a Discourse Theory of Law and Democracy. (Trad. W. Regh: Faktizitãt und Geltung: Beitrãge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats). Cambridge: Polity Press.

- . 1997. Direito e democracia: entrefaticidade e validade. 2 vols. (Trad. F. B. Siebeneichler: Faktizitãt und Geltung: Beitrãge zur

Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats.) Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

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Kant, I. 1980/ 1985/1986. CEuvres Philosophiques. 3 vols. (Ed.

F. Alquié; Pléiade). Paris: Gallimard. Lenoble, Jacques. 1994. Droit et communication: la transformation du

droit conemporain. Paris: Cerf. Regh, Wiliam. 1996. "Translator's Introduction." In Habermas 1996.

Notas

1 Cf Regh 1996, pp. IX- X. 2 "A tensão ideal que irrompe na realidade social remonta ao fato de que a aceitação de pretensões de validade, que cria fatos sociais e os perpe­

tua, repousa sobre a aceitabilidade de razões dependentes de um contex­to, que estão sempre exposta ao risco de serem desvalorizadas através de argumentos melhores e processos de aprendizagem que transformam o contexto." (Habermas 1997, p. 57. De agora em diante esta obra será abreviada por TrFG.) 3 Cf. TrFG, p. 43, 47. 4 Cf TrFG, p. 21. 5 TrFG, p. 21 6 Cf. TrFG, p. 40. 7 Cf a esse propósito Lenoble 1994. 8 TrFG, p. 32. 9 Cf TrFG, p. 32. 1° Cf. TrFG, p. 25. 11 Cf. TrFG, p. 23-4. 12 O agir comunicativo situa-se entre discurso e mundo vivido (cf. TrFG, p. 40-l). 13 TrFG, p. 35. 14 TrFG, p. 45. 15 Cf. TrFG, p. 4-7. 16 Cf. TrFG, p. 47. 17 Cf. TrFG, p. 48. 18 Cf. TrFG, p. 48-9. 19Cf. TrFG, p. 49.

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20 TrFG, p. 95. 21 Cf. Kant, I. Premiers príncipes métaphysiques de la doctrine du droit. In Kant 1980, vol. 3, VI 230. 22 TrFG, p. 49. 23 Cf. TrFG, p. 50. 24 Cf. TrFG, p. 52. 25 TrFG, p. 48 . 26 Cf. TrFG, p. 48. 27 Cf. TrFG, p. 53. 28 Cf. TrFG, p. 54. 29 Cf. TrFG, p. 54-3. 3° Cf. TrFG, p. 10. 31 TrFG, p. 94. 32 TrFG, p. 9-10. 33 TrFG, p. 113. 34 TrFG, p. 60. 35 TrFG, p. 59. 36 TrFG, p. 59. 37 Cf. TrFG, p. 59. Nas sociedades tradicionais a sanção era secundária, pois autoridade da norma a antecede (cf. TrFG, p. 43), ou seja, não se funda nela. 38 Cf. TrFG, p. 60. 39 Cf. TrFG, p. 61. 4° Kant, I. Premiers príncipes métaphysiques de la doctrine du droit. In Kant 1980, vol. 3, Vl230.

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IMPRENSA UNIVERSITÁRIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

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