o pajÉ e o caboclo: de homem a entidade

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Debaixo da obediência das três pessoas da Santíssima Trindade eu peço licença para comunicar-me com os espíritos dos sete Caboclos e das sete Caboclas, curadores e curadoras. Ó almas benditas dos caboclos e das cabo- clas, vós fôstes como eu e eu serei como vós. (Oração dos Sete Caboclos — apud Câmara Cascudo 1951). Na hora da possessão, mas também nas discussões informais entre integrantes dos cultos de possessão brasileiros urbanos, não é rara a referência a um personagem familiar: o caboclo. Durante as chama- das sessões de terreiro, cada médium representando um caboclo dife- rente escuta os pedidos dos consulentes relativos à saúde deficiente, situação familiar instável ou emprego precário. Em retorno, todos rece- bem conselhos de firmeza e perseverança, às vezes formulados em tom irônico, outras vezes enunciados com compaixão. Aqueles que, segundo um possuído, não comparecem com assiduidade ao terreiro, podem ser alvo de uma apóstrofe nem sempre agradável, assim como também poderiam sê-lo os novos clientes que, estranhando por não reconhecerem naquele médium o “caboclo” que costumam consul- tar, viessem a compartilhar esses pensamentos com os demais pre- sentes. De qualquer forma, a crítica só poderia ser velada. Um médium ela- bora, como faria um ator no palco, a sua própria interpretação do papel do caboclo, interpretação que não se confunde com nenhuma outra. Mas para convencer o público da presença do ser invisível, a composição deve incluir traços diferentes dos da própria personalidade do filho-de-santo quando “consciente”. A dimensão de criatividade pessoal, associando estreitamente o ser humano e o espírito 1 aos olhos dos conhecidos, per- mite instituir o caboclo na posição de companheiro do médium, o qual passa então a dirigir sua vida como se esse outro mandasse nele. A eficá- O PAJÉ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE* Véronique Boyer MANA 5(1):29-56, 1999

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Trabalho escrito por Véronique Boyer.

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  • Debaixo da obedincia das trs pessoas da Santssima Trindade eu peo

    licena para comunicar-me com os espritos dos sete Caboclos e das sete

    Caboclas, curadores e curadoras. almas benditas dos caboclos e das cabo-

    clas, vs fstes como eu e eu serei como vs. (Orao dos Sete Caboclos

    apud Cmara Cascudo 1951).

    Na hora da possesso, mas tambm nas discusses informais entreintegrantes dos cultos de possesso brasileiros urbanos, no rara areferncia a um personagem familiar: o caboclo. Durante as chama-das sesses de terreiro, cada mdium representando um caboclo dife-rente escuta os pedidos dos consulentes relativos sade deficiente,situao familiar instvel ou emprego precrio. Em retorno, todos rece-bem conselhos de firmeza e perseverana, s vezes formulados emtom irnico, outras vezes enunciados com compaixo. Aqueles que,segundo um possudo, no comparecem com assiduidade ao terreiro,podem ser alvo de uma apstrofe nem sempre agradvel, assim comotambm poderiam s-lo os novos clientes que, estranhando por noreconhecerem naquele mdium o caboclo que costumam consul-tar, viessem a compartilhar esses pensamentos com os demais pre-sentes.

    De qualquer forma, a crtica s poderia ser velada. Um mdium ela-bora, como faria um ator no palco, a sua prpria interpretao do papeldo caboclo, interpretao que no se confunde com nenhuma outra. Maspara convencer o pblico da presena do ser invisvel, a composio deveincluir traos diferentes dos da prpria personalidade do filho-de-santoquando consciente. A dimenso de criatividade pessoal, associandoestreitamente o ser humano e o esprito1 aos olhos dos conhecidos, per-mite instituir o caboclo na posio de companheiro do mdium, o qualpassa ento a dirigir sua vida como se esse outro mandasse nele. A efic-

    O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE*

    Vronique Boyer

    MANA 5(1):29-56, 1999

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  • cia do caboclo, prova da competncia do mdium, assim funo de umaidentidade afirmada na diferena.

    Durante a primeira parte deste sculo, a elaborao cultural do cabo-clo enquanto categoria do mundo invisvel parece ter-se apoiado em umadinmica anloga, incluindo-o simultaneamente nos registros da intimi-dade e da estranheza. Gostaria aqui de examinar o surgimento dessecaboclo invisvel, levantando a hiptese de que este se deu mediante umtrabalho simblico rduo sobre a multiplicidade de sentidos da palavracaboclo (dentre os quais alguns so hoje obsoletos).

    O caso de Belm, onde fiz pesquisa de campo, particularmenteinteressante, pois l os espritos caboclos fundem diversas categorias deentidades que permanecem separadas em outras regies. Nesta cidade,os pretos-velhos, as crianas e, de maneira mais complexa, os exus2

    encarnam, cada um a seu modo, aspectos diferentes dos caboclos: quan-do jovem, adulto, idoso..., abrindo o leque de personagens singulares dosquais um mdium pode apoderar-se para conquistar fama e prestgio. Ocaboclo assim a figura central dos cultos de possesso da regio.

    Para entender a importncia da extenso do termo caboclo a qual-quer ser invisvel3, deve-se considerar o contexto amaznico em que sesitua a capital paraense. Em uma regio que concentra a mais alta por-centagem de populaes indgenas, mas sobretudo onde os vestgios deprticas e crenas autctones se encontram ainda vivos no meio rural, apalavra caboclo associada, mais do que em outro lugar qualquer, areferncias culturais intimamente ligadas histria das suas origens.Abandonando o sentido de ndio ou de mestio de ndio e branco, cabo-clo, para a populao atual da cidade, designa geralmente o habitantedo meio rural qualquer que seja a sua origem, muitas vezes apresentan-do-o como crdulo e idiota. De fato, o uso do termo tem uma forte carganegativa. Denota a pouca considerao que se tem para com aquele quese qualifica dessa forma, quando no torna explcito o desejo de ofend-lo. A definio do caboclo enquanto ser invisvel vem, ento, na socieda-de amaznica, junto com outra: o caboclo como interiorano.

    A pergunta , portanto, a seguinte: qual a relao existente entre orepresentante do interior, visto como grosseiro e atrasado, e o persona-gem poderoso e sbio que os mdiuns incorporam? Como veio a consti-tuir-se o caboclo invisvel a partir desses traos de comportamento atri-budos ao interiorano e o que subsiste nele da idia do caboclo-homem?Uma resposta radicalmente negativa tentadora, mas seria a meu vererrnea por duas razes. A primeira remete ao plano simblico. A cons-truo do personagem do caboclo pelos mdiuns integra quase sempre

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  • gestos e comportamentos associados pelas classes mdias falta de edu-cao do povo: os caboclos xingam e bebem demais, todos recusam-sea ler e a aprender a contar as horas, alguns se vangloriam das travessu-ras que fizeram, enquanto outros, por princpio e para o prazer do pbli-co, estranham as coisas ligadas modernidade. A potncia de que dis-poria a entidade vai junto aqui com uma rudeza e uma ignorncia queparecem ser herdadas, entre outros, do esteretipo do homem caboclo. Amarginalidade do caboclo-ser humano de certa maneira reconduzidanessa vulgaridade que parte integrante da composio do espritopelos mdiuns.

    O segundo argumento sociolgico. Boa parte da populao urbana, sem dvida nenhuma, originria do interior, e outra parte ainda temparentes l. Nessa medida, a condio atual de citadino pode ser enun-ciada em relao ao deslocamento do meio rural. Certas pessoas afirmamque foram caboclos antes da chegada e adaptao ao meio urbano,enquanto outras mencionam que membros da sua famlia ainda o so. Arelao com o interior, onde vivem por definio os caboclos, tanto maisintensa quanto o fluxo das migraes, atravs dos laos familiares, lhe dconsistncia e a reativa com regularidade: o caboclo, diferente do habi-tante da cidade, no chega a ser radicalmente estranho.

    As primeiras menes dos cultos de caboclos

    As primeiras menes dos cultos de caboclos datam do incio do sculo.Para Salvador, no livro do mdico Nina Rodrigues (1862-1906), Os Afri-canos no Brasil, consta a expresso candombl de caboclo (1977:221),sem que infelizmente essa modalidade de culto seja descrita com maisdetalhes.

    Quase na mesma poca, ainda nessa cidade, Manuel Querino (1851-1923), com o objetivo de estabelecer uma lista das contribuies do afri-cano cultura brasileira, publica em 1919 um pequeno artigo sobre oCandombl de Caboclo. O autor nota, neste culto bastante arraigadoentre as classes inferiores desta capital (1955:117), a designao deJesus Cristo como nome de caboclo bom. Alm disso, faz uma descri-o muito interessante do comportamento dos mdiuns possudos peloscaboclos, chamados tambm santos, que lembra as possesses atuais:Quem est com o santo corteja as pessoas presentes segurando-lhes asmos, d dois saltos perpendiculares, abraa-as de um lado e do outro,faz-lhes algumas determinaes, d-lhes conselhos e retira-se (Querino

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  • 1955:118). De fato, o carter de sociabilidade em torno da possesso, aoqual o autor do texto foi sensvel, persiste ainda hoje nas sesses dos ter-reiros.

    Por sua parte, em um livro editado pela primeira vez em 1934, ArthurRamos transcreve um trecho de um jornal de Salvador, O Dirio da Bahia,de 1929, ironizando sobre os mdiuns possudos por esprito de cabocloendiabrado (1951:123), antes de insistir sobre a novidade desses cultos:H uma modalidade de sincretismo religioso que s agora vem toman-do grande incremento, o que prova que a sua apario relativamenterecente. o chamado candombl de caboclo, na Bahia, ou linha decaboclo, no Rio de Janeiro (1951:138).

    Enfim, Edison Carneiro ser um dos poucos pesquisadores a forne-cer uma descrio detalhada desses cultos, apontando para as principaisdiferenas entre o candombl dito tradicional e o candombl de cabo-clo. Segundo ele (1961:101-104), no candombl de caboclo, alm daintroduo desses novos personagens ao lado dos orixs, o tempo da ini-ciao foi drasticamente reduzido, os tambores so batidos com a palmada mo, os filhos-de-santo so possudos por vrios encantados4 e nose recolhem para mudar de roupa quando incorporados. diferena docandombl tradicional, a representao dos personagens invisveisaceitaria comportamentos associados natureza humana, pois os encan-tados falam, bebem, fumam e apresentam-se ao pblico com a ajuda deum canto. Alis, o transe, segundo o autor, no se restringe aos iniciados,atingindo qualquer pessoa da assistncia. Por fim, procurando enfatizar oestilo diferente da dana nos candombls de caboclos em relao coreo-grafia nos terreiros tradicionais, Carneiro levado a descrever a pri-meira como animada, vivaz e decorativa, permitindo muito de iniciativapessoal, e a segunda como pesada, desgraciosa e montona (1961:101)5.

    No entanto, essas diferenas, que se organizam em torno da simpli-ficao do aparelho ritual e iniciatrio, no constituem critrios absolutosque permitam uma classificao rgida dos terreiros. Com efeito, o autorpde ver cantar e danar para os encantados caboclos nos candomblsdo Engenho Velho e do Gantois, duas casas onde a tradio kto [yoru-b, isto , africana] exerce uma verdadeira tirania (Carneiro 1961:62). Ainovao, assim, parece ter ocorrido tambm nos mais antigos terreirosde Salvador.

    Para Recife, que eu saiba, s temos como fonte de conhecimento otrabalho de Ren Ribeiro, publicado pela primeira vez em 1952. O autor,observando que nos centros mais ortodoxos os fiis acreditam na coexis-

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  • tncia dos orixs e dos espritos de caboclos, comprova a assero de Car-neiro para Salvador. Ribeiro acrescenta que os membros dos terreiros nos crem que os caboclos so mais suscetveis s manipulaes mgicasque os deuses africanos, como atribuem algumas das suas complica-es de vida [...], doenas e outros infortnios, no punio dos orixs,mas interferncia indbita desses seres menores (1978:131). Dessaforma, escreve ele, os mdiuns pensam que partilham a sua existnciaparte com orisha e parte com caboclo (1978:131).

    As informaes so ainda mais tnues para Porto Alegre. MelvilleHerskovits (1966:201) assegura que l no existem espritos caboclos.Mas, como diz Carneiro, os cultos da cidade, que os pesquisadores cha-mam de batuque, so designados pelos fiis pelo termo par. Deve-seento notar, com Carneiro (1964:128), que par parece [um termo de ori-gem] tupi e no africana; e que se trata tambm do nome de um estadoamaznico da Unio.

    Para o Rio de Janeiro, informaes so fornecidas por Yvonne Mag-gie, em uma tese defendida em 1988, onde, a partir de um levantamentocuidadoso dos autos de processos de 1890 e 1940, a autora analisa a con-tribuio da instituio jurdica tanto constituio do campo religiosodos cultos de possesso quanto definio das relaes de poder entreeles. Dentre os elementos simblicos introduzidos no sistema religioso,encontra-se o termo caboclo, muitas vezes associado ao de protetor,para designar os seres invisveis representados pelos mdiuns, termo quevem no Rio a ter maior recorrncia a partir dos anos 30. Arthur Ramosdescreveu para o Rio uma possesso por um santo protetor, velho ante-passado da Costa da frica, que lembra bastante aquela feita por ManuelQuerino para Salvador: Pai Joaquim aproxima-se. sua passagem,todos se curvam e lhe pedem a bno. le vai abraando velhos conhe-cidos, como se tivesse chegado de longa viajem. Interroga pelo estado desade de cada um, d conselhos, resolve dificuldades (1956:129).

    Paradoxalmente, pois o termo comum ao falar dos homens da Ama-znia, no h registro algum, antes do estudo de Seth e Ruth Leacock(1972), de espritos caboclos para os cultos de possesso da regio Norte.Quando os estudiosos evocam seres invisveis, referem-se unicamenteaos encantados que descem sobre os pajs (os especialistas religiososlocais) e s vezes a esses deuses que nos vieram da frica (Andrade,1963:29), isto , aos orixs. No entanto a ausncia de meno a espritosprotetores caboclos na literatura amaznica no significa, como veremos,que o caboclo no tenha ocupado um grande espao nas preocupaeslocais.

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  • Santos, orixs, caboclos negros, caboclos ndios

    A apario da figura dos caboclos leva a uma inflao de termos paradesign-los. So chamados, escreve Carneiro (1964:129), orixs ouvduns, vocbulos nag e jje, respectivamente, encantados, caboclos,santos, guias ou anjos-da-guarda. Seu estatuto de intercessor lhes vale,muitas vezes, serem estreitamente associados aos santos catlicos. Dostestemunhos que Maggie analisou, h o depoimento de uma senhora ido-sa, afirmando em 1929 que um conhecido seu recebe espritos de cabo-clos e que um deles se chama Santo Antnio, popular santo de devoo.Um processo anlogo parece ter acontecido no que diz respeito relaoentre caboclos e orixs. Carneiro (1961:65-67) menciona, por exemplo,que, nos anos 30, tanto Ogum (divindade da guerra) ou Oxal (o maiordos santos, diz dele Arthur Ramos) quanto Xang (orix da mata) ouOxssi (orix da caa) eram qualificados de caboclos, o que provocava,segundo o autor, bastante confuso com as divindades instaladas antesdeles nos cultos de possesso. Ainda hoje subsistem certas ambigida-des. Assim, apesar do uso de palavras diferentes para os santos e os ori-xs, por um lado, e para os caboclos, por outro (os mdiuns usam geral-mente o termo entidade para os primeiros, enquanto reservam o ter-mo esprito aos segundos), a diviso das guas nem sempre respei-tada e s o contexto da enunciao permite decidir sobre o sentido daspalavras.

    Porm, esse primeiro movimento, em que os caboclos parecem puxa-dos para cima junto com os orixs e os santos, se faz acompanhar deoutro, atravs do qual os primeiros vo progressivamente dissociar-se dosoutros dois, para assumir uma posio mais prxima dos seres humanos,permitindo aos filhos-de-santo que os encarnam interpretar a relao ins-tituda como companheirismo6. O retrato do caboclo desenhado pelosdiversos estudos mostra a especificidade dessa figura, tanto nas atitudesque os possudos devem adotar para ter credibilidade, quanto na posioque este ocupa no sistema religioso. Ao contrrio dos orixs, esse perso-nagem assume comportamentos humanos (bebe e fuma), no precisa damediao da hierarquia sacerdotal (apresenta-se sozinho ao pblico epossui os no-iniciados) e estabelece uma relao ntima com os sereshumanos (corteja e d conselhos). Seres menores ou espritos, oscaboclos so considerados como mais maleveis que os orixs e, por issomesmo, seriam melhores protetores para os homens. Esses novos inter-cessores, emergindo ao lado dos santos catlicos e das potentes divinda-des africanas, no gozam de estatuto to prestigioso e se introduzem nas

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  • zonas sombrias onde os outros no penetram, no entrando portanto emconcorrncia direta com eles.

    De certa forma, os santos catlicos, na maioria brancos, e os ori-xs, por sua vez negros, vo encontrar-se reunidos em uma nica eampla categoria, a de caboclo, que integra, ainda, representaes dondio e dos seus deuses. Mrio de Andrade encontrou, na cidade deNatal, cantos dedicados chamada dos caboclos Tup, Manicor eXaramund7. Enquanto categoria do sistema religioso, o caboclo dos cul-tos parece ter conseguido incorporar representaes relativas a vriosgrupos da populao.

    Edison Carneiro foi o nico da sua gerao de pesquisadores a apon-tar para esse fenmeno. Em artigo publicado pela primeira vez em 1953,o autor mostra grande perspiccia quando sugere que, nos cultos, a cate-goria caboclo pode ser dividida em dois subgrupos. Encontrando um cn-tico em que a diviso parece implicitamente aceita, Carneiro dissocia oscaboclos que tm mirongas, ou segredos, os quais seriam uma repre-sentao do ndio de romance, dos caboclos que tm dend, os quaisseriam negros por baixo da roupagem do ndio convencional (1964:145). Pode-se objetar que a diviso operada tem pouco valor heurstico,j que tanto mironga quanto dend provm de um fundo lingsticoafricano. Mas esta crtica refora, na verdade, a associao inelutvelentre ndios e negros na categoria caboclo.

    Em texto escrito em 1960, o mesmo autor precisa o seu pensamentono que tange aos caboclos de dend, conhecidos tambm como caboclosde Aruanda (nome de um porto africano que se tornou nos cultos umacidade mtica):

    Os caboclos de Aruanda devem muitos dos seus nomes e das suas virtudes

    ao indianismo, contraparte, nas letras, da revoluo da Independncia, mas

    a sua concepo data de muito antes de Alencar, como parte de uma ten-

    dncia mais geral que, orientando-se para a valorizao de padres cultu-

    rais africanos, resultou em novos modos e maneiras de integrao do negro

    nacionalidade brasileira (1964:151).

    Carneiro interpreta, portanto, a apario desses caboclos negros emrelao ao processo de integrao do negro, este antigo africano que setornou um velho cidado brasileiro (1964:115). Desta perspectiva, apresena de caboclos negros nos cultos no traduz a simples desintegra-o dos costumes africanos; ela revela, sobretudo, a tentativa de atribuirao negro quando no dar a si mesmo enquanto sujeito negro um

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  • espao no universo simblico em formao, anlogo quele que ocupamoutros componentes da populao.

    verdade que na umbanda do sul do pas, as entidades representa-das com pele negra foram reunidas em uma outra categoria, a de pre-tos-velhos, reservando aos espritos de ndios a categoria de caboclo.No entanto, pode-se pensar que tal classificao expressa antes de tudouma certa concepo da histria, em que, entre outras coisas, o preto-velho lembra a ndoa da escravido enquanto o caboclo encarna a con-dio de homem livre. O exemplo dos cultos de Belm vai ao encontrodas observaes de Carneiro quando este afirma que os mdiuns nofazem muita diferena entre os caboclos indgenas e os caboclos negros,pois os caboclos, que recebem suas caractersticas de fontes mltiplas,entrelaando-as at torn-las inextricveis, formam uma totalidade queno se divide em funo de fentipos ou de claras origens tnicas. Osmdiuns dos cultos preferem classific-los em funo do seu pertenci-mento aos domnios da mata ou do mar e, dentro de cada um, em funode suas afinidades com subgrupos como boiadeiros, flecheiros,marinheiros, turcos... Alm disso, para os filhos-de-santo, caboclonenhum ficaria preso a esse sistema de classificao. Na hora da posses-so, qualquer mdium competente cuja reputao o autoriza a susten-tar que sabe da vontade do seu caboclo pode represent-lo quandoum grupo diferente do dele est sendo chamado.

    Deixando, por enquanto, a descrio do significado do caboclo invi-svel nos cultos de possesso e dos diversos aspectos que o personagemassume, devemos analisar a outra vertente semntica do termo, isto , ocaboclo enquanto designao de um tipo de populao humana.

    A construo do significado de caboclo

    A etimologia habitualmente aceita para caboclo aquela dada por Lusda Cmara Cascudo no seu Dicionrio: Caboco vem [do tupi] ca, mato,monte, selva, e boc, retirado, sado, provindo, oriundo (1972:193). Fran-oise e Pierre Grenand (1990:27), com base nos escritos da segunda par-te do sculo XVII, acrescentam que o termo foi primeiramente usadopelos ndios Tupi da costa para designar os seus inimigos morando nointerior, isto , no mato.

    Aps uma definio inicialmente restrita ao ndio, selvagem oumanso, o termo caboclo passa tambm a qualificar o mestio de ndiocom branco. Nesse sentido, caboclo remete ao termo tapuio, cuja defini-

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  • o foi to flutuante quanto a dele no que tange aos grupos que deviamser assim chamados, bem como no que diz respeito ao seu suposto graude civilizao. Jos Verssimo concebia o Tapuio como o filho legtimoda raa americana (1970:13), enquanto Armando Mendes o considera-va como o indgena, o cabclo semi-civilizado, que vive entre a popula-o sertaneja (s/d:90) e Alfredo A. da Mata, como o caboclo civilisado(1939:304)8.

    O processo, cada vez mais abrangente, levando incluso de novaspopulaes nas definies de tapuio e de caboclo, aparece j na obra doVisconde de Beaurepaire. Tapuio certamente o nome genrico aplica-do aos selvagens bravios no Brazil, mas, escreve o autor, conservaram[tambm] essa denominao os aborigenes j mansos. Alm disso, o usodo termo estendeu-se generalidade dos mestios, e neste caso corres-ponde ao termo Cabclo (1889:136). O significado atual de caboclo,constitudo por volta de 1895 (Grenand e Grenand 1990:28), assim o dehabitante do interior, independentemente de sua origem: hoje, escreveCmara Cascudo nos anos 50, indica o mestio e mesmo o popular, umcaboclo da terra (1972:192).

    Atravs dos sculos, o sentido do termo caboclo carregou uma fortecarga negativa para as populaes que assim eram designadas. CmaraCascudo lembra que, quando sinnimo oficial de ndio, foi vocbuloinjurioso e El-Rei D. Jos de Portugal, pelo alvar de 4 de Abril de 1755,mandava expulsar das vilas os que chamassem aos filhos indgenas decaboclos (1972:192).

    No incio do sculo XX, Vicente Chermont de Miranda mostra aindaclara desconfiana em relao ao caboclo:

    Caboclo, s.m. Tapuio ou seu mestio que j no se exprime no, comple-

    tamente esquecido, nheengatu materno: ombreia com a degenerada e entor-

    pecida raa conquistadora, cala lustrosas botinas, ostenta rutilantes grava-

    tas, dana polcas e valsas, chega a ser coronel ou doutor, adquire maneiras

    cortess, mas sob a apatia atvica muito esconso, sopita o dio de raa. Orgu-

    lhando-se de pertencer estirpe tupi despreza soberanamente o africano e

    seus mestios (1988:12-13)9.

    Mas esta definio, na qual brota uma notvel averso aos coloniza-dores portugueses, aplica-se melhor s elites do interior empenhadasem seguir as modas das capitais longnquas e em encontrar elementosideolgicos lhes assegurassem sua dominao do que a seus modestosdependentes, pequenos agricultores e pescadores. A estes, que revela-

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    riam de modo abrupto a natureza verdadeira dos nativos da regio, isto, sem o verniz de civilizao apresentado pelas elites, conviria melhor adefinio dada por Miranda (1988:86) do termo tapuio enquanto cabo-clo rude e ignorante.

    J nos dicionrios publicados a partir dos anos 30, no raro constaruma definio de certa forma positiva de caboclo (mas no de Tapuio).Por exemplo, Raymundo Moraes, cujo objetivo declarado era estabelecera verdade da Amaznia, assinala que o termo affectuoso, emprega-do com ternura. Meu Caboclo, Cabocla da gente (1931:96). Alguns anosdepois, Alfredo A. da Mata nota um outro significado popular da pala-vra, o caboclo como homem distinguido (1939:95). Essa mudana detom para tratar do caboclo parece ter ocorrido tambm no Nordeste. F. A.Pereira da Costa, por exemplo, indica, em 1937, que se o vocbulooutora tinha uma expresso depreciativa, injuriosa mesmo ao infeliz abo-rigene [...] constitue hoje, e vindo naturalmente j de longe, uma dicofamiliar de affeto, intima, carinhosa mesmo: Meu caboclo; Caboclo velho(1937:135). Acrescenta o autor que aplicado a mulheres, trata-se de umtratamento intimo, affectivo [...], e em tom interjectivo, [serve] comoexpresso de admirao a de um porte elegante e de bello typo feicional:que cabocla bonita! (1937:133; nfases no original).

    Esse novo registro de expresso no significa que tenham desapare-cido as conotaes pejorativas associadas ao termo. Em boa parte da lite-ratura, caboclo permanece uma palavra injuriosa e negativamente defi-nida. Alm do que, na realidade das relaes sociais, o forte estigma asso-ciado ao termo caboclo faz com que as populaes, ainda hoje, no acei-tem ser caracterizadas dessa forma10. A multiplicao de significadosrefletiu, na verdade, a preocupao crescente dos intelectuais da Amaz-nia a respeito das potencialidades do caboclo homem.

    O caboclo bom da Amaznia

    Na poca em que se diversifica a representao do caboclo, a Amazniaacorda de um sonho de prosperidade. No sculo anterior, a partir de 1840,a regio experimentou um crescimento econmico impressionante basea-do na extrao da borracha11. Cidades como Belm e Manaus se benefi-ciaram da acumulao de riquezas: realizaes arquiteturais grandiosas,sales literrios e visitas de artistas europeus traduziam o desejo das eli-tes de que a regio pudesse rivalizar com o Rio de Janeiro ou Salvador.Mas a euforia foi de curta durao. A maioria dos investimentos favore-

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    ceu a produo extrativista em detrimento da agricultura e da indstria,deixando a economia regional totalmente dependente das importaes esem condies de resistir, na dcada de 10, queda dos preos resultan-te da concorrncia inglesa na sia (Santos 1980). Portanto, nos primeirosdecnios do sculo XX, a Amaznia j no podia mais pretender encar-nar a modernidade e a civilizao, estas voltando a ser novamenteassociadas ao sul do pas. Na verdade, a regio voltou a apresentar

    [...] o mesmo panorama que um sculo mais cedo: multido annima, sem

    identidade aparente e a quem ningum presta ateno; ndios bravos, obs-

    tculo ao progresso, imagem que alimenta toda sorte de sonho; economia

    artificial de predao; natureza selvagem, ela tambm, magoada, espoliada,

    em nome da conquista da fronteira, este mito incessantemente recomeado

    como um pesadelo paludfero (Grenand e Grenand 1990:19).

    Essa multido annima conta, no entanto, com novos acrscimosde populao. Aos ndios, descendentes de portugueses, escravos africa-nos12 e seus mestios, juntaram-se a partir de 1860 imigrantes estrangei-ros atrados pela fama da Amaznia, dentre outros, europeus, srio-liba-neses e norte-americanos (Salles 1990:16). Mas as grandes migraes,algumas induzidas pelo governo, outras espontneas (Santos 1980:87),foram sobretudo inter-regionais. A seca de 1877 no Nordeste deu umnovo impulso aos fluxos migratrios que vinham crescendo desde a dca-da de 1810 e que contriburam para a colonizao de vrias regies daAmaznia, em particular no Estado do Acre (Santos 1980:98). Se uma par-te dos nordestinos refluiu para outras regies do pas na dcada de 1910(Santos 1980:263), outra parte ficou e teceu alianas, atravs do casamen-to e do compadrio, com os seus vizinhos instalados h mais tempo. Essescolonos13, o termo sendo usado para diferenci-los dos grupos com ocu-pao mais remota, integraram-se progressivamente populao local, ereceberam o rtulo de caboclos14.

    Devemos situar nesse contexto de relativa falncia o debate, sur-gido na dcada de 20 entre as elitas nortistas, a respeito do caboclo. Comefeito, por trs das disputas afiadas, escondiam-se esperanas de umdia a Amaznia voltar a conhecer o esplendor perdido. Ora, as possibili-dades de realizao de tal projeto estavam intimamente ligadas, na men-te desses intelectuais, s aptides das populaes que ocupavam o espa-o regional. Era, portanto, urgente avaliar as caractersticas morais des-tas ltimas, tal como a qualidade das suas produes materiais e sim-blicas.

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    Um tema recorrente nos trabalhos literrios a comparao entre osmritos dos nativos15 da regio os caboclos e aqueles dos migran-tes do Nordeste os cearenses. O estudo de Jos Carvalho, jornalista efolclorista nascido no Cear, representativo dessa tendncia16. O autor,em um livro intitulado O Matuto Cearense e o Caboclo do Par, conside-ra que o primeiro , pela alma, ou pelas qualidades psychologicas, umsr mais complexo, mais variado, mais multiforme do que o segundo,descrito como mais simples, mais primitivo, menos complicado (1930:1).Desta perspectiva evolucionista, encontrando o seu ponto de partida nondio17, o paraense leva certa desvantagem em matria de produo fol-clrica (as lendas, por exemplo). No entanto, logo a compensa por suandole e seu pendor naturais, que no foram atingidos pela civiliza-o, [que] est [...] destruindo o Cear, barbaro, mas poetico de outrora(:122). O caboclo, natural de uma terra de pouca aflio e de grandeabundncia, mostraria uma aptido admirvel para as artes e para amecanica (:6), e falaria o portugus muito mais corretamente que o cea-rense (:54). Deste novo bom selvagem, descrito como manso, calmo,de poucas ambies e necessidades, frio, suspicaz, discreto ereligioso, J. Carvalho afirma: uma raa, pois, que poder produzirgrandes diplomatas [...] se a diplomacia fr ainda uma coisa necessariano futuro (:3).

    Um outro escritor, Jorge Hurley (1934), formado em direito, que foiprocurador-geral do estado e presidente do Instituto Histrico e Geogr-fico do Par, discorda nitidamente desse retrato do homem amaznico,que acaba por enfatizar a falta de combatividade de um caboclo repre-sentado como acomodado e conformado com seu destino. No seu livroItarna, publicado em 1934, esse intelectual rejeita o que consideraphantasias prejudiciaes aos creditos da civilizao do valle do Amazo-nas (:5) e cita numerosos exemplos de notabilidades paraenses que con-triburam, ao longo do sculo XIX, para a grandeza nacional. Evoca oescritor e crtico literrio Jos Verssimo, caboclo do Par e saudosomestre (:19) nascido em bidos, e Enas Martins, caboclo cametaura[...] maneiroso, culto, erudito e intelligente (:22) que assumiu as altasfunes de diplomata e governador. Lembra tambm a vocao militardos caboclos amazonienses atravs do vulto do general Gurjo, mor-rendo heroicamente no Paraguay, na defesa da Patria e o paizano VeigaCabral, o Cabralzinho, mais tarde general do Amap, repellindo brava-mente frente de um grupo de paraenses, a invaso franceza do Ama-p (:23). Com meno do conservatrio Carlos Gomes, de Belm, queha produzido musicos de incontestavel valor, termina ele insistindo na

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    vocao musical do nativo, j que no interior da Amazonia, quasi todo ocaboclo um musico espontaneo, improvisado (:24). A explicao dosucesso de homens ilustres em domnios to diversos quanto a poltica, oexrcito e a arte, encontra-se, para o paraense Jorge Hurley, no tempera-mento amaznico. Habilidosos na arte de pintar, como na mecnica ouna vida do mar, os amazonenses teriam igualmente disposio para amedicina e para todas as conquistas do espirito (:23).

    Nessa construo, exaltando as virtudes do carter regional, aassociao do caboclo com o mato ou o interior que povoa, e at com umaascendncia indgena, deixa de ser um obstculo sua glorificao. Aproximidade com a natureza , doravante, a fonte do seu gnio e dassuas competncias. graas s qualidades intrnsecas sua raa18 queos homens da Amaznia podem ingressar na civilizao, dando o melhorde si mesmos e levando-a frente. Ao naturalismo do sculo XIX e aopessimismo do incio do sculo XX, sucede nas dcadas de 20 e 30 umaviso otimista com autores preferindo encontrar o paraso que o infernona Amaznia (Preto-Rodas 1974:183)19.

    O intuito, na elaborao de um caboclo bom e respeitvel, clara-mente de cunho ideolgico: trata-se de fornecer s elites locais umaimagem gratificadora, suscetvel de realar o orgulho regional vis--visa sociedade do sul do pas, onde esto estabelecidos os centros depoder. Levando em conta os fins emancipadores dessa construo iden-titria, os esforos em volta da figura do caboclo apresentam uma certaanalogia com a tentativa, no sculo passado, de fazer do ndio o smbo-lo da coeso nacional e da independncia brasileira perante o Imprioportugus.

    Um ponto problemtico: a pajelana do caboclo

    Como em outras construes baseadas na oposio civilizao/selvage-ria, as crenas e prticas religiosas do caboclo constituem um assuntoproblemtico, e os estudiosos acabaram por desqualific-las enquantoelementos resgatveis. O cearense Jos Carvalho o nico a mostrar-secomplacente em relao ao sistema religioso associado ao caboclo designado como pajelana e ao seu especialista, o paj20. Noentanto, a sua tolerncia s vem tona porque, para alm da heranarecebida do ndio selvagem, o autor acredita poder apontar, nas prti-cas da pajelana amaznica, para esse contato to flagrante com as pra-ticas da antiguidade greca e romana (1930:36).

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    Como escreve Aldrin de Figueiredo em um trabalho recente, naque-la poca a estratgia dos homens de letras foi decretar a morte da paje-lana, por no reconhecer nas novas prticas dos pajs de Belm, aque-la religio primitiva dos ndios da Amaznia (1996:216). Para eles, aarte dos pajs indgenas, que se considerava como uma espcie de medi-cina primitiva, transformou-se, com a sua passagem para o meio urbano,em pura feitiaria (1996:237).

    A definio de paj dada por um desses estudiosos mostra, clara-mente, as bases espaciais e temporais que passam a sustentar o contrasteentre a sabedoria atribuda ao especialista religioso indgena e o charla-tanismo daquele que, na cidade, tem a pretenso de exercer o seu ofcio.Pag- (Pai). Curandeiro, sacerdote, santo, mago da tribu; e, hoje, entreos crentes da magia negra, simples impostor da arte de curar e adivinhar(Mendes s/d:70)21.

    Prticas que eram tolerveis antigamente e em lugares recuados per-dem, assim, a sua legitimidade no mundo moderno. Raymundo Moraes,defensor obstinado da imagem de um paraso amaznico, foi um dosescritores mais prolixos sobre as feies passadas e presentes do paj.

    De gesto enigmatico, olhar ameaador, palavra sibilyna, contraditrio,

    miseravel, sordido, o pag odiado e respeitado [na malocas indgenas].

    Ridiculizam-no, desprezam-no e escutam-no (1930: 225).

    O pag solene. Magro, vermelho, oleoso, n, o seu trabalho de feiticeiro

    que consultado como o eram os Grandes iniciados, desdobra-se com a gra-

    vidade sacerdotal, serena, confiante no proprio cordo de augure [...]. Mas o

    puro pag aborigene, adstricto ao ritual vindo de longe, atravs de remotas

    geraes, projecta-se cruzado no pag mameluco, no pag mulato, no pag

    curiboco, imaginoso, solerte, que se encontra nos povoados, nos villorios,

    nas cidades (:229). Este, muito desmoralizado j, bebao, caloteiro, de fra-

    que surrado, botas cambaias, chapeu sem abas, calas cerzidas, collete ras-

    gado, camisa enxovalhada, corrente de relogio de cabellos tranados e cheia

    de figas, de favas, de dentes, de camafeus ainda assim procurado e con-

    sultado, no tanto talvez pelas doenas do corpo, sim pelas doenas da alma

    (:230)22.

    O retrato feito do paj indgena o de um personagem ridculo e afi-nal bastante pattico. No entanto, pela sua fidelidade aos seus ancestrais,ainda conserva imponncia e dignidade, gozando de prestgio entre osseus, como certas figuras primordiais, grotescas e poderosas das mitolo-gias que assombram a literatura do sculo XIX23. Nada igual ao paj da

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    cidade. Sujo e bbado, apresentado como malandro, marginal, pobre efetichista. A pajelana degenerada ento condenada a desaparecercom o progresso da civilizao, e com ela o paj urbano.

    A imprensa, como documenta Aldrin de Figueiredo (1996, 2a parte),registra abundantemente os casos de pajelana, contribuindo para a cisodo paj em duas imagens distintas: uma benfica e incua, a do benze-dor, e outra maligna, a do feiticeiro. Esta diviso acabar nos anos 30por levar definitivamente a pajelana para o lado da magia negra. A ins-tituio judiciria, representante do moderno aparelho de Estado, tam-bm contribui para o processo de marginalizao da pajelana quando,deparando-se com ela atravs das denncias de feitiaria, a rejeitacomo obscurantismo do universo popular24. Ao que parece, os termospaj e pajelana constituram-se como categorias de acusao con-tra vizinhos ou parentes em momentos de atrito25, em um dispositivo efi-caz j nos anos 20.

    Ao compararmos a representao do caboclo com aquela do paj,tais como as encontramos na literatura do incio do sculo, fica claro queo resultado do trabalho simblico foi bem diferente nos dois casos. Ocaboclo foi visto por uma parte dos estudiosos como o produto valorizadoda mestiagem, um tipo de populao que conseguiria facilmente acres-centar s qualidades do seu ancestral ndio o conhecimento vindo damoderna civilizao. Nessa construo, a responsabilidade pelo bomaproveitamento das capacidades da raa amaznica cabia aos homenspolticos. Contrastando com isto, o personagem do paj s adquire fei-es aceitveis quando projetado longe do presente e da miscigenao,na maloca indgena. Quando situado o seu desempenho no mundo con-temporneo, aproveitar-se-ia do pior das crenas e supersties popula-res, favorecendo a permanncia da ignorncia (caracterstica fundamen-tal do povo segundo as elites), incompatvel com o estado de civilizaodesejado. O caboclo bom tem futuro, o bom paj j se foi. Tal formula-o, subjacente ao pensamento dos defensores do caboclo, institua, atra-vs da ltima assero, um ponto de concrdia com seus mais ferozesadversrios.

    O projeto de constituio de uma identidade amaznica baseada nafigura do caboclo ao qual as elites regionais pudessem aderir obviamen-te fracassou. Constituindo a maior parte da populao atual da Amaz-nia, os caboclos so uma categoria dominante do ponto de vista demo-grfico, [mas] sociologicamente subalterna (Grenand e Grenand1990:18) e ideologicamente negativa. No Brasil inteiro, quando se falaem caboclos, pensa-se em mestios de ndios, instalados na beira dos rios,

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    vivendo da pesca e da colheita, de temperamento preguioso e descon-fiado. Em outros termos, o caboclo, figura primitiva e extica fora da Ama-znia, representa dentro o atraso da regio e das pessoas assim desig-nadas, revelando s escondidas a excluso do mercado de grande parteda populao. O estigma carregado pelo esteretipo to forte que nin-gum aceita reconhecer-se como caboclo. O termo vem ento a ser usa-do para designar um outro, cuja posio na estrutura social suposta-mente inferior do locutor. Deborah Lima, seguindo Charles Wagley, tra-ta o caboclo como categoria relacional (1992:24). Os moradores da capi-tal qualificam dessa forma os habitantes das cidades do interior, enquan-to estes reservam o termo s pessoas do meio rural, e estas ltimas aosndios.

    Voltando ao caboclo invisvel

    As migraes de importantes contingentes populacionais entre o Norte eo Nordeste, prosseguindo s vezes para o sul do pas, foram provavel-mente essenciais para a consolidao, nas diversas regies, da sinonmiaentre caboclo e nortista. Com efeito, considerando que o termo caboclopermite construir, ou melhor, expressar na linguagem cotidiana a dife-renciao das posies sociais, e sabendo tambm que no Nordeste apalavra nunca foi um termo de autodenominao (Sigaud 1978:8), pode-se supor que nesta ltima regio os migrantes vindos do Norte e apre-sentando no fentipo traos de uma ascendncia indgena, sejam rejeita-dos ao extremo, tornando-se os caboclos dos outros. Nesse contexto, otermo caboclo constitui-se progressivamente em uma palavra operacio-nal para enunciar qualquer diferena, podendo ser associada a uma ori-gem geogrfica nortista e, sobretudo, a uma diferena religiosa.

    De fato, no Brasil, a originalidade das prticas religiosas vindas doNorte e o saber peculiar dos seus peritos eram referidos como caboclos.J no incio do sculo, era sem dvida no domnio religioso que a reputa-o do caboclo se tinha firmado. Poder-se-iam dar exemplos de trabalhosliterrios, como o romance Esa e Jac, de Machado de Assis, escrito em190426, testemunhando a representao do caboclo primeiramente comoespecialista religioso. O amplo campo semntico coberto pelo termo per-mite evocar certas prticas cultuais, de modo implcito mas sem equvocopossvel.

    Convm aqui observar que os termos paj e pajelana nunca foramde uso comum nos centros urbanos do pas27, a no ser, como foi mencio-

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    nado acima, enquanto categoria de acusao, e assim mesmo na Amaz-nia, onde foram consagrados pela literatura clssica ao falar das prticasreligiosas locais. Para a Amaznia, o antroplogo Heraldo Maus consta-ta que hoje em dia em Vigia, na regio do Salgado, a pajelana no exis-te, para seus praticantes, como uma categoria explcita, no sentido deque [...] no existe um rtulo para ela (1995:483). E para as primeirasdcadas do sculo, o folclorista Jos Carvalho (1930:31) afirma que nemmesmo a palavra paj era habitual, os consulentes falando com mais gos-to de curador.

    Mas caboclo no era qualquer curandeiro ou feiticeiro. Atribua-se aeste especialista religioso a sabedoria de feitios potentes e desconheci-dos, porque oriundos de longe. Os homens a quem se chamava caboclos(isto , os pajs oriundos das cidades da regio amaznica e tidos pordegenerados na literatura regionalista) gozavam de considervel fama eprestgio, que atraam clientes e discpulos, o que fazia da sua regio deprocedncia uma referncia imprescindvel. O folclorista Cmara Cascu-do atesta essa reputao junto aos mestres do Catimb no Estado do RioGrande do Norte:

    H no Catimb muito Par-Amazonas. So as universidades do curso secre-

    to. A ordem, na citao respeitosa que a credencial na ordem dos valores,

    comea por Belm do Par, Manaus depois. No se fala bastante na Bahia.

    O terceiro lugar Pernambuco [...]. Posso informar, em segrdo para a Pol-

    cia no saber, que os mestres da Pajelana paraense, alguns de mais fama,

    so convidados a visitar capitais nordestinas para trabalhos de importncia

    [...]. Os Pajs vm, trabalham e deixam alguma tcnica nas mos dos mes-

    tres catimbzeiros locais [...]. Alguns mestres nordestinos juntam dinheiro e

    vo passar uns meses em Belm do Par estudando, acompanhando um short

    course (1951:79).

    A Amaznia foi, dessa forma, um importante foco de circulao dehomens e de saberes, os mestres do Catimb deslocando-se para as cida-des de Belm ou Manaus a fim de aprender novos mistrios dos nortis-tas caboclos e estes ltimos respondendo a convites solicitando os seustalentos.

    Em diversas regies, ao uso pejorativo do termo na vida diria con-trapunha-se um uso prestigioso na esfera religiosa, fazendo com que, aoser conhecido como caboclo, um especialista religioso se beneficiasse apriori de uma reputao vantajosa. Reivindicar-se caboclo fazia parte doprocesso de consolidao de posies individuais no campo religioso

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    local. Havia vrias formas de ligar-se ao prestigioso universo caboclo:pelo lugar de nascimento, pela trajetria de migrao e tambm pelosseres invisveis representados durante as chamadas, a quem procuravamos consulentes.

    Nesse sentido, a lgica religiosa admitindo que com a morte oshomens possam metamorfosear-se em espritos veio ao encontro dasnecessidades tticas determinadas pela demanda do mercado religioso.Com efeito, por analogia com o que acontecia aos seres humanos, cabo-clo era um atributo de alguns espritos que nele se encarnavam. O exem-plo do Catimb estudado por Cmara Cascudo ainda nos precioso nes-se ponto, ao informar que, desde a expulso dos jesutas no sculo XVIII,o termo era associado no Nordeste ao nome de alguns dos mestres fale-cidos quando se atribua a eles uma ascendncia indgena, da mesma for-ma que outros eram lembrados como negro velho quando tidos por des-cendentes de africanos. Ora, medida que crescia o nmero de seresinvisveis caboclos junto com seu sucesso, aquilo que era qualidade pes-soal de certos espritos ou dos homens que os representavam, virou carac-terstica comum a todos.

    A multiplicao dos espritos de caboclos ameaava diluir, dada asua generalizao, o significado da palavra, e, como conseqncia retro-cessiva, limitava os efeitos de um uso diacrtico do termo entre os espe-cialistas religiosos. Os esteretipos do ndio brabo e selvagem, exticoe distante, vieram ento nutrir o imaginrio religioso, proporcionandouma caracterizao mais estreita do que seria o caboclo autntico. Osespritos caboclos foram revestidos do que era considerado genuinamen-te indgena: arco e flecha, saiote..., distanciando-se assim daqueles san-tos e orixs, tambm chamados caboclos, mas que no podiam receberigual tratamento. Uma definio cada vez mais restrita do indgena doindgena sem existncia real, necessrio insistir contrabalanou, por-tanto, a tendncia incluso de todo e qualquer ser invisvel na catego-ria caboclo.

    Com a Segunda Guerra Mundial, e a perda das fontes asiticas daborracha, a Amaznia recebeu, durante um curto mas decisivo perodo,novos contingentes nordestinos, que trouxeram para a regio Norte suasidias religiosas (Gabriel 1980:151), inclusive essa imagem particulardo caboclo invisvel. Mas a representao do caboclo como ndio malcombinava com o uso local do termo e a sua dimenso relacional. Deve-se tambm considerar o impacto das declaraes dos intelectuais amaz-nicos a respeito da identidade regional, pois nos seus escritos, o cabocloera mais do que o ndio. No era somente uma figura associada margi-

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    nalidade e selvageria; podia pretender pertencer s classes dominan-tes, entrar e contribuir com seu ideal de modernidade. Dito de outraforma, o caboclo podia ser um senhor. Essa definio do ser caboclo pelaessncia, pela nfase nas suas potencialidades e no pela aparncia,abriu possibilidades infinitas de recomposio de uma figura bastantemonoltica no Nordeste.

    Encontramos evidncias das repercusses, no mbito religioso, dodiscurso dos intelectuais amaznicos e das lutas travadas para a afirma-o de uma identidade regional. Nos anos 60, em Belm do Par, o termocaboclo intervinha em dois sistemas de classificao dos seres invisveis:s vezes era um indicador da famlia do grupo qual um espritopertencia; outras vezes revelava o estatuto menor atribudo a ele, poroposio quele dos senhores (Leacock e Leacock 1972:146)28. Esse des-lize favoreceu a abertura do grupo dos caboclos a representaes outrasque a do ndio ou do ribeirinho. Integraram-se a ele subgrupos evocandooutros horizontes geogrficos (tais como os turcos e os boiadeiros), quedificilmente representariam as populaes locais nativas. diferena deoutras regies do Brasil, na Amaznia, caboclo tornou-se uma categoriaemblemtica, reunindo todas as entidades poderosas.

    Os caboclos invisveis acabaram por ter representaes antropomr-ficas, lembrando o seu passado de seres humanos. Em 1939, Cmara Cas-cudo (1951:45) fotografou as primeiras imagens de gesso pintado encon-tradas na cidade de Natal. A sua origem amaznica as trs foram com-pradas em Belm do Par e a diversidade dos fentipos que inspira-ram o arteso uma das esttuas tem as feies de uma loura de pelebranca mostram que nessa regio, como foi dito antes, o termo cabo-clo j tinha deixado de indicar somente uma ascendncia indgena.

    Assim, temos de voltar verso do caboclo trabalhada e aperfeioa-da pela literatura regionalista dos anos 30, para encontrarmos o elo entreesse representante do homem amaznico e o ser invisvel dos cultos depossesso. Nos dois casos, houve uma tentativa anloga de apoderar-sede elementos simbolicamente associados margem, ao atraso e aoincivilizado para elaborar o bom, o forte, o futuro. No entanto, alegitimao do caboclo pelas elites intelectuais passou pela rejeio decertos traos vistos como decididamente incompatveis com a imagemque queriam dar (e dar-se) de si mesmos, isto , a pajelana supersticio-sa. diferena disso, a constituio da categoria emblemtica dos cabo-clos foi levada a seu termo com mais sucesso nos cultos de possesso, emparte porque integrou todos os estigmas e esteretipos (inclusive adimenso mgica do paj) para reverter de uma forma ou de outra os seus

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    significados29. Afinal, o caboclo foi separado da esfera religiosa pelosintelectuais para melhor incluir-se nela, agora enquanto categoria cen-tral do mundo invisvel. Formou-se um conjunto nico, cuja coeso no necessariamente harmnica, onde podem expressar-se as diferenassociais, culturais e geogrficas. Desse ponto de vista, as inmeras possi-bilidades de especulao oferecidas pela organizao do mundo doscaboclos refletem as origens, os itinerrios, as trajetrias e as condiesdiversas de uma populao cuja maior caracterstica a mobilidade (Gre-nand e Grenand 1990:25) dos processos de sucessivas migraes.

    Difcil pronunciar-se sobre as mudanas induzidas no imaginrioamaznico por essa distoro do sentido inicial da palavra caboclo. Igual-mente rduo avaliar as conseqncias para as populaes qualificadasde caboclas em um contexto de forte entrosamento entre o campo e acidade. Com certeza, a elaborao do caboclo enquanto tipo de popula-o deu-se de forma complexa, atravs do olhar dos citadinos, buscandonos rurais elementos para a construo da sua prpria identidade. Ape-sar de representar uma figura do campo, a representao do homemcaboclo um produto urbano, como o por sua vez a construo do cabo-clo invisvel. As populaes amaznicas, a partir das quais se exercia essetrabalho simblico, no tinham participao ativa nesses processos: rece-biam o rtulo caboclo sem jamais ter condies de infletir o rumo do dis-curso do qual eram objeto, sem ter possibilidades de aceit-lo ou contes-t-lo. Para o meio urbano, pode-se pensar que a inveno do caboclo cor-responde a uma tentativa de se livrar do caboclismo, projetando emuma figura do mundo invisvel qualidades que so defeitos, e at defi-cincias, na cidade. Resta analisar ulteriormente o seu significado no casodas populaes rurais.

    Para concluir, convm observar que a valorizao do negro psfim possibilidade de identificao das elites nortistas com uma figuraque nem mesmo conseguiu impor sua legitimidade na esfera do folclore.A influncia da busca minuciosa de traos africanos fez-se sentir na Ama-znia a partir da viagem a Belm de Mrio de Andrade em 1927, e sobre-tudo aps a chegada da Misso de Pesquisa Folclrica em 1938, encarre-gada de fazer o levantamento da contribuio do negro cultura regio-nal (Figueiredo 1996:251-261). A publicao do livro de Oneyda Alva-renga em 1950, cujo ttulo Babassu forneceu um nome doravante referi-do para as prticas religiosas que se supe de origem africana, marca ummomento importante na inflexo dos assuntos tratados pelos intelectuaisda regio. O momento de glria do caboclo declinou, assim, medidaque se firmava o discurso sobre a fidelidade frica. Nessa meta de

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    resgatar a pureza africana melhor conservada com o candombl e osseus orixs, o destino do caboclo invisvel, inclusive na Amaznia, foi depermitir firmar cortes no campo religioso, legitimando certas prticas reli-giosas e condenando outras.

    Recebido em 13 de abril de 1998

    Aprovado em 29 de junho de 1998

    Vronique Boyer doutora pela cole des Hautes tudes en SciencesSociales em Antropologia Social e pesquisadora do CNRS (Centre Nationalde la Recherche Scientifique, Frana). Desde 1996, participa de um projetode cooperao entre o CNPq e o ORSTOM no Museu Goeldi de Belm. Pu-blicou, alm de artigos em revistas especializadas, o livro Femmes et Cultesde Possession au Brsil: les Compagnons Invisibles (1993).

  • Notas

    * Este tema j foi objeto de um artigo publicado nos Cahiers dtudes Afri-caines (Boyer 1992). Retomo aqui parte dele, e prossigo na anlise a partir denovas leituras que me permitem tratar melhor da representao do caboclo, e desuas produes religiosas, nos trabalhos dos folcloristas nas trs primeiras dca-das do sculo. Agradeo a Deborah Lima suas observaes a uma primeira versodeste texto, e a Jorge Pozzobon e Ciro Campos pela pacincia em corrigir meuserros de portugus.

    1 o termo usado pelos mdiuns para designar os seres invisveis que ospossuem.

    2 Com efeito, apesar de formarem categorias distintas, exus e caboclos so,em Belm, vinculados por uma relao de transformao. Assim, um caboclopoderia apresentar-se em um terreiro sob a forma de exu, quando deixa de encar-nar um personagem familiar, inserido em um dispositivo de deveres e direitos,para representar uma fora bruta capaz de realizar sem distino os desejos decada um. Para mais detalhes, ver Boyer (1993).

    3 Os nicos a no ter correspondncias com os caboclos so os orixs.

    4 Os encantados so conhecidos em um culto do Norte do qual falarei aseguir: a pajelana amaznica. Apesar de apresentar-se sob uma forma animal, osencantados participariam de uma natureza humana (para o meio rural atual, verMaus 1995). Escolhidos por outros encantados, esses seres humanos teriam sidotransformados atravs do encantamento, sem sofrerem decomposio da mat-ria corporal.

    5 A apreciao da beleza das danas evidentemente um fato subjetivo, eoutros autores tm com certeza opinies opostas quela de Edison Carneiro. Noentanto, o uso que este faz de termos diferentes para descrever as danas mostraa necessidade que ele sentiu de apontar claramente o estilo bem particular decada uma.

    6 Esta construo da relao do mdium com o caboclo se baseia nas repre-sentaes a respeito da complementaridade dos papis socioeconmicos dohomem e da mulher (produo e autoridade masculina, gesto e obedincia femi-nina) no grupo domstico. Quanto s mulheres, elas conseguem desapossar dassuas atribuies o seu companheiro real ao impor as suas decises em nome docaboclo que encarnam nas sesses dos terreiros, caboclo que aqui claramentemarcado por um signo masculino. Assim, elas encontram nas prticas rituais e nasimblica religiosa instrumentos para conquistar a sua autonomia em relao aoshomens, sem romper com as normas e os valores da sociedade brasileira (verBoyer 1993).

    O PAJ E O CABOCLO: DE HOMEM A ENTIDADE50

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    7 Por exemplo, o autor anotou este canto consagrado ao caboclo Manicor(Andrade 1963:81):

    Eu sou aquele cabco,Sou o Mestre dos Mestres,Sou eu grande pag!Triunfei, Agic!

    O meu nome na aldeia do grande Mestre,Do grande Manicor!Triunfei, Agic!

    8 Sobre o tapuio, vale ler o interessante ensaio de Carlos Arajo de MoreiraNeto (1988). O autor analisa o processo de destribalizao, atravs da formaodos redutos missionrios, sofrido pelos grupos indgenas durante a histria colo-nial, que transformou os ndios especficos, com as suas instituies sociais ecultura particulares, em ndios genricos (para usar da expresso de DarcyRibeiro), a ponto de no ser mais possvel determinar com base na lngua enas maneiras de viver de que participam a matriz cultural de origem (:81), isto, a sua transformao em tapuios. Para Moreira Neto, as diferenas entre ostapuios e aqueles que chama sertanejos amaznicos (isto , os caboclos quepovoam o interior da regio) so mais de natureza socioeconmica que cultural(:90). Com efeito, mesmo se o sertanejo pode chegar a ter, em uma subculturaparticular, uma porcentagem de elementos indgenas to ou mais elevada que afreqncia de traos de forma particular (sempre compsita) de vida cultural dotapuio (:82), ele um membro da sociedade nacional, que encontra formas deajustamento s novas condies de vida e integra-se individualmente ao mercadode trabalho, enquanto o outro no consegue viver fora do seu grupo de origem etem o seu destino ligado ao futuro deste. Com a marginalizao desse ndio gen-rico, na segunda metade do sculo XIX, e o seu desaparecimento enquanto cate-goria social pertinente e economicamente identificvel, o sertanejo amaznico oucaboclo torna-se portador de uma cultura genrica (:84).

    9 Respeitei a grafia original das citaes.

    10 Ver, por exemplo, Faulhaber (1996:7) e Lima (1992:24).

    11 Para uma anlise detalhada dessa fase de expanso e do seu declnio,deve-se consultar o livro de Santos (1980).

    12 O ltimo carregamento de escravos provenientes da frica ocorreu em1834, havendo depois importao de outras provncias brasileiras at a vspera

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    da lei urea. De modo geral, a presena negra na regio amaznica parece tersido bastante fraca, em torno de 7% em 1890 (Salles 1971:51-52).

    13 Os colonos, cuja maioria era oriunda do Cear, eram tambm chamadoscearenses, esse termo tornando-se o nome genrico de todos os nordestinos (San-tos 1980:98).

    14 Encontramos, por exemplo, no livro de Jos Carvalho a expresso cabo-clo cearense (1930:102).

    15 Lima insiste com razo na dimenso histrica da construo de quem -nativo: o amazonense tpico da poca sempre definido em contraste com aque-les que so migrantes recentes e os grupos amerndios, por um lado, e o gruposocial identificado como branco, urbano e rico, por outro lado. O termo constituiuma categoria intermediria no sistema de classificao social, situada entrecategorias sociais opostas (1992:37-38).

    16 Outro exemplo analisado por Lima (1992:33-34) o livro Os Mongo-Malaios e os Sertanejos, de Alfredo Ladislau publicado em 1923.

    17 No Cear, o matuto ou sertanejo est, no tempo e na evoluo da raa,mais longe da malca ancestral do que o caboclo do Par, ou da Amaznia (Car-valho 1930:1).

    18 O uso do termo raa no aqui um epifenmeno, um simples legado dosculo XIX, condenado a desaparecer. Ainda hoje, podemos observar no discur-so trivial, e s vezes tambm na produo erudita, processos anlogos de subs-tancializao e de reificao do social, por exemplo, quando a identificao deum grupo sociolgico se faz a partir de caractersticas fenotpicas, no caso daraa negra, ou quando so exaltadas as virtudes nacionais pela expressoraa brasileira, escondendo as desigualdades sociais e as formas histricas dedominao.

    19 No seu artigo, Preto-Rodas (1974) cita exemplos de outros autores amaz-nicos: Eneida de Moraes (Banho de Cheiro, republicado em 1989, pela FundaoCultural Tancredo Neves, Coleo Lendo o Par, no 2), Raymundo Moraes (OsIgaranas, 1938), Abguar Bastos (A Amaznia que Ningum Conhece, 1932).Para uma anlise do pensamento dos intelectuais amaznicos, das tendncias eda evoluo dos discursos, ver tambm o trabalho de Aldrin Moura de Figueire-do (1996).

    20 Ver, por exemplo, a descrio seguinte do mais celebre pag do baixoAmazonas, uma mulher de nome Maria Brasilina: Era uma mulher ignorante,analphabeta, mas que impressionava bem pelo seu porte e suas attitudes discre-tas, ponderadas, intelligentes. Tinha o porte de uma verdadeira matrona. No segabava de sua sciencia; no se envaidecia com sua popularidade. Era modesta,discreta e caridosa. Era casada e tinha filhas moas (Carvalho 1930:33-34).

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    21 Ver, tambm, Osvaldo Orico: Encontram-se, ainda hoje, em Belm eManaus, tipos curiosos, que se propem a exercer entre gente civilizada o mesmopapel reservado nas malocas ao pai dos indigenas (1975:232).

    22 Hurley (1934:138), em uma descrio de uma festa junina em Curu,menciona como personagem do enredo a figura de um paj, igualmente repre-sentado como bbado, grosseiro e sujo.

    23 Um bom exemplo desse pano de fundo fantasmagrico para o fim do scu-lo XIX fornecido por Figueiredo (1996) na sua anlise dos escritos do jornalistaPdua Carvalho. O historiador identifica uma produo esttica e literria queexalta a figura do paj primitivo, ao lado da sua contribuio propriamente jor-nalstica, em que as ocorrncias policiais servem de base para uma estigmatiza-o da pajelana urbana.

    24 Para o Rio de Janeiro, Maggie (1988) analisa com fineza como os meca-nismos reguladores criados pelo Estado a partir da Repblica [...] foram funda-mentais para a constituio da crena na feitiaria (:5). Pronunciando-se sobreos casos que lhe eram submetidos, a Justia chegou a uma classificao e a umahierarquizao das diversas posies estticas e filosficas (:273) no campo reli-gioso da possesso.

    25 Encontram-se assim, no Arquivo Pblico de Belm, os autos de um pro-cesso, datado de 1921, que foi aberto para tratar de uma denncia de aborto. Ape-sar do amante da acusada ser qualificado de celebre Paj Albertino na cartamandada pela sua irm s autoridades, a fama no significa neste caso compe-tncia, pois a denunciante afirma que foi preciso recorrer a uma parteira italianapara conseguir expulsar o feto. A acusada negou conhecer Albertino e os mdicosno puderam determinar se houve provocao do aborto...

    26 Por exemplo, na primeira cena do livro, quando uma socialite vai casade uma cabocla, em um morro do Rio de Janeiro, no se espera desta ltima outracoisa que revelaes sobre o destino, o que ela precisamente faz vendo o futurodos filhos da senhora.

    27 Ver, por exemplo, sobre Manaus, Gabriel (1980:89).

    28 O exemplo dado por Gabriel (1980:195), de um esprito caboclo do qual osmdiuns dizem que se formou e hoje educado, atesta essa nova avaliao dascapacidades do caboclo.

    29 Dessa perspectiva, analisei, em um artigo publicado nos Archives deSciences Sociales des Religions em 1992, como atualmente os mdiuns constroemo personagem do caboclo a partir dos traos de comportamentos desvalorizadospelas classes mdias, e associados por elas ao povo freqentador dos terreiros(Boyer Araujo 1992).

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  • Resumo

    O personagem do caboclo, representa-do pelos mdiuns durante a possesso, uma figura central dos cultos de pos-sesso da Amaznia urbana. O termodesigna tambm, de modo pejorativo,as populaes ribeirinhas da regio.Neste artigo, procuramos entender a re-lao entre o caboclo invisvel e pode-roso dos cultos e o caboclo-homem vis-to como atrasado. Aps situar o proces-so de formao dessa categoria do mun-do invisvel, e sua especificidade, volta-mo-nos, com base na literatura folclri-ca, para a construo de seu significadoenquanto designao de um tipo de po-pulao regional. Observamos que osintelectuais amaznicos, suavizando asconotaes negativas do termo, tenta-ram fundamentar nele uma construoidentitria original. Esta valorizao docaboclo-homem veio ao encontro doprestgio do migrante nortista no dom-nio religioso. Tal fenmeno favoreceu amultiplicao de referncias a entida-des invisveis designadas como caboclo.No entanto, ao contrrio do que ocorreuno resto do Brasil onde essa categoriase restringiu a um esteretipo do ndio,na Amaznia ela se abriu aos mais di-versos tipos de populao, permitindo asua identificao com ela.

    Abstract

    The persona of the caboclo or mestizo,represented by mediums during pos-session, is a central figure in the posses-sion cults of urban Amazonia. Yet theterm is also used pejoratively to desig-nate the regions riverine populations.This article aims at understanding therelationship between the invisible andpowerful caboclo found in the cults, andthe human caboclo perceived as back-ward. After establishing the specificway in which this category of the invisi-ble world takes shape, the paper turnsto folkloric literature and examines theevolution of caboclos meaning as a des-ignation for a type of regional popula-tion. We find that Amazonian intellec-tuals, softening the terms negative con-notations, attempted to use it as the ba-sis for an authentic regional identity.This valorization of the human caboclocombined with the religious prestige ofthe Northern migrant, a phenomenonwhich in effect stimulated an increasein the number of allusions to invisibleentities designated by the term. How-ever, in contrast to the rest of Brazilwhere the category caboclo was re-stricted to a stereotype of the Indian, inAmazonia the category opened itself toa wide range of populations, allowingtheir identification with it.

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