o órgão da sé de faro

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O ORGÃO DA SÉ DE FARO 1 José Carlos Vilhena Mesquita O ORGÃO DA SÉ DE FARO do pouco que se sabe ao muito que se presume. Publicado na obra A Música Uma Tradição Algarvia, edição da Delegação Regional do Sul da Secretaria de Estado da Cultura, Faro, 1989, pp. 103-110

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Page 1: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

1

José Carlos Vilhena Mesquita

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

– do pouco que se sabe ao muito que se presume.

Publicado na obra A Música Uma Tradição Algarvia,

edição da Delegação Regional do Sul da Secretaria de Estado da Cultura, Faro, 1989, pp. 103-110

Page 2: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

2

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

– do pouco que se sabe ao muito que se presume.

À entrada da Sé de Faro, junto ao coro alto na nave esquerda, constitui uma

surpreendente presença o belo e majestoso móvel, de proporções agigantadas, encimado

por três anjos de perceptível traço joanino, dos quais se desprendem filigranas de talha

dourada que emolduram um resplandecente conjunto artístico, de tonalidade acharoada,

ornamentado por cenas bucólicas de inspiração chinesa.

Trata-se do Órgão Grande da Sé Catedral de Faro, peça invejável e de reconhecível

ancestralidade, cuja inserção no contexto do património musical algarvio assume lugar

cimeiro e até de particular relevo no acervo artístico português. Não foi, pois, com

imerecida exaltação que publicamente salientamos a sua magnífica factura e rara beleza,

considerando-o como uma das mais atractivas e apreciadas jóias artísticas da Sé de

Faro.1

Atraídas pelo seu valor artístico prenderam-se as atenções de alguns estudiosos e

investigadores. Não muitos, porém os suficientes

para deixarem em aberto algumas dúvidas para

ulteriores e mais aturadas investigações.

Com efeito, em torno deste notável

exemplar da nossa arte musical gerou-se uma

questão de capital importância, que consiste, tão

simplesmente, na sua origem cronológica e na

consequente aquisição do mesmo por parte do

cabido farense. O desconhecimento deste

pormenor é, por si, suficiente para fazer

desmoronar algumas das opiniões formuladas sobre o assunto e, com isso, obrigar a

reformular as investigações precedentes.

Não dispondo de elementos seguros que possam contrariar, ou refutar, os actuais

conhecimentos, limitar-me-ei apenas a equacionar as teses perfilhadas pelos

investigadores que com maior probidade analisaram o tema.

Numa ordem de pertinente sequência destacamos três autores: Luís Artur Esteves

Pereira, José António Pinheiro e Rosa e o Prof. Doutor Marcello Martiniano Pereira.

1 Vide J. C. Vilhena Mesquita, "Um órgão joanino na Sé de Faro. Persistem algumas dúvidas acerca do seu construtor", in

«Diário de Notícias», de 24-4-1984.

Sé de Faro (gravura antiga), construída no séc. XIII

Page 3: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

3

I. Um órgão de "interesse europeu", supostamente construído pelo mestre

alemão Arp Schnitger.

O primeiro dos citados estudiosos publicou no semanário farense «Correio do Sul»

um artigo, de que se ditou separata2, onde sustenta que a autoria do órgão da Sé de Faro

deveria atribuir-se ao famoso organista hamburguês Arp Schnitger (1648-1719).

Fundamenta a sua teoria nas semelhanças existentes com um outro órgão situado em

Cappel, uma pequena cidade alemã a sul da foz do Elba, que teria sido, com toda a

certeza, construído por Arp Schnitger. A concepção funcional deste órgão é quase

idêntica ao de Faro, com a torreta central de cinco faces e sete tubos flautados, torretas

laterais triangulares de sete tubos cada, apresentando nos

espaços intermédios pequenos tubos, alguns deles apenas

ornamentais, como é o caso dos "cónegos".3

O método comparativo, quer do traço artístico quer da

composição técnica, parece constituir o único meio utilizado por

Esteves Pereira para instruir a sua teoria. Faltou-lhe, porém, a

hombridade de revelar que a 10 de Outubro de 1964, ou seja 5

anos antes de escrever este artigo, havia escrito uma carta ao Dr.

Gustav Fock, musicólogo e especialista na arte do órgão na

Alemanha do Norte, na qual lhe pedia informações acerca de

Arp Schnitger. Respondeu-lhe este erudito alemão em 26 de

Outubro, afirmando que um organista de Groninga, chamado

Siwert Meijer4 publicara em 1853 uma série de artigos

biográficos sobre Arp Schnitger, alicerçados nos manuscritos

deixados por aquele célebre organeiro. Receava, porém, que esses documentos já não

existissem. De qualquer modo, afirmava que Neijer transcrevera uma nota onde

Schnitger registara a seguinte mensagem: «1701... dois órgãos construídos, cada um

com 12 registos, dois teclados e um fole. Ambos enviados a Portugal».5

2 L. A. Esteves Pereira, O Órgão da Sé de Faro, Faro, separata do «Correio do Sul», 1969.

3 Cf. Idem, op. cit., p. 5.

4 Siwert Meijer foi um organista de merecimento que exerceu a sua profissão na cidade de Groninga, pelo menos desde

1850. De apreciável cultura intelectual a ele se deve um desenvolvido trabalho sobre a vida e obra de Arp Schnitger,

subordinado ao título "Contribuição para a história da construção do órgão", publicado em 1853-1854 no jornal «Caecilia,

Allgemeen muzikaal tijdschrift van Nederland» que se editava em Utreque. Para a elaboração deste trabalho, serviu-se de

vários manuscritos alemães do próprio Schnitger, pertencentes a uma família de organeiros de apelido Freytag. Os artigos de

Siwert Meijer revelam-se de grande interesse, mas infelizmente receia-se que a documentação por ele consultada se tenha

perdido.

5 Vide Marcello Martiniano Ferreira, Arp Schnitger, dois órgãos congéneres de 1701. Suas destinações atuais e

características técnicas 2 vols., dissertação de Doutoramento, dactilografado, Roma, Instituto Pontifício de Musica Sacra,

1984-1985, vol. I, pp. 37-38, onde se publica, em francês, a carta do Dr. Gustav Fock.

Sebastian Bach, emérito

organista, preferia os órgãos

fabricados por Arp Snitger

Page 4: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

4

Ainda na mesma missiva o Dr. Gustav Fock informava o seu correspondente de

que o Dr. Rudolph Reuter da Universidade de Muenster lhe revelara, por ter observado

in loco, «que na Catedral de Faro existia um órgão de estilo nórdico, mas parecera-lhe

que este possuía mais de 12 registos. Contudo, disseram-lhe em Faro que o órgão teria

vindo da Holanda».6

Acontece que nenhum destes esclarecimentos prestados pelo Dr.Fock se encontram

citados no artigo de L.A.Esteves Pereira, atitude que sendo deselegante é também

incompreensível para um investigador da sua

envergadura.

Por outro lado, o Dr. Ayres de Carvalho,

mercê das investigações a que procedia e mais

tarde materializaria em livro7, revelou-lhe a

descoberta dos contratos notariais de Ioanes

Henriques Ulemcamp8, para a construção de

dois órgãos; o primeiro dos quais, datado de

27-8-1711, dizia respeito à Igreja de S.

Francisco em Lisboa9 e o segundo, datado de

25-11-1721, ao convento do Carmo na mesma

cidade.10

Muito embora estas datas não fossem

concludentes, entendeu Esteves Pereira que os

dois órgãos, de S. Francisco (1711) e da Sé de

Faro (1716), correspondiam àqueles que Arp

Schnitger teria enviado para Portugal. Apesar

de incorrecta, esta dedução parece lógica,

porque Esteves Pereira, no intuito de lhe dar

maior credibilidade, omitiu no seu trabalho a

data de 1701 que, como vimos atrás, constitui o ano da construção de dois órgãos

enviados por Arp Schnitger. Mais inexacto ainda é o facto de Esteves Pereira remeter

para nota de rodapé as informações prestadas pelo Dr. Gustav Fock, como presumível

suporte da "concordância" de datas – o que pela carta acima transcrita se comprova

precisamente o contrário. Além disso, nos contratos referidos ficava explícito que a

construção dos mesmos seria, unicamente, da responsabilidade de Ulemcamp, para além

6 Idem, op. cit., vol. I, p. 38.

7 A. Ayres de Carvalho, Documentário artístico do primeiro quartel de setecentos exarado nas notas dos Tabeliães de

Lisboa, Braga, 1973, separata da revista «Bracara Augusta», vol. XXVIII, nºs 63 a 75.

8 Sobre João Henriques Ulemcamp podem-se obter alguns informes biográficos na obra de Ernesto Vieira, Diccionario

biographico de musicos portugueses, 2 vols., Lisboa, 1900, p. 489.

9 ANTT, Cartório Notarial, nº 11, Livro 18, 1711, fls. 94-95.

10

ANTT, Cartório Notarial, nº 9-A, Livro 381, 1721, fls. 68vº-69vº.

Órgão da Sé de Faro, construído por Arp Schnitger

Page 5: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

5

de que o de S. Francisco possui 20 registos e não 12 como os que Schnitger mandou

para o nosso país em 1701.

A principal razão que levou Esteves Pereira a admitir a autoria de Arp Schnitger

prende-se com o facto de ter lido uma mensagem assinada por C. David11

– que se

encontrava colada junto à ombreira da porta que dá acesso ao interior da caixa do órgão

– na qual se afirma o seguinte:

"Este órgão foi encomendado

pelo Revmº Cabido desta Cate-

dral no anno de 1715 ao orga-

neiro João Henriques, residente

em Lisboa o qual veio colo-

cal-o em 1716.

No anno de 1767 foi aumen-

tado com jogos novos e (novos) re-

gistos entre os quaes foi [pos-]

to o d'echo e contra echo pe-

lo organeiro Pascoal.

Foi limpo e afinado nos annos

de 1722, 1775,1814 e ultimo

no mez de Agosto de 1874 pelo

organeiro hespanhol D. Fran-

cisco Alcaide.

No compartimento inferior deixo

[???]..............................

C. David"12

Como se constata, as informações aí contidas são bastante preciosas para o

esclarecimento da (presumível) origem, data de aquisição e autoria do órgão. O ano de

1716, que também se encontra gravado na caixa do mesmo, parece confirmar uma

"encomenda" feita pelo Cabido de Faro a um organeiro de nome João Henriques.

Bastou essa referência para que Esteves Pereira supusesse tratar-se do organeiro alemão

Johannes Heinhrich Hulemkamph, cuja adaptação para português redundara em João

Henriques Ulemcampo. Acontece que Arp Schnitger tivera entre os seus colaboradores

precisamente este Hulemkamph, resultando daqui a hipótese deste organeiro ter vindo

11

Trata-se do cónego António Fernandes da Cruz David, que nasceu em Faro a 22-7-1834 e era filho de Manuel Fernandes

David, natural de Pedrógão, da diocese de Coimbra, e de Maria Theodora da Cruz, natural de Faro. Curiosamente, o pai

viera para esta cidade aprender o ofício de Farmacêutico no Colégio dos Carmelitas Descalços.

No Arquivo da Câmara Eclesiástica de Faro, Livro dos Empregados Eclesiásticos, consta que se ordenou presbítero em

19-9-1857; foi Ajudador da Sé de Faro desde 1858 até 2-4-1865, ano em que foi promovido a Encomendado na Reitoria,

voltando a Ajudador na Sé desde 8-1 até 24-10-1866, altura em que foi Encomendado para a Igreja de S. Pedro. Todavia,

em 1866, já era Cónego. Faleceu a 12-12-1889.

12

Transcrito por L. A. Esteves Pereira, op. cit., p. 3.

Page 6: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

6

para Portugal no princípio do século XVIII acompanhado dos tais órgãos enviados pelo

seu mestre. No entanto, voltamos a lembrar que nos contratos relativos aos órgãos de S.

Francisco e do Carmo é o nome de João Henriques que unicamente aparece citado. De

qualquer modo, ainda que todas estas hipóteses possam corresponder à verdade e

mesmo que na concepção estrutural dos órgãos existam fortes semelhanças com os seus

congéneres alemães, parece-me algo forçada a atribuição da autoria a Arp Schnitger.

Em suma, a tese de Esteves Pereira poderá esquematizar-se da seguinte forma:

a) O escrito colado no órgão de Faro e assinado por C. David comprova a data de

1716.

b) O nome de João Henriques deveria corresponder ao do organeiro hamburguês

Hulemkamph, construtor dos órgãos de S. Francisco e do Convento do Carmo em

Lisboa.

c) Sabendo-se que, nos princípios do século XVIII, Arp Schnitger enviou para

Portugal dois órgãos e que Hulemkamph era seu colaborador directo, fácil se torna

admitir que a construção do mesmo tenha pertencido àquele mestre alemão.

d) A semelhança existente com o órgão de Cappel, da comprovada autoria de Arp

Schnitger, indicia um construtor comum. A análise técnica do órgão de Faro parece

indicar uma origem alemã.

Não obstante tudo quanto ficou dito, permanece em aberto a questão por inteiro,

visto não terem sido aduzidas provas concludentes.

E o certo é que tanto Esteves Pereira como os investigadores que a seguir iremos

referir ainda não descobriram o contrato, o recibo ou a nota de encomenda do órgão

pelo cabido farense, documentos que poderiam revelar definitivamente as suas origens.

II. A dúvida criteriosa impregna o espírito

hermenêutico da História.

– A tese de Pinheiro e Rosa.

O conhecido investigador e académico José António

Pinheiro e Rosa, após ter lido o estudo de Esteves Pereira,

escreveu no semanário farense «Folha do Domingo» uma série

de artigos subordinados ao título "E o mudo falou... O órgão da Sé de Faro"13

. Com base

nos livros capitulares (Acórdãos do Cabido e Contas da Fábrica da Santa Sé Catedral)

o autor concluiu que nenhuma destas fontes documentais comprova a encomenda de um

órgão efectuada pelo Revmº Cabido de Faro a João Henriques, que o teria vindo colocar

13

Ver «Folha do Domingo» de 18 de Outubro a 15 de Novembro de 1969.

Page 7: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

7

nesta Sé Catedral em 1716. Bem pelo contrário, nos livros capitulares transparece a

existência do(s) órgão(s) desde 1628 e com referência a certos detalhes que inibem

quaisquer hipóteses de substituição do mesmo nos séculos seguintes. Ficariam, deste

modo, refutadas as informações apensas pelo cónego Cruz David no interior da caixa

daquele instrumento.

Relativamente à inscrição de "1716" – gravada a ouro no próprio órgão – admite

que teria sido ali incrustada pelo pintor Francisco Correia em 1751 durante a vacância

da Sé, «por saber que, nesse ano, o órgão tinha sido colocado no seu coreto, transferido

do coro, onde a princípio estivera, tendo os foles no coreto por cima do baptistério, que

só após o terramoto [de 1722] passaram para o fundo do coro, onde agora estão».14

Referindo-se à tese de Esteves Pereira contesta-lhe, ainda, a comparação

estabelecida com o órgão de Cappel, por esta se fundamentar em razões de semelhança

que lhe parecem algo forçadas e até inexistentes. Com efeito, Pinheiro e Rosa sustenta

que as diferenças entre ambos são notórias e até acentuadamente distintas:

1º A caixa do órgão de Faro é nitidamente uma peça artística que deverá remontar

ao reinado de D. João V, sendo quase certa a intervenção de pintores e entalhadores

portugueses.

2º Do meio da fachada até à base, as

duas caixas são diferentes do órgão de

Cappel.

3º A pintura e a douradura datam de

1751, conforme se atesta nos livros

capitulares.

4º A divisão dos registos do positivo

de peito, embora de fabrico alemão,

deveria ser originária do século XVII. De

qualquer modo, as reformas operadas pelo

organeiro italiano D. Pascoal Caetano

Oldovini, pouco depois do terramoto até

1779, alteraram substancialmente o

processo dos registos, embora sem

conseguir modificar a qualidade

«aveludada do próprio som».15

De qualquer modo, a tão criteriosa

quanto inquietante incerteza em que Pinheiro e Rosa se mantinha inamovível prende-se,

única e exclusivamente, com a falta de provas documentais que asseverem a compra do

14

J. A. Pinheiro e Rosa, A Catedral do Algarve e o seu Cabido. Sé em Faro, 2 vols., Faro, separata dos «Anais do

Município de Faro», 1983-1984, vol. I, p. 81.

15

J.A. Pinheiro e Rosa, Órgãos, organistas e organeiros no Algarve dos séculos XVII a XX, Lisboa, Instituto Português do

Património Cultural, 1987, pp. 9-10.

O Prof. Pinheiro e Rosa, nos anos sessenta, tocando

órgão na Igreja de São Lourenço de Almancil

Page 8: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

8

órgão de Faro. Estranha sobremaneira aquele investigador que a aquisição de tão

preciosa quanto avultada peça da nossa arte musical não tenha ficado registada nos

livros capitulares. Por outro lado, interroga-se sobre o destino que teria tido o órgão (ou

órgãos) que os documentos referenciam desde 1628.

Apesar de tudo, Pinheiro e Rosa não parecia interessado em alimentar polémicas,

frisando até que não pretendia contestar a possibilidade do órgão da Sé de Faro ter sido

construído por Arp Schnitger e de João Henriques Ulemcamp ter servido de

intermediário no negócio da compra do mesmo. Não vale a pena desmanchar prazeres

enquanto não aparecer o tal recibo ou uma prova fidedigna da sua aquisição – diríamos

nós pelo autor!

III. A reformulação da hipótese inicial origina uma dissertação de

doutoramento.

O mais recente investigador que a este assunto dedicou a sua atenção foi o Prof.

Doutor Marcello Martiniano Ferreira16

, que na sua dissertação de doutoramento,

defendida em Roma, desenvolve uma perspicaz cadeia de raciocínios e argumentos

lógicos, fundamentados na investigação histórica e, sobretudo, na constituição técnico-

estrutural do órgão, a ponto de concluir que existem fortes semelhanças (quase uma

duplicação) com um seu congénere na Sé de Mariana, no estado de Minas Gerais, no

Brasil.

Trata-se, com efeito, de um estudo sério e cientificamente conduzido, que tivemos

a oportunidade de apreciar atentamente na edição dactilografada apresentada ao

Instituto de Musica Sacra de Roma. A opinião com que ficamos é a de que constitui um

esforço imenso para provar que o órgão da Sé de Mariana – que o autor conhece ao

pormenor – era uma espécie de "irmão gémeo" do de Faro. A expressão é do próprio

autor. Mas, para que assim pudesse ser considerado, impunha-se saber quem teria sido o

"pai", o que o autor não conseguiu apurar com toda a certeza, senão através de

aproximações de semelhança técnica que o induziram a atribuir a mesma identidade,

autoria ou "paternidade".

Mas vejamos as razões que levaram o Prof. M. M. Ferreira a interessar-se pelo

órgão de Faro.

Em primeiro lugar, este organista brasileiro e especialista em música sacra estudou

em pormenor o órgão da Sé de Mariana, sobre cujo passado histórico decidiu elaborar

16

Marcello Martiniano Ferreira nasceu em Ponte Nova, no estado de Minas Gerais, Brasil, a 27-11-1932. Estudou no

colégio Salesiano, onde fez o seu noviciado, e frequentou a classe de piano da Prof.ª Helena Lodi em Belo Horizonte.

Exerceu o múnus religioso no Rio de Janeiro em cuja Universidade se diplomou em piano, seguindo depois para Roma onde

se especializaria em órgão no Instituto Pontifício Superior de Música Sacra. Obteria ainda o curso de cravo no

Conservatório de St.ª Cecília. Especializou-se em órgão e cravo na "Schola Cantorum" de Paris, na Escola Superior de

Música em Munique, em Haarlem na Holanda e em Perusa na Itália. No Instituto Pontifício de Musica Sacra, em Roma,

defendeu, a 18-4-1985, a sua Tese Doutoral que foi aprovada com distinção e louvor.

Page 9: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

9

um trabalho de carácter académico. Surgiu, assim, a ideia de realizar a sua dissertação

de doutoramento. Contudo, o seu orientador de tese sugeriu-lhe que encetasse uma

estratégia de investigação com base no método comparativo, na medida em que sendo o

órgão de Mariana da (suposta) autoria de Arp Schnitger outros encontraria, certamente,

da mesma origem na Alemanha. Aquela sugestão ficaria ainda mais reforçada quando o

organista e musicólogo Helmut Winter – que em 11-5-1974 viera inaugurar o órgão de

Faro depois do seu restauro na empresa holandesa D. A. Flentrop de Zaandam,

efectuado entre 1972 e 1974 a expensas da Fundação Caloustre Gulbenkian – o

informou que na capital do Algarve existia um órgão muito semelhante ao de Cappel.

Sabendo-se que este último era da autoria de Arp Schnitger e que o de Mariana se

atribuía ao mesmo construtor, fácil se tornou deduzir que o de Faro, pelas semelhanças

artísticas existentes com os anteriores, seria da mesma origem.

E, de facto, o Prof. M. M. Ferreira

após ter procedido a minuciosas análises

comparativas entre os dois órgãos, do

Brasil e do Algarve, concluiu que

pertenciam ambos ao mesmo construtor.

Mas, se umas vezes essas semelhanças

eram quase evidentes, noutras, porém,

diferiam substancialmente, o que o autor

procurou tornear, justificando-as através

dos restauros e acrescentamentos

introduzidos em 1767 por D. Pascoal

Caetano Oldovini, cujas alterações técnicas

não seriam conhecidas ou utilizadas na

Alemanha.

Muito embora a obra do Prof. M. M.

Ferreira se possa considerar de grande

mérito, especialmente pelo facto de se

estribar em numerosos documentos (a

maioria dos quais já haviam sido

compulsados por Pinheiro e Rosa), o certo

é que lhe faltam provas concludentes

acerca da data original do órgão, o que, no

caso, contraria bastante os pressupostos e

objectivos primaciais da própria tese.

Deixamos, acima, explícito, e de forma resumida, que pertencem a Pinheiro e Rosa

alguns dos argumentos que a posteriori viriam a constituir fundamentais objecções à

tese do investigador brasileiro. Por consequência, a refutação desses argumentos

deveria transformar-se nos pilares de sustentação da obra do Prof. M. M. Ferreira.

Vejamos, então, como o doutorando procurou contrariar o seu involuntário

opositor:

Órgão da Igreja de Mariana da autoria de Arp Schnitger

Page 10: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

10

1. Apesar de nos livros capitulares – dos «Acórdãos» e da «Fábrica» – se constatar

a existência do(s) órgão(s) desde o séc. XVII, nada obsta a que no princípio da centúria

seguinte se tivesse adquirido um novo, para substituir outro velho.

2. Muito embora as fontes documentais não refiram a encomenda do órgão novo –

tanto em 1715 como nos anos anteriores ou posteriores a essa data – não significa isso

que a aquisição não se tivesse efectuado, devido às seguintes razões:

a) Os livros capitulares registam os movimentos económicos de forma muito

sintetizada, incompleta e até truncada em vários lugares. Como prova disso refere que

em 1747 o cónego Bartolomeu Gárfias apresentou ao Cabido um requerimento a pedir

justificação testemunhal de acórdãos tomados no livro que compreende o período de

1701 a 1718, cujas páginas foram arrancadas, mais concretamente as folhas 63-64 e 87-

88.17

b) Confirma-se esta situação em 1715 através da falta de registo dos acórdãos de

13-3 a 17-4, de 26-4 a 12-6 e de 22-6 a 16-12-1715. Também não se transcreveram nos

livros competentes os acórdãos de 29-12-1715 a 20-2-1716, de 4-3 a 23-5, de 20-6 a 8-

8, de 6-10 a 27-10, e, igualmente, nada consta entre Novembro e 12-12-1716.

c) Estes lapsos cronológicos são deveras estranhos quando se sabe que o Cabido

farense se reunia todas as 5ª feiras, não sendo de admitir tão longos hiatos como os que

aconteceram no último semestre de 1715. Além disso, nesse ano a falta de assentos no

livro dos acórdãos totaliza cerca de oito meses e meio. E no ano de 1716 a soma das

lacunas ou interrupções totaliza cerca de sete meses. Apesar de entre 1710 e 1715 se

verificar uma situação de Sé vaga, nada poderá desculpar tão grandes falhas.

d) Muitas das portarias que obrigavam o Tesoureiro a pagamentos de certo vulto

não foram transcritas nos livros dos Acórdãos ou da Fábrica, por constituírem em si

mesmos aquilo a que se chama “papéis avulsos”, sendo previsível que com o decorrer

dos tempos se tivessem perdido. Por isso, a compra do órgão poderia constar numa

dessas portarias.

e) Nos livros da Fábrica não se deveria inscrever a compra do órgão, visto tratar-se

de uma despesa que estaria fora da administração ordinária da Sé. Importa esclarecer

que nesses livros apenas se deveriam citar as despesas relacionadas com as obras de

restauro ou de instalação dos bens patrimoniais. Por isso, as obras do coro alto neles

registadas em 1716 parecem indiciar a instalação do novo órgão: «as verbas registadas

com obras no coro alto nesta época (1716) só se explicam cabalmente como

consequência das modificações que o novo órgão impôs na distribuição do espaço do

coro: nova varanda (coreto), alargamento do espaço para os cónegos e para os

cantores, etc».18

17

Arquivo da Sé de Faro, Livros dos Acórdãos, 1747, doc. avulso. Neste requerimento o cónego Bartolomeu Gárfias

queixa-se não só do arranque de folhas como também de não terem sido escritos vários acórdãos tomados nessa época.

18

Marcello Martiniano Ferreira, op. cit., vol. I, p. 48.

Page 11: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

11

Os documentos que confirmam estas obras revelam que as mesmas se prolongaram

por mais de dois anos.19

f) Nas referidas fontes documentais, a partir de 1716, apenas constam dois assentos

de despesa relacionados com o órgão, o que contrasta com os frequentes gastos

efectuados em anos anteriores. Esta situação parece sugerir que a partir daí o órgão seria

outro, provavelmente novo. Saliente-se que o primeiro caso ocorreu em 172220

, por

causa do terramoto21

, que obrigou à sua afinação, e em 1743 por precisar de um

conserto de que resultaria um melhoramento.22

Apesar de todas estas justificações, que pretendem substanciar a confirmação

lógica da data de 1716 como originária do órgão (corroborando, assim, o letreiro do

cónego David e a inscrição dourada colocada acima da tampa do someiro do órgão

positivo de peito), nada se acrescenta de concreto e indubitável acerca desta tão simples

quanto imprescindível interrogação: Quem pagou o órgão? E quem lhe descobrir a

resposta poderá confirmar ou aniquilar a tese do Prof. M. M. Ferreira!

Na impossibilidade de poder resolver esta questão, o autor adianta algumas

hipóteses que, por enquanto, aguardam ratificação ou refutação documental. Vejamos

quais são essas hipóteses:

1. Tal como D. João V ofereceu

à Sé de Mariana um órgão, também

o poderia ter feito à Catedral de

Faro, até pelo facto de ambos serem

tão parecidos que se poderiam

considerar "gémeos". Mas se não foi

o rei o ofertante, podia tê-lo sido a

Rainha, a cuja Casa pertencia, como

se sabe, a cidade de Faro. Talvez,

ainda no âmbito destas hipóteses, se

possa acrescentar a intercepção

favorável do Secretário de Estado, Cardeal D. João da Mota e Silva, que tinha um

19

Arquivo da Sé de Faro, Livro da Contadoria, 1716, fl. 86vº, onde se regista a verba de 354$420 réis para pagar aos

oficiais que trabalharam nas obras do coro.

Idem, Livro da Fábrica, 1717-1718, fls. 34-35, nas quais se refere o dispêndio de 114$750 réis para acabar de fazer a

obra do coro.

20

Arquivo da Sé de Faro, Livro dos Acórdãos, 1718-1730, fls. 62-62vº, acórdão de 18-6-1722, onde se refere o pagamento

de 15 moedas de 4$800 réis cada a um afinador, por causa da chuva que se infiltrou pelas fendas provocadas pelo terramoto

e caiu sobre o órgão.

21

Em 1716 tudo parece indicar que o órgão grande foi instalado no coreto da nave lateral norte, o que se confirma em 1722,

visto que na altura do sismo então ocorrido fez-se sentir um forte vendaval que inundou de água os foles do órgão,

precisando, por isso, de ser afinado. Já agora, refira-se que o terramoto de 1722 fez ruir o arco do coro alto da Sé e

provocou vários outros estragos, sobretudo na torre-fortaleza.

22

Arquivo da Sé de Faro, Livro dos Acórdãos, 1743-1746, fls. 10-10vº, acórdão de 10-5-1743, no qual se afirma que o

órgão necessitava de 24 cléricos e de trombetas na fachada, importando isso na quantia de 14 moedas de ouro.

Igreja de Mariana, construída no séc. XVIII em estilo Barroco

Page 12: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

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irmão, Pedro da Mota e Silva, como cónego da Sé de Faro. Aliás em 1715-1716 andava

este Pedro da Mota em Lisboa a proceder a diligências encomendadas pelo Cabido,

podendo-se atribuir a este cónego (que também haveria de ser Secretário de Estado) um

provável pedido de oferta dum órgão para a Sé de Faro.

[Mas o Prof. M.M. Ferreira não descobriu nem conhece quaisquer documentos que

comprovem ou indiciem a veracidade destas hipóteses. Se alguma delas tivesse ocorrido

certamente o Cabido agradeceria, por escrito, tão avultada dádiva.]

2. Outra hipótese seria a doação do órgão por parte de um benemérito, eclesiástico

ou leigo.

[Mas quem? A troco de quê? Por que razão?]

3. Podia admitir-se a compra do órgão com os remanescentes dos "foros dos

órgãos", pois que, na verdade, estes existiam como receita do Cabido para a sustentação

dos organistas, reparações, etc. E se assim fosse não teria o Cabido que agradecer a

ninguém.

[Esta hipótese tem lógica; porém,

o rendimento desses foros não parece

ter sido muito substancial, para além

de que sempre se despendia uma boa

parte nos vencimentos dos organistas e

até nas reparações ocorridas antes de

1716, o que põe de parte a hipótese de

poupanças desde longa data.]

4. O Cabido podia ter comprado o

órgão com verbas que não fossem da

«Fábrica», no que podia contar com a

ajuda da «Mesa Episcopal» [se esta

não estivesse exaurida. Também neste

caso a hipótese parece improvável].

*

* *

Provas documentais? Não há, ou

pelo menos ainda ninguém as

encontrou. Só uma aturada investigação

nos livros do Corpo Cronológico e da

Chancelaria de D. João V, guardados na Torre do Tombo, ou no Arquivo de Mafra

(rico em documentação que se prende com a história da música no séc. XVIII), poderia

concorrer para aclarar estas questões.

Órgão da Sé de Faro, igualmente da autoria de Arp Schnitger

Page 13: O órgão da sé de faro

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

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Pessoalmente, creio que as minuciosas pesquisas efectuadas por Pinheiro e Rosa e

pelo Prof. M. M. Ferreira no Arquivo Eclesiástico de Faro, fazem supor que a prova

documental, relativa à aquisição do órgão da Sé, deverá ser procurada noutros locais e

noutras fontes, pois é de presumir uma colaboração financeira externa ao Cabido para

este efeito. Enquanto não se descobrir o recibo de pagamento, ou um documento que

comprove a doação do órgão, ninguém poderá afirmar, de forma incontestável, que a

sua autoria pertence a Arp Schnitger, ou que nesta Sé Catedral foi o mesmo instalado

em 1716.

De qualquer modo, e depois de termos lido com certo cuidado a tese do Prof. M.

M. Ferreira, não podemos deixar de concordar que os órgãos de Mariana e de Faro são

muito parecidos. Como o órgão de Cappel, na Alemanha, é da autoria de Arp Schnitger

e possui algumas semelhanças com estes dois, parece lógico admitir que também eles

pertenceriam ao talento do mestre germânico. Todavia, uma coisa é o parecer e outra o

ser. As razões aduzidas pelos investigadores aqui citados, apesar do respeito que nos

merecem, carecem, no entanto, de um alicerçamento documental, capaz de sustentar,

sem quaisquer tibiezas, as suas teorias.

Muito particularmente, estou em crer que o órgão é de facto do século XVIII e

poderá ser até de 1716; mas duvido que pertença a Arp Schnitger. Só a descoberta de

melhores provas poderá, repito, desvendar este imbróglio.

Para terminar, não posso deixar de remeter os estudiosos interessados na técnica

musical dos órgãos setecentistas para a dissertação de doutoramento do Prof. M. M.

Ferreira, que, neste aspecto particular, reputo de brilhante. A apreciação dos elementos

constitutivos dos dois instrumentos e a qualidade do som por eles obtidos é, nesta obra,

analisada até ao mais ínfimo pormenor, seguindo os trâmites duma metodologia

bastante rigorosa. O facto de se tratar de uma obra de índole académica, que se reveste

de particular interesse para o estudo do património musical algarvio, merece da nossa

parte o maior apreço e satisfação.