o olhar treinado e a autoridade do especialista...arquiteturas, indumentárias, mobiliário,...
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O "olhar treinado" e a autoridade do especialista
Rafael Zamorano Bezerra1 [email protected] / [email protected]
Museu Histórico Nacional/Ibram/MinC PPGPatrimônio/COC/FIOCRUZ
Resumo
Neste texto analisou-se a autoridade do especialista exercida pelos conservadores do Museu Histórico Nacional (MHN) formados durante as primeiras décadas do Curso de Museus. Seus práticas eram baseadas nas chamadas "ciências auxiliares da história" e na correta identificação e classificação do objeto musealizado: o "olhar treinado". Buscou-se entender a atuação da autoridade do especialista na formação e na gestão das primeiras coleções do MHN, além do estudo de em um caso específico do ano 2000. A análise de como o especialista mobiliza seus conhecimentos na classificação de objetos é um meio de compreender a própria racionalidade do campo das coleções, em especial no MHN.
Palavras-chave: Objeto histórico. Autoridade. Museu Histórico Nacional. Museologia.
Who is to be the judge of skill? Presumably, either the expert and the nonexpert. But it cannot be the nonexpert, for he does not know what constitutes skill (otherwise he would be an expert). Nor can it be the expert, because that would make him a party to the dispute, and hence untrustworthy to be a judge in this own case. Therefore, nobody can be the judge of skills.2
1 Doutor em História. Responsável pelo Núcleo de Pesquisa (Nupes) do Museu Histórico Nacional (MHN). Professor colaborador do Mestrado Profissional em Preservação e Gestão do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz) e professor do Mestrado Profissional em Ensino de História (ProHistoria/Unirio). Coordenador do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC/CNPq-Ibram) e bolsista de Pós-doutorado Júnior do CNPq. 2 WALTON, Douglas. Legal argumentation and evidence. Pennsylvania: Penn State Press. p. 178. [Quem é o juiz da expertise? Presumidamente, tanto o especialista como o leigo. Porém, não pode ser o leigo, por que ele não sabe o que constitui a expertise (de outra forma ele seria um especialista). Não pode ser o especialista, uma vez que ele poderia tomar partido na disputa e, deste modo, desonestamente, ser o juiz do seu próprio interesse. Consequentemente, ninguém pode ser juiz da expertise.] Tradução livre do autor.
O saber específico constitui autoridade, sendo, portanto, produtor de autenticidade.
Isto é evidente quando se trata da definição e da resolução de certos assuntos, como no
reconhecimento de autenticidade de artefatos e objetos. No campo de pesquisa da “cultura
material”, onde podemos inserir os estudos da museologia, da arqueologia, da história e da
antropologia, o conhecimento especializado é a principal forma de certificação de
autenticidade.
No caso dos patrimônios culturais, em sua vertente material, a exigência por
autenticidade é muitas vezes baseada em critérios científicos. Isso faz com que o saber
especializado seja a instância autorizada para produzir provas, emitir laudos, identificar
datações e estabelecer autorias. Instâncias análogas são componentes incontornáveis da
constituição de acervos museológicos, tal como ocorre com as coleções do Museu Histórico
Nacional (MHN).
O MHN foi idealizado e inaugurado como parte das comemorações do Centenário
da Independência do Brasil em 1922. Seu idealizador, Gustavo Barroso3, foi um intelectual
polígrafo adepto de uma tradição histórica monumental, com ênfase nos grandes feitos e
nos grandes homens. A história nacional que Barroso imprimiu na instituição ao longo de
35 anos como diretor aproxima-se à produzida pelos historiadores do IHBG, no final do
século XIX e no início do XX. Autores como Joaquim Norberto, Oliveira Lima, Visconde
de Porto Seguro, Vieira Fazenda, Pedro Calmon, Edgar Romero, entre outros, são
recorrentes nas referências citadas nas páginas dos primeiros volumes dos Anais do MHN,
embasando pesquisas que visavam à certificação ou não da autenticidade histórica de
diversos objetos do acervo do Museu. Ao selecionar objetos para o acervo do MHN,
Barroso lhes atribuía valores "histórico" e "nacional". A seleção por si só implica
estabelecer a diferença entre o que é “histórico” e o que não é, pois, como lembra Meneses,
3 Gustavo Barroso foi membro das principais agremiações culturais do país como a Academia Brasileira de Letras, cujo ingresso, com apenas 35 anos, o tornou o membro mais jovem a fazer parte da instituição. Em 1931, passou a integrar o grupo de sócios do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). Também fez parte de instituições congêneres do exterior, como a Academia de Ciências de Lisboa e a Sociedade de História Argentina. Em 1934, indicado por Washington Pires, foi nomeado representante do Brasil junto à Comissão Internacional de Monumentos Históricos do Instituto Internacional de Cooperação Intelectual, da Liga das Nações. No mesmo ano, tornou-se responsável pela Inspetoria de Monumentos Nacionais (IMN), criada como um departamento do MHN. A IMN realizou reformas em 35 monumentos de Ouro Preto, sendo desativada em 1937, por conta da criação do SPHAN. Cf. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando relíquias. Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais, 1934 a 1937. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2004.
os atributos intrínsecos dos artefatos incluem apenas propriedades de natureza físico
química, ao passo que nenhum atributo de sentido é imanente. O objeto “transforma-se” em
objeto histórico na medida em que é valorado segundo determinados critérios4. Para
Barroso, esses critérios relacionavam-se aos vultos da história pátria, aos grandes
acontecimentos, ao Estado, à Igreja, às elites locais e regionais. O ordinário, o de “valor
utilitário”, os objetos da vida cotidiana e do trabalho deveriam ser conservados em um
museu ergológico5.
Embora não existisse uma política formalizada de aquisição de acervo, a maioria
dos objetos recolhidos por Barroso datava do século XIX. Muitos são oriundos de coleções
particulares, órgãos públicos e de outras instituições de memória, como o Antigo Museu de
Artilharia, o Arquivo Nacional, o Museu Nacional, o Museu Militar e o Museu Naval.
Barroso e os demais conservadores do MHN estudavam minuciosamente medalhas,
condecorações, brasões, selos, moedas e escavações. Trata-se de um método de trabalho
próximo às práticas da tradição antiquária dos séculos XVII e XVIII, tal como observado
por Santos e Magalhães6. A valorização da numismática, importante no estabelecimento de
cronologias e na escrita de uma história política e do estado, significava a preocupação com
uma cientificidade nas atividades do Museu, visto que no MHN o estabelecimento da
nacionalidade convivia com pretensões de cientificidade. Tratava-se de um método de
trabalho que harmonizava o extremo da generalização – na qual a ideia de nação parece ser
o melhor exemplo – e a abrangência da história ilustrada com o detalhamento minucioso da
erudição e das práticas antiquárias.
O MHN uniu, portanto, o “culto da saudade” à pesquisa histórica baseada em fontes
materiais, estudadas através das chamadas “ciências auxiliares da história”. O melhor
4 MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Do teatro da memória ao laboratório da História: a exposição museológica e o conhecimento histórico. Anais do Museu Paulista. São Paulo, v. 2 p. 9-42 jan./dez. 1994. 5 De acordo com Barroso, o Museu Ergológico deveria abarcar as seguintes áreas: mobiliário; alimentação; indumentária; moradia; arte naval; transporte; medicina; tecidos; tintas; decorações; esteiras; cestas; cerâmicas; brinquedos; arreios; entrançados de couro; obras de chifre; objetos de tartaruga; carpintaria; trabalhos em madeira; artefatos de cobre; curtume; pescaria; ourivesaria; prataria; ferraduras; marcas de gado etc. BARROSO, Gustavo. Museu ergológico brasileiro, desenvolvimento de estudos folclóricos em nosso país, um esquema ergológico, outras notas. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 3, p. 433-488, 1945. 6 SANTOS, Myrian. S. A escrita do passado em museus históricos. Rio de Janeiro: IPHAN, 2006. MAGALHÃES, Aline. M. Colecionando relíquias. Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais 1934 a 1937. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 2004.
exemplo da formalização dessas práticas é a criação do Curso de Museus, em 1932, como
um departamento do MHN, tendo sido um dos primeiros cursos do mundo dedicado ao
ensino do que podemos chamar hoje de museologia, que se voltava para a capacitação dos
funcionários do próprio Museu e de instituições afins. Ainda que os museus tenham sido
laboratórios para os mais diversos campos do saber, como a antropologia, a arqueologia, a
história da arte e a história natural, e para um projeto de história nacional (como nos países
latino americanos durante a construção dos estados nacionais, no período pós-
independência) a ideia de investir em conservadores de museus ocorre somente no século
XX. Por muito tempo, os museus, em suas várias tipologias, eram considerados campo de
atuação de arqueólogos, de naturalistas, de antropólogos, de historiadores da arte, de
helenistas e outros especialistas em coleções e em objetos. Os estudos, até então,
concentravam-se nos acervos, na identificação dos artefatos, sobretudo como forma de
decifrar textos, inscrições ou datações, procedências e autorias, que ampliavam o
conhecimento sobre as origens e o desenvolvimento das “civilizações” passadas7.
Foi apenas durante a curta gestão do historiador Rodolfo Garcia (1930-1932) que
foi criado o Curso Técnico de Museus. De acordo com o Decreto nº 21.129 de 7 de março
de 19328, o curso estava ligado diretamente à direção do Museu, com duração de dois anos
e com o objetivo de habilitar técnicos para ocupar o cargo de 3º Oficial do MHN. Assim, a
capacitação dos funcionários do MHN era realizada no próprio Museu, uma vez que seu
decreto de criação especificava estabelecer “[...] um Curso de Museus destinado ao ensino
de matérias que interessam à mesma instituição”.
O quadro de professores era composto pelos funcionários do MHN, incluindo
Gustavo Barroso, professor de Técnica de museus, Sigilografia, Epigrafia e Cronologia. Os
outros professores eram Rodolfo Garcia e Pedro Calmon, professores de História política e
administrativa do Brasil, Joaquim Menezes de Oliva, professor de História da arte, João
Angyone Costa, professor de Arqueologia aplicada ao Brasil, e Edgar de Araújo Romero,
professor de Numismática.
7 SÁ, Ivan Coelho de. As matrizes francesas e origens comuns no Brasil dos cursos de formação em arquivologia, biblioteconomia e museologia. Acervos. Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro, 26 dez. 2013. Disponível em: <http://revistaacervo.an.gov.br/seer/index.php/info/article/view/623>. Acesso em: 26 fev. 2014. p. 34. 8 BRASIL. Decreto nº 21.129 de 7 de março de 1932.
Em 1945, Barroso publicou o livro Introdução à técnica de Museus como material
didático do curso e que teve bastante influência na formação de diversos museólogos que
atuaram no MHN e em outras instituições. No livro, Barroso apresenta os conhecimentos
básicos “necessários a um verdadeiro conservador”, o que pode ser entendido como um
resumo do currículo e do conceito do Curso de Museus na época de Barroso. Publicado em
dois volumes, a primeira parte do livro é dedicada ao processamento técnico de acervo, e a
segunda é relativa ao estudo das coleções que compunham o universo do MHN.
Os dois volumes consistem em uma compilação dos conhecimentos de Barroso e de
suas aulas, uma vez que eram utilizados como manual por seus alunos. Tais conhecimentos
incluíam: heráldica, noções de bandeiras, condecorações, armaria, arte naval, viaturas,
arquiteturas, indumentárias, mobiliário, cerâmica, cristais, joalheria, prataria, bronzes
artísticos, mecanismos e instrumentos de suplício.
A ideia do curso era capacitar os conservadores a “lerem” os objetos coletados pelo
Museu, visando à sua classificação. Portanto, as chamadas “ciências auxiliares da história”
tinham um papel fundamental neste trabalho, ainda mais no caso “particular do Museu
Histórico Nacional, que é uma instituição destinada a conservar relíquias do nosso
passado”9. Tais conhecimentos eram fundamentais não somente para a classificação dos
objetos, mas também no reconhecimento de sua autenticidade. Das “ciências auxiliares da
história”, o conhecimento heráldico era um dos mais valorizados, a ponto de Barroso
afirmar o seguinte: [...] é meramente impossível dirigir ou prestar serviços técnicos a um instituto no gênero do Museu Histórico Nacional sem amplos e profundos conhecimentos de heráldica [...]10. [...] é regra fundamental da heráldica não pôr nunca num brasão metal sobre metal, cor sobre cor e pele sobre pele. Todas as armas que não obedecem a esse princípio básico são anteriores à codificação da arte de brasonar, muito antigas, portanto falsas. Consideram-se por isso sujeitas a inquérito, a um estudo minucioso, não podendo ser aceitas sem esse exame11.
A valorização da heráldica como disciplina indispensável para o trabalho nos
museus mostra como a museologia de Gustavo Barroso estava focada nas famílias
9 BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus. V. 1. Rio de Janeiro: Olímpica, 1933. p. 14. 10 Id. Ibid. p. 16. 11 Id. Ibid. p. 14.
tradicionais do período colonial e imperial, assim como nos objetos relativos ao Estado. A
correta classificação do objeto histórico, nessa perspectiva, passava pelo reconhecimento
dos elementos heráldicos, sendo sua classificação um dos pilares do trabalho dos
conservadores.
O Curso de Museus possibilitou a criação das bases conceituais e práticas do
trabalho cotidiano dos conservadores. Os Anais do MHN foram o principal meio de
divulgação dessas práticas, e seus artigos e monografias, principalmente os publicados
entre 1940 e 197512, tinham o objetivo de difundir o acervo, aferir ou criticar sua
autenticidade, além de publicar o trabalho realizado no museu, tal como podemos ver no
texto da conservadora Dulce Cardozo Ludolf, publicado em 1952:
Atualmente a palavra museu não mais designa um simples depósito de antiguidades. O museu de hoje é um centro de pesquisas. Seus funcionários esmiúçam a origem, a qualidade e o valor dos objetos, preocupam-se com os problemas técnicos de sua apresentação e de sua conservação, com a influência que exercem sobre a educação dos visitantes. Para atender a todos esses problemas, uma série de especializações se torna necessárias13. [...] no âmbito da pesquisa podemos estabelecer dois campos completamente diversos, ambos importantes. Em primeiro plano, a pesquisa do objeto propriamente dito, atribuição inerente ao conservador e uma das suas principais funções. Qualquer peça que entra no museu é devidamente classificada. Esta classificação demanda uma série de estudos sobre os mais diversos elementos: onde ela foi feita, em que época, a quem pertenceu, qual é a sua finalidade, a que estilo obedece etc. [...]14.
Ludolf atenta para o fato de que houve uma separação entre as especificidades dos
profissionais dos museus de história e dos museus de história natural. Nestes, eles são
considerados “naturalistas”, enquanto que nos museus históricos e artísticos,
“conservadores”. Ao trabalho dos conservadores ela atribuía um caráter científico, cuja
autoridade derivava dos conhecimentos científicos e técnicos, como a autoridade intelectual
12 Corresponde à primeira série dos AMHN. A seriação foi interrompida em 1975 e retomada 20 anos depois, em 1995, sendo publicada interruptamente até os dias atuais. 13 LUDOLF, Dulce Cardozo. A nova diretriz dos museus. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. XIII, ano 1952. p. 152. 14 Id. Ibid. p. 193.
de Gustavo Barroso e os saberes numismáticos de Edgar de Araújo Romero e Luiz Carlos
Poliano, por exemplo:
(...) a atuação dos conservadores é, portanto, cientificamente positiva, daí seu prestígio nos meios culturais. (...) espera-se [dos conservadores] o conhecimento da arte e da história, em todas as suas facetas e suas ligações complexas com as outras ciências; o espírito informativo nas consultas; a paciência e a perseverança nas pesquisas; o gosto estético nas arrumações; a síntese e a precisão na elaboração das etiquetas, guias e catálogos15.
A busca pela precisão na classificação do objeto histórico era presente no trabalho
cotidiano da instituição, como afirmou a conservadora Sigrid Porto de Barros, em 1949:
A pesquisa das fontes históricas ou documentos públicos e privados, preconizada pela Heurística, é parte da vida dinâmica do MHN, e ainda que num trabalho de divulgação fosse abandonada qualquer pretensão crítica, para limitar-se a uma simples enumeração de documentos, ainda assim seria prestado algum serviço à ciência histórica, pois estudiosos de toda parte ficariam sabendo com que material contariam para suas pesquisas e exatamente em que local o encontrariam16. [...] em se tratando de coleções de objetos históricos, quer-nos parecer que o ideal é obter objetos de autenticidade comprovada. Desde que, uma vez estudada a origem da peça e a documentação a ela referente, resulte qualquer dúvida que leve ao emprego da expressão clássica: “atribuído a”, melhor será encaminhar a peça à seção de reservas, onde se aguardará a confirmação ou não de sua autenticidade. A preocupação seguinte será a exposição de objetos, face à absoluta procedência de fatos históricos. Explicamos: entre um grande óleo de personagem de pequena relevância histórica e um objeto simples, mas de alta significação pela influência que exerceu num determinado momento, não há que exitar [sic]: é valorizar o pequeno objeto por uma boa apresentação estética17.
Os conservadores do MHN tinham um papel importante na avaliação e na
autenticação de objetos de valor histórico. Pode-se argumentar que, talvez, um dos
objetivos de Gustavo Barroso ao idealizar o MHN era o de que a instituição atuasse como
instância autorizada na avaliação de objetos históricos e antiguidades, espaço ocupado nos
dias de hoje pelas casas de leilões, colecionadores e críticos de arte. No Regulamento da
15 Id. Ibid. p. 161. 16 BARROS, Sigrid Porto de. Armas que documentam a guerra holandesa. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 10, ano 1949. p. 178. 17 Id. Ibid. p. 180.
Inspetoria de Monumentos Nacionais18 constava o seguinte artigo: “Art. 82. O Museu
Histórico Nacional autenticará os objetos artísticos históricos que lhe forem apresentados
mediante requerimento das partes interessadas e de acordo com a tabela anexa”. Tal
procedimento também é destacado no decreto de criação da instituição, quando versa sobre
as atribuições do diretor:
[Cabe ao diretor] ouvir os chefes de seção sobre a autenticidade e a importância histórica dos objetos a serem adquiridos e a conveniência da aquisição, ainda que a título gratuito, todas as vezes que lhe parecer necessário, assim como sobre o plano de classificação a ser adotado em cada seção ou alterações que este tiver de sofrer, podendo ouvi-los igualmente sobre qualquer matéria de serviço do Museu; [Cabe ao diretor] corresponder-se com quaisquer autoridades e solicitar, sempre que julgar de utilidade, o parecer destas ou de particulares, que tiverem razão para ser consultados e quiserem prestar esclarecimentos acerca da autenticidade e importância histórica de objetos a serem adquiridos19.
Durante as décadas de 1940, 1950 e 1960 era recorrente que os funcionários do
MHN fossem requisitados para atestar a autenticidade de artefatos ou realizar avaliações,
principalmente no campo da numismática, um dos carros-chefes do Museu. Muitos
conservadores do MHN são referência em estudos numismáticos, sendo a disciplina uma
das bases da museologia produzida no MHN, inclusive nos dias de hoje. Como observa
Arnaldo Momigliano, o trabalho dos numismatas foi importante na organização de
cronologias históricas e como fonte primária para uma escrita da história política, religiosa
e militar20.
Deste modo, era recorrente que funcionários do MHN fossem requisitados para dar
parecer sobre coleções e objetos, como em 1947, quando a conservadora Dulce Ludolf foi
convidada para apreciar na Bahia uma moeda de ouro, datada de 1855, e pertencente a
Armando Goes de Araújo. O exemplar pertencera inicialmente ao tio, Inocêncio Marques
de Araújo Goes, advogado, deputado pela Bahia e presidente da Província de Pernambuco.
18 Primeiro departamento federal de proteção do patrimônio, criado por iniciativa de Gustavo Barroso e que funcionou como um departamento do MHN de 1934 a 1937. Sobre a trajetória da IMN, cf. MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando relíquias... Op. cit. 19 BRASIL. Decreto Nº 15.596, de 2 de agosto de 1922. 20 MOMIGLIANO, Arnaldo. The Classical foundations of modern historiography. Berkeley, Los Angeles: University of California Press, 1990.
A análise de Dulce Ludolf segue o padrão encontrado em outros trabalhos realizados pelos
conservadores da instituição:
[...] os tipos de anverso e reverso correspondem aos adotados nas moedas do terceiro sistema monetário, terceiro tipo, de D. Pedro II (1853-1889). Falta, porém, no reverso a legenda IN HOC SIGNO VINCES, comum em todas as moedas daquela série, que foi substituída pela inscrição DEOS PROTEGE O BRAZIL, gravada no bordo, que é liso não serrilhado, como ocorre nas outras peças. Esta particularidade é importante de se registrar, pois a inscrição no bordo de moedas é um fato nunca verificado nos exemplares que integram nosso sistema monetário, principalmente tratando-se das séries de ouro, que são sempre serrilhadas21.
A moeda, de acordo com o proprietário, era exemplar único, visto que ele não
encontrou nenhuma informação na Casa da Moeda, o que o levava a crer que a cunhagem
constituísse num ensaio não aprovado, o que se evidenciava pelo fato de não haver
vestígios de circulação na moeda em questão. No entanto, Ludolf escreve ter encontrado
um documento inédito que revelava as circunstâncias de sua cunhagem. O documento
mencionado por Ludolf é uma ata de uma visita que D. Pedro II realizou à Casa da Moeda
em 1855 para assistir aos primeiros trabalhos de uma prensa monetária construída por
operários brasileiros. Durante a visita foram cunhadas 50 moedas de ouro para mostrar ao
imperador o funcionamento da prensa e ao mesmo tempo homenageá-lo. A descrição das
moedas citadas no documento encontrado por Ludolf confere com a análise da moeda da
Bahia. O documento informa que D. Pedro ficou com quatro exemplares (dois de ouro e
dois de prata), sem mencionar o que foi feito com os demais. Assim conclui Ludolf:
Fica assim esclarecido o porquê e em que circunstâncias se efetuou a cunhagem da moeda rara que estudamos e para a qual não houve determinação expressa em lei, uma vez que não se destinava à circulação. Cunhada na presença de D. Pedro II, para demonstrar o funcionamento da nova prensa a vapor, dela tiraram-se apenas 50 exemplares, dois dos quais lhe foram oferecidos. É, pois, sobretudo, uma peça de fantasia, proveniente de cunhagem toda especial, para agradar ao soberano em sua visita à Casa da Moeda. [...]22.
A conservadora ainda procurou informações com os membros da família real, com o
intuito de saber o destino dado aos outros exemplares, contudo nada encontrou. A pesquisa 21 LUDOLF, Dulce. Exemplar único de uma pequena cunhagem. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 8, ano 1947. p. 74-75. 22 Id. Ibid. p. 77. [Grifo da autora].
realizada pela numismata mostra outra faceta do trabalho dos conservadores do MHN: a
busca por indícios que possibilitem o reconhecimento da procedência dos objetos
estudados. Tais informações agregam valor aos objetos em coleção, permitindo, no caso, a
Ludolf afirmar que sua descoberta reveste a moeda “de importância histórica e maior
valor”, ainda mais que no campo numismático, onde a raridade é um elemento de valoração
(e de valorização).
As compras realizadas pela instituição também contavam com pareceres técnicos
dos funcionários, que, além de atestar e pesquisar o valor dos objetos, recomendavam ou
não a efetivação do negócio. Uma citação exemplar disso ocorreu em 3 de novembro de
1960, quando a chefe da Divisão de Numismática e Sigilografia, Yolanda Marcondes
Portugal, encarregou o conservador Antônio Pimentel Winz de negociar com Yeddo
Afonso Moutinho de Solano Barros a compra de medalhas23 para integrar o então recém-
criado Museu da República, que na época funcionava como um departamento do MHN. O
parecer foi favorável à compra, apresenta 20 medalhas “constituídas por peças de grande
raridade”:
Avulta entre esses a série de 14 medalhas de presidente da república de autoria do célebre gravador Augusto Giorgio Girardet, já falecido, que assim, completa, é uma da poucas conhecidas. Foi trabalho dos últimos anos de sua vida a medalha do presidente Dutra, derradeira da série. O preço de cada medalha e da série de medalhas, indicado por seu proprietário está de acordo com o preço pelo quais são vendidos em geral exemplares raros em leilões e casas especializadas. A grande procura por medalhas brasileiras pelos colecionadores e pelos museus recentemente fundados, para suas coleções, tem tornado tais objetos raros no mercado. O bom estado de conservação das medalhas desse conjunto, além das qualidades acima referidas, recomendam sua aquisição24.
Os pareceres sobre autenticidade histórica de objetos emitidos pelos conservadores
do MHN englobavam um vasto universo de objetos. Em 1960, foi encaminhada uma carta
ao MHN por Juvenal Martins Fagundes solicitando a avaliação de um violino de sua
propriedade. A correspondência foi respondida pela conservadora Octávia Corrêa dos
Santos Oliveira, na época chefe da seção de História e Arte Retrospectiva, que “não sendo 23 Cabe ressaltar que, tradicionalmente, o estudo de medalhas (medalhística) não faz parte do universo da numismática, todavia, devido à influência do Arquivo Nacional da França, que juntava as duas tipologias de acervo, optou-se por fazer o mesmo no MHN. 24 MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Correspondência. Ofícios expedidos. Jan. a Jun. 1960. ASDG2 13(3).
propriamente especializada na parte de música e seus instrumentos”, informou que poderia
prestar esclarecimentos no que se referia à parte histórica do objeto. Na primeira
correspondência, a conservadora escreveu que seria complicado autenticar o violino sem
ver o objeto presencialmente: “[...] uma instituição como a nossa ou outra qualquer
especializada no assunto, tal seja a Escola Nacional de Música, não poderá garantir a
autenticidade da peça, sem um exame rigoroso que salvaguarde sua responsabilidade25.
Em outra correspondência, escrita após uma avaliação física do objeto, a
conservadora emitiu o parecer transcrito, em parte, abaixo:
Confirmando tudo o que foi dito na nossa primeira correspondência, que só à vista do objeto poderíamos emitir qualquer conceito ou parecer, passamos a declarar o seguinte: o ano que consta ou que se pode ver pelo ouvido de seu violino em forma de S ou F, está perfeitamente enquadrado na época em que viveu Stradivari, porém logo abaixo vêm as palavras: faciebat e made in Czechoslovakia. Faciebat: imperfeito do verbo latino faciere, isto é fazer, fazia. 2º) Czechoslovakia é um país de criação recente (1918) embora oriundo de estados e municípios antiquíssimos [...]. Portanto, esse made em inglês significando “feito” – de emprego e uso modernos – in Czechoslovakia, quer dizer feito na Czechoslovakia. Isso leva a crer que seu violino, perfeito do ponto de vista técnico, tenha sido feito por um artista tcheco, que tivesse querido dar a seu violino as formas perfeitas e qualidade preciosas de um Stradivarius, teve, no entanto, a honestidade de acrescentar “made in Czechoslovakia”. Pela informação que o sr. Juvenal nos dá, ousamos acrescentar que seu Stradivarius é uma imitação, porquanto em nenhuma parte do mundo, possuidor que tivesse um “Stradivarius” legítimo, iria acrescentar made in Czechoslovakia que anulasse o valor inestimável de seu instrumento26.
O curioso dessa avaliação é que, ao mesmo tempo em que revela uma
“ingenuidade” de Juvenal Fagundes em não identificar algo tão óbvio em seu instrumento,
aponta para a força das inscrições nos objetos. O violino em questão poderia ser original,
mas a simples inscrição made in Czechoslovakia anularia o valor “inestimável” do
instrumento. Pode-se argumentar também sobre o que teria acontecido se o violino fosse
realmente falso, porém sem a inscrição, uma vez que, segundo a conservadora, o violino era
“perfeito do ponto de vista técnico” e “o ano que consta ou que se pode ver pelo ouvido de
seu violino em forma de S ou F, está perfeitamente enquadrado na época em que viveu
Stradivari”.
25 MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Correspondência. Ofícios expedidos. Jan. a Jun. 1960. ASDG2 13(3). 26 MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Correspondência. Ofícios expedidos. Jan. a jun. 1960. ASDG2 13(3).
O “olhar treinado” era um dos principais recursos no trabalho de classificação de
objetos dos conservadores do MHN e dos alunos do Curso de Museus. Nair de Moraes
Carvalho publicou ao longo da carreira diversos artigos sobre o acervo do Museu, que
permitem entender a importância do olhar treinado. Ao dissertar, em 1948, sobre as
porcelanas produzidas pela Fábrica Meissen-Saxe e suas marcas de fabricação, afirma o
seguinte:
A existência dessas marcas nem sempre dá autenticidade às peças apresentadas como de Saxe. O técnico francês Auscher ensina que, se os falsificadores se dão ao trabalho de imitar pasta, esmalte, cores, decorações, também se dão ao trabalho de imitar as marcas. É necessário conhecê-las, mas também ter o olho educado de tal modo que possa aferir autenticidade por outros característicos27.
Nair de Carvalho apresenta diferentes tipos de marcas nas porcelanas, contudo
alerta que "o aspecto decorativo, o colorido, são outros tantos aspectos que auxiliam o
trabalho de classificação. Acima de tudo a prática"28. Em outro artigo, sobre o sabre do
Barão da Vitória, a conservadora fez uma descrição minuciosa do objeto. Cabe ressaltar
que tal detalhamento somente é possível pelo “olhar treinado”, visto que a capacidade
descritiva implica um treinamento específico: domínio da nomenclatura, leitura correta dos
atributos físicos, reconhecimento do material. O olhar treinado insere-se em uma ordem
discursiva própria da prática museológica preconizada por Barroso e desenvolvida no
Curso de Museus. Ainda hoje, entre museólogos, é comum a expressão “museólogos
precisam ter mil olhos de ver”. Em livro clássico da formação de conservadores,
Introdução à técnica de Museus, na parte dedicada à classificação de objetos, Gustavo
Barroso afirma o seguinte:
A parte mais importante [...] da técnica de museus é a classificação dos objetos de quaisquer espécies [...]. Para bem se classificarem as peças que devam ser expostas ao público, mister se faz grande cabedal de conhecimentos especializados que somente a teoria não pode fornecer. É preciso que se alie à prática, às intuições desenvolvidas com o tirocínio. Sem essa base, será impossível identificar com acerto a propriedade dos
27 CARVALHO, Nair de Moraes. Marcas na porcelana de Saxe. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 5, ano 1948. p. 16. 28 Id Ibid. p. 20.
objetos, entender o que se pode chamar sua linguagem, própria ou simbólica, catalogá-los, aferir seu valor e arrumá-los bem29.
Assim, a habilidade descritiva implica conhecimentos técnicos que permitem a
minuciosa descrição e, consequentemente, a correta identificação das marcas, dos símbolos
heráldicos e das ornamentações do artefato. O reconhecimento de tais indícios leva a
conservadora a afirmar que a peça “se autentica por si”.
O Museu Histórico Nacional possui em suas coleções de relíquias militares um sabre de honra que pertenceu ao general José Joaquim Coelho, Barão da Vitória, e foi adquirido a um de seus descendentes. É uma peça que se autentica por si. Verdadeira obra de arte, com copo e guarnição de prata dourada e cinzelada a mão, feita na Inglaterra. Mede da ponta à maçã do punho um metro e dois centímetros. Sabre reto com a cota terminando a 23 centímetros da ponta. Lâmina com ramagens damasquinadas, cujo ouro a ferrugem fez quase inteiramente desaparecer. Guarda em cruz, rematando em volutas de folhagem e com uma orelha voltada para baixo em forma de escudo ibérico, com os canos do chefe chanfrados, na qual se insculpe um medalhão: o feixe litórico em pala sobre um arco santor, entre duas cornucópias voltadas para cima e carregadas de frutos, ramos e flores, tudo circulado pela legenda RESTAURAÇÃO DA BAHIA, MARÇO, 1838. [...] A bainha, medindo 89 centímetros, é de madeira forrada de veludo com guarnições de prata dourada. O veludo acha-se bastante estragado. As guarnições são: bocal, reforço e ponteira com ramagens e volutas cinzeladas em alto relevo, em puro estilo barroco. As argolas para prender ao talim são fixas e representam volutas com folhagens rematadas em pequenos leões deitados. Nas guarnições da bainha e nas várias peças do corpo, contrastes oficiais ingleses: o leão passante em escudo regular, marca geralmente usada na Grã-Bretanha de 1836 a 1845, segundo Cripps e Chaffers and Markham, registrada sob o n. 472 no Dictionnaire des Poinçons Officiels de Benque; a cabeça de leopardo sem coroa, marca de venda inglesa J. e L. maiúscula em ovais, iniciais sem dúvida do artista que confeccionou a peça (Maker Mark). […] Nenhum documento se refere ao oferecimento ao Barão da Vitória do sabre de honra que o museu adquiriu e guarda. Ele é que fala por si na sua legenda, na sua decoração e nos seus contrastes oficiais30.
Expressões como “autentica-se por si”, “fala por si” são recorrentes em outros
textos sobre o acervo, escritos por conservadores do MHN. Outro exemplo é o caso de
artigo produzido para a revista O Cruzeiro de 1949, em que Barroso descreve as espadas
que teriam pertencido a Solano López. Ao fim da Guerra do Paraguai, o exército brasileiro 29 BARROSO, Gustavo. Introdução à técnica de museus... Op. cit. p. 14. 30 CARVALHO, Nair de Morais. O Barão da Vitória no Museu Histórico Nacional. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. III, ano 1942. p. 228. [Grifos meus].
tomou a espada que López carregava na ocasião de sua morte e a enviou em nome do
Conde d’Eu, comandante do Exército Imperial, por intermédio do major José Simeão de
Oliveira, ao imperador D. Pedro II. A espada foi depositada no Museu Militar e nos últimos
anos da monarquia foi transferida para o Colégio Militar. Ao ser criado, o MHN recebeu
vários objetos procedentes do Colégio Militar, entre eles veio a referida espada. Todavia, os
funcionários do MHN perceberam que entre os objetos transferidos havia duas espadas
atribuídas ao presidente do Paraguai como tendo sido tomadas no episódio de sua morte.
De acordo com Barroso, as espadas foram estudadas e verificou-se que apenas uma poderia
ser autêntica. A verdadeira só poderia ser a espada fina, de ponta quebrada na luta, com
punho de tartaruga, guarda e latão cinzelado e estrela de maçã, tendo as armas oficiais da
República do Paraguai no copo dourado a fogo. A outra era um sabre recurvo, ricamente
dourado e lavrado, trazendo na bainha o escudo real da Grã-Bretanha e Irlanda. A peça
falava por si. Era de procedência inglesa e de general do exército inglês. Teria Solano
Lopez duas espadas? Em face dessa dúvida, foi exposta somente a verdadeira espada oficial
do ditador, que os próprios retratos na terminação da campanha documentavam como de
seu uso pessoal e aparecia também nas suas fotografias com o uniforme oficial de gala31.
Não é necessário dizer que um objeto não “se autentica por si”, nem tampouco “fala
por si”. Essa frase só se torna possível diante do know-how do conservador que, ao olhar o
objeto, reconhece nele marcas óbvias ao olhar treinado – como adornos, símbolos
heráldicos, materiais nobres entre outros – e que possibilitam tal afirmação. Essa
obviedade, que poderia passar despercebida ao leigo, significa o domínio de tais símbolos
pelo observador, de tal modo que a autenticidade para ele torna-se evidente porque
autorreferida, fazendo da afirmação “o objeto fala por si” um recurso retórico. Todavia, no
caso da espada de Solano López, outros elementos serviram como autenticadores do objeto.
De acordo com Barroso:
Onze anos após a fundação do museu, o distinto diplomata Heitor Lira, que estivera
algum tempo no castelo do Conde d’Eu, em França, copiando documentos existentes no
valiosíssimo arquivo da família imperial, [...], ofereceu à diretoria do Museu Histórico
Nacional diversas cópias de carta de S. A. o senhor Gastão de Orleans ao Imperador e deste
monarca a vários ministros sobre a guerra do Paraguai. Dois desses documentos elucidam
31 BARROSO, Gustavo. O cruzeiro. 8 de janeiro de 1849. [s.n.p.] [Grifos meus].
perfeitamente o caso das duas espadas de Solano Lopez e autenticam a de procedência
britânica. Em carta datada de Humaitá a 29 de março de 1870, [...] o marechal conde d’Eu
escrevia a d. Pedro II: “Pelo Maciel do vapor Alice mando a V. E. uma espada apanhada no
acampamento de Lopez. Quando estive na Conceição, correu que tinha aparecido entre
nossa gente uma espada do Lopez, muito rica. Mandei que o Camara a procurasse, e ele me
disse que o coronel Joca a tinha descoberto e me entregaria. O Joca porém, entregou-me,
em lugar da espada rica, essa que levava o escudo de armas usados pelos reais da Inglaterra
nos princípios desse século”.
Por sua vez o próprio imperador se refere a essa espada em carta ao Barão de
Muritiba [...] “entregaram-me a caixa e a espada que foi de Lopez?... A espada, embora não
tomada em combate, talvez possa ir para o Museu Militar.32” Como dito anteriormente, a
documentação a que se refere Barroso é indiciária da autenticidade da espada, pois alude a
uma série de autoridades, valorando a espada como um objeto histórico e, portanto, passível
de musealização.
O olhar treinado e o conhecimento especializado fazem-se presentes igualmente na
avaliação realizada pelo conservador Luís Marques Poliano. Em 1941, foi encontrada em
uma obra realizada na Rua Senador Dantas, no Centro do Rio de Janeiro, uma pedra de lioz
com um brasão português. O conservador do MHN foi ao local analisar o achado e
averiguar a procedência. O trabalho realizado teve por base quatro critérios: o local do
achado, documentos de época, trabalhos de historiadores que escreveram sobre a história da
cidade, como Vieira Fazenda e, por fim, os conhecimentos heráldicos do conservador.
Poliano iniciou sua análise descrevendo minuciosamente os hieróglifos presentes na pedra,
procedimento recorrente no trabalho dos conservadores do MHN:
Escudo santico ou francês moderno, posto ao balão, partido; no primeiro caso, cortado, um crescente de lua e, no segundo, três estrelas de seis raios. No segundo partido, seis costelas moventes dos flancos. Elmo e paquife. Sem representação gráfica das cores. As peças do escudo, que estampados de uma reprodução fiel, a bico de pena, de Rui Campelo – dado por outro jornalista como significando “cravos da Índia”, nada mais são do que as armas dos Costas, com a repartição do conhecido erro de substituir a forma clássica destas figuras por ossos humanos. Contudo, era isto precioso ponto de partida. Tratava-se, sem receio de erro, de um escudo português, ou ligado à família dessa origem. Além disso, o
32 Id. Ibid.
material, a posição e a forma do escudo, foram de momento outros valiosos elementos que anotamos, reforçaram nossa convicção, quanto à procedência, quanto à época33.
A descrição técnica, o reconhecimento visual do artefato e de suas características
autoriza o conservador em sua análise, sempre baseada em outros especialistas, como
Santos Ferreira, “importante especialista em heráldica portuguesa”.
Ensina Santos Ferreira que a representação do escudo ao balão foi muito seguida em Portugal a partir do século XVI e que o tipo do escudo francês moderno, ou santico, “só modernamente tem-se vulgarizado em Portugal”, ou seja, a partir dos séculos XVII e XVIII. Escudos impressos e esculpidos, portugueses, dessa época, apresentam-se com essa forma, que por sinal é a adotada no monumental trabalho que estamos citando. Afastamos desde logo a indicação de alguns, que davam essa pedra de armas como ligada à família Fonseca Costa; e a sugestão de outros, que a atribuíam ao Sargento Mor José Fernando Pinto Apoim, autor do risco do Convento onde foi encontrada, e de outras notáveis construções, aqui e em Minas34.35
Todavia, Poliano diz-nos que foi no trabalho de José de Souza Machado que obteve
algo de concreto para a identificação do brasão esculpido na pedra encontrada. Trata-se de
um extrato de carta de brasão, passada em 30 de janeiro de 1685 a Marcos da Costa da
Fonseca, então morador da capitania do Rio de Janeiro.
Conta-nos aquele autorizado especialista que em 1897 adquiriu um manuscrito ao livreiro de Braga Joaquim José da Cunha, que por sua vez o recebera do bibliófilo Pereira Caldas. [...] Acham-se ali inscritas 488 cartas heráldicas, na sua quase totalidade inéditas. Muitas delas se referem a brasileiros e a pessoas residentes no Brasil, e quanto a sua autenticidade não há dúvida, porque tanto a letra quanto a assinatura do eclesiástico foram confrontadas com o livro de registro de brasões do mesmo cartório35.
O conservador do MHN atenta para a diferença da descrição e da orientação do
símbolo heráldico mencionado na carta das armas esculpidas na pedra. Ainda assim, para
Poliano, essa divergência não tem força para invalidar a relação que existe entre a pedra e a
carta, “para nos afastarmos da convicção em que estamos, de que ambas se referem a
33 POLIANO, Luis Marques. Uma pedra brasonada do Rio Antigo. Anais do Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, v. 4, ano 1943. p. 159. 34 Id. Ibid. p. 161. 35 Id. p. 162. [Grifos meus]
Marcos da Costa”. O conservador do MHN ressalta que não são raras as disparidades entre
o brasonado das cartas e sua respectiva execução, seja em pedra ou em outros suportes,
como porcelana. “[...] não vacilamos em identificar a pedra com a mercê àquele antigo
habitante desta cidade. Morador do Rio de Janeiro, mandou fazer em Portugal a pedra
pouco depois de 1685, quando lhe foi dado o direito de ostentar o brasão de armas36.”
Sobre o local do achado, o conservador indica que, originalmente, a pedra estava
localizada em outro logradouro. Citando Vieira Fazenda, salienta que
[...] o trecho entre a Rua da Assembleia e Sete de Setembro até o oratório do Bom-sucesso teve os nomes de Marcos da Costa e do Provedor da Fazenda: o primeiro porque, na esquina da Rua da Assembleia, primitivo caminho para São Francisco e depois Rua de Antonio Luís Ferreira, morou o juiz da alfândega Marcos da Costa Castelo Branco [...]37.
Com essas indicações Poliano afirma “ter localizado precisamente a posição da
sesmaria concedida em 1705 a Marcos da Costa da Fonseca, ou Marcos da Costa, como
está indicado naquele documento”38. Sobre o local do achado ser tão distante do local de
origem, o conservador afirma, baseado em documentos de época e em algumas suposições,
que possivelmente a casa brasonada, após ter sido comprada pelas freiras da Ajuda, teve a
pedra removida, e que durante os aterros realizados na cidade por volta de 1761 pelo Conde
de Bobadela foi utilizada como entulho, ficando enterrada até 1941.
O olhar treinado e os conhecimentos heráldicos foram determinantes também na
classificação e na valoração de uma peça do acervo do MHN em 2001. Trata-se de um fato
ocorrido por ocasião das restaurações de coches, ou “carruagens”, que entraram para as
coleções do MHN entre 1947 e 1948. Os coches foram doados ao MHN por Joaquim
Ferreira Alves, proprietário de uma antiga casa funerária em Lisboa, e eram utilizados para
cortejos fúnebres de famílias ricas portuguesas. As correspondências entre Gustavo
Barroso e o ministro das Relações Internacionais do Brasil demonstram o interesse que tal
doação gerou. O então diretor do MHN escreveu, em 1945, que a importância histórica de
tal doação era tanta “[...] que a diretoria do Museu dos Coches de Lisboa, um dos mais
36 Id. p. 164. 37 Id. p. 170 38 Id.Ibid. p. 171
ricos do mundo na matéria, se bateu para que essas viaturas históricas não deixassem o
país”39.
Durante muitos anos os coches ficaram expostos no MHN em local conhecido como
Pátio da Minerva, ambiente inadequado para o controle de luz e umidade, o que acabou
ocasionando danos de conservação às peças. Apesar das afirmações de Barroso sobre o
valor histórico das viaturas, em correspondência de 1964, um chefe de seção do MHN
informa que “comprovadamente, nenhuma delas apresenta a menor historicidade para o
Brasil”40, uma vez que “ao entrarem em desuso em Portugal foram sendo adaptadas ao
serviço fúnebre, recebendo para tanto decoração severa”41. Ao longo dos anos seguintes, o
estado de conservação foi se agravando significativamente, até que, em 2001, um projeto de
restauração foi colocado em prática.
A restauração dos primeiros coches conservou a pintura fúnebre, respeitando o
princípio técnico de manter as características físicas de quando entraram para as coleções
do MHN. Porém, durante o processo de restauração, retirou-se a camada pictórica original
de cor negra de um dos coches, assim como os motivos fúnebres. Ao deparar-se com um
símbolo heráldico embaixo da pintura, a equipe solicitou a chamada da diretora do MHN e
especialista em heráldica, Vera Tostes, também formada no Curso de Museus e professora
de heráldica da Escola de Museologia da UNIRIO, que prontamente reconheceu um brasão
encimado por uma coroa, “claramente identificada como a de duque”. A pintura fúnebre foi
retirada e a diretora pôde então usar seus conhecimentos heráldicos e identificar o símbolo.
“Era o início da pesquisa heráldica, que [...] identificaria o objeto que há 58 anos encontra-
se no Museu como carro de cortejo fúnebre.42” Tostes identificou uma diferença43 na coroa
de duque em questão. Segundo ela, trata-se de um lambel, “adotado inicialmente na França,
39 MUSEU HISTÓRICO NACIONAL. Dicop. Doc., nº5 Proc. Nº18/46. 40 Id. Ibid. 41 Id. Ibid. 42 TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. De viatura a coche real: a importância da heráldica na restauração das carruagens do MHN. Anais do Museu Histórico Nacional. Rio de Janeiro, v. 36, ano 2004. p. 209-224. Página citada, 214. 43 Diferença no vocabulário heráldico significa os símbolos que servem para apontar alguma distinção, e podem variar de diversas formas.
posteriormente usado na Inglaterra e, espalhando-se pelos demais países, tornou-se uma das
formas de distinguir os membros da família real”44.
Em Portugal, semelhante simbologia foi adotada e “os demais infantes e mesmo o
filho do príncipe herdeiro traziam o mesmo lambel, com figuras colocadas nos pingentes.”
Assim, a coroa que aparece no brasão do coche é a de duque. É formada por folhas de
acanto, que deixam aparentes cinco florões – essa particularidade chama a atenção, uma
vez que a diferença do lambel remete-nos às armas do príncipe herdeiro e, portanto, o
escudo deveria ser encimado pela coroa de príncipe. [...]
O conhecimento heráldico viabilizou que se colocasse uma nova luz sobre o objeto
museológico que há quase 60 anos, no museu, é identificado como viatura de cortejo
fúnebre. A descoberta do brasão real português com a diferença e o lambel confirma que
pertenceu a um príncipe herdeiro do trono. Tanto a datação do coche, cujas características
remetem à segunda metade do século XVIII e início do XIX, quanto a correspondência
preservada no arquivo do Museu, única fonte documental hoje existente informando que
duas viaturas adquiridas seriam “peças de valor histórico para o Brasil”, fundamentam a
evidência de o coche ter pertencido à Imperatriz, quando viúva de D. Pedro, o que é
reforçado pela simbologia heráldica45.
Nesses dois casos, o olhar treinado possibilitou a identificação ou a reclassificação
do objeto histórico e, consequentemente, sua valoração histórica.Todavia, o vínculo com o
herdeiro do trono português e sua estética agregam um valor a mais ao coche, que se tornou
umas das peças mais divulgadas do acervo, com destaque no site da instituição, espaço
exclusivo na museografia e em catálogos.
Os casos descritos aqui mostraram determinados procedimentos de crítica e de
produção de autenticidade, que ora agregaram valor aos objetos coletados pelo MHN, ora
questionaram suas autenticidades e, por vezes, geraram a necessidade de reclassificação do
acervo. Efetivamente, os conservadores formados pelo Curso de Museus dispunham de um
arsenal prático e de conhecimentos específicos, principalmente em heráldica e em
numismática, que os autorizavam a realizar este tipo de trabalho, dado que mostra a força
44 TOSTES, Vera Lúcia Bottrel. De viatura a coche real: a importância da heráldica na restauração das carruagens do MHN... Op. cit. p. 218. 45 46 Id. p. 222.
que o Curso de Museus teve, notadamente a disciplina Técnica de Museus, na formação
destes profissionais que constituíam uma autoridade especializada no assunto.
A autoridade do especialista, exercida inicialmente pelos conservadores do museu,
baseia-se na experiência e nos saberes técnicos e eruditos daqueles que declaram ou
atestam autencidade histórica a um determinado artefato. O conhecimento das chamadas
disciplinas auxiliares da história, comuns ao antiquarianismo e à erudição, o domínio de um
vocabulário específico, necessário a “correta” descrição do artefato, e o “olhar treinado”,
que implica na “cultura visual” do especialista, capaz de reconhecer uma pincelada ou a
sutil diferença entre uma porcelana legítima e outra falsificada, foram as principais
características identificadas no método de trabalho dos conservadores do MHN.
Em suas atividades de classificação e autenticação do acervo, os conservadores
operavam, também, com indícios que comprovavam a procedência, a datação e,
consequentemente, a autenticidade dos artefatos. Quando necessário, os conservadores
mobilizavam, ainda, outras autoridades, referenciando historiadores, críticos e eruditos
renomados, como Vieira Fazenda e Joaquim Norberto, além, obviamente, de diversas
fontes textuais. Não se tratava de uma pesquisa científica propriamente dita, mas de
pesquisa aplicada que busca fundamentar (ou refutar) a autenticidade dos objetos. Em
outras palavras, o papel dos conservadores era fornecer a fundamentação histórica e, com
ela, permitir a classificação dos objetos nas categorias “histórico” e “nacional”,
procedimento que valorava, concomitantemente, suas dimensões documental, monumental,
testemunhal e relicária.
Por outro, ficou claro o quanto esse conhecimento ainda é residualmente presente e
ainda necessário à instituição. Este foi o caso da restauração de uma berlinda fúnebre,
reclassificada graças aos conhecimentos heráldicos de diretora da MHN que soube “ler” o
símbolo heráldico encontrado sobre a pintura fúnebre da porta da berlinda, reconhecendo
nele as diferenças que o identificavam como pertencente ao herdeiro do trono português, no
início século XIX.
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