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O ofício das quitandeiras de Minas Gerais: um patrimônio nas entrelinhas JULIANA RESENDE BONOMO 1 1. Introdução Nas Minas Gerais do século XVIII, o termo quitandeira era utilizado para designar as negras vendeiras, também chamadas de negras de tabuleiro, que vendiam alimentos pelas ruas. De origem africana, mais especificamente, do quimbundo, língua falada no noroeste de Angola, a palavra quitanda, seria um derivativo de kitanda, que significa tabuleiro onde se expõem gêneros alimentícios à venda nas feiras, inclusive verduras e legumes. Na África, a palavra também passou a designar as próprias feiras. Já no Brasil, ela ganhou o significado de pequenos estabelecimentos comerciais, cujos produtos são expostos em bancadas ou tabuleiros. Essa prática feminina, de origem africana, havia se estendido nas colônias, mas foi assumindo diferentes características locais, como no caso de Minas Gerais, onde as negras de tabuleiro se congregavam nas regiões de exploração mineradora (Paiva, 2001, Figueiredo,1993). Durante o século XIX, com o esgotamento do ciclo de exploração das minas, as quitandeiras negras, escravas ou forras, foram desaparecendo enquanto categoria social, mas o termo quitanda permaneceu, ainda que fortemente ressignificado. Assim, em Minas Gerais, o termo ficou consagrado à elaboração caseira da pastelaria, associada ao lanche, à merenda e ao café, como define o ensaísta Eduardo Frieiro (1982): quitanda, não o esqueçamos, é a pastelaria caseira, o biscoito, a broa, a rosca, o sequilho, o bolo” (...). Portanto, quitandeiras, na concepção atual, são mulheres que fazem e vendem quitandas artesanalmente. Marcado pela transmissão oral do conhecimento, esse saber fazer é transmitido entre as mulheres da família, sendo considerado uma herança, uma memória dos antepassados familiares. Cabe ressaltar que estamos tratando de um trabalho realizado, em sua maior parte, no âmbito doméstico e, mais recentemente, em ambientes pertencentes a associações ou cooperativas. Nas pequenas cidades do interior de Minas Gerais, as quitandas não são vendidas nas ruas. Os clientes fazem as suas encomendas de quitandas como rosquinhas, bolos, biscoitos de polvilho etc., diretamente à quitandeira. As entregas podem ser 1 Universidade de São Paulo (USP) Doutoranda em História Econômica

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Page 1: O ofício das quitandeiras de Minas Gerais: um patrimônio ... · direcionou para a cozinha regional mineira, primeiramente, no registro do modo artesanal de fazer queijo Minas, reconhecido

O ofício das quitandeiras de Minas Gerais: um patrimônio nas entrelinhas

JULIANA RESENDE BONOMO1

1. Introdução

Nas Minas Gerais do século XVIII, o termo quitandeira era utilizado para designar as

negras vendeiras, também chamadas de negras de tabuleiro, que vendiam alimentos pelas ruas.

De origem africana, mais especificamente, do quimbundo, língua falada no noroeste de Angola,

a palavra quitanda, seria um derivativo de kitanda, que significa tabuleiro onde se expõem

gêneros alimentícios à venda nas feiras, inclusive verduras e legumes. Na África, a palavra

também passou a designar as próprias feiras. Já no Brasil, ela ganhou o significado de pequenos

estabelecimentos comerciais, cujos produtos são expostos em bancadas ou tabuleiros. Essa

prática feminina, de origem africana, havia se estendido nas colônias, mas foi assumindo

diferentes características locais, como no caso de Minas Gerais, onde as negras de tabuleiro se

congregavam nas regiões de exploração mineradora (Paiva, 2001, Figueiredo,1993). Durante o

século XIX, com o esgotamento do ciclo de exploração das minas, as quitandeiras negras,

escravas ou forras, foram desaparecendo enquanto categoria social, mas o termo quitanda

permaneceu, ainda que fortemente ressignificado.

Assim, em Minas Gerais, o termo ficou consagrado à elaboração caseira da pastelaria,

associada ao lanche, à merenda e ao café, como define o ensaísta Eduardo Frieiro (1982):

“quitanda, não o esqueçamos, é a pastelaria caseira, o biscoito, a broa, a rosca, o sequilho, o

bolo” (...). Portanto, quitandeiras, na concepção atual, são mulheres que fazem e vendem

quitandas artesanalmente. Marcado pela transmissão oral do conhecimento, esse saber fazer é

transmitido entre as mulheres da família, sendo considerado uma herança, uma memória dos

antepassados familiares. Cabe ressaltar que estamos tratando de um trabalho realizado, em sua

maior parte, no âmbito doméstico e, mais recentemente, em ambientes pertencentes a

associações ou cooperativas. Nas pequenas cidades do interior de Minas Gerais, as quitandas

não são vendidas nas ruas. Os clientes fazem as suas encomendas de quitandas como

rosquinhas, bolos, biscoitos de polvilho etc., diretamente à quitandeira. As entregas podem ser

1 Universidade de São Paulo (USP)

Doutoranda em História Econômica

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feitas nas casas dos clientes ou eles vão até a casa das quitandeiras para buscar as quitandas

encomendadas.

O ofício das quitandeiras de Minas Gerais, enquanto parte integrante da culinária

regional, vem ganhando cada vez mais destaque em festivais locais e assumindo um caráter de

bem cultural nos discursos da classe política das cidades do interior do estado. Podemos dizer

que há um olhar atento do poder público para os chamados novos patrimônios, que se

direcionou para a cozinha regional mineira, primeiramente, no registro do modo artesanal de

fazer queijo Minas, reconhecido como patrimônio imaterial em 2004 pelo IEPHA e, em 2008,

pelo IPHAN. No mesmo ano, os doces de São Bartolomeu foram registrados como patrimônio

imaterial do município de Ouro Preto. Em 2010, o modo de fazer pastel de angu foi registrado

como patrimônio cultural imaterial do município de Itabirito.

Seguindo o caminho dos registros dos bens culturais citados acima, no ano de 2103,

sugerimos à Secretaria Municipal de Cultura de Congonhas que fosse a proponente do pedido

de abertura de inventário para a patrimonialização do ofício das quitandeiras, junto ao Instituto

de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A carta com o pedido de abertura de

inventário foi enviada em outubro de 2013. A partir desse pedido, o órgão abriu o processo

administrativo nº. 01450.010688/2013-23.

Em 24 de novembro de 2015, a Câmara técnica do IPHAN aprovou a abertura do

inventário e o prosseguimento do processo de registro. No dia 15 de maio de 2017, foi realizada

uma reunião, na qual estivemos presentes, com a equipe do IPHAN e as quitandeiras da região

para esclarecer o andamento do processo de registro. Segundo a Sra. Célia Corsino, o processo

encontra-se na fase de realização de pesquisas que justifiquem esse registro. O próximo passo

será o levantamento das quitandeiras do estado através de um formulário a ser preenchido por

elas próprias. O formulário estará disponível, em breve, no website do IPHAN:

http://portal.iphan.gov.br/. Após esse levantamento, seguem-se as fases de identificação do

ofício e a votação do registro. Caso seja aprovado, o ofício das quitandeiras será registrado no

“Livro de Registro dos Saberes”, com uma possível extensão para os estados de Goiás e São

Paulo, já que há quitandeiras também nesses estados. Como consequência do registro, é

elaborado um Plano de Salvaguarda. Trata-se de um instrumento de apoio e fomento de bens

culturais, envolvendo um planejamento de ações de curto, médio e longo prazo, a ser executado

com base na interlocução entre o Estado e a sociedade, visando, principalmente, preservar o

ofício.

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Dado o contexto do processo de registro do ofício das quitandeiras com um bem cultural

imaterial, propomo-nos, nesse trabalho, a refletir sobre essa questão sob o olhar que as próprias

quitandeiras têm sobre a atividade, o seu processo de perda e o plano de salvaguarda. Para essa

compreensão, foi preciso “ler nas entrelinhas” e atentar-nos ao “não dito”, já que o significado

de patrimônio cultural ainda é obscuro para muitas delas. Portanto, esse trabalho trata não

somente do conteúdo da fala das nossas colaboradoras, como também dos caminhos tomados

para compreender o entendimento delas sobre o processo de registro de seu ofício como

patrimônio cultural.

Para compreendermos a apreensão dos sentidos que as quitandeiras dão à sua prática,

utilizamos a metodologia da História Oral, tal como é praticada no NEHO, Núcleo de Estudos

de História Oral da USP, sob a tutela do professor José Carlos Sebe Meihy2. Assim, nossa

“comunidade de destino” são todas as mulheres que fazem e vendem quitandas na atualidade

em Minas Gerais. A nossa “colônia”, que vem a ser uma subdivisão da comunidade de destino,

são as quitandeiras das cidades de Congonhas, Ouro Preto, Entre Rios de Minas e São Brás do

Suaçuí. Por último, a nossa “rede”, múltipla, engloba três grupos de quitandeiras: as que

chamamos de tradicionais (aquelas que aprenderam o ofício com suas mães, avós, parentes,

etc), as quitandeiras com formação na EMATER-MG ou em associações, e as quitandeiras

jovens que se formaram em escolas superiores de Gastronomia e vendem suas quitandas em

pequenos cafés da capital Belo Horizonte. Utilizando a técnica da entrevista semiestruturada,

ao todo, entrevistamos dezoito quitandeiras, entre os anos de 2012 e 2013, onde procuramos

ressaltar detalhes da história pessoal das nossas narradoras, relativos ao trabalho com as

quitandas e com a visão das mesmas sobre uma possível patrimonialização do seu ofício. Dado

esse caráter específico das nossas entrevistas, dentro das variantes da História Oral, utilizamos

as técnicas de condução de entrevistas da História Oral Temática. Como embasamento teórico

para as nossas discussões, utilizamos os textos de Maria Cecília Londres Fonseca, “Referências

culturais: base para novas políticas de patrimônio” e de Ulpiano Menezes, “O campo do

patrimônio cultural: uma revisão de premissas.”

2. Uma prática, três grupos de quitandeiras

O desenvolvimento das mais variadas receitas de quitandas em Minas Gerais iniciou-se

no século XVIII, ao lado do crescimento da urbanização e de uma economia de subsistência

2 Ver MEIHY, J. C. S. B. & HOLANDA, F. História Oral: como fazer, como pensar. 2ed. São Paulo: Contexto,

2011.

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provocadas pela atividade mineratória. Embora os primórdios do povoamento de Minas Gerais,

no final do século XVII, tenham sido marcados pela escassez de gêneros comestíveis e pelo

abastecimento precário, passados os primeiros anos de efetiva colonização do território mineiro,

não há nenhum relato ou evidências de carências de alimentos ou crises de abastecimento

(MENEZES, 2000; FRIEIRO, 1982). Segundo Menezes (2000), com o passar do século XVIII

e a sedentarização dos habitantes, fixando-se nos arraiais mineiros, a produção do milho, que

vinha a ser a base da alimentação dos mineiros, aprimorou-se e o leque de opções produtivas

foi ampliado. Ao milho, somaram-se os produtos que antes exigiam esse processo de fixação

do homem à terra: o arroz, a mandioca, a cana de açúcar, os produtos da pecuária e o feijão.

E se podemos falar de um alimento comum à alimentação dos cativos e à alimentação

dos senhores, esse alimento é o milho. Apreciado por todos os mineiros e contra todos os tipos

de preconceito, toda a população consumia angu e tudo o mais que as receitas à base do milho

pudessem proporcionar. Como o único cereal encontrado pelos europeus no Brasil, ele ocupava

um lugar de destaque em São Paulo e Minas Gerais. Nas Minas Gerais dos Oitocentos, ele

ganhava a preferência dos seus habitantes, ao contrário de outras regiões do Brasil, onde

preferiam a mandioca. No século XVIII, o anônimo do Códice Costa Matoso3, destacou a

preferência entre os mineiros pelo milho, que “os ricos comem com gosto e os pobres por

necessidade” (fl. 218) Nas mãos dos portugueses residentes no Brasil, ele foi objeto de

adequação e transformação do seu paladar, principalmente em Minas Gerais. Esse cereal, que

também servia para alimentar galinhas, cabras, ovelhas e porcos, tinha um papel relevante na

panificação “de que faziam os portugueses muito bom pão e bolos com ovos e açúcar. ”

(BRANDÃO, 1997, p. 137).

Dado que havia pouca necessidade de adquirir fora do Brasil os elementos

indispensáveis para fazer bolos, doces e biscoitos, tornou-se fácil a sua produção no ambiente

doméstico. Assim, adaptando-se aos ingredientes da terra, algumas quitandas à base de milho

já eram produzidas no século XVIII, tais como o belin, as alcomias, o cuscuz e a pamonha,

citadas no Códice Costa Matoso. Aos poucos, a técnica da pastelaria portuguesa foi se

adaptando aos ingredientes locais, criando novas receitas: o biscoito papa ovo, acrescido de

queijo, transformou-se no pão de queijo; ao mingau de carimã, foram acrescidos açúcar, leite e

ovos, dando origem aos nossos bolos; o ovo, acrescentado aos pratos indígenas, rendeu canjicas,

pudins, broas e biscoitos. Ou seja, as primeiras receitas de quitandas tiveram os ingredientes da

terra como base, principalmente as farinhas derivadas da mandioca e do milho, que vieram

3 O Códice Costa Matoso é uma coletânea de documentos sobre a história da Capitania de Minas Gerais, feita pelo Ouvidor

Geral de Vila Rica, Dr. Caetano da Costa Matoso (1749-1754).

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substituir a farinha de trigo, cara e rara até a segunda metade do século XIX (CASCUDO,

2002). Tudo isso, feito nos fornos à lenha e de barro, que são utilizados até os dias de hoje, uma

vez que, de acordo com as quitandeiras, eles conferem autenticidade ao produto, carregando

consigo o sabor dos antepassados.

Portanto, foi no ambiente doméstico, já no século XVIII, que esses saberes foram se

consolidando e se perpetuando em linhas de ascendência e descendência, que envolvia avós,

mães e filhas, através do conhecimento transmitido principalmente através da oralidade e da

prática diária das receitas. Nesse contexto, como observamos nas narrativas das quitandeiras

que entrevistamos, a quitanda aparece como um modo de rememorar episódios familiares e

ambientes de aprendizado na esfera doméstica, associados a sentimentos de coesão e

identificação:

“A minha mãe fazia quitanda no forno de lenha, a gente morava na roça. Então

eu vim (para a cidade) da zona rural com onze anos e já sabia fazer as

quitandas. A minha mãe ia fazendo e a gente ficava perto para aprender. (...) E

a minha mãe aprendeu com a minha avó. E eu já estou passando para as minhas

meninas. Então isso aí já vem de longe mesmo.” (Maria das Graças Silva –

Congonhas, 21.05.12)

Porém, foi a partir de meados do século XX, quando se deu uma maior inserção das

mulheres no mercado de trabalho, que as quitandeiras fizeram desse saber fazer uma atividade

econômica. Percebemos isso através do relato das nossas colaboradoras, cujas mães e avós,

mulheres do final do século XIX e início do século XX, faziam as quitandas apenas para o

consumo doméstico.

“Mamãe fazia quitanda somente para a nossa casa, porque a família era muito

grande. Ela tinha 11 filhos, então ela fazia somente para a família. Quando a

gente morava na roça, mamãe fazia de tudo: doce, biscoito, costurava. A mamãe

era doméstica, mas fazia de tudo.” (Odete Silva - São Brás do Suaçuí, 29.01.13)

Atualmente, essas quitandeiras das pequenas cidades do interior de Minas, herdeiras de

um conhecimento familiar, vendem suas quitandas por encomenda, exercendo, assim, uma

atividade econômica dentro do ambiente doméstico. Denominaremos esse grupo de

quitandeiras, nesse trabalho, de tradicionais. No entanto, exercido dessa forma, o ofício tende

a se perder, já que as filhas dessas quitandeiras não se interessam em praticar a atividade.

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Ao mesmo tempo, vemos que, cada vez mais, vêm surgindo em várias cidades mineiras

como, por exemplo, Uberlândia, Ipatinga, Congonhas e Malacacheta, sob o comando de

associações de mulheres e órgãos públicos como a EMATER, quitandeiras que formam o seu

conhecimento através de cursos, vendendo seus produtos através de cooperativas. Essas

quitandeiras, assim como as tradicionais, praticam as receitas originais, prezando pelos

ingredientes fornecidos pelos produtores locais.

Já na capital Belo Horizonte, observamos o surgimento de uma geração jovem, formada

em escolas superiores de gastronomia que, ao mesmo tempo em que adota um discurso de

resgate das receitas de quitandas, também busca apresentar algumas receitas com uma nova

roupagem, como uma “releitura” das receitas originais, adotando ingredientes e nomes

estrangeiros como cupcakes, brownies e red velvet. Tem-se, para esse grupo, uma convivência

das receitas antigas com as novas interpretações, sob o argumento de que há uma demanda pela

modernização das receitas. Também em Belo Horizonte, encontramos dois jovens cozinheiros

que abriram, recentemente, um estabelecimento especializado em pão-de-queijo, o que nos faz

questionar a respeito da predominância feminina no exercício futuro do trabalho com as

quitandas.

Tudo isso nos leva a crer que em qualquer cultura alimentar pode haver rupturas ou

reconfigurações como resultado da implementação de novas técnicas, novos ingredientes,

novas formas de consumo e de uma nova ordem socioeconômica. Em outras palavras, as

cozinhas e as pessoas que as exercem estão em permanentes transformações. Por essas razões,

observamos que a forma tradicional de aprendizado e da venda das quitandas (por encomendas)

vêm mudando de configuração e, caso ocorra a patrimonialização, alguns fatos devem ser

levados em consideração, tais como: as transformações das receitas originais, o surgimento de

novas categorias de quitandeiras, o vasto território do estado de Minas Gerais, a

heterogeneidade do grupo e os conflitos que podem surgir em vista disso.

3. O ofício das quitandeiras como patrimônio cultural imaterial

Com base na noção de Referências Culturais criada pelo CNRC (Centro Nacional de

Referências Culturais) em 1975, a Constituição Federal de 1988 introduziu na categoria de

patrimônio cultural o patrimônio intangível, caracterizado mais por práticas, processos, do que

por produtos ou objetos. Como patrimônio intangível ou imaterial, entende-se, então, as formas

de expressão, os modos de criar, fazer viver, os quais, segundo Menezes (2009) “se

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examinarmos mais de perto, pressupõem, múltiplos suportes sensoriais, incluindo o corpo. ”

Com isso, o autor atenta-nos para o fato de que o “saber-fazer” não é um conhecimento abstrato,

imaterial, filosófico ou científico, mas sim, corporificado, ou seja, o seu aprendizado e o seu

exercício está impresso numa memória construída pelo corpo. Como Menezes exemplifica,

seria essa a memória do músico, da cozinheira, do artesão. Esse processo em que “a mão faz e

o cérebro acompanha”, vai de encontro à teoria de Marcel Mauss, de que o homem é como um

animal que pensa com as mãos.

Ao criar o conceito de Referências Culturais, o CNRC procurava reorientar a prática de

preservação de bens culturais vigente até os anos 70, que privilegiava os bens materiais de valor

histórico, artístico e excepcional. Procurava-se, assim, valorizar outros grupos da sociedade

brasileira, como os índios, negros, imigrantes e as classes populares em geral. A proposta era

desviar o foco da monumentalidade para as representações que configuravam uma identidade

de uma região para os seus habitantes. (FONSECA, 2003) Dentre essas representações, estaria

o “saber fazer” ou esse conhecimento corporificado de que nos fala Menezes, do qual as

quitandeiras fazem parte.

A noção de Referências Culturais, ao considerar o valor simbólico dos espaços para os

seus habitantes e, ao afirmar a relatividade de qualquer processo de atribuição de valor a bens

culturais, levantou a necessidade da criação de novas formas de identificação e de salvaguarda

para assegurar a continuidade desses bens. Desse modo, o tombamento mostrava-se como um

instrumento inadequado, já que o termo “referência” procurava distinguir-se das instituições

oficiais e museológicas, propondo uma nova forma de atuação na área da cultura. (FONSECA,

2003) Nesse sentido, o CNRC, sob o comando de Aloísio Magalhães, trouxe uma nova

metodologia de identificação de patrimônio cultural, com a criação do Inventário Nacional de

Referências Culturais, que propunha uma visão ampla do patrimônio cultural, conectando os

seus aspectos “materiais” e “imateriais” sem ainda empregar essas palavras. No final da década

de 90, muitos dos que trabalharam com Aloísio, falecido em 1982, tomaram frente do processo

de criação do Decreto-lei nº 3.551 que instituiu o registro do patrimônio imaterial no país,

assinado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em agosto de 2000. (SANDRONI, 2010)

Sobre essa divisão do patrimônio cultural em material e imaterial, Menezes (2009, p.

31) alega que o patrimônio cultural tem sempre como suporte vetores materiais. Mesmo o

patrimônio imaterial, pois “se todo patrimônio material tem uma dimensão imaterial de

significado e valor, por sua vez todo patrimônio imaterial tem uma dimensão material que lhe

permite realizar-se.” Portanto, a imaterialidade só pode se expressar por intermédio da

materialidade.

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Vejamos o caso do nosso objeto de estudo: as quitandeiras. Esse “saber fazer”

materializa-se nas quitandas que, durante o seu preparo, utilizam materiais igualmente

simbólicos e representantes da identidade dos mineiros, como o fogão à lenha, os tachos de

cobre, as gamelas, os fornos de barro e a própria casa da roça. O produto final, a quitanda,

enquanto um produto simbólico, surge como uma metonímia dessa cultura culinária, ou seja,

um símbolo de um conjunto abstrato de pessoas que habitam um território, que agrega saberes

e instrumentos que remontam a um passado comum, a uma memória coletiva dos habitantes de

Minas Gerais.

Outra questão relativa à separação dos bens culturais em “materiais” e “imateriais” e já

evidenciada na criação do CNRC é a forma de preservação diferenciada entre esses bens. Como

foi dito anteriormente, o tombamento não seria um instrumento adequado para a salvaguarda

dos bens imateriais. Portanto, segundo Fonseca (2003), seria preciso criar formas de

identificação e apoio que, sem tolher ou congelar essas manifestações culturais, nem as

aprisionar a valores discutíveis como o de autenticidade, favorecessem a sua continuidade. O

próprio termo “referências”, já levanta a ideia de que essas referências são relativas a alguém,

a algum grupo de pessoas. Desse modo, essa perspectiva afirma a relatividade de qualquer

processo de atribuição de valor a bens e põe em questão os critérios até então adotados para a

constituição de patrimônios culturais.

Qual seria, então, a forma adequada de preservação dos bens imateriais? Para a autora,

a primeira condição para preservar é conhecer, o que significa, antes de mais nada, identificar

e apreender os sentidos do bem cultural. Porém, esse saber tem que estar aliado ao político, já

que preservar a própria cultura é também uma demonstração de poder. Os poderosos não só

conseguem preservar as marcas de sua identidade, como chegam a se apropriar de referências

de outros grupos. Esses símbolos são ressignificados na sua interpretação quando apossados

por outros grupos, pois os signos podem viajar e ganhar novas nuances. Nesse sentido, a

atividade de identificar e preservar bens culturais não apenas como um saber, mas também

como um poder, levanta a seguinte questão: quem decide o que será preservado, sobretudo

quando estão em jogo diferentes versões da identidade de um mesmo grupo?

Fonseca (2003) destaca o papel do Estado que delega essa função aos intelectuais.

Porém, a autora também evidencia o fato recente de que cada vez mais os cidadãos, as minorias,

têm tomado consciência dos seus direitos e do gozo da preservação dos bens culturais. Embora,

em muitos casos, a reivindicação do registro de patrimônio possa vir de cima para baixo, ou

seja, de órgãos públicos ou de intelectuais, os grupos, ao tomarem consciência de sua

importância para a história ou para a formação de uma identidade coletiva, têm, como

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possibilidade, se apropriarem do direito a essa reivindicação e, ao mesmo tempo, se tornam

protagonistas da elaboração do plano de salvaguarda. Fonseca (2003), por exemplo, ao citar a

experiência de preservação bem sucedida proporcionada pelo CNRC, o Projeto Tecelagem

Manual no Triângulo Mineiro, procura ressaltar a importância do protagonismo dos detentores

do bem cultural na estratégia de sua preservação. Esses detentores do saber agiriam, assim, no

desenvolvimento da apreensão do bem cultural, não apenas como informantes, mas também

como intérpretes desse bem, de forma que eles seriam os donos do destino de sua própria

cultura. Portanto, para a autora, uma condição importante para a orientação de um trabalho de

preservação a partir da noção de referências culturais é a aproximação do ponto de vista dos

detentores do bem.

Trazendo essa discussão para o nosso objeto de pesquisa, para nos aproximarmos do

ponto de vista das quitandeiras em relação à sua prática, talvez devêssemos pergunta-las,

primeiramente, se há um sentimento de perda dessa tradição e se haveria interesse em

intervenções que buscassem preservar essa atividade. Em caso positivo, outra questão seria

como poderia ser feita essa salvaguarda. Como mencionamos anteriormente, a proponente do

pedido do registro de patrimônio é a Secretaria Municipal de Cultura de Congonhas. Portanto,

trata-se de um processo que parte de um órgão público do qual, aos poucos, as quitandeiras vão

tomando consciência de sua importância. Em uma pesquisa incipiente sobre a visão das

quitandeiras a respeito do possível registro como patrimônio nos mostrou que elas não

compreendem o significado da palavra patrimônio e nem as suas implicações.4 Torna-se, assim,

um desafio para a pesquisa compreender a apreensão das quitandeiras em relação ao registro,

uma vez que, explicar a elas os significados do patrimônio implicaria numa indução das

respostas às nossas perguntas, o que fere os princípios da metodologia adotada, a história oral.

No entanto, através da análise das respostas dadas a outras perguntas tais como a

transmissão do conhecimento e a existência de cursos e incentivos governamentais nas suas

cidades, pudemos apreender, indiretamente, a visão das quitandeiras em relação ao processo de

perda do ofício, à necessidade de sua valorização e os caminhos para a elaboração de um plano

de salvaguarda (pensando, aqui, no patrimônio como um instrumento que busca resguardar o

passado no futuro). Portanto, o que queremos dizer é que a conduta na escuta e na compreensão

4 À princípio, estava incluída no nosso questionário a pergunta: O que você acharia se o ofício das quitandeiras se

tornasse um patrimônio cultural? Dada a dificuldade das nossas entrevistadas entenderem o significado de

patrimônio, retiramos a pergunta, já que, explicar esse significado iria induzir a resposta delas. O caminho que se

propõe na nova fase da pesquisa é procurar essa resposta através de outras perguntas, mais sutis, que incluam a

noção da perda do ofício, da necessidade de valorização da cultura regional e dos caminhos de um plano de

salvaguarda ou outras políticas públicas.

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da fala das quitandeiras deve ser flexível e ir além do que é dito, compreendendo o significado,

inclusive, dos silêncios e das perguntas feitas ao pesquisador.

Por exemplo, quando recolhemos as assinaturas das quitandeiras durante o Festival da

Quitanda de Congonhas, em 2013 (requisito necessário para o pedido de abertura de inventário),

algumas nos perguntaram: “mas eu vou ter que pagar? ”, “O que eu vou ganhar com isso?” ,

“Isso é só para as quitandeiras de Congonhas ou para todas?” Ao mesmo tempo, o silêncio

com o qual nos deparamos quando perguntamos diretamente qual seria o sentimento delas em

relação à uma patrimonialização, igualmente nos mostra o pouco entendimento que elas têm

em relação a esse conceito e as suas implicações.

Contudo, foi quando perguntamos às nossas entrevistadas se elas tinham passado seus

conhecimentos às suas filhas ou outras familiares é que percebemos a noção que elas têm da

perda do ofício, como podemos ver nos depoimentos abaixo:

“Eu gosto de ensinar, mas eu não tenho filhas para ensinar. Eu tento ensinar

para as minhas noras, que não são muito de cozinha, mas é meio difícil, elas

preferem comprar.” (Juraci Ferreira de Barros – Congonhas, 06.07.13)

“Eu não ensinei as minhas filhas a fazer as quitandas porque elas não quiseram

aprender. Hoje as moças preferem estudar, trabalhar e ter uma profissão. (...)

Existe alguma receita antiga, que a senhora não faz, ou não vê mais? Uma coisa

muita antiga que a gente não faz mais é biscoito de araruta, de polvilho de

araruta. A gente não tem isso mais. Esse se a minha mãe fez, a gente era pequena

e eu nem lembro mais. Coisa antiga que a gente não vê mais.” (Odete Silva –

São Brás do Suaçuí, 05.07.13)

“Eu não cheguei a ensinar para ninguém. Às vezes eu brinco com as minhas

noras: qual de vocês vai ficar com o meu caderno de receitas? (...) Eu tinha

vontade de ter um jeito, um lugar onde eu pudesse ensinar as receitas que eu

sei. Porque isso é coisa uma herança, depois a gente morre e elas ficam jogadas

aí, né?” (Stella Adelino - Entre Rios de Minas, 05.07.13)

“Eu não ensinei para ninguém. Mas essas coisas a gente não pode deixar

morrer. Essas quitandas são a nossa identidade, né? Nós temos pessoas que

sabem fazer biscoitos muito bem e elas estão ficando esquecidas. Isso tá

acabando até por falta de incentivo, porque nós não temos uma prefeitura que

incentiva, nós não temos um órgão que incentiva, nós não temos nada.”

(Margarida Resende – Entre Rios de Minas, 17.01.13)

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Nos dois primeiros depoimentos, fica claro que as gerações mais jovens não pretendem

dar seguimento à profissão das mães e, implicitamente, há um tom de desvalorização dessa

atividade pelas mais jovens. Mais ainda, na fala da quitandeira D. Odete, notamos que há uma

possibilidade de perda e de esquecimento de certas receitas. No relato da quitandeira Stella

Adelino, pudemos apreender também uma noção da categoria patrimônio quando ela diz que

esse conhecimento é uma herança, materializada no caderno de receitas. A quitandeira

Margarida, até relaciona as quitandas com a identidade local e reivindica a elaboração de

políticas públicas que incentivem a atividade. Margarida chegou a participar de um projeto

elaborado na zona rural de Entre Rios de Minas, o Projeto Montijo, que visava a construção de

uma fabriqueta de quitandas e de uma cooperativa que incluiria 32 quitandeiras. Porém, por

conflitos políticos, o projeto não se concretizou. Segundo a Margarida, depois disso muitas

dessas quitandeiras e seus maridos acabaram saindo da zona rural para trabalhar na VSB

(Vallourec & Sumitomo Tubos do Brasil) que se instalou no ano de 2008 em Jeceaba, município

próximo a Entre Rios.

Todas as quitandeiras entrevistadas demonstraram intenção de ensinar o seu

conhecimento, o que já indica um caminho para um plano de salvaguarda ou para a elaboração

de políticas públicas que visem preservar a atividade ou gerar renda para os habitantes das

cidades do interior do estado. Do mesmo modo, seria necessária a salvaguarda dessas receitas

que tendem a se perder, que poderia se dar através da elaboração de um livro de receitas e da

criação de espaços, associações onde as detentoras do conhecimento poderiam repassar esse

saber para outras pessoas.

Outra conclusão extraída desses depoimentos é: por mais que as quitandeiras não

entendam as implicações de uma patrimonialização, elas desejam se sentir valorizadas, tão

importante para a autoestima dessas pessoas, que se mostrou muito baixa em vários momentos

das entrevistas. Portanto, quando, no meio da entrevista, a nossa colaboradora abre uma gaveta

para pegar um certificado e mostrar que agora pode ser chamada de uma quitandeira de

Congonhas ou, quando conta com orgulho que ganhou o primeiro lugar em um concurso ou,

até mesmo que suas quitandas são vendidas em todo o Brasil, essas pessoas estão querendo

mostrar que essa atividade tem o seu valor e elas gostam de serem valorizadas por esse trabalho.

Vejamos, como exemplo, o depoimento das quitandeiras Raquel Ramalho, Inesita e Odete

Silva:

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“Fiz um curso na EMATER e ganhei esse certificado. A minha receita foi

publicada no caderno do Festival da Quitanda. Hoje já posso dizer que sou uma

quitandeira de Congonhas.” (Raquel Ramalho – Congonhas, 07.07.13)

“O meu pastel de angu ficou em primeiro lugar no concurso do Festival da

Quitanda em 2010. E muitas pessoas me procuram para me entrevistar porque

sou muito extrovertida e o meu pastel é um sucesso.” (Inesita – Congonhas,

24.05.12)

“Faço quitandas para diversos lugares. Para todo mundo que me encomenda.

Vai biscoito pro Rio, vai biscoito pra São Paulo. (...) Não é uma coisa chic, não

é uma profissão, mas tem gente que gosta, valoriza o trabalho da gente e

procura.” (Odete Silva – São Brás do Suaçuí, 05.07.13)

Por último, achamos relevante chamar a atenção para um fato curioso em relação à

compreensão da categoria patrimônio por parte de duas quitandeiras em especial, a Vera Santos

de Congonhas e a Sílvia Nunes de Ouro Preto. As duas, moradoras de cidades históricas, apesar

da baixa escolaridade, tinham um entendimento maior do conceito de patrimônio. A nossa

hipótese é de que, morando em uma cidade tombada como Patrimônio Histórico da

Humanidade pela UNESCO, como é o caso de Ouro Preto ou com um monumento tombado,

como a Basílica do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, elas estão mais familiarizadas

com o termo. Quando perguntadas sobre uma possível patrimonialização, elas pensaram nos

benefícios do registro em termos de proteção e de produto turístico:

“Eu vendo as minhas quitandas na beira da estrada, mas dizem que é ilegal.

Se chegar a vigilância sanitária, dizem que eu vou ter problema. Mas meus

produtos são limpinhos, se tivesse um jeito de proteger a gente seria bom.”

(Sílvia Nunes- Ouro Preto, 10.03.13)

“O turista que vem para Congonhas não consegue comprar as quitandas,

porque a gente só vende por encomenda. Falta uma loja, um lugar para a

gente vender as nossas quitandas.” (Vera Santos – Congonhas, 14.03.13)

Enfim, são muitos os desafios que essa pesquisa, incipiente no que tange ao assunto

patrimônio, terá que enfrentar. Começando pela compreensão dos sentidos que as próprias

quitandeiras atribuem à sua prática e não nos esquecendo de que esse grupo de pessoas é

heterogêneo, com interesses diversos. Somado a isso, a atividade passa por transformações nas

mãos das gerações mais jovens, que transformam receitas, modos de vender e aprender. No

desenvolvimento futuro dessa pesquisa, há que se incluir a compreensão das demandas desse

grupo e daquelas formadas pelas associações locais. Uma vez que essa pesquisa ainda é

incipiente, faltou-nos os depoimentos desses dois grupos. De toda forma, acreditamos que a

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patrimonialização do ofício das quitandeiras e/ou o fornecimento de informações para a

elaboração de políticas públicas que visem incentivar a atividade, de acordo com as demandas

das próprias quitandeiras, seriam formas positivas de devolução dessa pesquisa.

De encontro às ideias de Canclini (1999), a nossa proposta visa os seus usos sociais, não

com uma mera atitude de resgate e sim com uma visão mais completa de como a sociedade se

apropria da sua história, envolvendo diretamente as pessoas que exercem o ofício. É importante

lembrar-nos de que qualquer forma de apoio que pretenda assegurar a continuidade desse bem

deve ser feita sem tolher ou congelar essa manifestação cultural, como propõe Fonseca (2003).

Por fim, concordamos com Lody (2008, p. 152) que a melhor forma de se conservar e transmitir

memórias é no exercício, na transmissão do conhecimento, na conquista da experiência e, no

caso da culinária, na realização das receitas. Por isso, embora a nossa pesquisa esteja engajada

em um processo de patrimonialização, estamos cientes de que a patrimonialização pode ser um

caminho, mas que por si só não garante a continuidade do ofício. Para isso, é preciso que haja

vontade das quitandeiras e da sociedade, tendo como suporte o apoio do poder público no

sentido da elaboração de ações que fomentem e garantam a prática da atividade.

4. Referências bibliográficas

BONOMO, J. R. O que é que a quitandeira tem? Um estudo sobre a memória e a identidade

das quitandeiras de Minas Gerais. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Memória Social da UNIRIO. Rio de Janeiro: 2014.

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Gonçalves de Mello. 3ª ed. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1997.

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Patrimonio Etnológico. Nuevas perspectivas de estúdio. Consejería de Cultura. Junta de

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CASCUDO, L. C. História da alimentação no Brasil. São Paulo: Global, 2004, 3ªed.

FIGUEIREDO, L. O avesso da memória: cotidiano e trabalho da mulher em Minas Gerais no

século XVIII. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: Edunb, 1993.

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FRIEIRO, E. Feijão, angu e couve. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.

FONSECA, M. C. L. Referências culturais: bases para novas políticas de patrimônio. In: O

registro do patrimônio imaterial: dossiê final de atividades da Comissão e do Grupo de

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MEIHY, J. C. S. B. & HOLANDA, F. História Oral: como fazer, como pensar. 2ed. São

Paulo: Contexto, 2011.

MENEZES, U. O campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas. 1º. Forum

Nacional de Patrimônio Cultural, vol. 1, 2009, p. 25-39.

PAIVA, E. F. Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2001.