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Faculdade de Letras da Universidade do Porto Departamento de Ciências e Técnicas do Património O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA: Aprofundamento de um modelo de estudo Curso Integrado de Estudos Pós-Graduados em Museologia - Via Mestrado Orientação: Professora Doutora Alice Lucas Semedo Co-Orientação: Professora Doutora Amélia Ricon Ferraz Sónia Castro Faria Janeiro 2009

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  • Faculdade de Letras da Universidade do Porto

    Departamento de Cincias e Tcnicas do Patrimnio

    O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA:

    Aprofundamento de um modelo de estudo

    Curso Integrado de Estudos Ps-Graduados em Museologia - Via Mestrado

    Orientao: Professora Doutora Alice Lucas Semedo

    Co-Orientao: Professora Doutora Amlia Ricon Ferraz

    Snia Castro Faria

    Janeiro 2009

  • NDICE

    Agradecimentos i

    Lista de Abreviaturas ii

    ndice de Figuras iii

    ndice de Tabelas e Grficos v

    Introduo 1

    Parte I Cultura Material 5

    1. Cultura material razo, evoluo e reflexo sobre a sua prtica 6

    2. Objectos e coleces: a construo de significados em contextos museolgicos 13

    Parte II A Cincia, a Medicina e a Museologia 20

    1. Os paradigmas cientficos dinmicas da cincia 21

    2. Exerccio da medicina: paradigmas tradicionais versus novos paradigmas 35

    3. Os museus de medicina no contexto nacional e internacional 51

    Parte III Estudo de Coleces 65

    1. O Museu do Centro Hospitalar do Porto: um projecto 66

    1.1 Histria e carcter do Hospital de Santo Antnio 66

  • 1.2 O Hospital de Santo Antnio enquanto hospital escolar do Porto 76

    1.3 As coleces do Museu o passado, o presente e o futuro 80

    2. Descobrir e interpretar o objecto mdico: apresentao de modelo de estudo 87

    Consideraes Finais 122

    Referncias Bibliogrficas 127

    ndice dos Anexos 137

  • AGRADECIMENTOS Por mais que um trabalho acadmico aponte para o individualismo do seu autor, ele ser sempre

    uma consequncia de outros esforos individuais e colectivos, aos quais deixo aqui o meu

    reconhecido agradecimento.

    Em primeiro lugar agradeo Professora Doutora Alice Semedo a forma como orientou o meu

    trabalho. As suas sugestes, questionamentos, sabedoria e serenidade, tornaram possvel a

    realizao do mesmo.

    Professora Doutora Amlia Ricon Ferraz agradeo todas as consideraes e referncias,

    fundamentais para esclarecer a natureza e o alcance dos mtodos empregues e elucidao de

    alguns equvocos iniciais.

    De igual forma, no posso deixar de agradecer ao Centro Hospitalar do Porto (CHP), na pessoa

    do seu Presidente do Conselho de Administrao, Dr. Fernando Sollari Allegro, pela

    disponibilidade demonstrada, assim como, e em igual medida, Professora Doutora Margarida

    Lima, Dra. Ana Varo e Enfermeira Joana Tavares, do Conselho de Gesto do Departamento de

    Ensino, Formao e Investigao do CHP. Os meus sinceros agradecimentos ainda ao Dr. Lopes

    da Silva, responsvel pelo Biblioteca Central e Museu, e a todo o servio da Biblioteca Central do

    CHP, por todo a confiana, apoio e incentivo prestado, e a todos os funcionrios do Hospital de

    Santo Antnio (HSA) que me auxiliaram no decorrer do presente trabalho

    Sem querer estabelecer qualquer ordem de relevncia, agradeo ainda ao Bethlem Royal Hospital;

    Hunterian Museum at The Royal College of Surgeons; Museo Vasco de Historia de la Medicina;

    British Red Cross Museum; Royal London Hospital Archives and Museum; Royal Pharmaceutical

    Society of Great Britain; Mtter Museum; St Bartholomew's Hospital; The College of Optometrists;

    The Royal College of Surgeons of England; The Wellcome Trust - pela forma prestativa e gentil

    como se colocaram disposio, facultando documentos orientadores, bibliografia e

    caracterizando diversas reas vocacionais dos seus museus. Um especial agradecimento ao

    Professor Doutor Anton Erkoreka, Director del Museo Vasco de Historia de la Medicina, pela forma

    empenhada com que abordou as mais diversas consideraes que por mim foram sendo

    colocadas.

    Por ltimo um especial obrigado minha famlia, com destaque para a minha irm, cunhado e pai,

    e minha cara-metade por todo o juzo crtico, pacincia e motivao com que sempre me apoiou.

    minha querida me dedico este trabalho.

    i

  • LISTA DE ABREVIATURAS BCCHP Biblioteca Central do Centro Hospitalar do Porto.

    B-ON - Biblioteca do Conhecimento Online.

    CIDOC - International Committee for Museum Documentation.

    CHP Centro Hospitalar do Porto.

    EMCP - Escola Mdico-Cirrgica do Porto.

    FMUP - Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.

    HGSA Hospital Geral de Santo Antnio.

    HSA Hospital de Santo Antnio.

    ICOM - International Council Museums.

    MCHP - Museu do Centro Hospitalar do Porto.

    MLA - Museums Libraries Archives Council.

    RECP - Rgia Escola de Cirurgia do Porto.

    SCMP - Santa Casa da Misericrdia do Porto.

    ii

  • NDICE DE FIGURAS

    Pag.

    Fig. 1 - Muse Curie, Paris, Frana 55

    Fig. 2 - British Optical Association Museum, Londres, Inglaterra 58

    Fig. 3 - National Museum of Dentistrys "The Dr Samuel D. Harris", Maryland, USA 58

    Fig. 4 - St Bartholomew's Hospital Museum, Londres, Inglaterra 59

    Fig. 5 - Thrackray Medical Museum, Leeds, Inglaterra 61

    Fig. 6 - Boerhaave Museum, Leiden, Holanda 62

    Fig. 7 - Frontispcio do Hospital Santo Antnio do Arquitecto - John Carr, 1769. 67

    Provenincia: Centro Hospitalar do Porto.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig. 8 - Enfermaria de Clnica Mdica - Sala do Esprito Santo. 71

    Fonte: ALMEIDA, Prof. Thiago d' - O Ensino da Clnica Mdica na Escola do Porto: de 1907 a 1927.

    Porto: Emp. Indust. Grfica do Porto, 1927. p. 12.

    Fig. 9 - Desobriga dos Enfermeiros Catlicos no Hospital Geral de Santo Antnio no ano de

    1952.

    75

    Provenincia: Coleco da Enfermeira Ana dos Santos Machado.

    Fig.10 - Fachada do Hospital de Santo Antnio e da Faculdade de Medicina do Porto. 78

    Fonte: Boletim Clnico do Hospital de Santo Antnio. Porto: Hospital de Santo Antnio, 1928.

    Fig. 11 - Retrato do Irmo Jos Antnio dos Santos. Alves, 1841. 81

    Provenincia: Santa Casa da Misericrdia e Centro Hospitalar do Porto.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig. 12 - Curativo. Pavilho D. Manuel II. 82

    Provenincia: Coleco da Enfermeira Ana dos Santos Machado.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    iii

    http://www.dentalmuseum.org/

  • Pag.

    Fig.13 - Disco de Plcido da Costa. 112

    Provenincia: CHP, Dep. Doenas do Sistema Nervoso e rgos dos Sentidos, Serv. Oftalmologia.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig.14 - Candeeiro de UV. 113

    Provenincia: CHP Dep. Ortofisiatra, Serv. Fisiatria.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig.15 - Agulhas de Doyen. 114

    Provenincia: CHP, Bar do Centro Cultural e Desportivo.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig.16 - Densmetros. 115

    Provenincia: CHP, Dep. Patologia Laboratorial, Serv. Qumica Clnica.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig.17 - Chassis. 116

    Provenincia: CHP, Dep. Imagiologia, Serv. Radiologia.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig.18 - Frasco de Farmcia. 117

    Provenincia: CHP, Servios Farmacuticos.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig. 19 - Autoclave 117

    Provenincia: CHP, MCHP.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig. 20 - Servio. 118

    Provenincia: CHP, MCHP.

    Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    Fig. 21 - Relatrio de diagnstico Mdico: Dr. Corino de Andrade 118

    Provenincia: CHP, Serv. Paramiloidose.

    Fig. 22 - SEMEDO, Joo Curvo - Polyanthea Medicinal. Noticias Galenicas e Chymicas,

    repartidas em trs tratados; Lisboa: Oficina de Miguel Deslandes, 1967.

    119

    Provenincia: CHP, Biblioteca Central. Fotografia Egdio Santos/Meio Formato.

    iv

  • NDICE DE TABELAS E GRFICOS

    Pag.

    Tabela 1 - Mtodo de anlise do objecto mdico proposto por Felip Cid. 103

    Fonte: CID, Felip - Museologia Mdica, Aspectos Tericos y Cuestiones Prticas. Bilbao: Museo

    Vasco de Historia de la Medicina e de la Cincia, 2007. Vol.1 e 2.

    Tabela 2 - Cadastro e Inventrio dos Mveis do Estado. 107

    Fonte: Portaria n. 378/94, de 16 de Junho e Dirio da Repblica de 28/09/2000.

    Tabela 3 - Resumo da classificao proposta. 120

    Grfico 1 - Nmero total de objectos Mdico - Cirrgicos, de Laboratrio, de Imagiologia e

    Farmacuticos do Centro Hospitalar do Porto - Unidade Hospital de Santo Antnio.

    80

    v

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    INTRODUO

    Este projecto, realizado no mbito do Mestrado em Museologia do Departamento de Cincias e

    Tcnicas do Patrimnio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sob a orientao da

    Professora Doutora Alice Semedo, e co-orientao da Professora Doutora Amlia Ferraz, como

    singela reflexo que pretende ser, no ambiciona mais do que abrir caminho investigao de

    coleces mdicas e servir de instrumento de investigao no s para o Museu do Centro

    Hospitalar do Porto, mas tambm para museus congneres, os quais muitas vezes para alm dos

    parcos recursos financeiros no possuem os recursos humanos adequados colmatao das

    deficincias encontradas nesta e noutras vertentes da gesto de coleces.

    Esta explanao que ter como foco a interpretao e sentido das coleces mdicas, revela a

    singularidade de propor um modelo de estudo do objecto mdico, prevendo a classificao

    normalizada do mesmo, preconizando assim os seguintes objectivos especficos:

    - incrementao da investigao e acepo do objecto mdico;

    - promoo e divulgao dos museus de medicina e suas coleces;

    - regulao de metodologias de estudo;

    - sistematizao e normalizao da classificao;

    - apoio na uniformizao de denominaes;

    - incentivo aplicao de correctas prticas museolgicas e museogrficas.

    No recente o interesse em estudar e interpretar a dimenso do objecto no maior nmero de

    vertentes possveis e enquanto fonte de informao nica acerca do Homem na e em sociedade

    ao longo do tempo, tanto que este me motivou a aceitar o desafio de investigar uma rea de

    estudo onde os seus alvos de estudo so revestidos de singularidade muito prpria,

    embrionariamente reflectida e aprofundada.

    No contexto museolgico, o objecto mdico em comparao com outros fundos museolgicos e

    salvo raras excepes, goza de um baixo estatuto e esteve, se ainda no estar, muitas vezes

    renegado e associado a objecto menor, alargando-se estas consideraes aos Museus de

    Medicina que mesmo ao nvel de enquadramento museolgico constituem uma subdiviso dentro

    dos Museus de Cincia e Tecnologia.

    Contudo h que ressalvar que marcaram o esprito de vrias geraes e que por qualquer lado

    que se encare a coleco, clnico, cientfico, tecnolgico, ou unicamente pelo ponto de vista

    documental, o estudo e anlise da instrumentaria mdica, revela-se uma fonte de informao

    importante uma vez que estes so a expresso da poca a que pertencem, marcos de

    descobertas experimentais e interrogaes cientficas e, neles podemos colher dados teis em

    diferentes domnios.

    1

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    Contudo, e apesar de desde cedo o meu percurso profissional se encontrar interligado

    transversalmente a esta vertente de investigao e anlise de diferentes tipologias de objectos -

    desde pintura, a cermica e nos ltimos anos sobretudo a coleces etnogrficas -, pelo que o

    presente trabalho perfilar-se-ia como facilitado, mostrou-se contudo uma tarefa rdua e morosa

    dado o estado primrio das abordagens existentes sobre o assunto, reflectido na escassa e

    incompleta bibliografia a versar especificamente a temtica e na extrema dificuldade em abraar,

    enquanto leiga na matria, os diversos limites da positividade de interveno da Medicina,

    nomeadamente na sua vertente de especializao, circunspecta no esplio do Museu do Centro

    Hospitalar do Porto, nosso Caso de Estudo.

    No sentido de serem criadas condies para evocar relaes que melhor permitissem perceber a

    funcionalidade dos objectos mdicos ao longo das pocas, bem como enquanto testemunhos da

    evoluo de tcnicas mdicas, tentou-se reunir o mximo de informao associada aos mesmos e

    seus contextos envolventes, comeando assim por apoiar a nossa metodologia assente numa

    parte terica, iniciada por uma reviso de bibliografia nacional e internacional, tendo por base

    catlogos de fabricantes; bases de dados online; monografias de enquadramento; legislao,

    entre outras.

    Deste modo, entre Outubro e Dezembro de 2006 foram levadas a cabo investigaes em diversas

    instituies: Biblioteca Municipal do Porto; Biblioteca Central do Hospital de Santo Antnio;

    Biblioteca da Faculdade de Medicina do Hospital de S. Joo; Biblioteca da Santa Casa da

    Misericrdia do Porto; Arquivo Histrico Municipal do Porto; Biblioteca do Laboratrio Prof. Alberto

    Aguiar; Centro Portugus de Fotografia e Biblioteca do ICBAS. A partir deste levantamento foram

    elaborados dossiers que constituram instrumentos fundamentais no desenrolar deste trabalho.

    A segunda fase, e uma vez que se partiria como referencial de estudo do esplio do Hospital de

    Santo Antnio (HSA), actual unidade do Centro Hospitalar do Porto, consistiu na pesquisa e

    avaliao junto de cerca de quarenta servios da instituio, de bens culturais que oferecessem

    uma caracterizao prpria para a futura integrao numa coleco e consequente musealizao.

    Entre Janeiro e Maio de 2007 estudaram-se assim as coleces existentes nos servios do HSA

    no sentido de se proceder ao que caracterizado comummente como levantamento de

    existncias. Deste modo, optou-se por registar manualmente in situ, numa ficha de trabalho um

    conjunto de dados passveis de serem observados, descritos ou conjecturados.

    Nesta fase contou-se, para as coleces de cinco Laboratrios e coleco de Oftalmologia, com o

    apoio de trs alunas do Curso Integrado de Estudos Ps-Graduados em Museologia da Faculdade

    de letras da Universidade do Porto, Aida Almeida, Marta Gaspar e Snia Macedo.

    Dada a inexistncia de livros de cadastro, a identificao das peas tornou-se numa tarefa

    demorada, apesar do apoio que nos foi sendo prestado por diversos profissionais da instituio e

    pela Professora Doutora Amlia Ferraz do Museu da Histria da Medicina "Maximiano Lemos".

    2

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    Deste modo, a etapa de investigao subsequente assentou na consulta de documentao com

    intuito de fundamentar com rigor as teorias desenvolvidas. Procedeu-se assim ao estudo dos

    catlogos de fabricantes existentes na Biblioteca Central da instituio, onde se constatou que em

    alguns casos se encontravam arrolados nos mesmos os objectos que a instituio pretendia

    adquirir. Realizou-se igualmente uma anlise ao arquivo histrico da mesma, nomeadamente

    livros de contas e de requisio de material do arsenal (infelizmente s relativos s dcadas de 60

    e 70 do sc. XX) e livros de correspondncia expedida e recebida pelo Hospital, mais de duas

    centenas, respeitantes a quase todo o sc. XIX e primeira dcada do sc. XX.

    Tarefa delicada e extensa, qual se seguiu uma avaliao crtica da documentao, tratamento e

    sistematizao da mesma, essencial para a identificao da grande maioria do esplio e

    respectiva caracterizao, mas essencialmente profcua no sentido em que obtivemos plena

    percepo, sobretudo atravs da correspondncia e actas de reunies das direces, da histria,

    organizao e evoluo da prtica mdica e cirrgica na instituio, nomeadamente ao nvel da

    especializao.

    Na sequncia deste levantamento conclui-se que muitos dos objectos relacionados com a

    memria da instituio no esto hoje sua guarda devido a uma srie de condicionantes que no

    nos compete aqui considerar, reflectindo contudo o acervo em questo um perodo importante da

    histria e patrimnio, abrangendo milhares de artefactos referentes maioritariamente ao sc. XX,

    do Hospital Santo Antnio.

    Tendo por base esta investigao-aco e as informaes recolhidas junto de diversos museus de

    medicina com os quais se manteve um contacto informal, foi possvel desenvolver a presente

    reflexo intitulada O Objecto e os Museus de Medicina: Aprofundamento de um modelo de

    estudo".

    Deste modo, comea-se inicialmente neste trabalho por efectuar uma sinttica abordagem

    cultura material, suas origens, desenvolvimento de sentidos e redefinies das suas reas de

    actuao, tendo em conta a sua particular contribuio na interpretao formal e entendimento de

    significados do objecto. Num segundo captulo considerar-se- ainda, recorrendo s mltiplas

    perspectivas expostas por diferentes autores, factores relevantes na significao do objecto

    museolgico, salientando a construo de sentido enquanto criao social.

    Na segunda parte do trabalho sero focadas as dinmicas da cincia, evidenciando-se a

    transformao do pensamento cientfico na prtica mdica.

    Comea-se assim por uma definio de paradigma e por um enquadramento de possveis factores

    desintegradores do processo de conhecimento cientfico responsveis pela revoluo cientfica, de

    forma a legitimar a mudana de paradigma e a cedncia de uma estrutura conceptual por outra

    que apresente novos mtodos de anlise, resultando num paradigma emergente cujo perfil ser

    3

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    aqui abordado de acordo com as pticas apresentadas por alguns autores que se dedicaram a

    esta questo, nomeadamente Thomas Kuhn, Karl Popper e Boaventura de Sousa Santos.

    Partindo destes princpios, analisar-se- no segundo captulo, evocando-se o seu enquadramento

    histrico e mudanas conceptuais relevantes, o desenvolvimento sucessivo da Medicina enquanto

    cincia e a evoluo do conhecimento mdico, as suas mudanas estruturais ao nvel da sua

    prtica, tcnicas de interveno e instrumentalizao e a sua objectivao gradual no

    conhecimento cientfico do corpo e transformao de atitude da doena, indissociveis e

    directamente correlacionados com o desenvolvimento tecnolgico e cientfico.

    Ainda nesta segunda parte reflectir-se- sobre a museologia mdica e o seu panorama,

    perspectivando-se a evoluo e contextualizao dos museus de medicina enquanto elementos

    determinantes para o reforo do estudo dos objectos. Finaliza-se com um levantamento de alguns

    museus de medicina agrupados de acordo com o carcter das suas coleces e seus discursos

    comunicativos e expositivos e com a ressalva da urgente necessidade de a museologia mdica

    reclamar um lugar prprio dentro dos saberes museolgicos, tendo em conta as suas

    especificidades caractersticas.

    O primeiro captulo da terceira parte dedicado explanao do projecto do Museu do Centro

    Hospitalar do Porto, ao nvel do seu enquadramento histrico e desenvolvimento do conhecimento

    mdico, escolar, cientfico e tecnolgico da instituio, contextualizao das suas coleces e

    identificao dos actuais eixos de aco deste projecto.

    No segundo captulo, partindo-se de perspectivas de anlise do objecto apresentadas por cinco

    modelos de estudo de coleces, sendo explanados em cada um deles as fontes de informao e

    componentes de relevncia que contribuiro para a compreenso do mesmo, desenvolveu-se um

    modelo pensado e vocacionado na materializao do objecto mdico, resultado de um trabalho

    com uma forte vertente de investigao e do estreito contacto com diversos museus congneres.

    Abordando cientificamente a particularidade da museologia mdica, o modelo reflectir o objecto

    mdico enquanto elemento determinante do desenvolvimento das cincias da sade atravs dos

    tempos, segundo a sua significao tcnica e funcional, o seu posicionamento em diferentes

    contextos, processo de criao e fabrico, o seu contexto tecnolgico decorrente da interaco com

    outras cincias, caractersticas formais, entre outros dados, que permitam, numa atitude positiva

    para com a cincia, deslindar o seu sentido, significado, aplicaes e implicaes. Posteriormente

    a esta aferio do carcter do objecto prope-se um sistema de classificao do objecto mdico

    em diversos nveis de especificidade, partindo-se de uma lgica intrnseca baseada num primeiro

    nvel na rea de conhecimento e numa subdiviso da mesma que prev a vertente funcional

    especfica do objecto.

    Uma ltima referncia ao roteiro digital, anexo a este trabalho, o qual constitui a materializao

    dos diversos domnios da investigao desenvolvida.

    4

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    PARTE I- CULTURA MATERIAL

    No seria possvel uma histria da vida quotidiana sem as evidncias da cultura material, assim

    como a histria da cultura material seria ininteligvel se esta no fosse colocada no contexto da

    vida social quotidiana.

    Peter Burke

    5

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    1 CULTURA MATERIAL RAZO, EVOLUO E REFLEXO SOBRE A SUA PRTICA A noo "cultura material " est relativamente disseminada na histria e, embora em menor grau,

    tambm em diversas cincias humanas. No parece, no entanto, que algum tenha alguma vez

    apresentado uma definio geral e rigorosa, pois apesar do seu significado global ser evidente, a

    noo de cultura material continua a ser, de facto, imprecisa e simultaneamente a estar longe da

    iluso de transparncia, apresentando conotaes bastante diversas1.

    A questo extremamente controversa, visto que boa parte dos historiadores no aceita a

    separao entre cultura e cultura material . Alguns chegam a considerar a distino

    inteiramente factcia.

    As origens da noo de "cultura material so difceis de precisar e segundo Jean-Marie Pensez o

    conceito de cultura material j existia desde o sculo XIX, mas de maneira indefinida2.

    No decurso da segunda metade do sc. XIX foi-se formando progressivamente no seio de

    diversas correntes de pensamento e, mais tarde, como resultado da conjugao dessas mesmas

    correntes, cujos sistemas ideolgicos eram, na altura, convergentes3.

    O ponto de transio coincide com a ruptura epistemolgicas desta poca e das novas condies

    cientficas que dela derivam, mudando assim a refinao da finalidade e do objecto cientfico e

    desenvolvendo uma metodologia que pressupe o recurso ao tangvel, ao material, ao concreto e

    vontade de nele basear a explicao e a sntese.

    Desde a reformulao da historiografia promovida por Marc Bloch e Lucien Febvre no final da

    dcada de 1920, a histria desvinculou-se da narrativa e do factual e passou a ser conduzida por

    hipteses.

    A histria social passou a lidar com a cultura material de maneira mais ampla buscando

    problematiz-la para melhor detectar as nuances da experincia prtica e relacional dos agentes

    sociais que a elaboram.

    Novos objectos e novas metodologias foram propostos, e as fronteiras disciplinares que

    separavam a disciplina das demais cincias sociais foram flexibilizadas e a histria aproximou-se,

    da geografia, da economia e da psicanlise, entre outras.

    Todo este movimento possibilitou a introduo de novas fontes para alm dos documentos

    escritos. Passaram tambm a ser tratados como documentos, a prpria iconografia, a pictografia,

    1 BUCCAILE, Robert; PESSEZ, Jean-Marc Cultura Material, Vol.XVII, in Enciclopdia Einaudi. Lisboa:

    Imprensa Nacional da Casa da Moeda,1989. p.11. 2 PENSEZ, Jean-Marie - Histria da cultura material. In LE GOFF, Jacques (org.) - "A Histria Nova". S. Paulo: Martins Fontes, 1993. p.213. 3 BUCCAILE, cit. 1, p.12.

    6

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    os relatos orais e os objectos do quotidiano. Como consequncia deste movimento, houve uma

    pulverizao do campo histrico, possibilitando uma histria cultural, uma histria das

    mentalidades, uma histria demogrfica e, uma, que nos interessa particularmente, a histria da

    cultura material.

    Tome-se o exemplo de Marc Bloch, estudioso da medievalidade francesa4, o qual afirmava que,

    sendo a populao medieval essencialmente formada por camponeses produtores, seria

    importante, do ponto de vista da historiografia, indagar o que eles produziam, em que quantidade,

    com quais utenslios e tcnicas.

    A histria da cultura material, ento, estudaria os objectos materiais na sua interaco com os

    aspectos mais concretos da vida humana, desdobrando-se por domnios histricos to diversos

    como os utenslios, o estudo da alimentao, o vesturio e os objectos de cincia.

    Contudo, diz-nos Bloch, deve-se examinar no o objecto em si mesmo, mas sim os seus usos, as

    suas apropriaes sociais, as tcnicas envolvidas na sua manipulao, a sua importncia

    econmica e a sua necessidade social e cultural, [..], pois afinal, no se pode perder de vista a

    noo de cultura de cultura material 5.

    No decorrer do sc. XX, o significado de cultura material atravessou vrias redefinies e

    reformulaes.

    Partindo destes pressupostos e procurando uma definio para cultura material importante ter-se

    em mente que a expresso cientfica "cultura material" "apenas uma formulao muito restrita

    dos mltiplos aspectos que compem essa noo e no abarca a sua totalidade: a cultura material

    composta em parte, mas no s, pelas formas materiais da cultura".6

    As abordagens tradicionais utilizadas at 1960 por historiadores e antroplogos nas suas

    interpretaes do passado das sociedades tendem a assumir que a cultura material apenas o

    resultado, ou apenas detrito, de comunidades que como nada tm a dizer sobre si mesmas, os

    seus artefactos s seriam significativos se fossem explicados a partir de fora; e isto apesar do

    facto de sabermos por experincia que os artefactos podem, por vezes, expressar os nossos

    sentimentos e crenas7.

    Procure-se ento algumas definies:

    4 BLOCH, Marc Les inventions mdivales. Annales dhistoire conomique et sociale. Laterza: Bari, 1959.

    Vol. VII. p.180. 5 BARROS, Jos DAssuno - O campo histrico. As especialidades e abordagens da Histria. Rio de

    Janeiro: A Cela, 2002. p.21. 6 BUCCAILE, cit. 1, p.20. 7 PEARCE, Susan - Objects in Structures. In PEARCE, Susan (ed) Museum Studies in Material Culture.

    London: Leicester University Press, 1989.

    7

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    Por cultura material poderamos entender, de acordo com Meneses, "o segmento do meio fsico

    que socialmente apropriado pelo homem. Por apropriao social convm pressupor que o

    homem intervm, modela, d forma a elementos do meio fsico, segundo propsitos e normas

    culturais. Essa aco, portanto, no aleatria, casual, individual, mas alinha-se conforme

    padres, nos quais se incluem os objectivos e projectos. Assim, o conceito pode tanto abranger

    artefactos, estruturas, modificaes da paisagem (...) Para analisar, portanto, a cultura material,

    preciso situ-la como suporte material, fsico, imediatamente concreto, da produo e reproduo

    da vida social.

    Conforme esse enquadramento, os artefactos - que constituem (...), o principal contingente da

    cultura material - tm que ser considerados sob duplo aspecto: como produtos e como vectores

    das relaes sociais. 8

    Nos ltimos anos, depois de algumas dcadas na serenidade, a interpretao da cultura material

    tornou-se uma grande preocupao acadmica. Um dos motivos apontados por Pensez para tal

    razo, o facto de as coleces museolgicas representarem a cultura material armazenada

    desde o passado, enquanto as exposies museolgicas so o principal meio atravs do qual o

    passado publicamente apresentado [...]9.

    Deste modo, se perceber que a cultura material actualmente considerada uma das disciplinas

    por excelncia afecta aos museus.

    A definio de cultura material proposta por Deetz10 o ponto de partida para Susan Pearce que

    conceitua cultura material como um termo [...] usado significando artefactos construdos por seres

    humanos atravs de uma combinao entre matrias brutas e tecnologia, e que, para fins prticos,

    podem ser distinguidos das estruturas fixas pela sua mobilidade11.

    A noo de cultura material, que, em princpio, se aplicaria apenas a objectos soltos, pode ser

    estendida de maneira a abranger quase todas as produes humanas, como pragmaticamente

    especifica Thomas J. Schlereth no prefcio do seu livro Material culture studies in America12 -

    podemos considerar a histria da tecnologia, os estudos de folclore, a antropologia cultural, 8 MENESES, Ulpiano Bezerra A exposio Museolgica: Reflexes sobre Pontos Crticos na Prtica

    Contempornea. Universidade de S. Paulo, 1993. In MOUTINHO, Mrio Canova "Cadernos de Museologia:

    A construo do objecto museolgico". S. Paulo: Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias,

    Centro de Estudos de Scio-Museologia,1994. p. 5. 9 PENSEZ, cit. 2, p.179. 10 James Deetz define cultura material como aquele segmento do mundo fsico do homem que

    intencionalmente moldado por ele de acordo com um plano culturalmente ditado. 11 PEARCE, Susan (ed) Museum Studies in Material Culture. London: Leicester University Press, 1989.

    (segundo traduo da autora do presente trabalho). 12 SCHLERETH, Thomas J. - Material culture studies in America. Nashville (Tenn.): American Association for

    State and Local History, 1976.

    8

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    arqueologia histrica, geografia cultural e histria da arte como sub-campos dos estudos de

    cultura material.

    Susan Pearce avalia os objectos do museu como pedaos do mundo fsico, enfatizando o acto

    da seleco que, ao agregar valor cultural a um pedao do mundo, transforma-o em objecto.

    Estes, no entanto, no se restringiriam queles pedaos discretos capazes de ser movidos de um

    lugar para outro, mas compreenderiam todo o mundo fsico inclusive as paisagens 13 .

    Apesar de igualmente ressaltar o acto de seleco Mensch privilegia, contudo, a funo

    documental do objecto: Objectos de museus so objectos separados de seu contexto original (primrio) e transferidos para uma nova realidade (o museu) a fim de documentar a realidade da

    qual foram separados. Um objecto de museu no s um objecto num museu. Ele um objecto

    colectado (seleccionado), classificado, conservado e documentado. Como tal, ele torna-se fonte

    para a pesquisa ou elemento de uma exposio 14.

    Tal como Susan Pearce, Mensch parte de Deetz, ressaltando que a definio de cultura material

    no se limita aos artefactos tangveis, mveis, mas inclui todos os artefactos, do mais simples,

    como um alfinete comum, ao mais complexo, como um veculo espacial interplanetrio15.

    O essencial, em ambos os casos, mantm-se a toda a extenso do campo de estudo, pelo que a

    cultura material dever ser estudada dada a sua contribuio nica para o entendimento dos

    trabalhos desenvolvidos pelos indivduos e pelas sociedades e mesmo sobre ns prprios.

    Neste sentido, o estudo da cultura material no seu aspecto museolgico, abarca no apenas a

    interpretao formal dos artefactos, mas tambm a anlise das coleces, a sua histria, e a

    histria dos museus como um fenmeno cultural que est apenas a comear. E em definitivo, a

    "progressiva humanizao das cincias sociais levou a que museologicamente se passe da

    coleco ao homem, do objecto ideia e da ideia ao discurso"16.

    Diante de tal afirmao de Susan Pearce pode-se entender que os museus so capazes de

    mostrar, por meio das suas coleces, o homem, que o verdadeiro objecto de sua pesquisa,

    pois representam (as coleces) a expresso material das relaes humanas.

    13 PEARCE, Susan - Museums, objects and collections. Washington: Smithsonian Institution Press,1993. p.

    296. (segundo traduo da autora do presente trabalho). 14 MENSCH, P. V. - Towards a methodology of museology. Zagreb: University of Zagreb, 1992. (segundo

    traduo da autora do presente trabalho). 15 MENSCH, cit 14. p.21. (segundo traduo da autora do presente trabalho). 16 PEARCE - Museums, objects and collections, cit.13. p.38. (segundo traduo da autora do presente

    trabalho).

    9

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    Apesar de o assunto ser abrangente, Pearce sugere trs reas onde o pensamento, que

    aplicado na cultura material em contexto museolgico necessita de ser desenvolvido.

    A primeira diz respeito interpretao dos objectos, num sentido formal, e identificao e

    desenvolvimento de abordagens filosficas que podem frutuosamente ostentar sobre este

    processo.

    A segunda gira em torno de uma compreenso da natureza das coleces, daquilo que so, o

    porqu de serem assim, e daquilo em que se podem tornar.

    A terceira rea considera a natureza, real e potencial, da interaco curador versus pblico.

    Estruturalmente a cultura material entende-se assim em trs dimenses:

    - cronolgica, manifestando-se em termos de processos evolutivos;

    - social, que produz diferena no interior de um mesmo conjunto humano, sendo possvel observar

    nveis de cultura material que separam os grupos sociais, uma vez que a cultura material, neste

    conceito de colectividade, contrape-se sobretudo individualidade.

    Quando se investiga a cultura material de uma sociedade, est-se assim a averiguar para um

    sistema completo, auto-contido e auto-mantido.

    - espacial, dada a topologia das transformaes naturais e seus resultados visveis.

    Pode-se assim concluir que a noo de cultura material heterognea e rica em matrizes e isso

    explica em parte porque ser to difcil dar-lhe uma definio. Com efeito, a expresso que a

    designa, que , necessariamente, uma abreviatura, rene e resume bastante bem numerosos

    elementos diversos, que so outras tantas opes cientficas tomadas pelos especialistas que

    recorrem a esta noo.

    Em primeiro lugar, demasiadas vezes se ignora o facto de que a cultura material , antes de mais,

    tal como o seu nome indica, uma cultura. Nessa qualidade, possui dois dos seus aspectos

    principais: a colectividade (oposta individualidade) e a repetio (por oposio ao acontecimento)

    dos fenmenos que a compem, o que, em qualquer cincia, define uma importante situao

    epistemolgica e, por conseguinte, opes ideolgicas e metodolgicas. Alm disso esta

    aproximao cultural determinada pela angularidade da materialidade, que foi a escolha para

    essa abordagem, tal como indica o adjectivo material.

    Esta escolha da materialidade revela dois aspectos precisos: o apego aos fenmenos infra-

    estruturais como causalidade heurstica e a ateno aos objectos concretos que explicam estes

    fenmenos; mesmo estes aspectos sobretudo o primeiro pressupem orientaes ideolgicas

    e metodolgicas evidentes e bem precisas17.

    A noo de cultura material, que surgiu nas cincias humanas e singularmente na histria a seguir

    formao da antropologia e da arqueologia e preponderncia praticada pelo materialismo 17 BUCCAILE, cit. 1, p.25.

    10

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    histrico, distancia-se do conceito de cultura, chamando a ateno para os materiais, tcnicas e

    objectos concretos das actividades produtivas das sociedades.

    Deste modo, o estudo da cultura material privilegia as massas em prejuzo das individualidades e

    das elites, e como tal dedica-se compreenso no do acontecimento, mas sim dos factos

    repetidos:

    "Percebe-se assim como evoluiu sobretudo nos pases da Europa Oriental, entre investigadores

    predispostos a considerar de modo especial a economia e o modo de produo. O homem

    tambm faz parte da cultura material; o seu corpo, enquanto transmissor semitico igualmente

    importante para recompor o quadro geral de uma cultura ou de uma civilizao, tal como partindo

    de farrapos e moedas se pode delinear a cidade, a indstria e o comrcio ou a troca, o tipo de

    consumo das vrias classes da populao. No entanto, os objectos materiais trazem consigo

    outras marcas inerentes s artes, ao direito, religio, ao parentesco, que hoje j no so

    subvalorizados. S considerando este quadro de conjunto se pode individualizar o estado de uma

    sociedade, o seu progresso e a sua evoluo, vistos atravs dos utenslios. A cultura material

    tende, por fim, a lanar uma ponte para a imaginao do homem e para a sua criatividade e a

    considerar como suas trs componentes fundamentais: o espao, o tempo e o carcter social dos

    objectos. Embora seja ainda necessrio defini-lo com mais exactido e embora existam ainda nele

    algumas ambiguidades, o estudo da cultura material pertence pesquisa histrica e com ela

    colabora atravs de um mtodo prprio para reexaminar as espirais inerentes a todas as runas do

    passado.18

    Pode-se concluir que a cultura material sofreu a influncia das rpidas e subtis modificaes

    epistemolgicas que assinalaram as cincias humanas contemporneas.

    Alis, ela prpria se identifica com essas modificaes, "provando assim adaptar-se a uma

    conjuntura cientfica mutvel; ao mesmo tempo, porm, atravs das variaes desta ltima,

    conserva sempre uma grande estabilidade epistemolgica, que demonstra as suas qualidades

    heursticas precoces e permanentes no pensamento do nosso tempo. O paradoxo inerente a esta

    dupla constatao , por isso, apenas aparente, visto qualidades e, em ambos os casos, somos

    levados a concluir que existe uma grande capacidade de adaptao da noo de cultura material

    s necessidades intelectuais da nossa poca e, como ela se afirma de tal modo estvel e

    simultaneamente sempre adaptvel s exigncias do momento, bastante provvel que

    corresponda a uma necessidade constante nas cincias humanas, e que a satisfaa."19

    Os objectos concretos so estes que, transmitindo da melhor maneira a cultura material, ocupam,

    pelo menos em parte, e alimentam com regularidade os campos de pesquisa.

    18 BUCCAILE, cit. 1, p.46 - 47. 19 BUCCAILE, cit. 1, p.12.

    11

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    Para isso indispensvel o conhecimento simultneo dos objectos materiais as suas dimenses,

    formas, matria e, indirectamente, os seus modos de fabrico e a sua provenincia exacta, de

    modo a reconstruir ou explicar o ambiente que os originou,

    Essa interpretao, ou pelo menos uma conceptualizao do significado do objecto, realmente

    s o incio do processo de utilizao da cultura material.

    A investigao da cultura material difere de outros tipos de investigaes antropolgicas de vrias

    maneiras. Objectos so no - reactivos, ou seja, eles no mudam no decorrer da investigao; o

    humano, por outro lado, pode reagir e mudar durante o processo de investigao. O procedimento

    de investigao replicvel porque so objectos no reactivos. Os objectos so duradouros, e

    continuam a existir mesmo quando a sua cultura de origem h muito tempo j partiu20.

    O objectivo de investigao da cultura material o de interpretar e reconstruir a cultura material no

    seu contexto cultural e de integrar as concluses no estado geral de investigao.

    Apesar dessa constatao, alguns dos campos de estudo da antropologia, como o da leitura

    descritiva de objectos, inspirou no historiador uma relevante dimenso de pesquisa por promover

    questionamentos acerca do aspecto social da cultura material. Entretanto, cumpre ressaltar que o

    fazer histrico tem de tratar a cultura material de forma que tal dimenso do processo cultural seja

    problematizada, e no apenas interpretada pela dimenso sincrnica e anlise cientfica, uma

    vez que deste modo no focaria a diversidade e as contradies do homem em sociedade, que a

    histria social visa perceber - intenes, possibilidades e potencialidades do complexo cultural.

    Concluso Atravs da presente explorao do conceito de cultura material, e numa tentativa de delinear a sua

    evoluo na multiplicidade de perspectivas expostas por diferentes autores, pode-se pois concluir

    que os sub-estudos de cultura material abriro caminho a uma aproximao mais abrangente do

    seu objecto de estudo mais comum - o artefacto.

    Cada objecto enquanto produto de relaes humanas, de processos tcnicos e circunstncias

    socioculturais distintas possui uma carga informativa nica e distinta de todos os outros,

    apresentando-se como parte constituinte de um conjunto com o qual estabelece relaes de

    mbito econmico, social, poltico, cientfico ou mesmo religioso, que estabelecem o seu prprio

    contexto.

    Deste modo, os objectos e os seus contextos caracterizam a cultura material, a qual representa

    uma importante fonte de informao para o estudo de culturas passadas ou actuais e

    actualmente o epicentro de muitos estudos museolgicos.

    Qualquer definio do significado de "cultura material" ser inevitavelmente incompleta, quer pelo

    carcter transdisciplinar desta disciplina, quer pela sua constante evoluo indexada sociedade

    ou grupo alvo visado.

    20 EIGHMY - The use of material culture in diachronic anthropology. In GOULD, R. (ed) - "Modern Material

    Culture: The Archaeology of US".1981. p. 32, 33 e 49.

    12

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    2 OBJECTOS E COLECES: A CONSTRUO DE SIGNIFICADOS EM CONTEXTOS MUSEOLGICOS O objecto no est disponvel para todos os significados possveis atribudos em qualquer altura,

    uma vez que os significados atribudos a um objecto so limitados, ou fechados.

    O sentido uma criao social, e no est directamente relacionado com uma realidade fsica.

    Susan Pearce observa que, um sentido s pode representar o objecto e informar acerca dele.

    No pode fornecer equivalncia com o nosso prprio reconhecimento desse mesmo objecto. E o

    sentido de um objecto aquele com que pressupe um reconhecido a fim de se transmitir alguma

    informao adicional relativa a este ltimo21.

    Ou seja, o objecto envolvido na interaco do sentido e significado.

    O significado do prprio objecto pode variar de pessoa para pessoa, de momento para momento.

    Sem esta comunicao seria impossvel, e a sociedade no poderia existir. A exigncia de uma

    certa estabilidade do significado de tal importncia para a existncia de uma sociedade do que o

    elemento de hbito ou continuidade do significado um requisito bsico.

    Deste modo, se o objecto material existe na sociedade apenas como um sentido, que uma

    realidade social criada, e interpretada dentro de uma variao limitada dentro da realidade

    individual, ento este conceito analtico diz-nos algo mais sobre a compreenso do objecto. O

    objecto no existe sem a existncia de uma interaco. Entendimento e reaco dialecticamente

    fundidos e mutuamente condio de ambos; um impossvel sem o outro22.

    A estrutura de interaco seria a ponte entre realidade material -- realidade do grupo -- e

    realidade individual, uma vez que no se pode entender directamente o objecto na sua essncia

    fsica, mas apenas dentro de um grupo ou realidade social.

    Susan Pearce23 enumera duas estruturas principais de compreenso e criao de sentido do

    objecto, nomeadamente, uma que prev uma interaco com base no discurso - paradigma

    discursivo - e outra com base na observao - paradigma observacional.

    Segundo o paradigma discursivo a fim de se obter conhecimentos sobre um objecto ter-se- de

    entrar numa interaco com ele. Ou seja o indivduo e o objecto, tm de existir em alguma rea

    espacial e temporal partilhada, e a interaco define o seu significado no momento.

    21 PEARCE, Susan (ed) - Objects of Knowledge. London: The Athlone Press, 1990. p.53. (segundo traduo

    da autora do presente trabalho). 22 PEARCE - Objects of Knowledge, cit. 21. p. 57. 23 PEARCE - Objects of Knowledge, cit. 21, p. 58.

    13

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    O significado aparece atravs da mediao do sentido entre o objecto e quem o interpreta, no

    existindo significado antes da respectiva interaco.

    O paradigma observacional considera que o significado do objecto existe apenas no objecto e que

    completamente mensurvel por meio imparcial.

    Se analisar-se um bem cultural dentro do paradigma observacional, considerar-se- que tanto o

    contedo cultural como o contedo material poder ser totalmente compreendido por um

    observador, mesmo que ele no seja um membro da sociedade em que se utiliza esse objecto

    como um sentido social. Essa compreenso do conhecimento espera que um observador receba o

    conhecimento, que inerente ao objecto, de uma forma intacta.

    Trata-se de um simples esquema de mecnica e anlise emprica, que tem sido denominado de

    teoria cientfica, e que atesta que a natureza transparente para a razo humana, e capaz de ser

    conhecida pela observao indutiva e objectiva do homem.24

    Apesar de no concordar com a validade deste paradigma, Pearce da opinio que existe um

    outro mtodo analtico, que se preocupa com a compreenso do objecto, que v o observador e o

    objecto como duas realidades autnomas, cada um em separado e sem nenhuma interaco

    interpretativa entre eles.

    Esta teoria considera que existe uma realidade objectiva independente da observao, existindo o

    objecto antes de qualquer contacto como uma "unidade de conhecimento", isto , um sentido. A

    nica maneira de obter qualquer conhecimento deste objecto , como observador, explorar a sua

    natureza material e social, sendo que o significado do objecto equivalente ao seu contedo

    medido.

    Sucintamente poder-se-ia ento afirmar que o modelo discursivo constitudo pelo objecto e

    observador, enquanto unidades de formato interactivo, sendo que a interaco comunicativa ou

    expresso constituiria a base para o significado do objecto. Deste modo, poder ser afirmado que

    este modelo de significado inclui o conceito de um canal comunicativo onde as duas unidades

    teriam entrado em existncia articuladas e em interaco.

    Por outro lado, no caso do "modelo observacional", ao nvel da comunicao, este exigiria por um

    lado, um objecto esttico e completo ao nvel informativo; um observador de formato semelhante;

    e um canal de informao, que corresponderia a um dos sentidos, que ao longo do caminho

    comunicativo se iria mover, sem interferncia, do objecto at ao observador.

    Pearce conclui assim que existem diversos factores fundamentais a considerar sobre o significado

    dos objectos. Primeiro, um objecto existe com um sentido, que um conceito definido e existe

    dentro de uma conscincia de grupo. Em segundo lugar, esta definio existe como uma verdade

    social e no como uma verdade material, uma vez que a realidade material s compreendida 24 PEARCE - Objects of Knowledge, cit. 21, p. 61. (segundo traduo da autora do presente trabalho).

    14

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    dentro de um quadro social. Terceiro, o significado s se torna existente no momento da

    interaco. Se o sentido est fora do uso corrente, no tem qualquer sentido, significado social. E

    quarto, o significado do objecto apenas especifico dentro de um determinado grupo social, uma

    vez que o observador sempre "fundamentado" numa determinada sociedade, que lhe fornece

    uma base conceptual, que ele usa para o desenvolvimento de significado. Os objectos no podem

    assim ser transferidos de sociedade para sociedade, mantendo o mesmo significado.

    No que se refere ao estatuto dos objectos museolgicos propriamente ditos, estes

    experimentaram uma deriva considervel ao largo do ltimo meio sculo.

    A partir dos anos 80, e sobretudo nos anos 90, no foi apenas uma reaproximao [..] dos

    pesquisadores de outros campos de conhecimento em relao ao mundo dos museus que ocorreu,

    mas tambm uma inflexo no olhar, uma redefinio dos objectos de pesquisa, uma flexibilizao

    temtica, uma alterao nos procedimentos metodolgicos e uma nova compreenso. Do ponto

    de vista museolgico, a ideia de pesquisa estava, antes dos anos 90, aposta ideia de

    levantamento de dados sobre o objecto: nome, autoria, origem de fabricao, procedncia,

    dimenses, identificao de marcas e inscries, matria-prima utilizada, tcnica de confeco,

    descrio formal, histria do objecto e, eventualmente, algum outro item25.

    O objecto museolgico passa a exercer uma funo de documento, uma vez que implicitamente

    detm no seu formato, informaes cruciais a quem o interpreta, nomeadamente, tipo de tcnica,

    de material, a poca, o estilo, o contexto histrico, o valor material, entre outros aspectos.

    O que acaba por criar uma gradao evolutiva no modo de organizao museolgica, fazendo

    obscurecer as problemticas histricas inerentes ao conjunto de peas que compem um museu.

    Uma vez que os objectos no se classificam por si, mas a sociedade com suas aspiraes os

    nomeiam de acordo com suas estruturas fsicas, os seus aspectos funcionais e a sua referncia

    sociocultural diante do poder aquisitivo de quem os possui, os possuiu ou os possuir.

    Mas o objecto enquanto documento h que o ler e o saber interpretar. Os objectos so

    potencialmente um rico arsenal de dados sobre os homens que os fizeram, as necessidades que

    cobriram ou as crenas que serviram, constituindo o complemento ou contraponto dos textos

    escritos.

    Associadas a uma tendncia da transgresso sugerida por um determinado nmero de

    experincias, algumas delas associadas s correntes das chamadas novas museologias.

    Trs debates ilustram esta evoluo. A primeira conjuntura afecta a especializao das instituies

    culturais num tipo concreto de coleco: publicaes/biblioteca e objectos/museu.

    25 CHAGAS, Mrio. - Pesquisa & comunicao: mtuo desafio. Anais do IV Seminrio sobre Museus-Casas:

    Pesquisa e Documentao. Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa/Ministrio da Cultura, 2002. p. 74.

    15

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    As prprias frmulas de tratamento museolgico do patrimnio multiplicaram-se significativamente,

    desde a diversificao dos suportes admitidos numa coleco museolgica em conjunto com a

    cultura material.

    Ao contrrio dos documentos escritos, os objectos parecem imediatamente acessveis, j que

    pode-se dizer que, ao contrrio, daqueles esses ensinam directamente, bastando, para tanto,

    olh-los. E pode-se tambm pensar que os objectos tm o seu contedo mais directamente

    aprendido porque so a materializao de processos sociais.

    Segundo Susan Pearce um modo de frisar a centralidade social dos objectos dizer que eles so

    inscries intencionais no mundo fsico que corporificam significaes sociais: pode-se tambm

    dizer que se as ideias sociais no existem sem um contedo fsico, os objectos carecem de

    significao sem um contedo social: ideia e expresso no so duas partes separadas, mas a

    mesma construo social. Uma das implicaes desta formulao revelar o papel dos objectos

    na reproduo social, ou seja, no processo contnuo que capacita uma sociedade a seguir sendo o

    que .26

    Reunidos nos museus, os objectos acabam por se transformar numa espcie de resumo da

    sociedade onde se encontram instaladas essas instituies. Condensando tambm as qualidades

    e defeitos dessa mesma sociedade, os museus acabam aparecendo como grandes documentos,

    cujo discurso escrito pelos objectos que acumula e que possibilitam acompanhar essa sociedade

    no tempo, induzindo a lembrana.

    Os objectos podem assim ser concebidos como "elementos portadores de valores culturais. Sabe-

    se que antes de ser construdo, o objecto foi pensado; a tcnica antes de ser modelada, foi

    adquirida, foi concebida como possibilidade. A sua anlise revela aspectos multifacetados e as

    suas mensagens podem ser descodificadas na medida em que se os inclua em contextos

    significativos, de maneira a criar o jogo de correspondncias entre as diferenciaes formais e

    seus significados funcionais, estilsticos, simblicos, econmicos, sociolgicos , tnicos, etc. 27

    O conceito de "objecto museolgico" para Susan Pearce baseia-se na distino de quatro "nveis"

    de dados: (1) propriedades estruturais; (2) propriedades funcionais; (3) contexto; e (4) significado.

    As propriedades estruturais implicam as caractersticas fsicas do objecto. Alguns usos comuns do

    termo "objecto" referem-se a este nvel de informao. Propriedades funcionais referem-se ao uso

    (potencial ou realizado) do objecto. O contexto refere-se ao ambiente fsico e conceptual do

    objecto. Finalmente, o significado o significado e valor do objecto.

    26 PEARCE - Museums, objects and collections, cit.13, p. 52. (segundo traduo da autora do presente

    trabalho). 27 RECA, M. M. Le objecto y la construcion de sentido em colecciones etnogrficas. Revista do Museu de

    Arqueologia e Etnologia. So Paulo, 1996. p. 269.

    16

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    Partindo de uma abordagem semelhante ao objecto como portador de dados, Maroevic (1983)

    desenvolveu um modelo de objecto como sinal triplo. O primeiro nvel o objecto como

    documento. Este nvel refere-se soma dos dados enquanto "veculos" do processo de

    comunicao. Este o nvel do objecto como mensagem. Esta mensagem s pode ser realizada

    sob certas condies. Desde que a mensagem resulte da interaco do objecto como documento

    e o assunto como transmissor, o objecto pode ser o portador de muitas mensagens diferentes. O

    terceiro nvel o nvel do objecto como informao. Este nvel refere-se ao impacto e ao

    significado da mensagem.

    O primeiro nvel incide sobre a soma dos dados incorporados no objecto. Este montante total o

    resultado de um processo histrico da reconstruo do objecto, por meio de categorias de

    informaes. Assim, a listagem "sincrnica" das categorias de dados completada por uma srie

    de identidades "diacrnicas". Na biografia de artefactos, trs fases podem ser distinguidas: (1)

    fase conceptual, (2) fase factual, (3) fase verdadeira/actual/efectiva/vigente.

    A primeira fase a ideia do construtor. Esta ideia est relacionada com o contexto conceptual do

    fabricante, isto , de facto, o objecto potencial. As outras fases referem-se ao objecto realizado. A

    fase factual refere-se ao objecto como era previsto pelo construtor, logo aps a concluso do

    processo de produo. O conjunto de dados emergentes como a soma desses trs nveis constitui

    a identidade factual do objecto.

    Durante a sua vida histria, o objecto muda. Em geral pode-se dizer que o seu contedo

    informativo vai crescendo, embora muitas vezes uma eroso da informao tambm ocorra. O

    resultado da acumulao de informaes sobre todos os nveis constitui a verdadeira/ actual/

    efectiva/vigente identidade: o objecto como nos apresentado actualmente.

    Para alm desta distino, parece til fazer a distino entre identidade estrutural (incluindo

    ambas estrutura e aparncia) e identidade funcional. Existe uma relao estreita entre a

    identidade estrutural (forma) e identidade funcional (funo). Ambos os aspectos so as

    expresses da identidade conceptual, desde que o construtor destine um determinado valor de

    uso, ou funo.

    A distino conceitual entre identidade conceptual e identidade estrutural igualmente relatada

    por Swiecimski, que fala sobre objecto conceptual (aqui identidade conceptual) e objecto autntico

    (aqui identidade real). A identidade factual descrita por ele como "a forma original do objecto

    autntico " (Swiecimski, 1982, 43).

    O prprio visitante constri significados sobre os objectos que v no museu usando entre outras

    estratgias interpretativas, a influncia social da comunidade a que pertence, bem como

    influncias de origem poltica, na medida em que influenciado pelo contexto sociocultural em que

    o visitante se insere, os meios e oportunidades de que disps ao longo da sua vida, os seus

    conhecimentos e ideias, atitudes e valores.

    17

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    O objecto neste sentido comporta como uma espcie de abreviao visual, que se pode ou no

    ser capaz de se ler, de acordo com o nosso nvel de experincia. Tais leituras e respostas podem

    depender da memria social ou pessoal que o objecto pode desbloquear e revelar. Neste haver

    tambm algumas dependncias de relevncia. Assim, s podero ser objectos de significado real,

    enquanto as coisas que simbolizam tenham algum significado e valor. Alm disso, o ambiente no

    qual o objecto encontrado pode acrescentar, ou desvalorizar, a leitura do mesmo e as

    concluses retiradas. O campo/rea aqui carregado com preconceitos e com emoes, e

    reordenado de acordo com o tempo, experincia e ambiente/meio. Portanto, dependendo do

    esquema ou lugar do objecto, em determinadas circunstncias, poder ser evocada a experincia,

    empatia ou simpatia, satisfao ou averso do observador com o material em mos. Devido a isto,

    a viso torna-se sujeita a influncias e dependente de fontes externas, em especial as

    experincias pessoais.

    Como resultado, o significado de um objecto ser submetido a um nmero de diferentes

    deslocamentos de sentido e leitura, desde a sua criao sua derradeira destruio ou perda, e

    mesmo fora dela.

    Relativamente ao status do objecto no museu e na exposio, pode-se entender sintetizadamente

    nos Cadernos de Museologia: A construo do objecto museolgico apresentados por Mrio

    Canova Moutinho28, quatro maneiras de entender o objecto museolgico, segundo Ulpiano

    Bezerra de Meneses29, e segundo a interpretao de Susan Pearce:

    Objecto fetiche a caracterstica mais comum do objecto na coleco e, portanto, do papel

    desempenhado na sua exposio a sua fetichizao. Assim, a fetichizao ou reificao consiste

    em deslocar atributos do nvel das relaes entre os homens e apresent-los como se eles

    derivassem dos objectos, autonomamente. ()

    Objecto metonmico O objecto metonmico perde o seu valor documental, pois passa a contar

    com um valor predominantemente emblemtico. ()

    Objecto metafrico O uso metafrico do objecto, numa mera relao substitutiva de sentido,

    embora menos nocivo que o anterior, leva igualmente a exposio a reduzir-se a uma exibio de

    objectos que apenas ilustram problemas formulados independentemente deles. Ora, com isto

    perde-se o que seria vantagem especfica do museu e seu recurso mais poderoso o trabalho com

    o objecto. (...)

    Objecto no contexto A considerao banal e corrente de que o objecto descontextualizado objecto desfigurado, tem colocado, licitamente, a questo do contexto e a necessidade de

    introduzi-lo na exposio. Estranhamente, porm, no se tem visto qualquer esforo na

    conceituao do objecto. Por isso, tem-se tomado como soluo imediata, pronta e acabada, e

    28 Professor da disciplina Formas e Meios de Comunicao do Curso de Ps-Graduao em Museologia

    Social, na Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa. 29 MENESES, cit. 8, p. 7 - 9.

    18

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    mera reproduo do contexto enquanto aparncia, isto , recorte emprico que, como tal,

    precisaria ser explicado, pois no auto-significante.

    Incorrendo-se assim numa distoro e desarticulao dos contextos, espaos, tempos e

    significados inerentes ao objecto.

    A forma de um objecto que vemos, contudo, no depende apenas da sua projeco retiniana

    num dado momento. Estritamente falando, a imagem determinada pela totalidade das

    experincias visuais que tivemos com aquele objecto ou com aquele tipo de objecto durante toda a

    nossa vida, pelo que temos de integrar, o papel da memria na criao das matrizes do imaginrio,

    que em ltima anlise condicionam a criatividade.30

    Concluso Os objectos museolgicos vm adquirindo suma importncia nos processos de construo e

    afirmao de memrias, identidades e auto-imagem de grupos ou naes, e os prprios museus

    enquanto instituies que existem para interpretar os objectos do passado e do presente, devero

    ser os primeiros a considerar um dos factores cruciais ao nvel da significao do objecto,

    nomeadamente a ocorrncia de que os seus visitantes/observadores construiro uma significao

    sobre os objectos patentes tendo por base entre outras estratgias interpretativas a influncia

    social da comunidade a que pertencem.

    Deste modo, o objecto, elemento nuclear das coleces, no se encontra pois circunscrito a um

    significado indissocivel no tempo, assim como o seu sentido no est directamente relacionado

    com a sua essncia fsica mas com a realidade social criada, interpretada dentro de uma variao

    limitada como a realidade do observador.

    Para a captao desse "sentido" ter-se- sempre de enquadrar o indivduo e o objecto numa

    relao partilhada no tempo e no espao que resultar no seu significado altura dessa partilha.

    30 ARNHEIM, Rudolf Arte e Percepo Visual. In MOUTINHO, Mrio Canova "Cadernos de Museologia: A

    construo do objecto museolgico". S. Paulo: Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias,

    Centro de Estudos de Scio-Museologia,1994. p. 22.

    19

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    PARTE II A CINCIA, A MEDICINA E A MUSEOLOGIA Ningum pode forar a mudana. Ela tem de ser vivenciada. A menos que se invente meios onde

    as mutaes de paradigma possam ser vivenciadas por um grande nmero de pessoas, a

    mudana continuar a ser um mito.

    Eric Trist

    20

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    1 OS PARADIGMAS CIENTFICOS DINMICAS DA CINCIA De uma forma geral a aplicao do trmino paradigma provm do sentido que se generalizou a

    partir da obra de Thomas Kuhn, "A Estrutura das revolues cientficas", - representao de um

    modelo ou padro a ser seguido - mas provavelmente e de uma forma generalizada as pessoas

    desconhecem as diferentes acepes que pode ter esta palavra, apesar de em vrios nveis ao

    longo da vida serem guiados pelos prprios paradigmas, pelos padres que orientam e limitam a

    sua forma de estar.

    Apesar de no se estar em presena de um tema encerrado, qual ento o conceito do termo

    paradigma?

    Procedendo-se consulta em dicionrios enciclopdicos clssicos encontrar-se- duas

    interpretaes fundamentais associadas ao termo paradigma:

    a) Interpretao correspondente ao campo da Filosofia, em que o conceito de paradigma

    exemplo/modelo/ referncias a serem seguidas se encontra associado filosofia platnica que

    designa o mundo exemplar das ideias, de que participa o mundo sensvel, distinta concepo

    aristotlica da palavra exemplo.

    Na filosofia grega, paradigma era encarado como a afluncia de um pensamento, uma vez que

    s atravs de vrias reflexes sobre o mesmo assunto que se chegaria a uma concluso final ou

    partindo da sua intuio, representao sensvel at representao intelectual.

    b) Interpretao relativa rea da Lingustica, entendendo o paradigma como um modelo de tipo

    de flexo nominal e verbal (declinao e conjugao) aplicvel a uma mesma classe de palavras,

    como por exemplo o paradigma de uma conjugao verbal31.

    Conjunto de elementos similares que se associam na memria e que assim formam conjuntos

    relacionados ao significado (semntico). Distinguindo-se do encadeamento sintagmtico de

    elementos, ou seja, relacionando sintagma enquanto rede de significantes.32

    O significado deste termo poder-se- tambm estender ao lxico e semntica.

    No entanto, ao proceder-se a uma pesquisa na literatura remetente para esta rea poder-se-

    encontrar posicionamentos diversificados:

    31 OLIVEIRA, Leonel Moreira de (Cord. Editorial) - Moderna Enciclopdia Universal. Lexicoteca. Lisboa:

    Circulo de Leitores, Lda, 1987. Tomo IV. 32 SAUSSURE, Ferdinand de - Cours de Linguistique Gnrale. Geneva: Grande Bibliotheque Payot, 1915.

    21

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    "Um paradigma um determinado marco desde o qual olhamos o mundo, o compreendemos, o

    interpretamos e intervimos sobre ele. Abarca desde o conjunto de conhecimentos cientficos que

    imperam numa poca determinada at s formas de pensar e de sentir num determinado lugar e

    momento histrico."33

    "Um paradigma pode esquematicamente definir-se como a viso do mundo dominante de uma

    cultura. Mais precisamente, uma constelao de conceitos e teorias que, juntas, formam uma

    particular viso da realidade. Dentro do contexto de um determinado paradigma, certos valores e

    prticas so compartilhadas de modo que se transformam em base dos modos em que a

    comunidade se organiza em si mesma.

    Um paradigma, sucintamente, um sistema de crenas que mantm juntas uma cultura. 34

    " Conjunto compartido de suposies. a maneira como percebemos o mundo. O paradigma

    explica-nos o mundo e ajuda-nos a perceber o seu comportamento35.

    Na obra de Thomas S. Kuhn - A estrutura das revolues cientficas- emerge um contraste entre

    duas concepes e perspectivas acerca da cincia. A perspectiva historicista de Kuhn, segundo a

    qual a cincia dever ser entendida como uma actividade concreta, que se d ao longo do tempo,

    e que em cada poca histrica apresenta peculiaridades e caractersticas prprias, considerando

    assim oportunos da cincia os aspectos histricos e sociolgicos que rodeiam a actividade

    cientfica e que a influenciam, e no apenas os aspectos lgicos e empricos, como defendia o

    modelo formalista, segundo o qual a cincia entendida como uma actividade completamente

    racional e controlada.

    Kuhn mostra que a cincia no somente um contraste entre as teorias e a realidade, mas que h

    dilogo, debate, e tambm tenses e lutas entre os proponentes de paradigmas opositores, pois

    no existe forma de se alhearem de todos os paradigmas de forma a compar-los objectivamente,

    uma vez que estaro sempre imersos num dos paradigmas e conforme o mesmo interpretaro o

    mundo que os rodeia - "na cincia um paradigma um conjunto de realizaes cientficas

    universalmente reconhecidas que, durante certo tempo proporcionam modelos de problemas e

    solues a uma comunidade cientfica (Kuhn, 1989).36

    33 Disponvel em www.d-lamente.org/cev/paradigma1y2.htm. [Consult. em 13 Maro de 2008]. 34 GLENN, Perry - En Astrologa Vs Ciencia: Cmo conocemos lo que pensamos que conocemos?.

    Disponvel em www. Henciclopedia.org.uy. [Consult. em 13 Maro de 2008]. 35 SMITH, Adam - Powers of the Mind. Random House: Ballantine Books, 1979. (segundo traduo da autora do presente trabalho). 36 KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revolues Cientificas. So Paulo: Editora Perspectiva, 1989.

    22

    http://www.d-lamente.org/cev/paradigma1y2.htm

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    A noo de paradigma assim normalmente utilizada para estabelecer uma diferenciao entre

    dois momentos ou dois nveis do processo de conhecimento cientfico (Kuhn, 1989).

    Para um entendimento mnimo do que significa essa noo, pode-se conceituar que se est na

    presena de um "paradigma" quando um amplo consenso na comunidade cientfica aceita os

    avanos conseguidos com um modelo, criando-se solues universais, devendo entender-se por

    comunidade cientfica o conjunto de cientistas que compartilham um mesmo paradigma e

    realizam a mesma actividade cientfica.

    No entanto, o autor distingue na sua obra duas formas principais de uso da palavra "paradigma".

    Por um lado, o paradigma concebido como uma nova forma aceite de resolver um problema na

    cincia, que mais tarde utilizada como modelo para a investigao e para a formao de uma

    teoria. Por outro lado, o paradigma concebido como um conjunto de mtodos, regras e

    generalizaes utilizadas conjuntamente pela comunidade cientfica para realizar o trabalho

    cientfico de investigao, que se modela atravs do paradigma como resultado.

    A noo de paradigma cientfico - entendendo-se como tal modelos, teorias, conceitos,

    pressupostos e estruturas e/ou compreenses do mundo de vrias comunidades cientficas - foi

    essencial para Kuhn compor o seu argumento alusivo cedncia de uma estrutura conceptual por

    outra, durante o que designou de revoluo cientfica episdios extraordinrios nos quais ocorre

    essa alterao de compromissos profissionais. Sendo assim os complementos desintegradores

    da tradio qual a actividade da cincia normal est ligada.

    Para alm disso, o autor acreditava que, durante perodos de cincia normal, os membros de uma

    comunidade cientfica amadurecida trabalham a partir de um nico paradigma ou conjunto de

    paradigmas estreitamente relacionados37. Esta tenacidade na adeso quase-dogmtica a um

    paradigma, manifesta-se, principalmente, na resistncia a qualquer manifestao externa e

    contrria ao paradigma dominante, o qual proporciona linhas de investigao que se relevam

    continuadamente frutuosas. Esta fase ocupa a maior parte da comunidade cientfica, consistindo

    na comprovao da solidez do paradigma no qual se baseia, pois sem o compromisso com um

    paradigma no poderia haver cincia normal.

    A comunicao e o trabalho cientfico prosseguem assim sem percalos at que ocorram

    anomalias/ fenmenos novos e insuspeitos que subvertam a tradio, determinantes para uma

    mudana de uma teoria para a outra, ou que uma nova teoria ou modelo seja proposto, sem

    nenhuma possibilidade de comunicao entre teorias, exigindo que se entenda conceitos

    cientficos tradicionais de novas maneiras, e que se rejeite velhos pressupostos substituindo-os

    por novos.

    37 KUHN, cit. 36, p. 24 e 204.

    23

  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    Convm como obvio relembrar que o valor atribudo a um novo fenmeno varia de acordo com a

    estimativa da dimenso da violao das previses do paradigma perpetuado por este; e que as

    descobertas das quais emergem novos tipos de fenmenos, relacionam-se com uma conscincia

    prvia da anomalia e/ou uma emergncia gradual e simultnea de um reconhecimento tanto no

    plano conceptual, como no plano de observao e consequente mudana das categorias e

    procedimentos paradigmticos.

    Para uma anomalia originar uma crise dever realizar-se uma das seguintes situaes: possuir

    uma importncia prtica especial; colocar em questo as generalizaes explcitas e fundamentais

    do paradigma; ou o prprio desenvolvimento da cincia pode transformar numa fonte de crise uma

    anomalia que anteriormente no passaria de um incmodo38.

    Convm no entanto realar que "a maior parte das anomalias solucionada por meios normais;

    grande parte das novas teorias propostas demonstra efectivamente ser falsa. Se todos os

    membros de uma comunidade respondessem a cada anomalia como se esta fosse uma fonte de

    crise ou abraassem cada nova teoria apresentada por um colega, a cincia deixaria de existir. Se,

    por outro lado, ningum reagisse s anomalias ou teorias novas, aceitando riscos elevados,

    haveria poucas ou nenhuma revoluo"39.

    O perodo pr-paradigmtico regularmente marcado por constantes debates a respeito de

    mtodos, problemas e padres de solues legtimos. Isto porque a falta de uma interpretao

    padronizada ou racionalizao completa a respeito daquele no impede que um paradigma oriente

    uma pesquisa.

    Partindo do princpio que diferentes paradigmas partem de diferentes problemas e pressupostos, e

    que as revolues cientficas ocorrem durante aqueles perodos em que pelo menos dois

    paradigmas coexistem, um tradicional e pelo menos um novo, no existe pois uma medida comum

    que permita avali-los ou compar-los uns com outros, uma vez que existe uma carncia de

    conceitos com significado comum entre teorias, caracterstica qual Kuhn chama de

    "incomensurabilidade:

    "uma das principais razes da incomensurabilidade entre teorias rivais est relacionada com a

    linguagem cientfica prpria de cada paradigma. Dois cientficos rivais utilizariam conceitos

    distintos, sobretudo em funo do seu significado. Assim massa possuiria distintos significados

    quer para um newtoniano ou para um relativista.

    Dois homens que percebem a mesma situao de maneira diferente, mas que apesar de isso

    empregam o mesmo vocabulrio na sua discusso, usam as mesmas palavras de maneira

    diferente. Ou seja, eles falam do que chamado pontos de vista incomensurveis."40

    38 KUHN, cit. 36, p. 115. 39 KUHN, cit. 36, p. 231. 40 KUHN, cit. 36, p. 190, 244 e 251.

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  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    O movimento de um paradigma para outro foi designado por Kuhn de mudana de paradigma.

    Se o novo modelo for aceito pela comunidade, ento ocorre uma mudana de paradigma. O novo

    paradigma substituir velhos pressupostos, valores, objectivos, crenas, expectativas, teorias, etc.,

    e apresentar novos mtodos de anlise, bem como, dever solucionar algum problema

    extraordinrio, reconhecido como tal pela comunidade e que no possa ser analisado de nenhuma

    outra maneira, e ainda garantir a preservao de uma parte relativamente grande da capacidade

    objectiva de resolver problemas, conquistada pela cincia com o auxlio dos paradigmas

    anteriores41.

    Kuhn discrimina trs formas de trmino de uma crise:

    - a cincia normal acaba revelando-se capaz de solucionar o problema que provoca a crise;

    - o problema persiste at a novas abordagens aparentemente radicais, concluindo-se que

    nenhuma soluo para o problema poder surgir no estado actual de estudo;

    - a crise termina com a emergncia de um novo candidato a paradigma e com a contenda para a

    sua aceitao;

    Deste modo, o progresso da cincia est relacionado e marcado pelas revolues do pensamento

    cientfico - episdios de desenvolvimento no cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo

    total ou parcialmente substitudo por um novo, incompatvel com o anterior42. Tais revolues so

    definidas como o momento de desintegrao do tradicional numa disciplina, forando a

    comunidade de profissionais a ela ligados a reformular o conjunto de compromissos em que se

    baseia a prtica dessa cincia43.

    No obstante, a crise supe a proliferao de novos paradigmas, em princpio provisrios, e em

    competio entre si, com vista a resolver questes problemticas e de impor-se como o enfoque

    mais adequado - " exactamente porque a emergncia de uma nova teoria rompe com uma

    tradio da prtica cientfica e introduz uma nova dirigida por regras diferentes, situada no interior

    de um universo de discurso tambm diferente, que tal emergncia s tem probabilidade de ocorrer

    quando se percebe que a tradio anterior equivocou-se gravemente"44.

    Frequentemente, um novo paradigma emerge antes que uma crise esteja bem desenvolvida ou

    tenha sido explicitamente reconhecida.

    41 KUHN, cit. 36, p.212. 42 KUHN, cit. 36, p.130. 43 KUHN, cit. 36, p.112. 44 KUHN, cit. 36, p.117.

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  • O OBJECTO e os MUSEUS de MEDICINA Aprofundamento de um modelo de estudo

    No entanto, uma das condies que permitir que a nova proposta de paradigma possa triunfar

    a necessidade de ela conquistar alguns simpatizantes iniciais, que o desenvolvero at ao ponto

    que argumentos objectivos possam ser produzidos e multiplicados45.

    Analisando a questo, pode-se afirmar que existem para Kuhn trs tipos de diferenas entre dois

    paradigmas rivais:

    1) diferentes problemas por resolver e, inclusive diferentes concepes e definies da cincia de

    que se ocupam;

    2) diferenas conceptuais entre ambos paradigmas, ligadas diferente linguagem terica e

    distinta interpretao ontolgica dos dados analisados;

    3) diferente viso do mundo: os defensores de distintos paradigmas no percebem o mesmo. Os

    dois grupos vivem em mundos diferentes.

    No entanto, quando um novo paradigma proposto, muito dificilmente resolve mais do que alguns

    problemas com os quais se defronta, da que poder ocorrer o facto de dois paradigmas cientficos

    disputarem o espao de hegemonia da construo do conhecimento, durante largos perodos da

    histria da cincia e das sociedades -

    "a transio de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradio de

    cincia normal, est longe de ser um processo cumulativo obtido atravs de uma articulao do

    velho paradigma. antes uma reconstruo da rea de estudos a partir de novos princpios,

    reconstruo que altera algumas das generalizaes tericas mais elementares do paradigma,

    bem como muitos dos seus mtodos e aplicaes"46.

    O paradigma precedente passa assim a um estado de crise de credibilidade cientfica, enquanto o

    modelo paradigmtico emergente ainda no aceite pela comunidade cientfica internacional. A

    sua assimilao requer a reconstruo da teoria precedente e a reavaliao dos factos anteriores.

    Nesse caso o paradigma comea a ser colocado em questo e a comunidade cientfica considera

    se essa ser a forma mais correcta de abordar os problemas ou se o paradigma dever ser

    abandonado, sendo que, somente se produz uma revoluo cientfica quando um dos novos

    paradigmas substitui o paradigma tradicional, e que uma comunidade cientfica ao adquirir um

    paradigma, adquire igualmente um critrio para a escolha de problemas que, enquanto o

    paradigma for aceite, poder-se- considerar como dotados de uma soluo possvel.

    A cada revoluo o ciclo inicia de novo e o paradigma que foi instaurado d origem a um novo

    processo de cincia normal.

    Para Thomas Kuhn a unidade de anlise recai assim na mudana de paradigma, no tendo a nova

    teoria de refutar a anterior, podendo ser uma alternativa, um novo modelo ou teoria modelo,

    45 KUHN, cit. 36,