o mundo da arte como proposta - paralaxe publicado

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O mundo da arte como proposta/ The artworld as a proposal Rachel Costa 1 RESUMO O artigo propõe a leitura do conceito de mundo da arte de Arthur Danto, a partir de duas perspectivas diferentes: enquanto a única condição suficiente para definir obra de arte desenvolvida por ele, e, enquanto atmosfera construída com objetivo de compreender o comportamento tanto da obra de arte, quanto da estrutura que a circunda. PALAVRAS-CHAVE: ontologia; arte contemporânea; representação. ABSTRACT The article proposes a reading of Arthur Danto’s concept of art world from two different perspectives: as the only sufficient condition to define an artwork designed by him, and as a constructed atmosphere with the objective of understanding the behavior of both: the work of art and the structure that surrounds it. KEYWORDS: ontology; contemporary art; representation. Introdução Em um importante artigo de 1964, denominado “O mundo da arte” 2 , Arthur Danto estabelece as bases de sua análise da arte contemporânea. Apesar de o filósofo ter, muitas vezes, negligenciado e até contrariado alguns desses pressupostos, acredito que eles continuam a se manter como pilar de sua teoria. O que torna essa proposição mais interessante que as demais realizadas pelo próprio filósofo é o conceito de mundo da arte. O ato de delegar à comunidade referente a responsabilidade e a condição de legitimar algo não * Doutora, Professora na Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; CAPES; [email protected] 2 O artigo será citado de acordo com a tradução do Prof. Rodrigo Duarte publicada no volume 1 da Revista ArteFilosofia de 2006.

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Sobre o Mundo da arte de Arthur Danto

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  • O mundo da arte como proposta/ The artworld as a proposal

    Rachel Costa1

    RESUMO O artigo prope a leitura do conceito de mundo da arte de Arthur Danto, a partir de duas perspectivas diferentes: enquanto a nica condio suficiente para definir obra de arte desenvolvida por ele, e, enquanto atmosfera construda com objetivo de compreender o comportamento tanto da obra de arte, quanto da estrutura que a circunda. PALAVRAS-CHAVE: ontologia; arte contempornea; representao. ABSTRACT The article proposes a reading of Arthur Dantos concept of art world from two different perspectives: as the only sufficient condition to define an artwork designed by him, and as a constructed atmosphere with the objective of understanding the behavior of both: the work of art and the structure that surrounds it. KEYWORDS: ontology; contemporary art; representation. Introduo

    Em um importante artigo de 1964, denominado O mundo da arte2,

    Arthur Danto estabelece as bases de sua anlise da arte contempornea.

    Apesar de o filsofo ter, muitas vezes, negligenciado e at contrariado alguns

    desses pressupostos, acredito que eles continuam a se manter como pilar de

    sua teoria.

    O que torna essa proposio mais interessante que as demais

    realizadas pelo prprio filsofo o conceito de mundo da arte. O ato de delegar

    comunidade referente a responsabilidade e a condio de legitimar algo no

    * Doutora, Professora na Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais UEMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil; CAPES; [email protected]

    2 O artigo ser citado de acordo com a traduo do Prof. Rodrigo Duarte publicada no volume 1 da Revista ArteFilosofia de 2006.

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    nova. A filosofia da cincia trabalha com essa ideia e ela tem se mostrado

    bastante produtiva. O filsofo escreveu seu texto influenciado por essas

    teorias, mas o conceito de mundo da arte no se resume a uma comunidade

    legitimadora, ele comporta as bases ontolgicas de sua filosofia da arte, o que

    o torna ainda mais forte e determinante para compreender o pensamento do

    filsofo.

    Portanto, esse artigo objetiva mostrar como o conceito de mundo da arte

    funciona e se alinhava s demais proposies dantianas para pensar a arte,

    realizadas posteriormente pelo filsofo. Tendo em vista o fato de que o

    conceito o nico entre os vrios trabalhados por ele que funciona como

    condio suficiente para definir arte de maneira clssica, i.e., por meio de

    condies necessrias e suficientes, o que se constitui como seu objetivo at

    seu ltimo livro, publicado no ano passado, mesmo ano de sua morte.

    1. O problema da teoria imitativa da arte

    Arthur Danto comea o texto O mundo da arte contrapondo duas

    compreenses da arte enquanto reflexo: a de Scrates e a de Hamlet3.

    Scrates entende arte como reflexo daquilo que sem ela j era possvel ver, e

    Hamlet a entende como um espelho no qual somos obrigados a enxergar a ns

    mesmos. Contudo, Danto mostra que por mais filosficas ou poticas que

    sejam essas compreenses, ambas esto erradas, pois se arte uma espcie

    de reflexo, ento imagens espelhadas tambm so arte (DANTO, 2006b, p.13).

    O objetivo de Danto mostrar que a teoria imitativa da arte, mesmo

    compreendida por outros pressupostos, no suficiente para pensar a arte

    aps a existncia de obras de arte exatamente iguais a objetos do cotidiano.

    A teoria imitativa da arte utiliza, como pressuposto, a necessidade de

    que o espectador saiba que, o que ele est presenciando, uma obra de arte,

    porque a reao a ela seria muito diferente se no o fosse. A tese do filsofo

    que esse pressuposto no serve para a arte contempornea, pois no h

    relao necessria entre iluso e realidade. O fato de algo no ser ilusrio no

    3 Que na verdade so respectivamente a de Plato e a de Shakespeare, na figura de seus personagens.

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    o torna realidade (DANTO, 2006b, p.15), alm de no haver diferena fsica

    entre a arte e a realidade. Ele elege a teoria imitativa como paradigma de sua

    discusso, visto que ela no s a teoria mais bem sucedida da histria da

    arte, como tambm permite vislumbrar a diferena ontolgica existente entre a

    arte antes da dcada de 1960 e a arte aps a dcada de 1960.

    As teorias, antigas e contemporneas, que tentam separar arte do que

    no arte s fazem o que Scrates fez, ou seja, s mostram o que j

    sabemos, pois so reflexes literais da prtica lingustica (DANTO, 2006b,

    p.14). A teoria da imitao permite enxergar a diferena existente entre a

    imitao de um objeto e o objeto ao qual essa imitao se refere. nessa

    diferena ontolgica que sua teoria se assenta, postulando uma modificao

    estrutural no pensamento da arte como um todo, e no somente no

    pensamento da arte aps a dcada de 1960. Seu exemplo preferencial de obra

    de arte indiscernvel a Brillo Box4, mas vrias outras que abordam o mesmo

    problema podem ser utilizadas. Arthur Danto trata a Brillo Box como um

    paradigma, por questes pessoais5, pois no mesmo momento em que ela foi

    feita, vrios outros artistas e movimentos estavam propondo obras de arte

    ontologicamente semelhantes.

    O problema ontolgico ressaltado que a caixa de Brillo do Andy Warhol

    exatamente igual caixa de Brillo do supermercado6. A dificuldade colocada

    pela contemporaneidade para as teorias da arte anteriores est no fato de que

    a obra de arte no mais algo feito a partir de alguma referncia, mas o

    prprio objeto. Os chamados indiscernveis, no so imitaes de nada, mas a

    prpria coisa que antes era imitada (DANTO, 2006b, p.16).

    4 A imagem pode ser vista no seguinte link: https://plus.google.com/u/0/photos/105115585454603839518/albums/6051868035358634961

    5 O filosofo conta em uma entrevista que foi uma visita Stable Gallery, em 1964, em que a Brillo Box estava exposta, que o levou a escrever o texto O mundo da arte.

    6 Segundo uma histria, dentre as tantas que rondam essa obra de arte, Andy Warhol, ao fazer uma exposio no Canad teve que pagar imposto sobre sabo, ao invs de imposto sobre obra de arte. exatamente devido a esse tipo de situao gerada pela dificuldade resultante de objetos comuns considerados como obras de arte, que Arthur Danto desenvolveu sua teoria.

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    Com o intuito de compreender a situao histrico-social causada pelos

    indiscernveis, Arthur Danto utiliza a teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn

    para explicar a relao complexa existente entre a arte contempornea e a arte

    tradicional. O fato que a teoria imitativa da arte muito forte, pois explica uma

    grande quantidade de fenmenos (DANTO, 2006b, p.14). O que est

    acontecendo com a arte exatamente o que acontece com a cincia. Cada

    grande teoria se comporta como um paradigma dentro de um determinado

    campo. Logo, a teoria imitativa da arte constitui-se como um paradigma que

    funcionou durante sculos. Vrias teorias dependentes foram criadas e um

    universo de significao foi surgindo em torno desse paradigma. Mas a teoria

    da imitao est para ser efetivamente descartada, o que gera uma recusa de

    aceitao, e, consequentemente, uma perda de coerncia nesse universo

    (DANTO, 2006b, p.14).

    Dentro do esprito da teoria kuhniana, Danto pressupe a existncia de

    divergncias entre os membros do mundo da arte e o apego da grande maioria

    aos postulados da teoria em vias de deteriorao. Contudo, a existncia de

    objetos exatamente iguais aos objetos comuns legitimados como obras de arte

    impossibilita que o paradigma da teoria imitativa da arte continue a vigorar.

    Essa uma situao sem igual na histria da arte.

    2. Outras tentativas

    A pintura figurativa tradicional possui vrios artifcios ilusrios para que a

    pessoa enxergue a semelhana com a realidade, tanto que a tcnica foi

    denominada trompe loeil, em portugus literalmente engana o olho. A

    primeira coisa que o modernismo faz pintar as coisas exatamente como elas

    so vistas, o que provoca um choque nos espectadores, pois pintar as coisas

    como so vistas no gera imagens semelhantes realidade. Dessa forma, o

    que ocorreu historicamente que para que as obras de arte modernas fossem

    consideradas enquanto tal, foi necessria uma reviso terica considervel

    (DANTO, 2006b, p.15).

    A modernidade rejeita a mimesis como condio suficiente para que algo

    fosse considerado como obra de arte, o que acarreta em sua rejeio at como

    condio necessria (DANTO, 2006b, p.13). Essa mudana no pensamento

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    leva para o museu de Belas Artes vrios objetos pertencentes a museus

    antropolgicos, devido associao entre arte e criao (DANTO, 2006b,

    p.15). O problema que a criao uma caracterstica da obra de arte, um

    critrio passvel de ser utilizado para a avaliao das mesmas, no para sua

    classificao enquanto tal. Usada erroneamente, a criao demarca de forma

    equivocada o territrio das obras de arte, pois muitas coisas que no so arte

    acabam ganhando esse estatuto.

    Em meio a essa instabilidade, vrias teorias surgem para substituir o

    paradigma anterior, tais como as teorias de Weitz, Kenick e Dickie. Todas se

    distanciam do conceito de imitao, mas nenhuma consegue perceber a

    modificao ontolgica ocorrida na prpria arte, o que faz com que a soluo

    encontrada seja paliativa.

    A principal discordncia com a teoria de Weitz est na afirmao acerca

    da impossibilidade de definir arte. Segundo Arthur Danto, ele s prova que as

    definies feitas at ento no foram bem sucedidas. E isso se ajusta prpria

    situao da arte no momento, j que a conscincia do equvoco s se torna

    perceptvel, para o filsofo, aps os indiscernveis. Como consequncia, o livro

    de Danto A transfigurao do lugar comum uma tentativa de definio

    clssica da arte (DANTO, 2005, p.103). Alm disso, ele questiona a leitura de

    Weitz da teoria dos jogos de Wittgenstein, pois este trabalha com o conceito de

    semelhana de famlia sem considerar que o termo famlia pressupe mais

    que semelhana fsica, mas tambm semelhana gentica, o que ligaria uma

    obra de arte a outra por questes bem mais profundas que as de aparncia

    suscitadas pelo filsofo7 (DANTO, 2005, p.105).

    A discusso com William Kenick8 gira em torno da sua afirmao de que,

    sabemos reconhecer uma obra de arte, mas no sabemos defini-la. Na

    verdade, a lgica da maioria das teorias da arte relacional, pressupe a

    existncia de propriedades na obra que, se a obra no contm, no obra de

    arte (DANTO, 2005, p.113). Porm, Danto mostra que definir arte no tem

    7 Essa crtica do Danto ao Weitz sem propsito, pois o erro, na verdade, est no fato de ambos interpretarem o conceito de semelhana de famlia como referente a atributos fsicos.

    8 Escreveu o texto Does the traditional aesthetics rest on a mistake?.

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    relao com a capacidade de reconhecer um objeto. Apesar de muitos artistas

    e perodos da histria da arte possurem caractersticas recognitivas claras,

    no h nada que impea que, por exemplo, um artista tenha trabalhos muito

    diferentes dos que so recognitivamente reconhecidos como dele (DANTO,

    2005, p.106). Ademais, [s]e saber o que arte quisesse realmente dizer que

    sabemos empregar corretamente a palavra arte, ento no negaria que a

    filosofia da arte se reduz a uma sociologia dos usos lingusticos da palavra

    arte e do termo obra de arte (DANTO, 2005, p.108).

    fato que, em perodos de estabilidade artstica, o reconhecimento por

    induo parece bastante sedutor (DANTO, 2005, p.109). O que Arthur Danto

    quer enfatizar que no h qualquer possibilidade de a arte contempornea

    continuar esse processo. Os indiscernveis so seu marco justamente porque

    eles rompem com a possibilidade de recognio. Aps os indiscernveis, os

    critrios fsicos da obra de arte perdem o status de condio.

    Portanto, no possvel formular uma definio de obra de arte que se

    assemelhe a uma receita de bolo (DANTO, 2005, p.107-8). O erro tanto de

    Kennick quanto de Weitz se deve presena de predicados relacionais na

    maioria das teorias da arte, o que os levou a afirmarem que a definio lgica

    de arte impossvel. Na verdade, esse um erro cometido devido

    recorrncia (DANTO, 2005, p.114).

    A querela com George Dickie um pouco diferente das anteriores, pois

    a teoria de Danto foi, muitas vezes, considerada como uma teoria

    institucionalista da arte. Dickie, tambm influenciado por Weitz, estrutura uma

    das teorias mais controversas do perodo. A teoria institucionalista pressupe

    que arte o que for considerado institucionalmente como tal.

    Em seu texto What is art Dickie aponta duas caractersticas para que

    um objeto possa ser considerado como arte: ser um artefato e ser um

    candidato a apreciao. Apesar de a filosofia analtica considerar ponto pacfico

    ser um artefato como uma condio necessria, artefato, de acordo com o

    dicionrio Aulete, significa objeto feito mo ou industrialmente. Essa uma

    condio um tanto restritiva alm, claro, da segunda, que uma condio

    extremamente problemtica, pois, ser um candidato a apreciao significa,

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    para Dickie, possuir caractersticas estticas; fsicas. Ele, inclusive, usa o urinol

    de Duchamp para afirmar a eficcia da condio, ressaltando a branquido e

    as formas do objeto, e terminando por compar-lo a Brncusi9.

    Arthur Danto diz que o problema dessa teoria que ela justifica o fato de

    uma obra de arte ser considerada como tal, mas no explica. O problema da

    distino entre a obra de arte e seus correlatos comuns e o problema da

    explicao do porqu de um objeto comum ser considerado como obra de arte

    continua intacto (DANTO, 2005, p.39). E o objetivo de Arthur Danto

    justamente responder a essas duas questes. Logo, sua teoria no

    institucionalista, pelo menos, no dentro do escopo da teoria institucionalista de

    Dickie.

    As mudanas ocorridas na arte exigiram tanto uma reviso terica,

    quanto uma revoluo no gosto. O problema que surge com os indiscernveis

    que uma nova teoria da arte deve compreender o universo abarcado por eles,

    sem incluir no mundo da arte, todos os correlatos comuns aos quais essas

    obras se assemelham, alm de que, qualquer nova definio de arte deve

    abarcar todo o universo compreendido pela arte anterior, juntamente com as

    novas produes (DANTO, 2006b, p.15). Uma teoria adequada no pode

    abarcar somente as caractersticas de um perodo da histria, muito pelo

    contrrio, uma definio de arte deve ser passvel de ser utilizada por qualquer

    perodo da arte at o momento em que ela foi cunhada.

    3. Quando a realidade obra de arte

    De acordo com a leitura dantiana, o ps-impressionismo mostrou que o

    fato de uma obra de arte no ser uma imitao no a torna menos real. Sua

    relao com uma realidade continua a existir, mas em outros termos

    ontolgicos. E a arte contempornea deve ser entendida dentro dessa

    perspectiva, pois as obras de arte so entidades, assim como os entes aos

    9 Alm das objees de Danto, pode-se acrescentar que ele delimita sua teoria ao universo das artes visuais e, especificamente, as que so objetuais.

  • 96

    quais se referem, j que so logicamente inimitveis10, o que Danto exemplifica

    por meio da Cama de Robert Rauschenberg11. Ela no uma imitao de

    uma cama, mas uma cama de verdade (DANTO, 2006b, p.16). Confundir a

    cama de Rauschenberg com uma cama qualquer confundir a realidade com a

    realidade? Ou confundir uma obra de arte com a realidade? Como a arte a

    realidade, essa confuso uma contradio. A confuso se d por que um

    objeto real uma parte de uma obra de arte, e essa parte faz com que ela seja

    confundida com o seu indiscernvel. Aps os indiscernveis, no mais

    possvel ensinar o significado de arte com um exemplo (DANTO, 1997, p. 13),

    porque tudo pode ser arte.

    A diferena que se estabelece que a arte no se resume sua

    contraparte material, ela tem um contedo semntico. E esse contedo

    semntico que permite o estabelecimento de um carter representativo da obra

    de arte. o conceito de representao que se configura como estruturador da

    diferena entre meras coisas e obras de arte (DANTO, 2006a, p. xiv). Isso

    porque () meras coisas no tm direito a ttulos (DANTO, 2005, p.35).

    Coisas no tm um aboutness (sobre-o-qu), obras de arte sim (DANTO, 2005,

    p.36). o aboutness (sobre-o-qu) do objeto que o coloca como representao

    (DANTO, 2005, p.134). Quando um objeto eleito para representar uma

    populao, ele deixa de ser somente uma coisa e passa a ser um

    representante dessa populao de coisas. um processo de autorreferncia

    (DANTO, 2005, p.139). Obras de arte que pretendem se afirmar como meras

    coisas do mundo, automaticamente, fazem o contrrio, visto que meras coisas

    no se afirmam enquanto tal (DANTO, 2005, p.141). Pinturas que denotam

    pinturas so exemplificaes do argumento ontolgico de Arthur Danto

    (DANTO, 2005, p.142). Logo, apesar de tudo poder ser arte, nem tudo .

    As obras de arte se transformaram na espcie de representao que a

    linguagem hoje para ns () (DANTO, 2005, p.128). A arte e a linguagem

    10 Elas podem ser logicamente inimitveis, mas so aparentemente imitveis. Tanto que Mike Bildo produziu enquanto obra de arte sua, uma rplica da Brillo Box. O artista fez parte do movimento apropriacionista de Nova Iorque.

    11 A imagem pode ser vista no seguinte link: https://plus.google.com/u/0/photos/105115585454603839518/albums/6051868035358634961

  • 97

    so tratadas como representaes conotativas. As palavras esto fora do

    mundo porque so sobre o mundo. As obras de arte so similares s palavras,

    pois apesar de terem um equivalente real, elas so sobre alguma coisa,

    representam algo. Nesse sentido, as obras de arte se opem s coisas reais

    (DANTO, 2005, p.135). Danto usa o conceito de realidade para diferenciar as

    representaes das coisas, e isso problemtico, como pode ser percebido no

    seguinte trecho:

    Imaginemos duas bolas de gude, uma a cpia exata da outra, sendo a segunda a original, a bolinha real. No fosse pela diferena de suas histrias e pelo fato de que uma faz parte da histria da outra, nada permitiria diferenci-las, de modo que nenhuma observao nem a comparao serviriam para afirmar que uma verdadeira e a outra no () (DANTO, 2005, p.132).

    O problema est no fato de que em nenhum momento ele conceitua

    realidade. O filsofo parece pressupor consenso a esse respeito. Com o

    objetivo de minimizar a situao, compreendo a diferena da seguinte maneira:

    no importa se a obra de arte tem como objetualidade fsica uma mera coisa,

    a funo na qual a mera coisa se encontra, que a diferencia de todas as outras

    exatamente iguais a ela. Essa funo representativa, e, nesse sentido,

    realidade se contrape a representao (DANTO, 2005, p.133). Dessa forma,

    existem as meras coisas, as meras representaes e as representaes que

    so obras de arte. Porque, claro que nem toda representao, ou seja, nem

    tudo aquilo que tem um sobre-o-qu uma obra de arte. Como possvel

    compreender a partir do grfico abaixo:

    Meras Coisas Meras representaes

    Estrutura ontolgica das obras de arte.

    Ficou explicado o que diferencia as obras de arte das meras coisas.

    Falta responder o que permite fazer a diferenciao entre obras de arte e

    meras representaes. A resposta dada pelo filsofo o da identificao

  • 98

    artstica. Ele usado ligando uma propriedade perceptvel da obra ao conceito

    de arte, pois para identificar a obra enquanto tal, necessrio que um sujeito

    articule uma frase com o da identificao (DANTO, 2006b, p.18).

    Enquanto uma pessoa no consegue articular o da identificao

    artstica ela no consegue ver obras de arte como obras de arte, pois ver o

    concreto sua frente sem realizar a abstrao. O da identificao s pode

    ser articulado se a contextualizao terico-histrica dessa obra conhecida,

    pois ver algo como obra de arte requer conhecer o mundo da arte (DANTO,

    2006b, p.20).

    Assim, o da identificao artstica a possibilidade de enxergar algo

    para alm da fisicalidade. Enxergar algo pelo que esse algo representa. E

    mesmo que algo seja visto somente pela fisicalidade, como a arte abstrata,

    essa fisicalidade interpretada a partir de uma teoria da arte (DANTO, 2006b,

    p.20). Logo, explicar a diferena entre a caixa de Brillo do Andy Warhol e as

    demais caixas de Brillo do supermercado explicar a diferena entre arte e

    realidade (DANTO, 2006b, p.21).

    a teoria que a recebe no mundo da arte e a impede de recair na condio de objeto real que ela (num sentido de diferente do da identificao artstica). claro que sem teoria, improvvel que algum veja isso como arte e, a fim de v-lo como parte do mundo da arte, a pessoa deve dominar uma boa dose de teoria artstica, assim como uma quantia considervel de histria () (DANTO, 2006b, p.22).

    Portanto, aquilo que faz de algo uma obra de arte externo a ele

    (DANTO, 2006a, p. xii). O conceito de mundo da arte essa exterioridade que

    permite afirmar que algo arte. Nessa perspectiva, duas coisas se tornaram

    claras: no faz sentido perguntar se isso ou aquilo pode ser obra de arte, j que

    a resposta sempre sim; e a necessidade de saber qual deve ser o caso

    quando essa coisa obra de arte (DANTO, 2006a, p. xiii). A contextualizao

    terico-histrica como a condio de possibilidade de uma obra de arte ser

    considerada enquanto tal, o que significa que a arte percebida como criao

    terica totalmente contextualizada. O que resta a discutir em que consiste

    essa contextualizao histrico-terica que permite a identificao de uma obra

    de arte.

  • 99

    4. A contextualizao terico-histrica

    Toda produo artstica produto de um momento histrico especfico,

    assim como de uma estrutura terica possibilitadora. Determinada forma de

    arte passa a ser possvel a partir de uma teoria que delimita um campo

    particular de trabalho em um momento histrico especfico (DANTO, 2006b,

    p.14).

    Vejo como duas, as questes que norteiam o pensamento de Arthur

    Danto sobre esse assunto: a primeira, o que torna possvel que uma mera

    coisa possa ser considerada como obra de arte em um determinado momento

    histrico, sendo que, pouco antes, isso no poderia ter acontecido; e a

    segunda, como o contexto histrico contribui para que seja concedido a essa

    coisa o status de obra de arte (DANTO, 2006a, p. ix).

    O conceito de mundo da arte amalgama essas duas questes. Ele ,

    dentro dessa perspectiva, a prpria estrutura histrico-terica supracitada, pois

    somente a partir da condio de possibilidade de sua existncia em

    determinado momento que algo pode ser considerado como obra de arte.

    Considere como exemplo os readymades de Duchamp12.

    O principal argumento de Danto, em relao ao estabelecimento do

    incio da arte contempornea na dcada de 1960, o da diferenciao entre a

    atitude de Duchamp e a atitude desse perodo. Porm, porque o problema dos

    indiscernveis s se coloca na dcada de 1960 se na segunda metade da

    dcada de 1910 o primeiro readymade legitimado como obra de arte?

    Segundo o filsofo, Duchamp fruto de seu tempo, parte da estrutura terica

    e histrica do mundo da arte daquele momento, mesmo tendo tido a ousadia

    de propor como obra de arte um objeto exatamente igual a um objeto do

    cotidiano. Para Danto, o que quer que Duchamp tenha feito, ele no est

    celebrando o ordinrio, mas sim questionando a arte (DANTO, 1997, p.132).

    O modernismo se estrutura devido a uma necessidade de separao do

    que estava sendo feito naquele momento de toda a arte tradicional. A inveno

    12 As imagens podem ser vistas no seguinte link: https://plus.google.com/u/0/photos/105115585454603839518/albums/6051868035358634961

  • 100

    da fotografia impe essa reformulao, o que faz com que o problema da arte

    moderna seja o da prpria arte. Seu objetivo compreender e ampliar as

    possibilidades da arte ao critic-la. E Duchamp faz isso com maestria, at

    porque, o prprio manifesto dadasta, movimento do qual Duchamp fazia parte,

    pressupe esse tipo de atitude artstica. Duchamp no o nico a propor

    readymades como obra de arte, vrios outros dadastas tambm o fazem. A

    diferena de seus readymades que so os nicos sem qualquer modificao

    no objeto utilizado.

    O dadasmo uma vanguarda negativa, seu objetivo propor uma

    antiarte, e os readymades surgem como uma soluo bastante profcua para

    esse objetivo. Assim, o movimento Dad nega toda a estrutura do mundo da

    arte tradicional, inclusive sua estrutura institucional. Ele questiona os materiais,

    os procedimentos, a autoria, a figura do artista e o valor da obra de arte. E os

    readymades conseguem realizar todas essas crticas ao mesmo tempo.

    Duchamp, inclusive, como pode ser visto na imagem do urinol, no assinou seu

    prprio nome, mas uma derivao do nome da principal indstria americana de

    equipamento sanitrio, a Mott Works.

    Nesse sentido, Arthur Danto afirma que os movimentos da dcada de

    1960 so completamente diferentes do movimento dadasta, mas eles s foram

    possveis porque Duchamp existiu. O problema da dcada de 1960 no tem

    relao com o estatuto da arte, muito pelo contrrio, o mundo da arte desse

    perodo j possui a condio de possibilidade de adotar como caractersticas

    todas as crticas feitas por Duchamp. Os indiscernveis da dcada de 1960 no

    so parte de um objetivo comum, mas a comprovao de que qualquer coisa

    pode ser obra de arte daquele momento em diante.

    O prprio fato de a Fonte ter sido recusada pelo jri da exposio a

    que foi submetida pela primeira vez, demonstra a estrutura de funcionamento

    do mundo da arte. Se no unnime na aceitao de uma obra, essa

    discordncia lembrada devido importncia que ela acaba tomando no

    desenvolvimento do mundo da arte em questo. Se isso acabasse

    desconsiderado, provavelmente no se saberia de sua existncia (DANTO,

    2006a, p. x).

  • 101

    Apesar de existir uma irreversibilidade da histria, que faz com que o

    barroco possa fazer parte do contemporneo, mas no o contrrio, o que

    caracteriza o barroco no o perodo cronolgico no qual ele est, mas uma

    srie de caractersticas tericas e de produo das obras (DANTO, 2006a, p.

    xi). o que acontece com o barroco mineiro, que s denominado dessa

    forma por estar no mesmo perodo cronolgico, j que o barroco europeu e o

    mineiro so bastante diferentes, principalmente se forem contextualizados. O

    que permite o filsofo concluir que a arte feita para ser apreciada por aqueles

    de seu prprio tempo (DANTO, 2006a, p. xii).

    Logo, o trabalho dos historiadores justamente remontar a situao na

    qual a obra de arte foi realizada, para que seu contexto possa ser

    compreendido, mesmo em outros momentos histricos. A experincia com a

    obra de arte no momento em que ela feita muito mais poderosa que a

    revivida em momentos posteriores, visto que o significado que d vida ao

    trabalho a narrativa histrica e terica da qual faz parte. Assim, o que faz da

    Brillo Box uma obra de arte, o universo de significados ao redor do objeto que

    o justifica enquanto tal (DANTO, 2006a, p. xii). Ela s foi possvel devido

    atitude do mundo da arte e a atmosfera terica do perodo.

    Quanto maior a variedade de predicados artisticamente relevantes, mais complexos se tornam os membros individuais do mundo da arte. E quanto mais se sabe da populao inteira do mundo da arte, mais rica se torna a experincia de algum com qualquer um de seus membros (DANTO, 2006b, p.24).

    Toda modificao na estrutura do mundo da arte traz uma falta de

    coerncia para a sociedade em geral. Quando uma nova forma de arte

    aparece, os artistas tomam suas posies em relao a essa forma e comeam

    a produzir. Para que esse trabalho seja, no s entendido como arte pelo

    observador, mas tambm para que ele o compreenda, preciso que ele saiba

    qual essa modificao e qual a conjuntura terico-histrica que a possibilita 13(DANTO, 2006b, p.24). Por exemplo, uma obra de arte abstrata como o

    13 verdade, claro, que o conceito de arte estava comeando a se ampliar suficientemente para que a pintura de Manet Djeuner sur l'herbe fosse aceita como arte, em 1864, embora para a maioria que a tinha visto no Salon des refuses ela era uma perverso da prpria ideia de arte (DANTO, 2006a, p. x).

  • 102

    trptico de Joan Mir14. O ato de ver esse trptico como obra de arte requer

    mais que a sua legitimao como tal. Primeiro, necessrio no enxerg-lo

    como mera coisa, pois isso leva afirmao comum: Isso s tinta colorida.

    O problema que essa frase poderia ser dita, tambm, pelo pintor ao se referir

    ao seu prprio trabalho. S que essas duas frases, que visivelmente parecem

    uma s, possuem significados muito diferentes.

    A arte abstrata est discutindo com toda a histria da pintura, o que faz

    com que a tinta se transforme em personagem principal do movimento. Ento,

    a afirmao: isso s tinta colorida! Quando feita pelo artista abstrato, requer

    um conhecimento de histria da pintura para ser compreendida. Alm disso,

    esse trabalho, especificamente, um trptico, um conjunto de trs pinturas

    unidas por uma moldura formando um conjunto interligado como se fosse uma

    s, o qual foi muito comum na pintura religiosa, como pode ser visto no trptico

    de Hans Memling, de 1474, sobre a vida de So Joo Batista15.

    As molduras eram, geralmente, dobrveis das laterais para o centro,

    sendo cada uma delas exatamente a metade do tamanho da principal. O

    trptico de Mir faz o contrrio. Alm de no possuir uma moldura que interligue

    as telas, a tela do meio menor que as telas laterais, impossibilitando a

    dobradura. Desse modo, a compreenso do trptico de Mir totalmente

    dependente da discusso terica e do momento histrico no qual ele se insere.

    Sem isso, so s telas gigantes cobertas de tinta colorida, nada mais.

    Sua identificao do que ele fez logicamente dependente das teorias e da histria da arte que ele rejeita (). Ver algo como arte requer algo que o olho no pode repudiar uma atmosfera de teoria artstica, um conhecimento da histria da arte: um mundo da arte (DANTO, 2006b, p.20).

    O ponto almejado nessa discusso enfatizar que a compreenso da

    obra de arte como obra de arte e a compreenso do problema que ela coloca

    exigem, em qualquer perodo da histria da arte, conhecer a contextualizao

    14 A imagem pode ser vista no seguinte link: https://plus.google.com/u/0/photos/105115585454603839518/albums/6051868035358634961

    15 A imagem pode ser vista no seguinte link: https://plus.google.com/u/0/photos/105115585454603839518/albums/6051868035358634961

  • 103

    terica e histrica da obra em questo. A relao com a obra de arte, para

    Danto, no se d no mbito subjetivo, como acontece com a tradio. A arte

    coloca a necessidade de conhecer movimentos artsticos, ironias e

    questionamentos que s so possveis para os familiarizados minimamente

    com o mundo da arte (DANTO, 2005, p.167). O que significa que as qualidades

    estticas de uma obra so funo de sua identidade histrica, em outras

    palavras, necessrio ter informaes sobre ela para que seu juzo seja bem

    feito, visto que a obra de arte prope discusses terica e historicamente

    localizadas que s so identificadas nessa situao (DANTO, 2005, p.172).

    () verdade que podemos encontrar objetos contra-partes materiais em qualquer poca em que seja tecnicamente possvel fabric-los, mas as obras de arte, ligadas s suas equivalentes materiais de uma maneira que mal comeamos a compreender, so to relacionadas com seu prprio sistema referencial que quase impossvel imaginar qual seria a reao das pessoas ao mesmo objeto em outro tempo e em outro lugar (DANTO, 2005, p.173).

    Concluso

    Assim, o conceito de arte proposto por Danto atemporal, mas sua

    extenso indexada historicamente (DANTO, 1997, p.196). A diferena

    extensional das obras de arte na histria no impede a existncia de um

    conceito nico de arte, vlido para todos os perodos. Isso porque

    essencialismo em arte implica pluralismo (DANTO, 1997, p.197). Por

    conseguinte, a histria se configura como a essncia prpria da arte. Arthur

    Danto critica Weitz e sua negao da possibilidade de uma definio clssica

    de arte, porque ele prope uma definio. Ele um essencialista e, como tal,

    pressupe a necessidade, no s a possibilidade, de definir arte. Mas seu

    essencialismo um essencialismo histrico. A ideia de essncia que ele

    esposa bastante diferente da tradicional, pois essncia algo que se

    manifesta historicamente, uma estrutura universal enquanto ser, mas

    enquanto parecer algo que se modifica de acordo com o momento histrico.

    Essa estrutura fixa, mas pode ser configurada de formas diferentes, o que faz

    com que ela seja, ao mesmo tempo, universal e mutvel. As coisas podem

    aparecer de formas diferentes, por isso a beleza pode ser universal sem

    contrariar a revoluo antropolgica.

  • 104

    Portanto, sua condio suficiente para a obra de arte definidora de

    uma natureza da arte que no , de forma alguma, esttica, ou caracterizada

    pela aparncia do objeto em si, mas por uma srie de circunstncias que unem

    o trabalho de arte ao momento histrico em que ele foi legitimado. A essncia

    da arte histrica, a relatividade est somente na percepo de cada momento

    em seu contexto (DANTO, 2006a, p. xiv).

    REFERNCIAS

    DANTO, Arthur C. The transfiguration of the commonplace: a philosophy of art. Cambridge: Harvard University Press, 1981.

    ______________. After the end of art: contemporary art and the pale of history. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 1997.

    ______________. A transfigurao do lugar comum. So Paulo: Cosac Naify, 2005

    ______________. Aps o fim da arte: a arte contempornea e os limites da histria. So Paulo: Odysseus Editora, 2006.

    ______________. The Abuse of Beauty. Aesthetics and the concept of art. Illinois: Carus Publishing Company, 2006a.

    ______________. O mundo da arte. Traduo de Rodrigo Duarte. Revista ArteFilosofia, Ouro Preto, n.1, p. 13-25, jul. 2006b.

    ______________. Narration and Knowledge. New York: Columbia University Press, 2007.

    ______________. What art is. Yale University Press, 2013.

    DUARTE, Rodrigo. O tema do Fim da Arte na Arte Contempornea. In: PESSOA, Fernando (org). Arte no Pensamento. Seminrios Internacionais Museu Vale do Rio Doce, 2006.

  • 105

    RAMME, Noli. A esttica na filosofia da arte de Arthur Danto. Revista ArteFilosofia, Ouro Preto, n.5, p. 87-95, jan. 2008.

    ________________. possvel definir arte?. ANALYTICA, Rio de Janeiro, vol 13 n 1, 2009, p. 197-212

    ________________. A teoria institucional e a definio da arte. Revista Poisis, n 17, p. 91-103, Jul. de 2011.