o movimento da reforma sanitÁria brasileira … de andré... · e sua relação com os partidos...
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
INSTITUTO DE SADE COLETIVA
DOUTORADO EM SADE PBLICA
O MOVIMENTO DA REFORMA SANITRIA BRASILEIRA
E SUA RELAO COM OS PARTIDOS POLTICOS DE
MATRIZ MARXISTA
Andr Teixeira Jacobina
ISC-UFBA
2016
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Ficha Catalogrfica
Elaborao Programa de Ps-Graduao em Sade Coletiva
_________________________________________________________________________
JACOBINA, Andr Teixeira
O movimento da Reforma Sanitria Brasileira e sua relao com os partidos polticos de matriz marxista
2016.
217 f.
Orientadora: Prof. Dr. Ligia Maria Vieira da Silva Tese (Doutorado) - Instituto de Sade Coletiva. Universidade Federal da Bahia.
1. Reforma Sanitria Brasileira; 2. Movimentos sociais em sade; 3. Partidos
polticos; 4. Sistema nico de Sade. 5. Poltica de sade I. Ttulo.
CDU 614.2
__________________________________________________________________________
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ANDR TEIXEIRA JACOBINA
O MOVIMENTO DA REFORMA SANITRIA BRASILEIRA
E SUA RELAO COM OS PARTIDOS POLTICOS DE
MATRIZ MARXISTA
Tese apresentada ao Programa de Ps-graduao em Sade Coletiva
do Instituto de Sade Coletiva da Universidade Federal da Bahia.
rea de concentrao: Poltica, Planejamento e Gesto em Sade.
Orientadora: Ligia Maria Vieira da Silva
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ANDR TEIXEIRA JACOBINA
O movimento da Reforma Sanitria Brasileira
e sua relao com os partidos polticos de matriz marxista
Data da defesa: 29/04/2016
Banca examinadora:
____________________________________________________
Profa. Ligia Maria Vieira da Silva ISC/UFBA
Orientadora
___________________________________________________
Prof Jairnilson Silva Paim ISC/UFBA
___________________________________________________
Prof. Monique Azevedo Esperidio ISC/UFBA
_____________________________________________________
Prof Maria Victria Espieira Gonzlez FFCH/UFBA
_____________________________________________________
Prof Gasto Wagner de Sousa Campos FM/UNICAMP
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Agradecimentos
Comeo os agradecimentos pela pessoa que mais contribuiu para a esse trabalho, minha orientadora, professora Ligia Vieira da Silva. Ela me apresentou a um novo referencial terico,
com o qual dialoguei, o qual inspirou diversas escolhas no processo da pesquisa. Alm disso,
constantemente realizou sugestes valiosas, mantendo sempre sua porta aberta para o dilogo,
contribuindo de muitas formas para a tese.
Agradeo tambm ao professor Jairnilson Paim, especialmente pelo conhecimento
adquirido na disciplina Seminrios Crticos, que forneceu importantes sugestes e, no momento em
que discutamos a mudana de escopo do projeto original que previa um estudo de mbito estadual,
para o mbito nacional, apoiou a deciso. Agradeo a Maria Victoria Espineira Gonzles, que
estuda movimentos sociais e me fez aprofundar minhas leituras de Gohn, Tilly, entre outros, e j
havia participado da minha banca de mestrado, colocando-se disponvel para a Banca de defesa do
doutorado. Agradeo a Patrice Pinell que em conversa posterior a qualificao nos ajudou a
perceber que seria mais produtivo que o estudo tivesse mbito nacional, invs de local.
Agradeo a todos os alunos e professores da graduao e ps-graduao do ISC, em
especial, Monique Esperidio, que convidamos para a Banca de defesa pelo interesse manifestado
no tema e pela aproximao com o referencial da sociologia reflexiva. Monica Nunes, pelas
excelentes aulas. Clinger pela ajuda com os grficos. Todo o grupo de Anlise de Polticas, em
especial, Ana, pela ajuda com o manejo do Excel, programa que utilizamos para organizar os dados
dos entrevistados. Agradeo aos professores do DMPS, cujo concurso de seleo de professor
substituto me deu a ideia para a tese de doutorado. Fora a enriquecedora experincia como docente
que tive l, em especial, ao professor Paulo Pena.
Agradeo tambm a Ana Souto, pela disponibilidade para minha insero na atividade de
Tirocnio Docente orientado, em horrios viveis para mim, e por ter sido a primeira pessoa, antes
mesmo do doutorado, a me convidar para o ISC para falar de Histria da Sade, efetivamente
abrindo as portas do ISC para mim. Ao professor Zacarias, que me apresentou ao trabalho de Lars
Lih, to importante que acabei absorvendo na tese. Ao professor Jorge Nvoa, que me fez
aprofundar os estudos sobre Marx e marxismo, buscando paralelos e diferenas com a teoria de
Bourdieu. Agradeo ainda a Elaine, pela ajuda nas questes do dia a dia, Fernanda Scher, que foi
bolsista e ajudou na pesquisa exploratria, Thiale, na transcrio das entrevistas, e muitas outras
pessoas que colaboraram com o trabalho.
Agradeo a todos os meus alunos, seja em Medicina Social na Faculdade de Medicina, e
aqueles do ISC em Poltica de Sade e Introduo a Sade Coletiva, em especial aos alunos cujo
amor pelo conhecimento motiva cada vez mais a opo pela cincia e pela docncia.
Agradeo a meus pais, pelo apoio e inspirao. Eles no somente traaram carreiras
acadmicas exemplares, mas fazem parte da histria viva da luta pela RSB. A Carmen Teixeira, em
especial, pela contribuio na reviso final do texto.
Agradeo a Dbora Meireles, pela alegria e afeto que trouxe para minha vida em meu
ltimo ano de doutorado, fornecendo com isso mais fora e felicidade em cada dia.
Por fim, agradeo a todos os que lutaram e lutam pela Reforma Sanitria Brasileira, e por
todos que lutaram e lutam por um Estado mais democrtico, por um Brasil mais justo, pelos
direitos sociais para todos os cidados. Sem vocs, esse trabalho no existiria, e mais do que isso,
seria mais difcil vislumbrar caminhos. Aos que sonham acordados e buscam fazer dos sonhos
realidade, dedico essa tese.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ABRASCO Associao Brasileira de Sade Coletiva
AIDS /SIDA Acquired Immunodeficiency Syndrome -Sndrome da Imunodeficincia
adquirida
AIS Aes Integradas de Sade
AIH Autorizao de Internao Hospitalar
AP Ao popular
APSP - Associao Paulista de Sade Pblica
APML- Ao Popular Marxista-Leninista
APUB Associao dos Professores Universitrios da Bahia
ARENA Aliana Renovadora Nacional
ALN Ao Libertadora Nacional
CEBES Centro de Estudos Brasileiro de Sade
CEBS - Comunidades Eclesiais de Base
CDP - Comits Democrticos e Populares
CISAT - Comisso Intersindical de Sade e Trabalho
CNBB Confederao Nacional de Bispos do Brasil
CNS Conferncia Nacional de Sade
CNRS Comisso Nacional da Reforma Sanitria
CONASP Conselho Consultivo de Administrao Previdenciria
CONASS Conselho Nacional de Secretrios Estaduais de Sade
CONASEMS Conselho Nacional de Secretrios Municipais de Sade
CHM - Constituency-based Health Movements
DIESAT -Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Sade e dos Ambientes de
Trabalho
DOPS Departamento de Ordem Poltica e Social
DMP - Departamento de Medicina Preventiva
DMPS Departamento de Medicina Preventiva e Social
ECEM Encontro Cientfico de Estudantes de Medicina
EHM - Embodied Health Movements
ENSP Escola Nacional de Sade Pblica
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FAMED-UFBA Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia
FAS- Fundo de Apoio Social
FIOCRUZ- Fundao Osvaldo Cruz
FM Faculdade de Medicina
FSLN Frente Sandinista de Libertao Nacional
HIV - Human Immunodeficiency Virus
HAM - Health Access Movements
IMS- Instituto de Medicina Social
INAMPS - Instituo Nacional de Assistncia Medica da Previdncia Social
INPS Instituto Nacional de Previdncia Social
JUC - Juventude Universitria Catlica
MDB Movimento Democrtico Brasileiro
ME Movimento Estudantil
MRSB Movimento pela Reforma Sanitria Brasileira
MS Medicina Social
MS Ministrio de Sade
MS Movimentos Sociais
NHS National Health Service
NMS Novos Movimentos Sociais
OMS Organizao Mundial de Sade
OPS - Organizao Pan-americana de Sade
ONGs Organizaes No Governamentais
PAIS -Programa das Aes Integradas de Sade
PCB - Partido Comunista Brasileiro
PC do B - Partido Comunista do Brasil
PCI - Partido Comunista Italiano
PCUS Partido Comunista da Unio Sovitica
PESES Programa de Estudos Econmicos e Sociais em Sade
PDS - Partido Democrtico Social
PDT - Partido Democrtico Trabalhista
PFL Partido da Frente Liberal
PIASS Programa de Interiorizao das Aes de Sade e Saneamento
PMDB - Partido do Movimento Democrtico Brasileiro
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PP Partidos polticos
PPA - Plano de Pronta Ao
PPG Programa de Ps-Graduao
PPS - Partido Popular Socialista
PREPS Programa de Preparao Estratgia de Pessoal de Sade
PREV-SADE Programa nacional de Servios Bsicos de Sade
POLOP - Organizao Revolucionria Marxista Poltica Operria
PT - Partido dos Trabalhadores
PTB - Partido Trabalhista Brasileiro
REME - Renovao Medica
RS - Reforma Sanitria
RSB - Reforma Sanitria Brasileira
SABS Sociedade de Amigos de Bairro
SBPA Sociedade Brasileira Para o progresso da Cincia
Scielo Scientific Electronic Library Online
SEMSAT - Semana de Sade do Trabalhador
SES Secretaria Estadual de Sade
SESAB Secretaria Estadual de Sade da Bahia
SMS Secretaria Municipal de Sade
SAB - Sociedades de Amigos de Bairro
SC- Sade Coletiva
SP Sade Pblica
SUDENE Superintendncia de Desenvolvimento do Nordeste
SUDS Sistema Unificado e Descentralizado de Sade
SUS - Sistema nico de Sade
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFBA Universidade Federal da Bahia
UJP Unio da Juventude Patritica
UNB Universidade de Braslia
UNE Unio Nacional dos Estudantes
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
URSS. Unio das Republicas Socialistas Soviticas
USP- Universidade de So Paulo
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Resumo
A presente investigao teve por objetivo analisar a natureza das relaes entre o
movimento pela Reforma Sanitria Brasileira (RSB) e os partidos polticos de matriz
marxista. Este um estudo histrico, apoiado, especialmente, em fontes orais, que dialoga
especialmente com a sociologia reflexiva de Bourdieu como principal referencial terico.
A fim de objetivar a anlise dos agentes da RSB foram aferidos diversos capitais dos
entrevistados (cientfico, burocrtico, poltico partidrio, militante), dos quais se elaborou
uma trajetria resumida, cruzando-se tambm informaes das entrevistas com outras
fontes, como resolues dos partidos, relatrios de conferncias, edies da revista Sade
em Debate, biografias e outras. Os resultados da pesquisa indicam que os partidos de
matriz marxista contriburam para a formulao da proposta bem como para a organizao
do movimento pela RSB, em especial o PCB. Sua contribuio foi detectada inicialmente,
e principalmente, atravs do impacto que teve na formao de diversas lideranas do
movimento pela RSB. A experincia nos partidos trouxe um saber fazer poltica, uma
disposio para aqueles que tiveram essa experincia. Contribuiu para com a disseminao
do referencial marxista junto aos agentes que tinham militncia na RSB e em partidos de
matriz marxista. Por outro lado, detectou-se importante contribuio de agentes no
filiados a partidos tanto na articulao do movimento quanto na sua concepo do ponto de
vista terico. Esse fato permite interpretar a relao entre os partidos e o movimento da
RSB como uma dupla verdade. Sendo o movimento da RSB simultaneamente
suprapartidrio, pois esteve acima dos interesses partidrios e conjugou pessoas de diversas
filiaes e sem filiao, assim como teve nos partidos um papel central, na experincia de
diversas lideranas da RSB, que trouxeram para a RSB, habilidades e saberes adquiridos
na militncia partidria. A influncia dos partidos no MRSB pode assim ser considerada
como fenmeno complexo, no podendo ser reduzido ao debate clssico entre
espontaneismo e direo consciente, mesmo que essa dimenso merea investigao.
Palavras-chave: Reforma Sanitria Brasileira; Movimentos sociais em sade; Partidos
polticos; Sistema nico de Sade; Poltica de sade.
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Abstracts
This research aimed to analyze the nature of the relationship between the movement by the
Brazilian Health Reform (RSB) and the political parties of Marxist matrix. This is a historical
study, supported especially in oral sources, which interacts especially with the reflexive sociology
of Bourdieu as the main theoretical framework. In order to objectify were measured several capitals
of respondents (scientific, bureaucratic, political party, activist), from which it drew up a short
path, crossing also information from interviews with other sources such as resolutions of the
parties, conference reports, issues Health magazine Debate, biographies and more. The survey
results indicate that the Marxist matrix parties contributed to the formulation of the proposal as
well as the organization of movement for RSB, especially the PCB. His contribution was detected
initially and primarily through the impact, it had on the formation of several leaders of the
movement for RSB. Experience the parties brought a knowing 'politics', a provision for those who
have had this experience. Contributed to the spread of Marxist framework, along with the agents
who had militancy in RSB and Marxist matrix parties. On the other hand, were found to be
important contribution unaffiliated agents to parties both joint movement and in its design from a
theoretical point of view. This fact allows interpreting the relationship between the parties and the
movement of the RSB as a double truth. While being cross-party movement, as was above partisan
interests and conjugated people of different affiliations and no membership, and had the parties a
central role, in the experience of several leaders of the RSB, which brought to RSB, skills and
knowledge acquired in party militancy. The influence of the parties in MRSB can therefore be
considered as a complex phenomenon and cannot be reduced to the classic debate between
spontaneity and conscious direction, even if this dimension deserves investigation.
Key words: Brazilian Health Reform; Health Social Movements; Political parties; Health
policy.
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SUMRIO
1 Introduo 13
1.1 Objetivo geral 17
1.2 Objetivos especficos 18
2 Referencial terico e estratgia de pesquisa 19
2.1 Renovada histria poltica e a sociologia reflexiva de Bourdieu 19
2.1.1 A sociologia reflexiva de Bourdieu 20
2.1.2 Conceitos fundamentais e sua articulao com a tese: Gnese,
Habitus, capital simblico, campos, e Espao Social.
21
2.2 Partido Poltico e Movimento Sociais discusso do conceito 29
2.3 Fato Histrico 36
2.4 Hipteses 37
2.5 Estratgia de pesquisa 38
2.5.1 As peculiaridades das fontes orais 40
2.5.2 Fontes orais da pesquisa 43
2.5.3 Recorte temporal e objetivao dos agentes. 44
3 A relao entre movimentos e partidos polticos. 50
3.1 A relao entre movimento e partido: resgatando o pensamento de
Lnin
50
3.1.1 Rosa Luxemburgo e a defesa da espontaneidade do movimento 58
3.2 A relao entre Movimentos sociais e Partidos Polticos 62
3.3 Health Social Movements (Movimentos sociais de Sade). 77
3.4 Relao entre o movimento da Reforma Sanitria Brasileira e
partidos polticos.
80
4. A emergncia da Reforma Sanitria Brasileira e a relaes com
os partidos polticos
85
4.1 Condies histricas de possibilidade da relao entre partidos e a
RSB.
85
4.2 CEBES e o papel da revista Sade em debate na RSB 91
4.3 Democracia, socialismo e sade: a influncia do eurocomunismo 99
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12
4.4 Concepes acerca da RSB e indcios da relao 103
5 A trajetria de agentes fundadores da RSB e os partidos nas
redes de articulao.
110
5.1 Trajetria dos agentes e capitais 110
5.2 Articulaes polticas da RSB e os partidos. 112
5.3 Projeto Andrmeda: uma rede de articulao para a RSB 114
6 Relaes entre o Movimento pela Reforma Sanitria Brasileira e
os partidos polticos nos anos 70-80
129
6.1 Relao entre o Movimento da Reforma Sanitria Brasileira e
Partidos Polticos nos anos 70: pontos de vista dos agentes
135
6.2 Disputas ao interior do MRSB relacionada aos PP de marxista nos
anos 80
146
6.3 Marxismo e Reforma Sanitria Brasileira 161
6.4 Conflitos polticos na emergncia da RSB 175
6.5 Discutindo hipteses acerca da relao entre o movimento sanitrio e
os partidos polticos de matriz marxista
182
7 Discusso e Consideraes finais 185
8 Referncias bibliogrficas 193
Apndices 206
1- Termo de consentimento livre e esclarecido 207
2 - Resumo das trajetrias dos agentes entrevistados 208
3 - Lista de entrevistados por ordem alfabtica, entrevistador e data
da entrevista
215
4 - Distribuio dos capitais dos agentes entrevistados 216
A) Capitais dos agentes at 1986. 216
B) Capitais dos agentes na data da entrevista 217
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1. INTRODUO
Ao investigar a relao entre o movimento da Reforma Sanitria Brasileira e os
partidos polticos relevante examinar os trabalhos que investigaram esse movimento,
dentre os quais destaco o de Sarah Escorel, Reviravolta na Sade (ESCOREL, 1998) e o
livro de Jairnilson Paim, Reforma Sanitria Brasileira: contribuio para a compreenso e
crtica (PAIM, 2008) so centrais. Embora no discutam explicitamente a relao do
movimento sanitrio com os partidos polticos, estes tomam o movimento sanitrio e a
Reforma Sanitria Brasileira como objeto de investigao e permitem a identificao de
possveis controvrsias em relao problemtica da direo consciente x espontaneismo1.
Escorel teve por objetivo analisar as bases do movimento sanitrio, a conjuntura em
que emergiu e sua origem2 institucional. (ESCOREL, 2005, p. 64). Essa autora considera
que o movimento sanitrio, desenvolvido a partir dos Departamentos de Medicina
Preventiva e Social (DMPs) focava tanto na produo de conhecimentos a partir da crtica
ao modelo preventivista, como buscava articulao com organizaes da sociedade civil se
engajando na defesa da democratizao do pas. Nesse sentido, a autora destaca que o
movimento estudantil e a atuao do Centro Brasileiro de Estudos de Sade, o CEBES,
seriam vertentes do movimento sanitrio que traziam uma ideologia social e profissional,
bem como uma estratgia de luta, sendo o CEBES uma pedra fundamental, embora no a
nica, do movimento sanitrio como movimento social organizado (ESCOREL, 1998,
1 A problemtica da relao entre partidos polticos e movimentos sociais remonta ao debate entre Lnin e Rosa Luxemburgo, sendo que a questo que emerge como central a dicotomia direo consciente x
espontaneismo da ao das massas. Essa dicotomia, longe de ficar restrita anlise do processo que
conduziu revoluo russa de 1917, permeia os trabalhos que analisam a relao entre partidos e movimento,
como evidenciamos em nossa reviso de literatura sobre a relao entre movimentos e partidos na base do
Scielo, apresentada no captulo 2. De fato, os trabalhos que tratam desta relao, em sua maioria, terminam
por se posicionar diante da problemtica direo consciente x espontaneismo, mesmo utilizando termos
diferentes para se referir a estes processos, termos estes por vezes impregnados do ponto de vista dos autores,
como por exemplo, o uso de expresses como tutela (dos partidos sobre o movimento), expresso
pejorativa que encerra uma crtica a esta relao, ou, inversamente, o uso do termo autonomia, para se
referir independncia dos movimentos em relao aos partidos, expresso que contm uma viso positiva
acerca desse processo. 2 Os DMPS foram lcus institucional dos PPG (Programa de ps-graduao) em SC (Sade Coletiva). MS
(Medicina Social), SP (Sade Pblica), gnese do espao social da Sade coletiva (VIEIRA-da-Silva e
PINELL, 2013). Esse processo constituio de um espao da sade coletiva que propiciou a formulao dos
princpios da Reforma Sanitria. Do ponto de vista cientifico voltado para o estudo do processo sade-doena
tendo como foco no mais o individuo ou o seu somatrio, mas a coletividade (as classes sociais e suas
fraes), enfatizando a anlise da dos determinantes sociais da sade e da doena, bem como o estudo das
prticas de ateno sade e da crtica ao processo de privatizao das polticas de sade. A Sade Coletiva
rompeu com a Medicina Preventiva e com a Sade Pblica (AROUCA, 2003). Por isso, uma reformulao
terica acerca do significado da sade e a prtica, no que tange s polticas de sade, eram centrais para o
movimento sanitrio que estava se constituindo na dcada de 70.
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14
p.76). A outra vertente seria o movimento mdico, o movimento de Renovao Mdica
(REME) que coloca essas ideias em um espao especial da ao, a esfera do trabalho
(ESCOREL, 1998, p. 87).
A autora no investiga a relao entre o movimento sanitrio e partidos polticos,
embora destaque o crescimento do Movimento Democrtico Brasileiro (MDB) e dos
partidos clandestinos, esses ltimos que, durante a ditadura militar, particularmente na
dcada de 70, eram essencialmente os partidos de matriz marxista (ESCOREL, 1998,
p.36). Ou seja, faz parte de sua anlise de conjuntura, mas no trata especificamente da
relao entre os partidos legais e ilegais com o movimento sanitrio, trabalhando em
especial com as bases universitrias, estudantil (movimento estudantil) e cientfica
(Departamentos de Medicina Preventiva e Social) e as bases no mundo do trabalho
(sindicatos e associaes ligados, naquele momento, ao movimento de Renovao Mdica,
o REME), focando tambm, alm dessas duas vertentes, na atuao do CEBES, entidade
aglutinadora do debate poltico sobre a RSB.
Paim (2008), por sua vez, teve por objetivo analisar a Reforma Sanitria Brasileira,
entendida como um fenmeno scio histrico que contempla diferentes momentos
enquanto ideia-proposta-projeto-movimento-processo 3. Sua anlise indica como a ideia
da RSB surge no movimento sanitrio, vai ganhando forma e se inserindo na luta pela
democratizao do pas. No que se refere relao entre partidos e entidades do
movimento pela RSB, Paim destaca, citando Rodrigues Neto, que apesar de inicialmente
contar com a influncia de militantes do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e de
reunir profissionais de sade, o CEBES caracterizava-se pelo suprapartidarismo e pelo no
corporativismo (RODRIGUEZ NETO, 2003 apud PAIM, 2008, p.79). Essa observao
em relao ao CEBES, ou seja, que as perspectivas deste estariam acima da ideologia de
qualquer partido, estendida ao prprio movimento. Embora Paim reconhea a presena e
uma influncia inicial do PCB, se apoiando em Rodrigues Neto, destaca o
suprapartidarismo do movimento, aspecto que discutimos no decorrer deste trabalho.
3No sentido de se fazer presente em termos de fatos produzidos na atualidade e de certas acumulaes de
natureza poltica, econmica e cultural que podem gerar novos fatos (MATUS, 1997). Desse modo, a
Reforma Sanitria, enquanto fenmeno histrico e social poderia ser analisado como ideia-proposta-projeto-
movimento-processo: ideia que se expressa em percepo, representao, pensamento inicial; proposta como
conjunto articulado de princpios e proposies polticas: movimento como articulao de prticas
ideolgicas, polticas e culturais; processo enquanto encadeamento de atos, em distintos momentos e espaos
que realizam prticas sociais econmicas, polticas, ideolgicas e simblicas (PAIM, 2008, p.36).
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15
Sergio Arouca, um dos mais importantes formuladores e articuladores do
movimento, em entrevista realizada em 2002, explicita seu ponto de vista, enfatizando que
o PCB teve um papel central4, e no apenas no incio do movimento pela Reforma
Sanitria (MRSB). Pode-se pensar que esta perspectiva estaria influenciada pelo fato dele
prprio ser um militante do PCB e da RSB, atuando com destaque em ambos5, questo que
ser abordada mais profundamente nos captulos dedicados aos resultados da pesquisa.
Na reviso da literatura sobre movimento sanitrio e Reforma Sanitria Brasileira,
buscamos trabalhos que tratassem da relao entre movimento sanitrio e partidos
polticos, ou Reforma Sanitria Brasileira e partidos polticos. Como nenhuma combinao
desses descritores que inclusse os partidos polticos deu resultados, fizemos, em dezembro
de 2015, uma busca pelo descritor Movimento Sanitrio, que retornou 22 resultados, e
Reforma Sanitria Brasileira, com 64 resultados. Excludas as repeties (3), obtivemos 83
resultados, sendo que no foi encontrado nenhum trabalho tratando da relao entre o
movimento pela Reforma Sanitria Brasileira e partidos polticos, indicando a existncia de
uma significativa lacuna no conhecimento sobre a RSB.
De fato, o nico trabalho encontrado que trata da relao entre movimento sanitrio
e partidos polticos na emergncia do movimento foi um ensaio de Lacaz, qual seja A
atuao do PCB e a Reforma Sanitria Brasileira 6, no qual o autor reflete justamente
sobre a atuao do PCB e sua relao, terica e prtica, com a RSB. Esse ensaio no utiliza
fontes empricas, trabalha apenas com reviso bibliogrfica e, provavelmente, com as
observaes e memrias do autor, apresentando uma viso do debate que marcou a atuao
do PCB naquela conjuntura, dividido7 entre uma perspectiva poltica identificada com a
corrente prestista e outra alinhada com a perspectiva eurocomunista. Sua concluso
central que os eurocomunistas que compunham a direo do PCB poca optaram pela
atuao por dentro de alguns sindicatos e os prestistas lanaram-se na construo de um
rgo de assessoria intersindical (LACAZ, 2011). Lacaz tambm sinaliza que muito pouco
4 Arouca em entrevista de 2002, trecho na pgina 7-8. Acessado em 11/12/2015. http://bvsarouca.icict.fiocruz.br/lildbi/docsonline/get.php?id=275 5 Temos evidncias, entretanto, de que no PCB nos anos 70, a posio de Antnio Srgio Arouca era
subalterna orientao predominante no partido. Apenas nos anos 80 ele galga uma posio de maior
destaque, algo que veremos no captulo 6. 6 Acessado em 10/12/2015
http://www.pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2956:a-atuacao-do-pcb-e-a-
reforma-sanitaria-brasileira&catid=1:popular 7 As divises internas no PCB nos anos 70 so apresentadas e discutidas no captulo 6.
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16
discutido pelos estudos da Reforma Sanitria Brasileira quanto luta do movimento
sindical e sua relao com a RSB (LACAZ, 1994).
Existem trabalhos que, embora no abordem a relao da RSB com partidos
polticos, enquanto seu objeto de investigao apontam para a existncia dessa relao ou
destacam a importncia de partidos para a RSB. Exemplos de trabalhos desse tipo so A
criao de Sade em Debate, revista do CEBES Sade em Debate (PAULA et al, 2009),
ou ainda mais recentemente O CEBES e a Reforma Sanitria Brasileira (1976-1986)
(SOPHIA, 2015).
Existem tambm trabalhos que analisam a luta nos anos 80 como o trabalho de
Dantas (2014) Do Socialismo Democracia: dilemas da classe trabalhadora no Brasil
recente e o lugar da Reforma Sanitria Brasileira., que analisa o lugar da RSB nas lutas da
esquerda, com suas divises, no processo de democratizao. O autor, ao sinalizar o
protagonismo do PT nos anos 80, acaba tocando na relao entre RSB e um partido, mas
no a aborda enquanto objeto, nem especialmente na emergncia do movimento. J com
relao ao movimento sindical e sua interface com a RSB h a tese de Santos (2014), O
Fantasma da Classe ausente: as tradies corporativas do sindicalismo e a crise de
legitimao do SUS.
A filiao de fundadores do espao da sade coletiva e lideranas do Movimento
pela RSB a partidos polticos de esquerda so reconhecidas em outros trabalhos como o de
Vieira da Silva e Pinell (2013). Em seu estudo sobre a gnese da Sade Coletiva no Brasil,
esses autores identificaram a vinculao dos seus fundadores a um amplo espectro poltico,
embora com predomnio de partidos de esquerda clandestinos como o PCB, PC do B e
Ao Popular8 assim como a importncia desses partidos na direo de entidades da
sociedade civil como CEBES e ABRASCO (VIEIRA-DA-SILVA, PINELL et al, 2013).
Nesse trabalho os autores registram que existiram lideranas filiadas a partidos de esquerda
e existiam integrantes do movimento, mdicos e socilogos de esquerda, que no estavam
filiados a partidos, apontando a complexidade de posies que foram aglutinadas em torno
da luta pela Reforma Sanitria Brasileira. Embora no tenha investigado enquanto objeto
as relaes entre os partidos polticos e o movimento da Reforma Sanitria Brasileira, esse
8A organizao clandestina denominada Ao Popular Marxista Leninista (APML) surgiu da transformao do grupo de orientao catlica, a Ao Popular, em agremiao de diretrizes marxistas. A matriz da APML,
a antiga Ao Popular (AP), por sua vez, foi formada em Belo Horizonte (M.G.), em 1962, a partir de grupos
de operrios e estudantes ligados Igreja Catlica: a Juventude Operria Catlica (JOC) e a Juventude
Estudantil Catlica (JEC). (KUPERMAN, 2003)
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17
estudo aponta que a relao existia, sem indicar suas caractersticas, e justamente
buscando detalhar mais essa relao que tratamos de desenvolver nossa pesquisa, como um
primeiro passo nessa direo.
Alm dessa justificativa de uma lacuna no conhecimento, inclumos a importncia
de compreender, atravs desse exemplo, de que forma os partidos polticos influenciam um
movimento social, e ainda o propsito de compreender melhor a prpria RSB, processo
que exerce grande influncia nas lutas polticas do setor sade, e cujo projeto no se
restringe sade, mas sim busca reformar o Estado Brasileiro, em uma direo
democrtica, universalista, que signifique uma ruptura com o patrimonialismo e
autoritarismo que o caracterizam historicamente. A controvrsia aludida a pouco, entre
uma viso estritamente suprapartidria, que minimiza o papel dos partidos, e o ponto de
vista expresso por Arouca, por exemplo, que sinaliza o PCB como tendo um papel
central, tambm justifica o nosso trabalho. Ou seja, o nosso trabalho ao analisar a relao,
enfrenta essa controvrsia, e a existncia da controvrsia, de pontos de vista distintos no
que tange o papel dos partidos junto a RSB, tambm justifica o trabalho.
Ao buscar a relao dos movimentos sociais em sade que lutaram pela Reforma
Sanitria com os partidos polticos, pretendemos contribuir para o preenchimento parcial
de lacunas referentes natureza dessa relao, durante o perodo caracterizado como
distenso9 (1974-1979), abertura e redemocratizao (1979-1986), focalizando,
especificamente, a relao dos partidos com o movimento que conduziu ideia-proposta-
projeto-processo (PAIM, 2008) da Reforma Sanitria Brasileira. A pergunta que norteou a
presente investigao, apoiada na sociologia de Bourdieu, indaga: qual a natureza das
relaes entre o movimento sanitrio e os partidos polticos durante a distenso e abertura
poltica, tempo que corresponde emergncia da RSB?
1.1 Objetivo geral
Analisar as caractersticas da relao entre o movimento sanitrio e os partidos
polticos de matriz marxista no perodo correspondente emergncia do espao social10 da
RSB.
9 Existem controvrsias com relao ao uso do termo distenso que examinamos no capitulo 4. 10 Espao Social discutido no captulo seguinte.
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1.2 Objetivos especficos:
Analisar as condies histricas de possibilidade das relaes entre partidos e
movimento sanitrio no momento da emergncia deste movimento.
Analisar as trajetrias polticas, sociais e profissionais dos agentes selecionados,
participantes do movimento da RSB bem como o espao de relaes entre eles.
Analisar as disputas e conflitos ao interior do movimento sanitrio e suas relaes
com os partidos.
Identificar se os partidos contriburam para o movimento de Reforma Sanitria
Brasileira e analisar as formas que essa influncia ou contribuio, assumiu.
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19
2. REFERENCIAL TERICO E ESTRATGIA DE PESQUISA
2.1. Renovada histria poltica e a sociologia reflexiva de Bourdieu
Ao longo do sculo XX, principalmente aps a fundao da revista Annales
d'Histoire conomique et Sociale11, em 1929, na Frana e a criao da VI Seo da cole
Pratique des Hautes tudes, tendo como presidente Lucien Febvre, em 1948, ocorreu uma
crtica historiografia do sculo XIX que elegia o poltico como fator predominante
(FERREIRA, 1992, p. 265). Essa nova tendncia passou a priorizar o aspecto econmico e
o cultural, alm de exercitar um dilogo com outras perspectivas como a sociolgica e
antropolgica, assim fortalecendo o intercmbio de conhecimentos entre as diversas reas
disciplinares. O estudo da dimenso poltica passou, por muito tempo, a ser associada com
a superada historiografia do sculo XIX, que no levava em considerao os aspectos mais
duradouros que, segundo essa nova corrente, seriam os mais decisivos. Por isso a Histria
poltica, foi deixada de lado pela Nova Histria.
Nos ltimos 25 anos, entretanto, ocorreu uma retomada da anlise do fenmeno
poltico, no como um retorno Histria Poltica do sculo XIX, descritiva e determinista,
mas uma histria que se beneficiou do enriquecimento de todas as geraes anteriores e
trouxe, no resta dvida, o poltico para frente do palco. (REMOND, 1994, p.13). Essa
histria no apenas destaca a importncia da dimenso poltica, assim como indica a
valorizao dos estudos dos problemas mais relevantes para o presente12. O estudo da
poltica partidria, assim como o estudo dos movimentos sociais, so alguns dos objetos
dessa renovada Histria Poltica.
Com efeito, Rmond est recuperando para a Histria Poltica, sua rea de
investigao, o que Bloch j defendia muito antes, ao destacar que A incompreenso do
presente nasce fatalmente da ignorncia do passado. Mas talvez no seja menos vo
esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente (BLOCH, 2001, p. 65).
No apenas o presente e passado esto interligados, ou como diz Bloch, interpenetram-se,
11 Fundada por Lucien Febvre e Marc Bloch, essa revista foi o smbolo de uma nova historiografia (forma de
escrever a histria), conhecida como Escola dos Annales. 12 Ren Rmond comenta sobre a importncia de superar o medo de pesquisar a histria mais recente. No
artigo Em defesa de uma histria abandonada de 1957, fez essas reflexes por ocasio do seu interesse pelo
estudo da Segunda Guerra Mundial. Ver tambm o texto Uma histria presente (REMOND, 2003, p.13-
37).
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mas so as perguntas do presente, que podem lanar luzes sobre o passado. Bloch ainda
mais claro quando trata da interpretao da histria, enfatizando que esta deve partir da
observao, anlise, e perguntas acerca do presente13.
Sendo fiel tradio da Nova Histria, no que se refere ao intercmbio disciplinar,
e da renovada Histria Poltica, que se coloca aberta ao enriquecimento e sofisticao de
seus estudos com contribuies de outras reas, para os estudos de histria poltica,
adotamos a sociologia reflexiva e gentica de Bourdieu como uma referncia terica
central, para realizao de um estudo scio histrico. Bourdieu considera a histria
fundamental para o estudo sociolgico de uma dada realidade observando que os limites
entre as disciplinas so artificiais. Esse autor desenvolve uma teoria original sobre as
prticas sociais, buscando realizar uma articulao dos determinantes estruturais com as
subjetividades dos agentes (BOURDIEU, 2011). Nessa perspectiva a contribuio
circunstancial de outros referenciais como os referenciais marxistas, na medida em que so
uteis, pode ser utilizada, ainda que buscando-se evitar contradies porventura existentes.
2.1.1 A sociologia reflexiva de Bourdieu
Wacquant talvez seja a pessoa mais adequada a perguntar sobre o legado de
Bourdieu, no apenas porque escreveu um texto exatamente sobre isso, mas porque
escreveu obras em parceria com Bourdieu. Sobre a teoria que Bourdieu props a sociologia
reflexiva, Wacquant resumiu assim a sntese que Bourdieu desenvolveu ao longo de sua
carreira:
Ele procedeu no sentido de combinar em sua prtica de pesquisa o racionalismo de
Bachelard e o materialismo de Marx com o interesse neokantiano de Durkheim pelas
formas simblicas, a viso agonstica14 de Weber sobre os Lebensordnungen15 em
competio com as fenomenologias de Husserl e Merleau-Ponty. O resultado foi um
quadro terico original, elaborado por meio de e para a produo de novos objetos de
pesquisa, objetivando desvendar a multifacetada dialtica das estruturas sociais e
mentais no processo de dominao (WACQUANT, 2002, p. 98-99).16
13 ... interpretar os raros documentos que nos permitem penetrar nessa brumosa gnese, para formular
corretamente os problemas, para at mesmo fazer uma idia (sic) deles, uma primeira condio teve que ser
cumprida: observar, analisar a paisagem de hoje. Pois apenas ela d as perspectivas de conjunto de que era
indispensvel partir. No, decerto, que se trate tendo imobilizado, de uma vez por todas, essa imagem
de imp-la, tal qual, a cada etapa do passado sucessivamente encontrado, da montante jusante (BLOCH,
2001, p.67). 14Agonstica: comportamento agonstico qualquer comportamento social relacionado luta a conflito. 15 Ordens de vida 16http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-44782002000200007&script=sci_arttext&tlng=en
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-44782002000200007&script=sci_arttext&tlng=en
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2.1.2 Conceitos fundamentais e sua articulao com a tese: Gnese, Habitus, Capital
simblico, Campos, Espao Social e Trajetria social.
No livro Razes prticas, Bourdieu fornece, no captulo 4, intitulado Espritos
de Estado: Gnese e estrutura do campo burocrtico, uma possvel pista que contribui
para compreender a sua construo terica.
Uma das contribuies de Bourdieu que na medida em que somos indivduos
nascidos no seio do Estado, ao pensarmos essa instituio reproduzimos vises
interiorizadas na relao que temos com essa instituio, vises essas naturalizadas. Por
isso, Bourdieu discute que um esforo inicial deve ser o de nos libertarmos dos nossos
pressupostos acerca do Estado, no intuito de minimizar esse risco, absolutamente inerente
do fato de sermos todos, indivduos formados na escola do Estado, o que inclui
especialmente, mas no se restringe, ao sistema educacional (BOURDIEU, 1996a, p.92).
Desse modo, Bourdieu buscou demonstrar como e porque a anlise da gnese foi
necessria na sua investigao sobre o Estado. Esse recuo histrico permite ao pesquisador
identificar as disputas iniciais que esto explicitadas na gnese e que depois, ao serem
institucionalizadas, so esquecidas.
Realizar essa distino, entre o consciente e no consciente, partindo de uma
realidade muito prxima, na qual muitas dos aspectos que formam as estruturas j foram
naturalizados pelo produto e desfecho das lutas ao interior dos campos sociais , para
Bourdieu, um risco demasiado grande. Especialmente por ele se preocupar, no apenas
com as estruturas objetivas, mas por se preocupar tambm com a subjetividade humana,
aspecto que o conceito de habitus busca articular. O conceito de habitus, central na sua
teoria das prticas, corresponde s disposies que orientam as prticas de cada campo,
permitindo a integrao entre as estruturas sociais e as estruturas mentais, que se
naturalizam e muitas vezes j esto naturalizadas no momento que o produtor de
conhecimento se debrua sobre seu objeto e que, por isso, mais difcil compreender, sem
recuar para um tempo onde as opes histricas ainda no tinham se institucionalizado, ao
mesmo tempo nas estruturas sociais e nas estruturas mentais, momento crucial, que seria
exatamente o momento da gnese.
Antecipando os resultados da anlise, e modificando a clebre frmula de Max
Weber (O Estado uma comunidade humana que reivindica com sucesso o
monoplio do uso legitimo da violncia fsica em um territrio determinado"), eu
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diria que o Estado um x (a ser determinado) que reivindica com sucesso o
monoplio do uso legitimo da violncia fsica e simblica em um territrio
determinado e sobre o conjunto da populao correspondente. Se o Estado pode
exercer uma violncia simblica porque ele se encarna tanto na objetividade,
sob a forma de estruturas e de mecanismos especficos, quanto na
"subjetividade" ou, se quisermos, nas mentes, sob a forma de estruturas
mentais, de esquemas de percepo e de pensamento. Dado que ela resultado
de um processo que a institui, ao mesmo tempo, nas estruturas sociais e nas
estruturas mentais adaptadas a essas estruturas, a instituio instituda faz com que
se esquea que resulta de uma longa srie de atos de instituio e apresenta-se com
toda a aparncia do natural.
Eis porque, sem dvida, no h instrumento de ruptura mais poderoso do que a
reconstruo da gnese: ao fazer com que ressurjam os conflitos e os
confrontos dos primeiros momentos e, concomitantemente, os possveis
exc1uidos, ela reatualiza a possibilidade de que houvesse sido (e de que seja) de
outro modo e, por meio dessa utopia pratica, recoloca em questo o possvel que se
concretizou entre todos os outros. Rompendo com a tentao de anlise da
essncia, mas sem renunciar inteno de distinguir invariantes, gostaria de propor
um modelo de emergncia do Estado, visando dar conta, de modo sistemtico, da
lgica propriamente histrica dos processos ao termo dos quais se instituiu isso que
chamamos de Estado (BOURDIEU, 1996a, p.97-98).
Para Bourdieu no h instrumento mais poderoso de ruptura do que o estudo da
gnese. A gnese permite ver os conflitos quando se operaram, sem o vu da naturalizao
que se processou posteriormente. Esse vu, essa nuvem que obscurece a viso, longe de
afetar apenas os agentes estudados, afeta o prprio produtor de conhecimento. Logo, o
estudo da gnese permite uma ruptura com o senso comum, com as perspectivas
naturalizadas, pelo produtor de conhecimento e permite que ele as estranhe, perceba o
momento histrico em que elas ainda no tinham sido naturalizadas e possa compreender
como ocorreu essa naturalizao. A histria, ento, o instrumento central que permite
isso. Bourdieu utiliza diversos exemplos, como a ortografia, que se apresenta como natural,
mas que foi um processo de conflitos em que o Estado foi o campo no qual as decises,
que formataram a escrita de uma forma e no de outra, foram sendo tomadas.
Em nosso trabalho a questo da gnese influencia dois dos nossos captulos.
Primeiro o captulo A relao entre movimentos e partidos polticos, no qual retornamos
ao debate entre Lenin e Rosa Luxemburgo, retomando a disputa entre uma concepo de
direo consciente do partido, defendida por Lenin, e de espontaneidade do movimento,
defendida por Luxemburgo, com parte das nuances desse debate, que emergiu no perodo
pr-revolucionrio (Revoluo Russa). Esse momento, de emergncia do debate marxista
acerca da relao entre partido poltico revolucionrio e o movimento de massa,
duplamente importante. Primeiro, pois permite que busquemos qual era a grande questo
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em debate, qual o grande conflito referente a esta relao, antes que ela fosse naturalizada,
como adverte Bourdieu, e em segundo lugar, porque o movimento sanitrio se insere no
espectro poltico da esquerda, sendo, portanto influenciado pelo marxismo, fazendo parte
de nossas hipteses, aps a reviso bibliogrfica e explorao do campo, que o papel dos
partidos comunistas seria o aspecto central de nossa investigao, e esses so devedores da
tradio marxista da qual fazem parte Lenin e Rosa Luxemburgo.
Outro capitulo influenciado pelas anlises de Bourdieu acerca da gnese o
capitulo A emergncia da Reforma Sanitria Brasileira e as relaes com os partidos
polticos. Ainda que a gnese da RSB no tenha sido objeto de estudo sistemtico
procurou-se apreender as relaes entre partidos e movimento nesse perodo, deciso
motivada pelo nosso referencial terico. Nesse capitulo examinamos brevemente as
condies histricas de possibilidade da RSB, que foram objeto de outros estudos, embora
no com o mesmo enfoque, principalmente a fundao do CEBES (Centro Brasileiro de
Estudos em Sade), e sua revista Sade em Debate, entidade e revista, centrais na
militncia do movimento sanitrio. Nesse caso, entendamos que investigar as ideias
presentes na gnese da RSB, e examinar suas origens, poderia lanar luzes sobre a relao
entre movimento sanitrio e partidos polticos.
Outro conceito fundamental para a sociologia reflexiva o de habitus e Bourdieu
assim o expressou:
Uma das funes da noo de habitus a de dar conta da unidade de estilo que
vincula as prticas e os bens de um agente singular ou de uma classe de agentes
(como Balzac ou Flaubert sugerem atravs de descries do cenrio a penso
Vauquer em O pai Goriot ou os comes e bebes consumidos pelos diferentes
protagonistas de Educao sentimental -, que so uma maneira de evocar os
personagens que o habitam). O habitus esse principio gerador e unificador que
retraduz as caractersticas intrnsecas e relacionais de uma posio em um estilo de
vida unvoco, isto , em um conjunto unvoco de escolhas de pessoas, de bens, de
prticas (BOURDIEU, 1996a, p. 21-22).
Bourdieu acrescenta que os habitus so princpios geradores de prticas distintas e
distintivas e tambm esquemas de classificao. Em outras palavras os habitus adquiridos
por um operrio e um empresrio so distintos, em decorrncia das diferentes trajetrias
sociais bem como das diferentes posies que estes agentes ocupam no espao social.
Essas prticas distintas estabelecem o que bom ou ruim, entre o que distinto ou vulgar,
para cada agente ou classe de agentes.
Cada campo produz um tipo de habitus especifico, logo, o campo cientifico produz
um habitus cientifico. Se diminuirmos a escala, podemos perceber o habitus de uma
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determinada instituio, que tem um conjunto articulado de prticas, de escolhas, que
dentro dessa instituio, com o passar do tempo, se naturalizam, e que, tendem a deixar de
ser examinadas, tidas como auto evidentes, para os que fazem parte desse espao
(BOURDIEU, 1996a).
Entre as espcies de capital analisadas por Bourdieu est o Capital Simblico. Para
Bourdieu o capital simblico corresponderia transformao das diversas espcies de
capital em um capital de reconhecimento. Os agentes atribuem valor a uma propriedade
qualquer (capital cultural, social, econmico) e essa atribuio de valor influenciam nas
relaes entre eles. Para exemplificar, Bourdieu destaca a honra em sociedades
mediterrneas, uma forma tpica de capital simblico, que existe apenas mediante a
representao que outros fazem dela. Um conjunto de habitus em comum faz com que
identifiquem certas condutas como honrosas, outras como desonrosas, e isso influencia a
forma como que se relacionam17 (BOURDIEU, 1996a, p.107).
Para compreender os Campos, por sua vez, fundamental entender os agentes.
Nesse sentido Bourdieu trabalha com pesquisas empricas coordenadas por ele ou
realizadas por outros autores, fundamentando continuamente a importncia de testar
empiricamente hipteses tericas18. Bourdieu argumenta que o mesmo vale para o Estado,
ou seja, para compreender a dimenso simblica do efeito do Estado preciso ...
compreender o funcionamento especfico do microcosmo burocrtico; preciso analisar a
gnese e a estrutura desse universo de agentes do Estado, particularmente os juristas
(BOURDIEU, 1996a, p.121), pois esses se constituram na nobreza do Estado. Ou seja,
para compreender os campos, com seus habitus especficos, a constituio histrica do
campo, necessrio estudar os agentes que l atuam e relacionar suas posies com as
tomadas de posio. Alis, ao demonstrar que possvel compreender tanto o campo
religioso, como o campo burocrtico, atravs da anlise dos agentes de cada campo,
Bourdieu fornece um dos elementos essenciais para compreendermos o conceito de campo,
17 Para maiores detalhes, ver Poder Simblico (BOURDIEU,1989b). 18Weber lembra que, para compreender a religio, no basta estudar as formas simblicas de tipo religioso,
como Cassirer ou Durkheim, nem a estrutura imanente da mensagem religiosa, do corpus mitolgico ou dos
discursos, como os estruturalistas, ele se detm nos produtores da mensagem religiosa, nos interesses
especficos que os animam, nas estratgias que empregam em suas lutas (por exemplo, a excomunho). E
basta, ento, aplicar o modo de pensar estruturalista (que lhe estranho) no apenas aos sistemas simblicos,
ou melhor, ao espao de tomadas de posio simblicas (que no se reduz aos discursos) e tambm ao
sistema de agentes, que os produzem, ou melhor, ao espao de posies que eles ocupam (o que chamo, por
exemplo, de campo religioso) na concorrncia que sofrem, para termos os meios de compreender esses
sistemas simblicos tanto em sua funo quanto em sua estrutura e em sua gnese (BOURDIEU, 1996a,
p.120-121)
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que a presena de elementos universais, mesmo que cada campo tenha autonomia
relativa, e caractersticas especficas prprias. Bourdieu afirma, inclusive, que concluiu
isso aps o estudo emprico de campos diferentes (BOURDIEU, 1996b)
Sobre o conceito de campo, Bourdieu prope, baseado em diversos estudos de
microcosmos sociais com caractersticas semelhantes, que os campos se apresentam
apreenso sincrnica como espaos estruturados de posies (ou de postos) cujas
propriedades dependem das posies nestes espaos, podendo ser analisadas
independentemente das caractersticas de seus ocupantes (em parte determinadas por elas)
(BOURDIEU,1976, p.1). Argumenta que existem leis gerais dos campos, que os estudos
empricos so capazes de avanar a compreenso desses mecanismos gerais, ao mesmo
tempo em que cada campo tem propriedades especificas19. Com efeito, a anlise dos
campos implica em estudar os agentes, suas relaes, posies e tomadas de posio. As
posies so definidas pelas caractersticas dos agentes em dilogo com as estruturas em
que se desenvolvem (BOURDIEU, 1996b).
Ao mesmo tempo em que existem elementos que podem ser generalizados de um
campo para outro, Bourdieu adverte que existem elementos particulares de cada campo,
sendo a investigao histrica e emprica essencial para fazer essa apreenso. Assim, a
perspectiva da interseo dos campos colabora com nossa pesquisa na medida em que ao
estudar a trajetria dos agentes identificou-se que eles no estavam fixados, unicamente,
em um campo, mas ao contrrio, eles prprios circulavam pelos diversos campos,
cientfico, poltico, militante, entre outros.
Compreender como se deu essa interao, e que impacto teve sobre a relao entre
partidos polticos e movimentos sociais em sade, pode fornecer elementos para
compreenso da luta pela Reforma Sanitria Brasileira. Vale destacar que estudo anterior
indica que a RSB foi produzida ao interior do espao da Sade Coletiva por agentes com
inseres e trajetrias nos campos em disputa com o campo mdico (VIEIRA DA SILVA e
PINNEL, 2013).
19H leis gerais dos campos: campos to diferentes como o campo da poltica, o campo da filosofia, o campo
da religio, possuem leis de funcionamento invariantes ( isto que faz com que o projeto de uma teoria geral
no seja absurdo e que, desde j, seja possvel usar o que se aprende sobre o funcionamento de cada campo
particular para interrogar e interpretar outros campos, superando assim a antinomia mortal entre a monografia
idiogrfica e a teoria formal e vazia). Cada vez que se estuda um novo campo, seja o campo da filologia no
sculo XIX, da moda atual ou da religio da Idade Mdia, descobre-se propriedades especificas, prprias a
um campo particular, ao mesmo tempo em que se faz avanar o conhecimento dos mecanismos universais
dos campos que se especificam em funo de variveis secundrias (BOURDIEU,1976,p.1).
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Tambm importante para nosso estudo o conceito de Espao Social que, em
determinados momentos, Bourdieu utiliza como sinnimo de campo, mas que, quando
utiliza de forma diferenciada, pode ser til. De fato, o autor, discutindo que deve haver um
esforo de compreender as relaes entre estruturas e subjetividade e rompendo com o
pensamento substancialista que atribui a esta ltima propriedades intrnsecas atemporais,
considera que se trata em cada momento de cada sociedade, de um conjunto de posies
sociais, vinculado por uma relao de homologia a um conjunto de atividades (a prtica do
golfe ou do piano) ou de bens (uma segunda casa ou o quadro de um mestre), eles prprios
relacionalmente definidos (BOURDIEU, 1996a, p.18).
Alm de destacar a importncia da temporalidade, com em cada momento,
Bourdieu destaca que uma leitura adequada deve conter a relao entre as posies sociais
(conceito relacional), as disposies (ou os habitus) e as tomadas de posio, as "escolhas"
que os agentes sociais fazem nos domnios mais diferentes da prtica (BOURDIEU,
1996a, p.18). Nesse sentido necessrio articular as estruturas e a posio na estrutura,
com as disposies, uma dimenso predominantemente no-consciente, e por fim com as
prticas, com as aes dos sujeitos, que so influenciadas e condicionadas por ambas as
dimenses, e por isso, no so escolhas feitas com total autonomia dos agentes, mas
escolhas inscritas nas condies de possibilidade concretas em que estes se inserem.
Um dos conceitos centrais para a nossa anlise o conceito de Trajetria social, at
porque traamos a trajetria de 30 agentes cujos depoimentos utilizamos, e essas trajetrias
foram instrumentos utilizados a fim de melhor compreender seus pontos de vista. Bourdieu
diferencia biografia de trajetria social e explicita que os acontecimentos biogrficos
ganham valor quando vistos na relao com as estruturas, ou seja, nos campos, nas quais o
agente ocupou e ocupa.
Compreende-se por que a biografia construda no pode ser mais que o ltimo
momento da progresso cientifica: com efeito, a trajetria social que ela visa
reconstituir define-se como a serie das posies sucessivamente ocupadas por um
mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes em espaos sucessivos (a
mesma coisa valeria para uma instituio, da qual h apenas histria estrutural: a
iluso da constncia do nominal, consiste em ignorar que o valor social de posies
nominalmente inalteradas pode diferir nos diferentes momentos da histria prpria
do campo). E com relao aos estados correspondentes da estrutura do campo que
se determinam em cada momento o sentido e o valor social dos acontecimentos
biogrficos, entendidos como colocaes e deslocamentos nesse espao ou, mais
precisamente, nos estados sucessivos da estrutura da distribuio das diferentes
espcies de capital que esto em jogo no campo, capital econmico e capital
simblico como capital especifico de consagrao. Tentar compreender uma
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carreira ou urna vida como uma serie nica e em si suficiente de acontecimentos
sucessivos sem outro elo que no associao a um "sujeito" cuja constncia no
pode ser mais que a de um nome prprio socialmente reconhecido quase to
absurdo quanto tentar explicar um trajeto no metro sem levar em conta a estrutura
da rede, isto e, a matriz das relaes objetivas entre as diferentes estacoes
(BOURDIEU. 1996b, p.296)
Ainda sobre trajetria social ele destaca os galhos mortos (BOURDIEU. 1996b,
292), ou seja, as possibilidades que no se materializaram. Assim, alm da relao com as
disposies que vem dos habitus, algo que sinaliza que as aes dos agentes no podem ser
explicadas apenas no plano consciente, mas existem disposies no conscientes que,
adquiridas nas relaes sociais, se manifestam em tomadas de posio ao longo da vida, ele
chama a ateno para que toda tomada de posio exclui possibilidades. Vejamos como ele
complementa o conceito de trajetria social:
Toda trajetria social deve ser compreendida como uma maneira singular de
percorrer o espao social, onde se exprimem as disposies do habitus; cada
deslocamento para uma nova posio, enquanto implica a excluso de um conjunto
mais ou menos vasto de posies substituveis e, com isso, um fechamento
irreversvel do leque dos possveis inicialmente compatveis, marca uma etapa de
envelhecimento social que se poderia medir pelo nmero dessas alternativas
decisivas, bifurcaes da arvore com incontveis galhos mortos que representa a
histria de uma vida (BOURDIEU. 1996b, p.296)
Os conceitos de Habitus, Campos, as diversas espcies de Capital (cientfico,
poltico, burocrtico e militante20), Espao Social e Trajetria social so fundamentais para
o desenvolvimento da anlise apresentada no capitulo 4 e seguintes. Utilizamos esses
conceitos para diferenciar os diferentes tipos de capitais, sabendo que na realidade muitas
vezes essa separao nem sempre to clara, o campo burocrtico, o campo cientfico, o
campo militante, e o campo poltico partidrio. Cada um com seu capital correspondente, e
habitus especficos do campo. Com isso, buscamos articular sujeitos e estruturas, seguindo
a indicao explicitada por Bourdieu, em O Senso Prtico:
Basta ignorar a dialtica das estruturas objetivas e das estruturas incorporadas que
se opera em cada ao prtica para se enclausurar na alternativa cannica que,
renascendo incessantemente sob novas formas na histria do pensamento social,
destina aqueles que pretendem tomar o caminho inverso ao do subjetivismo, como
fazem hoje os leitores estruturalistas de Marx, a cair no fetichismo das leis sociais:
converter em entidades transcendentes, que esto nas prticas na relao da
essncia com a existncia, as construes as quais a cincia deve recorrer para
explicar conjuntos estruturados e sensatos que o acumulo de inmeras aes
20 Para capital militante utilizamos a mesma formulao de Garrido (2013). Para quem O capital militante cobre um conjunto de saberes e prticas mobilizados durante as aes coletivas, as lutas inter ou intra
partidrias, incorporado sob a forma de tcnicas, de disposies de agir, intervir ou simplesmente obedecer
(GARRIRO,2013, p.37). Podendo em algumas circunstancias se converter em capital poltico.
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histricas produz, significa reduzir a histria a um processo sem sujeito e
substituir simplesmente o sujeito criador do subjetivismo por um autnomo
subjugado pelas leis mortas de uma histria da natureza. Essa viso emanatista que
faz da estrutura, Capital ou Modo de produo, uma entelquia (finalidade interior)
que se desenvolve a si mesma em um processo de auto-realizao, reduz os agentes
histricos ao papel de suportes (Trager) da estrutura e suas aes a simples
manifestaes epifenomenais do poder que pertence a estrutura de se desenvolver
segundo suas prprias leis e de determinar ou sobre determinar outras estruturas
(BOURDIEU, 2009, p. 68-69).
Finalmente, para interpretar as razes da ao dos agentes sociais, levamos em
conta as indicaes de Bourdieu, especialmente sua teoria da ao, explicitada claramente
no texto a seguir:
A teoria da ao que proponho (com a noo de habitus) implica em dizer que a
maior parte das aes humanas tem por base algo diferente da inteno, isto ,
disposies adquiridas que fazem com que a ao possa e deva ser interpretada
como orientada em direo a tal ou qual fim, sem que se possa, entretanto, dizer
que ela tenha por princpio a busca consciente desse objetivo ( ai que o tudo
ocorre como se muito importante). O melhor exemplo de disposio , sem
dvida, o sentido do jogo: o jogador, tendo interiorizado profundamente as
regularidades de um jogo, faz o que faz no momento em que preciso faz-lo, sem
ter a necessidade de colocar explicitamente como finalidade o que deve fazer. Ele
no tem a necessidade de saber conscientemente o que faz para faz-lo, e menos
ainda de se perguntar explicitamente (a no ser em algumas situaes crticas) o
que os outros podem fazer em resposta, como faz crer a viso do jogo de xadrez ou
de bridge que alguns economistas (especialmente quando aderem teoria dos
jogos) atribuem aos agentes (BOURDIEU, 1996a, p.164).
Depois de destacar os riscos do silncio acerca das condies econmicas e sociais
dos sujeitos analisados para estudos polticos e, com isso, conferindo fundamental
importncia a se levar em conta essas condies, Bourdieu aponta que:
Seria um erro subestimar a autonomia e eficcia especifica de tudo que acontece no
campo poltico e reduzir a histria propriamente poltica a uma espcie de
manifestao epifenomnica das foras econmicas e sociais de que os atores
polticos seriam, de certo modo, os tteres (BOURDIEU, 1989, p.175).
Nem tteres totalmente determinados, nem seres imunes aos condicionantes
econmicos e sociais. Essa a caracterstica central da forma como interpretamos a ao
humana. O ser humano tem um grau de autonomia, mas essa no existe no vcuo, ele
condicionado pelo contexto em que vive, ou como escreveu Marx: Os homens fazem sua
prpria histria, mas no a fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua
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escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo
passado 21.
2.2 Partido Poltico e Movimento Sociais: discusso dos conceitos
Adotando a concepo de que a teoria como uma caixa de ferramentas22 para o
cientista e nem sempre a mais adequada necessariamente se encontra no seu referencial
central para explicar e compreender a realidade, buscamos, em outros autores, no
necessariamente marxistas, nem bourdiesianos, alguns conceitos que, longe de substituir o
referencial terico central, agregam elementos complementares, e por isso foram
destacados na discusso terica, continuamente dialogando com nosso referencial central,
buscando evitar contradies.
Levando adiante essa viso acerca da teoria enquanto uma ferramenta que deve ser
adequada ao que estamos estudando, discutimos primeiro o conceito de movimentos
sociais, a partir da sistematizao feita por Gohn (1997). Essa autora realiza uma reviso
das teorias e formas de se estudar os movimentos sociais, tomando como ponto de partida a
noo de que os movimentos sociais se referem ao dos homens na histria e esta ao
envolve um fazer, por meio de um conjunto de procedimentos, e um pensar, por meio de
um conjunto de ideias, que motiva ou fornece fundamentos a essas aes, concluindo que
se trata de uma prxis. Outra observao da autora que os movimentos no tm um curso
necessariamente etapista-evolucionista, mas ao contrrio, a luta social dos movimentos tem
um carter dinmico de fluxos e refluxos, de modo que mesmo que seja possvel separar o
curso de um movimento em momentos, no se deve ter em relao a esses uma viso
teleolgica de que caminham para um final pr-definido.
Segundo a autora, os movimentos sociais so um dos meios utilizados em processos
de mudana e transformao sociais, em cuja anlise importante a noo de fora social,
sintetizada em uma demanda, ou uma ideia-chave, formulada por um ou alguns sujeitos e
apropriada por um grupo, de modo a se tornar um eixo norteador e estruturador da luta
21 MARX, Karl, 18 de Brumrio de Lus Bonaparte. Acessado em 05/09/2011 http://www.histedbr.fae.unicamp.br/acer_fontes/acer_marx/tme_02.pdf 22 Essa expresso Deleuze utilizou para descrever a funo da teoria para o pesquisador em uma conversa
com Foucault, posteriormente convertida em um captulo do livro Estratgia, Poder-Saber, intitulado Os
intelectuais e o poder. Nessa conversa Deleuze lembrou Proust, que comparou seus livros a lentes para
entender a realidade, comentando que se estas no servem, deve-se buscar outras (FOUCAULT, 2010 [1972],
p.39).
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social desse grupo (GOHN, 1997, p.247-248). Observao que encontra muita identidade
com a ideia da RSB, que surge como uma ideia de militantes do setor sade, engajados em
entidades como CEBES e ABRASCO.
Sobre a categoria luta social, Gohn, deixa evidente que se trata de uma categoria
mais abrangente que classe social. As classes sociais23 so uma das formas de agrupar as
aes dos homens na histria, mas no a nica. Por isso, a autora desenvolve a categoria
dos atores, utilizada enquanto categoria de anlise (GOHN, 1997) recorrendo a Thompson,
historiador marxista, para deixar mais evidente, que um conceito se transforma ao longo do
tempo, podendo-se estudar como so criados e uma noo seria um esforo sinttico para
produzir uma ideia que se desenvolve pela contradio e superao.
Cabe ressaltar que essa noo de atores24, em Gohn contraditria com o conceito
de agente em Bourdieu, ainda que em ambos os casos o esforo seja, ao menos em parte,
no reduzir os indivduos sua classe social. A contradio que a noo de ator
implica a teoria da ao racional, do clculo estratgico enquanto agente das prticas no,
implicando que muitas aes sociais, longe de ser fruto de uma ao racional, so fruto de
disposies no conscientes. Por isso preferimos, por coerncia, utilizar o conceito
bourdiesiano de agentes, para caracterizar os indivduos que desenvolvem a ao social.
O estudo de Gohn fornece elementos para justificar a utilizao de um referencial
que busca compreender a subjetividades dos indivduos, ao destacar que:
... a apreenso da maioria dos fenmenos sociais envolvidos nos chamados novos
movimentos sociais abrange dimenses subjetivas da ao social, relativas ao
sistema de valores dos grupos sociais, no compreensveis para analise luz apenas
das explicaes macroobjetivas, como usualmente tratada a questo das carncias
econmicas. Trata-se de carncias de outra ordem, morais, ou radicais, no dizer que
Heller (1981). A amalgama das aes que ocorrem nesse plano de ordem
subjetiva, expressa pelo sentimento e por aes de solidariedade (GOHN, 1997, p.
249).
A autora sintetiza seu conceito de movimentos sociais, qual seja:
Movimentos sociais so aes sociopolticas construdas por atores sociais
coletivos pertencentes a diferentes classes e camadas sociais, articuladas em certos
cenrios da conjuntura socioeconmica e poltica de um pas, criando um campo
poltico de fora social na sociedade civil. As aes se estruturam a partir de
repertrios criados sobre temas e problemas em conflitos, litgios e disputas
vivenciados pelo grupo na sociedade. As aes desenvolvem um processo social e
poltico-cultural que cria uma identidade coletiva para o movimento, a partir dos
23 As classes se referem a agentes enquanto produtores e reprodutores socioeconmicos. 24 A noo de ator remete a ideia que a vida social seria um palco pois atores encenam algo. Por outro lado
agente, usado tanto por Weber como Bourdieu remete a ao social.
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interesses em comum. Esta identidade amalgamada pela fora do princpio da
solidariedade e construda a partir da base referencial de valores culturais e
polticos compartilhados pelo grupo, em espaos coletivos no-institucionalizados.
Os movimentos geram uma srie de inovaes nas esferas pblicas (estatal e no
estatal) e privada; participam direta ou indiretamente da luta poltica de um pas, e
contribuem para o desenvolvimento e a transformao da sociedade civil e poltica.
Estas contribuies so observadas quando se realizam analises de perodos de
mdia ou longa durao histrica, nos quais se observam os ciclos de protestos
delineados. Os movimentos participam (sic), portanto da mudana social histrica
de um pas e o carter das transformaes geradas poder ser um tanto progressista
como conservador ou reacionrio, dependendo das foras sociopolticas a que esto
articulados, em suas densas redes; e dos projetos polticos que constroem com suas
aes. Eles tm como base de suporte entidades e organizaes da sociedade civil e
poltica com agendas de atuao construdas ao reder de demandas
socioeconmicas ou poltico-culturais que abrangem as problemticas conflituosas
da sociedade onde atuam (GOHN, 1997, p.151-152).
Esse conceito tem problemas para o nosso estudo, pois indica que o movimento
compartilha esses valores em espaos no-institucionalizados. Pensamos que entidades da
sociedade civil, ainda mais uma entidade nacional como o CEBES, uma entidade da
sociedade civil organizada, e tem caractersticas de uma instituio.
Encontramos o conceito de movimentos sociais tambm em Charles Tilly, para
quem:
Um movimento social consiste em um desafio sustentado aos detentores do poder
em nome da populao vivendo sob a jurisdio desses detentores do poder atravs
de repetidas demonstraes pblicas dos nmeros da populao em
comprometimento, unidade e valor. Um movimento social incorpora interao
contenciosa; ele envolve reivindicao mtua de demandas entre os desafiantes e
os detentores de poder (TILLY,1993-1994, p.7, traduo nossa)25.
Tilly segue defendendo que esse conceito exclui outras formas de luta, como guerra
civil, competio eleitoral e insurreies26. Embora ativistas, s vezes realizem aes
diretas contra as autoridades, em geral, a ao dos movimentos sociais centra-se em formas
indiretas de ao, pressionando os detentores do poder em realizar aes que respondam s
suas demandas.
Bobbio, por sua vez, indica que os movimentos sociais constituem tentativas,
fundadas num conjunto de valores comuns, destinadas a definir as formas de ao social e
a influir nos seus resultados (BOBBIO, 1991, p.787). Vale destacar que alm de influir,
25 Social Movements as Historically Specific Clusters of Political Performances
Charles Tilly, Berkeley Journal of Sociology ,Vol. 38 (1993-1994), pp. 1-30.Published by: Regents of the
University of California Stable URL: http://www.jstor.org/stable/41035464 26 Vale distinguir movimentos reivindicatrios (sindical, por questes especficas), dos polticos: Diretas J.
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os membros de um movimento social podem, ao inserir-se na estrutura do Estado, produzir
resultados.
Bobbio busca sintetizar um conceito a partir de diferentes tradies de forma a no
comprometer a anlise nem esquecer as diferenas entre as tradies. Essa sntese indica
que perceber quais os valores comuns, o que em nosso referencial se chamaria habitus em
comum, ou seja, a incorporao de valores e percepes nas prticas, e acrescentaramos,
as divergncias internas, podem ajudar a entender melhor o que leva os agentes a se
vincularem aos movimentos, para assim compreender as razes para suas aes sociais.
Nessa perspectiva, entendemos que o movimento sanitrio, que defende a Reforma
Sanitria Brasileira, se formou justamente por agregar um conjunto de agentes com valores
em comum, que buscaram influenciar e produzir uma reforma democrtica do Estado
Brasileiro, e uma reforma do sistema de sade, de forma que fosse universalizado o direito
a sade. Assim sendo, o conceito sintetizado por Bobbio coerente com nosso referencial
terico, e se adequa ao movimento que investigamos, assim como o de Tilly, porm o de
Gohn, pelas contradies apontadas, decidimos no utilizar.
J o conceito de partido poltico, encontramos em Weber, para quem:
A ao social tpica dos "partidos", em oposio quela das "classes" e dos
"estamentos" que no apresentam necessariamente este aspecto, implica sempre a
existncia de uma relao associativa, pois pretende alcanar, de maneira
planejada, determinado fim seja este de natureza "objetiva": imposio de um
programa por motivos ideais ou materiais, seja de natureza "pessoal": prebendas,
poder e, como consequncia deste, honra para seus lderes e partidrios, ou, o que
o normal, pretende conseguir tudo isto em conjunto (WEBER, 1999, p.185).
Vale a ressalva que mesmo entendendo que os partidos implicam em uma relao
associativa para alcanar um objetivo de maneira planejada, como Weber aponta, isso no
significa que os agentes que constituem o partido realizam todas as suas aes de maneira
consciente e planejada. Ao contrrio, muitas das suas aes so guiadas pelos habitus,
como indica Bourdieu, como um processo de incorporao no conscientes das estruturas.
Porm, isso no implica em uma postura passiva dos agentes. De fato, refletindo sobre a
dimenso criadora da gramtica de Chomsky (Generative grammer), Bourdieu aponta que
queria colocar em evidncia as capacidades ativas, inventivas, criadoras, do habitus e
do agente (que o termo hbito no exprime). . Com efeito, o processo de incorporao no
consciente, que seu caminho para sair da filosofia da conscincia, no pode anular o
agente em sua verdade de operador prtico de construes do real (BOURDIEU, 1996b,
p.205-206).
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Nossa inferncia que os agentes passam por um processo de incorporao no
consciente, porm, sua ao, ativa, inventiva, tem efeitos sobre esse processo, e
dependendo do capital do agente, ou do conjunto de agentes, podem gerar novos habitus, a
depender das disputas nos campos. Dessa forma o habitus tem uma dimenso no apenas
condicionante, mas ativa e dinmica na sua relao com os agentes, que se modifica ao
longo do tempo.
Ainda sobre o conceito de partido poltico duplamente relevante lembrar-se da
contribuio de Gramsci. Para esse:
O moderno prncipe, o mito-prncipe, no pode ser uma pessoa real, um indivduo
concreto, s pode ser um organismo, um elemento complexo de sociedade no qual j
tenha se iniciado a concretizao de uma vontade coletiva reconhecida e
fundamentada parcialmente na ao. Este organismo j determinado pelo
desenvolvimento histrico, o partido poltico: a primeira clula na qual se
aglomeram germes de vontade coletiva que tendem a se tornas universais e totais
(GRAMSCI, 1978, p.6).
duplamente relevante, por um lado porque a elaborao de Gramsci acerca do
partido revolucionrio de novo tipo, foi uma influncia relevante para parte dos agentes
que militaram a favor da RSB, como veremos no capitulo 5. O referencial gramsciano mais
amplo certamente influenciou agentes, principalmente aqueles vinculados ao PCB, mesmo
que alguns dos partidos de matriz marxista se baseassem na leitura das obras de Stalin e
Lenin. Por outro lado, importante compreender que, para Gramsci, a vontade coletiva
nem existe de forma inteiramente latente, nem uma criao totalmente original do partido
revolucionrio27. O partido revolucionrio cria o novo, uma vontade coletiva dirigida
pela classe operria nacional-popular28 em condies que permitem o desenvolvimento
dessa vontade coletiva. Gramsci destaca como condio fundamental para esse
desenvolvimento a existncia de um grupo social jacobino eficiente29, e a ausncia desse
27 possvel pensar em uma contradio com Bourdieu. J que considerar o prncipe como o partido
corresponde a fetichizar as estruturas. Transformar uma instituio em sujeito. Tambm, o partido como
representante da classe operria corresponde a incorporar as classes sociais como categoria analtica central,
e se ela fundamental em anlise de conjuntura, nessa investigao no utilizamos esse conceito. Entretanto,
pode-se entender que Gramsci fez uma metfora, e falava mais do papel do partido como podendo ser anlogo ao do prncipe, sendo o sujeito coletivo que poderia agora em nova conjuntura construir uma nova
hegemonia, da a ideia do Moderno Prncipe. 28 Nacional-popular entendido como a aliana entre burguesia nacional e as classes subalternas, uma
estratgia de alguns partidos marxistas. 29 Esse grupo social jacobino, ou fora social, como chama Gramsci, seria o setor mais progressista que iria
organizar a vontade coletiva nacional-popular. As condies mais adequadas para seu surgimento seriam nos
grupos sociais urbanos, que alcanaram certo nvel de desenvolvimento de cultura histrico-poltica. Porm,
Gramsci destaca que a formao de uma vontade nacional-popular no possvel sem a participao das
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grupo seria a principal razo de fracassos na tentativa de criar uma vontade coletiva
nacional-popular e por consequncia fundar um novo tipo de Estado (GRAMSCI, 1978.
p.7-9 e p.21-22).
Nesse sentido, vontade coletiva no implica em uma unidade total nem no partido30
nem na sociedade, mas um processo dinmico que tornaria possvel, em determinadas
condies, que o partido poltico revolucionrio, na categoria de prncipe moderno, seja o
protagonista e o organizador de uma reforma intelectual e moral, o que significa criar o
terreno para o desenvolvimento ulterior da vontade coletiva nacional-popular no sentido de
alcanar uma forma superior e total de civilizao moderna (GRAMSCI, 1978, p.8-9). A
contradio entre campo do poder em Bourdieu e classe dominante31 (Burguesia) vontade
coletiva em Gramsci no existe, pois tratam de coisas distintas. Haveria contradio se a
noo de vontade coletiva em Gramsci implicasse em uma unidade latente na sociedade,
ignorando as contradies e disputas existentes nessa, mas como se trata de uma criao
em condies histricas favorveis, o confronto com as classes tradicionais e dominantes
est presente.
Gramsci deixa claro esse confronto ao discorrer sobre o esforo das classes
tradicionais32 para impedir a formao de uma vontade coletiva deste gnero, para manter
o poder econmico-corporativo num sistema internacional de equilbrio passivo
(GRAMSCI, 1978, p.8). Bourdieu analisa a forma atravs da qual os dominantes
reproduzem seu poder, indicando que as grandes escolas no apenas garantem essa
reproduo favorecendo que seus filhos ascendam a posies de poder, mas que existe uma
homologia estrutural33 entre as grandes escolas e o campo de poder 34 sendo a principal
funo das grandes escolas reproduzem uma estrutura um sistema de diferenas e
grandes massas na vida poltica, em seu exemplo, que falava da superao da sociedade feudal, era a massa
dos camponeses cultivadores (GRAMSCI, 1978. p.7-9). 30 Vale destacar que Gramsci incorpora a ideia do partido de novo tipo como vanguarda do movimento
revolucionrio ao menos no incio quando os nveis de educao poltica so muito distintos, porm isso no
se ope a ideia de partido de massas, j que a ideia era educar as massas de forma a constituir uma ampla
vanguarda operria (DEL ROIO, 2006). 31 Vale destacar que h contradio entre o conceito de campo do poder que Bourdieu prope como
alternativa a classe dominante. No caso de Gramsci seriam as classes tradicionais. Recorremos a Gramsci,
apesar dessas contradies, por entender que o seu referencial, embora no oriente essa investigao,
orientou boa parte da reflexo da esquerda durante o perodo que investigamos, logo refletir sobre sua
contribuio fornece bases para o exame do emprico 32 As classes tradicionais so os grupos sociais que se opem a mudana, se opem a revoluo. Na Itlia,
Gramsci se referia aristocracia latifundiria, como exemplo dessas classes tradicionais que se opem tanto a
revoluo burguesa, como revoluo proletria. 33 Bourdieu indica uma semelhana entre diferentes estruturas, haveria propriedades em comum. 34 O campo do poder o local dos dominantes de todos os campos que lutam pelo controle do Estado.
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distncias, resolvendo outro problema com que se confrontam as elites, qual seja, a
administrao de suas divises internas (BOURDIEU, 1993, p.19). Ambos destacam o
esforo conservador dos dominantes. Gramsci estava refletindo em como enfrentar esses
desafios no sentido de transformar a realidade, j a preocupao central de Bourdieu
desenvolver uma forma de melhor compreender essas disputas. Em ambos existe a
percepo das disputas e da ausncia de uma unidade homognea.
Bourdieu, no entanto, destaca uma diferena importante do seu pensamento com o
pensamento marxista e com o pensamento funcionalista. Ele indica que enquanto marxistas
desenvolvem teorias sobre a classe dominante e os funcionalistas sobre as elites, existe
uma semelhana entre estas teorias que, segundo ele, deveria ser excluda da cincia social.
Ambas estudam populao de agentes que ocupam posies de poder e no estruturas de
poder. Bourdieu deixa claro que impossvel compreender as estruturas sem estudar os
indivduos. Mas que o objeto de anlise deve ser no os indivduos, nem uma classe de
indivduos, nem as instituies que eles pertencem, mas o espao de posies que pode ser
caracterizado pelas suas propriedades (BOURDIEU, 1993, p.21).
Retomando a questo do partido, Gramsci, ao refletir sobre como escrever a histria
de um partido faz observaes especialmente teis e convergentes com uma anlise
complexa das estruturas e sua relao com os indivduos que formam o grupo social do
partido, quais sejam:
Mas, ser esta massa constituda apenas pelos adeptos do partido? Ser suficiente
acompanhar congressos, as votaes, etc., isto , todo o conjunto de atividades e de
modos de existir atravs dos quais uma massa de partido manifesta sua vontade?
Evidentemente, ser necessrio levar em conta o grupo social do qual o partido
expresso e setor mais avanado. Logo, a histria de um partido no poder deixar
de ser a histria de um determinado grupo social. Mas esse grupo social no
isolado: tem amigos, afins, adversrios, inimigos. S do quadro complexo de todo
o conjunto social e estatal (e frequentemente com interferncias internacionais)
resultara a histria de um determinado partido. Assim, pode-se dizer que escrever a
histria de um partido significa exatamente escrever a histria geral de um pas, de
um ponto de vista monogrfico, destacando um seu aspecto caracterstico. Um
partido ter maior ou menor significado e peso na medida em que a sua atividade
particular pese mais ou menos na determinao da histria de um pas (GRAMSCI,
1978, p.24-25).
Embora destaque a importncia do grupo social do qual o partido expresso,
Gramsci aponta a complexa relao desse grupo com seus amigos (rea de influncia) e
seus adversrios, assim como sua relao com conjunto social, estatal e at de interferncia
internacional, algo que no caso da ditadura militar brasileira, que contava com apoio dos
EUA, especialmente relevante. Essa perspectiva de anlise leva em conta o grupo social,
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mas no v o partido isoladamente, e sim dentro de uma rede complexa de relaes.
Consideramos que essa perspectiva no contraditria com a proposta de Bourdieu na
medida em que iremos focalizar, no nos partidos, mas na relao entre partidos e
movimentos sociais em sade pelo prisma da dinmica dos campos sociais que so
relativamente autnomos, sendo o campo poltico um campo social como os demais (o
cientifico, o burocrtico, o cultural) com habitus em comum especficos do campo.
Nessa perspectiva, na anlise dos dados foi interrogada a diviso social do trabalho
poltico no interior dos movimentos e do partido bem como seus determinantes sociais, a
serem compreendidos por meio das trajetrias dos agentes, seguindo pistas fornecidas por
Bourdieu. Assim, a articulao entre a trajetria dos agentes e a anlise das condies
histricas de possibilidade em que viviam foi considerada o instrumento que per