espécies de partidos políticos: uma nova tipologia1

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Artigo Paraná Eleitoral v. 4 n. 1 p. 7-51 Espécies de partidos políticos: uma nova tipologia 1 Richard Gunther Larry Diamond Resumo Embora a literatura específica já inclua um grande número de tipologias de partidos, é cada vez mais difícil dar conta da grande diversidade de tipos de partido político surgidos em todo o mundo nas últimas décadas, especialmente porque a maioria das tipologias baseou-se em partidos da Europa Ocidental, já existentes entre o final do século XIX e a metade do século XX. Alguns novos tipos evoluíram, mas de maneira fortuita e com base em critérios muito variáveis e frequentemente inconsistentes. Este artigo é uma tentativa de encaixar muitas das concepções de partido comumen- te utilizadas em uma estrutura coerente e de delinear novos tipos de agremiação partidária sempre que os modelos existentes se mostrarem incapazes de apreender aspectos importantes das legendas contemporâneas. De acordo com seu “gênero”, classificamos cada uma das 15 “espécies” de partido com base em três critérios: 1) a natureza da organização partidária (forte/fraca, elitista ou de massa, etc.); 2) a orien- tação programática do partido (ideológica ou particularista-clientelista, etc.); e 3) o caráter tolerante e pluralista (ou democrático) versus o proto-hegemônico (ou antis- sistema). Embora falte parcimônia nesta tipologia, acreditamos que ela indique com maior precisão a diversidade de partidos existentes no mundo democrático contem- porâneo, sendo mais adequada ao teste de hipóteses e à construção de teorias do que outras. Palavras-chave: Organização partidária; Programas de partido; Sistemas partidários; Tipos de partido. Sobre os autores Larry Diamond é colaborador sênior na Hoover Institution, coeditor do Journal of Democracy e coeditor do Fórum Internacional de Estudos sobre a Democracia do National Edowment for Democracy. E-mail: [email protected] Richard Gunther é professor de Ciência Política na Ohio State University. E-mail: [email protected] 1. Artigo originalmente publicado em Party Politics, vol. 09, n. 02, pp. 167-199. Tradução de Cristiane Yagasaki e revisão técnica de Bruno Bolognesi.

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Partidos Políticos e Sistemas Partidários

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  • Artigo Paran Eleitoral v. 4 n. 1 p. 7-51

    Espcies de partidos polticos: uma nova tipologia1

    Richard Gunther Larry Diamond

    ResumoEmbora a literatura especfica j inclua um grande nmero de tipologias de partidos, cada vez mais difcil dar conta da grande diversidade de tipos de partido poltico surgidos em todo o mundo nas ltimas dcadas, especialmente porque a maioria das tipologias baseou-se em partidos da Europa Ocidental, j existentes entre o final do sculo XIX e a metade do sculo XX. Alguns novos tipos evoluram, mas de maneira fortuita e com base em critrios muito variveis e frequentemente inconsistentes. Este artigo uma tentativa de encaixar muitas das concepes de partido comumen-te utilizadas em uma estrutura coerente e de delinear novos tipos de agremiao partidria sempre que os modelos existentes se mostrarem incapazes de apreender aspectos importantes das legendas contemporneas. De acordo com seu gnero, classificamos cada uma das 15 espcies de partido com base em trs critrios: 1) a natureza da organizao partidria (forte/fraca, elitista ou de massa, etc.); 2) a orien-tao programtica do partido (ideolgica ou particularista-clientelista, etc.); e 3) o carter tolerante e pluralista (ou democrtico) versus o proto-hegemnico (ou antis-sistema). Embora falte parcimnia nesta tipologia, acreditamos que ela indique com maior preciso a diversidade de partidos existentes no mundo democrtico contem-porneo, sendo mais adequada ao teste de hipteses e construo de teorias do que outras.Palavras-chave: Organizao partidria; Programas de partido; Sistemas partidrios; Tipos de partido.

    Sobre os autores

    Larry Diamond colaborador snior na Hoover Institution, coeditor do Journal of Democracy e coeditor do Frum Internacional de Estudos sobre a Democracia do National Edowment for Democracy. E-mail: [email protected]

    Richard Gunther professor de Cincia Poltica na Ohio State University. E-mail: [email protected]

    1. Artigo originalmente publicado em Party Politics, vol. 09, n. 02, pp. 167-199. Traduo de Cristiane Yagasaki e reviso tcnica de Bruno Bolognesi.

  • 8 Richard Gunther e Larry Diamond: Espcies de partidos polticos.

    AbstractWhile the literature already includes a large number of party typologies, they are increasingly incapable of capturing the great diversity of party types that have emerged worldwide in recent decades, largely because most typologies were based upon West European parties as they existed in the late nineteenth through mid-twentieth centuries. Some new party types have been advanced, but in an ad hoc manner and on the basis of widely varying and often inconsistent criteria. This article is an effort to set many of the commonly used conceptions of parties into a coherent framework, and to delineate new party types whenever the existing models are incapable of capturing important aspects of contemporary parties. We classify each of 15 species of party into its proper genus on the basis of three criteria: (1) the nature of the partys organization (thick/thin, elite-based or mass-based, etc.); (2) the programmatic orientation of the party (ideological, particularistic-clientele-oriented, etc.); and (3) tolerant and pluralistic (or democratic) versus proto-hegemonic (or anti-system). While this typology lacks parsimony, we believe that it captures more accurately the diversity of the parties as they exist in the contemporary democratic world, and is more conducive to hypothesistesting and theory-building than others.Keywords: Party organization; Party programmes; Party systems; Party types.

    Artigo recebido em 20 de novembro de 2001; aceito para publicao em 25 de abril de 2002. [datas originais de publicao].

    Por quase um sculo, cientistas polticos desenvolveram tipologias e modelos de partido poltico numa tentativa de apreender as caracte-rsticas essenciais das organizaes partidrias, objeto de suas anli-ses. Por consequncia, a literatura atual rica, com vrias categorias de tipos de partido, algumas das quais adquiriram a condio de cls-sicas, sendo utilizadas h dcadas por acadmicos (ex., Duverger, 1954; Kirchheimer, 1966; Neumann, 1956). Acreditamos, contudo, que os modelos de partido existentes no do conta adequadamente da ampla variedade de tipos de legenda encontrados no mundo atual e que as vrias tipologias, baseadas numa multiplicidade de critrios de definio, no propiciaram uma construo terica cumulativa. Este artigo, portanto, uma tentativa de reavaliar as tipologias de partido poltico prevalecentes, sempre que possvel aproveitando os conceitos e a terminologia j bastante disseminados, em alguns casos consolidando e esclarecendo modelos partidrios e, em outros, definindo novos tipos. Isso se deve a vrias razes.

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  • Paran Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e cincia poltica 9

    Primeiramente, quase todas as tipologias existentes derivaram de estudos de partidos da Europa Ocidental ao longo dos ltimos 150 anos. Assim, parte de suas caractersticas definidoras produto desse contexto temporal e geogrfico especfico. Partidos surgidos mais recentemente, assim como aqueles que atuam em outras partes do mundo, foram substancialmente afetados por contextos sociais e tecnolgicos muito diferentes. Isso se verifica especialmente em organizaes partidrias de pases em desenvolvimento, cujas po-pulaes exibem uma considervel diversidade tnica, religiosa e/ou lingustica, caractersticas em que se basearam com muita frequncia os partidos competitivos. Verifica-se esse quadro at mesmo nos Estados Unidos, cujos dois partidos, marcadamente descentraliza-dos, dificilmente se encaixam na maioria das tipologias existentes (ver Beck, 1997).

    Do mesmo modo, muitos partidos surgidos no final do sculo XX tm caractersticas notrias que no podem ser apreendidas utilizando tipologias clssicas, desenvolvidas um sculo atrs. Neste ltimo perodo de desenvolvimento partidrio, a televiso (que no existia na poca em que as tipologias clssicas foram formuladas) tornou-se, sem dvida, o mais importante meio de comunicao poltica de candidatos e eleitores em quase todas as democracias modernas (ver Gunther e Mughan, 2000). Essa mdia privilegia sistematicamente as figuras pessoais das lideranas partidrias, em detrimento da apresentao de programas ou ideologias, ao mesmo tempo que reduz em muito a utilidade da filiao em massa como veculo de mobilizao eleitoral. Ainda no final do sculo XX, pes-quisas de opinio e grupos focais foram cada vez mais emprega-dos, facilitando a criao de uma publicidade eleitoral especfica, s custas dos princpios ideolgicos de longo prazo, compromissos programticos e interesses do eleitorado. Por fim, caractersticas fundamentais, concernentes cultura de massa e estrutura social, tambm foram profundamente alteradas no final do sculo XX: em muitos pases, a extrema desigualdade econmica e a alta relevncia poltica da clivagem de classe diminuram, enquanto novos conflitos polticos nascidos de valores ps-materialistas comearam a afetar as polticas partidrias.

    Com a ausncia de uma tipologia ampliada e atualizada sobre partidos polticos, o pequeno nmero de modelos que compem a maioria das tipologias comumente utilizadas leva a uma excessiva

  • 10 Richard Gunther e Larry Diamond: Espcies de partidos polticos.

    elasticidade do conceito. Categorias inadequadas foram apli-cadas a legendas partidrias recm-criadas cujas caractersticas diferem notadamente daquelas que formaram a definio original de modelo de partido. Na verdade, isso representa uma tentativa de encaixar quadrados em crculos. Tanto os estudos empricos quan-to as construes tericas podem ser enfraquecidas por hipteses infundadas de aspectos comuns (se no uniformes) de partidos que so, na verdade, bastante variados, e pela aplicao inapropriada de rtulos a partidos cujas caractersticas organizacional, ideolgica e estratgica diferem significantemente do prottipo original. O termo catch-all por exemplo, sofreu frequentemente esse tipo de abuso (ver Puhle, 2002), devido a sua condio de facto de categoria residual que aparenta ser mais flexvel e adaptvel s circunstncias contemporneas do que os primeiros modelos partidrios clssi-cos. Portanto, apesar de reconhecermos que muitas contribuies valiosas dos estudos empricos sobre as organizaes partidrias basearam-se nos modelos tradicionais da Europa Ocidental, acre-ditamos que o estudo dos partidos em outras regies do mundo, assim como tentativas de apreender melhor a dinmica das novas campanhas polticas das dcadas recentes (ver Pasquino, 2001), seria melhorado consideravelmente por meio de uma reavaliao e ampliao desses modelos.

    Um segundo problema das tipologias existentes refere-se ao fato de que, em geral, foram embasadas em uma grande variedade de critrios, e pouco ou nenhum esforo foi feito na tentativa de torn-los mais consistentes e compatveis entre si. Essas inconsistncias, assim como a falta de preciso na definio de certos tipos de partido, prejudicou a pesquisa nessa rea, reduzindo-a ao desenvolvimento cumulativo de teorias. Algumas tipologias partem de critrios fun-cionalistas, nos quais as agremiaes se diferenciam por uma raison dtre organizacional ou algum objetivo especfico buscado. Sigmund Neumann (1956), por exemplo, faz uma distino entre partidos de representao individual (que articulam as demandas de gru-pos sociais especficos) e partidos de integrao social (que tm organizaes bem desenvolvidas e fornecem vrios servios a seus membros, envolvendo-os em uma comunidade partidria, em troca de contribuies financeiras e servios voluntrios de membros durante as campanhas eleitorais). Na tipologia de Neumann, os partidos de integrao total tm objetivos mais ambiciosos de

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  • Paran Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e cincia poltica 11

    tomar o poder e transformar radicalmente as sociedades, exigindo o comprometimento total e a obedincia incondicional de seus filia-dos. Herbert Kitschelt (1989) diferencia os partidos que enfatizam a lgica da competio eleitoral daqueles (como o tipo libertrio de esquerda, que ele mesmo introduz) que insistem muito mais na lgica da representao eleitoral. Wolinetz (2002), por sua vez, faz distino entre partidos que privilegiam a arena eleitoral, propem polticas pblicas ou compem governos. J Katz e Mair (1995) desenvolvem uma lgica implicitamente funcionalista ao estabelecer o modelo do partido cartel, no qual o financiamento pblico dos partidos e o papel fundamental do Estado induziriam os lderes partidrios a conter a competio e buscar, principalmente, a perpetuao de si mesmos no poder a fim de beneficiarem-se desses novos recursos.

    Outros esquemas de classificao so organizacionais, distin-guindo partidos que possuem estruturas organizacionais enxutas daqueles que desenvolveram grandes infraestruturas e complexas redes de relacionamentos colaborativos com organizaes de apoio. A concepo mxima clssica, nesse sentido, foi feita por Maurice Duverger, que aperfeioou um esquema de duas categorias e meia, separando partidos de quadros (comumente liderados por indiv-duos de condio socioeconmica elevada) de partidos de massa (que mobilizam amplos segmentos do eleitorado por meio do desen-volvimento de uma vasta e complexa organizao), e mencionando tambm os partidos de devotos, mas dispensando-os por serem muito vagos para constituir uma categoria separada1. Herbert Kitschelt (1994) prope um sistema de classificao dividido em quatro partes, no qual distingue agremiaes centralistas, partidos de quadros leninistas, agremiaes descentralizadas e partidos descentralizados de massa. E Angelo Panebianco (1988), por sua vez, na articulao mais elaborada de uma tipologia organizacional, contrape partidos de massa burocrticos a partidos eleitorais profissionais.

    Alguns estudiosos de poltica partidria baseiam, implcita ou explicitamente, suas anlises na noo de que os partidos resultam

    1. Duverger (1954, p. 71). Acreditamos que esse seja um tipo de partido distinto (ao qual nos referiremos como o modelo de partido leninista), cujo conceito desenvolveremos mais adiante neste artigo.

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    de vrios grupos sociais cujos interesses devem estar representados por tais legendas. Essa orientao sociolgica caracteriza o estudo desenvolvido por Samuel Eldersveld (1964) e por Robert Michels (1915), como aponta Panebianco (1988, p. 3). Finalmente, h alguns destacados acadmicos que misturam indiscriminadamente esses trs grupos de critrio, como Otto Kirchheimer (1966), que prope quatro modelos partidrios: partidos burgueses de representao individual; partidos classistas de massa; partidos de massa denomi-nacionais; e partidos do tipo catch-all. No nos opomos noo de que muitos critrios diferentes podem ser utilizados para diferenciar os tipos de partido. De fato, utilizamos trs critrios como base para o nosso esquema integrativo. No entanto, acreditamos que o teste sistemtico de hipteses e a construo cumulativa de teorias foram prejudicados pela tendncia de proponentes das vrias tipologias de se referirem uma e outra desavisadamente2, sem avaliar de forma sistemtica as sobreposies e distines, nem tampouco mencionar os mritos relativos, dos vrios esquemas de classificao.3 Essa falta de consistncia conceitual e terminolgica contrasta fortemente com alguns subcampos da cincia poltica, como a literatura intimamente relacionada a sistemas partidrios, dentro da qual surgiu um claro consenso quanto ao significado (e at mesmo indicadores operacio-nais especficos) de tais conceitos centrais, como fragmentao, volatilidade e desproporcionalidade.

    Algumas dessas tipologias (mas certamente no todas) basearam-se na seleo de apenas um critrio como base de concepo (seja a estrutura organizacional, seja o principal objetivo organizacional, seja a base social de representao). Esse procedimento estreitou excessivamente o foco da anlise, ao passo que a grande diversidade de tipos de legendas no so estudadas sistematicamente. O que se ganha em termos de parcimnia perde-se em termos de habilidade para abarcar teoricamente as variaes significativas entre os parti-dos polticos no mundo. Alm disso, muitos estudos sobre esse tema so excessivamente dedutivos, sugerindo desde o princpio que um critrio em particular de suma importncia, sem sustentar que as

    2. A frase original do texto : to talk past one another. Essa expresso idiomtica se refere a duas pessoas que falam sobre coisas diferentes, contudo pensam que esto falando sobre o mesmo objeto ou assunto. N. R.

    3. Uma exceo Ware (1996), que fornece uma viso geral bastante sistemtica.

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    afirmaes devem ser feitas por meio de uma cuidadosa avaliao das evidncias pertinentes. Como resultado, alguns desses estudos foram alvo de argumentos reducionistas, nos quais se presume que muitas caractersticas estruturais e comportamentais dos partidos se devem a uma varivel privilegiada. Duverger (1954), por exemplo, apresenta uma tipologia baseada em organizao, embora tambm reconhea a grande importncia do vnculo de classe social exis-tente entre os partidos de quadros e a classe mdia e a classe alta, e entre os partidos de massa e a classe trabalhadora. Ele explica essa relao argumentando que essas formas de organizao so deter-minadas por vrios nveis de recursos e restries enfrentados pelos fundadores dos partidos em seus esforos para garantir os recursos necessrios para custear as atividades.

    Acreditamos, assim como Koole (1996), que essa uma tentativa prematura de construir teorias elaboradas com base em tipologias possivelmente inadequadas. Uma linha mais aberta e, em ltima anlise, produtiva de estudo emprico deve comear por um conjunto de tipos de partido teoricamente mais modesto, mas empiricamente mais abrangente e correto, que reflita de maneira mais condizente as variaes reais entre os partidos. Esse esforo particularmente necessrio ao incluir pases de fora da Europa Ocidental em uma anlise comparativa preliminar. Portanto, aumentaremos o nmero de tipos de partido, aproveitando sempre que possvel os modelos e terminologias previamente desenvolvidos por outros acadmicos e, ao mesmo tempo, estabelecendo uma certa ordem em alguns dos critrios mais comumente usados para definir as tipologias parti-drias. Especificamente, procuramos evitar a tentao comum de introduzir um novo tipo de partido em campos especficos, basean-do-nos apenas na concluso de que um caso particular no pode ser adequadamente explicado pelas tipologias existentes.

    Nossa tipologia de partidos fundamenta-se em trs critrios. O pri-meiro envolve a natureza da organizao formal do partido. Algumas agremiaes so enxutas em termos de organizao, enquanto outras desenvolvem extensas bases de filiados em massa com instituies parceiras ou de apoio, engajadas em distintas, porm relacionadas esferas sociais; algumas contam com redes particulares de interao ou intercmbio pessoal, enquanto outras so abertas e universais quanto atrao de simpatizantes e filiao; h ainda outras que contam fortemente, se no exclusivamente, com tcnicas modernas

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    de comunicao de massa e ignoram o desenvolvimento de canais primrios de comunicao, face a face, ou atravs de organizaes auxiliares. O segundo critrio classificatrio envolve a natureza dos compromissos programticos do partido. Alguns partidos tm posies programticas derivadas de ideologias bem articuladas e arraigadas em filosofias polticas, crenas religiosas ou sentimentos nacionalistas; outros so pragmticos ou no tm um compromis-so ideolgico ou programtico bem definido; outros, ainda, esto comprometidos com a promoo dos interesses de um grupo tnico, religioso ou socioeconmico em particular, ou com um eleitorado definido geograficamente, em oposio quelas agremiaes he-terogneas, quando no promiscuamente eclticas em seus apelos eleitorais aos grupos sociais. O terceiro critrio envolve a estratgia e as normas comportamentais do partido, especificamente se ele tolerante e pluralista ou proto-hegemnico em seus objetivos e com-portamento: alguns partidos esto completamente comprometidos com regras do jogo democrtico, so tolerantes e respeitam seus oponentes, e tm pontos de vista plurais quanto ao governo e socie-dade; outros so pouco leais s normas e instituies democrticas, ou so explicitamente antissistema, o que favorece a substituio da democracia pluralista existente por um regime mais uniformemente comprometido com a realizao de seus objetivos programticos.

    Em nossa discusso mais detalhada sobre as legendas tpicas de cada modelo partidrio, tambm trataremos de outras duas dimen-ses da vida partidria consideradas significantes e que j foram extensamente abordadas pela literatura existente sobre o tema. A primeira dimenso da vida partidria a sociolgica, i. e., a natureza da clientela qual o partido lana seu apelo e os interesses de quem ele pretende defender ou promover. A segunda envolve a dinmica interna do processo de tomada de decises do partido, particular-mente a natureza e o grau de proeminncia do lder partidrio, que pode variar de uma figura carismtica dominante, em um extremo, a formas mais coletivas de liderana, em outro. Nossa hiptese que tipos de agremiao (definidos pelos critrios organizacionais, programticos e estratgicos listados antes) so frequentemente associados a clientelas sociais particulares e/ou a padres de lide-rana, mas no de forma determinstica, e certamente no a ponto de tais dimenses, sociolgica e de liderana, serem incorporadas definio dos tipos de partido.

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    importante notar que os modelos de partido poltico que descre-veremos a seguir so tipos ideais, no sentido estritamente weberiano do termo. Assim sendo, eles so heuristicamente teis na medida em que do indicaes facilmente compreensveis, que ajudaro o leitor a entender claramente conceitos multidimensionais que, de outra forma, seriam complexos. Alm disso, esses modelos facilitam a anlise, j que servem como base para comparaes que abrangem casos reais, ou como desfechos extremos de processos evolutivos que nunca podem ser realmente alcanados. Como em todos os tipos ideais, no entanto, no se deve esperar que os partidos polticos se ajustem completamente a todos os critrios definidores de cada modelo; de modo semelhante, algumas agremiaes podem incluir elementos de mais de um tipo ideal. Talvez o mais importante, os partidos individuais podem evoluir com o tempo, de tal forma que provavelmente em uma poca podem estar mais prximos de um tipo e, em outra, mudar em direo a outro tipo.

    Figura 1. Extenso da organizao

    ANO LIMITADO AMPLO

    1850 De elite

    TradicionalLocalDe Notveis

    De massaSocialismo

    Clientelista Classista de massaNacionalismo

    Religio Pluralista-Nacionalistatnicos

    Denominacional LeninistaCongressistas Ultranacionalista

    tnicoEleitoralistas

    Catch-allProgramtico

    Personalista

    De movimento social/Partidos Fundamentalista

    Libertrio de esquerdaDe extrema direitavvps-industrial

    2000

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    Tipos de partido poltico

    Com base nesses trs critrios, identificamos 15 espcies di-ferentes de partido que acreditamos apreendem melhor a essncia bsica das agremiaes partidrias ao redor do mundo, e durante vrios perodos histricos, do que a maioria das tipologias j esta-belecidas. No entanto, tambm reconhecemos uma contrapartida negativa implcita nessa abordagem: a evidente falta de parcimnia pode confundir o leitor ou dificultar a compreenso das diferenas mais cruciais entre os numerosos tipos de legenda. Portanto, pri-vilegiamos uma das nossas trs dimenses classificatrias o tipo de organizao do partido. Tomando emprestado uma analogia da biologia, consideramos o tipo de organizao do partido to defi-nidor quanto um gnero, que, por sua vez, abrange vrias espcies de partido poltico. Esses gneros so: partidos de elite, partidos de massa, partidos tnicos, partidos eleitoralistas e partidos de movi-mento social. Eles podem ser observados na Figura 1, que mostra esses tipos num esquema de dvaarranjo bidimensional, com partidos organizacionalmente enxutos esquerda e partidos organizacio-nalmente amplos direita, e com partidos surgidos em perodos histricos anteriores no topo e os mais recentes abaixo.

    A correlao entre a extenso organizacional do partido (o quanto enxuto/amplo) e sua dimenso temporal no acidental. Um partido poltico passa a existir dentro de um contexto social e tecnolgico especfico, que pode evoluir com o tempo, e esse contexto fundador pode deixar uma marca indelvel por dca-das na natureza bsica de sua organizao. Partidos so canais de intermediao entre as elites polticas e os eleitores, e a capacidade de um tipo especfico de organizao para mobilizar de maneira efetiva os eleitores altamente dependente desse contexto. Como defendemos, no sculo XIX, na maioria dos pases da Europa Ocidental (especialmente no Sul), e, no sculo XX, na maioria dos pases da Amrica Latina, camponeses politicamente imobiliza-dos, muitos dos quais analfabetos e moradores de zonas rurais isoladas, compunham uma grande parte do segmento de eleitores. Nesses setores sociais, as elites tradicionais ou os notveis locais exerciam uma influncia considervel e, consequentemente, surgiam partidos de elite organizacionalmente enxutos. Algumas dcadas mais tarde, a urbanizao, a industrializao, a mobilizao poltica

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    da classe trabalhadora e a expanso do direito ao voto exigiram o desenvolvimento de diferentes tipos de agremiao partidria. A mobilizao eleitoral destes recm emancipados eleitores foi mais efetivamente empreendida por partidos com grandes bases de fi-liados e uma extensa infraestrutura organizacional. No entanto, nas quatro ltimas dcadas do sculo XX, o advento da televiso possibilitou que as elites polticas se comunicassem diretamente com o eleitorado, e as organizaes partidrias de massa come-aram a ser relativamente menos eficazes como principal veculo de mobilizao eleitoral. Ao mesmo tempo, a secularizao e a diminuio da filiao sindical em vrios pases diminuram muitas das organizaes de apoio, parceiras com as quais os partidos de massa clssicos tanto contaram. Em suma, possvel desenvolver o argumento de que o contexto social/tecnolgico no qual os partidos funcionam tem uma influncia direta sobre a eficcia dos diferentes tipos de organizao partidria, e que as caractersticas dominan-tes desse contexto iro evoluir sistematicamente com o tempo. Isso ajuda a explicar tanto o surgimento dos partidos de massa e o declnio dos partidos de elite no incio do sculo XX, quanto a subsequente substituio das agremiaes de massa pelos partidos de organizao enxuta como o tipo organizacional dominante ao fim do sculo. Tal argumento tambm perfeitamente cabvel em estudos empricos que mostram que, nos ltimos anos, a adeso a partidos polticos vem diminuindo na maioria das democracias estveis (ver Mair e van Biezen, 2001).

    Essa relao geral entre a dimenso histrica e o aparecimento de diferentes tipos de organizao de partido no implica, no entanto, que estejamos afirmando ou sugerindo que um tipo de legenda era, ou ser dominante em qualquer perodo da histria. Na verdade, nos surpreendemos com a persistncia e diversidade dos partidos hoje existentes, ainda que muitas das circunstncias sociais ou culturais que a princpio os geraram j tenham desaparecido h muito tempo. Tambm no queremos afirmar que seja provvel que um tipo de partido siga uma trajetria previsvel, evoluindo para outro tipo. Por dois motivos: primeiro, uma vez que um par-tido seja institucionalizado de acordo com um tipo organizacional especfico, a natureza bsica de sua estrutura organizacional pode ser congelada e, portanto, resistir a presses por mudanas. Desse modo, as agremiaes fundadas por notveis locais eram

  • 18 Richard Gunther e Larry Diamond: Espcies de partidos polticos.

    politicamente poderosas (como o Partido Liberal Democrtico do Japo) e poderiam permanecer sob o domnio de faces da elite bem depois de a maioria dos eleitores ter deixado de ser reverente elite dos lderes; de forma similar, os partidos podem manter grandes bases de filiados em massa e vnculos institucionalizados com organizaes de apoio, mesmo depois de o partido ter adotado uma estratgia predominantemente eleitoral do tipo catch-all e um processo de tomada de decises interno deste tipo (p. ex., o Partido Social Democrata Alemo sob a liderana de Gerhard Schrder ou o Partido Trabalhista do Reino Unido comandado sob a liderana de Tony Blair). Segundo motivo, quando o contexto social/tecnolgico pode evoluir sistematicamente com o tempo (levando em conta as tendncias gerais das ltimas dcadas, que caminham de partidos com grande extenso organizacional para aqueles nos quais foram observadas bases organizacionais menos desenvolvidas), a relao entre as mudanas sociais ou tecnolgicas e as motivaes progra-mticas ou estratgicas dos lderes partidrios muito mais tnue ou no existente. Apresentaremos uma discusso mais extensa dessa indeterminao no final deste artigo.

    Em relao s espcies individuais que constituem o gnero mais amplo, deve-se notar que, sempre que possvel, o nome que esco-lhemos para cada tipo de partido veio da literatura existente: isso verificvel para o partido classista de massa, o denominacional e o catch-all, de Kirchheimer; para o libertrio de esquerda, de Kitschelt; para o de movimento de extrema-direita ps-industrial, de Ignazi; e para o programtico de Wolinetz. Em outros casos, ou nomeamos um tipo de partido que est implcito em um grande corpus da lite-ratura (como o partido de notveis locais tradicional e o clientelista), ou renomeamos e desenvolvemos mais plenamente o modelo de partido, como o leninista (ao qual Duverger se refere como partido de devotos), o tnico (o partido sociocultural particularista, na terminologia de Kitschelt) e o personalista (chamado por Ignazi de o partido no partidrio). Em um caso que vale destacar, descobri-mos que um rtulo de tipo partidrio comumente usado referia-se, na verdade, a um gnero particular: o partido profissional eleitoral de Panebianco, que corresponde, grosso modo, ao nosso gnero de partido eleitoralista e sobre o qual delineamos trs espcies mais especficas de tipos partidrios. Por fim, algumas agremiaes simplesmente no se encaixaram nesse esquema tipolgico (como o

  • Paran Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e cincia poltica 19

    partido cartel4), e alguns tipos (o fundamentalista religioso, o tnico e o nacionalista) no tm uma clara definio conceitual preestabe-lecida na literatura.

    Partidos de elites

    Partidos de elites so aqueles cujas principais estruturas orga-nizacionais so mnimas e originadas nas elites estabelecidas e redes interpessoais afins em uma rea geogrfica especfica. O reconhe-cimento da autoridade dessas elites por parte do eleitorado uma caracterstica compartilhada pelas duas espcies de partido que se encaixam nesse gnero. Qualquer estrutura partidria de nvel nacional fundamenta-se na aliana entre as elites locais. Em termos programticos, tais agremiaes no so ideolgicas. No nvel mais baixo dentro do partido (isto , na articulao entre os eleitores e os candidatos locais), o principal compromisso eleitoral envolve a distribuio de benefcios exclusivos aos moradores de uma zona eleitoral geograficamente definida ou aos clientes que compem a base de uma hierarquia patronal-clientelista. Tais partidos no ambicionam ser hegemnicos, e so tolerantes e colaborativos uns com os outros em um regime parlamentar (mas no necessariamente democrtico).5

    Historicamente (ver Chambers e Burnham, 1967; Daalder, 2001; Katz e Mair, 2002; LaPalombara e Weiner, 1966), o primeiro tipo de partido a surgir foi o que chamamos partido tradicional de notveis locais. Esse surgimento ocorreu em meados do sculo XIX, poca em que o voto era acentuadamente limitado em regimes semidemocrti-cos. Levando em considerao que na maioria desses pases o direito de voto e de ocupao de cargos eletivos era restrito a homens que

    4. De acordo com a convincente argumentao de Koole (1996), a descrio de par-tido-cartel feita por Katz e Mair (1995) imprecisa, sendo mais apropriada como descrio da dinmica de um sistema partidrio (isto , considerando padres de interao entre partidos) do que de partidos individuais. Se fssemos incluir o partido cartel em nossa tipologia, o agruparamos aos partidos eleitoralistas.

    5. No que talvez seja o exemplo mais extremo dessa colaborao, o Turno Pacfico, da Espanha do final do sculo XIX, os dois partidos dominantes se alternavam no poder, conforme acordos pr-eleitorais, a fim de compartilhar de forma mais equitativa a patronagem do governo ao longo do tempo (Martnez Cuadrado, 1969; Tusell, 1976).

  • 20 Richard Gunther e Larry Diamond: Espcies de partidos polticos.

    possuam grandes propriedades, esse jogo competitivo limitava-se s altas classes socioeconmicas. E, considerando que a eleio para cargos pblicos requeria apelos a um pequeno nmero de eleitores emancipados, as campanhas no precisavam de uma organizao bem elaborada. Os notveis locais podiam contar frequentemente com seu prestgio tradicional ou suas relaes pessoais com um reduzido e socialmente homogneo crculo de eleitores para assegurar seus cargos. As burocracias partidrias centrais no existiam, e as organi-zaes de partidos nacionais consistiam em alianas relativamente livres ou confrarias que uniam os membros eleitos do parlamento por meio de interesses comuns ou laos de respeito mtuo. As faces parlamentares que dominavam a Cmara dos Comuns Britnica na primeira metade do sculo XIX, os partidos conservadores franceses no sculo XIX e incio do XX e os vrios partidos conservadores contemporneos do Brasil so exemplos dessa variedade de partido de elite. A expanso do direito de voto e a modernizao socioeconmica (que implicavam a mobilizao poltica de setores da sociedade antes excludos) limitou progressivamente a efetividade eleitoral de par-tidos to pouco institucionalizados e pobres em recursos, enquanto a urbanizao tornou os partidos de notveis ruralistas tradicionais cada vez mais irrelevantes para o eleitorado.

    O partido clientelista comeou a surgir assim que o partido local tradicional se viu diante dos desafios dos segmentos recm-eman-cipados do eleitorado nas sociedades que estavam passando pelos processos de industrializao e urbanizao6. De fato, razovel levantar a hiptese de que o surgimento do partido clientelista foi uma resposta direta das elites locais aos desafios apresentados pela mobilizao poltica das populaes anteriormente subjulgadas: assim que o respeito tradicional s elites locais comeou a desapa-recer, a mobilizao eleitoral passou a contar cada vez mais com a troca de favores ou a coero aberta. O partido clientelista, como o definimos, uma confederao de lideranas (tradicionais, os recm-surgidos profissionais liberais ou a elite econmica), cada um com sua prpria base de apoio (geogrfica, funcional ou pessoal), organi-zada internamente como faces particularistas. Normalmente, esse tipo de agremiao partidria tem uma organizao fraca e pouco

    6. Katz e Mair (2002) estabeleceram uma distino similar entre dois tipos de partido de elite.

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    ou nenhum foco programtico ou ideolgico. Sua funo principal coordenar os esforos das campanhas individuais dos lderes, ge-ralmente de forma indireta ou descompromissada, para garantir o poder em nvel nacional. As atividades de campanha, por sua vez, baseiam-se em cadeias hierrquicas de relaes interpessoais de uma variedade semifeudal, nas quais os padres arraigados de lealdade esto ligados troca de servios e obrigaes.

    Embora todo partido clientelista se caracterize por uma orga-nizao faccionria particularista, em seu apogeu, entre o final do sculo XIX e incio do XX na Europa Ocidental (uma descrio clssica de Carr, 1966, captulo 9), na Amrica Latina (Hagopian, 1996) e nas mquinas partidrias das grandes cidades da Amrica do Norte e na poltica ruralista do sul desse pas (Beck, 1997, 73-7; Gosnell, 1939; Key, 1949) , a troca de favores pessoais tambm serviu como principal ferramenta para a mobilizao eleitoral das massas. Tais relaes so mais comuns em sociedades rurais pr-modernas: em condies de isolamento geogrfico longe do centro de governo dominante, juntamente com os altos ndices de analfabetismo funcional e a precariedade dos meios de transporte e comunicao, uma relao patro-cliente pode ser mutuamente benfica para ambos7. Nos Estados Unidos, essa variedade de po-ltica estava voltada para as populaes de imigrantes carentes de recursos polticos, e at mesmo de algumas habilidades bsicas (como o domnio da lngua inglesa) ou das conexes pessoais necessrias para prosperar economicamente (ver Erie, 1988). Com o avano da modernizao socioeconmica como as decrescentes populaes rurais, que se tornam cada vez mais alfabetizadas, expostas aos meios de comunicao de massa e politicamente mobilizadas (ou como as populaes de imigrantes nos Estados Unidos que aprenderam ingls e se tornaram educadas e adaptadas sociedade norte-americana) , a utilidade do patroneio para o cidado diminui, e as tentativas do

    7. Como um funcionrio de um partido de uma regio rural e socioeconomicamente atrasada da Espanha descreveu: O cidado que est preocupado em resolver um problema com o mdico ou com a escola [], ou um problema como uma acusao injusta no tribunal, ou de inadimplncia para pagar os impostos devidos ao Estado, etc., [] recorre a um intermedirio [] que pode interceder por ele, mas em troca da garantia de sua prpria conscincia e de seu voto. (Gunther et al., 1986, p. 84-85).

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    patro em influenciar as decises eleitorais encontram resistncia. Nessas circunstncias, as formas mais coercivas de intercmbio pa-tro-cliente tendem a emergir, envolvendo frequentemente a ameaa de reter os benefcios econmicos do cliente a no ser que este se comprometa a dar seu apoio poltico, ou a substituio da troca de favores pela ostensiva compra de votos. No longo prazo, porm, a modernizao socioeconmica e a frequente mobilizao cognitiva do pblico em geral reduziram em muito a utilidade do clientelismo como veculo de mobilizao eleitoral (ver Huntington e Nelson, 1976, p. 7-10 e p. 125-130).

    Todavia, uma vez institucionalizadas e incorporadas estrutura dos partidos polticos, essas relaes clientelsticas podem ganhar vida prpria, independente das condies socioeconmicas que as originaram. Na Itlia e no Japo, cujos sistemas partidrios no ps-guerra foram estabelecidos em sociedades menos moderniza-das (particularmente no sul da Itlia e nas zonas rurais do Japo), o clientelismo consolidou-se na prpria estrutura dos partidos dominantes (o Partido Democrata Cristo e o Partido Liberal Democrtico, respectivamente). Uma vez estabelecidas, essas redes faccionrias se tornaram as principais bases do recrutamento da elite nesses partidos governantes de ambos os sistemas, e conti-nuaram a existir mesmo aps o desaparecimento das condies socioeconmicas que as originaram. Apesar de essas organizaes terem sobrevivido por dcadas, interessante notar que as rela-es clientelistas nas quais essas redes se baseiam podem conter as sementes de sua prpria runa final. O particularismo e a dis-tribuio de recompensas por adeso faccionria facilmente evo-luem para a corrupo ostensiva. No de admirar que partidos clientelistas de ambos os sistemas sofreram srios e, no caso dos partidos italianos, fatais retrocessos eleitorais como parte da reao popular a escndalos de corrupo. (O mesmo aconteceu recentemente na Tailndia e nas Filipinas, embora alguns partidos desses pases mantenham caractersticas do modelo clientelista). Com as mudanas sociais, esses tipos de relao se tornaram cada vez mais repugnantes a grandes parcelas do eleitorado, e, quando os diversos escndalos vieram tona, uma srie de defeces nos outrora partidos governantes dominantes minou drasticamente sua unidade e fora organizacional.

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    Partidos de massa

    O segundo gnero de agremiao partidria tem profundas ra-zes na literatura, assim como na histria europeia do sculo XIX e incio do XX. O partido de origem externa por excelncia, o partido de massa, surgiu como manifestao da mobilizao polti-ca da classe trabalhadora em muitos regimes europeus8. Em termos de organizao, esse gnero se caracteriza por uma ampla base de membros contribuintes que permanecem ativos nos assuntos do partido mesmo em perodos no eleitorais. No intuito de disseminar a ideologia do partido e estabelecer uma base ativa de filiados, a agremiao de massa busca penetrao nas diversas esferas da vida social. Organizaes auxiliares (sindicatos, associaes religiosas, e outras organizaes sociais) servem no apenas como aliados polticos (ajudando a mobilizar adeptos durante a campanha eleitoral), mas tambm para projetar os objetivos programticos do partido para extrapolando a arena eleitoral-parlamentar para as vrias esferas da vida social. estabelecido um vasto conjunto de organizaes de apoio, inclusive jornais do partido e clubes recreativos, e redes compostas pelas alas locais do partido so fundadas por toda a nao. Essas redes organizacionais no apenas servem de moldura para a mobilizao durante a campanha elei-toral, como tambm fornecem benefcios adicionais aos membros do partido, como oportunidades de confraternizao e recreao (ver Barnes, 1967).

    Dois tipos de distino dividem esse gnero em seis diferentes espcies partidrias. O primeiro envolve a diretriz bsica dos com-promissos programticos, da ideologia e/ou do sistema unificador de crenas do partido. Frequentemente, implicam diversos tipos de compromisso para 1) o socialismo, 2) o nacionalismo ou 3) a religio. A segunda dimenso diz respeito ao grau de tolerncia ou pluralismo de cada um deles, por um lado, ou de seu empenho em assegurar uma posio hegemnica no sistema poltico e impor seus

    8. Deve-se notar que alguns partidos camponeses tm muitos aspectos em comum com os partidos de massa da classe trabalhadora, incluindo caractersticas or-ganizacionais e origens histricas similares. Vamos nos ater aqui variante mais difundida do partido de massa a da classe trabalhadora , que fornece uma mostra mais abrangente das diversas caractersticas desse modelo.

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    compromissos programticos radicais sociedade, por outro. Os partidos pluralistas partem do pressuposto de que estaro sempre funcionando dentro de um sistema democrtico; portanto, acei-tam suas instituies e regras. J os partidos proto-hegemnicos ambicionam, no longo prazo, substituir as sociedades pluralistas e o sistema democrtico existentes por um sistema mais condizente com o cumprimento de seus objetivos de transformao radical. Por isso, aceitam as instituies e as regras existentes apenas porque lhes oportuno e por no poderem ser substitudas a curto prazo, e seu comportamento , na melhor das hipteses, semileal (ver Linz, 1978, p. 28-45).

    Partidos de massa pluralistas procuram ganhar eleies como sua principal via de acesso conquista de seus objetivos programticos, e suas estratgias de mobilizao de votos muito dependem do de-senvolvimento e da ativao de uma base de filiao em massa. Os militantes do partido desempenham diferentes tarefas, desde o pro-selitismo e a distribuio de propaganda impressa at acompanhar os eleitores s urnas. As organizaes de apoio aliadas ao partido (sindicatos, grupos religiosos e/ou organizaes sociais) incentivam seus membros a apoiar o partido, e, se este bem-sucedido em estabelecer seus prprios meios de comunicao, seu jornal e/ou programas de rdio e TV ficam abarrotados de mensagens partid-rias. Embora se requeira certa ressocializao dos novos membros, o recrutamento de militantes para o partido aberto.

    Em contrapartida, as agremiaes de massa proto-hegemnicas enfatizam bastante a disciplina, o permanente e ativo engajamento e lealdade por parte dos membros na conduo do confronto poltico nas arenas eleitorais e extraparlamentares. Portanto, o recrutamento de membros muito seletivo; a doutrinao, intensiva; e a aceitao da ideologia e da linha de pensamento, obrigatria a todos os mem-bros. Em alguns casos (particularmente quando os partidos proto-hegemnicos estavam na clandestinidade), adota-se uma estrutura celular, secreta e conspiratria, oposta organizao em correntes abertas que caracteriza os partidos de massa pluralistas. No geral, a distino entre partidos de massa pluralistas e proto-hegemnicos aproxima-se da diferenciao de Duverger entre partidos de massa de correntes e partidos de devotos organizados em clulas (1954, p. 63-71), e tambm a diviso de Neumann (1956) entre partidos de integrao social e de integrao total.

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    As organizaes partidrias com compromissos ideolgicos socia-listas, ou ganharam a forma de partidos sociais-democratas classistas de massa9 , ou adotaram a postura proto-hegemnica dos partidos leninistas. No partido de massa tpico (para utilizar a terminologia de Kirchheimer, 1966), o centro de poder e autoridade localiza-se no comit executivo de seu secretariado, embora, formalmente, a prin-cipal fonte legtima de autoridade seja o congresso geraldo partido. Alm disso, a liderana parlamentar do partido ocasionalmente entra em confronto com o secretariado pelo controle da agenda progra-mtica e pela nomeao de candidatos. Invariavelmente, a postura aberta e tolerante desses partidos possibilitou considerveis conflitos internos, especialmente entre os pragmticos, cuja principal preocu-pao a vitria nas urnas, e os idelogos, que valorizam muito mais a representao do eleitorado e a consistncia ideolgica, com uma leitura mais ortodoxa da ideologia partidria (ver Michels, 1915). Em alguns casos, tal confronto pode levar diviso do partido em duas organizaes independentes (como o antigo Partido Socialista Democrtico Italiano e o Partido Socialista Italiano da Primeira Repblica da Itlia). Esse quadro tem culminado, mais comumen-te, na gradual converso dos partidos socialistas maximalistas em partidos mais moderados e pragmticos.

    Os partidos classistas de massa estabelecem bases entre seus eleito-res de classe por meio de grupos organizados tanto geograficamente (comits locais) quanto funcionalmente (os sindicatos). Embora busquem fazer proselitismo com possveis membros ou eleitores, a doutrinao e a exigncia de conformidade ideolgica so mnimas. Apesar de a integrao social por meio das atividades partidrias e dos sindicatos aliados ser um objetivo significativo, o partido est mais preocupado em ganhar as eleies e participar da formao de governos. O recrutamento de membros bastante aberto, e, quanto maior for a base do partido, tanto melhor, considerando sua principal preocupao, que garantir a maioria dos votos, e sua tradicional dependncia da capacidade de seus membros para mobilizar o elei-torado. Os partidos socialdemocratas da Alemanha, Sucia e Chile so bons exemplos desse tipo de agremiao.

    9. Para excelentes descries e anlises desse tipo de partido, ver Barnes (1967) e Epstein (1967, captulo 6, O Partido Socialista do Proletariado).

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    Os partidos leninistas (como os definimos, baseando-nos na ideologia e na proto-hegemonia de classes) tm como objetivo a derrubada dos sistemas polticos existentes e a implantao de mu-danas revolucionrias na sociedade. Considerando que seus obje-tivos revolucionrios provavelmente sofrero vigorosa resistncia, quando no reprimidos por seus opositores, o partido adota uma estrutura fechada, com base na clula semi-secreta (ao invs de co-mits abertos, que caracterizam os partidos de massa pluralistas). A filiao altamente secreta, e o partido exige lealdade e obedincia estritas por parte dos membros, exercendo uma intensa e intransi-gente doutrinao ideolgica sobre eles. O partido tem penetrao em setores fundamentais da sociedade (especialmente nos sindicatos e na classe mdia intelectual dos pases ocidentais, e na classe cam-ponesa da sia), no intuito de assegurar aliados tticos, no curto prazo, e a converso, no longo prazo. Internamente, o processo de tomada de decises bastante centralizado e autoritrio, mesmo que o centralismo democrtico frequentemente permita o debate aberto antes do anncio de uma deciso oficial. O partido v a si mesmo como a vanguarda do proletariado, e, apesar de se autorretratar como representante da classe trabalhadora, desempenha um papel de liderana explicitamente direcionador e de cima para baixo para com a classe que representa, definindo seus interesses. Embora a postura inicial dos partidos leninistas prototpicos (os pertencen-tes ao Komintern10) seja a de rejeitar as instituies e parlamentos representativos da burguesia, a maioria dos partidos comunistas participou como competidores antissistema e semileais da poltica eleitoral nas democracias ocidentais. O principal objetivo do par-tido conquistar o poder, mesmo que fora. Nas democracias ocidentais, as agremiaes originalmente leninistas, ou passaram por transformaes graduais geralmente se tornando partidos de massa pluralistas , ou sofreram cises, dividindo-se em partidos democrticos moderados (como o italiano Partido Democrtico da Esquerda (PDS), hoje Democratas da Esquerda) e partidos mais ortodoxos (como o Rifondazione11).

    Se o partido leninista consegue chegar ao poder (como foi o caso na Europa Central e do Leste e em partes da sia), modifica seu

    10. Termo que referencia a Internacional Comunista a partir de Lnin. N. R.11. Refundao Comunista, partido italiano da esquerda europeia. N.R.

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    papel autodeterminado e seu comportamento em relao a outros grupos sociais e polticos. O partido v a si mesmo como a expresso organizada da vontade da sociedade. Na ex-Unio Sovitica, ele a expresso dos interesses de uma nao inteira; para os chine-ses, representa os interesses do povo (Schurmann, 1966, p.100). Como tal, estabelece o controle hegemnico do sistema poltico e econmico, abolindo ou assumindo o comando das organizaes de apoio estabelecidas, e utilizando praticamente todos os grupos sociais organizados como arenas para a integrao social dos indivduos nova sociedade que desejam criar. O partido direcionar as ativi-dades do Estado e presidir o recrutamento das elites governantes.

    Enquanto os partidos leninistas clssicos eram aqueles pertencen-tes ao Komintern e aceitavam os 21 pontos de Lnin (que diferenciam os partidos comunistas de outros partidos marxistas), alguns partidos no comunistas (como o Kuomintang anterior democratizao de Taiwan ao fim dos anos 1980 e incio dos 1990) se adaptaram a muitas dessas caractersticas organizacionais e operacionais12.

    Os partidos nacionalistas pluralistas, como o Partido Nacionalista Basco e, at o fim da dcada de 1990, o Partido Democrtico Progressista de Taiwan, tomaram vrias formas. A maioria deles conta com bases de filiao em massa, vasta organizao partidria e colaborao com grupos auxiliares secundrios que geralmente incluem organizaes culturais e, s vezes, sindicatos. A clientela eleitoral desses partidos so aqueles indivduos que se definem subjetivamente como pertencentes a um grupo nacional distinto. A maioria dessas identidades nacionais se pauta por algumas carac-tersticas sociais (especialmente as que envolvem lngua e cultura), e os limites da clientela eleitoral so bastante maleveis. De fato, uma das principais funes dos partidos nacionalistas no apenas convencer os cidados a votar neles, mas tambm usar sua campanha eleitoral e as organizaes de apoio afiliadas a ele para fomentar e intensificar a identificao com o grupo nacional e suas aspiraes. Alm disso, tais aspiraes envolvem, por definio, uma demanda

    12. Por esses aspectos organizacionais, o Kuomintang foi frequentemente classificado como partido leninista, desde sua fundao no continente chins, no incio do sculo XX, at sua democratizao na dcada de 1990. Entretanto, no poder, o Kuomintang (no continente e em Taiwan) descartou os aspectos revolucionrios de sua ideologia, tornando-se apenas quase leninista em sua natureza.

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    por certo nvel de autogoverno territorial, variando desde a autono-mia dentro de um Estado multinacional at a independncia total ou a redefinio de fronteiras internacionais em resposta a uma reivindicao insurrentista. Assim, embora possam ser moderados em suas preferncias polticas relativas a problemas econmicos, religiosos e muitos outros envolvendo o espectro direita-esquerda, tais partidos podem assumir uma postura semileal ou antissistema em relao a questes de governo territorial. No entanto, frequentemente haver tenses internas entre aqueles que cobram uma postura mais militante na defesa das reivindicaes nacionalistas do grupo e os que valorizam a cooperao com outros partidos na formao de coalizes governamentais, pressionando pela promulgao de uma legislao gradativamente benfica ao grupo.

    Os partidos ultranacionalistas so proto-hegemnicos em suas aspiraes. Eles promovem uma ideologia que exalta a nao ou a raa dos indivduos, avessa s minorias e admira abertamente o uso da fora por um partido forte, quase militar, frequentemente contando com uma milcia uniformizada (ver, p. ex., Orlow, 1969 e 1973). Em alguns aspectos, podem ter muitos arranjos organiza-cionais e comportamentais em comum com os partidos leninistas, em especial o processo de recrutamento extremamente seletivo, a intensa doutrinao dos membros, a rigorosa disciplina interna, o objetivo imperioso de dominao (por meio da fora, se necessrio) e a postura antissistema ou semileal no parlamento. Tambm como os partidos leninistas, quando os ultranacionalistas chegam ao poder, buscam a dominao hegemnica da poltica e da sociedade por meio da represso ou cooptao das organizaes auxiliares existentes, juntamente com uma ampla penetrao na sociedade, na tentativa de re-socializar todas as pessoas no sentido de apoiarem ativamente o regime. Todavia, diferem dos partidos leninistas no apenas em relao ao seu contedo ideolgico, mas tambm porque suas ideologias so menos precisas e sujeitas reinterpretao por um lder carismtico nacional13. Alm disso, o lder nacional a fonte derradeira de poder e autoridade, enquanto a burocracia do partido

    13. Como Mussolini certa vez descreveu seus colegas fascistas: Ns nos damos ao luxo de ser aristocratas e democratas, conservadores e progressistas, reacionrios e revolucionrios, legitimistas e ilegitimistas, de acordo com as condies de tempo, lugar e circunstncia (apud Schmidt, 1939, p. 97).

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    apenas um suporte, quando no servil. So bons exemplos desse tipo de agremiao o partido nazista de Hitler, os fascistas de Mussolini e, mais recentemente, a Unio Democrtica Croata (HDZ) de Franjo Tudjman e a Unidade Nacional Russa de Aleksander Barkashov. A notvel frequncia com que um chefe carismtico domina esse tipo de partido sugere a existncia de algo, tanto nas circunstncias scio-histricas que do origem aos partidos ultranacionalistas e fascistas, quanto nas personalidades atradas para esse tipo de par-tido (Adorno et al., 1950), que gera devoo intensa e submissa a um lder nico e onipotente.

    A terceira base programtica dos partidos de massa a religio. Novamente, duas variantes diferentes podem ser identificadas. A primeira pluralista, democrtica e tolerante. A origem do partido de massa denominacional (utilizando mais uma vez a terminologia de Kirchheimer, 1966) pode ser remontada ao final do sculo XIX (ver Fogarty, 1957; Kalyvas, 1996), mas esse tipo de agremiao atingiu sua mxima importncia com as consequncias da Segunda Guerra Mundial. Exemplos de legendas denominacionais incluem os nume-rosos partidos democratas cristos da Europa Ocidental, que tiveram um importante papel, particularmente desde a Segunda Guerra (na Itlia, Alemanha, Blgica, Holanda, entre outros) e tambm, mais recentemente, na Polnia e na Repblica Tcheca, com a Democracia Crist (ZChM) e a Unio Democrtica Crist (KDU), respectivamen-te. Eles tm muitas caractersticas organizacionais em comum com os partidos de massa, inclusive a existncia de uma base composta de membros contribuintes, uma organizao partidria hierarquicamen-te estruturada ligando os nveis nacional e local, jornais e canais de radiodifuso prprios, o apoio de organizaes aliadas (geralmente religiosas, mas, em alguns casos, sindicatos). Contudo, diferem num importante aspecto dos partidos de ideologia secular: como sua base programtica um conjunto de crenas religiosas determinado por uma combinao de tradies e interpretaes feitas por clrigos e/ou instituies religiosas externos ao partido em si, ele no detm o controle total de seus preceitos ideolgicos fundamentais quando estes esto estritamente ligados a valores religiosos (como aqueles concernentes ao aborto, ao divrcio, preferncia sexual e a certas manifestaes artsticas). Isso pode levar a tenses intrapartidrias toda vez que os lderes decidem modificar os apelos eleitorais ou os compromissos programticos, de tal forma que os valores entrem

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    em conflito. O Partido Democrata Cristo Italiano, por exemplo, teve srios problemas internos ao tratar da legalizao do divrcio, qual a hierarquia da Igreja Catlica se ops ferrenhamente. As crenas religiosas podem estar sujeitas a interpretaes vrias, e pode existir uma considervel heterogeneidade nos partidos de massa denominacionais, levando a conflitos.

    O ltimo tipo de partido de massa o religioso proto-hegem-nico, ou religioso fundamentalista. A principal diferena entre esse tipo e o partido de massa denominacional que o primeiro busca reorganizar o Estado e a sociedade com base em uma leitura rgida dos princpios religiosos doutrinrios, enquanto os partidos denomi-nacionais so pluralistas e moderados. Para os partidos fundamenta-listas, h pouco ou nenhum espao para interpretaes conflituosas das normas e escrituras religiosas que servem de base ao programa partidrio e s leis que buscam impor sociedade. A autoridade dos lderes religiosos na interpretao do texto e na sua traduo coe-rente, em termos polticos e sociais, inequivocamente reconhecida. Nesse modelo partidrio teocrtico no h separao entre religio e Estado, e as normas religiosas so impostas a todos os cidados, a despeito de suas crenas religiosas prprias. Considerando os ob-jetivos de longo alcance desses partidos (o que pode os aproximar do totalitarismo), seu desenvolvimento organizacional e o escopo de suas atividades so amplos. Os membros tm um substancial, e at mesmo intenso, envolvimento e identificao com o partido, e as organizaes auxiliares firmam presena em nvel local por toda a sociedade. Considerando a natureza fundamentalista dessas agremiaes e sua leitura rgida dos textos religiosos, as relaes de autoridade dentro do partido so hierrquicas, no democrticas e absolutistas, e seus membros disciplinados e dedicados. Os par-tidos fundamentalistas mobilizam apoio no apenas invocando as doutrinas e a identidade religiosas e propondo polticas derivadas desses princpios, mas tambm por meio de incentivos seletivos; eles geralmente desempenham uma ampla variedade de funes de bem-estar social que ajudam no recrutamento e na consolidao da lealdade dos membros. Essa rede de atividades e servios organizados enclausura os membros em uma subcultura prpria. Embora no sejam partidos de classe, atraem maciamente o apoio dos pobres e oprimidos, alm da classe mdia marginalizada, cujas denncias de injustias e corrupo repercutem de forma especial. Um exemplo

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    desse tipo de organizao a Frente de Salvao Islmica da Arglia, que tem algumas caractersticas em comum com o j banido Partido do Bem-Estar da Turquia.

    Partidos tnicos

    Aos partidos que se baseiam em etnias, geralmente falta a or-ganizao ampla e elaborada dos partidos de massa. Entretanto, o que mais os distingue sua lgica poltica e eleitoral. Diferente da maioria dos partidos de massa, eles no promovem um programa (moderado ou transformador) para toda a sociedade. Seus objetivos e estratgias so mais limitados: promover os interesses de um grupo tnico em particular ou de uma aliana de grupos. E, diferente de partidos nacionalistas, seus objetivos programticos normalmente no incluem dissidncias nem uma esfera centralizadade tomada de decises e de autonomia administrativa do Estado. Ao contrrio disso, se contentam com a utilizao das estruturas disponveis do Estado para canalizar benefcios para sua clientela eleitoral particularista.

    O partido puramente tnico procura apenas mobilizar os votos de seu prprio grupo tnico. Exemplos histricos clssicos so o Congresso do Povo Nortista e o Grupo de Ao da Primeira Repblica da Nigria, e, mais recentemente, o Partido da Liberdade Inkatha da frica do Sul, o partido da minoria turca (DPS, Movimento pelos Direitos e Liberdades) na Bulgria, a Unio Democrtica dos Hngaros na Romnia e o (Sikh) Akali Dal no estado indiano do Punjab. Embora possam lanar candidatos em outras circunscries geogrficas ou levantar importantes problemas nacionais e at mesmo ideolgicos, isso apenas mascara mal e mal sua verdadeira funo tnica (ou regional). Como argumenta Kitschelt (2001), a caracte-rstica definidora dos partidos tnicos (aos quais ele se refere como partidos socioculturais particularistas) a limitao de seu apelo a um eleitorado especfico, pois procuram explicitamente traar fronteiras tnicas entre amigos e inimigos. O principal objetivo de um partido tnico no um programa ou plataforma universalista, e sim a garantia de benefcios (e proteo) materiais, culturais e pol-ticos para o seu grupo tnico em sua competio com outros grupos. Assim sendo, tais agremiaes tm nveis extremamente baixos de compromisso e coerncia ideolgica ou programtica. Alm disso, em

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    geral no possuem uma estrutura organizacional muito desenvolvida nem uma base formal de filiao. Carecendo de qualquer interesse funcional e agenda ideolgica, tendem a mobilizar as relaes clien-telistas preexistentes, tanto que sua estrutura e relaes internas de autoridade lembram as dos partidos clientelistas. Pelo fato de colo-carem em circulao questes simblicas de identidade (e at mesmo de sobrevivncia cultural) poderosamente emocionais, os partidos tnicos tendem a ser dominados e mesmo organizados em torno de um nico lder carismtico (como o NPC de Ahmadu Bello, o Grupo de Ao Obafemi Awolowo e o Mangosuthu Buthelezi de Inkatha). A lgica eleitoral do partido tnico consolidar e mobilizar sua base tnica com apelos exclusivos e frequentemente polarizadores quanto s oportunidades e ameaas do grupo. Diferente de praticamente todos os demais partidos polticos (inclusive os nacionalistas)14, a mobilizao eleitoral no tem como objetivo atrair outros setores da sociedade para apoiar o partido (ver Horowitz, 1985, p. 294-297), cujos interesses so vistos como em conflito inerente com os de ou-tros grupos tnicos. Portanto, mais do que nos partidos religiosos fundamentalistas, sua clientela eleitoral potencial estritamente determinada e limitada pela etnia, embora dentro dessa categoria definidora os apelos eleitorais entre as classes possam levar adoo de objetivos programticos eclticos. Como os partidos tnicos so, por definio, incapazes de se expandir significativamente para alm de suas bases eleitorais, ficam impossibilitados de buscar a hegemonia, a no ser que atinjam uma maioria demogrfica ou anulem a demo-cracia. Por meio de fraudes eleitorais e da manipulao do censo, o NPC da Nigria conseguiu a dominao etnorregional durante a Primeira Repblica. A busca por tal dominao por um partido tnico pode levar a violentos conflitos e foi, efetivamente, um fator que contribuiu para a guerra civil nigeriana.

    Um partido congressista uma coligao, aliana ou federao de partidos ou mquinas polticas, embora possa tomar a forma

    14. Esse o fator principal que distingue os partidos tnicos dos nacionalistas. Esse ltimo busca expandir sua base eleitoral convencendo um nmero cada vez maior de cidados de que devem se identificar com o grupo nacional e sua misso, e frequentemente define nao de forma flexvel, para facilitar seu objetivo. O partido tnico considera as fronteiras do grupo definidas demograficamente como dadas e busca representar exclusivamente seus interesses.

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    estrutural de um s partido unificado. Por isso, em nvel local, pode compartilhar algumas caractersticas organizacionais e compromis-sos programticos com os partidos tnicos (como a distribuio de benefcios a um vasto conjunto de redes patrono-cliente); entretan-to, dentro do sistema poltico nacional, o partido se comporta de forma drasticamente diferente. Seu apelo eleitoral pela unidade e integrao, ao invs da diviso nacional; pelo compartilhamento e coexistncia, e no pela dominao e ameaa tnicas. Enquanto um sistema consociativo procura dividir o poder e os recursos e garantir a segurana mtua entre os grupos da coligao governa-mental formada aps as eleies, um partido congressista constri as garantias da coligao com antecedncia, dentro do amplo arco de sua organizao partidria. Se o arco construdo for amplo o suficiente, o partido pode se tornar dominante, como o arqutipo deste modelo, o Partido Congressista que atuou na ndia durante suas primeiras duas dcadas de independncia. Exemplos menos democrticos so a Unio Nacional Africana do Qunia, sob a liderana de Jomo Kenyatta, e o Barisan Nasional (coligao da Frente Nacional) da Malsia. Se a envergadura do arco multitnico incompleta, o partido congressista pode ser apenas o primeiro en-tre outros semelhantes, como aconteceu com o Partido Nacional da Nigria, durante a Segunda Repblica (1979-1983), e com o atual partido governista nigeriano, o Democrtico Popular. Em ambos os casos, o partido congressista aloca os postos partidrios e cargos do governo e distribui patrocnios e outros benefcios, de acordo com a proporo ou outras frmulas quase consociativas. Sua base social ampla e heterognea, e seu objetivoo torn-la to inclusiva quanto possvel. Entretanto, sua prpria amplitude o torna vulnervel a cises ao longo das linhas divisrias tnicas ou regionais.

    Partidos eleitoralistas

    H trs tipos de partido no gnero mais abrangente de partidos eleitoralistas, com caractersticas fundamentais similares quelas utilizadas por Panebianco (1988) no desenvolvimento de seu conceito de partido eleitoral-profissional15. Os partidos pertencentes a esse

    15. Panebianco (1988, p. 264) resumiu as caractersticas dominantes dos partidos eleitorais- profissionais como: 1) papel central de profissionais especializados

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    gnero so organizacionalmente enxutos e mantm uma estrutura relativamente limitada (apenas com os e funcionrios auxiliando seus respectivos grupos parlamentares). Entretanto, em tempos de eleio, esses partidos entram em ao para conduzir a campanha, o que, inequivocamente, sua funo precpua. Utilizam tcnicas modernas na campanha (enfatizando a televiso e outros meios de comunicao de massa, em vez da mobilizao dos membros do partido e das organizaes afiliadas), e contam pesadamente com profissionais que podem conduzir com competncia essas campa-nhas (Farrell et al., 2000). A reputao pessoal de seus candidatos um critrio importante para a indicao, em detrimento de outras consideraes, como o tempo de servios prestados ou a posio formal na organizao do partido. No entanto, resistimos tenta-o de considerar os partidos eleitoralistas como de tipo nico, j que diferem em alguns importantes aspectos que afetam de forma significativa seu comportamento e, consequentemente, a qualidade da democracia. Em consonncia com isso, estabelecemos trs tipos ideais de partido que se encaixam nesse gnero. Esses trs tipos tm as mesmas caractersticas organizacionais descritas acima, mas se diferenciam nas outras duas dimenses classificatrias: a dois deles falta o forte compromisso ideolgico e programtico, enquanto o outro tipo busca desenvolver um conjunto distinto de programas; dois so certamente pluralistas, enquanto o terceiro pode ter ou no ambies hegemnicas.

    O primeiro o partido catch-all16. Esse tipo ideal de partido pluralista e tolerante se distingue sobretudo por uma organiza-o elementar, uma ideologia vaga e superficial e uma orientao

    em mobilizao eleitoral; 2) laos verticais fracos com grupos sociais e apelos maiores opinio do eleitorado; 3) proeminncia de representantes pblicos e lideranas personalizadas entre seus quadros; 4) financiamento por meio de grupos interessados e fundos pblicos (em oposio antiga dependncia das contribuies dos membros); e 5) nfase em resultados e liderana.

    16. Assim como Wolinetz, desmembramos o partido catch-all de Kirchheimer em dois tipos distintos, baseando-nos em seus diferentes nveis de compromisso com uma ideologia ou com um conjunto estvel de resolues programticas. Wolinetz (1991, p. 118) se refere ao que chamamos de partido catch-all como partido de resultados/oportunista. Compartilhamos seu uso do termo partido programtico (1991) para nos referirmos aos partidos eleitoralistas organizacionalmente enxutos, cujos compromissos ideolgicos ou programticos so razoavelmente fortes.

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    predominantemente eleitoral, bem como pela a liderana proemi-nente e pelo papel eleitoral dos principais candidatos nacionais. O propsito primordial (se no nico) dos partidos do tipo catch-all maximizar o nmero de votos, ganhar as eleies e governar. Para tanto, buscam agregar a maior variedade possvel de interesses sociais. Nas sociedades em que a opinio pblica se distribui (num espectro direita-esquerda) de modo unimodal e centrista, tais partidos procu-ram obter o maior nmero de votos posicionando-se no centro do espectro, revelando-se moderados em suas preferncias polticas e comportamentais. No intuito de estender seu apelo eleitoral a vrios grupos, suas orientaes polticas so eclticas e mudam conforme o humor do pblico. No possuindo uma ideologia explcita, o partido catch-all tende a enfatizar os atributos de atratividade pessoal de seus candidatos, e as indicaes so na maior parte determinadas pelos recursos eleitorais dos candidatos, e no por critrios organizacio-nais, como anos de experincia ou de servio ao partido, ou posio dentro das alas principais do partido. O Partido Democrata dos Estados Unidos, o Trabalhista de Tony Blair, o Frum Democrtico Hngaro e os espanhis, Partido Socialista (PSOE) e Partido Popular, so claros exemplos desse tipo de organizao partidria, assim como o Kuomintang de Taiwan, que est completando sua transformao, extremamente longa, de partido quase leninista para um partido cat-ch-all. Os principais partidos coreanos manifestam muitos aspectos do partido catch-all, embora permaneam marcadamente regionais em suas bases e identidades eleitorais, o que lhes confere um carter de partido tnico (ver Jaung, 2000; Kim, 2000).

    Deve-se notar que o nosso conceito de partido catch-all comea com os tipos partidrios clssicos descritos por Kirchheimer (1966) em alguns aspectos importantes. O primeiro parte da observao de que Kirchheimer no descreve um tipo ideal estvel; segundo sua viso, o partido catch-all evolui de um tipo anterior e, portanto, definido mais pelo que no do que pelo que . Especificamente, a definio de Kirchheimer lista vrias formas pelas quais um partido pega-tudo evolui do modelo partidrio de integrao de mass17

    17. Na formulao clssica de Kirchheimer (1966, p. 190), as caractersticas definido-ras do partido catch-all compreendem a reduo drstica da bagagem ideolgica do partido [] mais o fortalecimento de grupos de alta liderana, cujas aes e omisses so agora julgadas do ponto de vista de sua contribuio para a eficincia

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    anteriormente dominante e, portanto, ainda est na trajetria evolutiva de longo prazo desse tipo de partido18. Nosso tipo ideal um refinamento das caractersticas definidoras que no pressu-pe que o partido tenha uma bagagem ideolgica, uma classe garde ou uma base de filiados considervel. Por conseguinte, de nossa conceituao derivam algumas consequncias secundrias que no consideramos como componentes necessrios para esse modelo. Com uma anlise claramente baseada na experincia dos partidos socialistas da Europa Ocidental, Kirchheimer postula, por exemplo, que, quanto mais declinar a importncia dos mili-tantes partidrios, mais o controle do partido e da indicao de candidatos tender a cair nas mos da alta liderana partidria nacional. A experincia norte-americana dos partidos do tipo cat-ch-all mostra que esse no um componente essencial do modelo: de fato, o crescente predomnio do meio televisivo, as campanhas

    do sistema social como um todo, e no tanto da identificao com os objetivos de sua organizao particular [] a reduo da atuao do membro individual, um papel considerado arcaico, que pode obscurecer a imagem do recm-criado partido catch-all [] a perda de importncia da classe garde, da classe social especfica ou da clientela denominacional, em favor do recrutamento de eleitores entre a populao como um todo [] e assegurando o acesso a uma variedade de grupos de interesse. Deve-se notar que todas essas caractersticas definidoras referem-se s formas como o partido catch-all evolui a partir do antigo modelo partidrio de integrao de massa.

    18. Deve-se notar que isso tambm verdadeiro para o conceito de Koole (1994) de partido de quadros moderno. Embora seja mais semelhante nossa definio de partido catch-all, ele tambm um retrato dos partidos que ainda esto em movimento, evoluindo a partir de tipos partidrios mais clssicos de integrao de massa. O partido de quadros moderno definido por grupos de liderana altamente profissionalizados, baixa proporo membro/eleitor, enfraquecimento ou rompimento de laos com uma classe garde e um personalismo cada vez maior das campanhas eleitorais, dominadas pelo meio televisivo. Consistentes com nosso modelo catch-all (mas diferente do de Kirchheimer), aponta que a liderana do partido no se tornou dominante a ponto de eliminar a democracia interna, particularmente no que se refere nomeao de candidatos. Difere do nosso modelo na medida em que seus apelos eleitorais so mais estveis e focados do que os apelos mais eclticos e mutveis do partido catch-all. Portanto, embora Koole no seja suficientemente preciso nesse ponto, seu modelo tambm pode se aplicar ao que denominamos partidos programticos. Tambm difere, j que a estrutura organizacional de massa mantida. Isso, acreditamos, reflexo do estado transitrio dos partidos holandeses estudados por Koole e, portanto, no pode ser uma caracterstica definidora relevante de um tipo ideal de partido poltico.

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    voltadas para o personalismo ou para resultados e a mudana ou enfraquecimento das alianas partidrias com os grupos sociais que tradicionalmente constituam sua clientela eleitoral foram aspec-tos que caminharam lado a lado com a disseminao das eleies primrias como principal forma de nomeao de candidatos e com o proporcional declnio dos chefes de partido. Ao atenuarmos o determinismo organizacional inerente ao modelo kirchheimeriano e eliminarmos essa caracterstica redundante, sua aplicao a um conjunto mais amplo de casos reais ganha fora, e outras tipo-logias presentes em literaturas comparadas de partidos so mais facilmente classificadas nessa espcie partidria.

    Assim como o tipo catch-all, o partido programtico (ver tambm Wolinetz, 1991, 2002) um partido moderno, pluralista/tolerante, organizacionalmente enxuto e cuja funo principal o comando de campanhas eleitorais, campanhas essas que geralmente buscam capitalizar reputao pessoal de seus candidatos. Por outro lado, o partido programtico est mais prximo do modelo clssico de partido de massa ideolgico por trs aspectos. Primeiro, tem uma agenda programtica ou ideolgica muito mais explcita, consistente e coerente do que a do modelo catch-all, e claramente incorpora os apelos ideolgicos ou programticos s suas campanhas eleitorais e sua agenda legislativa e governamental. Caso opere em um siste-ma eleitoral majoritrio, como no Reino Unido, Estados Unidos e Mxico (p. ex., os conservadores de Margaret Thatcher, os republica-nos a partir de 1980 e o Partido de Accin Nacional), tem de manter uma capacidade ampla de agregar interesses, embora os apelos que ele lana sejam menos difusos, vagos e eclticos do que aqueles dos partidos do catch-all. Segundo, busca ganhar o controle do governo (ou um espao nele) precisamente por meio dessa definio mais ntida de plataforma ou viso partidria. Terceiro, embora sua or-ganizao e base social possam, num sistema majoritrio, lembrar as do partido catch-all, num sistema marcadamente proporcional, como em Israel, o partido programtico tem uma base social mais enxuta e claramente definida, e possivelmente vnculos mais estreitos com organizaes afins na sociedade civil. Nesse caso, sua estratgia eleitoral mobilizar seu eleitorado cativo, ao invs de aument-lo por meio da agregao de interesses. Entre outros exemplos de par-tido programtico esto: o Partido Cvico Democrtico (ODS) de Vaclav Klaus; o Partido Comunista da Bomia e Morvia (KSCM)

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    e o Partido Social Democrata Tcheco (CSSD), na Repblica Tcheca: a Unio Democrtica da Polnia; o Partido Socialista Hngaro (MSzP); o Partido Cvico Democrtico-Jovens Democratas (Fidesz, antigamente a Aliana dos Jovens Democratas) na Hungria; e o Partido Progressista Democrtico (DPP) em Taiwan.

    O partido eleitoralista em sua forma mais pura o que chamamos de partido personalista (denominado partido no partidrio por Ignazi, 1966, p. 522), j que seu nico princpio fornecer uma mquina para o lder ganhar a eleio e exercer o poder. Ele no se origina da estrutura tradicional das elites locais, mas, normalmente, uma organizao criada ou convertida por um lder nacional titular ou aspirante com o propsito exclusivo de promover suas ambies polticas. Seu apelo eleitoral no se baseia em nenhum programa ou ideologia, mas sim no carisma pessoal do lder/candidato, que retratado como indispensvel para a resoluo dos problemas ou crises do pas. Embora possa lanar mo de redes clientelistas e/ou da ampla distribuio de benefcios particulares aos apoiadores, sua organizao fraca, elementar e oportunista. De fato, pode ser to efmero que, mesmo estando a servio de um presidente eleito, como Alberto Fujimori no Peru, a ponto de mudar de nome e estrutura em toda eleio. H outros numerosos exemplos no sculo XX: a Forza Italia de Silvio Berlusconi; o Congresso-I, que, em apoio a Indira Gandhi, derrotou o restante do Partido do Congresso; o Partido Popular Paquistans, que Benazir Bhutto herdou de seu pai (portanto, com razes mais profundas do que os demais partidos personalistas); e os veculos partidrios criados s pressas e desti-nados a apoiar as aspiraes eleitorais de Hugo Chvez Fras na Venezuela, Fernando Collor de Mello no Brasil e Joseph Estrada nas Filipinas. Um exemplo clssico recente o Partido Thai Rak da Tailndia, do magnata dos negcios tailands, Thaksin Shinawatra, cuja personalidade e vasta fortuna pessoal deram a seu partido uma indita maioria absoluta no parlamento, apesar de ter sido formado apenas alguns meses antes das eleies de novembro do ano 2000. A maioria desses partidos ou foi pluralista e tolerante em seu modo de atuao, mas isso nem sempre verdade, como claramente demonstra o comportamento proto-hegemnico de Fujimori no Peru e de Chvez na Venezuela.

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    Partidos de movimento social ou movimentalistas

    Finalmente, h um tipo de organizao partidria que ocupa os espaos conceituais existentes entre partido e movimento. Os exemplos mais destacados so os verdes da Alemanha e o Partido da Liberdade Austraco; de qualquer modo, preciso deixar cla-ro que esse tipo de organizao deve ser includo nessa tipologia abrangente, j que eles lanam candidatos regularmente e tm sido bem-sucedidos em eleger membros ao parlamento e em participar (como na Alemanha em 1999) de uma coalizo governamental nacional e em muitos estados da federao. Atualmente, na Europa Ocidental, os exemplos mais notrios de partidos de movimento se dividem em dois tipos: partidos libertrios de esquerda e partidos de extrema-direita ps-industriais. Todavia, esse gnero de tipos partidrios deve ser considerado como sendo de composio aberta, j que a fluidez de suas caractersticas organizacionais se manifesta de maneiras diferentes em outras partes do mundo ou no curso da histria. Isso vale especialmente para partidos recm-formados, que ainda no firmaram suas prticas (como o Partido Trabalhista britnico do incio do sculo XX e os gaullistas franceses antes de 1958).

    Herbert Kitschelt nos apresenta a anlise mais bem detalhada da variante libertria de esquerda dos partidos de movimento social. O autor os contrasta com os partidos convencionais da Europa Ocidental, que visam principalmente alcanar o poder governamen-tal por meio de cargos eletivos; contam com quadros profissionais no partido e uma ampla organizao; representam os grupos de interesse econmicos (trabalhistas ou de negcios); e esto preocu-pados sobretudo com problemas de distribuio de renda (Kitschelt, 1989, p. 62). Por sua vez, os partidos libertrios de esquerda so essencialmente ps-materialistas em sua orientao e modo de atuar. Rejeitam a importncia fundamental dos temas econmicos e se caracterizam por um consenso negativo de que a predominncia do mercado e da burocracia deve ser revertida em favor de relaes sociais solidrias e instituies participativas (Kitschelt, 1989, p. 64). De fato, na ausncia de um consenso no apoio de uma ideologia ou conjunto de preferncias programticas nico e abrangente, tal consenso negativo funciona como o mnimo denominador comum compartilhado por uma clientela de outro modo heterognea, e a

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    agenda partidria gira em torno de uma multiplicidade de temas no limitados a uma nica arena. No h barreiras de filiao ao grupo, que aberto a todos que desejam participar, tornando a base social e a orientao das posturas dos ativistas ainda mais diversas. O forte compromisso de participao direta leva ao enfraquecimento (e at mesmo rejeio) da organizao e da liderana centralizadas, e a um modo por vezes catico de organizar assembleias (como bem ilustra o ataque com bales de gua dirigido ao ministro do Exterior, Joshka Fischer, no congresso de 1999 dos verdes alemes). Em termos de organizao, o partido de movimentalista baseia-se em redes de apoio informais, carentes de estrutura formal, hie-rarquia e comando central (Kitschelt, 1989, p. 66). Finalmente, o partido de movimento libertrio de esquerda enfatiza a represen-tao eleitoral em detrimento da lgica da competio eleitoral, o que o torna, por vezes, um parceiro de coalizo nada pragmtico e tampouco confivel.

    Piero Ignazi (1996) apresenta um panorama sucinto do partido de extrema-direita ps-industrial, visto por ele como um tipo di-ferente de reao contra as condies da sociedade ps-industrial. Como aponta o autor, l onde os libertrios de esquerda enfatizam a autoafirmao, a no formalidade e o libertarismo como reao sociedade moderna e s instituies do Estado, os apoiadores da extrema-direita so movidos por sua atomizao e alienao na busca por mais ordem, mais tradio, mais identidade e mais segu-rana, ao mesmo tempo que atacam o Estado por sua interveno na economia e por suas polticas de bem-estar social (Ignazi, 1996, p. 557). Como seus antecessores fascistas, eles abraam o princpio da liderana e no questionam as diretrizes do lder principal do partido (p. ex., Le Pen, da Frente Nacional, e Haider, do Partido da Liberdade). No entanto, diferem dos fascistas (os quais apoia-vam um partido forte, disciplinado e militante como arma a ser utilizada contra os inimigos, especialmente os partidos socialistas e comunistas) por serem hostis ao partido e ao establishment de forma mais geral. Em vez disso, evidencia-se fortemente uma linha de confronto marcada pela hostilidade xenofbica e racista em relao aos imigrantes. Ademais, os fascistas pleiteavam a construo de um Estado forte, enquanto para esse tipo de partido uma retrica neoconservadora antiestatista e ataques ao bem-estar social permeiam os discursos e propostas programticas dos lderes

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    e candidatos (ver as diversas contribuies de Betz e Immerfall, 1998)19.

    Quinze espcies de tipos ideais de partido e sua construo terica

    A tipologia aqui desenvolvida , sem dvida, menos parcimoniosa do que os modelos de duas, trs ou quatro categorias que domi-naram at agora a literatura comparada de partidos polticos. Os acadmicos que preferem os estilos de construo terica baseados na deduo a partir de um conjunto unidimensional de critrios podem no receber muito bem essa contribuio, considerando que sua complexidade e multidimensionalidade podem atrapalhar a cons-truo terica. Pedimos licena para discordar. Acreditamos que as teorias das cincias sociais que pretendem explicar o comportamento humano ou a atuao das instituies devem refletir rigorosamente as condies do mundo real. Como dito anteriormente, julgamos que, em sua maior parte, as tipologias antes dominantes estavam incompletas, na medida em que se baseavam na experincia histrica da Europa Ocidental entre o sculo XIX e metade do XX. Assim sendo, elas no refletem adequadamente a realidade mais diversa dos partidos polticos de outras partes do mundo: como sugerimos, as profundas clivagens tnicas que dividem muitas sociedades africanas e asiticas no tm nenhuma correspondncia com o contexto tnico, lingustico, religioso e cultural muito mais homogneo da Europa Ocidental. Portanto, para que uma tipologia de partidos possa ser

    19. Pode haver uma tentao de especular que essa diferena fundamental produto das diferenas de status quo social e poltico contra os quais o partido reage. Na dcada de 1920, o Estado era enxuto, e a principal ameaa ordem social vinha dos partidos militantes da esquerda marxista. Na dcada de 1930, a Depresso fez do clamor por um Estado mais ativo uma resposta razovel ao desemprego e pobreza generalizada. Nas dcadas de 1980 e 1990, no entanto, o Estado do bem-estar social estava plenamente desenvolvido na maioria dos pases europeus ocidentais (especialmente na ustria e na Frana, onde esses partidos de extre-ma-direita tiveram grande impacto poltico). Portanto, o ataque ao Estado inter-vencionista representava a reao bvia nesse processo dialtico de formao ideolgica. Alm disso, o declnio do marxismo militante e dos partidos classistas de massa juntamente com a migrao macia de pases do Terceiro Mundo e da ex-Unio Sovitica para a Europa Ocidental criaram, efetivamente, uma nova minoria a ser detestada por esses partidos xenofbicos.

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    utilizada em anlises comparativas mais amplas de diferentes regies, ela deve admitir a emergncia de tipos distintos nos mais variados contextos sociais, como os partidos tnicos, de congresso e funda-mentalistas religiosos descritos anteriormente.

    Analogamente, no se pode supor que as tipologias baseadas nas caractersticas dos partidos da Europa Ocidental dos sculos XIX e XX sejam vlidas para todas as pocas, at mesmo dentro dessa prpria regio. O contexto socioeconmico e as tecnologias de co-municao continuam a evoluir, e tm importantes implicaes na estrutura, nos recursos, nos objetivos e nos modos de atuao dos partidos polticos. Assim sendo, a diviso dicotmica entre partidos de quadros e de massa, ou entre partidos de representao individual e partidos de integrao social ou total, pode refletir rigorosamente a realidade da Europa Ocidental durante a primeira metade do sculo XX. Entretanto, na segunda metade desse sculo, ficou claro que esses modelos partidrios clssicos foram se tornando cada vez mais incapazes de dar conta da diversidade de tipos de partido presente nas democracias estveis. O modelo catch-all de Kirchheimer (1966) certamente ajudou a suprir tal deficincia, ao identificar as formas pelas quais muitos partidos tenderam a desviar-se do modelo de partido de massa. Nas dcadas seguintes, no entanto, a classificao de catch-all passou a ser usada para descrever uma variedade exces-sivamente ampla de partidos cujas estratgias eleitorais e compro-missos programticos diferiam substancialmente. Assim, acreditamos ser necessrio desmembrar esse clssico, mas superagregado tipo partidrio em trs diferentes tipos de partido eleitoralista.

    O teste de hipteses e a construo terica so facilitados por tipos ideais que abarcam todos os elementos definidores de um conceito, mas ao mesmo tempo no superagregam por meio da incluso de elementos que no devem estar juntos nem conceitualmente nem empiricamente. Como Peter Mair (1989) apontou, por exemplo, o modelo catch-all conforme elaborado por Kirchheimer (1966) inclui componentes ideolgicos e organizacionais: a desvalorizao do compromisso ideolgico de um partido est inteiramente ligado leveza de sua estrutura organizacional e a uma nfase maior (tanto eleitoral como organizacional) em sua liderana nacional. Como Wolinetz (1991), acreditamos ser necessrio separar as dimenses ideolgica e organizacional (como fizemos ao elaborar nossos mo-delos para os partidos catch-all, programtico e personalista) tanto

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    para refletir a realidade de forma mais acurada, quanto para facilitar a anlise das causas das mudanas partidrias.

    Consideramos isso desejvel, pois a evoluo dos partidos ou o surgimento de novos tipos pode ser produto de vrios processos causais fundamentalmente distintos