o mito do bom selvagem no romance o guarani

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  • O MITO DO BOM SELVAGEM NO ROMANCE O GUARANI

    Simeo Pereira Neto

    RESUMO: O objetivo deste artigo analisar a presena do elemento mtico no romance O Guarani. Dentro do propsito romntico de afirmao nacional e exaltao patritica no romance, o escritor Jos de Alencar recria o mito do bom selvagem de Rousseau em nosso indgena. Ao criar Peri, o heri nacional, o escritor procurou aproxim-lo do heri europeu, um heri das novelas de cavalaria. Jos de Alencar deu-lhe caractersticas que ele no possui, levando-o a ter identidades e aspectos que fogem aos ditames da identidade nativista e nacionalista do Brasil. O ndio adquiriu caractersticas especiais: a bravura, a coragem e a determinao, o qual levado figura do cavalheiro medieval.

    PALAVRAS-CHAVE: Mito ndio Bom selvagem - Nacionalismo.

    ABSTACT: The objective of this article is to analyze the presence of the mythic element in the novel O Guarani. Inside the romantic purpose of national affirmation and patriotic exaltation, in the novel, the author, Jos de Alencar recreates the myth of Rousseaus good savage in our indigenous people. By creating Peri, the national hero, the writer aspired to bring him close to the European hero, a hero from the cavalry novels. Jos de Alencar gave him traits he did not have, forcing him to have characteristics and aspects that do not belong in the standards of the native identity and nationalist of Brazil. The indigenous people acquired special characteristics: bravery, courage and the willpower, which is taken with the figure of the medieval gentleman.

    KEYWORDS: Myth Indian Good savage Nationalism.

    INTRODUO

    O Romantismo como manifestao artstica e literria, abarca formas de

    expresso envolvidas em questes sociais, polticas e culturais.

    Para entender a esttica romntica, preciso consider-la como produto de dois

    grandes eventos do sculo XVIII: a Revoluo Francesa e a Revoluo Industrial que

    geraram inmeras mudanas no estilo de vida das pessoas. O incio da industrializao

    motivou o surgimento da sociedade urbana e o aparecimento da classe mdia. Este ponto

    vital para explicar a popularizao da literatura, uma vez que a classe mdia, em busca de

    novas formas de entretenimento, a grande consumidora de livros.

    Professor de Lngua Portuguesa e Literatura brasileira.

  • No Brasil, o Romantismo encontra-se estreitamente ligado ao processo de

    independncia, j que se trata de um movimento que tenta romper em definitivo com as

    tradies de nossos colonizadores portugueses, numa busca de elaborao de uma literatura

    genuinamente brasileira.

    bem verdade que tivemos fortes influncias do Romantismo europeu, cuja base

    estava calada nos ideais de liberdade, subjetivismo e nacionalismo. Contudo, o Romantismo

    brasileiro soube adaptar tais caractersticas realidade local, de forma que, por exemplo, a

    valorizao da fuga ao passado medieval cedesse lugar presena do ndio e exaltao da

    natureza, enfim aquilo que possua caractersticas nacionais, apesar de serem expressos com

    certos exageros.

    Os romnticos possudos pelo desejo de se evadir para um lugar utpico cederam

    lugar imaginao e ao sentimento, conquistando aos poucos o espao pela razo. Nesse

    clima do uso imaginrio e voltado para uma viso construtiva do pas que estivesse altura

    de uma literatura europia, os escritores romnticos inventaram a sua arte de carter popular,

    que valoriza o nacionalismo e ope-se aos modelos clssicos. Colocando a propsito de tudo

    e como smbolo nacional o ndio brasileiro, principiando um perodo de atividade literria

    voltada para os valores nacionais, evidenciando as cores locais enfocando o espao e o

    homem brasileiro em busca de uma cultura nativa, motivos que levaram ao aparecimento da

    produo literria indianista.

    Nesse sentido, a obra O Guarani de Jos de Alencar, publicada em 1857, ressalta

    as caractersticas do personagem Peri. Assim este artigo centrar-se-, principalmente, nos

    aspectos que delineiam o perfil do personagem,

    O indianismo no era apenas uma sada natural e espontnea para o nosso Romantismo. Era mais do que isso, alguma coisa profundamente nossa, em contraposio a tudo que, em vs era estrangeiro, era estranho, viera de outras fontes (SODR, 2004, p.321).

    O indianismo nasceu de um nacionalismo em busca de identidade prpria e

    encontrou no ndio, o elemento de suas criaes, representando tudo de bom que o Brasil

    possua naquela poca. O indianismo de Jos de Alencar, desempenhando um papel

    fundamental na construo da identidade brasileira, exigncia gerada pela ruptura da colnia

    com a metrpole. Os ndios tm um papel fundamental na moldagem da brasilidade e, como

    argumenta Alfredo Bosi, fosse razovel que ele ocupasse, no imaginrio ps-colonial, o papel

    de rebelde, j que era o habitante originrio do territrio invadido pelo colonizador.

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  • A criao do personagem Peri no romance O Guarani inspirado na teoria do

    bom selvagem de Rousseau. Nela, o homem primitivo e selvagem bom e puro por

    natureza o oposto do homem civilizado, que corrompido e cheio de mazelas. A obra de

    Alencar est voltada para a idealizao herica do ndio, os valores como o bem, o belo, o

    justo e o verdadeiro so destacados no decorrer da narrativa levando o leitor imaginao

    mtica.

    Ao longo deste artigo, utilizarei como embasamento terico os seguintes autores:

    Jean Jacques Rousseau (2005), Mircea Eliade (2006), Nelson Werneck Sodr (2004), Renato

    Ortiz (1998) assim como outros que daro suporte ao estudo proposto, para que o trabalho

    assuma, mesmo que em parte carter cientfico. J que estudar questes literrias um campo

    demasiadamente amplo, no qual podemos encontrar o inesperado, o indesejado e o

    surpreendente, mas que do literatura novas feies a cada estudo realizado.

    1 - O QUE MITO?

    Nos dicionrios de verbetes da Lngua Portuguesa, encontraremos a seguinte

    definio de mito: O mito uma narrativa tradicional com carter explicativo e/ou

    simblico, profundamente relacionado com uma dada cultura e/ou religio. O mito procura

    explicar os principais acontecimentos da vida, os fenmenos naturais, as origens do mundo

    e do homem por meio de deuses; semideuses e heris (todas elas so criaturas sobrenaturais).

    Pode-se dizer que o mito uma primeira tentativa de explicar a realidade.

    O termo mito , por vezes, de forma pejorativa para se referir s crenas

    comuns (consideradas sem fundamento cientfico, e vistas apenas como histrias de um

    universo puramente maravilhoso) de diversas comunidades. No entanto, at acontecimentos

    histricos pode transformar em mitos, se adquirirem uma determinada carga simblica para

    uma dada cultura.

    Na maioria das vezes, o termo refere-se especificamente aos relatos das

    civilizaes antigas que, organizados, constituem uma mitologia.

    Segundo Eliade (2006, p.11) o mito uma realidade cultural extremamente

    complexa que pode ser abordada e interpretada em perspectivas mltiplas e complementares.

    O mito uma crena-verdade. A narrativa mtica considerada verdadeira. Uma

    vez criado, o mito passa a ser objeto de crena popular nas sociedades primitivas. E isso

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  • porque os mitos tentam explicar as origens das coisas e se referem a realidade da vida

    cotidiana. Alm de considerado verdadeiro, o mito vivido atravs dos atos rituais.

    O mito segue uma lgica peculiar. A criao dele anterior formao da

    conscincia reflexiva. Trata-se de uma protofilosofia, pois a resposta pergunta do homem

    sobre o universo e seus fenmenos dada no pelo pensamento conceptual, mas pela fantasia

    criadora de imagens. Da a relao profunda entre mito e poesia.

    O mito uma concepo ctica quando h uma recusa em acreditar-se na

    linguagem dos deuses

    Os mitos no tm autor: do momento em que so apreendidos como mitos e independentemente de sua origem real, eles s existem encarnados numa tradio. Quando um mito narrado, os ouvintes individuais recebem uma mensagem que no vem de parte alguma; por essa razo lhe atribuda uma origem sobrenatural. (BRUNEL, 2005, p.17).

    Ao objetivarmos o mythos, como categoria filosfica, literria e histrica, ele se

    inscreve e pertence a Histria principiamos o percurso de um longo caminho, por vezes

    obscuro e contraditrio, que o estudo de um processo de levar o logos para alm de seus

    limites (BRUNEL, 2005, p.18) consiste a prpria essncia do mito. E, neste caso, logos

    entendido como discurso estruturado a partir do que o ser humano pensa ser possvel

    distinguir relativamente ao mythos, isto , a Razo.

    De fato, se mythos e logos partilham de uma raiz semntica semelhante

    relacionando-se ambos com a palavra, o discurso, o pensamento verbalizado, o que mais

    nitidamente os distingue o tipo de estruturao discursiva em torno de algo que foi

    necessrio projetar atravs da fronteira entre dois mundos opostos: o das palavras e o das

    coisas. Aquilo que decisivamente os afasta , uma oposio convertida em princpio

    fundamental, ou seja, o eixo Verdadeiro/falso, nem sempre lucidamente aplicvel e

    aplicado, mas sobre o qual giram os mundos das palavras que constroem idias sobre as

    coisas, que s parecem existir, porque existem palavras que construram as idias dessas

    coisas e dessas palavras, sobrepondo-as, impondo-as, expondo-as, apresentando-as e

    representando-as.

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  • 2 - A PRESENA DO ELEMENTO MTICO EM O GUARANI

    Com a evoluo da sociedade humana marcada pelo pensamento reflexivo e pelo

    progresso das cincias, o papel do mito passa a ser exercido por poetas e artistas. A estes

    coube lanar mo da fantasia para criar mundos imaginrios, onde as aspiraes do

    inconsciente coletivo pudessem realizar-se.

    A leitura do romance O Guarani realizada de uma perspectiva mtica coloca,

    como primeiro problema a necessidade de se estabelecer o sentido atribudo a esse conceito.

    Segundo, Eliade (2006), um dos principais estudiosos da matria, no nada simples, uma

    vez que, dada a multiplicidade de tipos e funes do mito, dificilmente poderamos chegar a

    um dominador comum apto a unific-los. Para Eliade, a definio menos imperfeita, a que

    descreve como uma histria sagrada que narra uma ao praticada por entes sobrenaturais

    num tempo primordial. Dando origem a alguma coisa (o cosmo, uma ilha, um animal, uma

    planta, a morte...) cuja existncia uma realidade passvel de ser verificada ainda no

    momento da enunciao do mito (ELIADE, 2006, p. 11-12). Por narrar o surgimento de uma

    coisa real, o mito compreendido pelas comunidades que o criam como uma histria

    verdadeira. Nos casos dos mitos de origem, interpretados pelo pesquisador como um

    prolongamento da cosmogonia: teramos a narrao de como algo que existia no momento da

    criao do mundo passou a existir: os mitos de origem prolongam e completam o mito

    cosmognico: eles contam como o mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido

    (ELIADE, 2006, p. 25).

    Nesse sentido, compreender O Guarani como um mito de origem do Brasil

    equivale a interpret-lo como narrao do surgimento do pas em decorrncia de uma ao

    grandiosa, realizada num passado distante.

    Num passado longnquo que serve de modelo para a reproduo da sociedade atual. Isto significa para a histria se situa aqum dela, e, ao descrever um estado anterior, legitima a continuidade do presente.[...] O Guarani partilha desta dimenso mtica, e o autor anuncia, logo no inicio do livro, que a estria se passa num perodo em que a civilizao no tivera tempo de penetrar o interior. Isto , quando o Brasil se encontrava ainda na sua virgindade originria e a terra no havia sido profanada pela irreversibilidade do tempo. (ORTIZ, 1988, p.262).

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  • multiplicidade de definies do mito, parece produtivo procurar identificar a

    viso que o prprio Alencar tinha sobre a questo, para, a partir dela, depreender os

    procedimentos retricos empregados pelo autor para dotar suas narrativas de uma dimenso

    mtica.

    Estimulado pelo esprito nacionalista que se seguiu Independncia, o romantismo

    brasileiro demonstrou grande interesse pela epopia, percebida como a forma mais adequada

    para a composio de uma obra em louvor ao jovem pas.

    2.1 O MITO DO BOM SELVAGEM

    O mito do bom selvagem isto do homem que vive em perfeita harmonia com a

    natureza.

    ... O homem que nasceu, embalou-se e cresceu nesse bero perfumado; no meio de cenas to diversas, entre o eterno contraste do sorriso e da lgrima, da flor e do espinho, do mel e do veneno...... Canta a natureza na mesma linguagem da natureza; ignorante do que se passa nele, vai procurar nas imagens que tem diante dos olhos a expresso do sentimento vago e confuso que lhe agita a alma (ALENCAR, 1999, p. 225).

    O pensamento de Rousseau pode ser tomado como uma doutrina individualista ou

    uma denncia de falncia da civilizao. O mito criado pelo filsofo em torno da figura do

    bom selvagem, o ser humano em seu estado natural, no contaminado por constrangimentos

    sociais deve ser entendido como uma idealizao terica. Alm disso, a obra de Rousseau no

    pretende negar os ganhos da civilizao para reconduzir a espcie humana felicidade.

    Os poetas e escritores romnticos, por outro lado, criaram o mito do bom

    selvagem, segundo o qual os povos primitivos eram essencialmente bons, porque no

    tinham sido corrompidos pela sociedade: este um mito que apresenta um conceito

    idealizado.

    O bom selvagem se desdobra em heri regional em que o selo da nobreza dado

    pelas foras do sangue que o autor reconhece e respeita igualmente na estirpe dos

    colonizadores brancos. Ao herosmo de Peri no deixa de apor a sobranceira de Dom

    Antnio de Mariz e sua esposa, os casteles impvidos de O Guarani(BOSI, 2006, p.138)

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  • Bosi (2006), ainda afirma que o espelho era a viso simblica das foras naturais.

    O vio da rvore, o faro do bicho, o ardor do sangue e do instinto, eis os mitos primordiais

    que valero, no cdigo de Alencar, pureza, lealdade e coragem.

    A viso de Alencar do mito como um ser que, ao concentrar em si a tradio de

    feitos grandiosos praticados por indivduos cujos nomes foram esquecidos, reveste-se de

    uma dimenso simblica, tornando-se o representante das virtudes mais caras de uma

    comunidade.

    Na decadncia da humanidade, provocada pelo desejo de possuir, pelo solo

    demarcado, pela violncia e a necessidade de leis, , que Rousseau vai mostrar ao narrar a

    origem da sociedade, focalizando ainda o estado de natureza, mas subordinado ento a uma

    histria:

    O exemplo dos selvagens, que foram encontrados quase todos nesse estgio, parece confirmar que o gnero humano fora feito para assim permanecer para sempre. Que esse estado a verdadeira juventude do mundo, que todos os progressos anteriores foram em aparncia, outros tantos passos para a perfeio do indivduo, mas, na verdade, para a decrepitude da espcie (ROUSSEAU, 2005, p. 92).

    Para fundamentar seu pensamento que segue em direo oposta ao progresso

    louvado por grande parte dos filsofos, Rousseau vale se dos mitos como verdade universal e

    assinala, insistentemente, o carter conjetural das explicaes positivas sobre o progresso,

    baseadas em pesquisas histricas rpidas e superficiais; comeando por descartar os fatos

    histricos mal conhecidos, os evocar como mitos, teis ilustrao de seu raciocnio.

    Eliade (2006) relata que o mito das origens :

    U m acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos comeos. Noutros termos, o mito conta como, graas aos efeitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir. O mito s fala daquilo que realmente aconteceu que se manifestou plenamente (2006, p.12).

    O mito do bom selvagem segue sua carreira em todas as utopias e ideologias

    ocidentais at Jean-Jacques Rousseau, o que mostra no ter o ocidente renunciado ao antigo

    sonho da busca pelo paraso terrestre, da volta idade de ouro da humanidade.

    Em seus textos literrios, que prefiguram os temas maiores do Romantismo, entre

    eles o sentimento pela natureza, Rousseau deixa entrever sua nostalgia pela Idade de Ouro,

    seu desejo utpico de recriar o Paraso perdido.

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  • No romance O Guarani, o ndio, como selvagem de Rousseau, amalgamado

    natureza, o oposto de D. Antnio de Mariz, portugus de antiga tmpera, fidalgo

    leal(ALENCAR, 1999, p.15). Enquanto D. Antnio senhor em sua casa, chefe de seu cl

    e representante da metrpole, guardio das tradies e senhor cultural, Peri senhor em seu

    habitat (a natureza), o heri das florestas brasileiras, guerreiro invencvel. Entre os dois se

    coloca Ceci, nico elemento do mundo cultural a realizar harmoniosamente uma integrao

    natureza, movida pela fora de atrao de Peri.

    A terceira etapa do romance apresenta uma confirmao de que a natureza

    superior cultura, conforme preconizava o iderio do Romantismo. Iniciada dentro de

    cdigo que remetia ao substrato medieval, a narrativa caminha para uma posio ideolgica

    mais romntica: Peri passa a ser o verdadeiro mediador entre a cultura e a natureza,

    introduzindo e acompanhando Ceci no conhecimento de si mesma e desse novo mundo. A

    Natureza passa, ento, a supremacia sobre a cultura, realizando o ideal romntico de

    liberdade e pureza: o heri primitivo, Peri, cujo nome significa junco selvagem

    (ALENCAR, 1999, p.24), o prprio smbolo da natureza. Essa predominncia se acentua

    medida que surge o mtico da narrativa, medida que a obra vai abandonando seu carter

    histrico e novelesco e identificando-se com o mito. Os dois mitos finais, um de origem

    bblica (No) e outro indgena (Tamandar), indiciam a soluo para a histria, que j fora

    encaminhada ao longo da narrativa e de certa forma predita quando Peri conta a Ceci, a

    lenda de Tamandar. Apoiando-se no mtico, o texto vai-se aproximando do potico.

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  • 3 - CONTRADIES INDGENAS EM PERI

    Influenciada pela tendncia romntica europia, a literatura brasileira obviamente

    no poderia apoiar-se nos heris medievais para louvar a grandeza e a honra do esprito

    nacional. Seria necessrio encontrar outro momento histrico e um novo modelo de heri.

    Para exaltar o carter especfico do povo brasileiro e as qualidades distintivas desta terra,

    elegeu-se, ento, a poca da colonizao do pas e idealizou-se o ndio como origem mtica

    da raa brasileira. Foi esse o formato que recebeu, na literatura brasileira, o romance

    histrico de origem europia.

    Considerado o mais importante romancista indianista do Romantismo brasileiro,

    Jos de Alencar ao cria o heri nacional fruto das novelas de cavalaria. O prosador procurou

    pintar o ndio, dando caractersticas que ele no as possui, levando-o a ter identidades e

    aspectos que fogem aos ditames dos nativistas e nacionalistas do Brasil.

    Alencar, ao criar o romance, O Guarani acreditava que o ndio seria um

    elemento essencial para o romance histrico. Ele estava situado no quadro histrico e

    queria representar poeticamente no plano literrio as nossas origens e a nossa formao com

    povo e Jos de Alencar, na verdade, tem esse desejo ideolgico de mostrar um Brasil

    glorioso e positivo. Por isso, o autor revela um Brasil mais baseado em fatos lendrios para

    provar nossas razes. Como observa Coutinho (1999; p.259): Alencar criou, com base mais

    lendria do que histrica, o mundo potico de nossas origens, para afirmar a nossa

    nacionalidade, para provar a existncia de nossas razes legitimamente americanas.

    evidente que o ndio tema do romance O Guarani no se vinculava ao ndio

    real, eventualmente conhecido do pblico leitor da poca. Esse ndio aculturado, fragilizado

    perante a civilizao, no poderia servir de modelo histrico. Por isso, o escritor Jos de

    Alencar tratou de imaginar um ndio que pudesse representar o homem brasileiro e a extica

    mata tropical. O espao, tempo e o personagem que formam esse conjunto coerente na

    construo de narrativa em O Guarani, deriva mais da fantasia que da realidade.

    Em O Guarani para contrabalancear o mpeto fantasioso que se nota na narrativa

    dos feitos fabulosos do ndio Peri, Jos de Alencar inseriu algumas observaes no

    romance explicando sobre a cultura indgena, sobre os personagens para emprestar certo ar 9

  • de verossmil obra. Podemos notar esse fato quando Alencar narra, a passagem onde Peri

    descreve a sua lenda indgena, que ocorreu na ocasio do dilvio.

    Tamandar tomou sua mulher nos braos e subiu com ela ao olho da palmeira; a esperou que a gua viesse; a palmeira d frutos que o alimentava [...] A gua tocou o cu; e o Senhor mandou ento que parasse. O sol olhando s viu cu e gua e o cu a palmeira que boiava levando Tamandar e sua companheira. (Alencar, 1999; p.318).

    Mesmo Alencar procurando dar um realismo obra, e sua personagem sendo

    construda em torno de modelo direto ou indiretamente conhecido, que simplesmente um

    pretexto para a caracterizao, que explora ao mximo as suas virtualidades, por meio da

    fantasia. Quando o modelo no convm s caractersticas que o autor deseja, ele enfatiza essas

    aes no comportamento e nos sentimentos acerca de suas idias de maneira que a

    caracterstica do personagem venha ser real e imaginria. O personagem Peri, que um ser de

    origem real, mas seus feitos no passavam de trunfo da imaginao e da fantasia de Alencar.

    Ao usar a imaginao, Alencar revela o selvagem no apenas grandioso, mas

    sacralizado e adaptado sob a forma de mito, mostrando um ndio, o qual ele desejava:

    selvagem, real, verdadeiro e palpvel e que o leitor, porm admira e ama tal como Alencar o

    idealizou, criou e fez deste personagem um ser imortal. O mito no reproduz a verdade,

    conduz o romancista a por em cena a metfora da realidade e de expressar certas verdades

    que escapam razo.

    O personagem Peri o smbolo nacional de uma idealizao potica, e que os

    costumes indgenas foram modificados pela frtil imaginao de Alencar e que as grandezas

    que Peri realizava estavam longe da verossimilhana. Ao narrar a batalha dos Aimors contra

    a famlia de D. Antnio Alencar, deixa evidente essa falta de verossimilhana, pois, Peri

    apenas um exagero na idealizao ficcional, pois ele sozinho no conseguiria vencer a

    batalha.

    -Sejam mil; Peri vencer a todos, aos ndios e aos brancos.-Ele pronunciou estas palavras com a expresso de naturalidade e ao mesmo tempo de firmeza que d a conscincia da fora e do poder.-Contudo Ceclia no podia imaginar o que ouvia; parecia inconcebvel que um homem s, embora tivesse a dedicao e herosmo do ndio, pudesse vencer no os aventureiros revoltados, como os duzentos guerreiros aimors que assaltavam a casa. (ALENCAR, 1999, p.140)

    O carter mtico de Peri, colocado por Alencar neste trecho foi absolutamente

    necessrio para encarar os guerreiros. De modo respeitoso, o autor contempla o heri, o 10

  • desenha como o homem primordial sado materialmente de suas mos divinas, e de uma

    imaginao exuberante, plasmado por uma divindade mxima, onisciente e onipotente.

    Tentando transpor uma imagem de uma nao forte e religiosa em que o colonizador deveria

    acreditar e, at mesmo, espelhar-se.

    Alencar, ao construir a imagem do heri brasileiro, aquele homem excepcional

    que possua o segredo da fora e da sabedoria, esse heri deveria ser, ento, adorado e

    seguido. Somando-se a isso, o ndio obtm a imagem do mito, no permanecendo em sua

    forma primitiva, propaga-se e adapta-se ao meio para onde transplantado, adquire feies

    locais por ser profundamente popular e nacional.

    Esse esforo de fincar o p na realidade, no impede, porm, que o romance seja o

    mesmo o resultado de um grande esforo imaginativo que comps um heri indgena bastante

    ambguo. Peri , ao mesmo tempo, o selvagem atltico, conhecedor dos segredos da natureza,

    gil, valente, impetuoso. Entretanto, toda a audcia do selvagem brasileiro no pode afrontar o

    branco de bem, representado pela famlia de D. Antnio de Mariz. Por outro lado, Peri , ao

    mesmo tempo, o ndio dcil, submisso e fiel aos seus senhores. O carter selvagem, tanto

    do personagem, quanto da paisagem, reduz-se, ento, a um elemento extico, que seduzia a

    curiosidade dos leitores por esse outro mundo, criado por Jos de Alencar.

    A tentativa de mitificar o ancestral indgena de nossa cultura, no devia se

    traduzir em rejeio cultura europia da classe dominante. Alencar apresenta uma sntese

    harmnica, um convvio pacfico entre colonizador e colonizado, o que se verifica claramente

    na caracterizao de Peri: em nome de sua voluntria obedincia a venerada Ceci, filha de D.

    Antnio de Mariz, Peri controla toda sua natureza bravia e se domestica. Em contrapartida, os

    maus ndios do romance so os Aimors, canibais que atacam a famlia Mariz e que

    simboliza uma insubordinao inaceitvel.

    O velho fidalgo velara uma boa parte da noite; ou escrevendo ou refletindo sobre os perigos que ameaavam sua famlia.Peri lhe havia contado todas as particularidades do seu encontro com os Aimors; e o cavalheiro, que conhecia a ferocidade e esprito vingativo dessa raa selvagem, esperava a cada momento ser atacado. (ALENCAR, 1999, p.111).

    Pela descrio feita dos Aimors, percebemos o quanto Peri foi imaginrio, pois a

    raa indgena no possua a bondade em sua essncia. Onde Alencar buscando uma nova

    ideologia para nossas razes, concebe ao selvagem essa bondade em seu carter.

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  • O relato de sua gnese atravs dos feitos de uma personagem grandiosa, desenhada

    pelo narrador que, em sua condio de descendente, coloca-se disposto a contar os fatos de

    uma personagem. No exatamente como deu, mas com estilo de uma beleza admirvel e de

    um lirismo combinado com imaginao, entretanto em contradio com o verdadeiro carter

    do ndio brasileiro.

    CONSIDERAES FINAIS

    A arte, para o romntico, no pode se limitar imitao, mas ser a expresso

    direta da emoo, da intuio, da inspirao e da espontaneidade vividas por ele na hora da

    criao, anulando, por assim dizer, o perfeccionismo to exaltado pelos clssicos. No h

    retoques aps a concepo para comprometer a autenticidade e a qualidade do trabalho. Os

    escritores romnticos vivem em busca de fortes emoes e aventuras na tentativa de colher

    experincias novas e criadoras.

    Alencar ao construir o heri de O Guarani, deixa a emoo tomar conta da sua

    narrao, criando um ser que vai alm do real. Apresentando um heri submisso ao

    conquistador, mas no papel de heri empreende suas jornadas, enfrentando tigres, os perigos

    de uma raa selvagem, os Aimors, mostrando o tesouro do seu verdadeiro eu, criado pelo

    autor.

    Peri um ser quase sobre-humano que simboliza as idias, formas e as foras que

    moldam a nao brasileira, o heri que a nao brasileira precisava para afirmar

    culturalmente e romper com a cultura europia. Passando por grandes dificuldades para

    elevar e se afirmar como heri da nao. Como acontece com o heri pico que tem como

    sonho fazer sua prpria histria, que se exaure na sua misso.

    A inteno de Alencar era que o leitor, ao ler o romance, fosse criando a imagem de

    um heri que no tinha medo de enfrentar as dificuldades. Buscava afirmar que a nao

    brasileira havia uma tradio cultural que estava altura da europia, mostrando que no Brasil

    tambm possua um heri nacional, mas no deixando de ter influncias do heri medieval.

    O heri um ser transitrio, uma personalidade que nos fascina, porque

    personifica o desejo e a figura ideal do ser humano. Ele defende a nossa causa, por isso

    identificamo-nos com ele. A luta herica possibilita a superao dos medos, compensao.

    Nem deus, nem humano, intermedirio entre o mundo da conscincia e o

    inconsciente, so traos de unio entre o mundo divino e o humano. Mesmo que o poeta 12

  • queira sublinhar os traos comuns entre um deus e um mortal, face a face, um dado parece

    incontestvel: afirmar a superioridade dos traos divinos oferece-lhe a oportunidade de

    reafirmar que homens e deus so comparveis.

    O heri aparece tambm como produto da unio de um deus com o ser humano,

    simbolizando a unio das foras celestes e terrestres. Neste sentido, o homem encontraria em

    seu espelho, na medida de sua origem divina (esprito) e sua origem humana (matria), sendo

    que a tarefa consistiria em unir o cu e a terra, atingindo assim a sua totalidade.

    O heri o precursor da humanidade em geral. Representa, portanto, uma forma

    da coletiva, sendo sua trajetria seguida pela humanidade de forma que os estgios do mito

    herico faam parte do desenvolvimento da personalidade de cada individuo.

    Peri considerado um mito por representar o comeo da nao brasileira, por ser

    apresentado de forma alegrica por Alencar, e ser uma narrativa do passado histrico.

    O personagem Peri representava as caractersticas fundamentais de que a nao

    precisava para dominar o campo cultural e o impacto com a nossa existncia. Seu caminho o

    caminho da realizao. Esse heri recm-nascido pelas de Alencar significa o sol vigoroso

    surgido das guas, ao qual as nuvens se opem timidamente em seu nascimento e que acaba

    por superar todos os obstculos de maneira vitoriosa. Assim que o personagem chega aos

    olhos dos leitores daquela poca.

    O selvagem romntico, legtimo representante do bem, dotado exclusivamente

    de qualidades como coragem, honra, inteligncia, poder de seduo, tornando-se assim, o

    smbolo do heri nacional, expresso de conscincia e de valores coletivos. Essas qualidades

    so evidenciadas em todo momento por Alencar, deste o incio das cenas: domnio do animal

    selvagem ao salvar Ceclia vrias vezes, na batalha contra os inimigos de D. Antnio de

    Mariz. Mas a sublimao comprovada no final do livro, surgindo o herosmo maior um

    sublime herosmo. Era a vez de lutar contra as foras da natureza e era preciso venc-las: a

    vida de sua senhora corria perigo. Peri tem que lutar com as guas do dilvio e salvar Ceclia.

    Houve um esforo hercleo, supremo. Aos poucos, a palmeira foi-se

    desprendendo. Com mais um pouco, seria carregada pela imensido das guas. Ento o ndio,

    tomando-a nos braos, disse-lhe com um acento de ventura suprema: Tu vivers! Alencar

    (1999; p.202), Peri mostra poder de um ser transcendental.

    Alencar enfatiza o seu personagem como um super-homem que encarna bem as

    qualidades que o autor lhe confere como smbolo da terra e da ptria brasileira. Peri foi um

    selvagem idealizado, dono de qualidades que fariam inveja aos mais nobres e leais fidalgos

    medievais, a exaltao da fora, da coragem e da nobreza do indgena brasileiro, 13

  • simbolizada na obra O Guarani por Peri, mesmo que seja no plano ideal. Entretanto, a

    vontade e o desejo de tornar esse brasileiro, mesmo que europeizado, superior s demais

    raas, lhe d um carter de transfigurao do plano real para um plano transcendental: A

    sublimao do ser.

    Pode-se considerar o Romantismo como um dos principais movimentos

    contestadores do sistema vigente a fim de expressar a liberdade individual do ser humano,

    assim como o seu amor e apego , aspectos regionais.

    O personagem o qual deveria ser a expresso do autntico brasileiro habita em um

    pas, que tem como pano de fundo a natureza, que se desponta como o que h de mais

    legitimamente nacional, caracterizando o Brasil como lugar nico dentre todos os outros. As

    guas dos rios correm com mais majestade, as florestas so mais vastas, e at mesmo as

    montanhas so mais elevadas. A paisagem contada nas obras literrias de rvores e de

    bosques, de vrzeas e de flores, de cus sempre anil e invariavelmente rodeada de adjetivos

    e de pontos de exclamao. Contudo, o que a habita vem de fora da Europa, alm do mais

    vestido de armadura de um puro cavaleiro medieval.

    O nosso verdadeiro ndio, massacrado, conquistado e considerado como uma

    civilizao em desenvolvimento o bom selvagem como assim classifica os antroplogos,

    ficou somente no plano histrico da realidade brasileira.

    Mas isso no significa a nica possibilidade de interpretao da obra literria, a

    proposta de que este trabalho esteja aberto a crticas literrias e a sugestes de outros

    leitores, pois apenas um ponto de vista que a literatura nos permite observar.

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  • Referncias:

    ALENCAR, Jos de. O Guarani. 29 ed., Rio de Janeiro: Ediouro, 1999.

    BOSI, Alfredo. Histria concisa da Literatura Brasileira. 43 ed., So Paulo: Cultrix, 2006.

    BRUNEL, Pierre. Dicionrio de Mitos Literrios. 4 ed., Rio de Janeiro: Jos Olympio, 2005.

    CITELLI, Adilson. Romantismo. 3 ed., So Paulo: tica, 2002.

    COUTINHO, Afrnio. A Literatura no Brasil. 5 ed., So Paulo: Global, 1999.

    ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 6 ed., So Paulo: Perspectiva, 2006.

    ORTIZ, Renato. O Guarani: um mito de fundao da brasilidade. In: Cincia e cultura, n 40, maro 1988.

    RICUPERO, Bernardo. O Romantismo e a Idia de Nao no Brasil (1830 -1870). So Paulo: Martins Fontes, 2004 (Coleo Temas Brasileiros).

    ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Maria Ermantina Galvo. 3 ed., So Paulo: Martins Fontes, 2005.

    SOARES, Anglica. Gneros Literrios. 6 ed., So Paulo: tica, 2002.

    SODR, Nelson Werneck. Histria da Literatura Brasileira. 10 ed., Rio de Janeiro: Graphia, 2004.

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