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1 O Lugar das Mulheres e das Famílias na Política Pública de Assistência Social: o caso do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Lavras-MG. Autoria: André Aristóteles da Rocha Muniz, Fernanda Mitsue Soares Onuma Resumo: Desde a Constituição Federal de 1988, a Política Pública de Assistência Social vem obtendo importantes conquistas. Dentre elas, a implantação de Centros de Referência de Assistência Social – CRAS em todo o país. Os CRAS são responsáveis pela execução do Programa de Atenção Integral à Família em territórios de até 5.000 famílias que estejam em situação de maior vulnerabilidade social. No presente artigo, constatamos que, conquanto o Programa de Atenção Integral à Família - PAIF implementado no CRAS de Lavras-MG considere a ocorrência de mudanças no âmbito da estrutura familiar, admitindo a necessidade de que cada CRAS conheça a diversidade de arranjos familiares, sua situação sócio- econômica e o lugar das mulheres dentro de seu território de abrangência, proceder tal mapeamento ainda é muito difícil para um CRAS como o de Lavras – MG, que conta com uma equipe reduzida para atender às demandas das famílias por ele referenciadas. Por meio de uma pesquisa de natureza quantitativa e qualitativa, buscamos atender a esta necessidade do CRAS de Lavras – MG de conhecer a realidade sócio-econômica das famílias a que atende e ainda discutir, dentro do próprio Programa de Atenção Integral à Família questões relacionadas ao próprio conceito de família e as relações de gênero inerentes ao trabalho com estas famílias, sobretudo o lugar das mulheres. Os resultados mostram que na maior parte dos casos, a mulher é a principal pessoal interpelada pelos CRAS. Diante dos resultados obtidos, argumentamos que o conhecimento desta realidade pode auxiliar na condução de políticas de assistência social a famílias que consideram a importância da inclusão da figura paterna em suas ações, por meio de uma perspectiva de gestão pública que se baseie na gestão social, partindo da realidade social das famílias para a condução de tais políticas. Diante das discussões apresentadas, desejamos argumentar que as relações de gênero possuem um caráter relacional, mutável diante das relações estabelecidas entre homens e mulheres dentro de um sistema social. Desse modo, discutir as relações de gênero dentro do CRAS, é essencial para debatermos a questão da família dentro da política pública de assistência social e os reflexos de tais relações dentro dos arranjos familiares das (os) beneficiárias (os) do CRAS de Lavras- MG. observamos a grande predominância de mulheres (93%) como responsáveis pela família junto ao CRAS de Lavras-MG e também que se não a própria concepção, ao menos a condução do PAIF é muito voltada às mulheres, ainda que as famílias nucleares simples (compostas por pai, mãe e filhos) tenha se mostrado, até o momento em que nos encontramos na pesquisa, como maioria (38,3%) dentro das famílias cadastradas. Assim, em nossa pesquisa temos observado, assim como Lyra-da-Fonseca (2008) a necessidade de se pensar as relações de gênero como relações de poder, de maneira relacional e não estática ou dicotômica. Introdução

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O Lugar das Mulheres e das Famílias na Política Pública de Assistência Social: o caso do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Lavras-MG.

Autoria: André Aristóteles da Rocha Muniz, Fernanda Mitsue Soares Onuma Resumo: Desde a Constituição Federal de 1988, a Política Pública de Assistência Social vem obtendo importantes conquistas. Dentre elas, a implantação de Centros de Referência de Assistência Social – CRAS em todo o país. Os CRAS são responsáveis pela execução do Programa de Atenção Integral à Família em territórios de até 5.000 famílias que estejam em situação de maior vulnerabilidade social. No presente artigo, constatamos que, conquanto o Programa de Atenção Integral à Família - PAIF implementado no CRAS de Lavras-MG considere a ocorrência de mudanças no âmbito da estrutura familiar, admitindo a necessidade de que cada CRAS conheça a diversidade de arranjos familiares, sua situação sócio-econômica e o lugar das mulheres dentro de seu território de abrangência, proceder tal mapeamento ainda é muito difícil para um CRAS como o de Lavras – MG, que conta com uma equipe reduzida para atender às demandas das famílias por ele referenciadas. Por meio de uma pesquisa de natureza quantitativa e qualitativa, buscamos atender a esta necessidade do CRAS de Lavras – MG de conhecer a realidade sócio-econômica das famílias a que atende e ainda discutir, dentro do próprio Programa de Atenção Integral à Família questões relacionadas ao próprio conceito de família e as relações de gênero inerentes ao trabalho com estas famílias, sobretudo o lugar das mulheres. Os resultados mostram que na maior parte dos casos, a mulher é a principal pessoal interpelada pelos CRAS. Diante dos resultados obtidos, argumentamos que o conhecimento desta realidade pode auxiliar na condução de políticas de assistência social a famílias que consideram a importância da inclusão da figura paterna em suas ações, por meio de uma perspectiva de gestão pública que se baseie na gestão social, partindo da realidade social das famílias para a condução de tais políticas. Diante das discussões apresentadas, desejamos argumentar que as relações de gênero possuem um caráter relacional, mutável diante das relações estabelecidas entre homens e mulheres dentro de um sistema social. Desse modo, discutir as relações de gênero dentro do CRAS, é essencial para debatermos a questão da família dentro da política pública de assistência social e os reflexos de tais relações dentro dos arranjos familiares das (os) beneficiárias (os) do CRAS de Lavras-MG. observamos a grande predominância de mulheres (93%) como responsáveis pela família junto ao CRAS de Lavras-MG e também que se não a própria concepção, ao menos a condução do PAIF é muito voltada às mulheres, ainda que as famílias nucleares simples (compostas por pai, mãe e filhos) tenha se mostrado, até o momento em que nos encontramos na pesquisa, como maioria (38,3%) dentro das famílias cadastradas. Assim, em nossa pesquisa temos observado, assim como Lyra-da-Fonseca (2008) a necessidade de se pensar as relações de gênero como relações de poder, de maneira relacional e não estática ou dicotômica. Introdução

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Quando se pensa em família, logo se imagina o modelo tradicional, composto por pai, mãe e filhos. Ao pai, cabe o provento da família, enquanto à mãe, o zelo pela casa e o cuidado das crianças. Porém, diversos (as) autores (as) têm apontado para uma mudança nesse cenário e encarado o conceito de família de maneira muito mais flexível e dinâmica, abarcando uma vasta variedade de arranjos familiares. Conquanto o Programa de Atenção Integral à Família - PAIF considere a ocorrência de mudanças no âmbito dos modelos de família, admitindo que é necessário que cada Centro de Referência de Assistência Social - CRAS conheça a diversidade de arranjos familiares, sua situação sócio-econômica e o lugar das mulheres dentro de seu território de abrangência, proceder tal mapeamento ainda é muito difícil para um CRAS como o de Lavras – MG, que conta com uma equipe reduzida para atender às demandas das famílias por ele referenciadas. Por meio de uma pesquisa de natureza quantitativa e qualitativa, buscamos atender a esta necessidade do CRAS de Lavras – MG de conhecer a realidade sócio-econômica das famílias a que atende e ainda discutir, dentro do próprio Programa de Atenção Integral à Família questões relacionadas ao próprio conceito de família e as relações de gênero inerentes ao trabalho com estas famílias. A questão das relações de gênero dentro de políticas públicas voltadas à família tem sido negligenciada dentro das considerações da Administração Pública, sobretudo quanto à política familiar e a assistência social, mesmo em Giddens e sua família democrática. No presente trabalho, buscamos uma contribuição nesta questão, a partir da identificação e análise dos arranjos familiares existentes entre as famílias referenciadas pelo CRAS de Lavras - MG na condução do PAIF, discutidos sobre a ótica das transformações na família e as relações de gênero, como forma de subsidiar o trabalho desenvolvido por esta política pública, que se propõe a prestar serviços de proteção social a famílias, em nível municipal. Discutimos também a necessidade de se ater, dentro das políticas públicas de assistência à família, á necessidade relativizar a centralidade da família na figura da mulher e como a superação desta situação é difícil, porém urgente, na condução de programas como o PAIF. Estado e Políticas Sociais O Estado, como sugere Iazbek (2001), é reflexo e produto da sociedade referida no tempo e no espaço que, ao ser capturado pelo sistema capitalista servirá à manutenção e reprodução do status quo, significando manter relações desiguais de poder e de gênero. Contudo, na medida em que se amplia e se fortalece os princípios democráticos como eixo balizador da governança pública, maiores as chances de penetração da “questão social” na agenda pública estatal. A “questão social” é tratada, ainda segundo a autora, como uma questão que está sempre em processo de reformulação e redefinição, mas é substancialmente limitada por se tratar de uma questão estrutural que não se resolve numa formação econômico social por natureza excludente. Neste sentido, a autora apresenta uma questão central: as políticas públicas devem disputar a riqueza socialmente construída pela sociedade. Neste sentido, cabe assinalar pelo menos duas categorias de Estado as quais podem, inclusive, existir concomitantemente. O Estado de Bem Estar Social (Welfare State) e o Estado Liberal (Laissez-Faire). O Welfare State “é o ponto alto de um prolongado processo de evolução dos direitos de cidadania” (Giddens, 1999, p. 20). Suas atenções estão voltadas para a proteção social dos indivíduos durante todo o seu ciclo de vida, diferentemente do Laissez-Faire onde tudo ou quase tudo se resolve por meio do mercado. Embora tenha se tornado uma “bandeira” da “esquerda” e da “direita”, existem visões diferentes sobre como o Welfare State deve funcionar. Para a “esquerda”, volumes crescentes de investimentos sociais, para a “direita” apenas uma rede de segurança mínima (Giddens, 1999). É basicamente o caso

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brasileiro, se usarmos como comparação os governos de FHC e Lula. O primeiro, uma coalizão de partidos de direita e orientação neoliberal que trabalhou no sentido de assegurar um padrão mínimo de proteção social especialmente através do fortalecimento das organizações sociais (“terceiro setor”). O segundo, uma coalizão de partidos de esquerda e centro-esquerda que governa o país desde 2003 e tem batido todos os recordes de investimentos em políticas sociais sob a primazia do Estado em parceria com as organizações sociais. De qualquer forma, no caso brasileiro especificamente, não se pode falar de um Estado liberal ou de bem estar social puro. As características sócio-culturais do país somadas à sua inserção no capitalismo mundial forjam um verdadeiro hibridismo, configurando um Estado com características tanto do modelo liberal quanto do modelo de bem estar social. No Brasil, por exemplo, durante toda a década de 1990, o Estado assumiu características fortemente liberais, especialmente no governo de FHC de 1994 a 2002. Com a figura do “Estado Mínimo” e a adesão aos princípios do gerencialismo advindos da ascensão da “Terceira Via” que, sob o comando de Luiz Carlos Bresser Pereira, visou à reforma da administração pública brasileira, a política pública de assistência social que havia tido um impulso regulatório na Constituição Federal de 1988, encontrou muitos obstáculos e pouco avançou enquanto vigorou o modelo neoliberal. O que é importante assinalar é que o fato do neoliberalismo ter avançado pelo mundo, não significou necessariamente a consolidação do Laissez-Faire em detrimento do Welfare State. O renascimento dos ideais liberais traz em seu bojo propostas reducionistas de Proteção Social. Isso enfraquece o Estado de Bem Estar, mas não significa que o elimina. Isso é perfeitamente visualizado no caso brasileiro, com a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva à presidência da república (Iazbek, 2001). Embora seu governo não se desvincule de alguns dos valores neoliberais e, inclusive, das práticas gerencialistas estamos assistindo desde 2003 à re-fundação do Estado de Bem Estar Social cujas políticas servem de referência a vários países, especialmente latino-americanos e africanos. Em relação à evolução da Administração Pública voltada à assistência social na América Latina, Kliksberg (1994, p. 137) afirma que tais países se encontram em um período de saída do paradigma burocrático autocrático, no qual as políticas públicas de assistência social eram oriundas de decisões “de cima para baixo, verticalmente”, ou seja, de caráter claramente paternalista, impostas à população, para novas formas de elaboração de programas sociais, nas quais as verdadeiras necessidades da população são respeitadas e atendidas, evitando limitações para o projeto. Kliksberg (1994) aponta para a questão da “ilegitimidade do gasto social” como entrave para o investimento público em políticas de assistência social. Segundo o autor, este é um desafio enfrentado pelas pessoas que verdadeiramente desejam conduzir políticas de assistência social na América Latina, onde os investimentos na área são considerados, em termos macroeconômicos, como um mau uso de recursos públicos. O que tais críticos ignoram, para Kliksberg (1994), é o fato de que os gastos em políticas de assistência social provocam efeitos positivos importantes a médio e longo prazo. A Política Pública de Assistência Social na perspectiva do Sistema Único de Assistência Social – SUAS A Constituição Federal de 1988 – também conhecida como “Constituição Cidadã” – é o grande marco da história política do nosso país. A CF 1988 também tem um importante significado para a política pública de assistência social, de modo que podemos até mesmo considerá-la como um “divisor de águas”. Como não é propósito deste trabalho fazer uma

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revisão histórica da política de assistência social, nos deteremos em contextualizá-la no período pós-Constituição. A CF-1988 (artigos 203 e 204) reconhece a assistência social como dever do Estado e direito do cidadão no âmbito da Seguridade Social, ao lado da Saúde e Previdência, e não mais como política complementar, de caráter subsidiário às outras políticas. A demarcação da assistência social como direito estrangula o paradigma assistencialista e conservador orientador das políticas assistenciais anteriormente. Porém, a regulamentação daquilo que foi instituído na CF 1988 foi um processo difícil e demorado de ser conquistado. A década de 1990 do século passado foi um período marcado por profundas mudanças no papel do Estado, induzidas pela ordem econômica internacional e agenda neoliberal. Assistiu-se à minimização (leia-se desresponsabilização) do papel do Estado na regulação das políticas públicas e a valorização das “virtudes” da regulação pelo mercado. No que diz respeito ao enfrentamento da pobreza e desigualdade essa passa a ser uma tarefa atribuída à sociedade e às organizações sociais (terceiro setor), profundamente marcadas por práticas filantrópicas. Em meio a esse cenário, em 1993, cinco anos após a promulgação da Carta Constitucional e após amplas mobilizações, foi aprovada a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), que regulamentou os artigos 203 e 204 da CF-1988 e tornou possível a assistência social como um dever do Estado e um direito de cidadania, sem a necessidade de contribuição prévia. A LOAS estabeleceu os princípios organizativos da assistência social e também instituiu os conselhos deliberativos, os quais tiveram e vem tendo papel extremamente relevante na construção da política pública de assistência social. Já em 1994 é realizada a I Conferência Nacional de Assistência Social. Após a LOAS, a política de assistência social recebeu novas contribuições à sua normatização por meio da chamada Norma Operacional Básica (NOB) instituídas nos anos de 1997, 1998 e 2005. A NOB de 2005 é a que vigora atualmente e tem relevância estratégica, pois institui o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) cujas bases, diretrizes e princípios constam da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) lançada em 2004. Entre as bases constitutivas do SUAS, queremos destacar dois princípios importantes: matricialidade sociofamiliar e territorialização. A responsabilidade do Estado de proteção à família está consubstanciada na CF-1988, nos Estatutos da Criança e do Adolescente e do Idoso e na LOAS, dentre outras legislações. Para a política pública de assistência social a matricialidade sociofamiliar significa pautar suas ações a partir da família, entendida como unidade básica da sociedade e espaço primeiro onde deve se manifestar a proteção e a socialização dos indivíduos. A política pública de assistência social inova ao conceber a família à partir de um conceito relacional e amplo, compreendendo família como espaço de relações estabelecidas por laços consangüíneos, afetivos e/ou de solidariedade (Brasil, 2008). Neste sentido, este trabalho se propõe a enfatizar os múltiplos formatos de famílias, nucleares, monoparentais e outros. Achamos que a política pública de assistência social não inova ao se omitir da discussão de gênero, pois é uma questão que permeia todas as famílias e que pesa de modo particular sobre as mulheres. O segundo princípio balizador do SUAS que queremos destacar é o da territorialização. Assim como a família é entendida como unidade básica da sociedade, o território é a unidade básica onde se organizam e são ofertados os serviços sócio-assistenciais de proteção social às famílias a ele referenciadas (Brasil, 2008). Os princípios discutidos acima balizam a compreensão que faremos a seguir sobre os Centros de Referências de Assistência Social (CRAS) pois compreender o CRAS significa situá-lo no território e em relação às famílias. Os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS)

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Os CRAS, também conhecidos como “Casa das Famílias” são atores recém-chegados a sociedade. É um equipamento público estatal responsável pela oferta de serviços, projetos, programas e benefícios de proteção social básica às famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade e risco social (Brasil, 2007). Figuram ao mesmo tempo como porta de entrada dos usuários da Assistência Social na rede de proteção social básica como unidades de efetivação desta e instrumento estratégico na construção de “portas de saída”. Dentre as ações desenvolvidas nos CRAS estão Entrevista, Visita Domiciliar, Palestras, Grupos Sócio-educativos, Oficinas, Campanhas Sócio-educativas, Encaminhamento e Acompanhamento, Reuniões e Ações Comunitárias, Articulação e fortalecimento de Redes e Grupos Sociais, Atendimento domiciliar para famílias que possuam criança com deficiência, Inclusão Produtiva (Brasil, 2007). O principal Programa implementado nos CRAS é o PAIF – Programa de Atenção Integral à Família, considerado referência dentro do SUAS. O PAIF destina-se ao fortalecimento de vínculos familiares e comunitários e à prevenção de situações de risco social no território de abrangência do CRAS. (Brasil, 2007, p. 27) O PAIF deve se pautar em alguns pressupostos, dentre eles o de que “não existe família enquanto modelo idealizado, e sim famílias resultantes de uma pluralidade de arranjos e re-arranjos...” (Brasil, 2007, p. 28)

De modo simplificado pode se entender que o CRAS está para o SUAS assim como o PSF – Programa de Saúde da Família está para o SUS – Sistema Único de Saúde e desta forma acredita-se ter as mesmas chances de se transformar num grande “divisor de águas” para a política de assistência social como tem sido os PSFs para a política de saúde na perspectiva de minorar as situações de vulnerabilidade vividas por uma parcela significativa da população brasileira. É no âmbito dos CRAS, por sua própria finalidade, que se constituem os vários processos grupaisi na perspectiva de imprimir uma dinâmica de enfrentamento das condições que vulnerabilizam famílias e indivíduos tendo como horizonte a conquista da emancipação com estes e por estes. Já são 5.142 unidades dos CRAS em funcionamento no Brasil, 573 só em Minas Gerais, distribuídos em de 3.831 municípios brasileiros (Censo CRAS 2009) supostamente instalados em territórios de maior vulnerabilidade social. Nesses territórios, os CRAS, através de uma equipe de profissionais, acolhem pessoas que em princípio levam consigo demandas que não se reduzem ao âmbito material ou econômico, embora predominem. Porém, essa demanda quase sempre vem acompanhada de várias outras questões de natureza social, cultural e/ou psicológica que vitimam as famílias expondo os profissionais dos CRAS a um grande e complicado desafio. Após o processo de acolhida, a equipe dos CRAS inserem as pessoas em atividades coletivas, também podendo encaminhá-las para atendimentos específicos (contra-referência). A política de assistência social se preocupou também em definir quais as dimensões do vínculo quando se fala em fortalecimento de vínculos familiares e comunitários: (1) legal ou jurídica, (2) sócio-cultural e (3) afetivo-relacional. Na primeira dimensão busca-se trabalhar a perspectiva de direitos e deveres prescritos na forma da lei. Na segunda dimensão trabalha-se os papéis familiares, suas representações e relações intra-familiares e com o contexto sócio-cultural, em especial o comunitário. Na terceira dimensão o foco está na superação de problemas por meio da promoção do afeto, cuidado e comunicação (Brasil, 2007, p. 27). Família e Políticas Públicas

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Um jovem cientista, aguçado pela curiosidade de tentar compreender a família brasileira, talvez se fizesse dentre outras, a seguinte questão: a estruturação da família foi sempre assim? Se for uma simples curiosidade, ele poderá muito bem satisfazê-la indagando aos seus avós, pais ou outras pessoas mais velhas. Poderá também ir até uma biblioteca pública onde com certeza encontrará livros a respeito. Contudo, se o seu interesse for científico – o nosso caso - ele deverá obrigatoriamente submeter-se a uma imersão na literatura. E se ele quiser saber também: Que articulação existe entre família e políticas públicas? Com o acréscimo desta nova questão certamente sua imersão na literatura poderá ser mais refinada. Isso significa que além de conhecer um pouco sobre família e políticas públicas o pesquisador deverá empreender um esforço em compreender o que está na interrelação entre ambos os assuntos. Pois bem, esse foi o caminho que percorremos nesta seção: dialogar a partir da interrelação (e aí já estamos supondo que ela existe) entre família e políticas públicas com base em alguns referenciais teóricos escolhidos na literatura. Num primeiro momento, discorremos sobre a família, um pouco de sua história, transformações, importância para as políticas públicas e a busca de uma definição. No segundo momento, exploramos a relação entre família e políticas públicas. Rose Marie Muraro (1994) citada por Jorge Lyra (2007, p. 80) ressalta que à época em que os seres humanos viviam se alimentando de vegetais e pequenos animais, a estrutura da família era protofamiliar centrada na mãe. “A estrutura social e familiar se confundiam, não existia público e privado.” O fato de ser responsável pela geração da vida dava à mulher um alto valor social. Além disso, a relação entre homens e mulheres bem como seus papéis não estavam submetidos a uma classificação hierárquica. A insuficiência de alimentos devido a mudanças ambientais submeteu os seres humanos a um novo padrão de sobrevivência: caçar animais maiores e disputar territórios e alimentos, o que exigia força física. Essas mudanças tornaram o homem valorizado socialmente em detrimento da mulher. Essas e outras mudanças posteriores fizeram surgir – ainda, segundo a autora – a família monogâmica e patriarcal. Não é nosso objetivo aprofundarmo-nos sobre a história da família, mas apresentar uma pequena e breve versão desta – mais do que isso – mostrar que ela não é imutável e sofre transformações na relação dialética entre seus membros e com as forças sócio-ambientais como veremos melhor logo adiante. Com o advento da Revolução Industrial o mundo do trabalho se separa do mundo familiar instituindo a “dimensão privada da família” contraposta ao mundo público. Deste período em diante a família passará por mudanças ainda mais significativas a partir do impacto do desenvolvimento tecnológico (Cynthia A. Sarti, 2007, p. 21). Dentre essas mudanças, ainda segundo Sarti (2007), podemos listar a difusão da pílula anticoncepcional a partir da década de 1960, o trabalho remunerado da mulher, a difusão do exame de DNA na década de 1990 que possibilitou a identificação da paternidade, o reconhecimento pela Constituição Federal de 1988 de que a sociedade conjugal deve ser compartilhada em direitos e deveres pelo homem e pela mulher, enfim, mudanças que afetaram, não da mesma maneira e nem na mesma intensidade, as famílias e mulheres e homens individualmente. Outras mudanças vem ocorrendo a partir das últimas décadas como transformação nas estruturas e funções familiares, aumento do número de famílias monoparentais e mulheres “chefes” de família, crescimento da participação da mulher no mercado de trabalho, aumento do nível de escolarização, entre outras (Carloto, 2005; Sarti, 2007; Serapioni, 2005; Arriagada, 2006; Macedo, 2008). São tantas mudanças que não se pode mais tomar como referência um modelo ideal de família constituído por pai, mãe e filho. Neste sentido, precisamos acostumar-nos, argumentam Macedo (2008) e Serapioni (2005), a tratar de famílias (no plural). “A família contemporânea comporta uma enorme elasticidade” (Sarti, 2007, p. 25)

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Pois bem, de que família estamos tratando? Vários autores e autoras apontam para o declínio do modelo tradicional de família (Giddens, 1999; Fleck & Wagner, 2003; Machado, 2005; Sarti, 2007; Macedo, 2008; Carloto, 2004; Serapioni, 2005; Pinheiro, Galiza e Fontoura, 2009), a família patriarcal composta por pai, mãe e filhos e que se caracteriza, segundo Castells (1999) apud Machado (2005) pela sobreposição autoritária do homem em relação à mulher que é imposta institucionalmente. Diante das transformações econômicas, culturais, sociais e políticas experenciadas pela humanidade desde a revolução industrial nem mesmo a Igreja Católica e os Exércitos conseguiram resistir aos impactos dessas transformações; com a família não seria diferente. A família em Giddens (1999) é abordada dentro do ideal da família democrática, em que homens e mulheres partilham as responsabilidades pela casa e o cuidado no âmbito da família, entendida como unidade fundamental para a manutenção e reprodução da sociedade. Sevenhuijsen (2000) busca trazer novas contribuições para o pensamento da Terceira Via de Giddens, focando-se especialmente na questão das políticas públicas voltadas às questões sociais, como a família e a assistência social. A autora defende que os quatro valores da Terceira Via propostos por Giddens (1999), a saber: justiça social, emancipação, igualdade e coesão social, podem ser complementados a partir de uma ética social que considere o cuidado (care), como um valor essencial dentro da sociedade. Para a autora, a primazia do cuidado como valor norteador das relações dentro da sociedade advém de sua concepção ontológica dos seres humanos enquanto seres que só existem imersos em redes de responsabilidade e cuidado mútuos entre as pessoas. Na visão da autora, o pensamento de Giddens (1999), exposto na Terceira Via, adota um entendimento ontológico do homem como um ser que se liga aos seus iguais por meio da obrigação, que age assim como “ponte” entre as pessoas. Sevenhuijsen (2000) aponta então para o perigo de se adotar, dentro da lógica da Terceira Via, que as políticas sociais sobreponham o cuidado enquanto forma de trabalho, serviço prestado pelo Estado, ao cuidado como responsabilidade das famílias, motivados pela noção de cuidado enquanto valor precioso na sociedade. O cuidado deve ser visto, segunda a autora, não só como atividade humana, mas também como processo social, uma orientação das pessoas para o cuidado mútuo dentro da sociedade que, aos moldes da proposta de Giddens (1999), não se volte apenas aos mais pobres, mas a toda a sociedade. Outra crítica da autora à Terceira Via de Giddens é a sua visão do gênero dentro da política familiar: embora Giddens reconheça a necessidade de maior igualdade entre homens e mulheres, ele enxerga a legalização do matrimônio entre homossexuais apenas como uma forma de política de assistência social, permitindo que tais casais adotem crianças abandonadas, numa visão utilitarista e reducionista da questão de gênero. No presente trabalho, considerando as limitações da noção da “família democrática” de Giddens (1999) apontadas por Sevenhuijsen (2000), exploramos o conceito de família proposto por Sarti (2007, p. 26), que o enxerga enquanto “categoria nativa”, ou seja, conforme o “sentido atribuído por quem a vive”. Isso porque, para a autora, a família, sobretudo para as pessoas pobres, extrapola a questão dos vínculos consangüíneos e a unidade doméstica vista como o espaço da casa, para encará-la como uma realidade que se constrói mediada pela cultura e que também a transforma, reciprocamente. As famílias pobres, segundo Sarti (2007), se configuram em redes cujas ramificações envolvem não só laços de parentesco, mas a trama de obrigações morais que une as pessoas dentro da família. Assim, participam da família não só os parentes, mas todas as pessoas que participam da história da família, com as quais esta sabe que pode contar por estabelecer laços mútuos de solidariedade e confiança. Diante destas perspectivas, no que diz respeito ao Programa de Atenção Integral à Família, qual a articulação entre família e políticas públicas? Segundo Carvalho (2007) e

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Macedo (2008), existe um sombreamento entre os papéis do Estado (público) e da família (privado), visto que ambos desempenham funções correlatas no desenvolvimento e proteção social dos indivíduos. Enquanto esfera da privacidade, intimidade, expressão de sentimentos e construção de sentidos, a família coloca-se como “nicho afetivo e de relações necessárias à socialização dos indivíduos”, de modo que a família passa a exercer o papel de mediadora entre a esfera íntima e a esfera pública política, como fomentadora dos vínculos de pertencimento social (CARVALHO 2007, p. 269-270). A família passa, por estas e outras razões, ainda para Carvalho (2007), Macedo (2008), Carloto (2005) e Serapioni (2005), a constituir foco das políticas sociais, sobretudo com a superação da noção (e pela crise) do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) que via o Estado como capaz de suprir todas as demandas de proteção social, para uma visão integradora entre Estado e família, que passam a partilhar responsabilidades. Citando Martin (1995), Carvalho (2007) argumenta que, graças à articulação entre Estado e família houve uma valorização de políticas de saúde, de assistência social e de combate à pobreza ancoradas na família e na comunidade, buscando respostas mais efetivas e comprometidas com a solução de problemas em detrimento de soluções institucionalizadas de proteção social, tais como manicômios, orfanatos, asilos e internatos, por exemplo. Cientes da flexibilidade atual existente entre as famílias, conforme observa Sarti (2007), apresentamos a seguir os novos arranjos familiares que buscamos identificar dentre as famílias referenciadas pelo CRAS estudado, pensando nestes arranjos não como modelos a serem observados na realidade, mas como tipos ideais ao molde weberiano (Vieira & Carrieri, 2001), que nos serviram de “mapas” para a compreensão da realidade das famílias. A (s) Família (s) e suas Transformações: Os Novos Arranjos Familiares De acordo com Machado (2005), enquanto parte dos pesquisadores brasileiros buscavam destacar um padrão ou um modelo familiar brasileiro, outros optavam por identificar diversos modelos de família, tomando por base critérios como região e classe. Para esta autora, as pesquisas sobre os arranjos familiares estão divididas entre aquelas elaboradas por autores(as) que atribuem as transformações nas famílias à ampliação ou retração do valor e do lugar da família nas sociedades e aqueles que acreditam que uma série de contextos e causas, incluindo o papel que o Estado atribuiu à família foram responsáveis pelas mudanças nas concepções de família. O surgimento da concepção de família, para Magalhães Filho (2009) esteve ligado na antigüidade à propriedade privada e ao modelo patriarcal, que envolvia o casamento heterossexual e monogâmico. Contudo, Dowbor (2007) aponta para uma crescente desarticulação deste tipo de família, a nuclear, em virtude do declínio nos casamentos e da própria economia da família, que antes era extensa, abrigando várias gerações como avós, tios, primos e irmãos, o que permitia uma redistribuição interna de excedentes entre aqueles que produziam e os que, mesmo em idade ativa, não tinham como se sustentar. As mudanças nas famílias, para Dowbor (2007), tornaram mais necessária a presença do Estado como redistribuidor de riquezas não só entre pobres e ricos, mas entre gerações, como no caso da previdência social. Assim, para Dowbor (2007), embora exista certo ceticismo em relação ao Estado, as políticas públicas representam o instrumento mais eficiente para a promoção de políticas sociais que garantam o equilíbrio social. Observa-se aqui, portanto, a influência tanto dos valores e do lugar da família quanto do Estado para as transformações nas famílias. Tomamos por referência (tipo ideal) neste artigo os novos arranjos familiares descritos por Magalhães Filho (2009), em função de terem sido os que mais se aproximaram da

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realidade observada dentre as famílias referenciadas pelo CRAS de Lavras – MG. Este autor define treze tipos de novos arranjos familiares, que descrevemos abaixo. A família nuclear simples é a composta por pai, mãe e filhos(as), sem a presença de outras crianças ou adultos e na qual todos(as) os(as) filhos(as) são filhos(as) deste mesmo casal. A família monoparental feminina simples consiste naquela em que apenas a mãe está presente com seus(as) filhos(as),podendo haver outros(as) menores sob sua responsabilidade, mas sem a presença de outros(as) adultos(as). A família monoparental masculina simples difere da descrita anteriormente por contar apenas com a presença do pai, no lugar da mãe. Na família nucelar extensa, admite além do pai, da mãe e dos(as) filhos(as), a presença de outros(as) menores sob a responsabilidade do casal e/ou também adultos(as) parentes ou não. A família monoparental feminina extensa é aquela em que vivem a mãe com seus(as) filhos(as), podendo existir também outros(as) menores sob sua responsabilidade e/ou também outros(as) adultos(as) parentes ou não. A família monoparental masculina extensa difere da anterior apenas por contar com o pai em lugar da mãe. Ainda para Magalhães Filho (2009), a família convivente consiste naquela em que há mais de uma família das descritas anteriormente vivendo junto, acrescidas ou não de outros(as) adultos(as) parentes ou não ou ainda quando há duas ou mais gerações de uma família vivendo junto, desde que exista em cada geração ao menos um pai ou uma mãe com filho(a) com até dezoito anos. Por família nuclear reconstituída, o autor entende aquela em que o pai e/ou a mãe vive um novo relacionamento, podendo o(a) novo(a) companheiro(a) ter filho(a) de até dezoito anos vivendo ou não junto, admitindo também a presença de outros(as) adultos(as). As famílias de genitores ausentes são descritas pelo autor como aquelas em que nem o pai, nem a mãe estão presentes, mas há outros(as) adultos(as) responsáveis pelos(as) menores de dezoito anos. Já as famílias do tipo nuclear com crianças agregadas são as que apresentam pai, mãe, filhos(as) do casal e outros(as) menores sob sua responsabilidade, sem a presença de outras pessoas adultas. Magalhães Filho (2009) admite ainda a existência das famílias amorfas (compostas por pessoas que vivem junto sem vínculos de parentesco ou sexual, sem forma definida), as famílias homoafetivas (formadas por duas pessoas do mesmo sexo, com ou sem filhos(as)) e as famílias unipessoais, formadas por uma pessoa que viva sozinha. Analisando a composição de cada família e o parentesco declarado pela pessoa de referência para cada membro da família e relacionando tais informações com a teoria exposta por Magalhães Filho (2009), pudemos dividir as famílias referenciadas pelo CRAS de Lavras – MG em termos do novo arranjo familiar a que pertenciam, para obtenção de nossos resultados. Os demais procedimentos adotados na pesquisa são descritos a seguir. Relações de Gênero

Soihet (1997), com base em Scott, aponta que o uso do conceito de gênero tem se dado, mais comumente, em estudos de caráter descritivo e abordando temas nos quais as relações entre homens e mulheres são mais evidentes, tais como a família e as crianças, mostrando uma predominância da visão da mulher como ligada à esfera privada da vida social, longe de temas como a política ou a guerra, pertencentes à esfera pública. Utilizado dessa forma, segundo Scott apud Soihet (1997), o conceito acaba por polarizar aspectos da história e por reforçar uma visão funcionalista com bases biológicas sobre a questão do gênero. O conceito de gênero, argumenta Soihet (1997), ainda com base em Scott, pelo contrário, deveria servir como instrumento para a compreensão das complexas relações entre diferentes formas de interação humana. Para Soihet (1997), o termo não deveria segregar, mas

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agir como forma de superação da dicotomia homem/mulher, destacando o aspecto relacional entre estes. O trabalho de Suárez (2002) é ainda mais enfático em relação à temática, sinalizando que gênero é um conceito politizado que se presta para a desconstrução desta polaridade. Segundo a autora, o termo foi inaugurado por Shapiro em 1981 a partir de uma matriz sexo/gênero que pretendia mostrar as diferenças entre o conjunto dos fatos culturais (usualmente ligados ao homem) e o conjunto dos fatores biológicos (relacionados pelo uso comum à mulher). Já para Scott (1988) apud Suárez (2002), o gênero consiste no “sexo significado”. Suárez (2002) apresenta ainda que na visão de Strathern (1988) é uma categoria empírica capaz de classificar pessoas, eventos, artefatos, entre outros, a partir de metáforas sexuais. Suárez (2002) admite que o termo gênero é de grande valia empírica e analítica, uma vez que pode ser constatado na realidade das relações humanas (é empírico) e permite ao (à) pesquisador (a) estudar os processos que acarretam tais condutas observáveis (é analítico). Assim, buscando desconstruir a visão parcial acerca do conceito, denunciada por ela e também por Soihet (1997), a autora advoga em favor dos usos tanto empírico quanto analítico do conceito (que não são excludentes, a seu ver), atentando para a potencialidade da análise das relações de gênero para apontar caminhos para a mudança rumo a uma sociedade mais igualitária. Por esta razão, decidimos por adotar nesse estudo a dimensão das relações de gênero em lugar do conceito isolado de “gênero”. Isso porque, na percepção de diversas autoras, com as quais concordamos, as relações de gênero não se restringem às discussões acerca dos aspectos feminino e masculino (STEARNS, 2007; PERROT, 2007). Abordar as relações de gênero, conforme observam Capelle et al (2004) significa também falar sobre relações de poder. E talvez, por esta razão, Stearns (2007) e Perrot (2007), embora reconheçam que falar sobre gênero não se restrinja a discutir apenas sobre as mulheres, estas acabam se destacando em suas análises, pelo papel secundário que lhes foi conferido ao longo da história que, para Perrot (2007) fora escrita especialmente por homens. Diminuídas em sua voz na História, seriam assim as mulheres meras “vítimas” da dominação masculina? Soihet (1997) mostra que, mesmo sob a dominação masculina, as mulheres exerceram seu contrapoder, a partir do poder maternal, da sedução, de seu poder social e do poder sobre outras mulheres, por exemplo. Assim, a autora rejeita a posição de vítima, argumentando que o poder não se encontra desvinculado da manipulação e resistência, argumentando em favor das relações de gênero como produtoras de uma nova História e não apenas uma nova história das mulheres. As relações de gênero envolvem, portanto, os papéis que homens e mulheres desempenham em dada sociedade. Dessa forma, tanto homens como mulheres tem sido afetados pelas mudanças históricas dos papéis de gêneros, como se pode observar nos dias atuais, em que as conquistas do movimento feminista impactaram na vida tanto de mulheres quanto de homens. Uma clara implicação disso é que não se pode então falar de trabalho sem abordar a questão do gênero que, por conseguinte, é permeada pelas relações de poder (STEARNS, 2007; PERROT, 2007; HIRATA, 2002). Diante do referencial apresentado, desejamos argumentar que as relações de gênero possuem um caráter relacional, mutável diante das relações estabelecidas entre homens e mulheres dentro de um sistema social. Desse modo, para discutirmos as relações de gênero estabelecidas dentre as famílias referenciadas pelo CRAS de Lavras - MG, julgamos necessária essa noção de que as relações do gênero são pautadas, essencialmente, por relações de poder que se estabelecem entre as pessoas. Todas as pessoas na sociedade, sejam homens ou mulheres estão, portanto, estabelecendo esse tipo de relação que não é estática.

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Metodologia Em nosso trabalho, utilizamos uma combinação da pesquisa quantitativa, para a identificação e análise do perfil sócio-econômico das famílias referenciadas pelo CRAS de Lavras-MG, que fora enriquecida com métodos qualitativos de entrevista e observação. A pesquisa qualitativa produz, tipicamente, uma riqueza de informações detalhadas sobre um grupo muito menor de pessoas e casos. Se, por um lado, aumenta-se a compreensão dos casos e das situações, por outro, reduz-se a possibilidade de generalização (PATTON 1990, p. 14 apud ALENCAR 2000, p. 21). A intenção de nossa pesquisa não é a de generalização dos resultados, visto que, como explicaremos a seguir, sequer usamos de amostragem probabilística que possibilitasse tal. A pesquisa foi realizada no período 6 de novembro a 2 de dezembro de 2009, com visitas semanais geralmente às quartas, quintas e/ou sextas-feiras. O uso de métodos qualitativos e quantitativos foi uma opção para nós em virtude de nossa intenção de buscar conhecer o panorama da situação sócio-econômica das famílias em seus mais diversos arranjos familiares no âmbito territorial de ação do CRAS de Lavras-MG, complementando estes dados com a pesquisa qualitativa com a qual, por meio dos métodos de observação e entrevista, pudemos contextualizar a ação do CRAS de Lavras – MG por meio dos relatos da secretária de assistência social e das profissionais do CRAS, bem como analisar como uma das profissionais do CRAS analisava e tentava agir para atender às demandas destas novas realidades familiares que, conquanto não foram diagnosticadas anteriormente de maneira formal pela equipe do CRAS de Lavras-MG, já eram percebidas em parte pela profissional. Assim, esperamos que esta pesquisa sirva como instrumento para o planejamento das ações do CRAS junto às famílias em seu território de abrangência. A nossa pesquisa teve, portanto, caráter essencialmente descritivo, que engloba os estudos que têm como objetivo primordial a descrição das características de determinada população ou fenômeno ou, então, o estabelecimento de relações entre variáveis (GIL 2002, p.42). Como Haguette (1987, p. 55) afirma que “os métodos qualitativos enfatizam as especialidades de um fenômeno em termos de suas origens e de sua razão”, sentimos a necessidade de, mais que meramente descrever a situação sócio-econômica das famílias referenciadas pelo CRAS de Lavras – MG, mas também problematizar as razões que levam a este panorama, partindo das mudanças nos arranjos familiares e das relações de gênero a elas intrínsecas, que acabaram transparecendo nas análises quantitativas, conforme apresentamos em nossas discussões. Em relação à escolha de nosso objeto de estudo, optamos pelo estudo de caso, focando a realidade do CRAS de Lavras - MG. Em termos de população e amostra, Ferreira (2005, p. 2), afirma que o conjunto total de medidas, sobre o qual se deseja retirar conclusões, é denominado de população ou universo. Ainda segundo o autor, amostra é o subconjunto de todas as medidas e pelas conclusões obtidas na amostra é possível realizar uma extrapolação para as características da população da qual a amostra foi obtida.

A partir dos conceitos supracitados foram definidas como população as famílias referenciadas e registradas pelo CRAS de Lavras – MG, contando com cerca de 400 famílias e como amostra, 183 das famílias registradas junto a essa instituição. Nossa intenção inicial era a de realizarmos um censo de todas as famílias cadastradas no CRAS de Lavras-MG. Contudo, acabamos forçados a adotar a amostragem não probabilística por conveniência, em face da impossibilidade de acesso a todos os cadastros das famílias, visto que muitos estavam sendo utilizados pelas profissionais do CRAS e não desejávamos que nossa pesquisa prejudicasse o seu trabalho de atendimento às famílias.

Para a coleta de dados foram utilizadas as técnicas de análise documental e técnica de interrogação via entrevista semi-estruturada com uma das profissionais do CRAS de Lavras-MG. Quando se aplica a entrevista semi-estruturada, segue-se um roteiro para esta entrevista.

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Este roteiro pode ser reformulado e acrescido no decorrer da própria entrevista, como ocorreu em nossa pesquisa (ALENCAR, 2000).

A análise de documentos se caracteriza como um movimento contínuo da teoria para os dados e vice-versa, o que possibilita uma interpretação que deverá ir além dos documentos em si, buscando os seus conteúdos latentes, ou seja, o que se esconde por trás do que foi apreendido (GODOY, 1995).

Ainda segundo Gil (2002, p. 45), na pesquisa documental, as fontes são diversificadas e dispersas. Há, de um lado, os documentos “de primeira mão”, que não receberam nenhum tratamento analítico. Nesta categoria estão os documentos conservados em arquivos de órgãos públicos e instituições privadas. Em nossa pesquisa, utilizamos documentos de “primeira mão”, nos termos de Gil (2002), que consistiram nos formulários de cadastro das famílias que estavam arquivados no CRAS de Lavras – MG. Estes cadastros continham as mais variadas informações, tais como composição das famílias, renda, escolaridade, condições de moradia, entre outras, que serviam de referência para o trabalho das profissionais do CRAS junto às famílias. A seguir, apresentamos o CRAS de Lavras – MG para então tecermos nossas discussões e apresentarmos os resultados. O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de Lavras-MG Lavras – MG é um município localizado na região Sul do estado de Minas Gerais e que em 2007 contava com 87.421 habitantes, em uma área de 564,50 km2, de acordo com dados do IBGE (2009). Conforme dados do Mapa de Pobreza e Desigualdade – Municípios Brasileiros 2003, apresentado pelo IBGE (2009), Lavras – MG conta com um índice de incidência de pobreza de 21,50%. Há cerca de um ano e meio, a Prefeitura Municipal de Lavras -MG, por meio da Secretaria Municipal Promoção da Cidadania, inaugurou seu primeiro Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), localizado no bairro COHAB. Há um outro CRAS em construção no bairro Cruzeiro do Sul, área considerada de maior vulnerabilidade social, segundo as entrevistadas. A equipe do CRAS de Lavras – MG é composta por uma assistência social, uma psicóloga, uma auxiliar geral e uma auxiliar de limpeza. O território de abrangência do CRAS em Lavras - MG envolve onze bairros da cidade, a saber: COHAB, Vila Mariana, Vila Paraíso, Caminho das Águas I, Caminho das Águas II, Lavrinhas, Aquenta Sol, Jardim Europa, Nossa Senhora de Lourdes, Nova Era I e Nova Era II. O CRAS de Lavras – MG, de acordo com os relatos da secretária, da psicóloga e da assistente social, que foram ouvidas em nossa pesquisa, teve sua imagem fortemente vinculada, no início de suas atividades à realização de cursos profissionalizantes, com destaque para o curso de panificação que era oferecido pelo CRAS de Lavras – MG. Atualmente, as profissionais têm buscado alterar esta imagem junto às famílias referenciadas e o CRAS passou a oferecer prioritariamente atividades de convivência. No caso de Lavras, de acordo com uma das profissionais entrevistadas, dentre as 5.000 famílias referenciadas pelo CRAS, há cerca de 400 famílias cadastradas e 60 são acompanhadas. A seguir, apresentamos e discutimos os resultados obtidos a partir de 183 cadastros de famílias referenciadas pelo CRAS de Lavras – MG. Discussão e Resultados Um dos resultados alcançados pela pesquisa é de que 93% das pessoas de referência (pessoa da família que procurou o CRAS ou foi interpelada por este, constando como responsável na ficha cadastral da família) são do sexo feminino. A maior parte delas, 72,1%,

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são as próprias mães. Isso permite inferir que, considerando a divisão sexual de papéis ainda predominante em nossa sociedade, a centralidade na família perseguida pela política pública de assistência social pode estar reproduzindo essa mesma divisão sexual no âmbito da família ao privilegiar (de forma deliberada ou não) a mulher enquanto pessoa de referência pelo “cuidado” da família e da casa (espaço privado). A preocupação aqui não é se a pessoa de referência é a mulher ou o homem, mas sim a reprodução das desigualdades de poder que estão por trás dos papéis atribuídos a um e a outro, podendo até mesmo minar, no todo ou em parte, o alcance social das ações dirigidas às famílias. Fazendo a tabulação cruzada do sexo da pessoa de referência com o estado civil, observamos que 36,2% dessas mulheres são casadas e 26,6% são solteiras. O restante delas ou estão divorciadas/separadas ou vivendo uma união estável. Quanto à idade, a faixa etária predominante para elas, 25,4%, é dos 25 aos 30 anos. Em segundo e terceiro lugares vem de 31 a 40 anos e 41 a 50 anos, com 22,7% e 16%, respectivamente. As mulheres também não se encontram em boas condições no que diz respeito à escolaridade. 37,7% possuem até quarta-série e 23,7% estão entre quinta e oitava séries. A maior parte dessas mulheres com baixa escolaridade tem entre 25 e 60 anos e estão concentradas no arranjo nuclear simples e monoparental feminino simples. Adentrando em algumas variáveis sócio-econômicas foi verificado que 67,7% das mulheres não possuem emprego com vínculo empregatício contra 24,6% que possuem. No entanto, 63% delas declararam renda na faixa entre R$201,00 e R$485,00 reais. Nos cadastros que utilizamos como fonte das informações aqui discutidas, não há uma triagem no sentido de discriminar as fontes de renda, podendo muito bem estar incluídas pensões de filhos, bolsa família e outros benefícios, seguro desemprego e ocupações diversas. A participação de benefícios como o Bolsa Família, por exemplo, como uma das possíveis fontes da renda deve ser desconsiderada pois 63,4% dos casos estudados declararam não possuir o referido benefício. Além disso, a não ser que o (a) profissional que cadastrou a família tenha se equivocado, benefícios de programas sociais não são considerados fontes de renda. No entanto, foi observado que várias das mulheres declararam trabalhar como doméstica. Isso por si só pode revelar uma situação precária de relação de trabalho. Outro dado interessante revela que em qualquer faixa de renda da família, a participação da pessoa de referência do sexo feminino na renda total da família é maior que a da pessoa de referência do sexo masculino Esse dado também pode refletir os tipos de arranjos familiares predominantes entre as famílias cadastradas no CRAS, sendo nuclear simples com 38,3% e monoparental feminina simples com 19,7%. Embora em menor número, observou-se um número significativo (8,7%) de famílias em que mulheres antes sozinhas com seus filhos “incorporaram” um companheiro à cena familiar (nuclear reconstituída) e casos de famílias monoparentais feminina extensa (8,2%), em que além de mãe e filhos, outros parentes estão presentes no domicílio. Do total de famílias caracterizadas no arranjo nuclear simples, 37% possuem a mulher como pessoa de referência. Como tipo de arranjo predominante, verificou-se que o número de membros predominante nas famílias de tipo nuclear simples variam entre 3 e 5 membros, perfazendo um percentual de 29,2%. Complementando os números acima, 97,3% das famílias estão localizadas na zona urbana. Dessas, 51,4% residem em imóvel próprio, 22,6% em imóvel financiado, 13% em imóvel alugado e 12,4% em imóvel cedido. Em sua quase maioria, as condições de moradia são boas, com construção feita de tijolos e/ou blocos, possuindo coleta de esgoto, fornecimento de água e energia elétrica. Todo esse conjunto de dados, informações e números apontam para o reconhecimento do lugar das mulheres e das famílias distribuídas no território abrangido pelo CRAS. São mulheres trabalhadoras com baixo nível de escolaridade e de renda pela pouca disponibilidade de tempo que lhes sobram, em situação precária de trabalho, responsáveis (e responsabilizada)

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tanto economicamente (espaço público) quanto afetivamente pela manutenção dos vínculos da família (espaço privado). Diante do exposto, é imprescindível que as ações da política pública de assistência social operacionalizadas pelo CRAS/PAIF percebam esse tipo de situação em que se encontram as mulheres no território, pois, como verificado, a situação das mulheres é em si a situação das famílias. O trabalho social com famílias no CRAS de Lavras – MG tem se baseado quase que exclusivamente à partir da interpelação da figura da mulher, sobretudo a mãe, em 72% dos casos que compuseram a pesquisa. A Figura 1, exposta abaixo, mostra que, mesmo para os arranjos familiares em que a figura do pai deveria ser central (monoparental masculina simples e extensa), apenas em 47% dos casos o pai foi pessoa de referência, que buscou o atendimento junto ao CRAS. Isso significa que, dentro dos arranjos, na maior parte das vezes (53%), a pessoa que buscou o CRAS foi um (a) dos (as) filhos (as) ou outra pessoa adulta que faça parte da família. No caso da família nuclear simples, os pais representaram apenas 6% das pessoas de referência dentro desse arranjo familiar. Figura 2 – Sexo da Pessoa de Referência, por Tipo de Arranjo Familiar

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Sexo da Pessoa de Referência por Tipo de Arranjo Familiar

Feminino Masculino Fonte: Elaborado pelos autores Essa questão da centralidade da família na figura da mulher é resultado da própria pressão do movimento feminista e consta como orientação de organismos internacionais. A justificativa baseia-se na necessidade de “empoderar” a mulher no âmbito dos espaços público e privado possibilitando sua inclusão social. Silveira (2004) argumenta que a inclusão da mulher deve passar necessariamente por uma orientação que altera a lógica das desigualdades que a colocam em papel subordinado; fora disso, qualquer inclusão serve apenas à sua instrumentalização reafirmando-a como responsável exclusiva pelo espaço doméstico e cuidado dos filhos. Alterar a lógica das desigualdades de gênero, ainda segundo a autora,

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passa pela construção de políticas de família que possibilitem autonomia às mulheres e redivisão dos papéis até então ditos “femininos”. Para Lyra et al (2007), a família consiste na “síntese desse universo simbólico e das instituições nas quais se constroem as subjetividades, onde se reproduz a ordem sociocultural em que estão inseridos e são atualizadas as relações de gênero em todas as suas dimensões”, seja no cuidado, trabalho ou exercício da sexualidade. Complementando esta idéia, Woortman (1987) apud Sarti (2007) comenta que a “centralidade” da família na figura da mulher se dá, em verdade, pelo cumprimento de seu papel de gênero, de mantenedora da estrutura familiar em complementaridade com o papel do pai. Desta forma, a centralidade está no par masculino/feminino e não necessariamente na mãe, pois o papel de mantenedora da estrutura familiar pode ser repassada a outra mulher dentro da família, assim como a de pai pode ser passada a outro homem (WOORTMAN, 1987 apud SARTI, 2007). Quando questinonada sobre as pessoas que buscavam o apoio do CRAS de Lavras – MG, uma de suas profissionais afirmou que, em sua percepção, a pessoa de referência geralmente era a mãe. Quando questionamos as razões que ela enxergava para isso, a profissional falou da dificuldade de inclusão do pai nesse processo, citando o exmplo de um caso com uma criança que passava por dificuldades na escola. A escola recorreu à ajuda do CRAS e a profissional sentiu a necessidade de conversar não só com a mãe, mas também com o pai da criança para a solução so problema. O pai estranhou o chamado, de modo que a profissional nos relatou que teve de dizer-lhe: “Te chamei aqui porque você também é importante no processo”. Nesse caso, o pai compareceu sem problemas ao CRAS, mas a profissional revelou que alguns pais apresentam tanta resistência que é necessário recorrer ao auxílio do Conselho Tutelar, dotado de poder de polícia para obrigar o pai a comparacer para conversa. Contudo, a própria profissional disse que nem sempre teve, em seu trabalho, esta preocupação de refletir sobre a centralização das ações na figura da mulher. Quanto questionada sobre a razão que via para isso, ela afirmou: “A gente repete também, a gente é criado nessa estrutura louca”, revelando sua consciência de que também passou por um processo de socialização quanto às relações de gênero e que, por esta razão, mesmo se policiando, se enxerga às vezes reproduzindo estereótipos de gênero no trabalho com as famílias. Considerações Finais Diante das discussões apresentadas, desejamos argumentar que as relações de gênero possuem um caráter relacional, mutável diante das relações estabelecidas entre homens e mulheres dentro de um sistema social. Desse modo, discutir as relações de gênero dentro do CRAS, é essencial para debatermos a questão da família dentro da política pública de assistência social e os reflexos de tais relações dentro dos arranjos familiares das (os) beneficiárias (os) do CRAS de Lavras-MG. O trabalho de Lyra-da-Fonseca (2008) discute a contribuição do discurso feminista para a emancipação não só das mulheres, mas também dos homens e a discussão de que os estudos sob a perspectiva feminista de gênero podem também contribuir para estudos que explorem a ausência da preocupação com o homem em políticas públicas voltadas a questões tidas como “femininas” a exemplo dos direitos sexuais e reprodutivos ou, como nós percebemos em nossa pesquisa junto ao CRAS/PAIF, em relação à política familiar.

A exemplo do que observou Lyra-da-Fonseca (2008) junto à política pública em relação aos direitos reprodutivos e sexuais, que se voltam muito às mulheres, deixando a questão dos homens em plano secundário, observamos a grande predominância de mulheres (93%) como responsáveis pela família junto ao CRAS de Lavras-MG e também que se não a

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própria concepção, ao menos a condução do PAIF é muito voltada às mulheres, ainda que as famílias nucleares simples (compostas por pai, mãe e filhos) tenha se mostrado, até o momento em que nos encontramos na pesquisa, como maioria (38,3%) dentro das famílias cadastradas. Assim, em nossa pesquisa temos observado, assim como Lyra-da-Fonseca (2008) a necessidade de se pensar as relações de gênero como relações de poder, de maneira relacional e não estática ou dicotômica. Referências Bibliográficas AFONSO, M.L.M. Oficina em dinâmica de grupo: um método de intervenção psicossocial. In: ______ Oficina em dinâmica de grupo: um método de intervenção psicossocial. Belo Horizonte: Edições do Campo Social, 2002. ALENCAR, E. O estudo de caso é uma categoria válida de pesquisa? Lavras: UFLA-DAE 1991. SP. (Mimeografado). _____________. Introdução à metodologia de pesquisa social. Lavras: UFLA/ FAEPE, 2000. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. BRASIL. Guia, 2006. Proteção Social Básica de Assistência Social. Brasília: MDS, 2006. CARLOTO, Cássia Maria. Centralidade na Família e Centralidade nas Mulheres? Cascavel : 2º Seminário Nacional Estado e Políticas Sociais no Brasil - Unioeste, 2005. CARVALHO, M. do C. B. de. Família e políticas públicas. In: ACOSTA, A. R.; VITALLE, M. A. F. Família: redes, laços e políticas públicas. 3.ed. São Paulo: Cortez: Instituto de Estudos Especiais – PUC/SP, 2007. 316p. DOWBOR, L. A economia da família. In: ACOSTA, A. R.; VITALLE, M. A. F. Família: redes, laços e políticas públicas. 3.ed. São Paulo: Cortez: Instituto de Estudos Especiais – PUC/SP, 2007. 316p. FERREIRA, Daniel Furtado. Estatística Básica. Lavras: Editora UFLA, 2005. GIDDENS, A. A terceira via. 1.ed. São Paulo: Record, 1999. 176p. GODOY, A.S. Pesquisa qualitativa - tipos fundamentais. Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v.35, n.3, p.2O-29, mai./jun. 1995. GOMIDES, J.E. A definição do problema de pesquisa: a chave para o sucesso do projeto de pesquisa. Revista do Centro de Ensino Superior de Catalão - CESUC - Ano IV - nº 06 - 1º Semestre – 2002. In_____ wwwp.fc.unesp.br. Acesso em 22 nov 2007. HAGUETTE, T.M.F. Metodologias qualitativas na sociologia. Petrópolis: Vozes, 1987. l63p HIRATA, H. Nova divisão sexual do trabalho? Um olhar voltado para a empresa e a sociedade. São Paulo: Boitempo Editorial, 2002. P. 127-289. IBGE. Cidades@. Disponível em: < http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow. htm?1>. Acesso em 6 nov 2009. KLIKSBERG, B. Pobreza: uma questão inadiável, novas propostas a nível mundial. Tradução de Cláudia Schilling; organizado por Bernardo Kliksberg. Brasília: ENAP, 1994. 739p. LYRA, Jorge; LEÃO, Luciana Souza; SANTOS, Breno; CRISÓSTOMO, Augusto; TARGINO, Paula; LIMA, Daniel Costa; PAPAI, Programa. Homens e Cuidado: uma outra família? In: ACOSTA, A. R.; VITALLE, M. A. F. Família: Redes, Laços e Políticas Públicas. 3.ed. São Paulo: Cortez: Instituto de Estudos Especiais – PUC/SP, 2007. 316p. LYRA-DA-FONSECA, J. L. C. Homens, feminismo e direitos reprodutivos no Brasil: uma análise de gênero no campo das políticas públicas (2003-2006). Recife, Fundação Oswaldo Cruz, 2008. (Tese de Doutorado). 262p.: il., tabs.

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