o lugar da Ética e da auto-regulação na identidade ... · universidade do minho. foi aqui que,...

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  • Agradecimentos

    Agradeo, reconhecido, ao Prof. Anbal Alves e ao Prof. Manuel Pinto,

    que partilharam a tarefa de orientar esta tese, fazendo-o sempre com uma generosidade,

    uma competncia, um empenho e um carinho absolutamente inexcedveis.

    A eles muito se deve a alegria que sinto hoje de ter caminhado este caminho at ao cabo.

    Agradeo, sensibilizado, a todos e a cada um dos elementos (actuais e antigos, docentes e no-

    docentes) que compem o Departamento de Cincias da Comunicao e o Instituto de Cincias Sociais da

    Universidade do Minho. Foi aqui que, num tempo difcil de transio, depressa encontrei uma nova casa:

    um lugar onde trabalhar mas tambm onde pousar e aconchegar o corao,

    durante tantos anos oferecido a outras artes, noutras casas.

    Agradeo, de um modo muito especial, a quantos tm assumido as responsabilidades

    de conduo do Departamento de Cincias da Comunicao os Profs. Anbal Alves, Moiss

    Martins, Manuel Pinto, Helena Sousa, Zara Coelho e que sempre se preocuparam em me proporcionar

    as melhores condies para a prossecuo deste trabalho,

    acompanhando-o com um interesse e um apoio nicos.

    De modo tambm muito particular, alargo este agradecimento aos demais companheiros de vida e

    de trabalho mais ligados rea do Jornalismo, e que, alm de excelentes profissionais

    com quem sabe bem trabalhar, so amigos do peito, que acompanham,

    que apoiam, que ajudam, que esto, que s nos deixam ss quando ns queremos ou precisamos:

    a Felisbela Lopes, o Lus Santos, a Sandra Marinho, o Alberto S,

    a Madalena Oliveira, a Sara Moutinho, a Daniela Bertocchi (esqueci algum?...).

    Agradeo a tantos outros mestres e colegas da comunidade cientfica das Cincias da

    Comunicao (para alm da UM) com quem tenho tido o privilgio de contactar mais de perto

    e com quem tanto tenho aprendido: os Profs. Mrio Mesquita, Paquete de Oliveira,

    Nlson Traquina, Antnio Fidalgo, Rogrio Santos, Estrela Serrano, Cristina Ponte, Hugo Aznar,

    Xos Lpez, Beate Josephi, entre muitos mais. A eles tambm o crdito de muito do meu percurso.

    Agradeo a tantos e tantos camaradas de profisso com quem fiz uma longa viagem

    por dentro do jornalismo e a que, de modo mais directo ou indirecto,

    sempre regresso como nestas pginas regressei.

    O que fui e sou, o que fiz e fao, no se entenderia sem essa enorme rede

    de partilhas e cumplicidades, temperada pelos sucessos e pelos fracassos,

    pelas esperanas e pelas desiluses, pela luz e pelas sombras. Mas muita e muito intensa vida.

    Por todos (e at por alguns prematuramente ausentes), nomeio o Jos Queirs.

    iii

  • Agradeo especificamente a todas e todos os jornalistas do Pblico, do Jornal de Notcias e

    do Dirio de Notcias que se dispuseram a colaborar no meu inqurito sobre a figura do Provedor do

    Leitor. E agradeo igualmente aos colegas provedores ou ex-provedores que me ajudaram a compreender

    melhor essa estimulante funo auto-reguladora, contribuindo para o que aqui fica escrito.

    Por todos estes, evoco o Jorge Wemans.

    No crculo largo que vai para alm das esferas mais especificamente profissionais, agradeo

    a tantas amigas e tantos amigos do peito, que fazem parte inteira da minha vida e que, sobretudo

    nestes tempos mais recentes, foram parceiros to solidrios desta absorvente lavoura.

    Com msica ou sem ela, com palavras ou silncios, c pertinho ou mais l longe,

    na terra ch ou na lonjura do mar, mais a rir ou a chorar,

    por horas sem fim ou pela alegria breve (e a surpresa, e a saudade) de um instante,

    tenho a sorte imensa de contar com elas e eles, todas, todos, tanto, sempre.

    No digo nomes, no preciso. Bem hajam.

    Agradeo famlia grande em que nasci e ainda maior em que cresci e creso,

    famlia que me deu tudo o que me deu e me d tudo o que me d,

    com o calor da gente que uns dos outros, que se ama e se quer bem.

    Agradeo muito em particular minha famlia mais pequenina

    com quem mais de perto fao os dias e as noites:

    minha mulher, Estefnia, s minhas filhas, Sara e Mariana,

    tambm ao seu marido e meu genro, Jos Mrio, hoje parte da nossa casa.

    O agradecimento que lhes dou, com toda a ternura de que o meu corao capaz,

    no compensa decerto o tanto tempo que neste tempo lhes roubei, os aborrecimentos,

    as faltas de pacincia, o cansao, a ausncia Sem o seu apoio e ajuda, sem a sua compreenso,

    sem o seu amor, sem a sua mo, sei-o bem, no teria chegado aqui.

    Obrigado.

    E um beijo muito, muito grande para ti, me.

    Muitas das etapas intermdias desta tese de doutoramento foram desenvolvidas no mbito da

    minha participao no projecto colectivo de investigao MEDIASCPIO Estudo sobre a reconfigurao do campo da comunicao e dos media em Portugal, coordenado pelo Prof. Manuel Pinto, inserido nas actividades do Centro de Estudos de Comunicao e Sociedade (CECS) do Instituto de Cincias Sociais da Universidade do Minho, e financiado pela Fundao para a Cincia e Tecnologia (FCT), atravs do Programa Sapiens (POCT /COM/41888/2001).

    iv

  • Resumo

    O objectivo central da nossa investigao tentar compreender as caractersticas

    especficas da profisso de jornalista, seja nos modos como ela encarada de dentro

    pelos seus directos protagonistas, seja nos modos como ela olhada e julgada de fora,

    pelo todo social com que interage. Trata-se de uma profisso reconhecida como tal e

    institucionalizada h escassas dcadas, e mesmo assim de modos algo vagos em certos

    pases. O pressuposto de que partimos o de que esta profisso foi sendo o que quis ou

    pde ser, mas tambm o resultado de tenses, equilbrios e negociaes com os diversos

    actores sociais com que ela, de diferentes modos em diferentes tempos e espaos, se inter-

    relacionou.

    Um segundo objectivo, complementar deste, compreender qual o papel particular

    das questes ticas e deontolgicas na definio de uma identidade profissional dos

    jornalistas, bem como os modos em que ela se pode concretizar.

    Passamos em revista as mais recentes correntes tericas ligadas sociologia das

    profisses, decorrentes dos paradigmas funcionalista, interaccionista e do poder.

    Seguindo a sugesto interaccionista, focamos a nossa ateno mais no processo do que no

    resultado da estratgia de profissionalizao dos jornalistas o seu projecto profissional

    , conduzidas ao longo de anos. Discutimos ainda as controvrsias em torno do conceito

    de profissionalismo, entendido ora como uma negativa ideologia de controlo (traduzida na

    apropriao, em regime de monoplio e com o aval do Estado, de um segmento fechado

    do mercado de trabalho e na valorizao social do grupo), ora como um positivo sistema

    de valores que reclama orientar-se para um servio desinteressado comunidade.

    Depois de percorrida(s) a(s) histria(s) recente(s) de construo da profisso em

    diferentes pases, olhamos mais em detalhe como os jornalistas lidaram com certos traos

    tradicionalmente associados aos grupos profissionais, nos domnios cognitivo, valorativo e

    normativo. Especificamente, analisamos as questes relacionadas com os variados perfis

    das suas associaes profissionais, com o saber e saber-fazer que lhes prprio, com a sua

    responsabilidade social e com o imperativo tico que se lhes coloca.

    No captulo especfico da tica, percorremos as mais importantes teorias (ticas

    deontolgicas, teleolgicas, consequencialistas, utilitaristas, tica das virtudes, tica

    dos afectos, tica do discurso), procurando discernir o que nelas h de semelhante e o

    v

  • que h de diferente. Evocamos tambm as perspectivas que procuram delimitar uma

    espcie de mnimo tico comum, baseado num pequeno nmero de proto-normas morais

    universais, nas quais possa ter as suas razes no s uma tica de profissionais, mas uma

    mais lata tica de cidados que os jornalistas tambm so.

    O entendimento de que as responsabilidades ticas, numa profisso com a

    influncia e impacto social do jornalismo, implicam obrigatoriamente a necessidade de

    prestao de contas sociedade, leva-nos depois a analisar as modalidades concretas que

    essa prestao de contas pode e deve assumir. Identificamos as vantagens da auto-

    regulao dos media e dos seus profissionais (considerando-a o melhor modo de equilibrar

    liberdade de expresso e de imprensa com responsabilidade), e tambm os seus limites e

    fragilidades. Passamos em revista um conjunto de mecanismos e instrumentos de auto-

    regulao, terminando na figura do Provedor do Leitor, que estudamos mais em detalhe,

    no contexto de um inqurito de opinio junto de jornalistas de trs dirios portugueses.

    Este estudo permite concluir que o balano desta funo (recente em Portugal)

    genericamente positivo, embora de modos matizados conforme os jornais especficos e

    conforme os nveis etrios dos jornalistas.

    Tendo presentes as novas condies em que se exerce o jornalismo na era digital,

    bem como os novos desafios que se colocam ao campo jornalstico, adiantamos a

    hiptese de que as exigncias ticas contendo obrigatoriamente um exerccio competente

    do ofcio sero cada vez mais centrais na definio de uma identidade profissional

    especfica dos jornalistas. Se alguns dos seus saberes tcnicos so hoje menos

    necessrios do que no passado (porque outros actores, individuais e colectivos, tambm

    produzem e difundem informao no espao pblico) ou esto mais acessveis a qualquer

    um fora das organizaes mediticas tradicionais, tanto mais importa que os jornalistas

    aprofundem as marcas diferenciadoras do seu ofcio, recuperando (e actualizando) os

    grandes objectivos que desde o incio do processo de profissionalizao apontaram como

    especficos da informao jornalstica. Ou seja, a seleco, produo e difuso de

    informao completa e relevante sobre a actualidade, elaborada segundo critrios de

    verdade, rigor e interesse pblico, trabalhada de modo responsvel, transparente e

    accountable, e permanentemente aberta tanto crtica como auto-crtica, devolvendo aos

    cidados o seu papel de co-protagonistas da comunicao meditica. Esse , cremos, o

    caminho necessrio para recuperarem toda a confiana do pblico, com o que tal implica

    de reconhecimento e legitimao social da sua profisso em construo.

    vi

  • Abstract

    The main purpose of our research is to try to understand the specific characteristics

    of the journalistic profession, both in the ways it is regarded from the inside by its direct

    protagonists, and in the ways it is viewed and judged from the outside, by the social

    whole with which it interacts. This is a profession only recently acknowledged as such,

    and institutionalized in a rather vague form in some countries. Our departing point lies on

    the presupposition that this job turned to be the profession it wanted or was allowed to be,

    but it is also the result of multiple tensions, balances and negotiations with the different

    social actors it dealt with, according to different places and different times.

    A second purpose of our work, closely connected with the first one, is to

    understand the particular role played by the ethical issues in the definition and construction

    of the journalists professional identity, as well as the concrete ways in which they can be

    actually (and not just rhetorically) assumed.

    We review the recent theoretical approaches in the area of the sociology of

    professions, mainly the ones connected with functionalism, with interactionism and with

    the so-called power paradigm. Following the interactionist ideas, we focus particularly

    in the process, rather than in the result, of the journalists professionalization strategy

    their professional project carried out through the years. We also discuss the

    controversies around the concept of professionalism, regarded either as a negative

    ideology of control (leading to the monopolistic occupation of a closed share of the labour

    market, allowed by the state, and to the social valuation of the professional group), or as a

    positive system of values and principles, claiming to provide the community with a

    relevant service, on a basis of altruism.

    After looking at the recent history (or histories) of construction of the profession in

    different countries, we proceed in more detail into the ways how journalists dealt with

    certain traits traditionally associated to the professional groups, in the cognitive,

    evaluative and normative domains. We specifically analyze the issues related to their

    professional associations, to their particular knowledge and know-how, to their social

    responsibility and to the ethical demands they are faced with.

    In the chapter devoted to ethics, we revisit the most known theories in the field

    (deontological, teleological, consequentialist and utilitarian ethics, plus discourse ethics,

    vii

  • virtue ethics, ethics of care), trying to find out the similarities, as well as the

    differences, between them. In the same line of thought, we recall several approaches

    committed to identify some kind of common ethical minimum, based on a few universal

    moral proto-norms in which not only professionals ethics, but a broader citizens

    ethics, could be rooted.

    The understanding that the ethical responsibilities, in a profession with such a

    social influence as the journalism, will necessarily imply the need to be accountable to the

    society, leads us to study the concrete modalities in which such accountability can take

    form. We identify the advantages of media self-regulation (considered the best form of

    safeguarding both freedom of speech and of the press, and their inherent responsibility), as

    well as its limitations. After reviewing a set of self-regulatory mechanisms, we concentrate

    on the figure of the news ombudsman, which is analyzed in a more detailed way,

    especially in the context of an opinion survey made among the journalists of three

    Portuguese daily newspapers. The discussion of the results of the survey suggests that this

    self-regulatory mechanism (still recent in Portugal) is generally regarded in a positive

    mood, although somewhat differently according to the newspapers involved, as well as to

    the journalists age and professional experience.

    Looking at the new conditions of the digital era in which journalism is carried on,

    as well as the new challenges faced by the journalistic field as a whole, we develop the

    argument that the ethical demands containing necessarily a skillful and competent work

    on the job will be more and more central to the definition of a specific professional

    identity for the journalists. If some of their technical requests and know-how are nowadays

    not as necessary as they were in the past (because other people produce and disseminate

    information in the public sphere too), or if they are more accessible to anyone outside the

    traditional media organizations, then journalists should engage even more strongly in

    defining the marks that make their job different and unique, thus recovering (and

    updating) the main purposes of the journalistic information as it was claimed from the very

    beginning of their process of professionalization. That is to say, the selection, production

    and diffusion of complete and relevant information of the actuality, following criteria of

    truthfulness, accuracy and public interest, treated in a responsible, transparent and

    accountable way, and permanently open to criticism and self-criticism, in order to give

    back to the citizens their place as active partners in the process of media communication.

    This is, we believe, the way for them to regain public trust, thus helping to the needs of

    social legitimization of a profession still in construction.

    viii

  • NDICE

    Introduo 1 CAPTULO I Profisso, profissionalismo e profissionalizao 13 1. Profisso: a difcil definio 14

    1.1. O paradigma funcionalista 18 1.2. O paradigma interaccionista 23 1.3. Os movimentos crticos e o paradigma do poder 27

    1.3.1. Johnson e a relao com o poder do Estado 29 1.3.2. Freidson e o controlo do trabalho 30 1.3.3. Larson e o projecto profissional 32 1.3.4. Os mercados de trabalho fechados 35

    1.4. A abordagem sistmica de Abbott 37

    2. Da profisso ao processo de profissionalizao 41 2.1. Presente e futuro do estatuto profissional 46 2.1.1. Desprofissionalizao 48 2.1.2. Proletarizao 50 2.1.3. O caso especfico dos jornalistas 54 3. Sntese conclusiva 57 CAPTULO II Jornalistas: a histria de construo de uma profisso 61

    1. O princpio da diferenciao 66

    2. Entre o ser e o querer existir como profisso 71 2.1. Os primrdios do novo ofcio 72 2.1.1. O primeiro jornalista em Frana 73

    2.1.2. Poltica e censura em Portugal 76 2.2. O jornalismo industrializado 81

    2.2.1. Frana e a liberdade de imprensa 82 2.2.2. A imprensa popular pioneira nos EUA 85 2.2.3. A nova imprensa em Portugal 88

    ix

  • 2.2.4. Espanha no mesmo passo 92 2.2.5. O jornalismo de agncia 95 2.2.6. Os pais da imprensa moderna 97 2.2.7. Os alvores da industrializao 102 2.3. Um estatuto para os jornalistas 108 2.3.1. A revoluo francesa na profisso 109 2.3.2. A legitimao por via legal 116 2.3.3. Profisso aberta, territrio fechado 120 2.3.4. Avanos e recuos do caminho portugus 123 2.3.5. Hesitaes no modelo de formao 127 2.3.6. As ambiguidades de uma identidade fluida 134 2.3.7. EUA: entre o jornalismo de estrias... 138 2.3.8. ... e o jornalismo de informao 143 2.4. Os desafios do ps-guerra e a consolidao 146 2.4.1. Propaganda e relaes pblicas 148 2.4.2. A doutrina da objectividade 151 2.4.3. A revoluo das fontes 154 2.4.4. A responsabilidade social do jornalista 156 2.5. As novas tecnologias e o alargamento do campo 159 2.5.1. A Internet e o universo digital 160 2.5.2. A crescente presso econmica 166 2.5.3. Novos desafios ticos 167

    3. Sntese conclusiva 172 CAPTULO III A especificidade dos principais traos profissionais no jornalismo 175

    1. Os diferentes figurinos no associativismo 182

    1.1. Entre a Ordem e o Sindicato 184 1.2. Prestgio social ou capacidade de reivindicao laboral? 186 1.3. Incluir os profissionais, excluir os amadores 191

    2. Em demanda de um saber prprio 195 2.1. O jornalismo como forma de conhecimento 200 2.1.1. Os media como actores culturais 204 2.1.2. A cincia da periodificao 205 2.2. O jornalismo como disciplina autnoma 207 2.2.1. Para alm da dicotomia teoria / prtica 208 2.2.2. Entre qualificao e competncia 213 2.2.3. Em favor de uma lgica de competncia 216 2.2.4. Os saberes de aco no cerne do saber profissional 221 2.2.5. Uma nova ateno ao cliente 226 2.2.6. A alternativa da prtica reflexiva 227 2.2.7. A emergncia do paradigma noticioso 230

    2.2.8. Como saber o que , ou no , notcia? 240 2.2.9. A especificidade do produto-jornal 246

    2.3. A formao dos jornalistas 248 2.3.1. O dilema da titulao acadmica 249 2.3.2. A diversidade de opes curriculares 250

    x

  • 2.4. O estatuto do jornalista enquanto profissional especializado 251 2.4.1.- Modos de legitimao 252

    3. A responsabilidade e o ideal de servio pblico 255 3.1. Entre o servio pblico e o interesse privado 257 3.2. Presso das fontes e presso das audincias 261 3.3. A responsabilidade social dos media 263

    3.3.1. A dupla lealdade do jornalista 265 3.3.2. O Estado, o Mercado e a Sociedade 267 3.3.3. Liberdade negativa e liberdade positiva 269 3.3.4. Da regulao pblica regulao social 274

    4. A exigncia tica e deontolgica 277

    4.1. No princpio era a tica 277 4.2. Os caminhos diversos da deontologia 279 4.3. Dvidas e hesitaes do modelo portugus 282

    5. Sntese conclusiva 285 CAPTULO IV A centralidade do desafio tico e deontolgico 295

    1. tica, moral, deontologia: esclarecer conceitos 296

    2. Os dilemas de sempre 299

    2.1. Entre o plo individual e o colectivo 300 2.2. Entre o enfoque deontolgico e o teleolgico 303

    2.3. Entre convices e responsabilidade 305

    3. Os debates contemporneos em tica 308 3.1. tica deontolgica, ou do dever moral 311 3.2. tica consequencialista, ou da utilidade 316 3.3. tica contratualista, ou do acordo 320

    3.4. tica das virtudes, ontem e hoje 325 3.4.1. Percurso interno e condies externas 331 3.4.2. Os neo-aristotlicos, de MacIntyre a Nussbaum 334 3.4.3. O complemento de uma tica dos afectos 339

    4. Habermas e a tica do discurso 344 4.1. A teoria kantiana revista e reformulada 348 4.2. A fora da razo, a importncia da vontade 352

    5. Em demanda da sntese ideal 355

    6. Porqu ter um comportamento tico? 361 6.1. Antes das normas, os valores 363 6.2. A hiptese das proto-normas universais 366 6.3. A responsabilidade social dos media revisitada 374

    xi

  • 7. Exigncias e procedimentos do juzo tico 381 7.1. Dominar a regra dominante 382 7.2. Explicitar o processo de deciso tica 384 7.3. Formar-se tambm para a competncia tica 386

    8. Da tica deontologia profissional 388 8.1. As dvidas dos mitos fundadores do jornalismo 390 8.2. Modos de usar a deontologia 394 8.3. O contrato social como caminho de legitimao 402 8.4. Jornalistas responsveis, jornalistas imputveis 406

    9. Back to basics, ou seja, back to ethics 408

    10. Sntese conclusiva 414 CAPTULO V Accountability e regulao da actividade jornalstica 419

    1. A questo da responsibility 421

    2. A questo da accountability 425

    2.1. Em busca da quadratura do crculo? 426 2.2. Tipos e nveis de accountability 429

    3. De que se fala quando se fala de regulao? 437

    3.1. Regulao centrada ou descentrada 438 3.2. Regulao e mercado livre das ideias 442

    3.3. Uma questo tambm moral 444

    4. O lugar da hetero-regulao 449 4.1. Sistemas polticos e modelos mediticos 451 4.2. Modos de interveno do Estado 460

    5. A auto-regulao: papel, vantagens e limites 467 5.1. O que a auto-regulao 470 5.2. e o que a auto-regulao no 473 5.3. Entre as boas intenes e a duvidosa eficcia 476 5.4. Sanes materiais ou morais? 478 5.5. O lugar do pblico 485

    6. Instrumentos e mecanismos auto-reguladores 489 6.1. Conselho de Redaco 491 6.2. Livro de Estilo 493 6.3. Estatutos de Redaco / Cdigos Internos 497 6.4. Cdigo Deontolgico 499 6.5. Conselho Deontolgico 504 6.6. Conselho de Imprensa 506 6.7. Correio dos Leitores e Tribuna Pblica 511 6.8. Crtica de Media / Metajornalismo 512 6.9. Provedor do Leitor / do Ouvinte / do Espectador 513

    xii

  • 7. Sntese conclusiva 514 CAPTULO VI O Provedor do Leitor 517

    1. Origem e enquadramento 518

    2. Perfil e funes 522

    3. As principais controvrsias 526

    3.1. Sobre a independncia 526 3.2. Sobre a autonomia 528 3.3. Sobre o papel 530 3.4. Sobre o(s) poder(es) 533

    3.5. Sobre a eficcia e a utilidade 535

    4. Vantagens, limitaes e riscos 537

    5. Um estudo de opinio junto dos jornalistas 542 5.1. Metodologia 543 5.2. Caracterizao da amostra 545 5.3. Resultados apurados 548 5.3.1. Frequncia de leitura e grau de concordncia 548 5.3.2. Interpelaes do Provedor e respostas 551 5.3.3. Utilidade e eficcia do Provedor 552 5.3.4. Origem interna ou externa do Provedor 556 5.3.5. Definio do Provedor do Leitor 558 5.3.6. Conhecimento externo da figura do Provedor 559 5.3.7. Importncia relativa da figura do Provedor 560 5.3.8. Maiores elogios e maiores crticas 563 5.4. Discusso dos resultados 564 5.5. Apreciaes qualitativas 571

    6. Sntese conclusiva 577

    7. Apndice 581

    Concluso 589

    BIBLIOGRAFIA 625

    xiii

  • xiv

  • Introduo

    Introduo

    O ponto de chegada deste trabalho o Provedor do Leitor uma instncia de auto-

    regulao da actividade jornalstica, ainda recente entre ns, vocacionada essencialmente

    para aproximar mais os media dos seus pblicos e estes daqueles. uma instncia

    preocupada tambm em tornar mais transparente e compreensvel o exerccio do

    jornalismo nas suas condies concretas de hoje, e empenhada em discutir, assumir e

    corrigir os erros ou insuficincias do trabalho informativo nos rgos de comunicao que,

    livre e voluntariamente, se dispem a tal. Ou seja, um bom exemplo de esforo reflexivo

    e auto-crtico, feito de actos e no s de palavras, por parte de uma actividade (o

    jornalismo) e de um grupo profissional (os jornalistas) onde desde sempre parecem ter sido

    mais as posturas de arrogncia, auto-complacncia e fechamento corporativo do que as

    de humildade, abertura e genuna vontade de aprender a servir melhor os cidados.

    Mas no apenas ponto de chegada. Tambm ponto de partida deste trabalho o

    Provedor do Leitor que eu prprio fui, durante dois anos, num jornal dirio portugus o

    Pblico. Nesse perodo, pude experimentar e viver na carne as foras e as fragilidades

    desta funo mediadora, digerindo a oscilao constante entre a sua aura inegavelmente

    sedutora, mobilizadora para a mudana necessria, e a acumulao de pequenas

    frustraes ligadas ao peso das rotinas, ao conforto do imobilismo ou vacuidade de boas

    intenes que se esgotavam em si prprias.

    No obstante, ser Provedor do Leitor foi, alm de tudo o mais, aceder a um

    privilegiado posto de observao das prticas mediticas (tanto do lado da emisso como

    do lado da recepo, que de um e de outro, bom no esquecer, se faz o processo

    comunicativo), e, a partir dele, constatar de modo mais claro a existncia de um alargado

    mal-estar em mltiplas vertentes: mal-estar dos leitores face a muito do que o jornal lhes

    oferecia (e a muitos dos modos como os jornalistas actuavam), mal-estar dos jornalistas

    face a muito do que se lhes exigia (e nas condies concretas em que era mister

    responder), mal-estar de uns e outros face s teias e vielas aparentemente inexorveis em

    que o sistema da comunicao social se enredava e se perdia, pagando tributo mais

    sensao do que razo, mais ao sucesso de audincia do que ao rigor de reporte, mais ao

    interesse privado do que ao bem pblico, mais facilidade (necessidade?) do dizer sim

    1

  • Introduo

    do que firmeza (utopia?) do dizer no. No se tratou, em boa verdade, de um constatar.

    Tratou-se, sobretudo, de confirmar aquilo que, ao longo de mais de vinte anos de trabalho

    profissional como jornalista, em diferentes jornais e nas mais diferentes posies

    hierrquicas (desde a base incipiente e nervosa do estgio at ao topo da direco e da

    administrao, passando pelos degraus intermdios do colaborador, reprter, redactor,

    editor, colunista), fui vendo, ouvindo, pensando e tentando entender.

    Ponto global de partida (e pano de fundo) deste trabalho , portanto, uma carreira

    profissional longa e plurifacetada em que pude ir-me apercebendo, a partir de dentro

    mas tambm com a ajuda de olhares diversos recolhidos de fora, dos desconfortos,

    ambiguidades, contradies, dvidas e dilemas que atravessam o grupo profissional dos

    jornalistas ou, melhor dizendo, os sub-grupos que nele co-existem, nem sempre na mais

    harmoniosa e pacfica convivncia.

    Pude aperceber-me de como a imagem que o grupo tem e procura dar de si (mais

    homognea nas aparncias do que na realidade) coincide pouco com a imagem que dele

    tm aqueles a quem se destina o seu trabalho os pblicos , e que, mesmo conservando

    rstias de fascnio por uma profisso de que nunca esteve ausente um toque de mtico e

    herico romantismo, vm acumulando motivos de desencanto e cepticismo face nua e

    crua verdade de uma informao feita contedos prprios de uma lgica dominante, por

    vezes quase exclusiva, de mercado frio e competitivo.

    Pude aperceber-me de como essa imagem de coeso, de unidade e de um

    assinalvel esprito de corpo dos jornalistas que leva alguns autores a afirmarem

    mesmo que eles so uma comunidade profissional com uma forte identidade (Traquina,

    2004b) parece decorrer mais do estatuto social e jurdico que conquistaram do que da

    partilha efectiva, reflectida e argumentada, de um ncleo identitrio coerente e slido,

    reconhecido pelos pares e reconhecvel pela sociedade. E talvez porque se confrontam

    com um processo de profissionalizao que ainda no terminou, como diz Traquina

    (ibidem) em complemento sua anterior afirmao, que os jornalistas do mostras de uma

    forte identidade que parece, afinal, mais virtual do que real, mais fluida (Ruellan,

    1993) do que consistente, remetendo-se sobretudo aos planos do simblico e do retrico e,

    por isso, resistindo mal a uma confrontao aberta e despreconceituosa tanto com as ideias

    como com os factos observveis no dia-a-dia.

    Pude aperceber-me da progressiva dificuldade de mobilizao colectiva do grupo

    profissional dos jornalistas, mesmo para as causas que lhes seriam partida mais

    queridas e prementes (o aprofundamento da reflexo sobre as novas condies de exerccio

    2

  • Introduo

    do mtier, as alteraes jurdicas e regulamentares ao seu estatuto scio-laboral, as

    crescentes exigncias de uma boa formao inicial e contnua, terica e prtica, a busca

    empenhada de mecanismos mobilizadores e eficazes de auto-regulao ou co-regulao

    nos domnios tico e deontolgico), o que, sugerindo mais uma vez algum dfice

    identitrio, se explicar tambm pelas novas configuraes que vm redesenhando o

    campo jornalstico tradicional:

    Por um lado, os instrumentos de negociao e contratao colectiva esto hoje

    muito mais confinados ao universo restrito das empresas concretas (bastante

    diferenciadas nas suas filosofias, objectivos e modelos de gesto), ou mesmo,

    dentro delas, relao bilateral entre empregador e empregado o que contribui

    para fragmentar ainda mais um grupo profissional desde sempre repartido por

    segmentos profissionais muito desiguais, e algo propenso ao individualismo

    caracterstico de criadores e artistas (criadores e artistas que estiveram, bom no

    esquecer, na origem longnqua deste ofcio).

    Por outro lado, as evolues mais recentes no que toca s tecnologias digitais, ao

    desenvolvimento do multimdia, das telecomunicaes e da Internet, com a

    convergncia de meios e suportes que acarretaram, diluram as fronteiras

    tradicionais em que se moldara o jornalismo (ou que o prprio jornalismo ajudara a

    moldar e a fixar), aproximando e misturando os domnios da informao e da

    comunicao. Tudo isto trouxe ao campo agora mais vasto e impreciso novos

    protagonistas, novos processos e novos ofcios, contribuindo ainda mais, se assim

    se pode dizer, para acentuar a relativa fluidez das marcas identitrias dos

    jornalistas, a ponto de algumas vozes falarem j no de dfice, mas de crise de

    identidade, e mesmo da necessidade de repensar a prpria definio de jornalista.

    Ao longo dos ltimos anos de trabalho profissional como jornalista entretanto j

    associado a uma colaborao com a universidade que haveria de me cativar para uma

    dedicao exclusiva ao ensino e investigao do jornalismo pude aperceber-me, enfim,

    das distncias, divergncias e incompreenses mtuas, sobre todas estas matrias, entre o

    mundo dos profissionais e das empresas, e o mundo dos acadmicos e estudiosos dos

    media, em geral, ou do jornalismo em particular. Mais do que divergncias e

    incompreenses, ou at antes delas, era notria a quase conversa de surdos em que

    frequentemente se perdiam: a dificuldade de simplesmente se ouvirem de parte a parte, de

    tentarem entender o fundo e a forma das respectivas argumentaes, bem como o lugar da

    3

  • Introduo

    fala especfico de onde elas eram produzidas, de juntarem esforos e competncias para o

    objectivo comum de esclarecer melhor os problemas em debate e, no seguimento,

    trabalhar para os ultrapassar, tanto no nvel das teorias como no domnio das prticas. E a

    questo era tanto mais sensvel quanto me parecia evidente (como hoje ainda mais parece)

    que uma e outra parte teriam, com os seus instrumentos especficos e contextos de trabalho

    prprios, contributos preciosos para fazer mais luz sobre as matrias que interessa

    aprofundar, e do labor conjunto acabariam ambas, decerto, por retirar os seus benefcios. O

    que, pode dizer-se, comea aqui e alm j a notar-se, pois alguns claros progressos neste

    caminho de dilogo tm sido evidentes nos ltimos tempos.

    Da conjugao de todos estes factores, e do cruzamento entre o eu-profissional e

    o eu-acadmico, onde se misturaram observaes e preocupaes, prticas reais e

    anlises tericas, experincias vividas e reflexes com interlocutores tanto do mundo dos

    media como do mundo das universidades, nasceu a vontade de fazer este trabalho: um

    trabalho sobre o jornalismo ou, dito com mais propriedade, um trabalho sobre o jornalismo

    enquanto profisso e sobre os jornalistas, hoje, aqui.

    O objectivo central da investigao proposta tentar compreender os contornos e

    as especificidades da profisso de jornalista (uma profisso reconhecida como tal e

    institucionalizada h escassas dcadas), seja nos modos como ela encarada e tratada

    pelos seus directos protagonistas, seja nos modos como ela olhada e julgada pelo todo

    social em que est inscrita e com que interage. O pressuposto , naturalmente, o de que a

    profisso foi sendo o que quis ou pde ser, mas tambm o resultado (instvel, mutvel,

    situado) de tenses, de equilbrios, de negociaes com os diversos actores sociais com

    que ela, de diferentes modos em diferentes tempos e espaos, se inter-relacionou.

    Pretendeu-se conhecer, identificar e analisar os elementos que, de algum modo,

    concorrem para configurar uma determinada identidade profissional, mesmo sabendo que,

    no caso do jornalismo, eles so declinados de maneiras algo particulares a ponto de

    haver quem, luz de exclusivos critrios estruturo-funcionalistas, e tomando por

    referncia o modelo tpico das profisses liberais estabelecidas, como as de mdico ou

    advogado, preferisse considerar o jornalismo uma meia profisso ou uma quase

    profisso. At por isso, e mesmo sem perder de vista o desejo de conhecer e caracterizar

    os jornalistas nos tempos de hoje, pareceu especialmente recomendvel olhar com alguma

    ateno para o passado, para os processos e estratgias que levaram progressiva

    afirmao do jornalismo como uma actividade e um domnio de saber autnomo, distinto

    de ofcios prximos da sua fronteira (quando no desejosos de a derrubar), e,

    4

  • Introduo

    paralelamente, afirmao dos jornalistas como autnticos profissionais e legtimos

    cultores dessa actividade.

    Como se sabe, este foi um percurso sinuoso e acidentado, que em rigor nem se

    pode dar ainda por concludo, se que alguma vez o ser: a contradio de base entre

    um perfil profissional que ora se reclama mais do artstico, ora mais do tcnico, que ora

    reclama a autonomia prpria de um profissional liberal, ora se associa aos

    constrangimentos laborais de um trabalhador assalariado, que ora reivindica um saber e

    um saber-fazer altamente especializados, ora encara de soslaio eventuais exigncias de

    titulao acadmica para aceder legalmente profisso, acompanha o jornalista

    praticamente desde as origens. Se estas particularidades o diminuem como profissional,

    ou se so antes os ingredientes prprios de um mtier juridicamente reconhecido e

    socialmente legitimado (alm de poderosamente influente), matria que se espera ajudar

    a esclarecer ao longo das pginas deste trabalho.

    As tentativas de clarificao comeam, alis, logo no Captulo I, onde se passam

    em revista as mais recentes correntes tericas ligadas sociologia das profisses. Indo

    alm das doutrinas funcionalistas que, tradicionalmente, esgotavam a caracterizao de

    uma profisso na inventariao de um conjunto de atributos ou traos que

    obrigatoriamente haveria de se possuir, novas abordagens (decorrentes das perspectivas

    interaccionistas) chamaram a ateno mais para o processo de construo de uma profisso

    do que para o resultado. Com isso atribuam uma especial importncia e significado s

    estratgias de profissionalizao prosseguidas pelos grupos ocupacionais, em tempos e

    espaos histricos bem situados, com vista a obterem esse estatuto. Mais ainda, uma

    corrente de estudos particularmente crtica da chamada ideologia do profissionalismo

    ou do profissionalismo enquanto ideologia foi pondo em destaque, nas ltimas dcadas

    do sculo XX, a questo do poder como mbil das profisses (e dos grupos que a tal

    aspiravam), poder esse traduzido na apropriao, em regime de monoplio e com o aval do

    Estado, de um segmento fechado do mercado de trabalho, cujo acesso se controlava e cujas

    regras de conduta se auto-regulavam. Todos estes contributos tericos somados ainda

    verificao e anlise de recentes tendncias no sentido de alguma desprofissionalizao ou

    de proletarizao das actividades do trabalho parecem desenhar um pano de fundo mais

    adequado anlise do projecto profissional dos jornalistas e das complexidades que

    amide o envolveram.

    O passo seguinte , pois, o mergulho no percurso histrico, desenvolvido de modo

    mais sistemtico sobretudo a partir de meados do sculo XIX, que levou autonomizao

    5

  • Introduo

    da actividade do jornalismo e ao esboar de uma profisso prpria. Disso trata o Captulo

    II, passando especialmente em revista os cenrios de Frana e dos Estados Unidos, onde,

    de modo algo esquemtico, podemos situar as razes das duas tradies mais fortes a

    poltico-literria, associada ao modelo europeu, e a informativa associada ao

    modelo anglo-americano que acabaram por construir o moderno jornalismo. Uma

    ateno particular , naturalmente, dada ao desenvolvimento do processo em Portugal, que

    teve tambm as suas especificidades, muito decorrentes do seu contexto poltico e social.

    Ao longo deste percurso vo emergindo, entretanto, os principais elementos que comum

    associar ao profissionalismo, sejam os do domnio cognitivo (um saber prprio, formal,

    codificado e transmissvel, e um saber-fazer especializado), sejam os do domnio

    valorativo (um determinado estatuto social, um esprito de corpo traduzido em

    associaes profissionais com poderes importantes), sejam os do domnio normativo (a

    invocao da prestao de um servio pblico em moldes responsveis e altrustas, o

    compromisso com um conjunto de valores ticos e de normas deontolgicas). Emergem de

    modos diversos conforme os pases e as pocas, emergem com as suas certezas e as suas

    contradies, mas neles que o grupo dos jornalistas vai procurando alicerar as bases da

    sua profisso, com isso tentando obter o reconhecimento e a legitimao, tanto na esfera

    jurdico-legal como no plano social.

    O Captulo III retoma, assim, cada um destes elementos vez, procurando

    dissec-los mais em profundidade, j para alm da envolvente histrica em que

    despontaram. No domnio valorativo, aborda-se a questo do associativismo dos jornalistas

    e v-se como a se manifestaram at hoje, de modo exemplar, as hesitaes e

    ambiguidades de um grupo profissional dividido entre um vasto leque de pertenas

    possveis. No domnio cognitivo, analisa-se com algum detalhe a questo particularmente

    sensvel dos saberes prprios do jornalismo e em especial das exigncias associadas a

    um saber profissional que saber de aco e que, portanto, deve ultrapassar as

    dicotomias teoria/ prtica ou pensar/ fazer, traduzindo-se num modelo de competncia

    que aos conhecimentos formais e s tcnicas associa tambm saberes relacionais e

    comportamentos ticos. No domnio normativo, aborda-se, num primeiro momento, a

    questo da responsabilidade dos jornalistas (quer na sua articulao com a simtrica

    liberdade, tanto negativa como positiva, quer na sua associao ao repto mais vasto da

    responsabilidade social dos media) e, num segundo momento, a exigncia tica e

    deontolgica que cada vez mais se vai percebendo como ingrediente nuclear, constitutivo,

    da identidade desta profisso.

    6

  • Introduo

    Porque assim parece ser como esta tese, basicamente, pretende demonstrar , o

    Captulo IV integralmente dedicado temtica da tica e da deontologia. Definem-se os

    conceitos (nem sempre usados com os mesmos sentidos para todos os interlocutores),

    evocam-se as grandes controvrsias e passam-se em revista as principais correntes e sub-

    correntes que dominam os debates contemporneos em torno da tica: as deontolgicas, as

    teleolgicas, as utilitaristas, as contratualistas, a tica das virtudes, a tica do discurso,

    as mais recentes tica social e tica dos afectos, todas elas trazendo, nos seus enfoques

    particulares, algo de relevante reflexo de uma matria to sensvel para o jornalismo.

    Referem-se, por outro lado, diversas tentativas de encontrar pontes de ligao e de sntese

    entre teorias, bem como o empenho de alguns em propor um mnimo tico comum

    traduzido num reduzido nmero de proto-normas morais essenciais e universais em que

    todos pudessem rever-se. Antes de passar ao domnio mais especfico da deontologia

    profissional dos jornalistas e dos diversos modos com que ela (mal)tratada , explica-

    se a importncia da precedncia da tica sobre a deontologia (so os valores que

    fundamentam e questionam as normas), bem como a vantagem de inscrever a tica dos

    profissionais numa mais vasta e englobante tica de cidados que eles tambm so

    com isso recolocando o pblico no centro da comunicao meditica.

    Se o tema da tica e da deontologia esteve presente desde o incio, e em lugar

    central, nas estratgias de reivindicao dos jornalistas a um estatuto autenticamente (e

    legitimadamente) profissional, por maioria de razo parece dever estar nos tempos que

    correm, quando outros elementos distintivos perderam alguma da sua fora e, em

    contrapartida, o campo tradicional do jornalismo passou a conviver com outros ofcios,

    perfis, processos e motivaes da rea mais lata da comunicao. Da a sugesto feita de

    um back to basics, que no caso assume a forma de back to ethics e onde, afinal, os

    jornalistas podem / devem ancorar o ncleo essencial e diferenciador da sua identidade

    profissional. Mas, para que tal no se fique pelo simples enunciado de bons propsitos, e

    para que a responsabilidade assumida nesse domnio seja traduzida em prticas, h que

    prestar contas ao pblico pois precisamente no direito do pblico informao que o

    jornalismo encontra a sua razo de ser e a sua legitimidade.

    Este imperativo de prestao de contas (ou accountability) tratado no Captulo

    V, que se debrua tambm sobre as modalidades concretas que ele pode assumir, seja no

    contexto de uma hetero-regulao imposta pelo Estado actividade dos media, seja

    sobretudo no contexto de uma (a vrios ttulos prefervel) auto-regulao dos jornalistas e

    das empresas jornalsticas relativamente ao seu prprio trabalho. Relevando a importncia

    7

  • Introduo

    de dar corpo efectivo responsabilidade assumida sem, contudo, em algum momento pr

    em risco a necessria liberdade que trave-mestra do jornalismo (e da democracia),

    apontam-se as vantagens da auto-regulao, feita pelos prprios pares mas

    voluntariamente alargada tambm a alguma participao pblica sem esconder os riscos

    e limitaes que por vezes a tolhem , e insiste-se na importncia de que ela seja

    consequente, genuna e eficaz. esta uma posio que se defende no s para obviar a

    tentaes de um maior intervencionismo externo, que existem e podem medrar em

    situaes de algum laxismo ou isolamento corporativo, mas sobretudo porque parece ser o

    modo mais correcto de exercitar responsavelmente a liberdade de expresso em

    representao do pblico e de, assim, estar nas melhores condies de servir bem o seu

    direito a uma informao livre, rigorosa e eticamente conduzida.

    Vrios mecanismos e instrumentos, entre mais antigos ou mais inovadores, tm

    sido postos em prtica para concretizar esta vontade auto-reguladora que ,

    simultaneamente, uma maneira de municiar e fortalecer o arsenal da democracia, para

    usar os termos de Claude-Jean Bertrand (1999) e dos seus M*A*R*S*, ou seja, Meios de

    Assegurar a Responsabilidade Social dos media e dos principais se d conta neste

    trabalho. De todos, e em parte pelas razes atrs expostas, escolhe-se particularmente um:

    o Provedor do Leitor. A ele se dedica o Captulo VI (e ltimo) desta tese, tomando-o

    como uma espcie de estudo de caso e articulando a sua anlise, em consonncia com a

    globalidade do trabalho, com o objectivo especfico de avaliar o modo como os jornalistas

    se relacionam com este instrumento auto-regulador concreto, como o encaram, como o

    julgam, como o aproveitam e lhe do sentido.

    A metodologia seguida nesta investigao de carcter emprico sem prejuzo da

    experincia concreta que acumulei nos dois anos em que exerci o cargo, e que certamente

    contribuiu para a minha investigao em termos de uma espcie de observao

    participante tanto informal quanto despretensiosa foi a de um inqurito de opinio ao

    conjunto dos jornalistas de trs dirios portugueses que, data, tinham Provedor do Leitor.

    As concluses sugerem, no essencial, que esta uma instncia de auto-regulao encarada

    de modo globalmente positivo pelos jornalistas, quer no que respeita ao seu trabalho

    especfico, quer no que traz de acrescento sua maior ligao e interaco com os leitores

    afinal, um dos elementos principais de uma comunicao social responsvel e eticamente

    exigente, porque entendida no como um fim em si prprio (ou fim para a prossecuo de

    interesses particulares), mas como um meio para servir o bem pblico e reforar as

    condies de participao informada e crtica dos cidados nos seus destinos colectivos.

    8

  • Introduo

    O Provedor do Leitor , ento, o ponto de chegada (e lugar de concretizao) de

    um itinerrio longo e ramificado, mas que se pretendeu lgico e coerente, caminhando

    progressivamente do mais global para o mais particular: as profisses em geral, o processo

    histrico de profissionalizao dos jornalistas, a declinao especfica que fizeram dos

    seus principais traos ou atributos profissionais, o lugar central de um desses atributos (o

    desafio tico-deontolgico), as exigncias de responsabilidade e de prestao de contas

    que lhe vo associadas, as modalidades concretas de auto-regulao do trabalho

    jornalstico, o exemplo particular do Provedor do Leitor. Mais do que ponto de chegada,

    este o elemento de fecho que procura, atravs da investigao realizada, ilustrar como

    um instrumento auto-regulador pode ajudar a mobilizar os jornalistas para que coloquem

    as questes ticas e deontolgicas no cerne das suas preocupaes profissionais.

    A hiptese que se colocou no incio da investigao (e que se entende ter sido

    confirmada, como se procurar evidenciar ao longo das pginas deste trabalho e, em

    sntese, na sua concluso final) a de que a exigncia tica e deontolgica, traduzida num

    compromisso irrecusvel com um conjunto de princpios e valores bsicos, bem como com

    as normas de conduta que deles decorrem, um elemento nuclear da identidade

    profissional dos jornalistas. E se assim pareceu ser desde os incios, quando o grupo

    profissional se empenhou em definir as marcas prprias e diferenciadoras da sua

    actividade do seu saber, do seu saber-que-fazer, do seu saber-fazer, do seu saber-

    estar e do seu saber-ser , mais o nos tempos actuais, em que o jornalismo deixou de

    ter o monoplio da pesquisa, recolha, tratamento, elaborao e difuso de informao no

    espao pblico, partilhando-a hoje com uma multiplicidade de actores e de procedimentos

    que se regem pelas mais variadas motivaes, interesses e propsitos. Da que a linha

    separadora entre o que e no jornalismo (ou, paralelamente, entre quem ou no

    jornalista) passe porventura cada vez menos por aquilo que se faz, onde se faz ou

    quando se faz. Em contrapartida, passa mais, e cada vez mais passar, pelo:

    como se faz com que transparncia de processos, com que regras de

    conduta, com que adequado saber profissional, com que compreenso dos bens

    internos da comunicao social, com que respeito pela vida, pela dignidade de

    toda a pessoa humana e pela verdade;

    porqu se faz com que entendimento da importncia do direito

    informao, com que capacidade de interpretao do interesse pblico e

    9

  • Introduo

    correlativa capacidade de seleco da informao pertinente, com que apego

    liberdade de pensamento e de expresso;

    para qu se faz com que empenho na defesa da informao livre e

    socialmente relevante como pedra basilar da democracia, com que crena na

    importncia da autonomia dos leitores, com que desejo de servir os cidados e

    contribuir para a sua participao crtica e qualificada nos destinos pblicos.

    S assim os jornalistas podero reivindicar globalmente uma identidade

    profissional prpria e bem definida, s assim podero ultrapassar as crescentes suspeitas e

    desconfianas de que vm sendo alvo (muitas vezes com boas razes, por mais que isso

    lhes doa), s assim podero estabelecer sem ambiguidades as condies para o seu

    reconhecimento social e, sobretudo, para a legitimao do seu estatuto social e do

    enorme poder que ele lhes coloca nas mos.

    * * *

    Uma vez que este trabalho se pode considerar, em alguma medida, como produto

    da interseco de dois percursos profissionais o do jornalista, ao longo de mais de 20

    anos, e o do acadmico e investigador, essencialmente no ltimo lustro , permito-me

    terminar esta apresentao citando um trecho de Gilles Gauthier (1992: 13) sobre a relao

    entre estes dois mundos, no domnio particular que aqui objecto de estudo:

    efectuando abertamente e sem falsa vergonha () o trabalho terico

    que os universitrios podem ser mais teis, em tica como no resto, aos jornalistas

    e sociedade. A sua tarefa no , primariamente, uma tarefa de interveno

    social. No perorando na praa pblica sobre a moralidade dos media nem

    dando lies disso aos jornalistas que os universitrios podem desempenhar uma

    funo vlida. , antes, tentando aprofundar teoricamente as questes da tica

    jornalstica, em particular a questo dos seus fundamentos, que os investigadores

    podem, ao lanar luz sobre as prticas dos jornalistas, dar um certo contributo

    prtica do jornalismo.

    H uma tenso permanente entre os jornalistas e os analistas

    universitrios do jornalismo, com os primeiros lanando aos segundos uma

    10

  • Introduo

    acusao frequentemente merecida de se abstrarem do mundo real. Mas esta

    tenso em boa parte benfica. Existe, de facto, um perigo no trabalho terico:

    intelectualizar a realidade. E os jornalistas podem ter razo em querer trazer os

    tericos para a terra. Este risco, no entanto, no deve levar a que se abdique do

    exerccio da inteligncia.

    Os jornalistas deixam de ter razo quando se lanam no anti-

    intelectualismo. Um perigo mais grave do que a abstraco ameaa os

    investigadores universitrios: o de no exercerem plena e adequadamente a sua

    funo terica. Assumindo-a abertamente, eles favorecem o esclarecimento da sua

    relao com os jornalistas e da sua contribuio possvel para a prtica

    jornalstica.

    Talvez este trabalho parea, nuns momentos, o trabalho de um velho jornalista

    que tentou aproximar-se da exigncia formal e do rigor cientfico do campo acadmico em

    que agora est inserido, e, noutros momentos, o trabalho de um jovem acadmico que

    quis esclarecer e entender melhor os meandros prticos e concretamente situados do

    campo jornalstico em que durante tantos anos esteve intensamente mergulhado.

    Pode ele, no fim de contas, no ter atingido exactamente nem um nem outro

    propsito ficando, afinal, prisioneiro de indefinies e hesitaes a meio caminho de

    ambos. Em contrapartida, numa viso mais optimista (e porventura imodesta), pode ter

    beneficiado em alguma medida dos contributos recolhidos da experincia nos dois campos

    de actividade que foram coexistindo, com isso complexificando, mas tambm alargando e

    enriquecendo, a abordagem de uma temtica to sensvel como esta.

    No ao autor, porm, que cabe o juzo sobre se conseguiu, ou no, gerir

    adequadamente esta dupla pertena.

    * * * * * * * * * *

    11

  • Introduo

    12

  • Profisso, profissionalismo e profissionalizao

    I Profisso, profissionalismo e profissionalizao

    Le journalisme nest pas une profession,

    car ce qui constitue une profession, cest quon sy prpare et que, cette prparation termine, on lembrasse.

    Or, dans le journalisme, il nexiste ni aprentissage ni diplme ni certificat.

    douard CHARTON, Dictionnaire des professions et guide pour le choix dun tat, 1842

    Quando o investigador francs Denis Ruellan chama a ateno, com uma

    perspiccia a que no faltar tambm uma ponta de ironia, para esse hbito de

    linguagem que costumava levar um jornalista a auto-denominar-se jornalista

    profissional, sendo certo que nunca dizemos professor profissional, advogado

    profissional ou agricultor profissional (Ruellan, 1993: 11, realces do autor), ele est a

    expor, afinal, uma ambiguidade que desde h dcadas acompanha este grupo profissional

    (ou grupo ocupacional, como outros prefeririam) e torna difcil a definio dos seus

    contornos. O que poderia parecer uma formulao pleonstica, destinada apenas a

    enfatizar o bvio, acaba por ser a traduo pblica e notria da necessidade, sentida por

    grande parte dos jornalistas, de sublinharem o carcter especializado, autnomo e nobre

    da actividade que exercem a ttulo permanente e remunerado alm de, habitualmente,

    exclusivo. Insistir em adjectivar o jornalista de profissional pressupe que pode, de

    facto ou de direito, haver jornalistas no profissionais com isso podendo significar-se

    desde amadores a diletantes, passando por aprendizes, principiantes,

    incompetentes o que, s por si, revelador de uma dificuldade de definio e de

    delimitao nada comuns nas chamadas profisses estabelecidas, reconhecidas e

    interiorizadas pela opinio pblica com base no modelo do profissional liberal (mdico,

    advogado, engenheiro, arquitecto).

    A dificuldade de delimitao clara do mbito de actividade dos jornalistas

    enquanto profissionais caminha, como parece bvio, a par da dificuldade de definio

    clara e inequvoca da sua prpria actividade: o jornalismo. E a luta (ainda muito recente,

    ainda porventura inacabada) pela afirmao desta actividade como uma actividade

    13

  • Captulo I

    autnoma, especfica, cientificamente caracterizvel e merecedora de um reconhecimento

    social particular, que impele os seus intrpretes a assumirem-se como profissionais, a

    afirmarem-se como os nicos legtimos ocupantes deste espao e a traarem uma linha

    divisria que exclua todos os no profissionais.

    Pretendemos, neste primeiro captulo, situar o debate em torno da profisso de

    jornalista no debate mais amplo sobre o prprio conceito de profisso e os modos diversos

    como ele tem sido desenvolvido ao longo das ltimas dcadas. Pretendemos tambm,

    sobretudo a partir dos novos contributos fornecidos pela sociologia das profisses (e, mais

    globalmente, da sociologia do trabalho) na segunda metade do sculo XX, alargar as

    vises demasiado estticas do conceito, inscrevendo-o na lgica mais dinmica e

    polifacetada das estratgias de profissionalizao dos grupos ocupacionais e do sistema

    de valores ou da ideologia associados ao profissionalismo. Este conjunto de perspectivas

    complexifica e enriquece as abordagens baseadas apenas na anlise das profisses

    enquanto conjunto de requisitos ou traos distintivos que se tem ou no se tem, e pode

    ajudar a uma melhor compreenso das especificidades do ofcio jornalstico, seja nos

    modos como procurou construir-se durante os dois ltimos sculos, seja nas imagens (mais

    reais ou mais virtuais) que hoje procura dar de si, seja ainda nas representaes que dele

    tm quantos de algum modo contactam com a sua actividade e lhe sofrem as

    consequncias ou seja, todos ns, em maior ou menor grau1. Trata-se, afinal, de procurar

    compreender melhor como este grupo tem tentado afirmar uma determinada identidade

    profissional e como ela se articula com os novos contextos que actualmente a desafiam.

    1. Profisso: a difcil definio

    O estudo sistemtico das profisses, designadamente no mbito da sociologia, tem

    uma tradio muito recente na Europa. Nos pases do universo anglo-saxnico, j de h

    vrias dcadas se faz a distino entre professions e occupations, sendo que as primeiras

    1 Dadas as caractersticas especficas deste nosso trabalho, entendemos que no se justificaria um tratamento

    demasiado pormenorizado de matrias que tm sido muito dissecadas no domnio da sociologia, e em particular da sociologia do trabalho. Assim, entendemos ater-nos, nos aspectos essenciais, aos estudos realizados por Dubar & Tripier (1998) e por Rodrigues (2002) no mbito da sociologia das profisses, sem prejuzo de tentarmos complement-los, sempre que se justifique, com outros contributos da literatura especializada nesta rea.

    14

  • Profisso, profissionalismo e profissionalizao

    viram at, no caso dos Estados Unidos da Amrica, definidas as suas atribuies num texto

    legal o Taft Hartley Act, diploma promulgado em 1947 e que distingue juridicamente

    as professions com estatuto que tm direito s associaes profissionais, das simples

    occupations, cujos membros tm simplesmente o direito de aderir a sindicatos (Tripier,

    apud Dubar, 1996: 186). A, o atributo de profisso est reservado, sem grandes

    equvocos, s actividades que preenchem os requisitos habitualmente associados s

    profisses liberais, e traduz-se na concesso, aos seus membros, de alguns direitos

    particulares, como os de se constituir em associao autnoma e reconhecida, interditar o

    exerccio da actividade aos no-membros, organizar a formao (Dubar, 1998: 7). Ou

    seja, trata-se de uma classificao oficial que, no obstante, acaba por ter tambm

    consequncias sociais e econmicas (Freidson, 1998: 53). Aos titulares de occupations,

    em contrapartida, no cabem tais regalias ou reconhecimento.

    No isto que sucede na generalidade dos pases europeus (e designadamente em

    Frana onde desde a dcada de 70 do sculo XX comearam a desenvolver-se estudos

    especificamente no domnio dos grupos profissionais2 , ou em Portugal), onde o termo

    profisso sempre teve uma utilizao mais genrica, e portanto mais indefinida. Claude

    Dubar e Pierre Tripier (Dubar & Tripier, 1998: 9-11) fazem uma boa sntese dos trs

    principais universos de significao associados ao uso do termo profisso em francs,

    mas cuja correspondncia com o termo em portugus total. Assim, ela tanto pode ser

    1) qualquer coisa que se enuncia publicamente e que est ligada a crenas

    poltico-religiosas ( a chamada profisso de f, o professar certas crenas

    ou valores), como

    2) o trabalho que se faz, na medida em que nos permite viver graas ao

    rendimento que dele retiramos (esta acepo prxima da ocupao e

    costuma incluir-se nos elementos bsicos de identificao de uma pessoa, a par

    de nome, estado civil, naturalidade, residncia), ou finalmente como

    3) conjunto de pessoas que exercem o mesmo ofcio (e o sentido, aqui,

    prximo do de corporao ou de grupo profissional)3.

    2 O texto de Jean-Michel Chapoulie, Sur lanalyse sociologique des groupes professionels, publicado em 1973 na

    Revue Franaise de Sociologie (XIX), considerado o trabalho fundador da sociologia das profisses em Frana. 3 Acresce que, como atrs se apontava, o adjectivo profissional tambm pode ter, ele prprio, diversas conotaes,

    tanto significando que se pertence a determinado grupo profissional como que se experimentado, competente ou particularmente empenhado naquilo que se faz. E esta enorme polissemia do termo acaba, como sugere Dubar (1996) por ser favorvel a todas as manipulaes simblicas.

    15

  • Captulo I

    Dubar & Tripier acrescentam, entretanto, a estes trs sentidos tradicionais um

    quarto, mais recente, de profisso como funo ou como posio profissional num

    organigrama (ibid.: 12).

    E em paralelo com estes quatro sentidos do termo que propem tambm quatro

    pontos de vista diferentes sobre a actividade do trabalho (ibid.: 12-13) subjacentes, em

    seu entender, a cada um deles:

    a) profisso = declarao (aponta para uma identidade profissional)

    b) profisso = emprego (corresponde a uma classificao profissional)

    c) profisso = ofcio (pressupe uma especializao profissional)

    d) profisso = funo (significa uma posio profissional).

    So pontos de vista, como dizem os autores, que dependem dos sistemas de

    referncia que escolhermos, dos modos de classificao em vigor em determinados

    contextos, mas tambm das valorizaes afectivas de cada um: Nem todos [estes]

    pontos de vista so possveis relativamente a todas as actividades de trabalho que

    denominamos, em francs, profissionais (ibid.: 13). Da que o acto aparentemente simples

    de declarar ou definir a sua profisso implique, segundo os mesmos autores, um trabalho a

    um tempo cognitivo, afectivo e conativo.

    Olhado numa perspectiva histrica, um estudo comparativo das profisses pode,

    entretanto, segundo Dubar & Tripier (ibidem), seguir trs perspectivas diversas e

    complementares, cada uma fazendo luz sobre diferentes aspectos desta forma de

    organizao no contexto da sociedade:

    1) as profisses como formas histricas de organizao social, de categorizao

    das actividades do trabalho que constituem desafios polticos, inseparveis da

    questo das relaes entre o Estado e os indivduos (profisses como os

    grupos intermdios tal como definidos por mile Durkheim4);

    4 Durkheim desenvolveu esta questo sobretudo na obra Sobre a diviso do trabalho social (1893). Partindo da

    anlise sobre o fim das corporaes que organizaram durante sculos a velha estrutura social, e considerando no ser possvel que esta organizao interna desaparea sem nada que a substitua, defendeu que um papel idntico a esse poderia e deveria, no nosso tempo, ser desempenhado em particular pelos grupos profissionais: Uma nao apenas se pode manter se se intercalar entre o Estado e os particulares toda uma srie de grupos secundrios que estejam bastante prximos dos indivduos para os atrair fortemente para a sua esfera de aco e para os arrastar, desse modo, para a torrente geral da vida social. () Os grupos profissionais esto aptos a desempenhar este papel; alis tudo a isso os conduz (Durkheim, 1893/2001: 386-387).

    16

  • Profisso, profissionalismo e profissionalizao

    2) as profisses como formas histricas de realizao de si, quadros de

    identificao subjectiva e de expresso de valores de ordem tica com um

    significado cultural;

    3) as profisses como formas histricas de coligao de actores que defendem os

    seus interesses tentando assegurar e manter um mercado de trabalho fechado,

    um monoplio para as suas actividades, uma clientela garantida para o seu

    servio, um emprego estvel e uma remunerao elevada, um reconhecimento

    da sua especializao [expertise], o que consubstancia um desafio sobretudo

    econmico.

    a partir destes trs tipos de desafios ou interpelaes (poltico, tico-cultural,

    econmico) que Dubar & Tripier (ibid.: 14) sintetizam o triplo objecto que encontram para

    a sociologia das profisses, tal como a desenvolvem: a organizao social das actividades

    de trabalho, a sua significao subjectiva, e os modos de estruturao dos mercados de

    trabalho.

    De certo modo, a sucesso destas trs perspectivas (e da sua valorizao relativa

    em cada momento histrico) que vamos tambm encontrar nas grandes abordagens

    tericas da sociologia das profisses ao longo do sculo XX. Os primeiros estudos foram

    dominados pelas teorias sociolgicas funcionalistas, tendendo a olhar as profisses (

    imagem das profisses liberais) como um modelo superior e completo (), a que as

    restantes ocupaes no conseguiam alcandorar-se (Rodrigues, 2002: viii). Num

    segundo momento, o paradigma interaccionista, com origem na Escola de Chicago, que

    comea a dominar as abordagens, pondo em relevo as profisses j no como modelo mas

    como processo, e ressaltando no tanto as suas caractersticas ou atributos, mas as

    condies concretas do seu exerccio, a partir de interaces entre os actores sociais (ibid.:

    25). Num terceiro momento, h uma variedade de estudos que procuram no s uma

    espcie de sntese dos dois paradigmas (funcionalista e interaccionista), como vo mais

    alm, introduzindo nas abordagens as dimenses histrica e econmica (como, por

    exemplo, o controlo dos mercados de trabalho), chamando a ateno sobretudo para o

    poder das profisses (ibid.: 47), bem como para as estratgias dos grupos profissionais na

    conquista e preservao desse poder.

    Pode valer a pena analisar um pouco mais de perto estes trs tipos de abordagens,

    pois tambm sua luz que tem sido debatida a questo, inicialmente enunciada, de saber

    se o jornalismo ou no, e como, uma profisso, e se os jornalistas podem ser

    17

  • Captulo I

    considerados profissionais havendo que entender, ento, o que que isso

    efectivamente quer dizer. Complementarmente a estas trs abordagens, referiremos ainda

    uma quarta a de Andrew Abbott (1988) por se tratar de um esforo mais global de

    compreenso sistmica das profisses.

    1.1. - O paradigma funcionalista

    no paradigma funcionalista que se inscrevem (mesmo sem explicitamente o

    dizerem) as mais frequentes classificaes sobre as actividades de trabalho, nomeadamente

    ao afirmarem que s pode ser considerada profisso aquela que possuir um conjunto bem

    preciso de traos ou atributos. definido, assim, um ideal-tipo de profisso, sendo as

    ocupaes que s satisfazem alguns desses critrios consideradas no profisso, quase-

    profisso, semi-profisso, conforme os casos e os autores. H mesmo quem, com base

    nesta lgica, tenha proposto escalas para medir quanto profissionalismo possuam

    determinadas ocupaes (Rodrigues, 2002: 7).

    A perspectiva funcionalista dominou boa parte da sociologia das profisses at

    finais da dcada de 1960 (MacDonald, 1999), e nela era bem visvel, de acordo com a

    generalidade dos autores, a influncia dos trabalhos de Durkheim, nos finais do sculo

    XIX e incios do sculo XX:

    Em Frana, Durkheim (1893) foi sem dvida o primeiro socilogo a defender uma argumentao sobre a evoluo conjunta das actividades econmicas e das formas de organizao social que desemboca numa concepo que alguns julgaro demasiado normativa dos grupos profissionais (Dubar & Tripier, 1998: 67).

    Os trabalhos de Carr-Saunders e Wilson em Inglaterra, designadamente a sua obra

    The Professions (1933), bem como os de Parsons nos Estados Unidos, particularmente o

    seu texto inicial The Professions and the Social Structure (1939), constituem outras tantas

    abordagens de uma teoria funcionalista que procura descrever e avaliar a influncia das

    organizaes profissionais nas sociedades modernas e que, de acordo com Dubar & Tripier

    (ibid.: 68), se poderia sintetizar em trs grandes proposies de partida, articuladas umas

    nas outras:

    O desenvolvimento, a restaurao e a organizao das profisses esto no cerne

    do desenvolvimento das sociedades modernas,

    porque elas asseguram uma funo essencial: a coeso social e moral do

    sistema social,

    18

  • Profisso, profissionalismo e profissionalizao

    e representam, por esse facto, uma alternativa dominao do mundo dos

    negcios, do capitalismo concorrencial e da luta de classes.

    Durkheim inscreve a necessidade de restaurao dos grupos profissionais no

    contexto do desaparecimento progressivo, que constatou, dos grupos sociais que

    funcionavam como intermedirios entre o indivduo e o Estado, e que foi responsvel por

    aquilo a que chamou anomia um enfraquecimento da conscincia das normas e do

    lao [lien] social (ibid.: 70), supostamente tornado um estado crnico no mundo

    econmico moderno. Neste contexto, a criao e fortalecimento de grupos profissionais

    bem definidos e organizados (ao contrrio das velhas corporaes), elevados categoria de

    instituies pblicas, poderiam recuperar esse papel mediador, exercendo uma funo

    reguladora nas questes econmicas e, simultaneamente, um poder moral capaz de

    conter egosmos individuais, desenvolver a solidariedade e impedir o triunfo da lei do mais

    forte. A perspectiva de Durkheim, tal como a desenvolveu em Sobre a diviso do trabalho

    social (1893), era de que, no futuro, a moderna organizao social e poltica se aliceraria

    numa base exclusivamente, ou quase exclusivamente, profissional. E desse novo modelo

    de organizao constaria sempre, como condio essencial de uma regulao eficaz nos

    planos econmico e do trabalho, a exigncia de uma conscincia moral por parte das

    pessoas implicadas, um corpo de crenas comuns:

    () como as realidades econmicas invadem cada vez mais todas as esferas da vida social, no prprio corao da economia que necessrio, segundo Durkheim, restabelecer as formas de regulao e de integrao morais que permitiro vencer a anomia. De onde o lugar central atribudo organizao profissional e cuja justificao essencialmente moral, pois ela constitui uma das instncias de socializao dos indivduos e a forma moderna de regulamentao contratual das actividades. Se a escola essencial para assegurar a educao moral de base, ela insuficiente para permitir a integrao concreta dos adultos em comunidades concretas que no podem ser seno profissionais, ou seja, ao mesmo tempo intermedirias entre o Estado e as famlias e enraizadas na esfera econmica que se torna preponderante na vida social (Dubar & Tripier, 1998: 72-73).

    Esta defesa da restaurao dos grupos profissionais enquanto forma eminente de

    regulao social foi retomada por outros autores em Inglaterra e nos Estados Unidos, mas

    com alguma diferena decorrente da prpria tradio anglo-saxnica de distino entre

    professions e occupations sendo, portanto, as anlises e as propostas de inspirao

    durkheimiana restringidas basicamente ao primeiro grupo, e no totalidade dos actores

    do mundo do trabalho.

    Em Inglaterra, Carr-Saunders e Wilson fazem, no incio dos anos 1930, o que se

    considera a primeira sntese histrica e sociolgica sobre as professions (), ou seja, as

    actividades de servio organizadas sob a forma de associaes profissionais voluntrias e

    19

  • Captulo I

    reconhecidas legalmente (Dubar & Tripier, 1998: 74). Preocupados, segundo uma clara

    lgica funcionalista, em identificar os atributos especficos das profisses, tomadas como

    factos naturais (Rodrigues, 2002: 7-8), estes autores consideraram que uma profisso

    emerge quando um nmero definido de pessoas comea a praticar uma tcnica fundada

    sobre uma formao especializada, dando resposta a necessidades sociais (ibid.: 8).

    Comeam, assim, a sistematizar-se a partir do estudo de algumas profisses j

    estabelecidas, como as de advogado e de mdico os atributos essenciais que, luz do

    paradigma funcionalista, compem o j referido ideal-tipo das profisses: a

    especializao de servios que permitam satisfazer uma clientela, a criao de associaes

    profissionais que protejam este grupo da invaso de pessoas no qualificadas e que fixem

    cdigos de tica para os qualificados, e o estabelecimento de uma formao especfica,

    baseada num corpo terico e num conjunto de tcnicas, permitindo a aquisio e o

    desenvolvimento de uma cultura profissional prpria. Simultaneamente, vo-se

    desenvolvendo debates (que acompanharo sempre o estudo das profisses) sobre a

    legitimidade de um tal sistema e dos privilgios que ele acaba por proporcionar a

    determinados grupos na sociedade.

    O trabalho de Carr-Saunders e Wilson, situando-se tambm na perspectiva que olha

    o profissionalismo como um modo de regulao a um tempo economicamente eficaz e

    moralmente desejvel e que pressupe uma clara responsabilizao dos prprios

    profissionais (numa lgica de service-making, em vez de profit-making), at como

    condio essencial do seu reconhecimento por parte do pblico , sugeria tambm que

    uma tal forma de organizao seria o futuro das sociedades modernas. Em seu entender,

    permitir o acesso de cada vez mais pessoas a este mundo das professions seria a melhor

    maneira de reduzir a injustia social, sendo certo que as associaes profissionais

    constituiriam um elemento essencial de estabilidade social (Dubar & Tripier, 1998: 80).

    Considerando as profisses instituies-chave das sociedades modernas (a par da famlia,

    das igrejas e das universidades), estes autores entendiam que a sua funo especfica,

    eminentemente progressista, era constituir mediaes entre os saberes puros (pure study)

    e o mundo da vida quotidiana, pr em relao o saber especializado (expert knowledge) e

    o controlo popular, o mundo dos negcios e a democracia moderna (ibidem).

    Esta abordagem conduz, naturalmente, a uma diferena importante, aos nveis

    social e moral, entre o chamado profissional e o assalariado normal, entre o que

    escolhe um mundo definido pela autonomia (liberdade versus opresso) e a

    responsabilidade (dignidade versus dependncia), e o que suporta um outro mundo,

    20

  • Profisso, profissionalismo e profissionalizao

    marcado pela dependncia salarial e a opresso patronal (ibid.: 81). E esta distino

    essencial entre profissionais e no-profissionais sugere um mundo funcional em cuja

    organizao social os primeiros tm um papel determinante o que ajuda tambm a

    compreender como, ao longo da histria, os mais diversos grupos ocupacionais tm

    procurado ascender a essa categoria superior e modelar de profisso.

    Uma terceira abordagem que se inscreve neste contexto do paradigma funcionalista

    deve-se a Parsons, que desenvolveu nos EUA, a partir de 1939, um sistema terico onde os

    feitos profissionais tm lugar muito relevante. Ainda de acordo com Dubar & Tripier

    (1998: 82), Parsons procurou demonstrar que a actividade profissional (o professional)

    que melhor caracteriza o sistema social moderno-liberal, e no, como se cr

    frequentemente, a actividade comercial-financeira (o businessman) ou a actividade

    administrativo-burocrtica (o funcionrio)5.

    Quatro traos distintivos so apontados por Parsons para caracterizar os

    profissionais tais como os entende:

    1) H uma diferena entre o professional, que presta servios adequados a

    pacientes ou a clientes (clients), e o businessman, que est interessado

    sobretudo no seu lucro e que vende produtos a consumidores (customers);

    2) A autoridade profissional baseada numa competncia tcnica num domnio

    definido e particular, num campo de qualificao e de conhecimento

    claramente delimitado (a sua actividade tem, portanto, uma especificidade

    funcional, ao contrrio de outras com carcter mais difuso);

    3) As aces profissionais tm numa neutralidade afectiva, ao contrrio das

    aces tradicionais nas esferas familiares ou poltico-religiosas;

    4) A actividade do profissional est orientada para a colectividade, instaurando

    uma relao contratual que se distingue das relaes comerciais ou

    administrativas, pois se orienta essencialmente para a satisfao de um cliente,

    recorrendo a valores impessoais como o avano da cincia, o aperfeioamento

    tcnico ou a competncia reconhecida juridicamente (ibid.: 83).

    5 Outro importante investigador destas matrias, Eliot Freidson, recorda a novidade que foi Parsons ter

    encarado e estudado as profisses como um elemento central do desenvolvimento da sociedade contempornea (Freidson, 1998: 53), nisso se distanciando claramente de outros seus contemporneos que preferiam olhar o termo profisso como simplesmente a denominao lisonjeira que se atribuam a si prprias as ocupaes em busca de estatuto (ibidem).

    21

  • Captulo I

    Analisando muito em particular a profisso de mdico, Parsons incluiu tambm,

    nesse trabalho, a relao mdico-doente e o prprio doente, pois considerava que ser

    doente um papel social com uma estrutura estritamente complementar da do mdico. H

    uma reciprocidade de papis que permite perceber, afinal, que os traos profissionais

    do mdico [tal como atrs referidos] mais no so do que imperativos funcionais da prtica

    mdica institucionalizada, e sem eles o sistema no pode funcionar (ibid.: 85). Esta

    instituio acaba, ento, por ter uma funo social clara, que o controlo social do

    desvio: ao dirigir-se ao mdico (e j no ao feiticeiro ou ao padre, por exemplo), porque

    lhe reconhece competncia para o tratar de modo eficaz e fundamentalmente

    desinteressado, o doente refora a cultura legtima, reconhecendo a validade da

    expertise mdica e a sua superioridade face s interpretaes profanas e aos rituais

    mgicos (ibidem). Em vez de se refugiar em valores irracionais, ele consolida os

    valores de racionalidade cientfica transportados pelo mdico e, nesse sentido, a prtica

    mdica, enquanto processo psicoteraputico, cumpre bem, para Parsons, as mesmas

    funes que os rituais mgicos ou religiosos: o restabelecimento da ordem social e

    simblica, pela recuperao da sade individual (ibid.). Esta separao entre mdico e

    no mdico, entre racional e no racional, retoma, assim, a separao durkheimiana

    entre sagrado e profano, agora aplicada a uma civilizao que fez da cincia o

    equivalente funcional da religio e do profissional o equivalente do padre deste sistema

    cultural moderno.

    Na perspectiva de Parsons, o papel dos profissionais exerce-se, portanto, na

    relao com os clientes, e a sua reciprocidade assimtrica (conhecimento / ignorncia)

    que permite a sua institucionalizao (autoridade / confiana) (Rodrigues, 2002: 9).

    Partindo deste exemplo da relao mdico-doente, faz notar como a assimetria da relao

    e o potencial risco de explorao so geradores de um sistema de controlo social suportado

    pela ideologia e pela mstica do profissionalismo (ibidem). Esta, como atrs se viu,

    comporta tanto normas sociais como valores culturais uma competncia que articula

    saberes tericos (advindos de formao prpria) e prticos (ligados experincia), uma

    especializao tcnica num domnio bem definido de actividade, um desinteresse ou

    desprendimento na relao com o cliente , com base nas quais se legitima o papel do

    profissional:

    Este talvez o principal ponto de convergncia das anlises inspiradas por Parsons e enquadradas pela teoria funcionalista. Desde o incio que se identificaram fenmenos como os do

    22

  • Profisso, profissionalismo e profissionalizao

    poder, dos monoplios e dos privilgios profissionais, no entanto o que considerado como essencial na compreenso e explicao da gnese e funcionamento das profisses so os mecanismos de legitimidade (integrao e controlo) social (). A sociedade concede s profisses autonomia em troca da capacidade de controlo; recompensas e prestgio em troca de competncia; monoplio atravs de licenas em troca das melhores prestaes ou servios. a sociedade que confere poder s comunidades profissionais (Rodrigues, 2002: 10-11).

    1.2. - O paradigma interaccionista

    Em vez de se preocupar em identificar os traos ou atributos que supostamente

    caracterizariam uma profisso numa lgica de modelo , as perspectivas ligadas

    corrente terica do interaccionismo simblico (associado Escola de Chicago)

    privilegiaram uma lgica de processo: mais importante do que definir o que uma

    profisso seria identificar as circunstncias segundo as quais as ocupaes se

    transformam em profisses (Rodrigues, 2002: 16). , a este ttulo, perfeitamente

    eloquente uma muito citada passagem de E. Hughes (nome que constitui a primeira e mais

    saliente referncia desta abordagem interaccionista das profisses), datada de 19586:

    Eu passei da falsa questo esta ocupao uma profisso? para uma mais fundamental, quais as circunstncias pelas quais as pessoas que tm uma ocupao tentam torn-la numa profisso, e a si prprias em profissionais?, e quais os passos pelos quais tentam criar uma identificao com os seus modelos de valores? (Hughes, 1958, cit. por Rodrigues, 2002: 16).

    Neste nvel, o prprio estudo das profisses alargado para um quadro mais vasto

    das actividades do mundo do trabalho (tericos interaccionistas estudaram profisses

    muito pouco habituais, como as de ladro, msico de jazz ou pugilista), sempre com o

    pressuposto de que a diviso do trabalho resulta de interaces e processos de construo

    social no sendo, como pretende o funcionalismo, uma simples capacidade tcnica de

    responder a necessidades sociais (Rodrigues, 2002: 15).

    Para Hughes, a especificidade do trabalho dos profissionais reside j no em

    atributos ou caractersticas particulares que lhe sejam inerentes, mas nas condies

    concretas do seu exerccio: a existncia de uma autorizao legal e de um mandato sobre

    certos saberes sagrados, a existncia de instituies que protejam o diploma dos

    profissionais e mantenham esse seu mandato, a existncia de carreiras, enquanto espaos

    de diferenciao / hierarquizao, mas tambm enquanto espaos de socializao (pois ao

    6 A passagem retirada do livro Men and Their Work (1958), New York: The Free Press. igualmente retomada, com

    data de 1963, no texto Professions (Daedalus, 92: 655-68).

    23

  • Captulo I

    mandato se associam uma filosofia e uma viso do mundo). Nesse sentido, as abordagens

    interaccionistas, na esteira de Hughes, enfatizam menos a retrica profissional que procura

    fazer das profisses (e s destas) uma actividade nobre, prestigiada e desinteressada, e

    mais os problemas com que qualquer actividade de trabalho (ocupao) se depara no seu

    processo de definio, autonomizao e valorizao.

    O processo de profissionalizao , assim, entendido como uma histria

    natural, um processo de afirmao de ocupaes por oposio ou afastamento dos

    modos amadores de desenvolvimento da actividade (ibid.: 16), e que no se restringe

    necessariamente a um escasso nmero de ocupaes. A prpria exigncia de uma

    formao especializada, por regra proveniente da escola, considerada menos como um

    atributo das profisses e mais como um meio, um recurso para o processo de

    profissionalizao: o aumento dos nveis de qualificao fundamental nos conflitos de

    disputa de reas de trabalho e respectivas fronteiras (Ruellan, 1997b) entre grupos

    ocupacionais, pelo que a formao e as escolas se transformam em instituies que

    atribuem licenas para trabalhar numa ocupao, assim estabelecendo a distino entre

    os verdadeiros profissionais e os leigos (Rodrigues, 2002: 17). A nfase, ao contrrio da

    lgica funcionalista e naturalista, sempre colocada no processo de transformao das

    ocupaes, nas interaces e nos conflitos, bem como nos meios e recursos mobilizados

    nesse processo. Est sempre presente, assim, uma perspectiva processual e relacional, uma

    perspectiva dinmica, bem prpria do interaccionismo, e que coloca o acento tnico j no

    na estrutura, mas na aco, j no no facto de que as coisas acontecem, mas no facto de

    que as pessoas agem (MacDonald, 1999: 7).

    Nesta abordagem, as actividades profissionais so analisadas simultaneamente

    como processos subjectivamente significantes e como relaes dinmicas com os outros

    (Dubar & Tripier, 1998: 95), dando relevo biografia e s interaces, valorizando as

    profisses j no tanto (ou no s) como ingredientes estruturais da organizao social,

    mas tambm como formas de realizao pessoal: A actividade profissional de quem quer

    que seja deve ser estudada como um processo biogrfico e mesmo identitrio (ibidem).

    A sntese proposta por Dubar & Tripier (ibid.: 96) aponta quatro princpios neste

    ponto de vista interaccionista sobre as profisses:

    1) Os grupos profissionais (entendidos como grupos ocupacionais, num sentido

    mais lato do que o das profisses estabelecidas) so processos de interaces

    que conduzem os membros de uma mesma actividade de trabalho a auto-

    24

  • Profisso, profissionalismo e profissionalizao

    organizar-se, a defender o seu territrio e a sua autonomia, a proteger-se da

    concorrncia;

    2) A vida profissional um processo biogrfico que constri as identidades ao

    longo de todo o desenrolar do ciclo de vida, desde o incio do trabalho at

    reforma;

    3) Os