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O Livro de Rute: Um Caminho para o Messias Luciano Manicardi Tradução: Rita Veiga Caderno 19 Fundação Betânia Setembro 2011

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Page 1: "O Livro de Rute: Um Caminho para o Messias"

O Livro de Rute:

Um Caminho para o Messias

Luciano Manicardi

Tradução: Rita Veiga

Caderno 19

Fundação Betânia

Setembro 2011

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O LIVRO DE RUTE:

UM CAMINHO PARA O MESSIAS

Luciano Manicardi, monge de Bose

Um livro que é inteiramente bondade

O livro de Rute é um pequeno livro bíblico, um livrinho que André Chouraqui

definiu como “uma delicada história de amor”, um livro não muito conhecido dos

cristãos, também porque quase não utilizado na liturgia católica. Um livrinho que, pelo

contrário, entre os judeus, na liturgia judaica, é lido todos os anos em Shavuot, a festa

das semanas, que, ao longo do tempo, em Israel, tem sido a festa agrícola em que se

celebra a colheita (não por acaso, no nosso livrinho, é central o tema da respiga). Os

acontecimentos mais significativos do livro de Rute decorrem durante as semanas da

colheita da cevada e do trigo entre Pessach e Shavuot, entre a Páscoa e o Pentecostes,

donde Shavuot é a festa das colheitas, das primícias.

Mas Shavuot tornou-se também a festa que recorda o dom da Torah. E aqui

pode-se colher um sentido possível para este costume litúrgico. O livro de Rute declina

de modo particular o dom da Torah. Um texto judaico, Leqah tov su Rut, diz: “Porque

se lê o livro de Rute em Shavuot, no momento do dom da Torah? Porque este rolo é

todo ele bondade (chesed) e porque a própria Torah é inteiramente bondade, como está

escrito: ‘uma torah [um ensinamento] de bondade sobre a sua língua’ (Pr 31,26).” A

revelação de Deus na Torah traduz-se em bondade, em prática quotidiana de bondade

entre os homens. No midrash Ruth Rabbah diz-se que “o livro de Rute foi escrito para

ensinar-nos qual é a recompensa da ghemilut hassadim, isto é, as obras de

misericórdia”. De resto, a Torah está toda contida dentro das obras de misericórdia.

Desde o Génesis, onde Deus veste quem está nu, cosendo uma roupa para Adão

e para cobrir a sua nudez (Gn 3,21: “O Senhor Deus fez a Adão e à sua mulher túnicas

de peles e vestiu-os.”), até ao fim da Torah, em Dt 34, quando Deus sepultou Moisés. O

Targum (ou seja, a tradução aramaica do texto hebraico da Escritura), comentando a

passagem bíblica em que se narra a sepultura de Moisés (cuja sepultura nunca mais foi

encontrada: Dt 34,6), fala de uma série de obras de caridade como forma de imitatio

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Dei: “Bendigo o Nome do Senhor do universo que nos ensinou os seus caminhos justos!

Ele Ensinou-nos a vestir os que estão nus, quando ele próprio vestiu Adão e Eva; […]

ensinou-nos a visitar os doentes, quando apareceu na planície de Mambré a Abraão que

sofria ainda pelo corte da sua circuncisão; ensinou-nos a consolar aqueles que estão de

luto, quando apareceu a Jacob, no seu regresso de Padan-Aram, no lugar onde morrera a

sua mãe; ensinou-nos a alimentar os pobres, quando fez descer o pão do céu para os

filhos de Israel; e quando Moisés morreu, ensinou-nos a sepultar os mortos” (Targum ao

Deuteronómio 34,6).

Ora, o livro de Rute é um elogio da prática da bondade, de uma práxis de

humanidade marcada pelo respeito e reconhecimento do outro, de sensibilidade e

delicadeza, mas também de obediência às leis, de prática dos mandamentos, portanto, da

justiça, que está orientada para a plenitude de vida do homem. A solidariedade de Rute

em relação a Noemi, que ela exprime em termos mesmo radicais (Rt 1,16-17), a

delicadeza e a generosidade de Booz para com Rute, a respigadora, a casta audácia de

Rute em relação a Booz, o rigor movido pelo amor por Rute e pelo respeito pelo direito

da parte de Booz quando se trata de resolver o problema jurídico do resgate com o

parente de Noemi mais próximo dele. Estes são alguns dos exemplos desta prática da

bondade que pode efetivamente ser vista no centro deste livro, que, no entanto, não

pode ser reduzido a uma historieta impregnada de bons sentimentos. Porque a bondade

também tem as suas sombras e porque as situações dolorosas, e até mesmo trágicas,

abundam neste livro. E, portanto, também os comportamentos nem sempre lineares.

Além disso, este livro é portador de uma forte valência política, e até, discreta

mas decididamente, polémica. Mas isso mesmo torna grande aquilo que acontece neste

livro em que Deus não é praticamente nomeado. Ou melhor, Deus como personagem

desta história popular, desta “novela” (como a definiu Hermann Gunkel; podemos falar

de um “conto breve”), desta fábula (houve quem falasse de correspondência bíblica da

fábula da Cinderela), é sempre nomeado, aparece, mas na boca de personagens da

narração, já não é protagonista da acção, excepto em Rt 4,13 (“o Senhor concedeu-lhe a

graça de conceber”). O que acontece neste livro é que a acção de Deus se manifesta por

detrás dos acontecimentos humanos, nos bastidores da narrativa, ou, se observarmos as

coisas por outro ângulo, que as acções humanas fazem emergir a acção de Deus (ou,

pelo contrário, podem anulá-la, cancelá-la). Deus apresenta-se oculto nas dobras da

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vida, da existência, e a responsabilidade humana é uma prática de humanidade que

permite a Deus habitar entre os homens. E também o acaso, a conjuntura, aquele acaso

referido em Rt 2,3 (“Aconteceu que aquele campo era propriedade de Booz”), parece

regressar afinal a uma história não casual, não desprovida de sentido. Anatole France

escreveu que “o acaso é o pseudónimo de Deus quando Deus não quer pôr a sua própria

assinatura”.

A presença de Deus nas dobras da história

A minha abordagem ao livrinho de Rute pretende compreendê-lo como caminho

para o Messias. Quero de facto procurar descobrir os caminhos que, no livro de Rute,

abrem a estrada ao Messias. Com efeito, este livro bíblico termina com a genealogia de

David. Tudo converge para ali. E poderemos dizer que o nascimento do Messias David

é preparado por uma prática de humanidade na qual justiça e bondade, justiça e amor, se

encontram e se abraçam. Procuraremos ler este livro do ponto de vista da interpretação

cristã, exactamente como livro que abre o caminho ao Messias, que diz qualquer coisa

sobre a prática messiânica como prática de humanidade.

Este livro, como já disse, não se esgota numa história de bons sentimentos. Não

se deve esquecer que a história narrada no livro de Rute é também, e sobretudo, uma

história de emigração. E esta óptica é decisiva para compreender os acontecimentos.

Uma mulher com a sua família emigra do seu país, de Belém, e vai para um país

inimigo, Moab, para encontrar pão. Moab é historicamente um país inimigo do povo de

Israel, mas que país não é inimigo quando nos erradicamos da nossa terra, da nossa

cultura, se nos afastamos da nossa língua-mãe e vamos para o estrangeiro, impelidos

pela fome (como neste caso, em que Noemi e a sua família fogem da escassez) ou pela

guerra ou por outras desgraças? E, depois, quando Noemi regressa ao país nativo, eis

que Rute se torna ela imigrante num país estrangeiro. E ali, a prática de humanidade de

Booz conseguirá ultrapassar as indicações legais e humanizará também a lei.

Resumindo, este livro ensina-nos, se assim se pode dizer, que o milagre nasce

da terra. Deus, enquanto sujeito que intervém, está ausente do livro. É aquele de quem

se fala, em nome do qual se jura, que se invoca, é aquele que está presente na

consciência das pessoas, mas na realidade não intervém: a história é deixada aos

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humanos, nas mãos das mulheres e dos homens. Se o texto de Rute fala de uma acção

de Deus através das dobras das acções humanas, uma releitura poética do livro de Rute,

ou, pelo menos, do capítulo terceiro, aquele que fala de Booz adormecido, mostra-nos, a

partir dos olhos de Rute, o céu como reflexo da bondade humana, e o próprio Deus

como ceifeiro que deixa a foice no campo das estrelas, como Booz tinha feito com ela

deixando espigas abundantes para recolher. É, deste modo, o criar de um espelhamento

entre o céu e a terra. Diz Victor Hugo no poema Booz endormi [Booz adormecido]:

A respiração de Booz adormecido

fundia-se com o som dos regatos sobre o musgo.

Estava-se no mês em que a natureza é doce,

Tendo as colinas lírios nos seus cumes.

Rute sonhava e Booz dormia; a erva estava escura;

Os chocalhos dos rebanhos tiniam vagamente;

Uma imensa bondade descia do firmamento;

Era a hora tranquila em que os leões vão beber.

Tudo repousava em Ur e em Jérimadeth;

Os astros adornavam o céu profundo e sombrio;

O crescente delgado e luminoso entre estas flores da sombra

Brilhava a ocidente, e Rute interrogava-se,

Imóvel, semiabrindo o olho sob os seus véus,

Que Deus, qual ceifeiro do Verão eterno,

Havia, ao ir-se embora, lançado distraidamente

Aquela foice de ouro para o campo das estrelas.

O livro de Rute apresenta também uma dinâmica de passagem da morte à vida,

uma dinâmica pascal. O episódio de Rute abre-se, nos primeiros cinco versículos do

primeiro capítulo, com a narração de três mortes. Morrem três homens e estas mortes

criam três viúvas. A abertura do livro é trágica: o leitor encontra-se diante de uma

situação trágica e infinitamente dolorosa de morte. O nosso livro falar-nos-á de como da

morte se passará a um nascimento, das mortes do capítulo primeiro chagar-se-á ao

nascimento do capítulo quarto: “Booz tomou, pois, Rute, que se tornou sua mulher.

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Juntou-se a ela e o Senhor concedeu-lhe a graça de conceber e dar à luz um filho” (Rt

4,13). Esta passagem da morte à vida é concedida por uma presença de Deus nas acções

dos homens. Esta chave de leitura é aquela que me parece que pode abrir um caminho

cristão de leitura do texto um pouco mais original em relação àquele que a própria

tradição cristã nos apresenta.

O livro de Rute na tradição cristã

Na Tradição cristã, o livro de Rute, das origens até Clemente de Alexandria e a

Tertuliano, inclusive, não é citado senão uma vez por Melito de Sardis, o qual, numa

passagem das Éclogas, situa o livro de Rute depois dos Juízes e antes dos quatro livros

dos Reis (1-2 Sm e 1-2-Rs). Ou melhor, o livro de Rute, pelo menos num primeiro

tempo, não foi particularmente usado e citado pela tradição cristã e, de qualquer modo,

ainda hoje, como já referi, está substancialmente ausente do uso litúrgico da Igreja

Católica Romana (encontram-se utilizações esporádicas na sexta-feira e no sábado da

vigésima semana do tempo comum, anos ímpares). No entanto, há um texto

neotestamentário que suscitou o interesse dos padres da Igreja e que dominou a

interpretação cristã deste livro. Trata-se de um passo da genealogia de Jesus segundo

Mateus, em que Mateus, refazendo os versículos finais de Rute (4,18-22), acrescenta,

em relação ao livro veterotestamentário: “Salmon gerou, de Raab, Booz; Booz gerou, de

Rute, Obed […]” (Mt 1,5). Por consequência, voltou o interesse cristão pela figura

messiânica do descendente davídico. Isto dominou a interpretação cristã do livro e deve

conduzir-nos a interrogar: esta interpretação não parece dar um rosto masculino a uma

história decididamente feminina, como é a do livro de Rute, expropriando-a da sua

peculiaridade? Ao mesmo tempo, devemos notar a importância da inserção do elemento

feminino na genealogia de Jesus: em tantas genealogias do Antigo Testamento não

existe senão o elemento masculino e é raro encontrar o elemento “mulher”: é o homem

que gera, segundo o conceito do mundo patriarcal em que surgiu a Bíblia; pensemos em

Gn 5 ou em Gn 10,10-26 e devemos também perguntar-nos: como é entendida a

inserção do feminino de Rute na genealogia de Jesus? Procuramos dar-vos uma primeira

resposta espreitando para a tradição cristã e, depois, através de uma breve releitura do

texto.

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A posição na Bíblia

Diferentemente da Bíblia judaica (onde se encontra entre os Ketuvim e faz parte

dos cinco meghillot, os “rolos” que são lidos nas principais festa judaicas), o livro de

Rute do Cânone Cristão está situado entre os livros históricos, depois de Juízes e antes

de Samuel. Se, por vezes, como em Orígenes, é considerado um livro único em

conjunto com Juízes (a partir da notação cronológica que abre o livro: “No tempo em

que os Juízes governavam, Rt 1,1), outras vezes é ligado aos livros seguintes, os livros

dos Reis. Agostinho escreve: “Rute parece pertencer aos livros dos Reis, como início

destes” (De doctrina cristiana 2,8,13). Obviamente que já abre caminho a interpretação

do livro a partir da sua anotação final, a da genealogia de que sairá Jessé, portanto

David (Rt 4,18-22) e, depois, segundo a releitura neotestamentária, Jesus, o Messias.

Isidoro de Sevilha escreveu: Este livro conta a história da moabita de quem descende a

família de David. Os Judeus unem este livro ao dos Juízes; os Latinos, ao contrário,

dado que ali se encontra inserida a genealogia do rei saído de Rute, afirmam (coisa que

parece mais verosímil) que este livro faz parte do corpus dos livros dos Reis” (In libros

veteris ac novi testamenti proemia 26). A questão que se levanta é: deste modo, não

advirá uma evaporação da história de Rute em prol do que na história é apenas

subentendido no fim? Repare-se que o trecho de Rute 4,18-22 é o único que a exegese

retém em grande parte como um apêndice acrescentado ao livro que, fora isso, é uma

narrativa unitária e coesa. Não se arriscarão a que seja evacuado o corpo narrativo do

texto e o corpo feminino da própria narrativa? Veremos que se pode encontrar uma

resposta que nos diz que se pode ler Rute como indicação de como abrir o caminho ao

Messias.

A interpretação cristológica

Como é compreendida a presença de Rute na genealogia de Jesus? Uma primeira

linha interpretativa é de tipo cristológico. Segundo Orígenes (Homilias sobre Lucas

XXVIII,2), a presença de Rute, que “não era sequer da estirpe de Israel”, a par de Raab,

de Tamar, que se prostituiu, e de Betsabé, que cometeu adultério com David, sublinha a

vontade universal de redenção dos pecados de Jesus, o Cristo. Escreve Orígenes: “O

nosso Senhor e Salvador veio para tomar sobre si os pecados dos homens; vindo ao

mundo, Ele assumiu o papel dos homens pecadores e viciosos e quis nascer da estirpe

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de Salomão, cujos pecados estão narrados na Escritura.” Mulheres estrangeiras ou

pecadoras na genealogia de Jesus indicam a vontade de salvação e redenção universais

do pecado por parte do Messias Jesus.

A interpretaçõ eclesiológica

Uma outra linha interpretativa é de tipo eclesiológico. Eusébio de Cesareia, nas

suas Quaestiones evangelicae, dedica a nona questão ao problema da menção a Rute na

genealogia de Jesus. Rute, moabita, estrangeira, proveniente de um povo inimigo de

Israel, a quem a Lei proíbe a entrada na assembleia de Israel, torna-se tipo dos cristãos

que, provindo do paganismo, passam a fazer parte, por graça, do povo messiânico

reunido em torno de Cristo morto e ressuscitado. Rute torna-se figura da Igreja, da

ecclesia ex gentibus, como também afirma Orígenes. Escreve Eusébio: “Contemplando

profeticamente no espírito do chamamento das gentes provenientes de outras etnias e

estirpes, chamamento que seria derivado do seu Evangelho, como teria o evangelista

podido não mencionar Rute, aquela que, sendo de um outro povo, não israelita, […] se

torna semelhante a Raquel e a Lia, que tinham as duas edificado a casa de Israel?” Rute

é aqui enumerada entre as matriarcas. Coisa que acontece também na tradição judaica a

partir de Rt 4,11, em que Rute é justaposta a Raquel e a Lia.

A interpretação moral

Uma última linha interpretativa, que frequentemente se cruza com as outras já

referidas, é de tipo moral. A interpretação torna-se moral quando Rute é vista (por

exemplo, por Orígenes) como o tipo da mulher fiel, que vive um fidelidade absoluta ao

povo de Deus como expressa na sua promessa de fidelidade a Noemi até à morte: “O teu

povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus” (Rt 1,16). Rute torna-se um

exemplum proposto aos cristãos que os incita a serem fiéis e perseverantes, exemplum

proposto sobretudo àqueles que, convertidos, devem empenhar-se na difícil

perseverança, devem declinar a fé como fidelidade e perseverança para não cair na

idolatria de que se afastaram.

Eusébio, sempre nas Quaestiones evangelicae, afirma que Rute “foi tornada

digna de ser acolhida entre os antepassados do Salvador não por motivo da nobreza do

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corpo, não por motivo do sangue ou do seu nascimento, mas da nobreza da conduta”.

De resto, já o texto bíblico afirma que Rute é “mulher forte”, “mulher de valor” (’eshet

chail: Rt 3,11; de Booz diz-se que era ’ish chail [poderoso e rico]: Rt 2,1). Esta

dimensão de mulher virtuosa é sim o que fez que tenha podido ir além da lei que em Dt

23,4 estabelecia: “Um amonita ou um moabita não serão admitidos na assembleia do

Senhor; nem mesmo a sua décima geração poderá jamais ser ali admitida.” Orígenes e

outros Padres explicaram o facto de que Rute, a moabita, tenha sido acolhida no povo

de Israel a despeito de uma disposição da Torah, fazendo recurso à passagem

neotestamentária de 1Tm 9, que diz que “a lei não foi feita para o justo, mas para os

maus e rebeldes, para os ímpios e pecadores […]”. Portanto, a proibição contida na Lei

a respeito dos moabitas não vale para Rute que, embora sendo moabita, não é, de modo

nenhum, nem ímpia nem rebelde, mas antes fiel e justa. Portanto, aquela disposição

legal não se aplica a ela. Alguns textos judaicos explicam, em vez disso, que a Lei de Dt

23,4 se referia a homens: o amonita e o moabita; Rute, pelo contrário, a moabita, é

mulher e, portanto, a proibição não se aplica a ela. Em ambas as explicações existem

elementos demasiado artificiais.

Respigar no campo das Escrituras

Se estas são as grandes linhas da interpretação cristã, a sensação é de uma certa

pobreza. No entanto, na época mediaval, como recorda Henri de Lubac no seu ensaio

sobre a exegese medieval, impôs-se também a imagem de Rute como símbolo da

análise exegética: “Seguindo o exemplo de Rute, devemos sempre respigar no campo

das Escrituras para procurar e explicar os segredos da Sagrada Escritura.” E agora

também nós procuramos respigar no livro de Rute, tentando manter unidos o coração da

interpretação cristã e o corpo da narrativa bíblica.

O livro de Rute como caminho para o Messias

O livro de Rute, na sua redacção final, termina com uma genealogia, portanto

com uma abertura ao futuro, e a um futuro messiânico. A última palavra do livro é

“David” (4,22). Podemos então compreender o nosso texto como uma narrativa que dá

indicações sobre como abrir o caminho ao Messias, sobre como dar vida a um futuro

quando o presente está sob o signo do fim, sobre como aplanar o caminho para o

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nascimento de um filho, de um David, numa história que, desde os primeiros

compassos, vê o triunfo da morte (cf. Rt 1,1-5). E não só da morte física, no sentido da

morte de Elimélec, Maalon e Quilion, o marido e os dois filhos de Noemi (Rt 1,3-5),

mas da morte da própria esperança de Noemi. Ela, diz abertamente às suas duas noras,

não tem possibilidade de lhes assegurar um futuro: “Porventura tenho eu ainda no meu

seio filhos para que de mim possais esperar outros maridos? […] estou demasiado velha

para me casar de novo. E ainda que eu dissesse: ‘Tenho esperança. Sim, esta noite

pertencerei a um homem e gerarei filhos.’ Acaso iríeis esperar que eles se tornassem

grandes, sem casardes de novo?” (Rt 1,11-13). E o seu próprio futuro está, dali para a

frente, fechado: “Não me chameis Noemi! Chamai-me Mara, porque o Todo-Poderoso

encheu-me de amargura. Parti com as mãos cheias e o Senhor fez-me voltar de mãos

vazias. […] o Senhor humilhou-me” (Rt 1,20-21). A raiz do nome Noemi remete para a

ideia de doçura, enquanto que Mara para a de amargura: o destino de Noemi sofreu

uma reviravolta.

Aqui, começamos já a ver a face escondida e obscura da bondade. Noemi parece

assinalada pela morte do marido e dos filhos, sobretudo pela perda dos filhos, e emerge

nela o sofrimento que cega, que leva a ver a realidade através do filtro compreensível,

mas também deformante, da própria dor. Embora se preocupe com as noras, na

realidade emerge sempre a sua carência, a sua perda, que não consegue aceitar:

“Porventura tenho eu ainda […] filhos?” (Rt 1,11); Ainda há esperança para mim? (Rt

1,12); “A minha amargura é sem medida” (Rt 1,13). Por três vezes se refere a si mesma,

à dor que lhe enche todo o horizonte e que não lhe permite amar, nem, primeiramente,

ver com suficiente distanciamento as outras pessoas, que são compreendidas apenas a

partir da sua própria situação. O problema da perda dos filhos em conjunto com o facto

de ser demasiado idosa e com a consciência de já não poder ter filhos é o que habita o

coração de Noemi e a conduz mesmo a uma imagem de Deus como inimigo (Rt 1,13).

As palavras de Noemi, que se referem ao levirato, dizem sobretudo o que cega esta

mulher. A lei do levirato (a que se faz referência evidente em Rt 1,11-13) previa, com

efeito, que o irmão de um homem morto, casado e sem filhos, se unisse à viúva e lhe

desse um filho que se tornaria filho do defunto, para que o seu nome não se perdesse,

para dar continuidade à estirpe pela linha masculina. Segundo a Bíblia, o levirato não

previa que, se um marido defunto não tivesse um irmão, os seus pais devessem gerar um

outro filho para dá-lo à viúva. E, de qualquer modo, ver-se-á depois que a Noemi não

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faltavam parentes susceptíveis de casar com as duas noras e de “conservar o nome do

defunto” (Rt 4,5). Será um percurso que Noemi será levada a fazer na sua situação de

dor ofuscante. E isso acontecerá essencialmente graças a Rute e Booz.

Portanto, trata-se de reconhecer no texto pistas do caminho, do comportamento

humano que abre um caminho ao Messias.

Belém: casa e pão

Uma primeira pista é fornecida pelo lugar de Belém, lugar de ressonância

messiânica muito forte na Escritura, quer segundo os profetas (Mq 5,1-3), quer segundo

o Novo Testamento (Mt 2,5-6). Bet-lechem é lugar que significa “casa do pão”. Casa,

bait, em hebraico, significa também “apelido”, “família”. Elimélec sai de Belém para

procurar pão, comida. Vai para onde há pão, porque na Judeia havia penúria. Parte com

a sua casa, com a sua família, e encontra alimento no país de Moab. Noemi, porém, em

Moab, ao mesmo tempo que encontra pão, perde a sua casa, a sua família. No princípio

da narrativa há três homens e uma mulher, Noemi (Rt 1,1); no fim do prólogo, quando

Noemi decide regressar à terra de Israel, há apenas três mulheres (Rt 1,5). E trata-se de

três mulheres sozinhas, de três mulheres sem os seus maridos. No princípio, há um

homem com a sua mulher e os seus filhos (Rt 1,1-2); depois, há Noemi privada do seu

marido e dos seus filhos (Rt 1,5: doravante, a perspectiva, o ponto de vista adoptado

pelo narrador, é o de Noemi). E as duas noras ficam sem os seus maridos. Rute chega-se

a Noemi e decide permanecer com ela. Tornadas à terra de Israel, Rute será aceite na

comunidade de Israel e mesmo na genealogia de David: como é possivel?

Diz, de facto, a Torah: “Um amonita ou um moabita não serão admitidos na

assembleia do Senhor; nem mesmo a sua décima geração poderá jamais ser ali admitida,

porque não vos ofereceram pão e água no caminho, quando saístes do Egipto” (Dt 23,4-

5). Quem escreveu o livro de Rute (e há quem pense que possa ter sido uma mulher)

subverteu a proibição contida na Torah que proíbe quem pertença ao povo de Moab de

entrar na comunidade de Israel. Mas pôde fazê-lo fazendo desaparecer a justificação da

proibição. Rute deu pão a Noemi na terra de Israel: é ela que respigando no campo de

Booz, lhe traz para casa a porção de alimento para um dia (Rt 1,18), depois para todo o

período da ceifa (Rt 1,21-23) e, por fim, quando se casa com Booz, assegura a Noemi o

sustento para todo o resto da vida (Rt 4,13). Foi uma moabita que deu pão a uma filha

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de Israel, por consequência não existe a proibição da Lei. Fica assim estabelecido um

princípio de comportamento divergente de tudo o que estava estabelecido na Torah. E

Rute, casando com Booz e tendo um filho dele, dá um filho também a Noemi, isto é, dá

uma casa, uma família, também a Noemi (Rt 4,13.16). Em Belém, a “casa do pão”,

Rute, a moabita, dá pão e casa a Noemi. Rute cura Noemi, que parece presa do seu

sofrimento, da sua carência, presa do lamento, amargurada pelas provações da vida e de

um luto de que não consegue desprender-se. Dobrada sobre a tristeza da falta do seu

marido e, sobretudo, dos filhos.

O agir de Rute, agir preparatório do caminho messiânico, é o de quem ousa o

futuro, de quem ousa o risco, ousa um devir incerto, repetindo a aventura de Abraão,

que, obedecendo à palavra do Senhor, saiu da casa de seu pai em direcção a um país que

o Senhor lhe tinha indicado. Rute deixa a casa da sua mãe (Rt 1,8) e profere aquela

confissão que a torna o tipo dos prosélitos: “O teu povo será o meu povo e o teu Deus

será o meu Deus” (Rt 1,16). Rute comportou-se como Abraão, que, antes, deixou a sua

terra e os seus parentes para se estabelecer na terra que o Senhor lhe tinha mostrado.

Isto é o que reconhece Booz, quando fala a Rute e lhe diz palavras que interpretam a sua

vivência à luz do chamamento de Abraão: “Já me contaram tudo o que fizeste pela tua

sogra, depois da morte do teu marido: como deixaste o teu pai, a tua mãe e a terra onde

nasceste e vieste para um povo que há bem pouco nem conhecias” (Rt 2,11). Nestas

palavras do justo Booz encontramos a resposta a uma pergunta que o leitor se coloca

desde do primeiro compasso da narrativa. Terá Rute feito bem em seguir Noemi? Não

foi uma atitude louca? Essa loucura será recompensada? Ou permanecerá uma loucura?

Exactamente a atitude de seguir Noemi é interpretada por Booz como o acto que

concede a Rute obter a autorização de permanência. A bondade aliada à coragem e à

loucura de um gesto gratuito de amor torna-se aquilo que dá a Rute o direito de

cidadania em Israel. É assim segundo Booz. Ela continua a ser a moabita, mas a sua

bondade (e a chesed, a bondade, a lealdade, a fidelidade, tínhamos já dito que é uma

chave de leitura do livro de Rute) incorpora-a no povo eleito. E também graças a ela, à

sua coragem, à sua bondade, à sua loucura de arriscar o inédito e o desconhecido, abrir-

se-á um caminho ao Messias.

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Uma conversão que passa por um movimento de amizade e de amor

Em Rt 1,22, Rute é descrita como “aquela que regressou dos campos de Moab”.

Surpreende o uso do verbo “regressar”. Ainda que se fale precisamente do regresso de

Noemi a Belém (partira de Belém e aí torna agora), utiliza-se o verbo shuv, “regressar”,

também para Rute. O verbo shuv, “regressar”, é a palavra-chave do primeiro capítulo do

nosso livrinho, onde se repete 12 vezes. Os regressos de Noemi e de Rute são assim

muito diferentes. Também em 2,6, Rute é apresentada a Booz pelo superintendente dos

ceifeiros como aquela que “voltou com Noemi da terra de Moab”. Estas palavras

remetem-nos para a frase empenhativa de compromisso proferida por Rute, em 1,16-17,

a qual tem no cerne a fórmula de pertença recíproca própria da aliança: “Vós sereis o

meu povo e Eu serei o vosso Deus.” Ligando-se a Noemi, com um acto de afecto muito

humano, de proximidade humana, de solidariedade, Rute adere à aliança de Israel de

modo que pode invocar o Deus de Israel como garante da sua fidelidade ao seu novo

povo. Em Rt 1,17, encontram-se as palavras de um juramento que acompanham sempre

na Bíblia um compromisso decisivo que, muitas vezes, consiste numa mudança de

aliança (1Sm 20,13: Jónatas alia-se a David, em vez de a Saul).

Em conclusão, Rute é aquela que se converte. O que é a sua conversão? Diz-se

que ela regressou dos campos de Moab (1,6.22; 2,6). Moabita, Rute é uma descendente

de Lot: Moab foi o filho que Lot teve da relação incestuosa com a filha mais velha (Gn

19,30-38). São muitas as semelhanças entre o texto do Génesis e a narrativa de Rute:

duas mulheres sem possibilidade de descendência; as cenas acontecem de noite (Rt 3),

depois de o homem ter bebido (Booz em Rt 3,3.6); quando está deitado e sem ele se

aperceber, uma mulher vem para junto dele. Mas as diferenças são também notáveis. A

filha mais velha de Lot toma a iniciativa, enquanto que Rute obedece a Noemi; Rute não

embebeda Booz, foi ele que bebeu e depois adormeceu. A filha de Lot consuma a

relação sexual, ao contrário de Rute que se limita a despir-se e a colocar-se junto de

Booz. Quando Booz acorda, ela dirige-lhe um pedido de casamento, enquanto Noemi

queria induzi-la a unir-se sexualmente a Booz. Em Rt 3,3-5, é clara a intenção de Noemi

de usar Rute para seduzir Booz, de levá-la a deitar-se com Booz. Noemi diz-lhe para

agir despercebidamente, para desfrutar assim da sua superioridade, o factor surpresa:

Booz certamente não aprovaria que ela se aproximasse dele sob a sua tenda, mas –

assim raciocina Noemi –, se Booz for apanhado de surpresa, depois de ter comido e

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14

bebido, se despertar do sono e encontrar aquela mulher disponível junto dele, então não

conseguirá decerto resistir: “Ele mesmo te dirá aquilo que deves fazer” (Rt 3,5).

De certo modo, Noemi parece reproduzir, ela, a filha de Israel, a mulher de

Belém, o comportamento da filha de Lot de que nascerá Moab, o que quer dizer que os

comportamentos desastrados ou maldosos ou desonestos ou abusivos não têm pátria.

Noemi sugere um agir astuto para obter uma casa de Booz através de Rute e poder

assim ter um descendente que não pudera ter dos seus dois filhos e poder ser sustentada

para o resto da vida. Rute será a actriz num cenário preparado por Noemi, mas, na sua

obediência, Rute afasta-se das indicações de Noemi, não usa de astúcia e engano, mas

de discrição, respeito e inteligência. Rute terá um filho, mas depois do casamento com

Booz: Rt 4,13. É essa a conversão de Rute: uma filha de Lot torna-se filha de Abraão. E,

repito, Rute não age com engano ou com prostituição (como Tamar, que se finge

prostituta para se unir com Judá, de quem era nora e a quem Judá não tinha querido dar

o seu outro filho em casamento, desrespeitando assim o costume do levirato: Gn 38,26).

É interessante notar que o filho que nasce da união de Judá com a nora era Peres, isto é,

a personagem de quem parte a descendência de David em Rt 4,18. Rute revela-se justa

e, sobretudo, mostra que a sua conversão ao Deus de Israel passa através da sua afeição

a uma pessoa, a Noemi. Passa através de uma vivência humaníssima de amor.

Uma força que não prevarica

Booz é definido em 2,1 como ‘ish ghibbor, “homem forte”, expressão que

habitualmente designa um guerreiro. Coisa que bem se coaduna com os tempos

belicosos e turbulentos da época dos juízes. O próprio nome de Booz significa “neste

está a força”. Mas esta força, com a qual os juízes, os guerreiros, naquela época antiga

de Israel, asseguravam um futuro a Israel, está aqui amansada e parece força moderada,

força de bondade e de rectidão, de respeito e de humanidade. Estamos perante o

moderado, aquele que, nomeadamente, amansa a própria força para não prevaricar, para

dar espaço aos outros. As suas instruções ao superintendente da ceifa para que sejam

deixadas espigas por ceifar para Rute, a sua generosidade ao dar-lhe alimento, o seu

reconhecimento do que Rute havia feito pela anciã, portanto a sua empatia, a sua

capacidade de ver e de reconhecer o bem praticado pelo outro, o seu respeito também

pelo homem que teria precedência para usar o direito de resgate, mas também a sua

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15

firmeza e inteligência ao ampliar o alcance do uso legal do resgate, acrescentando-lhe

também o casamento por levirato como norma humana, portanto, como o que é

verdadeiramente necessário nesta situação em que se tratava de vir em ajuda de Rute e

também de Noemi, tudo isto faz de Booz um exemplo de moderação, fruto de força

amansada, e orienta-se para um fim bom através de meios igualmente bons. Não só um

fim bom, mas também meios bons para alcançá-lo. Aquilo que vimos também em Rute,

que não utiliza estratagemas e enganos para obter o que quer, mas se move com

discrição e respeito e caridade. Não admira que o filho que sairá de Booz e de Rute se

venha a chamar “Obed”, servo. Quase a estabelecer um sigilo claro, uma indicação de

caminho para o Messias, que nascerá desta genealogia: ele deverá ser o Servo do Senhor

e servo dos seus irmãos. O agir messiânico segundo Jesus de Nazaré será de servir, de

tornar a autoridade serviço.

Um texto político

O texto de Rute provavelmente foi escrito na época pós-exílica (persa), quando

Esdras e Neemias proibiam os casamentos mistos em Israel. Assim, o livrinho que

poderia parecer um romance cor-de-rosa, uma historieta familiar impregnada de bons

sentimentos e a acabar bem, é, na realidade, um texto com uma significativa valência

política. Talvez também com trechos polémicos, ainda que diluídos nas cores de uma

história muito doce. Rute testemunha o uso de textos legislativos de maneira

decididamente oposta àquela como os usam Esdras e Neemias. Diz Ne 13,1-3.23-27:

“Ao ler-se, certo dia, ao povo, o livro de Moisés, descobriu-se um texto que

ordenava que o amonita e o moabita jamais deviam ingressar na assembleia de

Deus, por não terem ido receber os filhos de Israel com pão e água; antes,

contrataram Balaão para os amaldiçoar, maldição que o nosso Deus mudou em

bênção. Logo que ouviram a leitura desta Lei afastaram de Israel todos os

estrangeiros. […] Naqueles dias encontrei mais alguns judeus que tinham

desposado mulheres de Asdod, de Amon e de Moab. Metade dos seus filhos

falavam a língua de Asdod e a língua de outros povos e já não sabiam falar o he-

braico. Admoestei-os e amaldiçoei-os, até bati em alguns, arranquei-lhes os

cabelos e ordenei-lhes, em nome de Deus: “Não dareis as vossas filhas aos filhos

dos estrangeiros e não tomareis filhas estrangeiras para os vossos filhos nem para

vós mesmos. Não foi este o pecado de Salomão, rei de Israel? Não existia rei

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semelhante a ele entre a multidão das nações. Era amado do seu Deus e foi posto

por Ele como rei de todo o Israel; entretanto, foram as mulheres estrangeiras que

o induziram a pecar. Podemos, pois, ouvir dizer que vós estais a cometer este

grande mal e que sois infiéis ao nosso Deus, desposando mulheres estrangeiras?”

Rute utiliza os mesmos textos usados por Esdras e Neemias para chegar a

conclusões opostas. Da proibição dos casamentos mistos vistos como maldição,

proibição destinada a conservar uma pureza étnica, passa-se a perceber como bênção o

casamento misto (Booz com uma moabita). Também o Sl 87, que julgo composto no

mesmo período, apresenta um procedimento semelhante. O Sl 87 usa um instrumento (o

recenseamento) que para Esdras e Neemias era elemento de discriminação, para abrir os

horizontes do povo de Israel e alargá-los numa perspectiva universalista. Naquela época

em que se recorreu a listas e registos genealógicos para verificar a pureza da

ascendência genealógica dos retornados da deportação na Babilónia (Esd 1,7-2,67), para

se assegurar que a comunidade de Jerusalém fosse a legítima herdeira de Israel pré-

exílico, eis um texto que se coloca em aberta contracorrente e que aplica o instrumento

do recenseamento aos povos estrangeiros, impuros e pagãos, para sublinhar o horizonte

amplo da acção histórica de Deus, a respiração uiversalista da fé no Deus Uno criador e

redentor. O Sl 87 põe em cena a chegada de diversos povos (Raab, Babilónia, Etiópia,

etc.) a Jerusalém para se fazerem inscrever no registo como nascidos em Jerusalém. O

Deus de Israel aparece como escrivão com o propósito de anotar os seus nomes “no

registo dos povos” (biktov cammim: Sal 87,6). E apõe a fórmula “Todos lá nasceram”

(Sl 87,4.6) que autentica a origem de cada pessoa-povo em Sião. Em resumo, o livro de

Rute afirma que se se fincassem na determinação de considerar a proveniência étnica de

Rute e se se afastassem dela, o próprio Israel ficaria privado da possibilidade de David

e, consequentemente, do Messias.

A lei humanizada

Duas leis são interpretadas de modo criativo e inédito no livro de Rute. O

levirato e o direito de resgate. O parente mais próximo era o go’el, aquele que devia

adquirir o terreno do morto para evitar a dispersão da herança. Aqui, trata-se do campo

de Elimélec (Rt 4,2-4). Esta lei não previa o novo casamento com a viúva sem filhos

(Lv 25,48-49 afirma o dever da parte do go’el de adquirir os terrenos do património

familiar). A lei do levirato (a que se faz referência evidente em Rt 1,11-13) previa que o

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irmão de um homem morto, casado e sem filhos, se unisse à viúva e lhe desse um filho,

que se tornaria filho do defunto, para que o seu nome não se perdesse, para dar

continuidade à estirpe pela linha masculina. As duas leis, que eram distintas, são unidas

por Booz ao fazer o contrato, à porta da cidade, com o parente que o precedia no direito

de resgate. Levir e go’el são assim unificados e isto é desconhecido no Antigo

Testamento. Booz interpreta a Lei alargando-a com o conceito ético do dever moral de

ajudar a viúva e os seus mortos, perpetuando o nome deles. Não é por acaso que ele fala

de Elimélec como “nosso parente” (Rt 4,3). Booz argumenta afirmando de facto que

cumprir apenas o dever legal de resgatar o terreno sem encarregar-se de Rute e de dar

uma descendência ao “nosso parente Elimélec” seria indelicado e teria uma lacuna ética.

Por causa disso o parente mais próximo faz dois cálculos e dá-se conta de que, se

concorda em comprar o campo e, depois, também em desposar Rute, a propriedade legal

do campo caberá ao filho que Rute terá e que será herdeiro legal de Maclon e de

Elimélec. Portanto, não lhe convém pagar um campo que, um dia mais tarde, os filhos

de Rute poderão pretender dele como herdeiros legais do defunto marido de Rute.

Temos aqui, para além da ificuldade de conhecer com exactidão as subtilezas do direito

hebraico da época e, portanto, de conhecer bem a cena, uma interpretação genial e

inovadora das leis associada a humanidade e ética. Booz vai mais além da Lei que lhe

impõe o resgate e, embora não sendo obrigado, porque não é irmão do morto, pretende

casar com Rute para dar uma descendência a Maclon, filho de Noemi e de Elimélec.

Caminho de preparação messiânica é este da justiça que se faz humana. Diz o

livro da Sapiência: “o justo deve ser amigo dos homens” (filanthropon: Sb 12,19). E,

deste modo, o nosso texto e a figura de Booz em particular, remetem para um outro

justo, um homem também ele à sombra de uma mulher, Maria; um homem que irá além

da Lei que lhe consentia o repúdio da mulher ligada legalmente a ele, mas grávida não

dele; um homem que saberá integrar e corrigir o costume legal com bom senso e

humanidade, com amor e sabedoria. José, que não repudiou a jovem mulher grávida,

mas a acolheu, fez assim conciliarem-se o seu próprio desejo profundo (é num sonho

que lhe é revelado que a tome por esposa) e um sentido de justiça humana que pondera

as consequências de sofrimento que um gesto seu de repúdio poderia acarretar para

Maria (cf. Mt 1,18-25).

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Uma praxis de humanidade

Um último elemento que me limito a assinalar, de tal forma é transbordante no

livro, é a humanidade dos protagonistas. Sobretudo a humanidade de Booz e de Rute e

de ousarem o amor apesar dos impedimentos. Rute, cujo nome significa decerto “a

amiga”, é aquela que se liga por afecto a uma pessoa, a uma outra mulher, e a segue

para onde quer que ela vá. E tornar-se-á uma bênção para ela. O amor humaníssimo e

terno entre Booz e Rute, a coragem que tal amor comporta, o silêncio e a discrição que

os tornam cúmplices, demonstram igualmente esta humanidade delicada e intensa. O

encontro na eira (Rt 3) é uma obra-prima deste ponto de vista. A inovação, sempre para

permanecer em linha com a interpretação do livro de Rute como indicação de caminho

para o Messias, não acontece antes de mais na cena pública, de modo estrondoso,

clamoroso, mas no segredo, nos corações, ali onde se verifica um encontro na

transparência, na simplicidade e na verdade.

Esta humanidade torna-se solidariedade gratuita e fecunda. Rute faz o bem a

Noemi que permanece sempre um pouco às costas de Rute, que é a heroína do conto

mesmo que Noemi esteja muitas vezes na sua sombra a dar sugestões e a tecer a trama.

Talvez, no princípio dos acontecimentos, Noemi nem conceda muita importância a Rute

e pareça não lhe dar o reconhecimento adequado. Em In Rt 1,19-22, Noemi, regressada

ao seu país, lamenta-se do seu destino, repete que partiu cheia e volta vazia, esquecendo

a presença de Rute junto de si. Mas, como já dissemos, o seu vazio, o vazio que a

atormenta, é o vazio dos filhos: não por acaso, quando Rute, mais tarde, tem um filho,

as mulheres de Belém que tinham acolhido Noemi no seu regresso exclamarão então:

“Nasceu um filho a Noemi” (4,17). E, nas palavras contidas em Rt 4,14-15, passa-se da

imagem de Booz qual go’el, aquele que exerceu o direito de resgate, ao filho tido por

Rute, que se torna o go’el de Noemi. Ainda que tudo seja visto através do prisma da

carência que afligia Noemi e que agora ficou colmatada. Rute é referida não por si, mas

em função do filho que deu a Noemi. A narrativa mostra que a bondade e justiça de

Rute leva Noemi a curar-se do seu próprio mal, que era também a incapacidade de ver o

mal que podia fazer e o sofrimento que podia infligir a quem lhe estava próximo,

precisamente porque cega pela própria carência mais elaborada, pelo próprio luto nunca

assumido. E esta atitude é reconhecível desde o princípio da narrativa, quando

precisamente apesar de regressar juntamente com Rute, Noemi parece ver apenas o seu

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próprio vazio, a própria carência, e se esquece da mulher que deixou tudo só por ela. É o

narrador que recorda a presença de Rute (Rt 1,22), mas Noemi não diz nada sobre ela e

continua a repetir o seu lamento, presa e cega pela sua dor, pela sua falta dos filhos, pelo

seu estar privada daquilo que tinha antes. No entanto, Rute tornar-se-á bênção e fará

realmente com que o vazio de Noemi seja preenchido por uma plenitude renovada.

Não surpreende o papel da bênção no livro de Rute (cf., entre outras passagens,

Rt 2,20; Rt 3,10, em que as palavras de Booz “O Senhor te abençoe […], porque não

procuraste jovens” deram origem à tradição midráshica da idade avançada de Booz;

segundo um texto midráshico ele tinha 84 anos; Rt 4,11-12). A bênção é caminho

messiânico por excelência. Essa é a presença de Deus no quotidiano, no passar dos dias,

entre paredes da casa e os trabalhos do campo, entre o evento de um casamento e o

nascimento de um filho. Porque aí, nesse quotidiano são derrubados os muros que

dividem e as barreiras ideológicas, aí o homem e a mulher encontram-se, os sentimentos

entrelaçam-se e constrói-se uma história que não é puramente individual, mas política.

Mas uma política humana, aberta ao humano que existe em cada criatura humana,

homem e mulher, estrangeiro e nativo.

No livro de Rute, a acção de Deus, camuflada, oculta na narrativa, encontra uma

manifestação no agir dos homens e das mulheres que se empenham uns pelos outros,

que mostram um rosto humano, como Booz em relação à estrangeira Rute, como Rute

para com a viúva e desesperada Noemi, como reciprocamente Booz e Rute. É assim,

nesta história quotidiana e nos dias de trabalho que se abre o caminho de uma

genealogia do Messias. É a história em que Deus se esconde por detrás dos gestos e das

palavras dos homens, por detrás das suas relações. Mas não nos abrirá esta história o

horizonte para a humanidade de Jesus de Nazaré, no qual é revelado Deus, é revelado o

rosto de Deus? O caminho para o Messias é um caminho humano, humaníssimo. E

Deus sabe quanto precisamos de humanidade e de sensibilidade humana nas nossas

vidas, na nossa sociedade, na comunidade cristã, na Igreja, nas nossas relações

interpessoais e políticas, sociais e eclesiais.

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BIBLIOGRAFIA

Para não tornar pesado o texto, decidi não inserir notas. Mas a minha leitura de Rute é

devedora de múltiplas intuições de outros leitores deste pequeno livro. Indico a seguir

algumas das que mais me guiaram e inspiraram.

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© Fundação Betânia. 2011

www.fundacao-betania.org