o leitor e o re-criador de gêneros discursivos na educação infantil

316
1 UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CAMPUS DE MARÍLIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS “JÚLIO DE MESQUITA FILHO” GREICE FERREIRA DA SILVA O LEITOR E O RE-CRIADOR DE GÊNEROS DISCURSIVOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Marília SP 2013

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    UNESP UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

    CAMPUS DE MARLIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS

    JLIO DE MESQUITA FILHO

    GREICE FERREIRA DA SILVA

    O LEITOR E O RE-CRIADOR DE GNEROS DISCURSIVOS NA EDUCAO

    INFANTIL

    Marlia SP

    2013

  • 2

    GREICE FERREIRA DA SILVA

    O LEITOR E O RE-CRIADOR DE GNEROS DISCURSIVOS NA EDUCAO

    INFANTIL

    Tese apresentada ao Programa de Ps Graduao em

    Educao da Faculdade de Filosofia e Cincias da

    Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita

    Filho, Campus de Marlia na rea de concentrao:

    Ensino na Educao Brasileira Abordagens

    Pedaggicas do Ensino de Linguagens, para a

    obteno do ttulo de Doutor em Educao

    Orientador: Dagoberto Buim Arena

    Marlia

    2013

  • 3

    Silva, Greice Ferreira da

    S586l O leitor e o re-criador de gneros discursivos

    na Educao Infantil / Greice Ferreira da Silva. Marlia,

    2013.

    315 f. ; 30 cm.

    Tese (Doutorado em Educao) Faculdade de

    Filosofia e Cincias, Universidade Estadual Paulista, 2013.

    Bibliografia: f. 253-262

    Orientador: Dagoberto Buim Arena.

    1. Leitura (Ensino elementar). 2. Escrita. 3. Educao

    de crianas. 4. Crianas - Escrita. 5. Crianas - Linguagem.

    I. Autor. II. Ttulo.

    CDD 372.6

  • 4

    GREICE FERREIRA DA SILVA

    O LEITOR E O RE-CRIADOR DE GNEROS DISCURSIVOS NA EDUCAO

    INFANTIL

    Tese apresentada ao Programa de Ps Graduao em

    Educao da Faculdade de Filosofia e Cincias da

    Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita

    Filho, Campus de Marlia na rea de concentrao:

    Ensino na Educao Brasileira Abordagens

    Pedaggicas do Ensino de Linguagens, para a

    obteno do ttulo de Doutor em Educao

    Orientador: Dagoberto Buim Arena

    Aprovao: Marlia, ______ de ________________ de ______

    Membros componentes da banca examinadora

    Dr. Dagoberto Buim Arena (UNESP Marlia-SP) __________________________________

    Dra. Cludia Beatriz de Castro Nascimento Ometto (UNIMEP Piracicaba-SP)__________

    Dr. Irineu Aliprando Viotto Filho (UNESP Presidente Prudente-SP) ___________________

    Dra. Stela Miller (UNESP Marlia-SP) __________________________________________

    Dra. Suely Amaral Mello (UNESP Marlia-SP) ___________________________________

    Suplentes:

    Dra. Cyntia Graziela Guizelim Simes Girotto (UNESP Marlia - SP)

    Dra. Nanci Lzara de Barros Amancio (UFMT Rondonpolis MT)

    Dra. Renata Junqueira de Souza (UNESP Presidente Prudente SP)

  • 5

    A todas as crianas...

    (SCHULZ, 2012, p. D4).

  • 6

    AGRADECIMENTOS

    Agradeo,

    A Deus, por tudo.

    A minha me Ivelin Tabachini Ferreira, que sempre esteve presente com seu apoio

    valorizando minhas conquistas. Com sua luta e perseverana, me deu as condies para alcanar

    meus prprios sonhos.

    Aos meus irmos amados, Melrian Ferreira da Silva Simes e Kelson Tabachini Ferreira, que

    nos momentos de alegria compartilharam dos meus sorrisos e, nos momentos de desnimo, me

    ajudaram a continuar.

    Ao meu orientador Prof. Dr. Dagoberto Buim Arena, que me acolheu como sua orientanda

    por duas vezes. Obrigada por acreditar em mim e por incansavelmente investir na minha

    formao. Agradeo sua atitude responsiva que, em todas as situaes, potencializaram a minha

    atuao docente e acadmica. Agradeo sua orientao generosa, sua presena sincera, intensa e

    sensvel e por ser exemplo de educador, de trabalho e de competncia. Quando eu crescer, quero

    ser como voc!.

    s crianas que criaram em mim a necessidade de compreender o meu objeto de estudo e por

    reiterarem diariamente que, aprender, uma das melhores coisas que existe.

    Prof Dr. Stela Miller, por todas as contribuies valiosas, no somente na minha

    trajetria como pesquisadora, mas tambm como docente. Obrigada por seu olhar criterioso e

    cuidadoso com o trabalho de pesquisa. A voc dedico meu respeito e gratido.

    Ao Prof Dr. Irineu Aliprando Viotto Filho pelas sbias palavras e por contribuir de maneira

    valorosa com esta tese.

    Prof Dr. Suely Amaral Mello, a quem tenho imensa admirao. Obrigada pela confiana

    de sempre. Agradeo por potencializar meus estudos e por me instigar a buscar uma educao

    humanizadora para as nossas crianas.

    Prof Cludia Beatriz de Castro Nascimento Ometto por fazer parte da banca de defesa e

    por sua disponibilidade em ajudar.

  • 7

    Especialmente s professoras Dr. Cyntia Graziela Guizelim Simes Girotto, Dr. Nanci

    Lzara de Barros Amncio e Dr. Renata Junqueira de Souza pela leitura atenta e pelo apoio

    oferecido.

    A Meire Alice Tonini pelo incentivo, apoio e amizade acompanhando com entusiasmo cada

    etapa desta tese, e, agradeo tambm a equipe da escola em que foi realizada a pesquisa.

    As minhas amigas Adriana Frabetti e Cristiane Maria Martini que me fortalecem sempre com

    sua amizade fraterna.

    A minha querida Flvia Cristina de Oliveira Murbach de Barros pela parceria, pelas

    reflexes e pelo presente da sua amizade iniciada no doutorado.

    A Silvana Paulino de Souza que, com sua generosidade e sabedoria, me sustentou em um

    momento difcil da caminhada. Jamais me esquecerei do seu gesto humanizado que me trouxe

    tanto alento.

    Ao meu amigo querido, Alexandro Henrique Paixo, que mesmo distante sempre presente.

    Obrigada por ser essencialmente voc.

    A Eliana Maria D. Romera de Souza, pessoa querida, presena inestimvel que zela pelos

    meus avanos. Obrigada por me ajudar a entender tantas coisas...

    Obrigada a todos que participam da minha vida e da minha formao e aqueles que, direta ou

    indiretamente, contriburam para este trabalho.

  • 8

    S me torno consciente de mim, s me torno eu mesmo

    me revelando para outrem, atravs de outrem e com a

    ajuda de outrem. Os atos mais importantes, constitutivos

    da conscincia de si se determinam por uma relao

    com outra conscincia (a um tu). A ruptura, o

    isolamento, o fechamento em si a razo fundamental

    da perda de si [...] O ser mesmo do homem uma

    comunicao profunda. Ser significa comunicar. Ser

    significa ser para outrem e atravs dele, para si. O

    homem no possui territrio interior soberano ele est

    inteiramente e sempre numa fronteira; olhando para si,

    ele olha nos olhos de outrem ou atravs dos olhos de

    outrem. Eu no posso prescindir de outrem, no posso

    tornar-me eu mesmo sem outrem; eu devo me encontrar

    em outrem, encontrando outrem em mim (no reflexo, na

    percepo mtua). [...] (BAKHTIN, 1987, p. 287).

  • 9

    RESUMO

    Esta tese relata a pesquisa que apresenta como objetivo geral: analisar como ocorre o processo de

    apropriao da leitura e da escrita das crianas de cinco e seis anos por meio dos gneros

    discursivos no contexto das tcnicas Freinet, e como objetivos especficos: 1) Analisar como o

    ensino dos gneros discursivos carta, relatos de vida, notcia de jornal interfere na

    aprendizagem da leitura e da escrita das crianas de cinco e seis anos; 2) Discutir quais relaes

    as crianas de cinco e seis anos estabelecem com os elementos dos gneros discursivos

    contedo temtico, estilo e construo composicional e de que forma estas relaes atuam no

    processo de formao do leitor e do re-criador de textos; 3) Identificar condutas prprias de leitor

    e de re-criador de textos (orais e escritos) como parte do processo de apropriao da leitura e da

    escrita; 4) Investigar como o trabalho pedaggico com os diferentes gneros discursivos pode

    contribuir para a apropriao da leitura e da escrita pelas crianas de cinco e seis anos. A

    pesquisa ancorou-se nos pressupostos tericos de Bakhtin em dilogo com a Teoria Histrico-

    Cultural, com a Pedagogia Freinet e estudiosos do tema abordado. O trabalho de investigao

    corresponde a uma pesquisa-ao com durao de sete meses, compreendidos entre maio e

    dezembro de 2010. Participaram 20 crianas com idade de cinco e seis anos, de uma turma de

    Infantil II, de uma escola pblica municipal de Educao Infantil da cidade de Marlia SP,

    quatro professoras das crianas dos anos anteriores pesquisa, e a professora-pesquisadora. Foi

    realizado um trabalho pedaggico intencionalmente organizado com enfoque em trs gneros

    discursivos: carta, relato de vida e notcia de jornal. Como instrumento para gerao e coleta de

    dados fez-se uso de entrevistas, observaes e das tcnicas Freinet como a correspondncia

    interescolar, o livro da vida, o jornal da turma, a roda da conversa, a aula passeio. Os

    instrumentos de anlise foram a anlise microgentica e anlise do discurso na perspectiva

    enunciativa discursiva de Bakhtin. Os resultados da investigao indicaram a reconceitualizao

    do ser leitor e do ser re-criador de textos na Educao Infantil. A criana concebida como

    sujeito de suas aprendizagens em que atua de forma interativa; os gneros discursivos, a forma

    como so apresentados e as mediaes estabelecidas no seu ensino contribuem para o processo de

    apropriao e objetivao da leitura e da escrita pelas crianas pequenas, se ocorrerem de forma

    dialgica e dinmica. Aponta-se tambm que as relaes com os elementos dos gneros

    discursivos interferem no processo de formao leitora e escritora e com essas condies o

    trabalho pedaggico orientado pela codificao e decodificao de sinais grficos para o ensino

    do ato de escrever e do ato de ler pode ser descartado.

    Palavras-chave: Leitura; escrita; gnero discursivo; Tcnicas Freinet; Educao Infantil.

  • 10

    ABSTRACT

    This thesis reports research that presents as general objective: analyze how occurs the process

    of appropriation of reading and writing for children five and six years by means of discursive

    genres in the context of Freinet techniques, and as specific objectives: 1) Analyze how

    teaching of discursive genres - letter, life stories, newspaper article - interferes with the

    learning of reading and writing for children five and six years; 2) Discuss which relations

    children of five and six years to establish the elements of discursives genres - thematic

    content, style and compositional construction - and how these relations act in the process of

    formation of the reader and the re-creator of texts; 3) Identify behaviors own reader and re-

    creator of texts (oral and written) as part of the appropriation process of reading and writing;

    4) Investigate how the pedagogical work with different discursives genres can contribute to the

    appropriation of reading and writing for children five and six years. The research was

    anchored on the theoretical principles of Bakhtin in dialogue with the Historical-Cultural

    Theory, with Freinet Pedagogy and studious of the boarded subject. The research corresponds

    to an research-action with duration of seven months, understood between May and December

    of 2010. Participants were 20 children aged five and six years, a class of Child II, a municipal

    public school kindergarten in Marlia - SP, four teachers of children in the years preceding the

    survey, and the teacher-researcher. It was performed a pedagogical work intentionally

    organized focusing on three genres: letter, life report and newspaper article. As a tool for the

    generation and collection of data was made use of interviews, observations and techniques

    such as matching interscholastic Freinet, the book of life, the newspaper of the class, the wheel

    of the conversation class ride. The analysis tools were microgenetic analysis and discourse

    analysis in the perspective of discursive enunciation Bakhtin. The research results indicated

    the reconceptualization of being a reader and being re-creator of texts in Early Childhood

    Education. A child is conceived as the subject of their learning in which it operates

    interactively, the discursives genres, the way they are presented and mediations established in

    their teaching contribute to the process of appropriation and objectification of reading and

    writing by young children, if occur in a dynamic and dialogical. It is pointed out that relations

    with elements of discursive genres interfere in the formation reader and writer and with these

    conditions pedagogical work guided by the encoding and decoding of graphic signs for

    teaching of writing and the act of reading can be discarded.

    Keywords: Reading, writing, discursives genres; Freinet techniques; Childhood Education.

  • 11

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 1 Caracterizao dos sujeitos docentes ...........................................................57

    Quadro 2 Caracterizao dos sujeitos docentes quanto formao.............................58

    Quadro 3 Caracterizao dos sujeitos crianas.............................................................59

  • 12

    LISTA DE FOTOS

    Foto 1 Situao de leitura de carta 19/03/10 Captulo IV...................................154

    Foto 2 Situao de leitura de carta 16/05/10 Captulo IV...................................157

    Foto 3 Situao de leitura de carta 01/06/10 Captulo IV...................................160

    Foto 4 Situao de leitura de notcia de jornal 14/09/10 Captulo IV...............176

    Foto 5 Situao de leitura de notcia de jornal 25/09/10 Captulo IV................183

    Foto 6 Situao de escrita de carta 22/11/10 Captulo V....................................204

    Foto 7 Situao de escrita de relato de vida 04/06/10 Captulo V.....................227

  • 13

    LISTA DE FIGURAS

    Figura 1 Desenho de C1 e observaes escritas Captulo IV................................169

    Figura 2 Carta escrita por C13 em 29/09/10 Captulo V.......................................210

    Figura 3 Carta escrita por C13 em 02/12/10 Captulo V.......................................214

  • 14

    SUMRIO

    INTRODUO.............................................................................................................................15

    CAPTULO I A PESQUISA E A CRIANA: CAMINHOS DA METODOLOGIA........23

    1.1 A concretude da pesquisa.........................................................................................................23

    1.2 A pesquisa com crianas...........................................................................................................32

    1.3 Metodologia de pesquisa: a pesquisa-ao...............................................................................36

    1.3.1 Gerao, coleta e anlise dos dados......................................................................................39

    1.4 Metodologia do trabalho docente e o ensino dos gneros discursivos.....................................49

    1.5 Crianas e adultos: os sujeitos da pesquisa...............................................................................55

    CAPTULO II CONCEITOS DE ENSINO E DE APRENDIZAGEM DA LEITURA E

    DA ESCRITA NA EDUCAO INFANTIL: DOS PROFESSORES E DAS

    CRIANAS...................................................................................................................................62

    2.1 A criana pequena, a cultura escrita e os gneros discursivos: ler e escrever na Educao

    Infantil.............................................................................................................................................63

    2.2 A atividade na leitura e na escrita.............................................................................................68

    2.3 Aspectos da teoria bakhtiniana para se pensar o ensino da lngua...........................................70

    2.4 Os que aprender a ler e a escrever na Educao Infantil? Os conceitos das

    professoras......................................................................................................................................75

    2.4.1 O ensino do ato de ler e de escrever......................................................................................93

    2.4.2 O ensino da lngua materna...................................................................................................97

    2.4.3 As prticas de leitura e de escrita: o gnero literrio...........................................................101

    CAPTULO III A LEITURA E A ESCRITA NA ESCOLA DE EDUCAO INFANTIL:

    O QUE PENSAM AS CRIANAS..........................................................................................109

    3.1 Os conceitos das crianas no incio da pesquisa....................................................................110

    3.2 Os conceitos das crianas no final da pesquisa......................................................................132

    CAPTULO IV O ENSINO DA LEITURA E OS GNEROS DISCURSIVOS............146

    4.1 A criana e seu estatuto de leitor...........................................................................................146

  • 15

    4.2 A leitura do gnero discursivo carta......................................................................................152

    4.3 A leitura do gnero discursivo relatos de vida.......................................................................164

    4.4 A leitura do gnero discursivo notcia de jornal....................................................................173

    CAPTULO V O ENSINO DA LINGUAGEM ESCRITA E OS GNEROS

    DISCURSIVOS..........................................................................................................................188

    5.1 A criana e seu estatuto de criador de textos.........................................................................189

    5.2 A escrita do gnero discursivo carta......................................................................................191

    5.2.1 Evoluo na escrita do gnero discursivo carta..................................................................212

    5.3 A escrita do gnero discursivo relatos de vida.......................................................................216

    5.4 A escrita do gnero discursivo notcia de jornal....................................................................230

    CONCLUSO.............................................................................................................................242

    REFERNCIAS.........................................................................................................................253

    APNDICES

    APNDICE A Termo de consentimento livre e esclarecido do professor participante............263

    APNDICE B Termo de consentimento livre e esclarecido da criana participante................265

    APNDICE C Roteiro para entrevista semi-estruturada do professor.....................................267

    APNDICE D Roteiro para entrevista semi-estruturada da criana........................................268

    APNDICE E Transcrio das informaes coletadas por meio das entrevistas semi-

    estruturadas das professoras.........................................................................................................269

    APNDICE F Transcrio das informaes coletadas por meio das entrevistas semi-

    estruturadas das crianas (Incio da pesquisa)..............................................................................280

    APNDICE G Transcrio das informaes coletadas por meio das entrevistas semi-

    estruturadas das crianas (Final da pesquisa)...............................................................................309

    ANEXOS

    ANEXO A Quadro de normas utilizadas na transcrio das entrevistas.................................315

  • 16

    INTRODUO

    Se escrever entendido como o ato de construir sentidos pelo discurso, o ato de

    ler tambm seria de construir sentido. Essa funo transformadora da lngua

    obriga a didtica da leitura a elaborar novas condutas metodolgicas para

    atender a esse novo leitor e s funes redescobertas do ato de ler. (ARENA,

    2010b, p. 243).

    So bastante conhecidas e debatidas as prticas mais comuns do ensino da leitura e da

    escrita nas creches e pr-escolas brasileiras. Subsiste entre os professores a ideia de que ler e

    escrever so habilidades para o domnio das quais os treinos de escrita as cpias, exerccios de

    coordenao motora, de discriminao visual e auditiva, a repetio dos nomes das letras e das

    slabas seriam suficientes (BISSOLI, 2009).

    A despeito das pesquisas e de iniciativas que se contrapem a essas prticas, h

    profissionais que insistem em limitar a formao de leitores e de re-criadores1 de textos ainda na

    Educao Infantil, ao proporem exerccios de escrita enfadonhos e desvinculados da realidade, da

    vida e dos interesses infantis. Esse fato causa um distanciamento para a criana perceber a lngua

    em seu funcionamento, de estabelecer relaes com ela e por meio dela e de ser capaz de us-la

    nos mais diversos contextos da sua realizao concreta, nas diferentes formas de comunicao

    verbal que o sistema em uso permite realizar. Diante disso, o ensino da escrita nem sempre tem

    calcado o seu objeto como linguagem escrita, o que, consequentemente, faz com que o foco

    recaia nos aspectos formais do sistema lingustico.

    Essas consideraes trazem outro problema. Sob o pretexto de evitar uma possvel

    desmotivadora experincia com textos cuja compreenso estaria, supostamente, para alm das

    possibilidades das crianas pequenas, evidenciando um conceito de criana, de educao, de

    ensino e de aprendizagem empobrecidos, continuam a ser apresentados a elas, textos

    simplificados, artificiais, cartilhescos, seguidos por exerccios que no permitem que a criana se

    1 Neste trabalho, optei por utilizar a expresso re-criador de gneros discursivos por entender que a criana, ao re-

    criar gneros discursivos, cria-os e recria-os a partir do que j foi criado e apropriado da cultura humana. Entende-se

    que o ato de escrever, que envolve a imaginao, a criatividade est diretamente relacionado ao processo de

    apropriao da cultura humana e das experincias que a criana participa. A opo pelo uso dessa expresso tambm

    se justifica pela tentativa de estar em consonncia com os pressupostos tericos assumidos neste trabalho. Pensar em

    re-criador de gneros discursivos entender que o to absolutamente novo to inconcebvel como o absolutamente

    mesmo. (BAKHTIN, 1992, 2003). Nessa perspectiva, compreende-se a lngua como algo vivo, em movimento, que

    se d nas relaes sociais, na interao com o outro, como criao da histria e da cultura humanas, que se renovam

    e se reconstroem.

  • 17

    insira e participe da cultura escrita pela principal via: a do significado e do sentido (LEONTIEV,

    1978).

    Formar leitores e re-criadores de textos na Educao Infantil: eis o desafio que esta

    pesquisa se prope a refletir tendo como fundamentao terica as contribuies de Vygotsky2 e

    dos estudiosos da Teoria Histrico-Cultural; de Bakhtin e pesquisadores das concepes

    bakhtinianas, e da Pedagogia Freinet.

    Essa pesquisa tem origem em minhas inquietaes diante desses apontamentos acerca do

    ensino da leitura e da escrita, e da minha experincia docente. Durante dez anos, como professora

    dos anos iniciais do Ensino Fundamental na rede particular de ensino, e, atualmente, h oito anos

    como professora na Educao Infantil na rede pblica municipal, sempre me intrigou o ensino da

    leitura e da escrita com nfase na codificao e decodificao de sinais grficos, apartado da

    produo de sentido e da prtica cultural, histrica e social. Esse quadro me instigava a buscar

    outros encaminhamentos que pudessem contribuir para a reverso dessa situao.

    Ao ingressar no trabalho na Educao Infantil me deparei com a incumbncia de

    alfabetizar as crianas para que pudessem ingressar no Ensino Fundamental dominando a leitura

    e a escrita, para que no encontrassem dificuldades nas aprendizagens nesse segmento e nos

    demais. Havia uma crena por parte dos pais e dos professores de que quanto mais cedo as

    crianas se alfabetizassem, melhores condies de sucesso na vida elas teriam, e isso era

    considerado sinnimo de maior competncia dos professores que se empenhavam a todo custo

    para faz-lo. Essas premissas no se coadunavam com o que eu constatava diante da minha

    prtica porque as crianas no se interessavam, de modo geral, pelas tarefas que se detinham ao

    ensino do ler e do escrever nessas condies.

    Diante dessa situao e de outras experincias vividas no magistrio, busquei dedicar-me

    ao estudo de uma teoria que alicerasse o meu fazer pedaggico. Na necessidade de romper com

    a dicotomia teoria-prtica, gradativamente pude ir me apropriando de conhecimentos sobre a

    criana, como ela aprende em cada idade, sobre a leitura, sobre a escrita e como a criana se

    apropria dessa prtica cultural.

    2 Nas diversas obras do autor russo e naquelas que tm seus pressupostos como objeto, a grafia de seu nome aparece

    de maneira diferenciada: Vigotskii, Vigotski, Vygotsky, Vygotski. Optei, neste trabalho, pela grafia Vygotsky.

    Entretanto, para ser fiel s indicaes presentes nas referncias bibliogrficas das quais utilizo, no caso de citaes

    diretas ou indiretas, manterei a grafia presente nos originais.

  • 18

    O aprofundamento dessa temtica de forma mais sistemtica principiou-se com a pesquisa

    de mestrado3 que se preocupou em estudar como as crianas iniciam o processo de apropriao

    da leitura por meio do gnero discursivo histria em quadrinhos. Neste estudo, constatei que as

    crianas tinham uma experincia de leitura focada na decifrao dos sinais grficos vinculada ao

    ensino da leitura a que foram submetidas nos primeiros anos da Educao Infantil. A escolha do

    uso do gnero discursivo histria em quadrinhos se deu devido ao fato de a maioria dos sujeitos

    da pesquisa desconhecer o gnero e demonstrar interesse na ocasio de um contato inicial com

    ele. Essa situao foi modificada quando pensei propor situaes reais de leitura que ocorreram

    dentro de um contexto dialgico e intencional em que as relaes travadas pelas crianas

    descartaram a possibilidade de conceber e viver a leitura desde a pequena infncia de forma

    simulada e tcnica. Essas constataes permitiram perceber que desde a Educao Infantil,

    A padronizao dos comportamentos, independentemente da natureza do objeto

    ou da finalidade da ao praticada, constri obstculos para o aprendiz, porque

    ele levado a enfrentar todos os objetos e todas as finalidades com as mesmas

    ferramentas. Ao usar ferramentas inadequadas e colocar em ao

    comportamentos inadequados em sua relao com o objeto, o aprendiz

    independentemente de sua idade e nvel de escolaridade ser sempre

    considerado como quem no sabe ler este ou aquele objeto, mas pode ser

    considerado como leitor se utilizar adequadamente as ferramentas necessrias

    para ler um material especfico. Relativiza-se, desse modo, o conceito de leitor,

    porque este passa a no ter existncia nica e isolada, mas vincula-se ao objeto

    de sua ao. (ARENA, 2003, p. 57).

    Com a pesquisa do mestrado foi possvel reconceitualizar o ser leitor na Educao Infantil

    assumindo o conceito de leitura como compreenso, produo de sentido, como prtica cultural,

    histrica e social (ARENA, 2010b). Foi possvel constatar ainda que as crianas no conhecem

    diferentes gneros discursivos. Em geral, predomina a leitura dos contos de fadas, por no serem

    apresentados a elas outros gneros de forma mais intencional.

    Com essas consideraes, esta pesquisa de doutorado prope a ampliao e

    aprofundamento da discusso iniciada no mestrado, ao trazer tona, a investigao do processo

    de insero da criana pequena na cultura escrita. A hiptese que norteia esse trabalho a de que

    3 SILVA, Greice Ferreira da. Formao de leitores na Educao Infantil: contribuies das histrias em quadrinhos.

    2009. 237f. Dissertao (Mestrado em Educao). Faculdade de Filosofia e Cincias, Universidade Estadual Paulista,

    Marlia, 2009.

  • 19

    as crianas aprendem a lngua desde a Educao Infantil por meio dos gneros uma vez que a

    lngua se manifesta pelos gneros quando o professor introduz o ensino dos gneros na escola

    como instrumento de humanizao, como forma de apropriao da cultura humana. Dessa forma,

    a relevncia desta pesquisa reside no fato de propor uma alternativa de trabalho na Educao

    Infantil que envolva a leitura e a escrita que efetivamente contribua para a formao leitora e re-

    criadora de textos das crianas inserindo-as na cultura escrita.

    Esta pesquisa apresenta, como objetivo geral, analisar como ocorre o processo de

    apropriao da leitura e da escrita das crianas de cinco anos por meio dos gneros discursivos no

    contexto das tcnicas Freinet, e como objetivos especficos: 1) Analisar como o ensino dos

    gneros discursivos carta, relatos de vida, notcia de jornal interfere na aprendizagem da

    leitura e da escrita das crianas de cinco e seis anos; 2) Discutir quais relaes as crianas de

    cinco e seis anos estabelecem com os elementos dos gneros discursivos contedo temtico,

    estilo e construo composicional e de que forma estas relaes atuam no processo de formao

    do leitor e do re-criador de textos; 3) Identificar condutas prprias de leitor e de re-criador de

    textos (orais e escritos) como parte do processo de apropriao da leitura e da escrita; 4)

    Investigar como o trabalho pedaggico com os diferentes gneros discursivos pode contribuir

    para a apropriao da leitura e da escrita pelas crianas de cinco e seis anos.

    Para tanto, dediquei-me ao estudo dos gneros discursivos na perspectiva bakhtiniana para

    poder planejar as situaes de leitura e de re-criao de textos. Fiz um estudo sobre as

    especificidades de cada um dos gneros discursivos a ser abordado no trabalho pedaggico

    carta, relatos de vida, notcia de jornal aprofundando os conhecimentos que caracterizam cada

    gnero. Ao tratar sobre os gneros discursivos na escola desde a Educao Infantil considero que

    No d para higienizar essa perspectiva com o trabalho com a linguagem. No

    d para deixar a vida de lado. Se isso acontecer, perdemos a possibilidade de

    pensar em gneros do discurso, porque no teremos mais a linguagem

    funcionando como correias de transmisso entre a histria da sociedade e a

    histria da linguagem (BAKHTIN, 2003, p. 268). No porque estamos na

    escola que vamos inventar um trabalho com a linguagem que dispense no

    refletir de modo mais imediato, preciso e flexvel todas as mudanas que

    transcorrem na vida social (idem, p.268). A escola das nuvens, lugar de

    formao de um no-lugar, tem que ser destruda, e ceder lugar a uma escola

    onde cabe a vida. (GRUPO DE ESTUDOS DOS GNEROS DO DISCURSO,

    2010, p.47).

  • 20

    De acordo com estas afirmaes, os autores, ao partilharem as ideias de Bakhtin,

    esclarecem:

    E a vida est sempre em movimento, se instabiliza , pode ser olhada de ngulos

    diferentes, se renova constantemente, apresenta sentidos atualizados. Assim

    tambm a linguagem vive esse jogo de ser a mesma e ser diferente ao mesmo

    tempo; ela joga com as foras centrfugas e com as foras centrpetas; vida e

    lngua se constituem nos acontecimentos. (GRUPO DE ESTUDOS DOS

    GNEROS DO DISCURSO, 2010, p.47).

    Por concordar com os pressupostos apresentados que assumo neste trabalho de pesquisa

    o conceito de linguagem, de leitura, de escrita, de gnero na perspectiva bakhtiniana. Para Rojo

    (2005, p. 185), na perspectiva do interacionismo sociodiscursivo (ISD), a [...] teoria dos gneros

    do discurso centra-se, sobretudo no estudo das situaes de produo dos enunciados ou textos

    em seus aspectos scio-histricos [...] e [a] teoria dos gneros de textos na descrio da

    materialidade textual. O quadro do ISD (SHNEUWLY E DOLZ, 2004; BRONCKART, 1997;

    1999) prope uma teoria textual na qual os textos mobilizam gneros, em outras palavras, essa

    teoria aborda gneros textuais. Bakhtin (2003) revela uma teoria discursiva em que os gneros

    mobilizam textos e, desse modo, aborda gneros discursivos. Sobral (2006, p. 119) prope uma

    diferenciao para gnero do discurso e gnero textual, o primeiro seriam formas de insero do

    discurso em lugares scio-histricos e o segundo, formas especficas de materializao dessa

    insero, sem que haja uma correlao necessria entre um dado tipo de textualizao e um dado

    gnero. Assim,

    O gnero mobiliza, mediante o discurso, formas textuais, mas no mobilizado

    por elas, que so apenas seu aspecto material, um sine qua non necessrio mas

    no suficiente para a compreenso e anlise do texto com os olhos do gnero. O

    discurso o espao em que so mobilizadas as textualidades de acordo com o

    gnero a que pertence o discurso. (SOBRAL, 2009, p. 130, grifos do autor).

    Dessa maneira, os gneros discursivos so entendidos como prticas sociais relativamente

    estveis de instaurao de eventos de sentido, realizando-se pelos discursos. Para Sobral (2006),

    o gnero textual recobriria aspectos da significao, ou seja, aspectos relacionados ao sistema da

    lngua, e de composio da estrutura textual, mas no abrangeria nem aspectos relacionados ao

    sentido, ligados ao sistema de uso da lngua, nem da estrutura arquitetnica dos textos. O

  • 21

    conceito de gnero de Bakhtin abarca os aspectos textuais, discursivos e genricos de maneira

    integrada, e vincula o texto ao gnero (SOBRAL, 2010). Texto, discurso e gnero so conceitos

    que esto constitutiva e inseparavelmente ligados na teoria de gnero bakhtiniana. Pelos motivos

    expostos, assumo neste trabalho o conceito de gnero discursivo. Esclareo ainda que na

    entrevista com as professoras utilizo o termo tipos de textos porque em entrevista piloto as

    professoras desconheciam o termo gneros do discurso e este termo foi gerador de dvidas.

    Devido a esse fato, e na tentativa de aproximar ao conceito de gnero discursivo, optei adotar,

    somente nas entrevistas, essa nomenclatura.

    A pedagogia Freinet e suas tcnicas tambm foram alvo de estudos ainda mais

    consistentes para que, aliados teoria Histrico-Cultural e a teoria bakhtiniana, pudessem

    contribuir para a efetivao de uma prtica pedaggica promotora de aprendizagens.

    Nesta pesquisa as tcnicas Freinet so compreendidas como um caminho para prticas que

    possibilitem a apropriao da cultura pela criana, por seu uso social, ou seja, para aquilo para o

    qual cada objeto da cultura foi criado e utilizado socialmente. Desta maneira, so vistas como

    uma proposta alternativa para o trabalho na Educao Infantil que no antecipa o processo de

    escolarizao, nem entrega ao espontanesmo o desenvolvimento das crianas.

    O uso das tcnicas Freinet permite que a criana vivencie o papel das prticas sociais e

    participe da vida na escola, porque a apropriao da cultura se estabelece com o desenvolvimento

    de cada tcnica e as propostas tm maior possibilidade de se tornarem atividade (LEONTIEV,

    1988) por envolverem a criana nesse fazer, porque os motivos que a levam a agir coincidem

    com o resultado previsto para sua ao e, por essa razo, pode produzir sentido positivo aquilo

    que realiza. Com as tcnicas Freinet no h necessidade de se criar situaes para ensinar a

    leitura ou a escrita, porque elas so utilizadas para o registro de vivncias das crianas, o que

    garante sua apropriao pelo prprio uso que a sociedade faz desses objetos culturais.

    Desse modo, este trabalho de pesquisa organizado em cinco captulos. No captulo I A

    pesquisa e a criana: caminhos da metodologia apresento os pressupostos terico-metodolgicos

    desta investigao ao tratar da pesquisa e sua concretude, a aparncia e a essncia fenomnicas e

    a superao da psedoconcreticidade no processo investigativo. Busco discutir a pesquisa com

    crianas e suas implicaes na educao e apresento a metodologia adotada a pesquisa-ao e

    a metodologia do trabalho docente para o ensino dos gneros discursivos. Ao tratar da

    metodologia da investigao adotada, descrevo tambm a metodologia de coleta e de anlise de

  • 22

    dados. Apresento ainda a caracterizao dos sujeitos participantes da referida pesquisa no

    momento histrico e cultural em que se deu a coleta dos dados.

    No captulo II Conceitos de ensino e de aprendizagem da leitura e da escrita na Educao

    Infantil: dos professores e das crianas, apresento o aporte terico dos conceitos basilares e

    fundamentais para este trabalho concernentes ao ensino e aprendizagem, desenvolvimento

    humano, cultura escrita, atividade, gnero do discurso, dialogismo. Realizo uma anlise dos

    dados coletados nas entrevistas, os conceitos de leitura e de escrita, de gneros discursivos, de

    ensino e de aprendizagem das professoras, participantes da pesquisa, e como eles influenciam os

    conceitos ainda em elaborao pelas crianas. Essa anlise ancorada na concepo de

    linguagem, de lngua e de gnero discursivo de Bakhtin, e na concepo de criana, de ensino e

    de aprendizagem, de leitura e de escrita de Vygotsky, e de outros estudiosos da Teoria Histrico-

    Cultural.

    No captulo III A leitura e a escrita na escola de Educao Infantil: o que pensam as

    crianas pequenas busco analisar e compreender por meio dos discursos das crianas, os

    conceitos que elas elaboram sobre a leitura, a escrita e os gneros discursivos e de que forma os

    conceitos das professoras que direcionam as suas prticas interferem nos conceitos e nas

    aprendizagens dos sujeitos da pesquisa.

    No captulo IV O ensino da leitura e os gneros discursivos discuto o que ser leitor na

    Educao Infantil, como esse trabalho pode ocorrer dentro de um processo dialgico e o conceito

    de leitura que norteia essa discusso. Em seguida, apresento situaes de leitura com as crianas

    em trs momentos: o primeiro, no trabalho pedaggico com o gnero discursivo carta por meio

    da correspondncia interescolar; o segundo, com o gnero discursivo relato de vida por meio do

    livro da vida; e terceiro, com notcia, por meio do jornal escolar.

    O captulo V O ensino da linguagem escrita e os gneros discursivos, destina-se

    reflexo sobre o que ser re-criador de textos na Educao Infantil. Para tanto, trago o conceito

    de texto e discuto a diferena entre criar textos e fazer redaes. Realizo ainda neste captulo, a

    apresentao e anlise de situaes de re-criao de textos em trs momentos no trabalho

    pedaggico, como foi proposto no captulo IV: o primeiro, no trabalho pedaggico com o gnero

    discursivo carta por meio da correspondncia interescolar; o segundo, com o gnero discursivo

    relato de vida por meio do livro da vida; e terceiro, com notcia, por meio do jornal escolar.

  • 23

    Devo esclarecer que nos captulos IV e V, nas situaes de leitura e de escrita dos gneros

    discursivos, que explicitam o trabalho pedaggico denotando a minha ao direta com as crianas

    num processo interativo, os dilogos apresentados sero escritos em primeira pessoa por ser eu

    mesma a professora e a pesquisadora.

    Ao finalizar a apresentao dos aportes tericos articulados com a anlise e a discusso

    dos dados resultantes da pesquisa, elaboro a concluso desta tese de doutorado com a inteno de

    explicar o percurso de sua elaborao e de apontar alguns caminhos que possam contribuir

    possivelmente com o processo de formao do leitor e do re-criador de textos na Educao

    Infantil, a sua insero e participao ativa na cultura escrita.

  • 24

    CAPTULO I

    A PESQUISA E A CRIANA: CAMINHOS DA METODOLOGIA

    A destruio da psedoconcreticidade o processo de criao da realidade

    concreta e a viso da realidade, da sua concreticidade (KOSIK, 1976, p. 19).

    A cincia se dedica a desvendar o mundo que nos cerca na tentativa de tornar explcito o

    contedo dos fenmenos e compreender a realidade. O homem cria, em suas relaes, um

    mundo cujos fenmenos compem e constituem a esfera do cotidiano, do imediato, do evidente e

    da aparncia (ARENA, 2010a). Superar a psedoconcreticidade ultrapassar a aparncia em

    busca do entendimento da realidade concreta, da criao dessa realidade concreta.

    Baseado nessas afirmaes, este captulo se dedica em apresentar os pressupostos terico-

    metodolgicos desta investigao ao tratar da pesquisa e sua concretude, a aparncia e a essncia

    fenomnicas e a superao da psedoconcreticidade no processo investigativo. Nesse contexto,

    busca discutir a pesquisa com crianas e suas implicaes na educao e apresenta a metodologia

    adotada a pesquisa-ao e a metodologia do trabalho docente para o ensino dos gneros

    discursivos. Em seguida, caracteriza os sujeitos participantes da referida pesquisa no momento

    histrico e cultural em que se deu a coleta dos dados.

    1.1 A concretude da pesquisa

    Este trabalho parte do pressuposto de que a criana desde a Educao Infantil aprende a

    lngua por meio dos gneros discursivos uma vez que a lngua se manifesta pelos gneros

    quando o professor introduz o ensino dos gneros na escola como instrumento de humanizao,

    como forma de apropriao da cultura humana.

    Essa investigao objetiva compreender a pesquisa como um espao de constituio do

    sujeito, como uma atividade da prxis humana (SILVA, 2009). Entender a pesquisa como

    elemento essencial na formao do sujeito possibilita o desenvolvimento de aspectos

    relacionados construo do conhecimento e da emancipao do homem (SILVA, 2009).

  • 25

    Compreender a formao do sujeito compreender o processo de tornar-se humano. Para

    Vygotsky psiclogo russo e principal representante da Teoria Histrico-Cultural o homem

    no nasce humano, mas aprende a ser humano medida que atua sobre a realidade e se apropria

    da cultura humana e a transforma. Entende-se por cultura humana o conjunto da produo do

    homem e da natureza que existe fora desse homem, objetivamente, independente dele. por meio

    da relao com os objetos socialmente criados e com os outros homens presentes e passados e

    que deixam a marca de sua atividade nos objetos da cultura historicamente produzidos que o

    homem se humaniza (MELLO, 1999). O homem se diferencia dos outros animais no apenas

    pela sua histria peculiar no processo de evoluo biolgica, mas principalmente porque ao

    mesmo tempo em que produz a sua prpria histria produzido por ela. Ser homem decorrente

    de todo um processo de formao ocorrido num ambiente denominado cultura (SILVA, 2009, p.

    158). O processo de hominizao resultado de uma passagem vida organizada na base do

    trabalho, atividade criadora, produtiva, fundamental que faz do ser humano um ser diferente dos

    animais. O homem o nico animal que age intencionalmente em busca de satisfazer suas

    necessidades e de transformao (SILVA, 2009). Ao fazer isso, com a ao transformadora

    consciente se d a criao de si mesmo, uma vez que ao modificar a natureza, modifica a si, de tal

    modo que se torna humano no processo dialtico homem-natureza (SILVA, 2009).

    Leontiev (1978), fundamentado nos estudos de Marx e Engels, afirma que

    O desenvolvimento do homem, da sua vida, exige evidentemente uma interaco

    constante do homem como meio natural, uma troca de substncias entre eles.

    Esta interaco executa o processo de adaptao do homem natureza. Todavia

    o homem adaptar-se natureza circundante no seno produzir os meios da

    sua prprias existncia. Graas a isto, o homem diferentemente do animal,

    mediatiza, regula e controla este processo pela sua actividade; ele prprio

    desempenha, em face da natureza, o papel de uma potncia natural.

    (LEONTIEV, 1978, p. 173).

    Sobre esses pressupostos, Marx e Engels (2006, p. 44 45, grifos dos autores) esclarecem

    que:

    Pode-se distinguir os homens dos animais pela conscincia, pela religio ou por

    tudo o que se queira. No entanto, eles prprios comeam a se distinguir dos

    animais logo que comeam a produzir seus meios de existncia, e esse salto

    condicionado por sua constituio corporal. Ao produzirem seus meios de

    existncia, os homens produzem indiretamente, sua prpria vida material.

  • 26

    E ainda:

    A forma pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende sobretudo

    da natureza dos meios de vida j encontrados e que eles precisam reproduzir.

    No se deve, porm, considerar tal modo de produo de um nico ponto de

    vista, ou seja, a reproduo da existncia fsica dos indivduos. Trata-se muito

    mais de uma forma determinada de atividade dos indivduos, de uma forma

    determinada de manifestar sua vida, um modo de vida determinado. Da mesma

    maneira como os indivduos manifestam sua vida, assim so eles. O que eles so

    coincide, portanto, com sua produo, tanto com o que produzem como com o

    modo como produzem. O que os indivduos so, por conseguinte, depende das

    condies materiais de sua produo.

    Ao considerar essas afirmaes, compreende-se que a primeira atitude histrica dos

    homens em relao aos animais no necessariamente o fato de pensar, mas o de produzir seus

    meios de sobrevivncia e, ao produzir seus meios de existncia coletivamente, desenvolve

    linguagem, pensamento, sentimento, conscincia. Essa uma concepo materialista da

    existncia humana e esta concepo de como o homem produz a sua existncia material

    compreende no o indivduo isolado, mas em sociedade, onde a sua produo individual

    determinada socialmente. Desse modo, no o indivduo natural como produto da natureza,

    mas o indivduo social como um resultado histrico, no o indivduo ideal, mas o real, como uma

    particularidade histrica (BITENCOURT; GAMA; s.d, p. 4). Essa materialidade histrica diz

    respeito forma de organizao dos homens em sociedade atravs da histria, ou seja, refere-se

    s relaes sociais construdas pela humanidade durante vrios sculos de sua existncia. Para o

    pensamento marxista, esta materialidade histrica pode ser compreendida a partir das anlises da

    categoria considerada central: o trabalho.

    Aliados aos conceitos expostos, Vygostki (1995) e Leontiev (1978) explicitam que a

    atividade humana uma mediadora da relao entre o homem e a natureza e, por meio dessa

    relao, o homem cria novas atividades em funo de novas necessidades que so criadas. Os

    conhecimentos adquiridos durante o desenvolvimento das faculdades e propriedades humanas

    acumularam-se e transmitiram-se de gerao em gerao e essas aquisies devem

    necessariamente ser fixadas (LEONTIEV, 1978). Esta nova forma de acumulao da experincia

    filognica entendendo-se por desenvolvimento filogentico a evoluo da espcie humana no

    decorrer da histria dos homens pode aparecer no homem na medida em que a atividade

  • 27

    especificamente humana tem carter produtivo. Essa atividade o trabalho (LEONTIEV, 1978).

    O trabalho, realizando o processo de produo, sob duas formas, material e intelectual, imprime-

    se no seu produto.

    Pode-se dizer que as aptides e outros caracteres especificamente humanos no se

    transmitem pela hereditariedade biolgica, mas adquirem-se no decorrer da vida, em outras

    palavras, no desenvolvimento ontogentico que caracteriza o desenvolvimento do indivduo, a

    partir do seu nascimento, por um processo de apropriao da cultura criada pelas geraes

    precedentes. Para se apropriar dos objetos ou dos fenmenos que so produtos do

    desenvolvimento histrico, necessrio desenvolver em relao a eles uma atividade que

    reproduza, pela sua forma, os traos essenciais da atividade cristalizada, acumulada no objeto

    (LEONTIEV, 1978), caracterizando o processo de apropriao como aquele que cria novas

    aptides, novas funes psquicas.

    De acordo com o exposto, a pesquisa pode ser entendida como uma atividade humana,

    uma atividade criadora em que o homem produz conhecimento ao mesmo tempo em que

    produzido por ele. A produo de conhecimento resultado da relao sujeito e objeto e ambos

    se formam neste processo na medida em que se encontram com o objetivo de desvelar o real.

    Assim sendo, a tentativa de explicar o real a busca pela superao da pseudoconcreticidade

    (KOSIK, 1976). Essa expresso designa

    O complexo dos fenmenos que povoam o ambiente cotidiano e a atmosfera

    comum da vida humana, que, com a sua regularidade, imediatismo e evidncia,

    penetram na conscincia dos indivduos agentes, assumindo um aspecto

    independente e natural. (KOSIK, 1976, p. 11).

    Para Kosik (1976, p. 9) a dialtica trata da coisa em si. Mas a coisa em si no se

    manifesta imediatamente ao homem. O homem cria o mundo das relaes cotidianas que

    compem a esfera do aparente, do imediato (ARENA, 2010a). Esse pressuposto remete a uma

    abordagem do real que no o atinge plenamente, que se esgota na aparncia, entendendo por

    real a forma pela qual o mundo se apresenta. Nesse sentido, a realidade se reduz s suas formas

    fenomnicas, aparncia das coisas.

    O mundo real (ou a totalidade concreta) encontra-se oculto pelo mundo da

    pseudoconcreticidade, precisando ser descortinado para que se possa ter uma aproximao com o

    real. Essas aproximaes so sucessivas e permanentes como um ir e vir em relao ao fenmeno

  • 28

    analisado, ou seja, necessrio realizar um detur (KOSIK, 1976, p.9). Quanto a essa questo,

    Kosik afirma que

    A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, no a de um

    sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade

    especulativamente, porm a de um ser que age objetiva e praticamente, de um

    indivduo histrico que exerce a sua atividade prtica no trato com a natureza e

    com os outros homens, tendo em vista a consecuo dos prprios fins e

    interesses, dentro de um determinado conjunto de relaes sociais. Portanto, a

    realidade no se apresenta aos homens, primeira vista, sob o aspecto de um

    objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo plo oposto

    e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora

    do mundo e apartado do mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita

    a sua atividade prtico-sensvel, sobre cujo fundamento surgir a imediata

    intuio prtica da realidade. (KOSIK, 1976, p. 10).

    Para Kosik (1976) a manifestao do fenmeno pseudo-essncia necessita ser

    ultrapassada para que se chegue verdadeira essncia que pode ser alcanada pelo movimento

    dialtico. Isto no se manifesta com um conceito de verdade plenamente alcanvel, mas com

    sucessivas aproximaes em sua busca. Para o autor (1976, p. 19), a destruio da

    pseudoconcreticidade significa que a verdade no nem inatingvel, nem alcanvel de uma vez

    para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza. Assim, pode-se dizer que a

    maior aproximao com a verdade depende do conhecimento sobre esse fenmeno, que est

    relacionado construo histrica do sujeito, influenciada por mltiplas relaes sociais e com a

    prpria construo do conhecimento.

    Kosik (1976) afirma que necessrio utilizar-se da conscincia de maneira dialtica, uma

    vez que conscincia reflexo e ao mesmo tempo projeo, registra e constri, toma nota e

    planeja, reflete e antecipa, ao mesmo tempo receptiva e ativa (1976, p. 26). Tem como

    pressuposto uma viso dialtica de mundo pelas pessoas considerada ampliada. A partir do

    conhecimento do velho possvel alcanar tal viso e atingir um conhecimento novo, em que a

    histria o ponto de partida para atingir este conhecimento e, desse modo, se alcanar a

    totalidade concreta. Esta totalidade concreta pode ser atingida ao obter-se o conhecimento da

    concreticidade do real, sempre acrescentando fatos novos dialeticamente. Esta realidade um

    todo dialtico que no compreende a realidade total, mas uma teoria da realidade em que o

    conhecimento humano permanentemente acumulado e processado no qual a concretizao se

  • 29

    realiza das unidades para o todo e do todo para as unidades. Nesse movimento, todo princpio

    abstrato e relativo. Com relao a isso, vale ressaltar que:

    O mtodo da ascenso do abstrato ao concreto o mtodo do pensamento, em

    outras palavras, um movimento que atua nos conceitos, no elemento da

    abstrao. A ascenso do abstrato ao concreto no uma passagem de um plano

    (sensvel) para outro plano (racional): um movimento no pensamento e do

    pensamento. Para que o pensamento possa progredir do abstrato ao concreto,

    tem de mover-se no seu prprio elemento, isto , no plano abstrato, que

    negao da imediatidade, da evidncia e da concreticidade sensvel. A ascenso

    do abstrato ao concreto um movimento para o qual todo incio abstrato e cuja

    dialtica consiste na superao dessa abstratividade. O progresso da

    abstratividade concreticidade , por conseguinte, em geral da parte para o todo

    e do todo para a parte; do fenmeno para a essncia e da essncia para o

    fenmeno; da totalidade para a contradio e da contradio para a totalidade, do

    objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto. (KOSIK, 1976, p. 30).

    Isto posto, entende-se que para conhecer uma realidade, desvendar sua essncia, perceber

    suas leis de movimento e funcionamento, o pesquisador faz uso da sua capacidade de abstrao e

    este recurso abstrao que torna possvel ao pensamento, ao pensamento humano, decompor o

    todo, uma vez que o real tal como se apresenta num primeiro momento tem um aspecto uno,

    direto. Faz-se necessrio decomp-lo, identificar suas unidades fundamentais, apontar o que

    secundrio para que, num segundo momento, compreendida a sua coerncia interna, ele seja

    novamente reconstitudo em outros moldes, em outro todo. Como afirma Kosik (1976, p. 14) [...]

    sem decomposio no h conhecimento e explicita ainda que [...] o conceito e a abstrao,

    em uma concepo dialtica, tem o significado de mtodo que decompe o todo para poder

    reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa e, portanto, a coisa. Em outras palavras pode-se

    afirmar que a mente humana precisa fazer uma anlise do objeto e separ-lo em partes porque o

    real no se d a conhecer de forma direta em todo o seu ser. Por esse motivo h a necessidade de

    se recorrer abstrao como um dos movimentos essenciais formulao do conceito, mas que

    no este o momento final do conhecimento.

    Para Kosik (1976), o processo de conhecimento parte do concreto imediato, da aparncia

    das coisas, passa pela abstrao (analisando e seccionando o todo) e chega novamente ao

    concreto, agora compreendido e recomposto em sua real ordem interna. Como Kosik explicita:

    Da vital, catica, imediata representao do todo, o pensamento chega aos

    conceitos, s abstratas determinaes conceituais, mediante cuja formao se

  • 30

    opera o retorno ao ponto de partida; desta vez , porm, no mais como ao vivo

    mas incompreendido todo da percepo imediata, mas ao conceito do todo

    ricamente articulado e compreendido. (KOSIK, 1976, p. 29).

    Isto posto, Pires (1997) revela que para se compreender o fenmeno h a necessidade

    lgica de descobrir nos fenmenos, a categoria mais simples (o emprico) para chegar categoria

    sntese de mltiplas determinaes (concreto pensado). Quanto mais abstraes (teoria) se puder

    pensar sobre a categoria simples, emprica, mais prximo se est da compreenso da realidade.

    O sujeito nessa perspectiva um ser social, que se torna produtivo por meio do

    desenvolvimento de suas atividades, pelas quais conhece o mundo e se relaciona dialeticamente

    com ele. Por tal razo, necessrio conhecer a realidade social do sujeito, o contexto em que est

    inserido e em que se do as relaes que estabelece para uma maior compreenso do todo. Ao

    conhecer a realidade do sujeito historicamente construdo, aproxima-se da compreenso do todo e

    afasta-se da pseudoconcreticidade, at a sua superao, sai-se da aparncia do fenmeno para se

    chegar a sua verdadeira objetividade (KOSIK, 1976).

    Em consonncia com essa afirmao, Silva (2009) esclarece que o problema do

    conhecimento est representado no marxismo na relao dialtica sujeito e objeto. O princpio

    da interao existente entre os eixos da relao cognitiva produzido no enquadramento da

    prtica social do sujeito, que captura e dialoga com o objeto na e pela sua atividade (SILVA,

    2009, p. 13) e acrescenta que o conhecimento diz respeito primeiro historicidade do sujeito e do

    objeto. Nesse sentido, a dialtica surge como uma tentativa de superao da dicotomia, da

    separao entre o sujeito e o objeto.

    Com base nesses pressupostos, pode-se dizer que o que se tenta fazer no percurso da

    pesquisa explicar o concreto e, para isto, necessrio transpor pela abstrao o concreto-dado

    para o pensamento, produzindo assim, o concreto-pensado, que na realidade o concreto dado,

    transposto para a mente humana. Feita essa transposio, preciso voltar novamente do concreto-

    pensado para o concreto-dado, uma vez que ambos devem estar em ntima relao, pois do

    contrrio, a pesquisa no teria sentido, na medida em que no conseguiria explicar a realidade,

    fim ltimo de qualquer pesquisa compromissada e livre (SILVA, 2009, p. 13).

    A pesquisa encontra no cotidiano, na prtica, o seu incio, seu ponto de partida. No

    entanto, necessrio que por meio desse ponto de partida desenvolvam-se determinaes e

    mediaes para que possam ser revelados os nexos constitutivos do objeto de estudo, para que os

  • 31

    sujeitos possam, por meio da unidade pensamento-reflexo, transformar a realidade e a si

    mesmos. A dialtica pressupe que as interpretaes feitas relativas ao mundo devem ser

    encaradas como passveis de modificaes e reconstrues, porque a interpretao prtica de

    transformar o mundo em que vivemos desencadeia ao mesmo tempo um processo de

    transformao social em um mundo de constantes e permanentes transformaes. Este processo

    o da autocrtica e da crtica realidade social.

    Neste processo investigativo ora apresentado, se busca compreender o fenmeno

    educativo ao descobrir suas mais simples manifestaes, para que ao analis-las e elaborar

    abstraes sobre elas, possa se aproximar cada vez mais da compreenso do fenmeno

    observado.

    Quanto dialtica Kosik (1976, p. 33) afirma que o mtodo da reproduo espiritual e

    intelectual da realidade, o mtodo do desenvolvimento e da explicitao dos fenmenos

    culturais partindo da atividade prtica objetiva do homem histrico. Nesta vertente, existe uma

    unicidade entre teoria e prtica, em outras palavras, entre o conhecimento e a ao. na unidade

    articuladora entre a ideia e a ao ou entre a teoria e a prtica que se efetiva a historicidade

    humana, concretizada no movimento de constituio da realidade social (ABRANTES;

    MARTINS, 2007, p. 315). Assim:

    A construo prxica do conhecimento nos remete, portanto, realidade

    histrica a se conhecer, visto que os indivduos se desenvolvem em relaes de

    apropriao da histria contida nos objetos produzidos pelo homem e nas

    relaes estabelecidas entre eles na base de tais produes. Mas para uma efetiva

    compreenso da dimenso prxica do homem, outro preceito deve ser levado em

    conta, qual seja, a unidade inicial existente entre sujeito e objeto do

    conhecimento. (ABRANTES; MARTINS, 2007, p. 315).

    Kosik (1976, p. 30) esclarece que o processo do abstrato ao concreto, como mtodo

    materialista da realidade, a dialtica da totalidade concreta, na qual se reproduz idealmente a

    realidade em todos os seus planos e dimenses. Por essa razo, para o pensamento dialtico h

    duas formas e dois graus de conhecimento da realidade e, por conseguinte, duas qualidades da

    prxis humana (KOSIK, 197, p.13). Uma delas est relacionada ao fato de que o conhecimento

    da realidade histrica um processo de apropriao terica, crtica porque implica interpretar e

    avaliar os fatos empricos, procurando superar as primeiras impresses, as representaes

    fenomnicas e chegar ao cerne de suas leis fundamentais. Feito pelo pesquisador o trabalho de

  • 32

    apropriao, organizao e exposio dos fatos, o resultado ser o conhecimento objetivo desses

    fatos, o concreto-pensado. Assim que, do processo dialtico de conhecimento da realidade

    que a transforma no plano do conhecimento e no plano histrico-social, resulta uma prxis crtica

    revolucionria da humanidade (BITENCOURT; GAMA, s.d, p. 7).

    O outro conhecimento o do senso comum, dado pela imediaticidade, resultado da

    atividade prtico-sensvel dentro de um determinado conjunto de relaes sociais e esse

    conjunto dos fenmenos marcado pela regularidade, imediatismo e evidncia que constitui o

    mundo da pseudoconcreticidade. Com isso,

    A prxis que advm deste a prxis fragmentria dos indivduos, baseada na

    diviso do trabalho, na diviso da sociedade em classes e na hierarquia de

    posies sociais que sobre ela se ergue e neste contexto historicamente

    determinada e unilateral, a prxis fetichizada dos homens. (KOSIK, 1976, p.

    14 15).

    nessa prxis fetichizada dos homens que se d o mundo da pseudoconcreticidade e

    Kosik (1976, p. 11) define o mundo da pseudoconcreticidade como um claro-escuro de verdade

    e engano e explicita que seu elemento prprio o duplo sentido, ou seja, o fenmeno indica a

    essncia, mas tambm a esconde. Esclarece ainda que embora a essncia se manifeste no

    fenmeno isso acontece s de modo inadequado, parcial, ou apenas sob certos ngulos e

    aspectos (KOSIK, 1976, p. 11).

    na tentativa de superar a pseudoconcreticidade que o processo de pesquisa deve ocorrer.

    A tentativa de ultrapassar o aparente em busca da essncia no esforo de tentar compreender essa

    realidade e poder tambm transform-la. Dessa forma, pode-se dizer que o caminho do

    conhecimento humano uma trajetria construda na busca da realidade, no rompimento da

    pseudoconcreticidade que nunca se esgota totalmente. Pelo fato do homem atuar no mundo nele

    realizar sua prxis , a realidade que se desvenda ao conhecer humano nunca est pronta e

    acabada, no existindo independentemente do homem (BREITBACH, 1988, p. 121). Nas

    palavras de Kosik (1976, p. 19) [...] o mundo da realidade o mundo da realizao da verdade,

    o mundo em que a verdade no dada e predestinada, no est pronta e acabada, impressa de

    forma imutvel na conscincia humana: o mundo em que a verdade devm.

    Nessa perspectiva o item a seguir, aborda a pesquisa com crianas e as suas implicaes

    na educao e destaca o conceito de criana e de infncia nos quais esse trabalho se apoia. Isto se

  • 33

    justifica por se tratar de uma pesquisa com e sobre as crianas e que traz em seu cerne formas de

    se pensar o trabalho pedaggico de formao leitora e escritora com crianas na Educao

    Infantil.

    1.2 A pesquisa com crianas

    A criana e a infncia tem sido alvo de muitas pesquisas em diferentes reas do

    conhecimento (ARIS, 1978; FARIA, 2009; LEONTIEV, 1988; MELLO, 2007; SARMENTO E

    PINTO, 1997; VYGOTSKI, 1995; entre outros). A presente pesquisa elege como tema o

    processo de insero da criana pequena na cultura escrita e o uso dos gneros discursivos na

    Educao Infantil, uma vez que objetiva pensar em prticas de leitura e de escrita nesse momento

    da escolaridade de modo que a criana estabelea relaes com o escrito, interaja com ele e pense

    nos diferentes modos de usar o escrito. Objetiva tambm desenvolver prticas de leitura e de

    escrita em que as crianas, no sendo ainda convencionalmente alfabetizadas, pensem sobre a

    lngua e sobre o seu funcionamento de forma dialgica e dinmica.

    A atitude adotada na pesquisa com as crianas e apresentada neste captulo a tentativa de

    ir alm das aparncias do fenmeno para aproximar-se da sua essncia (KOSIK, 1976), dado que

    essncia e aparncia so produzidas pelo mesmo complexo social (MARX, 1974).

    Assim, essa pesquisa se prope a pensar as crianas no como sujeitos passivos e

    descontextualizados em que somente so percebidas para se estabelecer comparaes, formando

    um conjunto de negativo que nada nos diz das peculiaridades positivas que diferenciam a

    criana do adulto (VYGOSTKI, 1995 apud MARTINS FILHO, 2009, p. 82), mas, ao contrrio,

    procura entender a criana como sujeito ativo em todo o processo de elaborao, reflexo, anlise

    e de possveis transformaes. Nesse contexto, o processo investigativo pretende conhecer as

    crianas e suas formas especficas de se relacionar com o mundo dos instrumentos culturais

    objetivos materiais como a leitura, a escrita, o uso dos objetos humanos, ou subjetivos

    imateriais como as relaes, as interaes, as conceitualizaes e os parceiros mais experientes.

    Isto posto, revela uma possibilidade de descartar prticas de pesquisa colonizadoras e

    adultocntricas em que so evidenciadas as disparidades de poder entre adultos e crianas e se

    considera a alteridade da infncia e os diferentes aspectos que a distinguem do outro - adulto.

  • 34

    Nessa perspectiva, h a necessidade de ultrapassar o discurso esmagador legitimado

    historicamente pela razo adultocntrica e que at recentemente alimentou as cincias humanas.

    Em outras palavras, pensar na possibilidade de ouvir as crianas, de perceb-las e de reconhec-

    las como atores competentes para falar de si prprios (BARBOSA; MARTINS FILHO, s.d., p.

    4). Desse modo, busca-se uma competncia cada vez maior no que se refere comunicao entre

    adultos e crianas, principalmente no que diz respeito aos procedimentos terico-metodolgicos

    utilizados em pesquisas.

    Sobre essa questo, Barbosa e Martins Filho (s.d., p. 3) esclarecem que ao contextualizar

    historicamente as teorias de metodologias de pesquisas com crianas, percebe-se que elas nunca

    foram consultadas, olhadas, ouvidas e muito menos consideradas. Segundo Qvortrup (1999), as

    crianas nunca foram estudadas por seu prprio mrito na histria da humanidade. Para a cincia

    teria que prevalecer a racionalidade adultocntrica, a qual descarta de certa forma, as

    manifestaes das crianas. Nesse contexto, o que seria indicado pelas crianas no teria

    cientificidade. Se hoje podemos criticar as metodologias tradicionais de pesquisas com/sobre

    crianas, muito ainda temos que construir e avanar para garantir a cientificidade do

    protagonismo infantil (MARTINS FILHO; BARBOSA,ns.d., p. 3). Nesse vis, preciso

    encontrar uma metodologia que ajude o pesquisador a no projetar o seu olhar sobre as crianas e

    colher delas somente aquilo que reflexo dos seus prprios preconceitos e representaes. Alm

    disso, h ainda o fato de que as metodologias tradicionais em cincias humanas e sociais

    acabaram por reproduzir os mesmos critrios e princpios a partir dos consagrados pelas cincias

    exatas (SARMENTO E PINTO, 1997 apud MARTINS FILHO; BARBOSA, s.d., p. 3).

    Ao reconhecer a participao ativa das crianas no processo de pesquisa, reconhecem-se

    tambm os padres ticos que envolvem essa participao. Em outras palavras, promover a

    participao das crianas nos processos que dizem respeito a elas, no pressupe responsabiliz-

    las por decises pertinentes a esses processos (SARMENTO E PINTO, 1997).

    Problematizar a dimenso do ensino e da aprendizagem da leitura e da escrita no tempo da

    infncia da criana pequena requer discutir o conceito de criana e de infncia assumidos nesta

    pesquisa. Isso exige pensar na criana concreta historicamente situada , com sua prpria

    biografia, carregada de significados e sentidos prprios do tempo e do espao em que vive, das

    relaes que trava, das expectativas a que submetida (BISSOLI, 2005, p. 60 61).

  • 35

    A criana de hoje com suas expectativas, necessidades e maneiras de perceber e atuar no

    mundo no a mesma criana de geraes anteriores. As novas geraes so constitudas por se

    apropriarem do legado deixado pelas geraes anteriores. Isso significa que as conquistas

    humanas historicamente acumuladas so a base sobre a qual as crianas se humanizam. As

    crianas se apropriam da cultura existente e produz como sujeitos novas manifestaes de

    humanidade. Nessa vertente, Mello (2007, p. 88) afirma que

    Esse conceito de que o ser humano aprende a ser o que como inteligncia ou

    personalidade, e de que a cultura e as relaes com os outros seres humanos

    constituem a fonte do desenvolvimento da conscincia revoluciona a

    compreenso do processo de conhecimento que tnhamos at agora. Com a

    Teoria Histrico-Cultural, aprendemos a perceber que cada criana aprende a ser

    um humano. O que a natureza lhe prov no nascimento condio necessria,

    mas no basta para mover seu desenvolvimento. preciso se apropriar da

    experincia humana criada e acumulada ao longo da histria da sociedade.

    Apenas na relao social com parceiros mais experientes, as novas geraes

    internalizam e se apropriam das funes psquicas tipicamente humanas da

    fala, do pensamento, do controle sobre a prpria vontade, da imaginao, da

    funo simblica da conscincia , e formam e desenvolvem sua inteligncia e

    sua personalidade.

    Nesse enfoque, a criana forte, competente e capaz de aprender. capaz de estabelecer

    relaes, de interagir, de atuar, de criar e de recriar, de ser sujeito de suas aprendizagens, de

    internalizar conhecimentos e atribuir sentido a eles por meio das relaes sociais de que participa

    e do lugar que ocupa nessas relaes e no mundo (LEONTIEV, 1988). Desse modo, a infncia

    o momento em que a criana entra na cultura humana e se apropria dela.

    Mas a infncia tal como se pensa nos dias atuais uma conquista recente dos ltimos

    duzentos anos da histria (RIES, 1978; MELLO, 2007). A ideia de infncia no existiu sempre

    e da mesma maneira. Essa ideia aparece com a sociedade capitalista urbano-industrial, na medida

    em que modificam a insero e o papel da criana na comunidade. Na sociedade feudal, a criana

    exercia um papel produtivo direto um papel de adulto assim que ultrapassava o perodo de

    alta mortalidade. Na sociedade burguesa a criana passa a ser algum que precisa ser cuidada,

    escolarizada e preparada para uma atuao futura. Este conceito de infncia determinado

    historicamente pela modificao nas formas de organizao da sociedade (KRAMER, 1982, p.

    18). A historicidade da infncia implica diferenas fundamentais entre as crianas que vivem em

    sociedades diversas, considerando que so as condies de vida e educao (LEONTIEV, 1978)

  • 36

    de cada espao e tempo os elementos responsveis pelo decurso do desenvolvimento das

    capacidades humanas (MUKHINA, 1996). A concepo de infncia quer significar que as

    crianas habitam, do cor, vida e movimento aos processos de sociabilidades e que pela

    interao com a coletividade modificam as rotinas sociais. Isto implica afirmar que as crianas

    no so apenas consumidoras de culturas, mas tambm re-produtoras ativas, sendo que o ato de

    produzir cultura no neutro e nem natural, mas criado nas e pelas relaes que so

    estabelecidas socialmente (MARTINS FILHO, 2011).

    A criana um sujeito social e por tal razo, na pesquisa, a relao entre adulto e criana

    no pode ser uma relao de submisso, mas de mediao, interao e negociao. Para negociar

    preciso construir formas de comunicao e participao com, para e das crianas (MARTINS

    FILHO; BARBOSA, s.d., p. 5).

    As pesquisas acabam muitas vezes subestimando e subutilizando as informaes captadas

    pelas vozes das crianas, ou em contraposio a isso, acabam superestimando as crianas, o que

    de certo modo isol-las do contexto real. No que se refere participao dos adultos e das

    crianas nas pesquisas, busca-se uma consonncia nessa relao porque se a criana ativa nesse

    processo, o adulto no ser passivo e o contrrio tambm ocorre, o que ajuda a identificar a

    posio dos sujeitos nas investigaes (MARTINS FILHO; BARBOSA, s.d. , p. 6). Essa

    consonncia na relao entre adulto e criana no processo de pesquisa permite sair do

    autoritarismo ou do espontanesmo muitas vezes presentes nas relaes pedaggicas e nas

    pesquisas.

    Essas proposies se direcionam para a necessidade de se buscar na pesquisa com as

    crianas um processo dialgico. O ser humano, a criana, deve entrar em contato com os

    fenmenos do mundo circundante por meio de outros homens, ou seja, num processo de

    comunicao com eles. Pela sua funo, esse processo , portanto, um processo de educao e

    produo cultural (VYGOTSKI, 1995). Ao assumir essa posio, pretende-se romper nesse

    trabalho de investigao com a ideia de infncia como objeto de constante regulao e controle,

    sendo necessrio, por isso, conhecer as especificidades dessa etapa da vida. Desta forma,

    perceber as crianas nas relaes que elas travam com o professor, com o conhecimento e com

    elas mesmas o que orientou todo o processo da pesquisa ora apresentada.

    Pode-se dizer que a criana sujeito social, produto e produtora da sua prpria histria,

    vivida e construda nas relaes com os adultos a sua volta (VYGOTSKI, 1995). Nesta

  • 37

    investigao considera-se a criana como um sujeito potencial competente para falar e informar

    aos outros sobre si mesma. Pretende-se assim estabelecer uma relao dialgica na tentativa de

    compreender a criana e as relaes que estabelece com o conhecimento no processo de insero

    na cultura escrita.

    O conceito de criana sob o olhar da Teoria Histrico-Cultural na qual essa pesquisa se

    fundamenta e o estudo e a discusso sobre o processo de apropriao e objetivao da leitura e

    escrita da criana desde a educao infantil foco desse trabalho no pretende deflagrar uma

    ideia de que possvel e desejvel acelerar o desenvolvimento psquico da criana em detrimento

    do encurtamento da infncia e submetendo-a a uma escolarizao precoce (ZAPHORZETS,

    1987; MELLO, 2007). Ao contrrio, pretende compreender a criana em suas relaes com o

    mundo respeitando as especificidades do seu desenvolvimento e poder contribuir com outras

    formas de se pensar o ensino e a aprendizagem da leitura e da escrita com as crianas na pequena

    infncia.

    Envolver as crianas mais diretamente nas pesquisas pode resgat-las do silncio e da

    excluso, e do fato de serem representadas implicitamente como objetos passivos (ALDERSON,

    apud MICHELLI, 2005).

    Segundo Sarmento (1997), os estudos da infncia, mesmo quando se concede s crianas

    o estatuto de atores sociais, tm, geralmente, negligenciado a auscultao das vozes e

    subestimado a capacidade de atribuio de sentido s suas aes e seus contextos. Por essa razo

    que se pode afirmar que a participao das crianas nas pesquisas no se limita aos aspectos

    exclusivamente da recolha de suas vozes, mas de querer compreender as suas expectativas e

    representaes de mundo. Essa recolha de vozes refere-se aos olhares, expresses, gestos, falas,

    atitudes, experincias e opinies das crianas que devem ultrapassar as formas de registros

    utilizados na pesquisa, tentando compreend-los em sua essncia.

    1.3 Metodologia de pesquisa: a pesquisa ao

    Para Vygotsky e para Bakhtin, ns nos tornamos ns mesmos por meio das relaes que

    estabelecemos com o outro. Ns existimos enquanto tal porque o outro nos completa e nos

    orienta. Nessa perspectiva, Bakhtin (1992) permite pensar que uma situao de pesquisa sempre

    um encontro entre sujeitos, um dilogo no qual pesquisador e pesquisado se re-significam. Desse

  • 38

    modo, a pesquisa passa da descrio e compreenso do que o outro apresenta, para um encontro

    maior que vai alm (FREITAS, 2002). O pesquisador aquele que vai ao encontro do outro, que

    interage com o outro de forma ativa colocando-se em seu lugar para perceber o que ele percebe,

    mas que volta em seguida ao seu prprio lugar. Ao fazer isso, ter uma real compreenso do

    outro promovendo uma resposta quilo que foi visto, dito e no dito. E essa resposta implica

    ajudar o outro a avanar, a sair do lugar (FREITAS, 2002).

    Posto isto, a pesquisa assume o compromisso de tentar compreender ativamente a

    realidade de forma que possibilite transformaes em seus participantes. Por tal razo, a

    metodologia adotada na realizao desta pesquisa caracterizada como uma pesquisa-ao. A

    pesquisa-ao um tipo de pesquisa participante engajada que procura unir a pesquisa ao ou

    prtica, em outras palavras, busca desenvolver o conhecimento e a compreenso como parte da

    prtica. Este tipo de pesquisa surgiu da necessidade de superar a lacuna entre teoria e prtica

    (ENGELS, 2000, p. 182).

    Nessa perspectiva pode-se definir a pesquisa-ao como um tipo de pesquisa social com

    base emprica que concebida e realizada em estreita associao com uma ao ou com uma

    resoluo de um problema coletivo (THIOLLENT, 2003, p.14). Para tanto, os pesquisadores e

    participantes representativos da situao ou do problema se encontram envolvidos de forma

    cooperativa ou participativa. A pesquisa-ao crtica considera a voz do sujeito, sua perspectiva,

    seu sentido, mas no meramente para registro e uma interpretao posterior do pesquisador. A

    voz do sujeito far parte da tessitura da metodologia da investigao (FRANCO, 2005, p. 486).

    Desse modo, a metodologia no se faz por meio das etapas de um mtodo, mas se organiza pelas

    situaes relevantes que emergem no processo. Com base nessas afirmaes, reconhece-se o

    carter formativo dessa modalidade de pesquisa, uma vez que o sujeito deve tomar conscincia

    das transformaes que ocorrem em si prprio e no processo. tambm nesse sentido que este

    tipo de pesquisa assume o carter emancipatrio, pois mediante a participao consciente, os

    sujeitos da pesquisa passam a ter a oportunidade de se libertar de mitos e preconceitos que

    organizam suas defesas mudana e reorganizam a sua autoconcepo de sujeitos histricos

    (FRANCO, 2005, p. 486).

    Os pressupostos epistemolgicos da pesquisa-ao caminham na direo de uma

    perspectiva dialtica e consideram como fundamentais a priorizao da dialtica da realidade

    social, da historicidade dos fenmenos, da prxis, das contradies, das relaes com a

  • 39

    totalidade, da ao dos sujeitos sobre suas circunstncias (FRANCO, 2005, p. 490). Neste caso, a

    prxis deve ser concebida como mediao bsica na construo do conhecimento, uma vez que

    por meio dela se veicula teoria e prtica, pensar e agir, pesquisar e formar. Nestas condies no

    h como separar sujeito que conhece do objeto a ser conhecido, e o conhecimento no se limita

    mera descrio, mas parte do observvel (aparncia) e o ultrapassa na tentativa de compreend-lo

    e explic-lo (essncia) em busca da destruio da pseudoconcreticidade (KOSIK, 1976). Por esse

    motivo, a interpretao dos dados s pode ocorrer num contexto determinado e concreto e o saber

    produzido necessariamente transformador dos sujeitos e das circunstncias (FRANCO, 2005, p.

    490).

    Esses pressupostos se coadunam com a concepo de pesquisa apresentada neste trabalho

    como um processo de formao e de emancipao do sujeito e por tal razo, opto pela pesquisa-

    ao para a realizao desta pesquisa.

    A escolha por esse tipo de pesquisa tambm se justifica diante das minhas experincias

    como professora na Educao Infantil e por perceber nesse segmento da educao, prticas que

    denotam uma preocupao com a alfabetizao precoce das crianas apoiada na codificao e

    decodificao de sinais grficos. Tais prticas descartam a possibilidade de iniciar o processo de

    insero da criana na cultura escrita nessa etapa da vida levando em considerao as

    especificidades do desenvolvimento humano e garantindo vivncias que possam contribuir para

    que as crianas se tornem leitoras e re-criadoras de textos. Outro elemento relevante se d pelo

    fato de que h a predominncia de alguns poucos gneros discursivos em geral contos

    narrativos no trabalho pedaggico com as crianas na Educao Infantil limitando por vezes as

    possibilidades no ensino da lngua. Este fato pode ser constatado durante a minha pesquisa de

    mestrado, quando as crianas participantes da pesquisa demonstraram desconhecer alguns

    gneros discursivos como as histrias em quadrinhos gnero discursivo utilizado na realizao

    da pesquisa com o intuito de investigar como ocorre a formao leitora das crianas na Educao

    Infantil.

    1.3.1 Gerao, coleta e anlise dos dados

    Neste trabalho que ora apresento, realizei atividades prprias da pesquisa-ao e, como

    pesquisadora e sujeito desta pesquisa, provoquei o aparecimento de dados por meio de aes

  • 40

    planejadas intencionalmente com o objetivo de criar necessidades de leitura e de escrita nas

    crianas participantes da pesquisa. Para gerar os dados foi realizado um trabalho pedaggico

    intencionalmente planejado no contexto das tcnicas Freinet, as quais abarcam diferentes gneros

    discursivos. necessrio ressaltar que na pesquisa as tcnicas Freinet no foram realizadas

    integralmente, mas foram adaptadas, uma vez que a turma de alunos faz parte de uma estrutura

    global maior uma unidade escolar que no apresenta como proposta de trabalho a Pedagogia

    Freinet. Essa perspectiva de trabalho com as tcnicas da Pedagogia Freinet faz parte da minha

    prtica pedaggica como professora e dos estudos desse autor como pesquisadora da infncia e

    dos processos de ensino e de aprendizagem da lngua. Todo o processo de gerao dos dados

    relacionados ao trabalho pedaggico com as tcnicas Freinet ser abordado detalhadamente no

    item 1.4 deste captulo em que ser exposta a metodologia do trabalho docente.

    Inicialmente, para compreender a situao em que se encontram os sujeitos, verifiquei

    como o ensino da leitura e da escrita e dos gneros discursivos foram abordados com as crianas

    participantes desde que ingressaram na unidade escolar de Educao Infantil. As crianas fazem

    parte de uma turma de Infantil II, que corresponde ao ltimo ano da Educao Infantil no

    municpio de Marlia SP. Para tanto, tive contato direto com os sujeitos na turma em que

    ministrava aulas e fiz as primeiras observaes em situaes de leitura e de escrita. Realizei um

    levantamento e estudo da bibliografia referente ao problema da pesquisa estado da arte e

    iniciei a etapa da coleta de dados.

    Para a coleta de dados utilizei a entrevista com as professoras e com as crianas e a

    observao. Entrevistei as quatro professoras dessa turma de Infantil II (crianas entre cinco e

    seis anos) dos anos anteriores ao ano da realizao da pesquisa, desde quando as ingressaram na

    unidade escolar, portanto, as professoras dessa mesma turma no Berrio (quando os sujeitos

    tinham entre 1 ano seis meses a dois anos), Maternal I (quando os sujeitos tinham entre dois e trs

    anos), Maternal II (quando os sujeitos tinham entre trs e quatro anos) e Infantil I (quando os

    sujeitos tinham entre quatro e cinco anos). A entrevista com as professoras objetivou verificar

    seus conceitos de leitura e escrita, seus conceitos sobre a insero da criana pequena na cultura

    escrita e sobre o trabalho com os gneros discursivos na Educao Infantil, e tentar perceber

    como essas prticas influenciaram a formao leitora e re-criadora de textos das crianas por

    meio dos gneros discursivos.

  • 41

    Prestei as devidas informaes s professoras participantes quanto aos objetivos da

    pesquisa, o livre arbtrio para participar ou no, ao uso dos dados coletados e o acesso aos

    resultados. Esse mesmo procedimento de esclarecimento de participao de consentimento livre e

    esclarecido foi feito com pais e/ou responsveis dos sujeitos crianas.

    Duas das professoras foram entrevistadas no perodo contrrio ao seu perodo de trabalho

    na prpria escola para que no houvesse nenhum prejuzo com relao s suas aulas ou

    comprometimento quanto ao trabalho com seus alunos. E as outras duas professoras foram

    entrevistadas numa tarde aps o trmino de uma reunio pedaggica da escola. Nesse dia de

    reunio pedaggica, realizada em toda rede municipal da cidade de Marlia SP, somente a

    direo, coordenao, professores e funcionrios comparecem unidade escolar, no havendo

    aula para as crianas, e assim, as entrevistas se realizaram sem intercorrncias, em salas de aulas

    desocupadas nas ocasies dadas, mas houve rudos de fundo em alguns momentos.

    Com o objetivo de compreender mais detalhadamente o processo de insero da criana

    pequena na cultura escrita e de compreender como a criana se apropria da leitura e da escrita por

    meio dos gneros discursivos, realizei entrevistas com as crianas em dois momentos do trabalho

    pedaggico: no incio da pesquisa, no ms de maio de 2010 e no final do ano letivo, no ms de

    dezembro de 2010, momento do trmino do trabalho pedaggico com as crianas concernente

    leitura e escrita dos gneros discursivos abordados nesta pesquisa carta, relatos de vida por

    meio do livro da vida e a notcia de jornal. Ao entrevistar as crianas, verifiquei quais as ideias e

    conceitos sobre leitura e escrita possuam, como lidavam com a leitura e a escrita, de que forma a

    leitura e a escrita eram usadas em diferentes situaes na escola, quais os gneros discursivos que

    conheciam e as informaes que tinham sobre eles. A deciso de entrevistar as crianas em dois

    momentos foi com o objetivo de coletar o mximo de informaes e de analisar e avaliar as

    variaes das respostas em diferentes situaes. Com esse pro