o jornalista como narrador das histórias do cotidiano: uma ...sobre as quatro estações de iracema...

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 1º a 10/12/2020 1 O jornalista como narrador das histórias do cotidiano: uma análise das reportagens As quatro estações de Iracema e Dirceue Sozinhas, de Ângela Bastos 12 Vitória Marques BITTENCOURT 3 Luiz Henrique ZART 4 Carlos Eduardo CANANI 5 Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), Lages/SC RESUMO A pesquisa constrói um referencial teórico sobre o jornalista enquanto narrador das histórias do cotidiano, um intermediário entre os acontecimentos e o público para analisar as reportagens As quatro estações de Iracema e Dirceu e Sozinhas, produzidas pela repórter Ângela Bastos e publicadas pelo jornal Diário Catarinense, sob três aspectos: Primeiro, ao considerar dez critérios que procuram definir o Jornalismo Literário (LIMA, 2004; 2014); depois, ao trazer trechos das reportagens observadas; e, por fim, interpretando uma entrevista com a autora. Nota-se um relato próximo, intimista, detalhado e profundo, a partir do qual se pode refletir sobre a forma com que o repórter desempenha suas intervenções, mediações e ações na construção da reportagem, com potencial de contar histórias. PALAVRAS-CHAVE: Narrativa do cotidiano. Jornalismo Literário. Reportagem em Jornalismo Impresso. Ângela Bastos. Diário Catarinense. INTRODUÇÃO De que é composto o cotidiano? De singularidades, particularidades, detalhes. É a partir deste sentido que se constrói um quebra-cabeça de experiências, de vivências e de histórias e, se o jornalismo envolve realmente travar uma luta pela conquista de corações e mentes, o jornalismo está em contato com os acontecimentos que abastecem o dia a dia de sentido. A esta pesquisa, portanto, interessa observar a apresentação da reportagem com recursos estilísticos e de redação vindos do jornalismo literário, entendendo o jornalista como um contador de histórias (BORGES, 2013). Além de narrar o cotidiano, o faz contando histórias. É um retratador do dia a dia, um cronista do real. Ao oferecer sentido e trançar sentidos da realidade, o jornalista 1 Trabalho apresentado no IJ01 Jornalismo, da Intercom Júnior XVI Jornada de Iniciação Científica em Comunicação, evento componente do 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação 2 Recorte adaptado do Trabalho de Conclusão de Curso da autora, defendido em dezembro de 2019. 3 Graduada em Jornalismo pela Uniplac, e-mail: [email protected] 4 Orientador do trabalho; professor do curso de Jornalismo da Uniplac. Jornalista pela Uniplac, Especialista em Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Araraquara (UNIARA), e-mail: [email protected] 5 Mestre em Educação, Licenciado em Letras, Professor de Língua Portuguesa e Coordenador do Curso de Letras da Universidade do Planalto Catarinense - Uniplac.

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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 1º a 10/12/2020

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O jornalista como narrador das histórias do cotidiano: uma análise das

reportagens “As quatro estações de Iracema e Dirceu” e “Sozinhas”, de Ângela

Bastos12

Vitória Marques BITTENCOURT3

Luiz Henrique ZART4

Carlos Eduardo CANANI5

Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), Lages/SC

RESUMO

A pesquisa constrói um referencial teórico sobre o jornalista enquanto narrador das

histórias do cotidiano, um intermediário entre os acontecimentos e o público para

analisar as reportagens As quatro estações de Iracema e Dirceu e Sozinhas, produzidas

pela repórter Ângela Bastos e publicadas pelo jornal Diário Catarinense, sob três

aspectos: Primeiro, ao considerar dez critérios que procuram definir o Jornalismo

Literário (LIMA, 2004; 2014); depois, ao trazer trechos das reportagens observadas; e,

por fim, interpretando uma entrevista com a autora. Nota-se um relato próximo,

intimista, detalhado e profundo, a partir do qual se pode refletir sobre a forma com que

o repórter desempenha suas intervenções, mediações e ações na construção da

reportagem, com potencial de contar histórias.

PALAVRAS-CHAVE: Narrativa do cotidiano. Jornalismo Literário. Reportagem em

Jornalismo Impresso. Ângela Bastos. Diário Catarinense.

INTRODUÇÃO

De que é composto o cotidiano? De singularidades, particularidades, detalhes. É

a partir deste sentido que se constrói um quebra-cabeça de experiências, de vivências e

de histórias e, se o jornalismo envolve realmente travar uma luta pela conquista de

corações e mentes, o jornalismo está em contato com os acontecimentos que abastecem

o dia a dia de sentido. A esta pesquisa, portanto, interessa observar a apresentação da

reportagem com recursos estilísticos e de redação vindos do jornalismo literário,

entendendo o jornalista como um contador de histórias (BORGES, 2013).

Além de narrar o cotidiano, o faz contando histórias. É um retratador do dia a

dia, um cronista do real. Ao oferecer sentido e trançar sentidos da realidade, o jornalista

1 Trabalho apresentado no IJ01 – Jornalismo, da Intercom Júnior – XVI Jornada de Iniciação Científica em

Comunicação, evento componente do 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação 2 Recorte adaptado do Trabalho de Conclusão de Curso da autora, defendido em dezembro de 2019. 3 Graduada em Jornalismo pela Uniplac, e-mail: [email protected] 4 Orientador do trabalho; professor do curso de Jornalismo da Uniplac. Jornalista pela Uniplac, Especialista em

Comunicação e Jornalismo pela Universidade de Araraquara (UNIARA), e-mail: [email protected] 5 Mestre em Educação, Licenciado em Letras, Professor de Língua Portuguesa e Coordenador do Curso

de Letras da Universidade do Planalto Catarinense - Uniplac.

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deve ter uma série de características. O jornalista é um mediador ao representar a

possiblidade de retratar um “conjunto de ‘estórias’, ‘estórias’ da vida, ‘estórias’ das

estrelas, ‘estórias’ de triunfo e tragédia” (TRAQUINA, 2012, p. 21). Histórias que,

soltas pelos dias, precisam de alguém que as capte, que as transforme em algo relatável

e seja uma espécie de tradutor que explique, analise, aprofunde, narre. Vicchiatti (2005,

p. 12) descreve que “o jornalista pós-moderno precisa pensar sua função de

instrumento-leitor da realidade em bases amplificadas, sintonizadas no ser humano”, ou

seja, precisa fazer parte da notícia em sintonia com os referidos leitores que o cercam.

ASPECTOS METODOLÓGICOS

Portanto, importa desenvolver uma análise descritiva das duas reportagens

estudadas a partir de pequenos trechos e da percepção da própria jornalista, Ângela

Bastos, por meio de uma entrevista. Cabe notar a atuação do jornalista além da

compreensão do profissional da notícia: sobretudo, um intermediário, um mediador

entre os acontecimentos e o público, com instrumentos narrativos e recursos específicos

para construir e relatar a história – de personagens, de pessoas, da sociedade como um

todo, e de toda a complexidade que a envolve, em certos casos enriquecendo a narrativa

da reportagem jornalística com recursos literários (PENA, 2013).

A análise à qual se dedica este estudo parte de dez critérios para definir o

jornalismo literário abordados por Lima (2014). Importa analisar duas séries de

reportagens publicadas pelo jornal Diário Catarinense, As quatro estações de Iracema e

Dirceu, que aborda a situação de extrema pobreza no estado de Santa Catarina ao longo

das estações do ano para a família do casal; e Sozinhas, que trata das condições de

vítimas de violência contra a mulher em um contexto específico: o interior catarinense.

Destaca-se a figura da profissional como observadora das situações que a levaram a

produzir um relato próximo, intimista, detalhado e profundo de uma realidade à qual o

jornalismo cotidiano, distante da reportagem, geralmente deixa passar despercebida.

Parte-se, a partir da entrevista, da compreensão de que as reportagens constroem

uma narrativa jornalística-literária de acordo com as definições de Lima (2004), quais

sejam, de forma resumida: exatidão e precisão; capacidade de contar uma história;

humanização; compreensão e detalhamento; universalização temática (pelo aspecto

humano); estilo próprio/voz autoral; imersão; carga de simbolismo; criatividade;

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responsabilidade ética na composição do discurso. Unindo as perspectivas, há, portanto,

três pontos-chave: elementos do jornalismo literário, especialmente da perspectiva de

Lima (2004; 2014), o olhar da repórter sobre as produções e trechos das reportagens

para ilustrar e identificar onde estas características podem ser encontradas.

Para que fosse possível compreender de que forma as reportagens veiculadas no

Diário Catarinense6 (DC) foram construídas, em alguns de seus aspectos, esta pesquisa

buscou a repórter responsável pelas produções: Ângela Bastos. Entendendo as

características expostas ao longo deste estudo, a conversa com a jornalista partiu de 12

perguntas, com a intenção de contextualizar a análise do material e pontuar outros

assuntos relevantes. O contato, ressalte-se, por escolha da própria entrevistada,

aconteceu por meio de mensagens de áudio via WhatsApp, trocadas entre os dias 10 e 14

de outubro de 2019. Fato curioso: à época da entrevista, a jornalista estava prestes a

embarcar para Moçambique, África. Assim, a prática de um jornalismo ético,

responsável e de qualidade, de acordo com o que descreve, permite uma observação

entre Ângela, repórter “de hoje e de amanhã”, um dos questionamentos feitos à

entrevistada. Ela indica que é uma pergunta recorrente: “no sentido de se eu ainda tenho

a mesma emoção, o mesmo frio na barriga, a mesma expectativa. Quando eu vou para

algum tipo de cobertura assim, se ainda sinto isso: eu digo que sim, que eu sinto isso”.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Deste ponto de vista, para o desenvolvimento da reflexão empreendida por este

estudo foram escolhidas duas reportagens7 de autoria da jornalista Ângela Bastos

através do critério de impacto e audiência e retratam o cotidiano, tema principal desta

pesquisa acadêmica. Publicadas Diário Catarinense, foram apresentadas em formato de

caderno especial em edições de final de semana. A primeira, As quatro estações de

Iracema e Dirceu, foi veiculada em 21 de junho de 2015, com 24 páginas. Por sua vez,

Sozinhas: Histórias de mulheres que sofrem violência no campo foi publicada na edição

do DC dos dias 1º e 2 de julho de 2017, com 16 páginas.

6 Vale ressaltar que, durante o desenvolvimento desta pesquisa, a partir de 28 de outubro, as edições

impressas do Diário Catarinense, ao lado de A Notícia (AN) e Jornal de Santa Catarina (Santa),

deixaram de circular diariamente e passaram a ser semanais – com o conteúdo diário sendo direcionado

exclusivamente ao portal NSC Total. A medida foi anunciada pela NSC por meio de nota, divulgada em

16 de outubro (Disponível em: <https://www.nsccomunicacao.com.br/imprensa/nsc-amplia-forca-no-

digital-e%E2%80%AFreformula%E2%80%AFedicao-impressa/>. Acesso em: 16 nov. 2019. 7 Ambas as reportagens estavam na íntegra nos originais do trabalho.

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SOBRE O FRIO NA BARRIGA: O SURGIMENTO DAS REPORTAGENS

Ângela ressalta que as duas reportagens surgem do interesse pelo humano, da

identificação com as pessoas. Sobre As quatro estações de Iracema e Dirceu, ela conta

que, à ocasião da visita do então Governador de Santa Catarina, Raimundo Colombo,

em um pacto feito entre os estados e o Governo Federal – durante os dois mandatos do

ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o primeiro da ex-presidenta Dilma Rousseff –,

com o compromisso da erradicação da pobreza. Desta colocação, há que se considerar

que as reportagens escolhidas para este estudo possuem um fundamento de relevância

social e retratam o cotidiano da sociedade, pois a própria autora escreve que tem o

intuito de realizar chamadas importantes ao seu público com o objetivo de sensibilizar à

ajuda mútua, assim como o respeito e a dignidade a pessoa humana. E, continua a

descrever sobre suas reportagens:

os governadores foram chamados a assinar um pacto pela erradicação

da miséria no Brasil, e o Ipea [Instituto de Pesquisa Econômica

Aplicada] fez uma pesquisa que apontava Santa Catarina como um

dos estados onde havia menos gente na condição de extrema pobreza.

Isso significava que: naquela época, se não me falha a memória, eram

pessoas que viviam com 70 reais per capita – ou seja, a pessoa tinha

70 reais para viver todo o mês: se alimentar, comprar remédio, se

vestir, andar, de alguma forma, pagando por um transporte.

Um fato, contudo, chamou a atenção de Ângela enquanto pessoa e repórter: Em

um recorte específico desse quadro, notou que, apesar de tudo, Santa Catarina, por ser o

estado brasileiro com menos gente nesta condição, poderia ser o primeiro a acabar com

a miséria em suas terras. Das palavras do governador, atestando esta possibilidade, a

redação do jornal percebe uma pauta a ser aprofundada. A princípio, o anseio não

passava de uma projeção, de expectativa. Então, coube à Ângela, de acordo com os

editores do jornal, colocar “um pouquinho a tua cabeça aí a pensar, a funcionar, e ver

de que forma a gente pode acompanhar pessoas nessa condição”.

Foi a partir de um pensamento articulado, que Ângela observou o contexto, o

entorno e as relações entre a entrevista concedida pelo governador para que pensasse no

princípio da estratégia para a redação das reportagens – com base em políticas públicas

que, em vista do território do estado, apontam a uma realidade que estava, de certa

forma, encoberta. A repórter, desta forma, direciona olhares a um retrato social nem

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sempre destacado. Ela lembra um pouco de como foi o processo de escolha do tema até

a decisão de produzir um material sobre o tema:

eu elaborei um projeto, que envolvia pegar os cinco municípios de

Santa Catarina que tinham mais gente nessa condição, ir a esses

locais, conversar com algumas pessoas e ver – dentro desse universo

de municípios com maior número de pessoas nessa condição de

extrema pobreza – como eu poderia acompanhar, para ver se

terminado aquele período, que seria o fim do governo, se realmente a

gente acaba com a miséria. Então, quando surge essa ideia, a redação,

um editor pensou: - Acho que a Ângela pode desenvolver alguma

coisa para nós, para ver se isso vai se tornar realidade.

A reportagem traz à tona números alarmantes sobre extrema pobreza em Santa

Catarina. Já no início da reportagem, introduz o assunto e ratifica a importância de

discutir tal assunto. Como os temas fazem parte da realidade cotidiana, como podemos

observar, na segunda reportagem Ângela se preocupa com a questão da violência contra

a mulher. O enfoque, no entanto, é diferenciado. Volta as atenções ao estado em que os

índices de constrangimentos e agressões à mulher evidenciam a preocupação constante.

Desta maneira, em relação à segunda reportagem, Sozinhas, que retrata a violência

contra as mulheres do campo, que geralmente não têm amparo nem do Estado nem de

pessoas próximas, Ângela descreve que a pauta nasceu de sua observação:

foi uma pauta que surgiu, minha. Eu comecei a perceber que a gente

estava dando muitas matérias isoladas sobre violência contra a mulher,

especialmente feminicídios, que ocorriam nos principais municípios,

na área rural. Só que a gente estava dando assim: acontecia um

feminicídio, a gente ia lá e fazia a matéria. E eu percebi pelas matérias

que a gente estava publicando – e outros veículos também, não só nós,

mas jornais, inclusive do interior, sites de cidades do interior – que as

pessoas, os familiares das vítimas, diziam que não era a primeira vez.

Que o assassinato, no caso, tinha sido a última coisa. Porque antes

disso já tinha havido discussão, havia briga, agressão física,

psicológica... Então, eu pensei assim: - poxa, isso está sendo a ponta

do iceberg. O que tem por baixo disso aqui?

Na sequência, a repórter aponta o contexto que envolvia a reportagem:

aí então eu montei uma pauta para tentar ver onde eram os locais que

tinham maior incidência dessa violência contra a mulher, maior

número e maiores estatísticas, e como isso ocorria. Aí foi a minha

grande dificuldade inicial. Porque a violência contra a mulher no

campo estava muito na invisibilidade mesmo, e isso a matéria mostra

depois. Porque são mulheres que vivem isoladas, mulheres que não

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tem vizinhos por perto, são mulheres que não costumam receber

muitas visitas. Fica mais difícil de alguém contar, de emitir uma

denúncia. Muitas vezes não tinha delegacia de polícia na cidade;

muitas vezes as pessoas até podiam saber, mas, no campo a relação, o

convívio, são bastante diferentes das relações urbanas. As pessoas

vivem mais em processo de isolamento. Então, é isso que me chamou

a atenção nesse caso.

Ao mesmo tempo em que compreende a realidade complexa à qual as mulheres

que sofrem violência estavam envolvidas, Ângela transporta o leitor ao contexto. Dá a

dimensão do fato, mas também descreve o ambiente, faz relações entre a invisibilidade

que as assola, e oferece a possibilidade de relacionar o conteúdo ao acontecimento - de

maneira contextual, humanizada e descritiva, conforme aponta Lima (2004; 2014).

Neste sentido, a reportagem também configura um estilo próprio/voz autoral, quando a

autora se utiliza do que aponta Lima, da criatividade e da responsabilidade ética na

composição de um discurso que exige delicadeza e sensibilidade.

Figura 1: A reportagem faz uma alusão ao característico nevoeiro de inverno,

ressaltando a dificuldade de perceber a real situação das mulheres do campo

Fonte: Bastos (2017, p. 2).

O retrato da realidade de violência contra as mulheres, sem a mínima chance de

recomeço, é tema da segunda reportagem da análise. O cotidiano vivenciado e narrado

da forma mais realista possível atribui valor informativo à narrativa traçada pela

repórter. Mas além disso, a proposta de usar recursos do jornalismo literário é diferente

da factual: busca o pormenor, o minucioso, não-dito. Assim, quando questionada sobre

a forma pela qual jornalismo e literatura podem ultrapassar os limites um do outro,

Ângela foi objetiva: para ela, o contato entre os dois universos parece intrínseco:

“Moacir Sclyar falava dessa irmandade. Eu acho que o jornalismo difere da literatura

num aspecto: a literatura pode ser fictícia; o jornalismo não, ele tem que ser real”.

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Ângela argumenta que as pessoas tendem a achar uma proposta semelhante à

outra especialmente porque o jornalismo factual parte de preceitos objetivos, factuais,

com começo, meio e fim, sem oferecer o aspecto humanizado do material que se

apresenta. Pelo contrário, quando existe a possibilidade de um conteúdo mais detalhista,

há mesmo a chance de variar elementos descritivos, dentre os quais o vocabulário: “há

uma possibilidade de você usar algumas palavras que não são usadas, que não são

tanto do nosso vocabulário, e isso, talvez, faça essa correlação”, aponta.

eu penso que o que difere a literatura e o jornalismo é isso: é a ficção.

Uma reportagem tem um fim, enquanto que um texto necessariamente

não precisa de um ponto final. Assim, isso acho que varia muito de

leitor para leitor: alguém pode achar que As quatro estações de

Iracema e Dirceu não tem fim. Pode ser que não tenha. Mas aí vai

muito da forma subjetiva como cada um encontra um personagem. Eu,

quando fiz As quatro estações de Iracema e Dirceu, para mim era um

texto jornalístico. Claro que havia a possibilidade de usar títulos numa

pegada mais “arrevistada”, que não é o comum do jornalismo, que não

é aquilo que se faz no dia a dia, especialmente.

Se para Ângela a diferença entre Literatura e Jornalismo é somente a ficção.

Suas reportagens em diversos momentos apesentam elementos literários. A exemplo dos

títulos. Mais rebuscados, eles instigam a curiosidade do leitor, como no caso de “um

pomar de filhos”, em uma figura de linguagem que carrega informação e sensibilidade.

As reportagens aqui observadas evidenciam a participação do “ser jornalista” no

processo de produção do conteúdo jornalístico: é perceptível o posicionamento da

autora em relação às transformações das grandes reportagens, necessárias à função do

jornalista. Ângela se posiciona como repórter, ou, conforme relata, fica nesta condição.

Observa o fato de que alguns jornalistas podem seguir o rumo da literatura, em especial

quando recorrem à transformação de grandes reportagens em livros – sem o mesmo

rigor da apuração jornalística. Para ela, deste ponto de vista, entre jornalismo e

literatura, há “questões um pouco diferentes ainda, o que é bom”.

Em resumo: “repórter tem que reportar”. A discussão adentra a utilização de

termos: jornalista? Repórter? Ângela decide: jornalista é quem estudou jornalismo, e o

repórter está na função do “ser jornalista”. Por isso, ela se diz “jornalista por profissão e

repórter por opção”. Se, para a entrevistada, repórter tem que reportar, há um sentido.

Em um exercício de alteridade, o repórter se posiciona como alguém disposto a ouvir

histórias para então contá-las. O processo de empatia é descrito por Ângela a partir das

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vivências que teve na produção de As quatro estações de Iracema e Dirceu:

porque a reportagem é o meu cenário, é o meu palco. É aqui onde eu

vou lá e faço aquilo que eu mais gosto, aquilo que eu mais amo, aquilo

pelo qual eu sou apaixonada por fazer jornalismo: ouvir pessoas,

contar histórias. O jornalismo, para mim, é isso: é contar histórias.

Quem conheceria a vida de Iracema e Dirceu, que se iguala à vida de

tantas outras pessoas e, ao mesmo tempo é única – porque você

encontrar um pai que faz o parto da sua mulher, 13 filhos; faz o parto,

corta o cordão umbilical, enterra embaixo de uma árvore, e ao ser

perguntado: “Por que você enterrou o umbigo dos seus filhos perto de

uma árvore, Dirceu?”. “Porque eu quero que eles cresçam como

árvores e deem frutos”. Então, é único, isso é meio poético, até. Mas

eu obtive isso da fala do Dirceu.

A forma rica de detalhes com que a repórter utiliza para descrever o dia a dia da

família de Dirceu permite que o leitor consiga se colocar no lugar dos personagens,

mesmo que muitos deles vivam em uma realidade completamente diferente. É o olhar

da repórter traduzindo uma cena ao ponto de conseguir transportar o leitor para o local.

Neste momento, são identificadas as características de exatidão dos relatos e da

construção feita, e a precisão na descrição dos cenários, refletidas por Lima (2004).

Figura 2: A forma com que a repórter constrói a narrativa dá a ideia clara de como vive

a família Canofre de Campos

Fonte: Bastos (2015, p. 8).

Enquanto a reportagem se caracteriza como o cenário, nas palavras de Ângela

Bastos, há uma condição diferenciada no ato de reportar, uma vez que “mais do que ser

jornalista, é ser repórter”. Prossegue, alimentando a vontade de produzir a partir de uma

metáfora: “Eu quero ir lá e trazer o meu produto. Eu quero ver minha farinha, quero

misturar minha farinha com a água, com meu fermento, e ver o pão crescer. E depois

distribuir esse pão”. Bastos lembra, inclusive, que a figura do repórter tem sofrido

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mudanças com o tempo, como toda a prática jornalística: “para mim, funciona assim: a

plenitude de ser jornalista é ser repórter. E é, sobretudo, continuar sendo repórter.

Porque o tempo passa, as pessoas vão envelhecendo, vão entrando outras tecnologias”,

diz. Com esta reflexão, ela entende ser importante se atualizar – como fez ao buscar

cursos de vídeo –, mas sem abandonar as raízes da profissão.

NARRADOR, ENREDO, PERSONAGENS, TEMPO E FUNÇÃO SOCIAL

Em jornalismo, especialmente nos discursos literários, há formas diferentes de

tratar o papel do narrador. Em propostas, como o jornalismo gonzo8 (PENA, 2013), o

repórter precisa mergulhar no fato, interferir, participar, para que dê a dimensão do real

ao público, em uma postura bem mais arrojada e invasiva. Por outro lado, há também a

posição de “escutador”, aquele que entra em contato com os acontecimentos e seus

personagens de maneira mais suave, como um observador, a fim de relatar a partir do

que vê, toca, sente, cheira, entre tantas outras possibilidades.

Ângela distancia-se do estritamente factual, dando atenção aos pormenores, ao

aprofundamento, à história atemporal, não perecível (VICCHIATTI, 2005). De certa

forma, a princípio, a autora objeto de nossa observação não pensa ser uma narradora

participativa, já que se encaixaria em uma modalidade descritiva. Nas suas palavras, se

deixa “conduzir pela realidade das pessoas. Eu apareço pouco como repórter, eu acho. É

porque elas me contam. Se em algum momento eu apareço, é numa narrativa que me foi

feita”. Neste sentido, Ângela não se coloca como protagonista, não tem a intenção de

estar lá, mas pretende viver para contar, em uma analogia pertinente, lembrando a obra

de Gabriel García Márquez. Ângela não “se vê” na reportagem; tem outra estratégia:

procuro ouvir [...], interferir muito pouco. [...] uso pouco o gravador.

Procuro prestar muita atenção naquilo que a pessoa está me dizendo,

para poder depois fazer um relato o mais próximo possível da sua

narrativa. Eu procuro observar muito, sentir os cheiros, os cheiros da

casa, os cheiros do mar, os cheiros da chácara, da lavoura, observar

bem como é que essa pessoa está vestida... [...] Porque tudo isso me

ajuda a compor o quadro. [...] quando eu descrevo uma agricultora,

[...] percebo que as mãos delas normalmente são [...] mais marcadas

8 Inaugurado por Hunter Thompson, quando escreveu para jornais dos Estados Unidos no fim dos anos de

1960, o jornalismo gonzo é um estilo "marcado por utilizar uma linguagem própria, que tem como

característica a frenesi e o humor, o jornalismo gonzo ainda conta com outra particularidade: o

envolvimento dos jornalistas nos fatos narrados. Ou seja, o profissional da imprensa deixa de ser um

observador da notícia, passando também a participar dela" (RITTER, 2018, p. 19-20).

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pela atividade agrícola. Da mesma forma, a mão das mulheres

pescadoras. É claro que a mão de uma mulher pescadora não é a

mesma mão de uma mulher professora.

Entre os recursos usados para compor seus relatos, Ângela aponta que todas as

percepções que tem durante o processo de escuta, de permanência nos lugares e contato

com as fontes, pode, em algum momento, estar presente nos textos – ou a ser

transmitido ao público, seja na forma de leitor, ouvinte, telespectador ou internauta.

mas eu procuro interferir muito pouco naquilo que as pessoas estão

me contando, [...] é a oportunidade que elas têm de contar a própria

história, e uma possível interferência minha pode tirá-la daquele

centro em que ela estava. É quase como se eu pudesse direcioná-la. E

eu não estou ali para direcioná-la, não estou ali para dirigi-la. Estou ali

para ouvir o que ela tem que me contar. Eu sempre digo: as

protagonistas são essas pessoas. Eu sou a jornalista que está ali para

ouvi-la. Mas quem conta, quem dá o roteiro são as pessoas, são as

minhas entrevistadas, os meus entrevistados.

A riqueza de detalhes aparece também na reportagem Sozinhas. Agora, a

realidade que o público recebe é a de mulheres que, esquecidas por morarem no campo,

sofrem violências inacreditáveis, sem nenhum tipo de auxílio. Indica a capacidade de

contar uma história, além da demonstração da humanização, da compreensão e do

detalhamento ressaltados por Lima (2004), como se vê abaixo.

Figura 3: As histórias são descritas em detalhes, permitindo ao leitor criar uma imagem

da realidade em que essas mulheres vivem

Fonte: Bastos (2017, p. 4).

Um momento em que esta prática aparece é no processo de contato com Iracema

e Dirceu, personagens que dão o nome a uma das reportagens aqui observadas. Usando

a perspectiva da imersão, a repórter esteve em contato com a família e comparou, no

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material publicado no jornal Diário Catarinense, a condição da família Canofre de

Campos. Para Ângela, enquanto repórter por opção, a própria estrutura da reportagem

foi, de certa forma, conduzida pelo comportamento das fontes:

quem me fez pensar em dividir a vida do Dirceu, da Iracema e dos

seus 13 filhos em estações do ano foram eles. Quando me falavam que

tal cultura precisava esperar um mês do verão; que não era mês de

semear alguns produtos nos canteiros; que tinha que fazer a poda das

árvores frutíferas em determinada época [...].

A reportagem As Quatro Estações de Iracema e Dirceu, possui uma divisão

única e inovadora. As historias da família são dividas pelas estações do ano. E a ideia

veio justamente da família. O que demostra o quanto Ângela deixa com que a realidade

da família dite a sua produção. Assim, é possível notar que a história é composta por

uma série de fatores. Desde vários fatos aparentemente isolados que tomam outra forma

quando contextualizados, até o olhar apurado da repórter e, depois do início do processo

de produção da reportagem, a parte variável: as condições em que o processo se dispõe,

com a participação das fontes, o contato com a rotina vivida pelos personagens, entre

tantos outros aspectos. É uma variedade de sentidos que se entrelaçam e compõem o

enredo das histórias que preenchem o dia a dia, mas nem sempre são notadas.

As histórias narram acontecimentos presentes no cotidiano das pessoas e

retratam realidades muitas vezes esquecidas, tendo como pano de fundo o enredo por

onde transitam. Além disso, importa a capacidade que a reportagem tem de direcionar

os holofotes da sociedade a questões de interesse público que dificilmente são objeto de

observação no jornalismo diário – pressionado pela produtividade e, sobretudo, pelo

tempo. Cada história tem uma particularidade e se configura como um relato impossível

de se repetir, algo que se justifica pelas condições com que se apresenta. Mais que isso,

como comenta Ângela, sobretudo, é a reportagem que está no centro da atividade do

jornalismo, porque “é a forma que se tem de dar voz às pessoas que muitas vezes não

têm suas histórias contadas, suas lutas, suas realidades”.

A repórter acredita que a condição de aprofundamento e contextualização pode

ser exercida pela reportagem, fundamental nos dias de hoje por “ser mais extensa, ter

mais tempo na maioria das vezes de ser editada, de ser preparada de forma mais

abrangente”. Fazendo uma constatação sobre a contemporaneidade, a repórter destaca

que a reportagem é relevante, em certo sentido mais do que antes, especialmente porque

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há “muita gente achando que um videozinho é uma reportagem, e não é bem assim: a

reportagem exige uma contextualização, um aprofundamento de ideias. Exige alguma

técnica a ser observada e a ser perseguida”. Perseguindo a função social da profissão,

para Ângela, a reportagem cumpre papel fundamental, sobretudo porque é ela:

que dá a essas pessoas que, muitas vezes, estão à margem, muitas

vezes tendo seus direitos violados ou não reconhecidos, ou sendo

perseguidas ou marginalizadas, a reportagem dá essa possibilidade: de

contar essa história. De mostrar que através de números, estatísticas,

dados, existe vida, existem pessoas, homens, mulheres, crianças.

Enfim, existem, seres humanos. Cabe sim à reportagem essa

possibilidade de abraço, digamos.

Se os personagens dão movimento à narrativa, abastecem-na de vida e colocam

o público diante de uma situação com a qual não teria sequer conhecimento sem a ajuda

do repórter, importa também compreender como Ângela Bastos conseguiu notar estas

histórias, destacando-as da superficialidade dos relatos jornalísticos. Quando

questionada sobre a forma pela qual escolheu seus personagens, Ângela ressalta um dos

atributos principais do jornalismo literário como responsável pela precisão, algo que,

nas palavras da própria entrevistada, “de novo, passa pelo [...] olhar de repórter.

Repórter que está atenta a uma situação”. Ela prossegue com apontamentos sobre a

percepção na produção de Sozinhas: a mídia, como um todo, vinha noticiando muitos

casos de mulheres assassinadas, moradoras de áreas rurais. O grande porém? Para ela, a

imprensa “estava dando de forma isolada. Então, eu pensei: opa, aqui tem alguma

coisa. É aquilo que eu até já citei lá atrás: a ponta do iceberg”.

A escolha de personagens é relacionada à intensidade: “Tem a ver com a

intensidade daquilo que ele está me contando. Tem a ver com o sentimento que aquela

pessoa está me passando. Isso é importante”, indica. Além disso, ela pontua que sabe o

que pretende com a pauta e o que quer que o personagem a forneça. Contudo, a situação

vai depender da condição de cada reportagem. Em Sozinhas, por exemplo, Ângela

localizou 12 mulheres que tinham sido vítimas de violência, algumas desistiram.

mesmo depois de ter conversado comigo [...] porque diziam que a

família não queria, que os filhos achavam que isso já tinha passado,

que o pai já estava separado; por medo de represália – houve uma

mulher que ainda estava convivendo próxima do marido, não na

mesma casa, [...], mas estavam separados. Mas havia uma

proximidade [...]. Isso também é preciso respeitar.

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Em meio ao processo, ela destaca uma questão: nem todas as mulheres que

encontrou para Sozinhas foram para a reportagem. Segundo conta, algumas

entrevistadas estiveram apenas no impresso, mas não no vídeo. Isso porque a

desenvoltura dos entrevistados vai se encaixar de forma mais adequada dependendo do

suporte, algo a que deve-se estar atento. Os casos envolvem riscos: ela diz que, em

Sozinhas, entrevistados se arrependeram depois de dar entrevista: então repórter, equipe

e editorial pensam nas razões para não oferecer risco à fonte e, se for o caso, “deletam”.

Quando se fala de jornalismo ético, responsável e de qualidade, é nesse sentido

que a realidade é observada. São pessoas reais que integram os relatos, e suas vidas

podem ser drasticamente afetadas pela divulgação das informações, inclusive porque os

relatos partem do discurso, mas materializam-se na realidade. Comentando esta nuance,

Ângela ressalta que conversas a respeito adentram a redação, ao ponto de que, em

alguns casos, a pessoa pode sofrer perseguições ou ameaças – independente de a matéria

ser veiculada ou não, “porque muitas vezes parece que a pessoa está determinada. Mas

não seremos nós, não será a matéria que será a responsável por isso”, declara.

Sobre o tempo, em As quatro estações de Iracema e Dirceu, que levou dois anos

e sete meses para ser produzida – ou, como ressalta, apresentada –, a intenção era

observar a saída da condição de miséria. Como lembra, não é algo que se consegue em

poucos meses. Sozinhas, “levou 45 dias entre pré-produção, produção e edição, e foi

uma matéria multimídia. Então, isso é muito relativo”. Assim, “a forma como a pessoa

apresenta sua narrativa: é a realidade” determina o roteiro das reportagens, afirma.

O que vai determinar o tempo é isso: é a realidade das pessoas. Por

isso que eu sempre digo que os protagonistas são os entrevistados. São

essas pessoas, o valor é delas. Elas determinam o ritmo, inclusive, do

trabalho de apuração.

Vicchiatti (2005) e Lima (2014) afirmam – do ponto de vista do jornalismo, e do

jornalismo literário – que a prática jornalística deve se pautar pela atuação baseada na

função social. Ou seja: há algo na divulgação de informação que diferencia a atuação do

jornalista, faz desta profissão algo ligado à construção de sentidos empreendida pela

sociedade. Ressalta-se, por isso, que é fundamental o olhar apurado que reafirma

características básicas do jornalismo por meio da literatura, como a apuração, a

contextualização e, especialmente, o contar histórias para compor retratos do cotidiano.

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Entretanto, Ângela diz que não utiliza, propriamente, um método para escrever

reportagens. “Eu tenho um bloco de anotações, como qualquer repórter tem, eu gravo

muito pouco – evito usar gravador porque eu gosto de estar conversando com a pessoa,

estar ouvindo”, garante. Para a profissional do Diário Catarinense importa mais a troca

de olhares com a fonte, e que possa perceber as coisas ao seu redor. Ângela diz,

contudo, que grifa o que considera relevante – destacando frases na íntegra, que virão a

integrar a reportagem, por exemplo. Em acréscimo a isso, vem, nas palavras da

entrevistada, é baseado “naquilo que eu ouvi, naquilo que observei e que senti, sempre

tendo como ponto a narrativa da pessoa, aquilo que ela me disse”.

então, as escolhas das minhas pautas, das minhas matérias, elas se dão

por causa desse olhar, porque eu entendo o jornalismo como uma

função social. Essas pautas que tratam de direitos de mulheres, de

crianças, de trabalhadores, de indígenas, de quilombolas – que ocorreu

agora dos negros escravizados. Então, essas pautas naturalmente

encaixam nessa forma que eu tenho: um jornalismo de defesa e de

apontamento das questões dos direitos das pessoas.

Vale, por fim, destacar uma história surgida durante a produção de As quatro

estações de Iracema e Dirceu. Ângela foi à Alemanha com a intenção de localizar os

primeiros parentes, ascendentes de Dirceu. Retornando ao Brasil, ela visitou a família e

contou a eles que havia ido até o país europeu. Depois, relata, uma pergunta feita por

Dirceu lhe chamou a atenção. Disse ele: “‘E você foi de carro?’. E eu achei que era

muito interessante trazer isso, porque mostrava o quanto a geopolítica na vida do Dirceu

era responsável pela situação de extrema pobreza que ele vivia”, ressalta.

[...] certo dia, sabendo que eu morava em Florianópolis, perguntou

assim: “Ângela, e que tal a Dilma?”. [...] E perguntei assim: “Mas que

Dilma, Dirceu?”. E ele disse: “Ué, a Dilma, a presidente! Ela não

mora lá em Florianópolis?!”. Então, na vida do Dirceu, não existia

Brasília, não existia o Congresso Nacional, não existe o Supremo

[Tribunal Federal], não existe o Senado. Na vida do Dirceu, a

referência dele era a capital, Florianópolis. E, por isso, ele achava que

a presidente poderia morar em Florianópolis. Então, essas questões

assim, isso eu anotei e trouxe para a minha matéria [...] Acho

importante isso, porque são as coisas que vão construindo, que vão

dando os pontos na construção do personagem. Quando você pensa

que em Santa Catarina um pequeno agricultor não sabe onde mora a

Presidente da República, o que é que isso significa? Qual é a

escolaridade, o nível de informação? Que tipo de informação chega:

pelo rádio, chega pela televisão? Como é isso?

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pergunta de Dirceu sobre a ex-Presidente Dilma Rousseff, como a

participação das fontes em Sozinhas, prova como os próprios personagens,

involuntariamente, construíam a reportagem. E ressalta o papel de Ângela em olhar,

sentir, ver, e narrar tudo que acontecia a seu redor, criando um cenário ao leitor. Nas

duas reportagens revelaram-se realidades escondidas do público, por isso mesmo

aterradoras. Este é um dos papéis da profissão: cumprir com a função social. Nota-se

que a uma história em uma reportagem, pelo jornalista, desenvolve ações de vínculo

com o leitor, que absorve a ideia e integra-a à experiência. O jornalismo é fato da

realidade: pela intervenção e mediação do jornalista, narrar uma história é escrever

capítulos da vida real. A reportagem de qualidade traz novos paradigmas ao jornalismo

e possibilita que a vida do cotidiano seja divulgada de forma intensa e verdadeira.

REFERÊNCIAS

BASTOS, Â. As quatro estações de Iracema e Dirceu. Diário Catarinense, Florianópolis, ano

29, s/n., 21 jun. 2015. Caderno Especial, p. 1-24.

BASTOS, Â. Entrevista I. [out. 2019], concedida a Vitória Maques Bittencourt via WhatsApp,

15 arquivos MP3, 48 min. Lages, 2019.

BASTOS, Â. Sozinhas. Diário Catarinense, Florianópolis, ano 31, n. 88, 1-2 jul. 2017.

Caderno Nós, p. 01-16.

BORGES, R. Jornalismo Literário: análise do discurso. Florianópolis: Insular, 2013.

LIMA, E. P. Jornalismo Literário para Iniciantes. São Paulo: Editora da Universidade de São

Paulo, 2014.

LIMA, E. P. Páginas ampliadas. Barueri, SP: Manoele, 2004.

PENA, F. Jornalismo Literário. São Paulo: Contexto, 2013.

RITTER, Eduardo. Jornalismo Gonzo: medo, delírio, mentiras sinceras e outras verdades.

Florianópolis: Insular, 2018.

TRAQUINA, N. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis:

Insular, 3. ed. Ver, 2012.

VICCHIATTI, C. A. Jornalismo: comunicação, literatura e compromisso social. São Paulo:

Paulus, 2005. 115 p.