o jogo e o xadrez - entre teorias e histórias

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  • 7/24/2019 O JOGO E O XADREZ - Entre Teorias e Histrias

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    WESLEY RODRIGUES ROCHA

    O JOGO E O XADREZ: Entre Teorias e Histrias

    GOINIA-GO

    2009

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    WESLEY RODRIGUES ROCHA

    O JOGO E O XADREZ: Entre Teorias e a Histria

    Dissertao apresentada ao Mestrado emHistria, da Universidade Catlica de Gois,Goinia-GO, para obteno do ttulo de Mestreem Histria.rea de concentrao: Cultura e Poder.Linha de Pesquisa: Poder e Representaes.

    Orientadora: Prof. Dr. Heloisa Selma FernandesCapel.

    GOINIA-GO2009

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    Dedico esta dissertao aos que jogam e aosque estudam o jogo.

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    AGRADECIMENTOS

    Prof. Dr. Heloisa Selma Fernandes Capel, pelaorientao concernente presente dissertao.Ao Prof. Dr. Eliezer Cardoso de Oliveira e aoProf. Dr. Eduardo Gusmo de Quadros, pelaparticipao como membros do exame da

    qualificao e defesa desta dissertao. Prof. Ms. Maria Cristina Reinato e Prof.Ms. Maria Alice de Sousa Carvalho pela reviso.

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    RESUMO

    ROCHA. W.R. JOGO E O XADREZ: Entre Teorias e a Histria. Dissertao

    (Mestrado) Universidade Catlica de Gois, Departamento de Histria, CinciasSociais e Relaes Internacionais, 2009.

    Este trabalho analisa e discute o jogo como elemento da cultura e como fenmenohistrico. Considerando a cultura como o conjunto de significaes produzidas peloshomens no transcorrer da histria, e o jogo como um elemento no universo codificadode uma cultura, procura analisar a relao existente entre a prtica dos jogos e os valoresdas sociedades que os adotam. Analisa os jogos de uma maneira geral e destaca comorecorte representativo dessa relao sociedade/jogo mais especificamente o jogo dexadrez. Apresenta uma viso geral da histria do jogo de Xadrez, cujas origens datam

    do sculo VI e investiga o seu desenvolvimento, observando as mudanas sofridas e asmetforas produzidas no transcorrer da histria, principalmente a da representao daguerra antiga e da sociedade medieval, mostrando como as transformaes sociaisexerceram influncias de diversas ordens sobre esse jogo de origens to antigas. Discutea importncia atribuda s competies de xadrez durante o perodo da Guerra Fria,mostrando a valorizao dada pelo governo comunista e norte-americano s vitrias deseus jogadores. Comenta tambm o destaque dado ao jogo nos PCNs e o uso que setem feito do Xadrez nas escolas como instrumento pedaggico. As anlisesfundamentam-se nos conceitos elaborados por Huizinga (2007), especialmente em seulivro Homo ludens: o jogo como elemento da cultura,publicado em 1938, em que oautor considera o jogo como uma categoria primria da vida, de onde nasce a cultura

    sob a forma de linguagem e poesia, de ritual e de sagrado, considerando, assim, suaimportncia junto ao raciocnio (homo sapiens) e construo de ferramentas (homofaber). Este estudo considera a tese huizinguiana do declnio do fator ldico nasociedade ao observar as prticas e os destaques dados s competies contemporneascomo as Olimpadas e os torneios mundiais. Mostra o fato de que, na sociedademoderna e contempornea, o jogo tem acompanhado a cultura muito mais no sentido deuma de suas principais caractersticas, a competio, em detrimento do fator ldico, talcomo defende Huizinga. Todavia, em relao ao jogo de Xadrez este estudo defende aidia de que, apesar do carter de seriedade de que se revestem os torneios e de seu usopedaggico, muitas vezes como disciplina obrigatria nos currculos escolares, a prticado enxadrismo ainda fomentada pela competio ldica. Outro aspecto que

    defendido neste trabalho o fato de que a seriedade que envolve as partidas de xadrezfavorece o fator ldico, quer seja na escola, em que se procura mostrar atitudes decidadania por meio da prtica do jogo, quer seja em partidas disputadas por amadores eestudiosos.

    Palavras-chave:Jogo. Xadrez. Histria. Cultura.

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    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................. 10

    CAPTULO 1. HUIZINGA: HISTRIA, JOGO COMO PADRO CULTURAL,

    E O XADREZ

    1.1. Huizinga e a Histria Cultural.................................................................................. 16

    1.2. O jogo no sentido figurado e a categoria jogo: suas caractersticas......................... 22

    1.3. O declnio do fator ldico ........................................................................................ 30

    1.4. O xadrez noHomo ludens ........................................................................................ 34

    CAPTULO 2. HISTRIA, METFORAS E USOS DO XADREZ

    2.1. Xadrez e Histria...................................................................................................... 37

    2.2. Metforas e usos do xadrez: guerra, poltica e educao ......................................... 49

    2.3. Xadrez: equipamento e regulamento........................................................................ 59

    2.4. A existncia do ldico no xadrez ............................................................................. 63

    2.5. Do ludens aoesportivus ........................................................................................... 68

    CONCLUSO ............................................................................................................... 73

    REFERNCIAS............................................................................................................ 78

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    INTRODUO

    Pesquisar o jogo como um elemento da cultura digno de investimento

    cientfico. Para efeito de estudo, sobre o jogo h um consistente e bem sortido tabuleiro

    de dados com importantes informaes para compreenso das sociedades. Ele contm

    formas de pensar e estabelecer elaes na valorizao do jogo no sistema que o acolhe;

    no intercmbio de saberes, costumes e formas de agir, isoladamente ou em grupo. O

    jogo objeto de pesquisa em diversas reas de conhecimento como etnologia,

    antropologia, psicologia, psicanlise, pedagogia, matemtica, educao fsica, medicina,

    literatura, direito, tica, economia, poltica, filosofia, lingstica, sociologia e histria.Associar jogo e educao, jogo e psicologia ou jogo e sade uma atitude

    frequente entre pesquisadores, e, sobre essas relaes, encontra-se uma extensa

    publicao. Entretanto, preciso dizer que associar jogo e cultura tambm importante,

    principalmente em uma perspectiva histrica que mostra como as transformaes

    sociais ocorridas na sociedade moderna e contempornea resultaram em efeitos de

    vrias ordens no jogo. Estudar o jogo uma forma de compreender a sociedade onde ele

    est inserido.

    O historiador cultural Huizinga (2007) em sua obra Homo ludens: o jogo como

    elemento da cultura, publicada em 1938, estudou o jogo explorando essa relao,

    inclusive analisando o declnio do fator ldico no jogo e na cultura. Ao lado de uma

    exaustiva investigao sobre o jogo, nessa obra o autor apresenta um conceito de jogo,

    estabelecendo sua essncia e muitas de suas caractersticas. O Homo ludens [...]

    (HUIZINGA, 2007) tem colaborado muito com as pesquisas que tomam como temtica

    o jogo, apoiando e dando possibilidades para a continuao da discusso sobre o jogo,

    inclusive para o xadrez. Nesse sentido, esta dissertao se insere nesse movimento

    desencadeado por Huizinga (2007), principalmente porque ele usou com deferncia o

    xadrez para ilustrar seus pressupostos sobre o jogo. O xadrez a modalidade de jogo

    mais empregada por Huizinga para discutir sobre importantes caractersticas da

    categoria jogo.

    O xadrez um dos jogos mais antigos e possui quatorze sculos de histria sem

    interrupes desde o sculo VI at o incio do sculo XXI. Segundo Horton (1973),

    Quando um jogo, como o xadrez, atrai o interesse da humanidade por tantos sculos,devemos dar como provado possuir slidos mritos que no podem ser desprezados,

    porm merecedores, mesmo, de definitiva ateno (HORTON, 1973, p. 9).

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    A contribuio do autor Horton (1973) para a literatura tcnica enxadrstica e

    para a histria do xadrez foi explicar o significado de mais de 800 verbetes

    enxadrsticos. Para efeito de elucidao dos jarges e termos tcnicos do xadrez, ele

    registrou relevantes contedos histricos correlacionados teis, portanto, como fontede pesquisa complementar sobre a origem e evoluo desta modalidade de jogo de

    tabuleiro.

    Para se jogar uma partida de xadrez, necessrio estudo para compreender que o

    dinamismo desse jogo proveniente da inter-relao das peas dispostas sobre o

    tabuleiro tudo baseado em regras fixas desde a posio do campo e, em cima dele, o

    arranjo inicial das peas corretamente posicionadas. O campo enxadrstico o espao

    onde ocorre o desenvolvimento de uma luta de idias manifestadas atravs de lancesefetuados pelos jogadores adversrios durante uma partida. Na competio

    enxadrstica, o tempo controlado atravs do relgio especial para o xadrez, composto

    de dispositivos manuseados pelos enxadristas. Trata-se de dois relgios que marcam

    alternadamente o incio do lance de cada um dos competidores, ao ser acionado por um

    dos competidores, imediatamente interrompida a contagem de tempo do outro. Em

    partidas amistosas optativo o uso do relgio de xadrez. Para uma correta reproduo

    do jogo realizado, os lances da partida so registrados em planilhas. Em partidas

    amistosas optativo o registro dos lances.

    Os movimentos das peas so aes concretas, desenvolvidas em um clima de

    seriedade ou competio ldica. Mesmo na competio ldica, a estranha beleza do

    xadrez sua prtica s vezes silenciosamente e com um mnimo de movimento

    corporal, oculta um dinamismo vivenciado na mente do jogador e sua alegria durante a

    prtica enxadrstica. O que ocorre na mente do jogador de xadrez parcialmente

    manifestado a execuo de um lance apenas um elemento do que foi a priori

    imaginado pelo jogador. A tenso do enxadrista mais facilmente percebida do que asua alegria.

    No enxadrismo, em torneios ou campeonatos oficiais (vinculados Federao

    Internacional de Xadrez, Confederao Nacional de Xadrez, Federao Estadual de

    Xadrez), participam enxadristas profissionais e estudiosos jogadores amadores, cuja

    prtica baseada na literatura tcnica enxadrstica (previamente estudada antes das

    partidas) e regulada por regras e cdigos divulgados por entidade dirigente

    rigorosamente observadas por rbitros de xadrez. Todos os lances da partida so

    registrados, geralmente em quatro smulas ou no mnimo em duas planilhas

    previamente preparadas pelos organizadores. Sobre os lances da partida, duas anotaes

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    (completas e sem rasuras), so datadas, assinadas por jogadores e rbitros, e arquivadas.

    Os registros das partidas so objetos de investigaes documentos no Tribunal da

    Justia Desportiva, e para efeito de pesquisa com propsito didtico, efetuada pelos

    analistas enxadrsticos que colaboram com os estudos sobre as temticas do xadrez quecompem a vasta literatura tcnica deste esporte. O resultado desse rduo trabalho

    desenvolvido por estudiosos do xadrez expresso atravs de relatrios, peridicos e

    livros um verdadeiro legado cultural. O contedo enxadrstico oriundo da prtica

    enxadrstica profissional um fator ldico para milhares de aficionados do xadrez que o

    praticam como atividade de lazer cultural. O aprendizado pelo estudo dessas

    publicaes estimula a dedicao competio ldica, alm de ser fator complementar

    para o treinamento dos jogadores profissionais.Embora existam vrios sistemas de notaes enxadrsticas, nos eventos oficiais

    os jogadores so obrigados a usar a Notao Algbrica oficial. O uso do relgio do

    xadrez produzido por fabricante especializado um dos componentes do equipamento

    enxadrstico em carter obrigatrio. proibido o uso de relgio produzido

    artesanalmente. As peas padro industrial ou artesanal so baseadas no desenho das

    peas Stauton de Xadrez (HORTON, 1973, p. 205). O enxadrista mestre britnico

    Stauton dominou o panorama enxadrstico ingls durante a dcada de 1940 (Golombek,

    1977, p. 305). Segundo Horton, Em 1849, Howard Stauton desenhou um conjunto de

    peas de xadrez que atualmente so de uso comum em muitos pases (HORTON,

    1973, p. 205). O conjunto de peas desenhadas por Stauton teve como modelo o

    conjunto de peas esculpidas por Nathaniel Cook no ano de 1930 (DOUBECK, 1982,

    p. 16).

    Feitas essas consideraes a respeito do jogo de xadrez e reportando ao Homo

    ludens [...] de HUIZINGA (2007) vale perguntar: Como concebe o xadrez em relao

    cultura e histria? Ter o autor observado as alteraes na prpria estrutura do jogo,seu equipamento, smbolos, usos e metforas? Se o xadrez passou por uma evoluo e

    diversas formas de valorizao, em que medida isso ocorreu influenciado pelas

    transformaes sociais ocorridas no transcorrer da histria?

    Para ento tentar responder a essas questes, preciso fazer um estudo sobre o

    livro Homo ludens: o jogo como elemento da cultura (HUIZINGA, 2007), para

    analisar o conceito de jogo apresentado por Huizinga (2007) e ver as implicaes deste

    com o xadrez como um importante elemento na teoria do jogo. Ser que os aspectos

    realados na sua anlise sobre o xadrez tm influenciado o uso dessa modalidade na

    prtica enxadrstica atual, servindo como fundamento terico nos projetos educacionais

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    e/ou sociais? Como essa apropriao feita, ou seja, que aspectos realam? Servem

    para ressignificar aqueles discursos encontrados nos meios de comunicao que

    mostram o xadrez como algo difcil, srio, sem dinamismo, sem competio ldica, sem

    um clima de alegria, e acessvel a poucos?Na mdia vrios exemplos so encontrados, por exemplo, no peridico de grande

    circulao regional, Jornal O Popular, publicado no dia 15 de setembro de 1996, na

    seo Artes e Espetculos, o xadrez est relacionado numa coluna s qualidades de

    insensatez. Essa aluso provocou um comentrio expresso em carta de autoria do autor

    desta dissertao:

    Na seo Arte & Espetculos, de O POPULAR 2 de 15 deste ms,

    encontramos informaes, homenagens, elogios e um pouco de humor com acomparao de itens relacionados com a lucidez e a insensatez. Nestecontexto, o xadrez foi enquadrado na insensatez. Alm disso, foi feita aseguinte afirmao: O cansativo xadrez. Um velho ditado diz que todabrincadeira tem um fundo de verdade. O leitor que porventura no sejaaficionado do xadrez poder encontrar dificuldade para discordar daconceituao cansativo. Como assessor de xadrez nas escolas da Federaode Xadrez do Estado de Gois, quero dizer que o xadrez no uma atividademontona, cansativa, chata. O brasileiro Grande Mestre Internacional deXadrez, Henrique da Costa Mecking (o Mequinho) expressa parte dosatributos significativos inerentes modalidade de xadrez ao dizer que oxadrez no requer pacincia, em sua essncia um jogo altamentedinmico (ROCHA, 1996, p. 6 A).

    Desde 1996, Rocha tem buscado mostrar o xadrez associado ao fator ldico

    prprio do jogo. Na divulgao do livro Xadrez: poesia em inocentes lances

    (ROCHA, 2001): o jornalista Ivair Lima (2001) registrou a relao que o autor fez sobre

    o xadrez e o fator ldico: O xadrez no um jogo apenas para intelectuais, como se

    pensa. Pode ser praticado por pessoas de todas as idades e de todas as classes sociais

    [...] o xadrez bem recebido pelas crianas porque essencialmente ldico (Dito por

    ROCHA e citado por LIMA, 2001, p. 4).

    Tambm se faz necessrio observar que o jogo e por correlato, o xadrez, um

    fenmeno scio-cultural, antes mesmo de se tornar um fenmeno educacional. O xadrez

    como qualquer outra modalidade de jogo no est isento de sofrer os efeitos das

    transformaes sociais ocorridas no transcorrer da histria nas sociedades onde est

    inserido. De acordo com Tubino (2006), o jogo a partir do sculo XIX e mais

    recentemente com maior nfase ganhou novo estatuto, o de esporte. No houve

    mudanas em seus equipamentos, regulamentos, prticas? Para isso, os estudos de

    estudiosos da histria do xadrez como Lauand (1988), Horton (1973), Lasker (1999),

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    Shenk (2008), S e Rocha (1997), e Doubek (1982) sero fontes para subsidiar a

    elaborao dessa temtica.

    Para compreender o autor Huizinga (2007) no contexto da Histria Cultural

    necessrio conhecimento sobre a Histria Cultural nesta dissertao sero fontes depesquisa os livros O que Histria Cultural? (BURKE, 2005) e Histria & Histria

    Cultural (PESAVENTO, 2005).

    Assim, nesta dissertao, no primeiro captulo, Huizinga: Histria, o jogo como

    padro cultural, e xadrez,apresenta-se preliminarmente a relao de Huizinga com a

    Histria Cultural; Huizinga situado no espao e no tempo de sua existncia - anlise

    critica em relao ao Iluminismo e seu objetivo no Homo ludens [...] (HUIZINGA,

    2007); um panorama geral da associao do jogo com a cultura; o significado e uso dapalavra jogo, as caractersticas do jogo e o fator ldico como a essncia do jogo.

    No segundo captuloHistria, metforas e usos do xadrezser apresentado um

    panorama geral do xadrez em diversas reas de conhecimento. Posteriormente ser

    mostrado que o desenvolvimento da estrutura do xadrez oriundo de diversos fatores

    ocorridos no transcorrer da histria. Tambm nele se discutir o xadrez como metfora

    da sociedade medieval e como representao da guerra.

    Finalmente, conclui-se que na sociedade moderna e contempornea o jogo tem

    acompanhado a cultura muito mais no sentido de uma de suas principais caractersticas,

    a competio, do que o fator ldico. Embora, conforme se discute nesta dissertao, a

    prtica no enxadrismo fomentada pela competio ldica e a seriedade favorece o

    fator ldico. Na proposta de Huizinga (2007), o esprito esportivo extrapola o jogo

    como prtica. Entretanto, deixa bem claro que a apoteose do fator ldico no o jogo,

    portanto, ele manifesta uma viso realista do jogo, sem ingenuidade e sem romantismo.

    Embora a dificuldade desta dissertao seja fazer um entrecruzamento de

    conhecimentos sobre teoria do jogo/xadrez em uma perspectiva histrica cultural, paraexplicar a sociedade em que ele est inserido no se pode negar que o xadrez um

    elemento na cultura como outro qualquer um dos fenmenos socioculturais um

    fenmeno histrico abrangente. E, segundo Shenk (2008): O jogo chegaria por fim a

    todas as cidades do mundo, em mais de 1.500 anos de histria contnua [...](SHENK,

    2008, p. 16). O xadrez possui uma estrutura resultante de um longo processo histrico, e

    est sujeito a novas alteraes provocadas pelas transformaes sociais da atualidade.

    Usar o xadrez como instrumento pedaggico e na prtica menosprezar o fator ldico do

    jogo como o principal motivo na perspectiva do jogador que joga por puro divertimento,

    uma forma de negar a natureza do jogo sua essncia, o elemento ldico. Assim

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    sendo, espera-se que esta dissertao possa colaborar para essa reflexo ao discutir os

    sentidos do dilema da seriedade e da no seriedade do jogo.

    O jogo portador de significados rapidamente identificveis. O jogo remete a

    elementos legveis do real ou do imaginrio dos jogadores. Neste sentido, o jogo dotado de um relevante valor cultural, se definimos a cultura como o conjunto de

    significaes produzidas pelos homens na sociedade no transcorrer da histria. O jogo

    um fenmeno histrico. O campo (espao), o equipamento objetos tcnicos (material)

    para a prtica do jogo, o tempo imaginado / transcorrido, os jogadores (agentes /

    sujeitos ativos), as regras: imagem a decodificar e representao. O jogo um elemento

    no universo codificado de uma determinada cultura. Por ser rico de significados por

    meio dele compreende-se determinada sociedade. Segundo Brougre (2008):

    claro que os jogos de sociedade no so puras expresses de princpiosldicos mas, aps o Monoplio, so cada vez mais a representao de umaspecto da vida social, pelo menos quando no se referem a um universoimaginrio. Eles associam valor simblico e funo, como o faz h sculos, o

    jogo de xadrez, porm, neste caso, a imagem desapareceu sob a estrutura dojogo, cujas peas significam aspectos diferentes pela sua prpria forma,podendo o jogador esquecer os smbolos ancestrais subjacentes(BROUGRE, Gillis, 2008, p. 12-13).

    a estrutura do jogo que possibilita a competio ldica enxadrstica e o xadrez

    praticado pelos jogadores profissionais. Embora ainda ocorra uma influncia dos

    smbolos ancestrais subjacentes, o xadrez frequentemente comparado com a vida

    contempornea. Entretanto, o xadrez na prtica muito mais valorizado pelo seu

    potencial de entretenimento (lazer cultural) do que como instrumento pedaggico ou

    como metfora social. Embora, seja interpretado como metfora de inmeras atividades

    humanas, o grande interesse dos aficionados do xadrez jogar partidas amistosas,

    solucionar problemas enxadrsticos, participar de torneios, campeonatos, estudar

    partidas e temticas enxadrsticas elucidadas pelos analistas.

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    CAPTULO 1:

    HUIZINGA: HISTRIA, JOGO COMO PADRO CULTURAL, E OXADREZ

    1.1Huizinga e a Histria Cultural

    O historiador cultural Peter Burke (2005) analisou os objetivos e os mtodos das

    principais historiografias dos antigos historiadores, confrontando-os com ahistoriografia cultural contempornea. Segundo esse autor ainda no foi dada uma

    resposta satisfatria para a pergunta formulada em 1987 por Karl Lamprecht: O que

    Histria Cultural? Para responder a essa pergunta relevante conhecer os mtodos

    empregados no ofcio do historiador preocupado com o simblico e suas interpretaes.

    A histria da Histria Cultural, segundo Burke (2005), mostra que nos anos

    1970 ainda estava em construo, a Nova Histria Cultural e, no final do sculo XX e

    incio do sculo XXI, ela tambm est em processo de (re)construo. Nesse processo

    de investigao e produo, para efeito comparativo, a historiografia dos autores que

    compem a chamada Grande tradioou Histria cultural clssica(BURKE, 2005,

    p. 15e16) foram tomados como objeto de pesquisa.Na tentativa de responder pergunta

    O que Histria cultural?, Burke (2005) analisou uma lista de livros editados entre

    1860 e 2003, que contribuem para traar o percurso da Histria Cultural e entender seu

    desenvolvimento no tempo. Segundo esse autor,

    A histria cultural no uma descoberta ou inveno nova. J era praticada

    na Alemanha com esse nome (Kulturgeschite) h mais de 200 anos. Antesdisso havia histrias separadas da filosofia, pintura, literatura, qumica,linguagem e assim por diante. A partir de 1780, encontramos histrias dacultura humana ou de determinadas regies ou naes. [...] O perodo entre1800 e 1950 foi uma etapa clssica. [...] Outono da Idade Mdia (1919, dohistoriador holands Johan Huizinga (1879-1945) [...] pinta um retrato deuma poca (BURKE, 2005, p. 15-16).

    O historiador Huizinga, foi uma das vtimas da Segunda Grande Guerra Mundial

    (1939-1945) - culminncia dos conflitos econmicos e geopolticas herdadas da

    Primeira Grande Guerra Mundial (intensificados pelas resultantes da crise de 1929 as

    origens imediatas dos litgios encontraram-se associados diretamente ao expansionismo

    nazista). Em1942, quando os alemes ocuparam os Pases Baixos, Huizinga Reitor da

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    Universidade de Leiden, foi detido e, como prisioneiro de guerra, confinado em De

    Steeg perto de Arnhen, e faleceu em 1945. Em suas pesquisas e estudos, Huizinga

    investigou os processos culturais com o propsito de descobrir um padro cultural;

    pesquisou sobre a cultura primitiva desde as suas origens mais distantes, diversosgrupos humanos, independente de seu grau de complexidade e de sua localizao

    geogrfica e cronolgica; estudou sobre as civilizaes arcaicas como Grcia e Roma, a

    Idade Mdia, a sociedade moderna e contempornea (at 1938), e concluiu que o jogo

    pode perfeitamente ser cruel e sangrento, e tambm pode muitas vezes ser um falso

    jogo(HUIZINGA, 2007, p. 231). Para esse autor a poltica um falso jogo.

    Para Huizinga (2007), o fim ltimo da humanidade ser uma culminncia da

    construo de uma verdadeira civilizao, caracterizada por viver em paz na plenitudede sua dignidade e estilo, oriundo de uma verdadeira seriedade baseada em autnticas

    formas ldicas cujo modelo um conceito de jogo que tem como ponto de partida as

    caractersticas positivas e universalmente reconhecidas do jogo(HUIZINGA, 2007, p.

    234). Todavia, a apoteose do ldico no a prtica de esporte, o direito de praticar

    esporte; o escotismo ou as olimpadas modernas. No ocorreu uma apoteose do ldico,

    ao contrrio, observa-se uma atrofia do ldico na cultura.

    Segundo Huizinga (2007), Chegamos [...] seguinte concluso: a verdadeira

    civilizao [...] implica a limitao e o domnio de si prprio[...] (HUIZINGA, 2007,

    p. 234). O domnio de si prprio implica jogar de acordo com as regras. O domnio de si

    prprio implica jogar de forma digna, sem violncia. No entanto o que se observa

    atualmente que a sociedade est intoxicada de jogo e esporte, parece haver um

    crescimento da busca exagerada pelo corpo perfeito e da procura de resultados rpidos.

    Os excessos cometidos no jogo vm provocando, alm de discusses crescentes sobre a

    tica na prtica de diversas modalidades de esportes, o aumento de situaes que

    requerem a interveno dos Tribunais da Justia Desportiva.Em comentrio sobre o livro Outono da Idade Mdia de Huizinga,Burke (2005)

    afirma que a obra atribuiu um lugar central s formas de comportamento e destaca a

    observao de Huizinga de que a mente apaixonada e violenta daquele tempo

    precisava de uma estrutura de formalidade (HUIZINGA, 1919, p.Apud BURKE, 2005,

    p. 19). Sobre o socilogo Norbert Elias, que em seus estudos sobre a Idade Mdia

    utiliza a obra de Huizinga, Burke, 2005 afirma que Elias [...] deu uma importante

    contribuio para o estudo do que hoje pode ser descrito como cultura do autocontrole

    (BURKE, 2005, p. 22).

    De acordo com Burke (2005),

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    O livro Outono da Idade Mdia [...] atribui um lugar central s formas decomportamento. Segundo Huizinga, a mente apaixonada e violenta daqueletempo precisava de uma estrutura de formalidade (BURKE, 2005, p. 19).[...] Apoiado na pesquisa de Huizinga [...] Elias [...] deu uma importantecontribuio para o estudo do que hoje pode ser descrito como cultura do

    autocontrole (BURKE, 2005, p. 22).

    O autor Norbert Elias (2001) estudou o declnio na Europa Ocidental desde a

    Idade Mdia, sculos XII e XVIII, e compreendeu o jogo das interdependncias e das

    tenses sociais. Analisou o final da Idade Mdia, pesquisou sobre os mecanismos de

    condicionamento social, inclusive no processo de formao do Estado absolutista. um

    equivoco entender a expresso cultura de autocontrole apenas no sentido individual.

    So abrangente as anlises Norbert Elias sobre autocontrole psquico, auto-coero

    psquica e coero fsica.Independente das regras, toda forma de jogo est ligada ao tempo. Segundo

    Huizinga (2007): O jogo inicia-se e, em determinado momento, acaba. Joga-se at

    que se chegue a um certo fim. (Huizinga, 2001: p. 12). Para esse autor, no vaivm do

    jogo: Enquanto est decorrendo tudo movimento, mudana, alternncia, sucesso,

    associao, separao. (HUIZINGA, 2001: p. 12). A relao do jogo com o tempo e a

    repetio um fenmeno histrico. Nesse sentido, em uma perspectiva histrico-

    cultural, Huizinga (2007) disse:

    E h, diretamente ligada sua limitao no tempo, uma outra caractersticainteressante do jogo, a de se fixar imediatamente como fenmeno cultural.Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como umacriao nova do esprito, um tesouro a ser conservado pela memria. transmitido, torna-se tradio. Pode ser repetido a qualquer momento, queseja jogo infantil ou jogo de Xadrez. (HUIZINGA, 2001: p. 12-13).

    necessrio salientar que uma investigao sobre o jogo vem sendo construda

    h tempos, sendo de interesse de muitos filsofos, alguns deles influenciando

    diretamente a elaborao de Huizinga, como Montaigne, Kant, Plato.

    Michel de Montaigne (1533-1592) ficou conhecido pela prtica de filosofar

    como interrogao da conscincia. No final de seu Homo ludens Huizinga (2007) no

    responde secular interrogao sobre a diferena entre o que srio e o que jogo.

    Uma explicao sobre a distino entre a seriedade e a no seriedade passa pelo

    domnio da tica e apoio que a lgica incapaz de oferecer-nos (HUIZINGA, 2007,

    p. 236). Em suas reflexes filosficas percebe-se que atribua importncia s regras e ao

    jogo como metfora. Segundo Montaigne (1987):

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    Nossa vida, dizia Pitgoras, assemelha-se grande e populosa assembliados jogos olmpicos. Uns se exercitam para conquistar a glria; outros levamsua mercadoria para vender e ganhar. Outros, e no so os piores, nadaquerem seno ver o porqu e o como de cada coisa e ser espectadores da vidados outros para assim julgarem e regularem a sua. Aos exemplos se podero

    sempre adaptar as mais proveitosas reflexes da filosofia, em cujas regrasdevem inspirar-se as aes humanas (MONTAIGNE, 1987: 81).

    Baseado no que Pitgoras dizia, percebe-se a importncia cultural dos jogos

    olmpicos e tambm a relevncia das regras no contexto da filosofia - fonte de

    inspirao para a conduta humana. A presena do jogo nas anlises de Montaigne

    (1987) mostra a importncia cultural do jogo para este filsofo do sculo XVI. Assim

    como Montaigne, o autor Huizinga (2007), tambm estudou sobre a importncia dos

    jogos para os gregos, recorrendo, para efeito de argumentao, ao sucesso de Pitgoras,tomando-o como comparao aos heris do esporte. Neste sentido, Huizinga (2007)

    disse:

    O sofista itinerante como Pitgoras obtinha xitos fabulosos. Era umautntico acontecimento quando um sofista clebre visitava uma cidade. Eraadmirado como um ser milagroso, idolatrado como os heris do atletismo.Em resumo, a profisso de sofista estava ao mesmo nvel que o esporte(HUIZINGA, 2007, p. 164).

    Existem diversas definies do ser humano que no esto diretamente

    relacionadas a uma determinada nomenclatura da espcie humana. Toda nomenclatura

    da espcie humana possui um ncleo central de contedo que define o ser humano, cuja

    complexidade ultrapassa os limites que uma nomenclatura da espcie humana expressa.

    Huizinga (2007) comparou as nomenclaturas Homo sapiens e Homo fabere concluiu:

    Emborafaberno seja uma definio do ser humano to inadequada como sapiens,ela

    , contudo, menos apropriada do que esta, visto poder servir para designar grande

    nmero de animais. Mas existe uma terceira funo, que se verifica tanto na vida

    humana como na animal, e to importante como o raciocnio e o fabrico de objetos: ojogo (HUIZINGA, 2007, p. 1 [ prefcio]). Essa concluso de Huizinga serviu inclusive

    para intitular seus estudos mais avanados sobre o jogo como elemento da cultura:

    Homo ludens[...] (HUIZINGA, 2007).

    O jogo um elemento to presente na cultura da Grcia antiga que o termo

    teoria, alm de ser usado na designao do saber especulativo, desinteressado e abstrato,

    direcionado contemplao da realidade, era empregado tambm para indicar a

    embaixada sagrada que era enviada pelo Estado com o propsito de represent-lo, seja

    para consultar um orculo, levar oferendas ou realizar outra atividade tambm

    considerada de vital importncia para o sistema da vida como, por exemplo, o jogo. A

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    palavra teoria era aplicada para apontar um dado grupo de pessoas marchando

    processualmente ou seguindo as normas de um cortejo oficial e, para abrir os jogos

    olmpicos, empregava-se uma teoria de atletas baseado em um ritual de atitudes e gestos

    - uma representao destinada ao pblico presente na abertura dos Jogos Olmpicos.Segundo Houaiss (2001), etimolgica e geograficamente, o termo Olmpia

    significa cidade da lida (onde eram realizados os jogos), e o termo olimpo tambm

    era empregado para designar o nome dos vrios montes da Grcia, em especial o monte

    entre a Tesslia e a Macednia. Mitologicamente, a palavra grega traduzida como

    lumpos significa lugar onde habitam as divindades grego-latinas. A palavra Olimpo

    conhecida tambm como morada dos deuses (HOUAISS: 2001: p. 2060). Os gregos

    realizavam vrios jogos como os Nemeus, os Corintos todos com finalidade religiosa.Por meio dos jogos os gregos buscavam a perfeio homenageando seus deuses. Os

    jogos olmpicos superaram os demais, adquirindo grande importncia sociocultural.

    Sobre o evento Olimpadas na Grcia Antiga, no que concerne ao local de sua

    realizao, o autor Duarte (2004) disse: Olmpia, a principal cidade da lida, na

    pennsula do Peloponeso, seria mais tarde conquistada pelos romanos. Foi varrida do

    mapa no sculo VI, devastada por um terremoto. (DUARTE, 2004: p.12). Em relao

    ao surgimento, Os Grandes Jogos da Grcia foram disputados pela primeira vez em

    776 a.C., quando aparece em documentos e monumentos a primeira lista de heris e

    vencedores olmpicos (DUARTE, 2004: p.12). No que tange durao e ao trmino:

    Os Jogos duraram mais de mil anos, at 393, quando o imperador romano Teodsio I

    terminou com eles dando a desculpa de que se tratava de uma festa pag (DUARTE,

    2004: p.13). No que concerne ao motivo, Os gregos queriam fazer uma homenagem a

    Zeus, Apolo, Afrodite e a todos os seus deuses, adorados em um templo especialmente

    construdo em Olmpia (DUARTE, 2004: p. 12). Nos jogos cultuavam o belo e o bom

    motivados pela crena de que deus belo e bom.Dentre os nomes que compem a lista dos homenageados nos jogos, Zeus

    destaca-se dos demais. Nos estudos sobre Mitologia Grega, sob diversos aspectos

    percebemos a importncia de Zeus.Isto pode ser verificado nas diversas unies divinas,

    bem como nas varias unies humanas e com heronas, de tal maneira queZeus, de modo

    sucinto reconhecido como ofertilizador (BRANDO: 2004: p.22). Em livros sobre

    Mitologia Grega, o nome de Zeus est registrado em distintos captulos. Ele citado em

    diversos gneros da literatura antiga. Enfim, Zeus a principal referncia nos Jogos

    Olmpicos da Grcia antiga. Segundo o autor Eliade (1972),

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    Em nenhuma outra parte vemos, como na Grcia, o mito inspirar e guiar nos a poesia pica, a tragdia e a comdia (e acrescentaramos o lirismo), mastambm as artes plsticas: por outro lado, a cultura grega foi a nica asubmeter o mito a uma longa e penetrante anlise, da qual ele saiuradicalmente desmitizado. (ELIADE, 1972: p. 130)

    Zeus era representado nos vrios gneros da literatura e, nas artes plsticas, em

    escultura produzida para servir como prmio relacionado aos Jogos Olmpicos. De

    acordo com Duarte (2004), Os atletas que fossem descobertos trapaceando eram

    obrigados a pagar uma multa, cujo valor era revertido para a fabricao de esttuas de

    Zeus em bronze(DUARTE, 2004: p. 13).

    Em 354 a.C., portanto, 422 anos antes do incio dos Jogos Olmpicos, Plato

    estava com 60 anos de idade, quando declarou seu interesse em intervir na poltica. Nolivro de autoria de Plato, intitulada Eutfron, o nome de Zeus foi mencionado por mais

    de uma dezena de vezes. No conjunto de sua obra, alm de escrever sobre poltica, ele

    recorreu vrias vezes ao jogo como metfora. No Homo ludens [...] (HUIZINGA,

    2007) Plato foi o filsofo mais citado pelo autor Huizinga (2007). Ele escreveu sobre a

    natureza e significado do jogo como fenmeno cultural, citou caractersticas formais e

    essncias do jogo no rito e no culto. Ao falar sobre a relao do jogo com o ritual,

    recorreu a uma argumentao de Plato. Segundo Huizinga (2007),

    Esta identidade do ritual e do jogo era conhecida sem reservas por Plato,que no hesitava em incluir o sagrado na categoria de jogo. preciso tratarcom seriedade aquilo que srio, diz ele. S Deus digno da supremaseriedade, e o homem no passa de um joguete de Deus, e esse o melhoraspecto da natureza. Portanto, todo homem e mulher devem viver a vida deacordo com essa natureza, jogando os jogos mais nobres, contrariando suasinclinaes atuais... Pois eles consideram a guerra uma coisa sria, emborano haja na guerra jogo ou cultura dignos desse nome, justamente as coisasque ns consideramos mais srias. Portanto, todos devem esforar-se aomximo por viver em paz. Qual , ento, a maneira mais certa de viver? Avida deve ser vivida como jogo, jogando certos jogos, fazendo sacrifcios,cantando e danando, e assim o homem poder conquistar o favor dos deusese defender-se de seus inimigos, triunfando no combate. (HUIZINGA, 2007:p. 22)

    Para Huizinga (2007), o puro e simples jogo constituiu uma das principais bases

    da civilizao. Ele explicou que o instinto do jogo marcou profundamente a cultura,

    nutrindo as realizaes concernentes dana, ao combate, guerra, lei, cincia,

    poesia, filosofia e s artes. Seus estudos remontam a um passado distante, quando

    investiga, por exemplo, a representao sagrada e a competio solene, cujas formas

    originam como jogo e no jogo. Enfim, Huizinga (2007) nega a origem mstica do jogo,pois, para ele, o jogo anterior ao rito, ao culto e cultura.

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    Huizinga (2007) comeou a pensar na ntima relao existente entre o jogo e a

    cultura, baseado no estudo da histria, na imbricao do jogo na arte e na literatura.

    Segundo ele, Na histria, na arte e na literatura, tudo aquilo que vemos sob a forma de

    um belo e nobre jogo comeou por ser um jogo sagrado(HUIZINGA, 2007, p. 117).Seus estudos sobre o declnio da Idade Mdia foram de fundamental importncia para a

    sua compreenso do jogo como elemento da cultura. No Homo ludens: o jogo como

    elemento da cultura, o autor explicita a funo da memria no processo de repetio

    do jogo, fixando-se imediatamente como cultura. A transmisso do jogo e a sua

    manifestao atravs de diversas formas de expresses culturais culminam em tradio,

    em cultura por meio de um comportamento ldico.

    1.2 O jogo no sentido figurado e a categoria jogo: suas caractersticas

    A palavra jogo no sentido figurado usada em diferentes contextos ou em

    distintas situaes. Consideradas as circunstncias so usadas as expresses, abrir o

    jogo; jogo sujo; amaciar o jogo; amarrar o jogo; cantar o jogo; fora do jogo; jogar o

    jogo; jogo de esprito; jogos florais; jogos malabares; jogo de bzios; jogo de cena; jogo

    de parar. Segundo o autor Gadamer (2005),

    Se considerarmos o uso da palavra jogo dando preferncia ao chamadosignificado figurado, resultar o seguinte: falamos do jogo das luzes, do jogodas ondas, do jogo da pea da mquina no rolamento, do jogo articulado dosmembros, do jogo das foras, do jogo das moscas, at mesmo do jogo daspalavras. (GADAMER, 2005: 156)

    Em sentido figurado e amplo, tudo que move jogo. Segundo Gadamer

    (2005), O movimento que jogo no possui nenhum alvo em que termine, mas

    renova-se em constante repetio (GADAMER, 2005: p. 156). Segundo esse autor,

    [...] toda ao humana um jogo (HUIZINGA, 2007, p. 234); Seria mais ou menos

    bvio, mas tambm um pouco fcil, considerar jogo toda e qualquer atividade

    humana (HUIZINGA, 2007, p. 1 - prefcio). O movimento uma caracterstica

    essencial do jogo (onde ocorre movimento h jogo).

    Fazer alguma coisa uma disposio intrnseca do ser humano. Ato ou efeito de

    atuar pr em ao. Ao movimento, energia; modo de atuar; gesto; acontecimento;

    batalha; resultado de uma fora ou habilidade. O movimento uma das capacidades

    humanas. Os homens primitivos, em sua luta por sobrevivncia, executavam osmovimentos como andar, correr, pular, e arremessar. Realizaram os movimentos bsicos

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    dos jogos, mas isso no significa que eles jogaram quando estavam ocupados com a

    caa ou a retirada de alimentos naturalmente produzidos pela natureza. Mas, na ao de

    brincar ou divertir tambm realizaram movimentos. O ato de brincar em qualquer tempo

    e lugar significante para quem brinca. Jogar brincar, segundo Huizinga (2007), [...]o que importa justamente aquela qualidade que caracterstica da forma de vida que

    chamamos jogo(HUIZINGA, 2007, p. 6)

    ampla a forma de vida que chamamos jogo. Segundo Kuhn (2007),

    Tal questo muito antiga. Geralmente a respondemos afirmando quesabemos, intuitiva ou conscientemente, o que uma cadeira, uma folha ouum jogo. Isto , precisamos captar um determinado conjunto de atributoscomuns a todos os jogos (e somente aos jogos). Contudo, Wittgenteinconcluiu que, dada a maneira pela qual usamos a linguagem e o tipo de

    mundo ao qual a aplicamos, tal conjunto de caractersticas no necessrio.Embora a discusso de alguns atributos ou folhas freqentemente nos auxiliea apreender o termo correspondente, no existe nenhum conjunto decaractersticas que seja simultaneamente aplicvel a todos os membros daclasse e somente a eles (KUHN, 1978, p. 70).

    Ao longo de seu Homo ludens [...] (Huizinga, 2007) usa a palavra jogo em

    relao s caractersticas de jogo e tambm no sentido figurado, embora poucas vezes.

    Huizinga (2007), analisando a expresso tudo jogo afirmou: Em vez do milenar

    tudo vaidade, impe-se-nos uma frmula muito mais positiva, que tudo jogo. claro

    que isso uma metfora barata (HUIZINGA, 2007, p.. 235-236). A histria da

    humanidade, mostra a ocorrncia de competio de todas as formas, inclusive

    destrutiva.

    primeira vista parece que o respeito s regras a garantia de uma competio

    construtiva. Entretanto, o autor Kuhn (1978):

    refere-se grande dificuldade que encontramos para descobrir as regras queguiaram tradies especficas da cincia normal. Essa dificuldade aproximadamente idntica encontrada pelo filsofo que tenta determinar o

    que comum a todos os jogos (KUHN, 1978, p. 71).

    Huizinga (2007) investigou o xadrez nos seus estudos sobre o jogo como um

    elemento da cultura exatamente para discutir o que comum a todos os jogos. Em sua

    rdua pesquisa, recorreu aos estudos de historiadores, filsofos, antroplogos, e

    compreendeu a importncia do impulso competitivo, marcando e acompanhando a

    cultura. A luta permanente pelo prestgio, pela conquista da vitria. Segundo Kuhn

    (1978), Pode-se supor que em algum momento de sua formao, o cientista abstraiu

    intuitivamente as regras do jogo para seu prprio uso mas temos poucas razes para

    crer nisso (KUHN, 1978, p. 72).

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    Ao estudar sobre as estruturas das revolues cientficas, o autor Kuhn percebeu

    o clima de competio entre os cientistas. E comparou o estado de normalidade no

    conhecimento cientfico quando as regras do jogo so respeitadas. E a anormalidade

    exatamente aquela fase caracterizada pela emergncia das descobertas cientficas. Oavano do conhecimento cientfico ocorre quando supera as antigas regras, entretanto,

    simultaneamente criao de novas regras e conceitos baseados na experincia.

    Segundo Kuhn (1978), Na cincia, assim como na experincia com as cartas do

    baralho, a novidade somente emerge com dificuldade (dificuldade que se manifesta

    atravs de uma resistncia) contra um pano de fundo experimentado pelas expectativas

    (KUHN, p. 90-91).

    O autor Kant demonstrou a influncia terica que os bilogos exerceram nosculo XVIII, e examinou os problemas da apreciao esttica, estudou a beleza natural

    e artstica. Segundo Huizinga (2007), o jogo Ultrapassa os limites da atividade

    puramente fsica ou biolgica (HUIZINGA, 2007: p. 3). E um belo jogo nutre a

    cultura, ultrapassando os limites da atividade fsica ou biolgica. A poesia uma viso

    nova sobre a realidade, uma maneira singular de interpretar um momento privilegiado

    com uma atitude de quem inaugura o mundo, de quem contempla primordialmente.

    Esse momento da linguagem criadora pode registrar um enigma, um flagrante de

    emoo ou de graa. Agua a percepo, evoca qualquer coisa considerada importante,

    desperta sentimentos, diverte e nutre a cultura. Segundo Huizinga (2007):

    O homem primitivo procura, atravs do mito, dar conta do mundo dosfenmenos atribuindo a este fundamento divino. Em todas as caprichosasinvenes da mitologia, h um esprito fantasista que joga no extremo limiteentre a brincadeira e a seriedade. [...] dentro de um esprito de puro jogo(HUIZINGA, 2007, p. 7).

    O jogo possui a caracterstica do que intenso - seja pelo vigor, tenso, beleza,

    alegria, suavidade, elemento surpresa, fantasia, capacidade de excitao, divertimento.

    O jogo provoca fascnio. A intensidade do jogo e o seu poder de fascinao no podem

    ser explicados por anlises biolgicas(HUIZINGA, 2007, p. 5). O autor concluiu que

    os elementos essenciais da natureza do jogo humano so brincar mediante um certo

    ritual de atitudes e gestos [...] prazer e divertimento. [...] Existem [...] verdadeiras

    competies, belas representaes destinadas a um pblico(HUIZINGA, 2007, p. 3).

    O jogo tem diversas funes como fisiolgica (fsica ou biolgica), psicolgica, social,

    educacional, cultural, econmica e poltica. Jogar no fazer no sentido de ao oumovimento insignificante, ao contrrio, conforme nos afirma Huizinga (2007), o jogo

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    [...] uma funo significante, isto , encerra um determinado sentido. No jogo existe

    alguma coisa em jogo que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um

    sentido ao (HUIZINGA, 2007, p. 3-4). Implica, portanto, a presena de um

    elemento no material em sua prpria essncia(HUIZINGA, 2007, p. 4).O elemento ldico percebido em vrias formas de expresso cultural, como na

    poesia na fase mitopotica das civilizaes arcaicas e na brincadeira infantil. Ele

    expressaria opuro jogo, quando o jogo jogado pelo jogador que joga voluntariamente,

    por divertimento, por prazer e num clima de alegria, assim como na criao potica se

    joga e se brinca com as palavras. O esprito ldico do poeta lrico uma das formas de

    fator ldico. O elemento ldico impulsiona a imaginao criadora um verdadeiro

    fermento para a cultura. Neste sentido, a cultura nutrida pelo fator ldico.Entretanto, o fator ldico pode ser bom ou ruim. O fator ldico no puro jogo visvel.

    Mas, a apoteose do ldico no o jogo. O declnio do elemento ldico da cultura

    visvel no jogo entendido como o puro jogo. No puro jogo h um clima de alegria,

    divertimento, competio ldica, respeitando as regras livremente aceitas. A sociedade

    contempornea est intoxicada de jogo no sentido de competio. O jogo acompanha a

    cultura. O elemento ldico diminuiu na sociedade moderna, e ficou atrofiado na

    sociedade contempornea, segundo os estudos de Huizinga (2007).

    O puro jogo ocorre tal como a criana brinca: divertindo-se. O puro jogo realiza-

    se quando os jogadores jogam por divertimento, jogando com esprito esportivo

    respeitando as regras livremente aceitas e respeitadas por todos. Na prtica o respeito

    mtuo entre os jogadores que jogam num clima de alegria que resulta no puro jogo. O

    modelo abstrato para o puro jogo o conceito de jogo baseado nas qualidades positivas

    do jogo - universalmente aceitas. A competio ldica pressupe o esprito esportivo, o

    flair play a boa f (HUIZINGA, 2007).

    Huizinga (2007) estudou sobre o carter sagrado do jogo nas civilizaesarcaicas e concluiu: Os atos de culto, pelo menos sob uma parte importante de seus

    aspectos, sero sempre abrangidos pela categoria de jogo, mas esta aparente

    subordinao em nada implica o no reconhecimento de seu carter sagrado

    (HUIZINGA, 2007, p. 31). Assim, reconhecendo o carter sagrado do jogo, ele explica

    que o fator ldico um impulso do ser humano desde as suas origens mais distantes,

    independente do carter sagrado. H diferentes anlises sobre uma mesma realidade,

    como numa cerimnia estudada por Ponce (1985): Na cerimnia chamada do ltego,

    por exemplo, todos os anos os jovens eram aoitados violentamente diante do altar de

    Artemisa, sem que se lhes permitisse queixar-se, sob pena de desonra. O que se

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    mostrava mais impassvel era proclamado o vencedor do altar (PONCE, 1985, p. 41).

    Nessa cerimnia, o nome do instrumento empregado no aoite, o ltego chicote de

    cordas ou correias, foi tomado para designar o prprio evento. Essa cerimnia da Grcia

    arcaica no foi interpretada pelo autor Ponce (1985) como uma espcie de jogo.Baseado nos estudos de Huizinga (2007) possvel compreender que na cerimnia do

    ltego esto presentes as caractersticas formais do jogo, como regra (proibio de

    queixar-se), resultado (proclamao do vencedor). As competies de todo gnero

    desempenham um papel relevante na cultura.

    O combate armado entendido como um torneio mortfero uma espcie de jogo

    O jogo um combate e o combate um jogo(HUIZINGA, 2007, p. 47). Huizinga

    empregou a palavra combate no contexto da cultura primitiva e uma de suas fontes depesquisa a Bblia, no Antigo Testamento o Livro de Samuel (II, 14)(HUIZINGA,

    2007, p. 47). No segundo livro de Samuel, em seu captulo 2, versculo 14-16 pode-se

    ler:

    14Abner disse Joab: aproximam-se os jovens para lutar em nossa presena. Vamos! respondeu Joab. 15 Apresentaram-se pois, doze homens deBenjamim, da parte de Isboset, filho de Saul, e doze da gente de Davi. 16

    Tomando cada um a cabea do seu adversrio, mergulhou-lhe a espada noflanco, de tal modo que caram ambos ao mesmo tempo. Deu-se a este lugaro nome Helcat Hasurim, em Gabaon [...] Helcat Hassurim: Ainda no se

    sabe como traduzir esta palavra. Provavelmente houve um problema decpia (BBLIA SAGRADA, 1959, p. 338).

    Segundo os estudos de Huizinga (2007), as palavras Helcat Hasurim

    significam Campos dos Fortes (o lugar onde caram os lutadores atingidos pela

    espada do inimigo). Para Huizinga, no combate a luta limitada por certas regras e

    desenvolvida em um clima de tenso, competio, sorte, resultados.

    A competio uma importante caracterstica do jogo, segundo Huizinga (2007)

    A competio no se estabelece apenas por alguma coisa, mas tambm em e comalguma coisa (HUIZINGA, 2001: p. 59). Onde h movimento e competio h

    caractersticas de jogo. Na poltica h movimento e competio, no entanto, quando ela

    no sria, um falso jogo. A seriedade de fundamental relevncia na estrutura do

    jogo. Desconhecer as regras ou conhecer e jogar desconsiderando-as, uma prova de

    que o jogador no entrou no jogo entendido como verdadeiro jogo.

    A transio do divertimento ocasional para a existncia da competio

    organizada por meio de clubes e federaes um fenmeno sociocultural verifica-se

    isso no processo histrico. Segundo Huizinga (2007), A aceitao dos jogos e dos

    exerccios corporais como valores culturais importantes s surgiu com o final do sculo

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    XVIII(HUIZINGA, 2007, p. 218). Na prtica, era pequena a aceitao do xadrez como

    atividade de lazer cultural at o sculo XVIII. Segundo Shenk (2008):

    A ampla mudana do trabalho no campo para o das fbricas, no sculo XIX,deixou os trabalhadores inicialmente sem qualquer tempo sobrando. Ascondies eram terrveis e os horrios, esmagadores. Enquanto continuavaatraindo a aristocracia, ele penetrou profundamente na crescente classe mdiaeuropia (SHENK, 2008: p. 119).

    Na Idade Moderna, percebe-se que um jogo considerado uma coisa sria

    quando ele se torna esporte. Desde o ltimo quartel do sculo XIX que os jogos, sob a

    forma de esportes, vm sendo tomados cada vez mais a srio (HUIZINGA, 2007, p.

    219). A organizao social, econmica e poltica da Inglaterra no sculo XIX, resulta

    no surgimento do uso do jogo em carter utilitrio. Segundo Tubino (2006),

    O esporte moderno surgiu no sculo XIX, na Inglaterra, concebido porThomas Arnold, um idealista determinado a mudar o mundo e fortementeinfluenciado por Charles Darwin, cientista ingls que formulou a teoria daevoluo das espcies. A relao com Darwin poderia explicar a tentativa deArnold de emprestar ao esporte um carter utilitrio. Ele reconhecia na suaconcepo de esporte trs caractersticas principais: um jogo, umacompetio e uma formao (TUBINO, 2006, p. 15).

    Para o jogo se consolidar como instrumento de formao, foi empreendida sobre

    ele uma srie de alteraes como ordenao, legalizao, justificativas subsidiadas por

    diversas reas de conhecimento cientfico. Huizinga (2007) estudou sobre esse processo

    de organizao do esporte e disse: [...] esta sistematizao e regulamentao cada vez

    maior do esporte implica a perda de uma parte das caractersticas ldicas mais puras

    (HUIZINGA, 2007, p. 219).

    Fora da ambincia escolar, o jogador que joga por divertimento escolhe o

    momento de praticar o jogo, opta por uma ou outra modalidade ou simplesmente brinca

    brincar no sentido de jogar. Uma coisa a iniciativa dos alunos no horrio deintervalo das aulas, divertir-se por meio de brincadeiras e jogos. Outra coisa praticar

    esporte em dias, horrios e locais determinados, em carter de obrigatoriedade e com

    propsitos expressos no planejamento escolar, sujeito a avaliao, superviso,

    burocracias, mltiplas exigncias como levar a competio seriamente treinar para

    melhor representar a instituio, exercitar para desenvolver habilidades teis em outras

    atividades. Nesse processo de sistematizao e valorizao do esporte, o fator ldico,

    segundo Huizinga (2007), ficou atrofiado.

    A seriedade no esporte resultou na profissionalizao de jogadores talentosos ou

    extremamente dedicados ao treinamento e participao nos eventos esportivos.

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    Participam diretamente do esporte profissional: jogadores, rbitros, tcnicos,

    organizadores, empresrios, etc. H um jogo de interesses em megaeventos como Jogos

    Olmpicos. A comunidade anfitri a cidade sede de Jogos diretamente beneficiada

    com a construo de estdios, vila olmpica (apartamentos), reforma de prdiospblicos. Percebe-se o aumento de turistas durante e aps a realizao dos Jogos. O

    encontro de pessoas de diversos pases favorece um intercmbio cultural e h sempre

    ampla divulgao por meio da mdia. O governo responsvel pela organizao dos

    Jogos aproveita para demonstrar capacidade administrativa, poltica e econmica. O

    legado dos jogos ultrapassa a esfera cultural. Os aspectos negativos ocorridos antes,

    durante e aps a realizao dos jogos tambm so investigados e considerados

    importante fonte de pesquisa para diversas reas de conhecimento. Segundo Miah ,No contexto do doping, o status moral do esporte foi freqentementequestionado, tanto por crticos culturais como por filsofos. Pode ter sidoalegado que esporte constri carter, mas uma abordagem maisrealista dasculturas esportivas reconhece a capacidade do esporte de provocarcaractersticas negativas de comportamento (Miah, apudRubio 2007, p 27)

    Um modo de perceber o interesse pelo esporte no mbito competitivo o

    aumento do nmero de provas e esportes nos Jogos Olmpicos da Idade Moderna e no

    mundo contemporneo. A rivalidade entre os pases participantes, representados pelosatletas, fez crescer o nmero de casos de doping (uso ilegal de drogas com o propsito

    de obter melhores resultados na competio). Os atletas cujo uso ilegal de drogas foi

    comprovado devolveram para a comisso organizadora, as medalhas conquistadas

    ilegalmente. Segundo Rubio [et. ali.] (2007):

    Passado pouco mais de um sculo, a defesa do Olimpismo, enquanto idealdo movimento Olmpico, tem seguido as necessidades ou tendnciasinternacionais ditadas pelos interesses que despontam no momento. Questescomo doping, fair play, amadorismo, remodificao gentica, influncia da

    mdia ou gnero so temas recorrentes nos eventos internacionaisrelacionados com o tema Olimpismo (RUBIO [et. ali.] 2007, p. 7). Prefcio.

    No Homo ludens [...] Huizinga (2007) fala sobre ofair play no sentido amplo

    a necessidade de uma conduta impulsionada pelo esprito esportivo (o bom humor, a

    boa f atitude digna em qualquer atividade ou circunstncias da vida humana,

    portanto, inclusive no esporte ( necessrio respeitar as regras). Nas atividades srias da

    vida necessrio respeitas as leis. O fora da lei o desmancha-prazeres

    (HUIZINGA, 2007, p. 231).

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    Para esse autor, outra caracterstica fundamental do jogo a representao. Ele

    no vida corrente nem vida real, mas uma representao da realidade ou daquilo

    que se deseja. Embora o jogo distinga-se da vida comum, ele pode se configurar como

    imaginao da realidade. neste sentido que Huizinga elucida o jogo no contexto doconceito de representao. Para Huizinga, Representar significa mostrar, e isto pode

    consistir simplesmente na exibio, perante um pblico, de uma caracterstica natural

    (HUIZINGA, 2007: p. 17).

    Ilustrao de jogo como exibio perante um pblico se encontra na Grcia

    arcaica. A vida dos gregos era dominada pelo jogo sua cultura consagravase prtica

    dos jogos. As modalidades de jogo variavam entre atletismo, luta, corrida de cavalo e

    pentatlo, modalidade que inclua luta, corrida, salto em distncia, arremesso de dardo ede disco. Os jogos eram verdadeiros festivais, reunindo atletas e espectadores

    provenientes das mais variadas cidades gregas. Era uma confraternizao, que reunia

    competidores de tendncias diversas. Realizados em Olmpia, os Jogos Olmpicos

    homenageavam o deus Jpiter e ocorriam a cada quatro anos, e resistiram ao longo de

    mais de doze sculos. Ao todo, mais de 290 edies. Considerados um evento com rito

    e essncia politestas, os Jogos foram proibidos por Teodsio I, Imperador de Roma, em

    394 dC. Foram retomados somente em 1896, em Atenas, incluindo tnis, ciclismo e luta

    livre. E com mais 108 anos, as Olimpadas voltariam novamente Grcia em 2004,

    contudo em outro contexto sociocultural.

    A denominada Olimpada , atualmente, a mais importante competio esportiva

    internacional. Geralmente a palavra olimpada empregada em relao aos Jogos

    Olmpicos. Entretanto, cronologicamente, o termo olimpada era usado na Grcia antiga,

    para designar cada um dos intervalos de quatro anos entre dois jogos olmpicos pelo

    qual o ano era contado. Segundo Meinberg:

    Olmpia grega clssica era uma glorificao do tipo humano agonstico. Aque se manifesta no ethos competitivo da Grcia Antiga (...) O antigo ethosesportivo da competio era idntico ao ethos guerreiro, que inclua atmesmo a morte gloriosa (MEINBERG, 2007: p. 59).

    A retomada dos jogos olmpicos na era moderna tenta construir um ethos

    esportivo baseado no respeito s regras e na valorizao da participao. Mas, na

    prtica, os jogos ocorrem num clima de intensa competio e algumas vitrias resultam

    em contestao sob o ponto de vista tico. O tipo humano agonstico manifesta-se de

    diversas formas e, em algumas provas, a dor, o sofrimento e os meios para obter os

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    melhores resultados so facilmente colocados em xeque. O ethos guerreiro no ficou

    preso ao passado, e o carter competitivo do ser humano requer auto-controle.

    1.3. O declnio do fator ldico

    A essncia do jogo para Huizinga (2007) o fator ldico o divertimento, a

    competio ldica. Segundo ele: O esprito de competio ldica, enquanto impulso

    social [...] e a prpria vida est toda penetrada por ele, como um verdadeiro fermento

    (HUIZINGA, 2007, p. 193). Ele pergunta: O problema que aqui nos interessa o

    seguinte: em que medida a cultura atual continua se manifestando atravs de formas

    ldicas? At que ponto a vida dos homens que participam dessa cultura dominada peloesprito ldico? (HUIZINGA, 2007, p. 217).

    Segundo ele o esprito ldico do jogo entrou em declnio como elemento da

    cultura, principalmente na sociedade moderna e contempornea. Os estudos de Huizinga

    (2007) sobre a Roma Antiga possibilitaram-lhe comear a perceber a diminuio do

    fator ldico como elemento da cultura no transcorrer da histria.

    A vida tornou-se um jogo cultural; continua presente em forma de ritual,mas desapareceu o esprito religioso. Todos os impulsos espirituais mais

    profundos abandonam esta cultura superficial, procurando refgio nasreligies dos mistrios. E quando finalmente o cristianismo separa acivilizao romana de seu fundamento ritual, este murcha rapidamente(HUIZINGA, 2007, p. 199)

    O elemento ldico pode ser encontrado na literatura, na arte, na decorao da

    estrutura fsica do Imprio romano, no discurso pblico, no hipdromo local onde

    eram realizadas as corridas a cavalos, e no circo anfiteatro com camarotes e

    arquibancadas onde se realizavam jogos e espetculos pblicos. Do sculo IX ao sculo

    XIV, devido necessidade de se formar cavaleiros foram incentivadas modalidadestendo como base a equitao. Surgiram, ento, as justas e os torneios. As justas eram

    combates praticados entre dois cavaleiros, tinham carter esportivo, e eram praticados

    pelos nobres. Lauand (1988), citando O livro del acedrex (O livro de xadrez) [...] obra

    [...] escrita pessoalmente por D. Alfonso X (1221-1284) (LAUAND, 1988, p. 53), diz

    que segundo de D. Alfonso,

    Alguns desses jogos se praticavam a cavalo: bofordar e manejar lanas eescudos atirar com besta ou arco, e manejar lanas e qualquer outros que se

    pratiquem cavalgando. E embora envolvam uso de armas, so chamadosjogos porque se trata de mera simulao de combates (LAUAND, 1988, p.65).

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    Na Idade Mdia, segundo Ponce (1985),

    Os torneios, como festas de nobres ociosos, s surgiram nos tempos dadecadncia do feudalismo. Durante o esplendor da nobreza, os torneios eram

    operaes lucrativas que poucas vezes punham em risco a vida do cavaleiro(PONCE, 1985, p. 95).

    No final da Idade mdia, eram realizadas as justas - torneio em que dois

    cavaleiros armados de lanas, indo um na direo do outro com o propsito de atacar e

    defender por meio de habilidade e fora. Era proclamado vencedor aquele que conseguir

    derrubar o oponente. O adversrio desmontado pela ao do contendor considerado

    derrotado. Diferente da guerra, pois a justa desenvolvida diante de um pblico que

    busca apreciar uma representao da guerra. Sobre a justa, Huizinga disse: O esporte

    que consistia em vencer o adversrio por meio da razo ou do poder da palavra tornou-

    se algo comparvel profisso das armas(HUIZINGA, 2007, p. 173). Um espetculo

    baseado em regras de conduta para os participantes bem como para os assistentes.

    Segundo Huizinga, Os torneios e justas, as ordens, os votos, os ttulos, so

    vestgios dos ritos de iniciao primitivos (HUIZINGA, 2007, p. 117). No que diz

    respeito cavalaria medieval, ela reconhecida como um elemento cultural mantido de

    maneira artificial, no obstante, propositadamente parcialmente ressuscitado. Sob esse

    aspecto, relevante a seguinte anlise de Huizinga: Mas o suntuoso aparato doscdigos de honra, de conduta corts, da herldica, das ordens de cavalaria e dos torneios

    no havia ainda perdido seu significado mesmo j perto dos fins da Idade Mdia.

    (HUIZINGA, 2007: p. 118). Sobre esse perodo, afirmou a presena constante do

    elemento ldico tanto nos jogos populares, nos jogos da cavalaria quanto nos jogos

    sofisticados do amor corts, e conclui:

    Em resumo, a Idade Mdia conheceu uma influncia extraordinria doesprito ldico, no quanto estrutura interna das instituies, que era deorigem predominantemente clssica, mas quanto ao cerimonial atravs doqual essa estrutura era exprimida e ornamentada (HUIZINGA, 2007, p. 200-201).

    O processo de declnio do ldico, tal como observa o autor, comearia a se

    intensificar a partir do sculo XVIII. O movimento intelectual caracterizado pela

    centralidade da cincia e da racionalidade colocou em xeque todo poder sustentado em

    dogmas e doutrinas tradicionais. As dominantes da civilizao eram a f, a conscincia

    religiosa, as aspiraes de salvao baseadas nas palavras consideradas reveladas e

    sagradas. Segundo Huizinga,

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    [...] no sculo XVIII o utilitarismo, a eficincia prosaica e o ideal burgus dobem-estar social [...] haviam deixado uma forte marca na sociedade. Estastendncias foram exacerbadas pela revoluo industrial e suas conquistas nodomnio da tecnologia. O trabalho e a produo passaram a ser o ideal dapoca, e logo o seu dolo. Assim, as dominantes da civilizao passaram a ser

    a conscincia social, as aspiraes educacionais e o critrio cientfico(HUIZINGA, 2007, p. 212-213)

    Uma das transformaes sociais ocorridas no transcorrer da histria marcada

    pelas mudanas provocadas na economia e na poltica teve como resultante uma

    excessiva jornada semanal de trabalho. Os trabalhadores agregados nesta engrenagem

    social, no dispunham de tempo para os jogos. E o xadrez no era uma modalidade

    popular. Sobre a prtica no enxadrismo, segundo Shenk: no sculo XVIII. O xadrez

    era, simplesmente, a recreao de elite para os importantes membros que compunham odespertar cientfico e cultural que hoje conhecido como Iluminismo(SHENK, 2007,

    p. 98).

    No sculo XVIII surgiram iniciativas baseadas no conhecimento cientfico com

    o propsito de melhor compreender os benefcios da atividade fsica e normatizar a

    prtica da ginstica. No final do sculo XVIII, os jogos foram considerados atividades

    para o condicionamento fsico e educao fundamental para o homem. O surgimento do

    esporte moderno ocorre baseado nos jogos que sobreviveram ao tempo como legado

    cultural de geraes anteriores. Os objetivos no esporte extrapolam a esfera ldica. Essa

    manifestao cultural comeou a apresentar modificaes marcantes como uma

    organizao em forma de clubes articulados com federaes e outras entidades. A

    prtica esportiva passou a ser administrada levando em consideraes outros tempos

    sociais. O esporte recebe ateno de professores, passa a conquistar o direito de ser

    orientado por tcnicos e sua prtica regulada por rbitros especializados. Segundo

    Huizinga (2007),

    O clube uma instituio das mais antigas, mas desastroso que naesinteiras se transformam em clubes, pois estes no so apenas propcios aocultivo de qualidades inestimveis como a amizade e a lealdade, so tambmfonte de sectarismo, intolerncia, desconfiana, e da tendncia para aceitartoda e qualquer iluso que seja lisonjeira para o orgulho do grupo(HUIZINGA, 2007, p. 228).

    Ao perceber essa decadncia do elemento ldico na cultura do sculo XVIII,

    Huizinga (2007) comenta que

    Cada vez mais fortemente se nos impe a triste concluso de que o elementoldico da cultura se encontra em decadncia desde o sculo XVIII, poca queflorescia plenamente. O autntico jogo desapareceu da civilizao atual, e

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    mesmo onde ele parece ainda estar presente cada vez mais difcil dizer ondeacaba o jogo e comea o no-jogo (HUIZINGA, 2007, p. 229).

    O autntico jogo jogado segundo a perspectiva do jogador que joga por

    divertimento e voluntariamente num clima de alegria. O autor chama de puro jogo a

    competio ldica, como os jogos infantis. No sculo XIX, as iniciativas em prol da

    construo do esporte moderno foram intensificadas como resultante do rpido processo

    de industrializao e urbanizao. Foi neste momento que a ginstica recebeu uma

    maior ateno na educao formal. Segundo Huizinga (2007): A cincia analtica e

    experimental, a filosofia, o reformismo, a Igreja e o Estado, a economia, tudo no sculo

    XIX se revestia da mais extrema seriedade. [...] Jamais se tomou uma poca to a srio,

    e a cultura deixou de ter alguma coisa com o jogo (HUIZINGA, p. 213).Em 1933, na Alemanha com Adolf Hitler no poder, foi intensificado o uso da

    propaganda em prol da expanso do nazismo. De acordo com o autor Benjamim (1986),

    os regimes fascistas procuraram no contexto da estetizao da poltica exercer um

    controle ideolgico atravs de ampla utilizao de smbolos, signos, mitos e ritos.

    Segundo destaca Hobsbawn (1995),

    Em 1933, Hitler subiu ao poder na Alemanha com um programa que ele notentava ocultar. [...] Em 1935, a Alemanha comunicou sua ruptura com os

    tratados de paz e ressurgiu como grande potncia militar e naval,reapossando-se (por plebiscito) da regio do Saar em sua fronteira ocidentale desligando-se com desprezo da Liga das Naes (HOBSBAWN, 1995, p.147).

    Em 1936, na Alemanha, foram realizados os Jogos Olmpicos de Berlim, com o

    propsito de reforar e legitimar os ideais polticos do nazismo. A idia de

    superioridade da raa ariana deixou os atletas representantes da Alemanha, imbudos da

    difcil misso de tentar conquistar importantes vitrias nas piscinas, nas quadras e

    pistas. No seu Homo ludens: o jogo como elemento da cultura [...] 1938, Huizinganada disse sobre os Jogos Olmpicos de Berlim (1936), pois, para ele este evento

    esportivo no foi resultante do fator ldico. O elemento ldico diminuiu na sociedade

    moderna, e ficou atrofiado na sociedade contempornea Para Huizinga (2007): A

    propaganda comparvel com o verdadeiro jogo, que tem seu fim em si mesmo, e s

    numa feliz inspirao encontra seu esprito prprio(HUIZINGA, 2007, p. 234.

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    1.4. O xadrez noHomo ludens

    O fator ldico, de acordo com Huizinga, inerente a todas as modalidades da

    categoria jogo, entretanto no xadrez existe um excesso de seriedade. Como para o autora seriedade o no-jogo e por considerar o xadrez demasiadamente srio, ele o

    classificou como um jogo de clculo e no como um jogo atltico e encontrou nele

    muitas das caractersticas de jogo universalmente aceitas. Referindo-se s caractersticas

    dos jogos, o autor afirma:

    E h, diretamente ligada sua limitao no tempo, uma outra caractersticainteressante do jogo, a de se fixar imediatamente como fenmeno cultural.Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma

    criao nova do esprito, um tesouro a ser conservado pela memria. transmitido, torna-se tradio. Pode ser repetido a qualquer momento, queseja jogo infantil ou jogo de Xadrez (HUIZINGA, 2001, p. 12-13).

    . Sem dvida, ao xadrez pode-se atribuir importncia cultural, pois impossvel

    ignorar sua permanncia como criao do esprito bem como sua transmisso e

    evoluo no transcorrer da histria e, neste processo, o xadrez no perdeu sua essncia

    ldica. Em relao importncia da repetio do jogo como, condio bsica para que

    possa tornar-se cultura, o jogo de xadrez um elemento da cultura que dispe de um

    rico e amplo acervo oriundo da prtica de notao dos lances de inmeras atividades

    enxadrsticas. O xadrez jogo, e a competio ldica a sua essncia, embora, como

    afirma Huizinga (2007), Os jogos infantis, o futebol e o xadrez so executados dentro

    da mais profunda seriedade, no se verificando nos jogadores a menor tendncia para o

    riso(HUIZINGA, 207, p. 8).

    O fator ldico na prtica e no estudo do xadrez to intenso, que os jogadores se

    apegam estrutura do jogo. O dinamismo na prtica do enxadrismo uma expresso

    mental o que confirma a preciso de Huizinga na referncia que faz sobre a natureza doxadrez, identificando-o como uma modalidade no atltica, e como jogo de clculo:

    E outro exemplo da tendncia fatal para o excesso de seriedade so os jogosno atlticos baseados no clculo, como o xadrez e os jogos de cartas(HUIZINGA, 2007, p. 220).

    O que representa o xadrez para cada jogador subjetivo. Para o assistente no

    enxadrista e com um mnimo de conhecimento sobre a estrutura do xadrez, difcil

    compreender a estranha beleza desse jogo. A histria mostra que o incio do xadrez,bem como seu desenvolvimento milenar, no foi, evidentemente, inveno de qualquer

    indivduo isolado, mas resultante da criao e sistematizao cumulativa de inmeros

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    aficionados em muitas terras. Pode-se dizer ento que o xadrez resultado de

    experincias coletivas e histricas, ou dizer com Horton (1973):

    O jogo, como hoje conhecido, um composto de foras materiais, suasposies e seus movimentos no tempo e no espao. Todos esses elementos semisturam simbolicamente em uma completa luta pela sobrevivncia(HORTON, 1973, p. 191).

    O fator ldico do xadrez est intimamente associado prtica no enxadrismo,

    portanto, estrutura do jogo. Para os estudiosos enxadristas a estrutura do jogo objeto

    de pesquisa, e como tal as teorias enxadrsticas so assuntos seriamente estudados.

    Segundo Huizinga: o divertimento do jogo resiste a toda anlise e interpretao

    lgicas (HUIZAINGA, 2007, p. 5). Para esse autor o divertimento est associado

    tenso, alegria e ao riso. Neste sentido, o xadrez sui generis. Essa expresso usada

    pelo autor para aludir seriedade com que alguns jogadores praticam o jogo:

    Uns e outros vo levando o esporte cada vez mais para longe da esferaldica propriamente dita, a ponto de transform-lo numa coisa sui generis,que no jogo nem seriedade (HUIZINGA, 2007, p. 220).

    No final do sculo XX e incio do sculo XXI, a Federao Internacional de

    Xadrez promoveu congressos e seminrios sobre o xadrez e a educao, o xadrez e a

    arbitragem, o xadrez e o condicionamento fsico e o preparo psicolgico do enxadrista.

    A seriedade no enxadrismo atualmente abrangente e diversificada. O xadrez passou a

    ser considerado um jogo srio por meio de inovaes em sua estrutura, tais como,

    supresso dos dados, objetivo de dar xeque-mate, elevando-o a uma modalidade de jogo

    essencialmente posicional. Segundo Huizinga: Os jogos de cartas diferem dos jogos de

    tabuleiros na medida em que jamais chegaram a eliminar completamente o fator sorte

    (HUIZINGA, 2007, p. 221). A minimizao do fator sorte na prtica do xadrez serviu

    para elevar essa modalidade de jogo de tabuleiro categoria de jogo de estratgiavalorizado pelos matemticos. Isso colaborou para a sua divulgao no ambiente

    escolar.

    Para Huizinga,

    Procurar ver se h um contedo ldico na confuso da vida moderna podelevar-nos a concluses contraditrias. No caso do esporte temos umaatividade nominalmente classificada como jogo, mas levada a um grau tal deorganizao tcnica e de complexidade cientfica que o verdadeiro espritoldico se encontra ameaado de desaparecimento (HUIZINGA, 2007, p.

    221).

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    A organizao tcnica dos torneios, campeonatos e demais eventos enxadrsticos

    so valorizados pelos enxadristas da antiga e das novas geraes de aficionados.

    Huizinga disse: Desde o ltimo quartel do sculo XIX que os jogos, sob a forma de

    esportes, vm sendo tomados cada vez mais a srio (HUIZINGA, 2007, p. 219). Em1924, foi criada a Federao Internacional de Xadrez, e sua iniciativa em prol do xadrez

    nas escolas valorizado pela UNESCO.

    No prximo captulo ser traada um a viso histrica e mostradas as metforas

    atribuda ao jogo de xadrez e os usos desse jogo.

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    CAPTULO 2:

    HISTRIA, METFORAS E USOS DO XADREZ

    2.1 Xadrez e Histria

    inegvel que existem muitas facetas no jogo de xadrez. O xadrez possibilita

    mltiplas perspectivas, como se fosse um caleidoscpio de idias. significativo dizer

    que o xadrez um excelente exemplo de que ludicidade e cultura so compatveis. A

    evoluo da estrutura do xadrez, seu equipamento, as justificativas para a sua prtica e

    estudo sofreram modificaes no transcorrer da histria, desde a sua origem no sculo

    VI at o inicio do sculo XXI. Estudar a evoluo do xadrez como uma resultante das

    transformaes sociais importante, desmistific-lo como uma criao individual. O

    xadrez um patrimnio cultural da humanidade, construdo por diversas geraes ao

    longo de seus mais de 1500 anos de histria.O xadrez um jogo clssico de estratgia e seu antecessor o jogo indiano do

    sculo VI denominado Chaturanga, um Antigo jogo hindu, geralmente considerado

    o antepassado de nosso jogo de xadrez moderno (HORTON, 1973, p. 59). Alm de

    evidncias filolgicas, inmeros autores dizem em conformidade com S e Rocha, a

    respeito da prtica do Chaturanga : no Noroeste da ndia que se encontram as

    primeiras fontes arqueolgicas reconhecidas como verdadeiras. Aproximadamente no

    ano 570 de nossa era, nasce o jogo dos quatro membros (Chaturanga, em snscrito), o

    ancestral direto do xadrez (S E ROCHA, 1997: p. 67).

    A expresso os quatro membros, significa as quatro divises do exrcito

    indiano, portanto, elefantes, cavalos, carros e soldados a p. Uma partida deste jogo

    envolvia quatro jogadores. Cada um deles jogava e dispunha de oito peas, ou seja, um

    Ministro, um Cavalo, um Elefante, um Navio e quatro Soldados. Os quatro conjuntos

    perfazendo um total de trinta e duas peas devidamente arranjadas sobre um tabuleiro

    quadrangular formado por sessenta e quatro quadrados. Cada lance era precedido de

    lanamento de dois dados, cuja soma dos nmeros determinava de certa maneira a ao

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    do jogador no que diz respeito ao desenvolvimento da partida, em virtude de ter que

    movimentar uma ou duas peas correspondentes aos nmeros apontados.

    O Chaturanga foi difundido basicamente em dois sentidos, um em direo ao

    Leste, e o outro ao Oeste. Por um lado, na regio situada ao Leste, o Chaturanga: naChina, denominado Siang Ki - jogo do elefante; na Coria e no Japo,

    respectivamente, Tjyang Keui e Sho-gi, ambos so reconhecidos como jogo do

    general. Por outro lado, na regio situada ao Oeste na Prsia, o referido jogo indiano

    designado Chatrang, ou seja, jogo de xadrez (S e ROCHA, 1997).

    Os persas valorizaram o Chatrang, atribuindo-lhe um significativo e diversificado

    vocabulrio que paulatinamente tornou-se reconhecido internacionalmente, de modo a

    fomentar e valorizar o estudo e a prtica do enxadrismo baseado em complexas inovaes.Dentre outras importantes modificaes, o Chaturanga, que era praticado por quatro

    jogadores, passou a ser disputado entre dois adversrios, sendo um jogador condutor das

    peas brancas e outro das peas vermelhas. (SHENK: 2008)

    O Chatrang foi divulgado e simultaneamente cria-se uma nova pea: o X (rei).

    Em conformidade com a explicao de Shenk: os mulumanos rabes mudaram a

    palavra chatrang para shatrang, e em pouco tempo se apropriaram do jogo. (SHENK,

    2006, p. 40). Mas, como o Chatrang foi conhecido pelos rabes? Segundo Shenk:

    O Isl fez a Arbia transformar-se em uma superpotncia. Passadas duasdcadas da morte de Maom, em 632, o novo imprio muulmano controlavaa Prsia, a Sria, o Egito e partes do Norte da frica. Na Prsia, osmulumanos encontraram o chatrang, um jogo de guerra sem derramamentode sangue baseado unicamente no intelecto dos jogadores. (SHENK: 2008:p. 39)

    Assim sendo, neste processo de migrao e transformao do xadrez, segundo as

    pesquisas de S e Rocha,

    Por volta do ano 651 d.C., com a conquista da Prsia, os rabes adotam estejogo, valorizando-o e difundindo-o por todo o Norte da frica, assim comopor todos os reinos europeus dominados nos sculos seguintes, em particularpara a Espanha (Acedrex, Axedres, Ajedrez), Portugal (Xadrez), a Siclia(Scachi, Scacchi) e a costa francesa do Mediterrneo (Eshec, Eschecz,Eschecs, checs). (S e Rocha, 1997: p. 68).

    Nos sculos VII, VIII e IX, essa modalidade de jogo se fundiu nova cultura

    mulumana atravs de problemas enxadrsticos e inmeras partidas disputadas. Dentre

    os praticantes do xadrez, alguns califas foram reconhecidos como os melhores

    aficionados. Aqueles jogadores rabes que se tornaram os primeiros tericos do xadrez

    deram uma valiosa colaborao quanto divulgao desse jogo, pois seus manuscritos

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    intitulados Mansoubt constituram-se em importante legado cultural. No sculo IX, Al

    Adli foi um dos melhores jogadores de xadrez e, aproximadamente em 840, ele publica

    um manuscrito sobre esse jogo. Entretanto, o texto original foi perdido. (SHENK: 2008,

    S e Rocha: 1997).Segundo Shenk: Fica tambm claro que, para os islmicos que o adotaram, o

    jogo transcendeu o mero entretenimento (SHANK, 2008: p. 40) Sobre isso, esse autor

    afirma que

    As implicaes de casta no xadrez seduziram rapidamente a imaginaopopular, com a arrumao das peas vista como um microcosmo no s deum exrcito em guerra, mas tambm, mais geralmente, da sociedade humana,com seu todo-poderoso monarca, sua nobreza privilegiada e seusdispensveis camponeses. Um conjunto de xadrez no era por si e de si

    prprio, um comentrio social, mas, com seus rtulos cristalinos doscomponentes da sociedade, de fato ele convidava intensamente ao comentriosocial. (SHENK: 2008: p. 40)

    Muitos membros das classes superiores, e at mesmo alguns califas, aficionados

    do xadrez, decidiram combater a atitude hostil dos juristas em relao prtica desse

    jogo, buscaram, portanto, encontrar no livro sagrado, ou seja, no Alcoro, ao menos

    uma frase que pudesse ser usada com o propsito de abolir a proibio da prtica

    enxadrstica. A procura foi em vo, no entanto um dos califas teve a idia de explorar o

    xadrez como uma representao da guerra. A noo do jogo de xadrez associado

    guerra foi usada como o principal argumento para que a prtica do xadrez deixasse de

    ser proibida entre os rabes influenciados pelo islamismo. Afinal, Maom valorizava os

    jogos de guerra e menosprezava os jogos de azar.

    Percebe-se que a seriedade atribuda ao xadrez facilitou a sua prtica. Segundo

    Lasker (1999),

    sabido que Maom odiava os jogos de azar, mas deu sua aprovao a

    jogos de guerra. Evidentemente, o xadrez no podia ser classificado comodivertimento permissvel e uma opinio legal foi logo definitivamentefirmada contra a sua prtica. Era uma questo sria (LASKER, 1999, p. 49).

    Assim sendo, o xadrez foi reconhecido como um jogo de guerra, passvel de ser

    praticado como exerccio mental relacionado a estratgias e tticas de guerra,

    subtraindo-se, portanto, da prtica do enxadrismo o fator diverso. Essa analogia entre o

    xadrez e a guerra ainda bastante ressaltada, como se pode ver em verbetes de

    dicionrios, por exemplo, noDicionrio Houaiss(2001) que usa a palavra exrcito e no

    Moderno dicionrio de xadrez de Byrne J. Horton (1973) que emprega apalavra

    batalha, ambas relacionadas na definio de jogo de xadrez. Desse modo, o xadrez um

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    jogo que simula conflito entre dois exrcitos em virtude de batalha entre dois reinos. No

    Novo Dicionrio da Lngua Portuguesade Aurlio B. de H. Ferreira: na definio de

    jogo, dentre os diversos exemplos de uso da palavra jogo adjetivada, foi registrada a

    expresso jogo poltico; e o verbete exrcitoest inicialmente definido como foraarmada de uma nao. Entretanto, a representao do xadrez como guerra remonta ao

    exrcito indiano antigo, ou seja, um perodo anterior noo de nao. Seja como for,

    neste inter-relacionamento de palavras, tais como, jogo, xadrez, guerra, nao e poltica

    aludimos implicitamente cultura, isso pressupe a sociedade humana caracterizada por

    transformaes sociais. Uma anlise mais detalhada sobre a extrema diversificao e a

    ampliao do fenmeno da guerra ultrapassa as modalidades de combates antigos. Os

    objetivos polticos e econmicos, as motivaes e as justificativas para travar umaguerra so muito mais complexos do que o jogo de xadrez.

    A introduo do xadrez na Europa se deu atravs dos rabes, no sculo IX. Eles

    levaram esse jogo, bem como outros conhecimentos no mbito das cincias, no campo

    da matemtica e na esfera da literatura clssica. De acordo com Lauand:

    Como sempre, os grandes impulsos culturais na Idade Mdia comeampelas tradues: o sculo XII, de autntico renascimento, um sculo detradues. Por meio delas, o Ocidente recebe de volta dos rabes, com juros,a Matemtica, a Filosofia, a Medicina e outras cincias. (...) E o xadrez ser

    parte dessa influncia rabe na Pennsula (LAUAND, 1988: p. 21-22).

    No que concerne ao xadrez no mbito cultural do perodo medieval, Lauand,

    dentre outros autores estudiosos da histria desse jogo, tambm recorreu obra

    intituladaLibro del Acedrex escrito por D. Alfonso o Sbio. Esse livro reconhecido

    como o primeiro tratado clssico escrito no Ocidente, cuja relevncia, em virtude de

    permitir uma melhor compreenso da sociedade medieval, alm de contribuir para a

    histria de algumas das idias bsicas no que tange aos problemas enxadrsticos, bem

    como, a valorizao e divulgao do xadrez.

    Na Idade Mdia, o xadrez foi alterado de tal modo que ficou sendo uma

    representao da sociedade medieval, como o casal monrquico, a cavalaria, os bispos e

    os pees. Do sculo VI ao XII, na Idade Mdia, o equipamento usado na prtica do

    xadrez era uma representao dos elementos bsicos do exrcito e a funo simblica

    desse jogo estava associada guerra. Alguns tabuleiros e peas de xadrez da poca

    medieval esto atualmen