o jantar no hotel central - ii
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O jantar no Hotel central (Cap. VI)
Este episódio favorece, de certo modo a obra, pois, Eça dá uma
“radiografia” da situação do nosso país naquela altura, podendo
assim criticar a situação financeira do país e a mentalidade limitada
e retrógrada dos portugueses. Este também expõe alguns
problemas discutidos, em jantares das classes mais abastadas e
influentes, tais como, a Literatura, a crítica literária, finanças e a
história e política de Portugal, caricaturando, de certa forma, o ponto
de vista dessas classes de alta burguesia através do modo diletante
como se pronunciam sobre as diversas questões. Eça, com esta
reunião com elementos fulcrais da sociedade, retrata uma Lisboa
que se esforça para ser civilizada, mas que não resiste e acaba por mostrar a sua falta de cultura. O “verniz” das aparências
estala, quando Ega e Alencar, depois de terminarem a sua “lista” de argumentos possíveis, partem para agressão pessoal e
física mostrando o tipo de educação das classes altas da sociedade portuguesa, que mesmo tentando parecer digna e
requintada, não deixa de ser uma sociedade grosseira e inculta, “Então Ega, que bebera um sobre outro dois cálices de
cognac, tornou-se muito provocante, muito pessoal … Cohen e Dâmaso, assustados, agarraram-no. Carlos puxara logo para o
vão da janela o Alencar que se debatia, com os olhos chamejantes, a gravata solta. Tinha caído uma cadeira; a correcta sala,
com os seus divãs de marroquim, os seus ramos de camélias, tomava um ar de taverna, numa bulha de faias, entre a fumaraça
de cigarros.”.
Neste jantar, Ega pretende homenagear o banqueiro Jacob Cohen, o marido de Raquel, por quem Ega estava apaixonado
e com a qual mantinha uma relação, “O jantar no Central foi adiado, porque o Ega, alargando pouco a pouco a ideia,
convertera-o agora numa festa de cerimónia em honra do Cohen.”.
Este jantar tinha, também, como objectivos apresentar a visão crítica de Eça acerca de literatura e de alguns problemas
sociais, históricos, políticos e financeiros do país, proporcionar a Carlos da Maia um primeiro contacto com a visão de Maria
Eduarda.
O encontro de Carlos com Maria Eduarda ocorre quando Carlos e Craft, ao entrarem no Hotel, veem passar à sua frente a
desconhecida Maria Eduarda. Ambos se impressionam com aquela visão de uma bela mulher, “Entravam então no peristilo do
Hotel Central - e nesse momento um coupé da Companhia … veio estacar à porta … de dentro um rapaz muito magro, de
C o l é g i o d o A m o r d e D e u s – C a s c a i s P o r t u g u ê s 1 1 º a n o
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barba muito negra, passou-lhe para os braços uma deliciosa cadelinha escocesa … depois … ofereceu a mão a uma senhora
alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea. Craft e
Carlos afastaram-se, ela passou diante deles, com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás
de si como uma claridade, um reflexo de cabelos de ouro, e um aroma no ar.”.
A tendência crítica é o que encontramos no episódio do jantar no Hotel, o primeiro do conjunto do romance, que se
tratando de um acontecimento eminentemente mundano, em termos práticos, este jantar serve principalmente para propiciar
um primeiro encontro entre Carlos e o meio social lisboeta.
Apesar da posição crítica em que Carlos se situa no episódio, o que interessa é que no jantar no Hotel central estão
representados os temas mais dominantes da vida político-cultural lisboeta.
Esses temas são abordados e discutidos por alguns senhores, tais como, João da Ega (promotor da homenagem no jantar
e representante do Realismo / Naturalismo); Jacob Cohen (o homenageado, representante das altas Finanças); Tomás de
Alencar (o poeta ultra-romântico); Dâmaso Salcede (o novo-rico, simboliza os vícios do novo-riquismo burguês, a catedral dos
vícios) e Craft (o britânico, simboliza a cultura artística e britânica, o árbitro das elegâncias).
Durante o jantar, houve diversas controvérsias sobre variados temas, um deles era a literatura, em que Alencar revela ser
opositor do Realismo / Naturalismo e defensor da crítica literária da natureza académica, “Esse mundo de fadistas, de faias,
parecia a Carlos merecer um estudo, um romance... Isto levou logo a falar-se do Assomoir, de Zola e do realismo: - e o
Alencar imediatamente, limpando os bigodes dos pingos de sopa, suplicou que se não discutisse, à hora asseada do jantar,
essa literatura latrinaria. Ali todos eram homens de asseio, de sala, hein? Então, que se não mencionasse o excremento! |
Pobre Alencar! O naturalismo; esses livros poderosos e vivazes, tirados a milhares de edições…”, é incoerente, pois condena
no presente o que defendera no passado em relação ao estudo dos vícios da sociedade, mostra que é um falso moralista, uma
vez que se refugia na moral, por não ter outra arma de defesa, considerando o Realismo/ Naturalismo imoral, “O naturalismo,
com as suas aluviões de obscenidade, ameaçava corromper o pudor social? Pois bem. Ele, Alencar, seria o paladino da Moral,
o gendarme dos bons costumes.”, mostra estar desfasado do seu tempo e é muito preocupado com aspectos formais em
detrimento da dimensão temática e com o plágio.
Em contrapartida, Ega defende o Realismo/ Naturalismo, exagera demasiado ao defender o cientificismo na literatura e
revela ignorância nas diferenças entre Ciência e Literatura. Em relação a Carlos e Craft, estes recusam o ultra-romantismo de
Alencar e o exagero de Ega, Carlos considera inadmissíveis os ares científicos do realismo e defende que os caracteres se
manifestam pela ação, “…Ega trovejou: justamente o fraco do realismo estava em ser ainda pouco científico, inventar enredos,
criar dramas, abandonar-se à fantasia literária! A forma pura da arte naturalista devia ser a monografia, o estudo seco dum
tipo, dum vício, duma paixão, tal qual como se se tratasse dum caso patológico, sem pitoresco e sem estilo!... | - Isso é
absurdo, dizia Carlos, os caracteres só se podem manifestar pela ação... | – E a obra de arte, acrescentou Craft, vive apenas
pela forma... | Alencar interrompeu-os, exclamando que não eram necessárias tantas filosofias…”.
Já Craft, defende a arte como idealização do que melhor há na natureza, “Craft não admitia também o naturalismo, a
realidade feia das coisas e da sociedade estatelada nua num livro. A arte era uma idealização!”. No entanto, nesta discussão
sobre crítica literária, Eça dá “voz” ao narrador, tendo este, uma posição contra o ultra-romantismo de Alencar e contra a
distorção do naturalismo contido nas afirmações de Ega, afirmando uma estética próxima da de Craft, “estilos, tão preciosos e
tão dúcteis”, tendência parnasiana.
Um outro tema era relacionado com finanças, de toda a discussão, chega-se à conclusão que o país tinha uma absoluta
necessidade dos empréstimos do estrangeiro e que Cohen era um calculista cínico, pois, tendo responsabilidades pelo cargo
que exercia, lavava as mãos e afirmava alegremente, que o país ia direitinho para a bancarrota, “O Cohen colocou uma pitada
de sal à beira do prato, e respondeu, com autoridade, que o empréstimo tinha de se realizar absolutamente. Os emprestamos
em Portugal constituíam hoje uma das fontes de receita, tão regular, tão indispensável, tão sabida como o imposto. A única
ocupação mesmo dos ministérios era esta – cobrar o imposto e fazer o empréstimo. E assim se havia de continuar... Carlos
não entendia de finanças: mas parecia-lhe que, desse modo, o país ia alegremente e lindamente para a bancarrota. | - Num
galopezinho muito seguro e muito a direito, disse o Cohen, sorrindo. Ah, sobre isso, ninguém tem ilusões, meu caro senhor.
Nem os próprios ministros da fazenda!... A bancarrota é inevitável: é como quem faz uma soma...” .
A história e a política foram outros temas abordados no jantar, em que João da Ega delira com a bancarrota como
fundamental para agitação revolucionária, defende a invasão espanhola e o afastamento violento da Monarquia, “Então Ega
protestou com veemência. Como não convinha a ninguém? Ora essa! Era justamente o que convinha a todos! Á bancarrota
seguia-se uma revolução, evidentemente. Um país que vive da inscrição, em não lha pagando, agarra no cacete; e
procedendo por principio, ou procedendo apenas por vingança – o primeiro cuidado que tem é varrer a monarquia que lhe
representa o calote, e com ela o crasso pessoal do constitucionalismo. E passada a crise, Portugal livre da velha divida, da
velha gente, dessa coleção grotesca de bestas…”, aplaude a instalação da República e considera a raça portuguesa como
sendo a mais covarde e miserável da Europa, “Lisboa é Portugal! Fora de Lisboa não há nada.”, Provocando Sousa Neto, Ega
percebe que este nada sabe do socialismo, o tópico de Proudhon. E não é capaz de um diálogo consequente. Contudo,
Tomás de Alencar teme a invasão espanhola, diz ser um perigo para a independência nacional, defende o romantismo político,
a paz dos povos e esquece o adormecimento geral do país. Já Jacob Cohen diz que há gente séria nas camadas políticas
dirigentes e afirma que Ega é um exagerado, “…Cohen, com aquele sorriso indulgente de homem superior que lhe mostrava
os bonitos dentes, viu ali apenas «um dos paradoxos do nosso Ega.»…”, e Dâmaso Salcede demonstra ser covarde quando
assegura que se acontecesse invasão espanhola, ele «raspava-se» para Paris e que toda a gente fugiria como uma lebre,
“Dâmaso … disse, com um ar de bom senso e de finura: | - Se as coisas chegassem a esse ponto, se pusessem assim feias,
eu cá, à cautela, ia-me raspando para Paris... | – Meninos, ao primeiro soldado espanhol que apareça à fronteira, o país em
massa foge como uma lebre! Vai ser uma debandada única na história!”.
Podemos dizer que a maneira de ser português revelada, através das visões de Carlos, que começa por pensar, a
propósito da mouraria, que “esse mundo de fadistas, de faias” merecia um estudo, um romance, e de Craft, que fica indiferente
perante a feroz discussão entre Alencar e Ega, a propósito de um verso “o homem da ideia nova”, o paladino do Realismo,
“Craft, no entanto, impassível, bebia aos golos a sua chartreuse. Já presenciara, mais vezes, duas literaturas rivais
engalfinhando-se, rolando no chão, num latir de injúrias”, discussão essa que quase termina em agressão física,
reconhecendo que "a torpeza do Alencar sobre a irmã do outro fazia parte dos costumes de crítica em Portugal", até porque
sabia que "a reconciliação não tardaria, ardente e com abraços", provando a grande incoerência existente.
Conclui-se das atitudes dos senhores, anteriormente mencionados, que a falta de cultura e de civismo domina as classes
mais distintas, salvo Carlos e Craft
Estes debates calorosos ao jantar são por vezes intervalados pela apresentação dos pratos, à medida que vão sendo
oferecidos aos convivas. Eça de Queiroz teve a habilidade de fazer uma espécie de pausa, a quebrar um pouco as discussões
em torno de pensamentos e posições políticas. Como por exemplo, quando o Ega anuncia a invasão espanhola, pelas
fronteiras portuguesas enfraquecidas, ou o desbarato das colónias de África, a tensão é aliviada pela intervenção do criado,
apresentando-lhe a travessa com o poulet aux champignons.
Finalizado o jantar, ao regressar ao Ramalhete, Carlos, naquele intermédio da insónia para o sono, recorda-se do
encontro com aquela bela dama, lembrança que se entrelaça com memórias da infância, que Alencar trouxera à lembrança
durante a refeição, quase um presságio do que irá posteriormente acontecer, “Uma mulher passava, alta, com uma carnação
ebúrnea, bela como uma Deusa, num casaco de veludo branco de Guinava. O Craft dizia ao seu lado très-chic. E ele sorria, no
encanto que lhe davam estas imagens, tomando o relevo, a linha ondeante, e a coloração de coisas vivas … Depois tudo se
confundia, e era só o Alencar, um Alencar colossal, enchendo todo o céu, tapando o brilho das estrelas com a sua
sobrecasaca negra e mal feita … ”.
Neste episódio, em relação à moda, Eça descreve o traje das pessoas com um intento crítico. Como cada personagem
simboliza algum estatuto económico, classe social, estereótipo de pessoa ou tem alguma função especial no desenrolar da
tragédia, Eça utiliza a sua indumentária como “arma” para criticar aquilo que a personagem simboliza e a sociedade
portuguesa no geral.
Em relação a Maria Eduarda, personagem principal, uma mulher rica, elegante e fina, neste episódio, descreve-a como:
“uma senhora alta, loura, com um meio véu muito apertado e muito escuro que realçava o esplendor da sua carnação ebúrnea
… com um passo soberano de deusa, maravilhosamente bem feita, deixando atrás de si como uma claridade, um reflexo de
cabelos de ouro, e um aroma no ar. Trazia um casaco colante de veludo branco de Génova, e um momento sobre as lajes do
peristilo brilhou o verniz das suas botinas.”.
Para Craft, uma personagem tipo, Eça utiliza palavras como: “homem baixo, louro, de pele rosada e fresca, e aparência
fria. Sob o fraque correcto percebia-se-lhe uma musculatura de atleta … aquele ar imperturbável de gentleman correcto”.
No que respeita a Dâmaso Salcede, outra personagem tipo, Eça caracteriza-o como: “rapaz baixote, gordo, frisado como
um noivo de província, de camélia ao peito e plastron azul celeste.”.
Sobre Tomás de Alencar, também uma personagem tipo, Eça descreve-o neste episódio, desta forma: “… um indivíduo
muito alto, todo abotoado numa sobrecasaca preta, com uma face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz aquilino,
longos, espessos, românticos bigodes grisalhos: já todo calvo na frente, os anéis fofos duma grenha muito seca caíam-lhe
inspiradamente sobre a gola: e em toda a sua pessoa havia alguma coisa de antiquado, de artificial e de lúgubre.”.
Em relação a Jacob Cohen, o homenageado do jantar, Eça refere-se a ele como: “um homem baixo, apurado, de olhos
bonitos, e suíças tão pretas e luzidias que pareciam ensopadas em verniz, sorria, descalçando as luvas…”.