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1 O INESPERADO RETORNO DO DR. FREUD J C Sena Maia CONTEÚDO: 1) Resumo 2) Roteiro da peça 3) Descrição dos principais personagens 4) Sugestões para cenografia 5) Dados sobre o autor 1) RESUMO Um estudante de psicologia (Raymundo) não consegue encontrar um tema para fazer seu trabalho de conclusão de curso (TCC) devido a uma macumba, feita por uma ex-futura sogra (Guiomar), que o deixou temporariamente incapacitado de raciocinar, de estudar de se concentrar nas demais atividades escolares. Ele procura uma vidente trambiqueira (Isolete) - que também faz trabalhos para quebrar encantos e mandingas - para que ela desfaça o trabalho de Guiomar. Ele pede que Isolete faça também um contato no além com Dr. Sigmundo Freud na expectativa que ele o ajude a encontrar e formatar o tema de seu TCC. Numa mistura de sonho e realidade a trambiqueira consegue trazer o Dr. Freud para a terra e ele concorda ajudar Raymundo ao mesmo tempo em que pretende concluir a última pesquisa que estava realizando antes de morrer. Esta pesquisa versava sobre os princípios que regem os mecanismos psicológicos da antipatia (que ele denomina Síndrome da Imagem de Espelho), um sentimento que na maioria das vezes se manifesta sem uma explicação aparente. Em 10 esquetes bem- humorados Dr. Freud mostra que a antipatia é um problema que está dentro de quem nutre esse sentimento e não da pessoa antipatizada. O momento culminante da peça ocorre no último esquete quando dois skinheads (Geraldão e Renatão) violentos e sanguinários descobrem a homossexualidade latente e enrustida e se assumem como Samanta e Priscila. 2) ROTEIRO CENA 01 (Raymundo entra no palco com um papel na mão como se estivesse procurando um endereço que está anotado nele). RAYMUNDO: (Lendo um volante de propaganda) É...pelo jeito é aqui mesmo. Mãe Isolete...vidente, quiromante, joga búzios e tarô, cura vício de bebida, consegue emprego, traz marido fujão de volta, endireita mulher trepadeira, consola cornos, ajuda a conquistar a pessoa amada,

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O INESPERADO RETORNO DO DR. FREUD J C Sena Maia

CONTEÚDO: 1) Resumo 2) Roteiro da peça 3) Descrição dos principais personagens 4) Sugestões para cenografia 5) Dados sobre o autor

1) RESUMO Um estudante de psicologia (Raymundo) não consegue encontrar um tema para fazer seu trabalho de conclusão de curso (TCC) devido a uma macumba, feita por uma ex-futura sogra (Guiomar), que o deixou temporariamente incapacitado de raciocinar, de estudar de se concentrar nas demais atividades escolares. Ele procura uma vidente trambiqueira (Isolete) - que também faz trabalhos para quebrar encantos e mandingas - para que ela desfaça o trabalho de Guiomar. Ele pede que Isolete faça também um contato no além com Dr. Sigmundo Freud na expectativa que ele o ajude a encontrar e formatar o tema de seu TCC. Numa mistura de sonho e realidade a trambiqueira consegue trazer o Dr. Freud para a terra e ele concorda ajudar Raymundo ao mesmo tempo em que pretende concluir a última pesquisa que estava realizando antes de morrer. Esta pesquisa versava sobre os princípios que regem os mecanismos psicológicos da antipatia (que ele denomina Síndrome da Imagem de Espelho), um sentimento que na maioria das vezes se manifesta sem uma explicação aparente. Em 10 esquetes bem-humorados Dr. Freud mostra que a antipatia é um problema que está dentro de quem nutre esse sentimento e não da pessoa antipatizada. O momento culminante da peça ocorre no último esquete quando dois skinheads (Geraldão e Renatão) violentos e sanguinários descobrem a homossexualidade latente e enrustida e se assumem como Samanta e Priscila.

2) ROTEIRO

CENA 01

(Raymundo entra no palco com um papel na mão como se estivesse procurando um endereço que está anotado nele ).

RAYMUNDO: (Lendo um volante de propaganda ) É...pelo jeito é aqui mesmo. Mãe Isolete...vidente, quiromante, joga búzios e tarô, cura vício de bebida, consegue emprego, traz marido fujão de volta, endireita mulher trepadeira, consola cornos, ajuda a conquistar a pessoa amada,

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abre caminhos para o sucesso, desfaz mandingas e feitiços...manicure, pedicure, limpeza de pele, massagista, calista e acupunturista! Hum... (fazendo cara de desconfiado e batendo na porta ). Alô, Mãe Isolete,...a senhora está em casa?

ISOLETE: (barulho de descarga no vaso sanitário. Voz vindo dos fundos da casa ) Já estou indo, calma.

RAYMUNDO: (enquanto espera ) Sei não...acho que tem picaretagem nessa história. Mas, já que estou aqui não custa nada tentar. Se ela entender de macumba já está de bom tamanho.

ISOLETE: (entrando na sala de espera ) Bom dia, meu filho. Em que essa mãe velha pode te ajudar?

RAYMUNDO: Eu sou um estudante de psicologia e estou desesperado porque não consigo fazer o meu trabalho de conclusão de curso, o tal do TCC. Eu acho que foi uma macumba que fizeram contra mim, pois eu não consigo mais dormir, não consigo mais raciocinar, não consigo ler, não consigo pensar, não consigo estudar!! Eu preciso que a senhora faça um trabalho para acabar com essa mandinga. Eu estou parecendo mais um zumbi sonolento de cabeça oca!

ISOLETE: Calma meu filho. Se for só isso, vai ser bem fácil, fique frio. Macumba a Mãe Isolete desfaz na hora. Me conta agora a história com detalhes pra que eu possa entender direitinho o que está acontecendo.

RAYMUNDO: Resumidamente, Mãe Isolete, é o seguinte: Até um mês atrás eu namorava uma guria chamada Izildinha. A galera chamava ela de “alegria do Boqueirão” porque ela trepava com o bairro inteiro. Segundo ela, essa alegria acabou quando começou a namorar comigo. Sei não (passa mão na testa procurando chifres ), sei não. O problema começou quando a Izildinha resolveu que queria se casar comigo. Foi a mãe dela, a Guiomar, dona de um terreiro de macumba no Parolin, quem começou a botar essas ideias na cabeça dela. A velha queria transformar a filha trepadeira em uma mulher respeitável, uma senhora casada e do lar. E eu seria uma espécie de pastor milagreiro que faria essa transformação. Vê se pode, o meu!! Eu, um milagreiro regenerador de putas...só que eu estou estudando para ser psicólogo e não para ser pastor do Edir Macedo e fazer shows na televisão. Afinal, eu comia a Izildinha, só para dar aquela trepadinha básica que todo homem precisa. Casar é outra conversa. Quando eu pulei fora, a Dona Guiomar ficou invocada comigo e jurou que ia fazer macumba para acabar com a minha vida. E o pior de tudo é que ela conseguiu. Desde então eu não consigo mais estudar, não consigo me concentrar na leitura, não consigo encontrar um tema para o meu TCC! Eu estou desesperado, pois o prazo para entrega vence daqui a 15 dias e se eu não entregar o trabalho

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pronto estarei reprovado e só me formarei, quem sabe, no ano que vem! Preciso que a senhora faça uns despachos para acabar com esse feitiço e para que a minha vida possa voltar ao normal.

ISOLETE: E você deve estar com uma idéia fixa, não está?

RAYMUNDO: (envergonhado ) É...estou. Eu só vejo xoxotas em tudo que eu olho. Nos livros, nos filmes, andando na rua, assistindo aula...se eu olho para uma folha de papel em branco, eu vejo nela uma coleção de xoxotinhas. Por isso eu não consigo me concentrar nos estudos, no trabalho...em nada.

ISOLETE: Eu sabia. Esse feitiço é bem manjado, meu filho. Isso a gente resolve fazendo um despacho na encruzilhada e você vai ter que tomar um litro de chá de picão por dia durante um mês.

RAYMUNDO: A senhora garante que o despacho e o chá de picão podem desmanchar esse feitiço?

ISOLETE: Garanto sim porque isso é um caso bem manjado, meu filho. O despacho vai destrancar os caminhos que a macumba da Guiomar trancou; e a idéia fixa com xoxotinhas a gente combate com o chá de picão. Não tem erro, meu filho.

RAYMUNDO: A senhora pode fazer esse despacho hoje?

ISOLETE: Posso sim, meu filho, mas não agora. Eu antes tenho que ir até a Assembleia Legislativa para fazer um despacho que o Waldir Rossoni me pediu. Parece que o Nelson Justus e Alexandre Curi andaram fazendo umas mandingas para puxar o tapete dele na Assembleia (risada ). Ainda bem que já tenho muita prática nessa área. (confidenciando ) Sabia que ia toda semana no escritório do Jaime Lerner para fazer um despacho e proteger ele contra o olho gordo que o Requião jogava pela TV Educativa?

RAYMUNDO: Sério?

ISOLETE: Sério, meu filho! E olha que tirar praga que o Requião joga não é fácil não! O homem tem uma boca mais terrível que a porta do inferno! Eu desconfio até que ele publicava as maldades dele no diário secreto (gesticula esfregando os dedos indicadores em riste ) de Belzebu, meu filho.

RAYMUNDO: Pelo que vejo, eu achei a pessoa certa, mãe Isolete. A senhora vai demorar muito?

ISOLETE: Que nada, meu filho. Numa meia horinha eu estou aqui de volta. Senta na cadeirinha, esfria a cabecinha que daqui a pouco nós

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vamos resolver o teu problema.

(Isolete, usando roupas coloridas, sai para ir até a Assembleia. Raymundo senta na cadeira, pega um caderno de anot ações e começa a folhear. Ele larga o caderno e cochila. As luzes devem se apagar ligeiramente, o suficiente para Raymundo tro car a jaqueta e boné coloridos por uma jaqueta e boné pretos. Isso indica que passamos da realidade para o sonho. Quando as luzes acendem ele continua na mesma posição, sentado na cadeira cochi lando. Instantes depois Isolete chega também vestindo roup as nas cores preta e branca ).

CENA 02

ISOLETE: O meu filho, demorei muito? Sonhou com muitas xoxotinhas?

RAYMUNDO: (espreguiçando ) É...dei uma pequena cochilada. A senhora vai me atender agora?

ISOLETE: Já estou te atendendo, meu filho. Eu vou fazer o despacho hoje à noite numa encruzilhada lá do Boqueirão e vou te dar folhas de picão pra você fazer o chá em casa. Isso não resolve o problema do teu trabalho da faculdade, o TCC?

RAYMUNDO: Resolve em parte, mãe Isolete. Mas, já que estamos aqui, eu pensei em fazermos um contato no além com o Dr. Freud. Quem sabe ele não me dá algumas dicas sobre o meu TCC? ... sugere um tema, dá alguma idéia...sei lá...

ISOLETE: Dá para tentar, meu filho. Antes me fala alguma coisa sobre esse tal de Fóide prá facilitar o contato.

RAYMUNDO: Freud, Mãe Isolete. O Dr. Sigmund Freud foi um médico que nasceu na Áustria no século 19. Ele é considerado o pai da psicanálise, um homem que inovou com idéias revolucionarias os estudos sobre a mente humana.

ISOLETE: E o que você quer com o tal de Dr. Sugismundo?

RAYMUNDO: Não é Sugis...deixa pra lá. Eu já disse para a senhora! Quero pedir que ele sugira, me indique, me diga um tema que eu possa usar no meu TCC. É só isso. A senhora consegue?

ISOLETE: Vamos tentar, meu filho. Esse tal de...Freud, não é, fala brasileiro? Se ele falar língua de gringo, como é que eu vou conversar com ele? vai ficar difícil!

RAYMUNDO: Ele falava alemão, Mãe Isolete. Mas, um espírito não fala

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em qualquer língua? Eu aprendi na faculdade que espírito não tem nacionalidade e nem precisa de passaporte. Por que a senhora não tenta?...aí vamos ficar sabendo.

(Isolete serve-se de um copo de cachaça, acende um c haruto, e começa a dançar em círculos chamando o Dr. Freud ).

ISOLETE: Saravá meu pai...eu quero falar com Dr. Froidi...Ô Dr. Froidi ta me escutando?...Em que nuvem você tá sentado, meu filho? Desça até aqui, pois tem um cara desesperado prá falar contigo...ê ê mesunfiu... (cantarolando e girando ) “na tonga da mironga do cabuletê, saravá ogum mandinga da gente continua, iansan cadê ogum, foi pro mar, bumbum paticumbum prungurundum...” Desce Dr. Froidi, desce...saravá meu pai... Pô ô meu, vai descer ou não vai Dr. Froidi? (sopra fumaça do charuto na direção do vaporizador de fumaça )

CENA 03

(Ocorre um forte estrondo e um dos cantos do palco fica enfumaçado encobrindo a entrada em cena do Dr. Freu d. Ele surge em cena retirando do paletó flocos de algodão que i mitam pedaços de nuvens. Na fala inicial de Freud, Isolete e Raym undo ficam abismados, olhando estupefatos para o psicanalista) .

FREUD: (zangado. Sotaque carregado nos ‘R’ ) Quem que me tirou da minha sossego? Eu estou de volta no terra? ISOLETE: (fazendo o sinal da cruz ) Minha virgem santíssima! Que que é isso minha gente? E não é que esse negócio funcionou! Eu consegui mesmo trazer o gringo para conversar com o xoxoteiro...minha nossa! Eu tava só enrolando o cara pra ganhar meus trocados e o troço deu certo! Mas eu não fico aqui não! Isso é coisa do tribufú! Eu vou me mandar que eu tenho medo de alma penada! (sai correndo para fora de casa ).

RAYMUNDO: (gaguejando ) O se-senhor é é o do-do-doutor Freud?

FREUD: (tirando pedaços de nuvens do paletó ) Está pensando o quê? Que eu sou o branca de neve? É claro que eu sou o Dr. Sigmund Freud, o psicanalista. E você quem é?

RAYMUNDO: Eu sou o Raymundo, estudante universitário cursando o último ano do curso de psicologia. Estou tentando encontrar um tema para o meu trabalho de conclusão de curso e foi por isso que eu pedi para a dona Isolete tentar um contato com o senhor.

FREUD: (raivoso ) O quê!! Então a senhor é o responsável pelo meu descida aqui pro terra?

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RAYMUNDO: (constrangido ) É...de certa maneira sim. Eu estou precisando da sua ajuda...por isso eu pedi à dona Isolete...e ela conseguiu trazer o senhor.

FREUD: A senhor me tirou de uma reflexão profunda. Eu estava sentado na minha nuvem preferida, concluindo mais um capítulo dos meus estudos quando fui arrancado por uma força incontrolável aqui para baixo. (levanta a bengala e parte para cima de Raymundo ) Ora seu moleque insolente! Vou te dar o mesmo tratamento que eu ensinei pro meu melhor aluno, o analista de Bagé! Só que em vez de uma joelhada no saco eu vou dar umas bengaladas nessa cabeça dura, seu estudantezinho de bosta. RAYMUNDO: (recua de costas, tropeça e cai deitado de barriga p ara cima ) Por favor, Dr. Freud eu só queria a sua ajuda. Não me bata! Eu peço à mãe Isolete para mandar o senhor de volta lá para cima, por favor! FREUD: (arrependido ) Minha nossa senhora das bengaladas, o que eu estou fazendo? Logo eu que tenho explicação para tudo não consigo explicar esse meu comportamento agressivo! (meditativo ) Será que estou projetando nesse moleque o meu ódio à figura paterna autoritária? Será um complexo de Édipo malresolvido? Preciso meditar sobre isso. (se afasta e fica caminhando em círculos enquanto ge sticula pensando ). RAYMUNDO: (continua deitado ) Dr. Freud...me desculpa...eu não tive a intenção de sacanear o senhor...eu só queria pedir que o senhor me ajudasse...me desculpa, por favor. FREUD: (recuperando a calma ) Ora, meu filho...sou eu que peço desculpa pela minha reação raivosa (estende a mão e ajuda Raymundo a levantar-se ) Veja você que até mesmo os psicanalistas mais experientes tem seus momentos de senador pelo Paraná, ficam pirados, agridem os outros, torcem dedo de jornalista, roubam gravadores e dão vexame. Me desculpe. Em que eu posso ajudar você, meu filho? RAYMUNDO: (exultante ) Que legal, Dr. Freud. O negocio é o seguinte: eu preciso fazer um trabalho de conclusão para o meu curso de psicologia. E por mais que eu tenha procurado eu não consegui encontrar um tema...se possível algo original que me ajude a conseguir uma bolsa para um curso de mestrado no ano que vem. FREUD: Mestrado, que curso é esse? RAYMUNDO: O mestrado é um curso que a gente faz depois de concluir

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a faculdade para aperfeiçoar os conhecimentos. FREUD: (ironizando ) Ah...já entendi. É um curso que você faz para aprender aquilo que deveria ter aprendido durante os quatro anos da faculdade, não é isso? RAYMUNDO: (constrangido ) É...é mais ou menos isso...ou melhor...no fundo é exatamente isso. E então, o senhor pode me ajudar? FREUD: Claro que posso, e vou ajudar você, meu jovem. Quando fui trazido para cá, abruptamente, diga-se de passagem, eu estava justamente pensando sobre um tema que pode ser mais bem explorado por você. Não adiantaria eu publicar minhas pesquisas no céu porque aqueles anjos idiotas não entenderiam, como vocês dizem aqui no Brasil, porra nenhuma! Eu estava analisando quais os mecanismos da mente que levam uma pessoa a antipatizar por alguém, muitas vezes sem motivo ou justificativa aparente, ou seja, gratuitamente. Creio que você pode desenvolver esse tema que é muito interessante. O que você acha? RAYMUNDO: Eu acho uma ideia genial, Dr. Freud. Desde que o senhor me ajude e me oriente, é claro. FREUD: Eu vou orientar você, mas aviso que sou muito exigente. Anote tudo que eu disser porque não gosto de ficar repetindo as coisas. Se eu perceber malandragem ou corpo mole dou uma joelhada no teu saco e volto para a minha nuvem. Estamos entendidos? RAYMUNDO: É claro, Dr. Freud. Estamos entendidos. O senhor pode ter certeza que eu serei o aluno mais atento e mais dedicado que o senhor já viu! FREUD: Sentado na minha nuvem, eu estava criando uma teoria que eu denominei provisoriamente de “Síndrome da Imagem de Espelho”. RAYMUNDO: (passa a anotar no caderno tudo que o Dr. Freud diz ) “Síndrome da Imagem de Espelho"? FREUD: (falando pausadamente e pedagogicamente ) Sim, deixe-me explicar. Quando alguém antipatiza com outra pessoa, muitas vezes sem um motivo que justifique, a pessoa antipatizada funciona como uma espécie de espelho psicológico para aquele que nutre a antipatia. Entendeu? RAYMUNDO: (confuso ) É...mais ou menos. FREUD: (dá uma risada tolerante ) Não se preocupe. No início parece

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difícil, mas você já vai perceber que é bem fácil. Quando você olha para determinadas pessoas, você pode enxergar nela qualidades que você não tem ou defeitos que você tem. A antipatia ocorre em duas situações. Primeira: quando você enxerga naquela pessoa qualidades que você não têm e gostaria de ter. Segunda: quando você enxerga naquela pessoa defeitos que você têm, mas não gostaria de ter. Compreendeu?

RAYMUNDO: Está começando a fazer sentido, Dr. Freud. FREUD: Vamos ver com mais detalhes: se eu acabo de conhecer uma pessoa que tem um defeito que eu não quero admitir que tenho, essa pessoa funciona como se fosse um espelho, refletindo uma imagem do meu interior que eu não gosto de ver. Por isso eu a considero antipática. Ficou mais claro. RAYMUNDO: Hã Hã...acho que já estou entendendo. A pessoa que eu antipatizo passa a ser vista por mim com uma espécie de espelho, que mostra coisas que estão dentro de mim que eu preferia não ver. É isso, Dr.? FREUD: Brilhante, meu jovem. Você captou a essência do processo. A antipatia se manifesta através de demonstrações de desagrado. Essas demonstrações podem ser expressões faciais, gestos e palavras. RAYMUNDO: Mostrou desagrado está antipatizando, é isso? FREUD: Não, senhor apressadinho. Nem toda manifestação de desagrado é antipatia. (pausa ). A antipatia é uma reação que a pessoa não controla, é instantânea e, na maioria das vezes não necessita de um motivo real para acontecer. O problema está dentro de quem sente a reação de antipatia e não da pessoa antipatizada. RAYMUNDO: Pô, Dr.Freud, agora a coisa complicou. FREUD: E vai complicar mais um pouquinho. A imagem de espelho tem graus diferentes de nitidez. Quanto mais nítida é a imagem que o antipatizado projeta para aquele que sente a antipatia, mais forte vai ser a reação de rejeição. Em casos extremos de nitidez pode até descambar para violência física. Você vai compreender melhor através de exemplos.

CENA 04

(Freud e Raymundo ficam em um dos lados do proscênio iluminados por uma luz tênue. No outro lado, bem-il uminado, ficam os atores que representam o esquete. Nesse e nos de mais esquetes a iluminação se alternará entre Freud/Raymundo e os outros atores ).

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FREUD: Vamos ver o primeiro exemplo. Anote tudo direitinho porque eu não gosto de ficar repetindo as coisas. Cuidado com a bengalada pedagógica. (Durante a fala de Freud, o palco deve ficar bem esc uro – exceto o local onde Freud e Raymundo estão – de modo a permi tir a entrada discreta dos atores do esquete ).

CENA 05 Esquete 1 – Homem sentado, lendo jornal, enquanto a mulher passa um espanador nos móveis e fica tagarelando. ROMILDA: Esse mundo hoje em dia está virado de pernas por ar! Moral é artigo de luxo, principalmente para as mulheres, elas estão dando mais do chuchu na serra. Um horror, Demerval, um horror. Sabe como é que elas fazem? ...Elas saem de casa para ir ao supermercado, de preferência esses que tem estacionamento fechado. Quando chegam lá, o Ricardão já está com o carro dele estacionado esperando por ela. Ela passa pro carro dele, coloca óculos escuros e um lenço na cabeça prá disfarçar e vão direto para o motel mais próximo. Passam a tarde no rala e rola e só param quando a xota começa a arder. Daí, voltam para o supermercado, o Ricardão se manda e ela ainda vai comprar alguma coisinha, para levar de presente pro corno em casa. Na realidade ela quer é ser vista por alguma pessoa conhecida para reforçar o álibi do supermercado. Demerval, é uma pouca vergonha, Demerval. DEMERVAL: Romilda, como é que você sabe isso tudo, hem? ROMILDA: Ora, Demerval, ora, você tem cada pergunta. Como é que eu fiquei sabendo disso? como Demerval?... como é que você acha que eu fiquei sabendo, hem? DEMERVAL: Eu não acho nada, você é que tem que se explicar, e não eu. ROMILDA: Ora, Demerval, eu devo ter lido, sei lá, na Caras, na Contigo na Tititi...numa dessas revistas velhas que você encontra em salão de beleza. DEMERVAL: (fechando o jornal ) Ah bem. Mas, sabe que eu te dou razão. Não se fazem mais mulheres como no nosso tempo, quando a honestidade e a fidelidade eram valores cultivados pelas famílias com orgulho. Hoje em dia essa mulherada só quer saber de picotar fora de

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casa. Ainda outro dia, eu estava esperando o elevador e ouvi uma conversa muito interessante do novo porteiro com o carteiro. ROMILDA: Ah, aquele gatão? DEMERVAL: Gatão, que negócio é esse Romilda? ROMILDA: Que gatão o quê, Demerval parece que tá ficando surdo! Gastão, Demerval, Gastão. Alguém comentou que o nome dele é Gastão Reginaldo, ou Franciso Benedito ou Petrônio Eugênio, ou qualquer coisa parecida com isso. Isso não é importante, Demerval...conte o que eles estavam conversando. DEMERVAL: Pois é querida...o porteiro disse para o carteiro que esse prédio devia mudar de nome. Em vez de Edifício ARCA deveria se chamar URCA – União Recreativa dos Cornos Amansados. Ele garantiu que já tinha comido todas as mulheres do prédio, com exceção de uma que não quis dar prá ele de jeito nenhum! Acredita nisso? ROMILDA: (indignada ) Acredito, Demerval, acredito. E tenho certeza que ele tava falando daquela nojentinha do 407!

CENA 06 FREUD: Entendeu, meu jovem? A Romilda não é uma mulher honesta com o marido, pois pelo visto gosta de dar umas trepadinhas por fora. Então, quando ela vê a “nojentinha do 407” ela vê projetada na rival uma qualidade que ela Romilda, não tem, mas que gostaria de ter. Daí, pode nascer gratuitamente uma reação de antipatia devido à síndrome da imagem de espelho. Entendido? RAYMUNDO: (anotando freneticamente tudo que Freud diz ) Sim...sim...agora as coisas estão ficando mais claras FREUD: Muito bem, vamos ver então mais um exemplo.

CENA 07 Esquete 2 – Sindico e moradora, ambos na meia idade , conversam. BERENICE: Senhor Eustáquio, o senhor, na qualidade de sindico, precisar tomar urgentes providências para moralizarmos o nosso edifício. EUSTÁQUIO: (pacientemente ) o que foi dessa vez, dona Berenice?

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BERENICE: É a vizinha do apartamento ao lado. Ela não tem qualificações morais para residir num edifício com um padrão igual ao nosso. EUSTÁQUIO: E o que está acontecendo com a vizinha, dona Berenice? BERENICE: Ela recebe vários homens no apartamento todo final de mês, Sr. Eustáquio, e isso, como diz o Boris Casoy, é uma vergonha!

EUSTÁQUIO: Ora, dona Berenice, a senhora não está implicando com a moça? A senhorita Priscila mora aqui há apenas dois meses, não incomoda ninguém, ninguém se queixou dela até agora, está com as contas em dia... BERENICE: Ela é uma pessoa sem moral que recebe homens em seu apartamento e isso eu não aceito e nem admito em um prédio sério. EUSTÁQUIO: Dona Berenice, não vamos radicalizar. Eu sou sindico aqui há mais de 20 anos, já enfrentei vários problemas envolvendo moradores e sempre resolvemos tudo numa boa, sem enfrentamentos nem brigas. BERENICE: Não tem conciliação não, seu Eustáquio. O comportamento dessa mulher de vida fácil agride a qualquer pessoa de moral ilibada. EUSTÁQUIO: Dona Berenice...um dos seus problemas é memória curta. Eu já tive que segurar a barra para a senhora várias vezes, quando os outros moradores queriam pular no seu pescoço. A senhora se lembra do Padre Alfredo?...que vinha todas as quartas-feiras passar a tarde com a senhora? As beatas do prédio ficavam loucas de raiva e queriam expulsá-la daqui. BERENICE: Injustiça e discriminação. O padre Alfredo vinha toda quarta de tarde para nós rezarmos por um mundo melhor. O Fernando Henrique nunca me agradeceu, mas uma das causas do sucesso do Plano Real foram as minhas rezas junto com o Padre Alfredo. Nós ajudamos a acabar com a inflação. Lula é outro ingrato...o que eu rezei para ele não levar a quarta surra eleitoral consecutiva não foi fácil. Eu segurava aquela vela enorme que o Padre Alfredo acendia e pedia proteção por Lula. E ainda tem gente que bota maldade nisso. EUSTÁQUIO: Pois é dona Berenice, tem também aquele caso do menor carente de 19 anos que a senhora pegou para criar. Tem muita gente que não engoliu essa estória do garotão sarado carente até hoje. Eu também segurei essa barra prá senhora.

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BERENICE: No que fez muito bem. Então eu me dôo, me dedico à causa do menor carente, resgato um menino de rua e dou um lar para ele e ainda me criticam. Faça-me o favor, seu Eustáquio. EUSTÁQUIO: O problema, dona Berenice eram os gemidos eróticos todas as noites e o vuco-vuco da cabeceira da cama batendo na parede do vizinho, era isso que eles reclamavam. BERENICE: Injustiça, injustiça, não tinha nada de erótico e nem de vuco-vuco. O meu nenê tinha pesadelo recorrente que estava se afogando, por isso ele arfava, gemia e tinha um sono muito agitado. Daí aquelas batidas da cama na parede. Mas as pessoas veem tudo com maldade, tudo. EUSTÁQUIO: Mas dona Berenice, as pessoas também ouviam gemidos da senhora! BERENICE: É porque eu tinha de ser solidária ao meu nenezão até mesmo na hora dos pesadelos dele, ora essa! Eu gemia e me agitava igual a ele para que ele não se sentisse um menor abandonado, para que ele sentisse que eu estava ali ó, junto com ele!!! EUSTÁQUIO: Tudo bem, dona Berenice, tudo bem. Não vamos mais discutir. A senhora tem alguma coisa concreta contra a Priscila? BERENICE: Tenho sim. Ontem alguém ficou tocando a campainha com muita insistência e eu fiquei preocupada e fui ver o que estava acontecendo. Era o proprietário do apartamento. EUSTÁQUIO: Ah sim, o Dr. Adalberto, uma pessoa muito distinta, um baluarte dos princípios morais da nossa sociedade. BERENICE: Ah é? Ele dizia assim: Priscilinha... eu vim receber o aluguel. E não é que ela veio praticamente nua atender o baluarte. Só não estava totalmente nua por causa do relógio de pulso e a fita no cabelo. Ela olhou bem adocicada, revirando os olhos e disse pra ele: Betinho... você pode voltar daqui a meia hora para acertar o aluguel?...eu ainda estou acertando a conta com o açougueiro!

CENA 08 FREUD: Meu jovem, você percebeu como funcionou a síndrome da imagem de espelho a nesse caso? RAYMUNDO: Creio que sim, Dr. Freud. A dona Berenice tem uma antipatia gratuita contra a Priscila, por que cada vez que ela olha para a

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moça ela vê a imagem dela mesma nos tempos da sacanagem. Ela, Berenice, vê um defeito que tem e que gostaria de não ter. É isso, Dr.? FREUD: Exatamente, excelente. A imagem da moça funciona como se fosse um espelho mostrando uma imagem que a Berenice não gosta mais de ver. (Pausa ) No entanto, uma pessoa esperta pode tirar proveito da Síndrome da Imagem de Espelho para obter informações valiosas. Vamos ver mais um exemplo.

CENA 09 Esquete 3 - Participam: Marido (José), mulher (Risoleta) e amigo (Pedro). Freud e Raymundo ficam na penumbra. As luzes vão se alternar entre José / Pedro e José / Risoleta. JOSÉ: E daí, cara, tem comido alguma coisa nova ou só comidinha caseira, o feijão com arroz de casa? PEDRO: Eu gosto sempre de variar os sabores. Minha mulher é muito legal, mas uma trepadinha fora tem um sabor inigualável, meu amigo. JOSÉ: Pois eu já estou há algum tempo só na base da comidinha caseira. Depois que eu descobri as corneadas que a Risoleta me deu eu perdoei porque eu também tinha aprontado muitas e conclui que o jogo estava empatado. Ela parou e eu também. Mas confesso que estou sentindo falta de uma variada no cardápio PEDRO: O negócio não está muito fácil não, meu amigo. Casado, com rédea curta, a mulher marcando em cima...não dá para você sair por aí cantando a mulher dos outros. Você tem que descobrir as casadinhas que estão beliscando por fora e cair matando em cima. Sabe que as casadinhas são as melhores porque elas são tão interessadas em manter tudo em segredo quanto você. JOSÉ: Tive uma idéia. Vou para casa agora e vou contar para a minha mulher que eu comi uma outra mulher aqui das vizinhanças. AMIGO: O quê? Você ficou maluco, o cara? O que você vai ganhar com isso? JOSÉ: Agüenta firme aí que eu volto e conto para você o que aconteceu.

CENA 10 JOSÉ: Meu bem, preciso falar com você um assunto muito sério.

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RISOLETA: O que foi? Andou aprontando alguma? JOSÉ: Mais ou menos. Eu transei com uma mulher casada que mora aqui na vizinhança. RISOLETA: Mas nós não combinamos que isso não ia mais acontecer? JOSÉ: Pois é...mas aconteceu. A carne é fraca...mas eu estou arrependido...e muito...pode ter certeza. RISOLETA: Em qual foi a sirigaita casada que você comeu, seu vagabundo? JOSÉ: Isso eu não vou contar. Não vou envolver ninguém nos nossos problemas. Nem sob tortura eu vou revelar nomes. RISOLETA: Eu descubro, pode deixar comigo. Foi a exibida daquela loira artificial aqui do apartamento 307? JOSÉ: Não, de jeito nenhum. RISOLETA: Então foi aquela mulata antipática da bunda grande que trabalha na mercearia da esquina? JOSÉ: Não mesmo...sem chance. RISOLETA: Então eu já sei...foi aquela morena metida a gostosa que vende avon aqui nos prédios da nossa quadra? JOSÉ: Claro que não, Risoleta. Eu não vou citar nomes, já disse.

RISOLETA: Não vai? Então você vai é levar porrada. (Ela bate com uma panela na cabeça dele e ele sai correndo )

CENA 11 (Luzes sobre José / Pedro. José chega com a cabeça c om um curativo ). PEDRO: Ô rapaz, o que foi que aconteceu? JOSÉ: Nada...correu tudo bem. Consegui o que eu queria e foi muito legal! PEDRO: Legal? Você chega com a cabeça rebentada de porrada e ainda

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diz que foi legal? Me conta nos detalhes o que aconteceu. JOSÉ: Eu inventei uma estória para a Risoleta dizendo que eu tinha transado com uma vizinha casada aqui da região. Ela ficou muito puta da vida, me interrogou e como eu não revelei nomes ela me bateu com uma panela. PEDRO: Não te entendo, Zé. Você inventa uma mentira, apanha da mulher e ainda diz que foi uma coisa legal, que conseguiu o que queria? Pelo jeito o que você queria era levar porrada! JOSÉ: Que nada! A panela era pequena e não doeu tanto assim. O lucro foi que, durante o interrogatório, ela me deu três dicas superquentes de casadinhas que estão picotando aqui na área, e eu vou cair matando em cima, ô Pedroca!!!

CENA 12 FREUD: Captou, nesse exemplo, a síndrome da imagem de espelho? RAYMUNDO: Em cada uma das três mulheres que a Risoleta antipatizava ela via refletida nelas a sua própria imagem de tempos passados quando ela corneava o marido. Essa era a razão para antipatia. Correto, Dr.? FREUD: Muito bem, meu jovem. Você está indo muito bem. Vamos aprofundar agora um pouco mais o nosso estudo. Muitas vezes, a imagem que você vê refletida pela pessoa que você antipatiza, não é exatamente a sua imagem, mas de alguém muito importante dentro de você. Isso é muito comum em relação mãe/sogra. Muitas vezes por causa da mãe...você vai ter gratuitamente uma antipatia muito grande pelo diabo da sogra (riso ). Veja esse exemplo:

CENA 13 Esquete 4 - Participam: Amigo 1 (Antonio) e amigo 2 (Fernando) ANTONIO: E aí Fernando, por que você está assim chateado, rapaz? Parece até que o mundo desabou! FERNANDO: Cara...realmente meu mundo caiu, despencou! Acredita que eu voltei de viagem no sábado após três semanas ralando no interior e quando cheguei em casa peguei a Regina na cama com um desconhecido.

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ANTONIO: Putzgrila, cara...que barra, ô meu! E o que você fez? FERNANDO: Dei porrada no vagabundo, levou um chute no saco tão bem dado que não vai comer a mulher de ninguém nos próximos seis meses! Dei uns tapas na vadia também...peguei minhas coisas e saí de casa. Estou morando em um hotel. ANTONIO: Mas você tem razão de sobra para ficar muito puto da vida. Eu acho que porrada no saco do gigolô foi pouco, cara. Você devia ter cortado os bagos dele fora FERNANDO: E o pior, é que eu, esse idiota aqui, ainda mandou um e-mail para a vadia avisando que chegaria no sábado pela manhã. ANTONIO: Ah não, aí é de mais, cara! Aí o negócio complica. FERNANDO: Mas, o pior mesmo não é isso. O pior de tudo é a interferência daquela jararaca, daquela víbora da dona Eulália, a famigerada da minha sogra. Aquela vagabunda sempre interferiu na nossa casa, sempre me criticou e sempre encobriu as bandalheiras da filha. ANTONIO: Sogra não é parente, e castigo, já descobriram os caminhoneiros. FERNANDO: Você acredita que no domingo de manhã a jararaca ligou me criticando pela reação irada que eu tive, dizendo que eu era um animal bruto, violento com a filhinha dela. E tem mais! Disse que eu estava sendo precipitado e que, para tudo na vida, existia uma explicação razoável...e que ela iria me mostrar que também havia uma explicação razoável para o comportamento da filha dela. ANTONIO: Que velhinha lazarenta, ô meu! O que você respondeu pra ela? FERNANDO: Olha, meu primeiro impulso foi xingar a jibóia balofa. Mas aí, eu fiquei curioso sobre o que aquela aprendiz de satanás iria inventar para livrar da cara da piranha da filha dela. Eu concordei em aguardar um novo telefonema dela. ANTONIO: E ela telefonou de volta? FERNANDO: Telefonou no domingo à tarde. E sabe o que ela me disse? (imitando voz de mulher ) “Fernando, seu troglodita, eu não disse que existia uma explicação razoável para o fato de você ter encontrado a Regininha na cama com outro homem?” Aí eu não resisti e perguntei:

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qual a explicação, dona Eulália? E ela respondeu: (imitando voz de mulher ) “Houve um problema na banda larga da região de vocês e a Regininha não recebeu o seu e-mail!!!”

CENA 14 FREUD: E agora? Pegou onde a síndrome da imagem de espelho apareceu? RAYMUNDO: Eu sei que tem uma relação direta com a mãe do Fernando. Mas, confesso que não ficou muito claro não. FREUD: Natural...natural. Essa situação é nova precisa ser mais bem explicada. A sogra é mãe de um dos cônjuges e, de certa forma, passa a ser também mãe do outro cônjuge. Então, todos os conflitos que alguém tem com a própria mãe ele acaba transferindo para a sogra também. Se a sua sogra tiver um mesmo defeito que a sua mãe, a tendência é você descontar tudo em cima da sogra, porque na imagem de espelho, aqueles defeitos que você detesta em sua mãe, você os vê projetados em sua sogra e ela paga a conta pelas duas, entendeu? RAYMUNDO: Creio que entendi, Dr. Freud. É mais fácil eu sentir raiva da minha sogra do que admitir os defeitos da minha mãe. Então eu descarrego toda a minha antipatia em cima da coitada da sogra. FREUD: Muito boa conclusão, meu jovem. Vejo que você está assimilando bem essa teoria que eu estava desenvolvendo e que agora, nós estamos desenvolvendo. Quero que você continue posteriormente o desenvolvimento dessas idéias, defendendo-as junto à comunidade acadêmica. RAYMUNDO: Muito obrigado pelo elogio e pela confiança, Dr.. Farei o possível para não decepcioná-lo. O senhor sabia que eu já estou começando a sentir pena da figura da sogra. Estou até ficando com dó da Dona Guiomar. FREUD: A compreensão de um problema aprimora a nossa tolerância para aceitar e administrar as conseqüências do problema. Num certo sentido até que você tem razão. O azar da sogra é trabalhar com carga dupla de ressentimento, dela e da mãe do genro ou nora. Mas, por outro lado, tem algumas sogras que são uns capetas mesmos. Elas vivem para infernizar a vida dos genros e noras. Muito bem, agora vamos deixar as sogras de lado e vamos ver mais um exemplo:

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Esquete 5 – Participam: Uma madame feia (Carlota) e uma empregada bonita e gostosa (Clotilde). CLOTILDE: (cantarolando com um espanador na mão ) Seu guarda / eu não sou delinqüente / sou um cara carente / dormi na praça / pensando nela... CARLOTA: Clotilde!...para de cantar essa musica cafona. Cante menos e traballhe mais, sua antipática. Não sei como eu ainda te suporto aqui em casa. CLOTILDE: Ô dona Carlota, que saco. Eu faço todo o meu serviço bem feitinho, na hora e com capricho. Não sei porque a senhora reclama tanto assim de mim. CARLOTA: Porque quem trabalha aqui em casa tem que ter classe e finesse. Não quero mais ouvir mais essas músicas cafonas sendo cantaroladas na minha casa. Se quiser cantarolar, escolha uma ária de uma ópera, como Aída ou Madame Buterfly, por exemplo. (pausa ) Finesse, Clotilde, finesse, entendeu? CLOTILDE: Iiiiiii...a senhora tá ficando muito exigente. Se pelo menos pagasse o salário mínimo integral e não atrasasse todo mês. A senhora ta é ficando meio matusquela do juízo....come urubu e fica arrotando faisão! CARLOTA: Ouça aqui, ô antipática, eventuais defasagens nas datas dos pagamentos se devem a perturbações aleatórias no fluxo de caixa da empresa do meu marido. Não tire conclusões precipitadas, sua incompetente. E por falar em competência, saiba que eu vou melhorar a qualidade dos serviços aqui em casa. Eu vou ensinar você fazer suas tarefas domésticas. CLOTILDE: Incompetente? Ensinar minhas tarefas? Du-vi-de-o-dó! E saiba que eu cozinho muito melhor do que a senhora. CARLOTA: Ah é?...e como é que você descobriu isso? CLOTILDE: Foi o seu marido que me contou! CARLOTA: Ah é?... aquele idiota agora adotou você como confidente, é? CLOTILDE: E tem mais...na cama eu trepo muito melhor que a senhora. CARLOTA: Ah é? O idiota do meu marido também te disse isso?

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CLOTILDE: Não senhora...foi o seu motorista!

CENA 16 FREUD: Essa foi fácil não foi meu jovem? RAYMUNDO: Realmente, Dr. Freud. A madame feia vê na empregada gostosona qualidades – físicas no caso – que ela não tem e que gostaria de ter. Por isso ela considera Clotilde uma mulher antipática. Ou seja, ela vê a feiúra dela refletida na beleza da empregada. Confere, Dr.? FREUD: Confere, com certeza. Muito bem, vamos ver mais um exemplo:

CENA 17 ESQUETE 6: Pai (Valdomiro), filha (Mariazinha) e o conquistador (Ricardo) VALDOMIRO: Mariazinha, minha filha, eu notei que você anda com uns olhares adocicados para cima do vizinho que mora na cobertura. Eu não estou gostando disso não. MARIAZINHA: Ora papai, tem nada não. O Ricardo é um cara superlegal, gente fina. WALDOMIRO: Ricardo,é? Já sabe até o nome dele, não é? O que mais que eu não estou sabendo nessa história? Aliás, eu já estava desconfiado que esse cara é o próprio Ricardão. Todo mundo comenta por aí que esse desgraçado está comendo um monte de mulher aqui nas redondezas. Também, apartamento de cobertura, carro conversível de luxo, boa pinta, grana sobrando... esse cara é a imagem pronta e acabada do Ricardão. MARIAZINHA: Faz assim não paizinho. Que implicância com o coitadinho do Ricardo. Sabia que muita gente fala mal dele por pura inveja? Aliás, o Ricardo já me disse que ele é muito caluniado pelos que tem inveja dele. Tudo porque ele é um homem rico e bonito. WALDOMIRO: Naturalmente você está me colocando no bloco dos invejosos, não é? Pois saiba que não é inveja não. É uma defesa intransigente da preservação dos princípios morais que norteiam a estruturação de uma instituição chamada família. Esse cara é um desagregador de famílias, um indivíduo de moral rasteira, sub-reptícia, um lixo humano. MARIAZINHA: Credo paizinho, você parece que está cheio de ódio no

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coração. WALDOMIRO: Você está muito exibidinha, mocinha. Primeiro me chama de invejoso, agora tenho ódio no coração. Afinal, você está do lado do seu pai ou do cafajeste do Ricardão? Vamos, defina sua posição! MARIAZINHA: Ora, papai, eu só acho que você está sendo injusto com o Ricardinho. Ele não é esse monstro que você esta pintando não! WALDOMIRO: Então o Ricardão para você é o Ricardinho, o coitadinho, o comedorzinho de mulherzinhas casadinhas, o destruidorzinho de familiazinhas, é isso? Minha filhinha vagabundinha? MARIAZINHA: Que é isso papai? Você está me ofendendo. Não admito que você me chame de vagabunda! WALDOMIRO: (imitando a filha ) “Eu não admito que me chame de vagabunda”....pois eu chamo. Eu é que não admito que você, filha de um defensor intransigente dos valores éticos e morais, se relacione com um crápula como esse nojento do Ricardão. E tem mais...e tem mais: você está proibida de falar e até mesmo de olhar para esse verme rastejante! MARIAZINHA: Você não pode me proibir. Eu vou continuar me relacionando com o Ricardinho, sim! Além do mais eu estou esperando um filho dele. É isso mesmo, eu estou grávida de um filho do Ricardo, e estou muito feliz e orgulhosa! WALDOMIRO: (dá um tapa no rosto da filha ) Sua vagabunda...e eu preocupado com o seu olhares para aquele cafajeste e você já estava trepando com ele! E o idiota aqui preocupado com a virgindade da inocente filhinha e o Ricardão furando a bóia dela na cobertura...apenas dois andares acima do meu apartamento MARIAZINHA: (choramingando ) Você é um monstro, Seu Waldomiro...um monstro! WALDOMIRO: Monstro? Você vai ver o que esse monstro vai fazer agora. Eu vou subir e vou enquadrar esse Casanova suburbano... esse Don Juan de meia-tijela. E vai ser na base da porrada!

CENA 18 RICARDO: Boa tarde, seu Waldomiro. Em que posso ajudá-lo? WALDOMIRO: (empurra Ricardo do peito ) Ajudar? Você é que vai precisar de ajuda, seu cafajeste. (levanta o braço para dar um soco ).

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RICARDO: (caído de joelhos ) Calma...calma, seu Waldomiro. Vamos conversar. Eu sei que o senhor está zangado devido à gravidez da Mariazinha. Não se preocupe, eu sou um cavalheiro eu vou assumir todas as responsabilidades. Eu tenho até uma proposta para fazer ao senhor. WALDOMIRO: (ainda com o braço levantado ameaçando o soco ) Proposta? De que o senhor está falando? RICARDO: Se nascer uma menina eu lhe ofereço R$100.000,00 e se for menino eu ofereço ao senhor R$ 200.000,00. WALDOMIRO: (desarma o soco, baixa o braço, ajuda Ricardo a levantar-se e espana do paletó dele ) Ora Dr. Ricardo o senhor realmente é um cavalheiro. Mas, se ocorrer um aborto, o senhor nos oferece uma segunda chance?

CENA 19 FREUD: Percebeu? Toda a bronca que o Waldomiro sentia ele disfarçava com um discurso moralista. Mas na realidade, ele procurava esconder a antipatia gratuita que ele sentia pelo Ricardo. O Ricardão provavelmente possuía qualidades – o sucesso com as mulheres, por exemplo – que ele, Waldomiro, gostaria de ter e não tinha. Assim, a figura do Ricardo agia como um espelho que refletia uma imagem que desagradava ao Waldomiro. Daí a antipatia gratuita que ele sentia. Chegou a essa mesma conclusão, meu jovem? RAYMUNDO: Cheguei Dr. Freud. Está ficando cada vez mais claro e cada vez mais a sua teoria faz sentido. Eu estou começando a enquadrar várias pessoas minhas conhecidas nesse perfil gerado pela Síndrome da Imagem de Espelho. Começo a compreender o comportamento de muitas dessas pessoas e a entender o que realmente está sendo escondido em baixo de um discurso muitas vezes moralista, critico, restritivo ou preconceituoso. FREUD: Muito bom! Você já está chegando ao ponto que eu quero que você chegue. Esta indo muito bem. Mas vamos ver mais um exemplo.

CENA 20 ESQUETE 7 – Duas mulheres (Ivete e Gisele) usando roupas de praticar esporte (tenista, moleton) conversam. IVETE: Hoje eu fiquei cansada de tanto jogar tênis, Gisele. O professor

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Edmundo judiou de mim hoje. GISELE: E por que não interrompeu o treino? IVETE: Como interromper? Uma das coisas mais prazerosas do mundo é desfrutar da atenção daquele gato do Edmundo. GISELE: Ô Ivete, até parece que você está a fim de fazer um nenezinho com o teu professor, hem? IVETE: Ah Gisele, você parece louca. Imagine! Eu sou uma mulher casada e me considero bem casada. Só que na hora que o Ed se aproxima, segura a minha mão e me ensina mais uma vez como empunhar a raquete...aí eu sinto aquele cheiro perfumado de homem másculo...eu te confesso que eu quase surto! Fico toda molhadinha...sério! GISELE: Que barbaridade, Ivete. O que o teu marido diria se soubesse desse caso? IVETE: E por que ele precisaria saber? Eu não estou traindo ninguém! Trata-se apenas de uma fantasia inofensiva que, no fundo, tonifica a minha relação afetiva com o meu marido. Que mal tem, Gisele? GISELE: No estágio atual não tem mal nenhum. E se ele convidar você para empunhar “uma outra raquete”, me entende?... o que você faria, minha amiga? IVETE: Ô Gisele, você tem cada uma! É claro que eu tiraria o corpo fora e diria para ele que eu sou casada e bem casada. E tudo acabaria aí! ponto final, c’est fini. GISELE: (rindo debochada) Perdoe-me a franqueza minha amiga, mas eu não acredito no que você disse... nem em português e menos ainda em francês. IVETE: (zangada ) É assim, é? Puritana hipócrita! Pensa que eu nunca vi o seu chamego com o seu professor de tiro ao alvo? GISELE: Imagine!...e o que você viu além de uma aula normal de tiro ao alvo? IVETE: (irônica ) Ah tolinha, você estava tão embevecida que esqueceu que o clube estava cheio de gente! Pensa que eu não vi o professor Marcos te abraçando por trás e ensinando você a fazer mira com a espingarda? Pelo que eu percebi eram duas miras que estavam sendo

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feitas: a da espingarda em cima e a da pistola do professor mais embaixo. Ficou molhadinha também, minha amiguinha moralista e hipócrita? GISELE: Ivete, tem hora que você é tão vulgar. Mas, falando sério, admito que o Marquinho e charmosésimo e me deixa excitada sim. Mas, como você disse, que mal tem? IVETE: Mal nenhum minha querida amiga. Se na hora “H” você puder dizer “ponto final” e “c’est fini” com a mesma convicção que eu, uma mulher bem casada, não tem problema nenhum, lindinha. GISELE: Então estamos de acordo em tudo, minha amiga. Afinal nós duas somos muito diferentes das duas galinhas mais famosas do nosso clube, a Ritinha e a Lurdinha, não é mesmo? IVETE: Claro, Gisele, claro! Comparar eu e você - duas mulheres de moral ilibada e conduta irrepreensível - comparar com aquelas duas prostiputas que trepam com todo mundo... GISELE: (interrompendo Ivete ) ... e cujos maridos são cornos mansos que têm mais chifre na testa que um alce americano... IVETE (interrompendo Gisele ) ...não tem comparação possível entre nós e as galinhas da Ritinha e da Lurdinha, minha amiga. Nós somos mulheres de outro nível moral, de respeito ao marido e de dedicação à família. GISELE: Ah, Ivete, tem uma que eu quase ia esquecendo de te contar. Um “causo” sobre aquelas duas putinhas! IVETE: Como você pode esquecer de me contar um “causo” sobre essas duas vagabundas, Gisele? Vamos lá, conte tudo...não oculte nada! GISELE: Na semana passada, eu vinha da aula de tiro ao alvo e na minha frente iam Ritinha e Lurdinha, as duas piranhas inseparáveis. Quando passaram em frente ao vestiário masculino, elas pararam e ficaram, olhando para a porta aberta, abobalhadas, babando. Eu ia passando e sem querer olhei também, por acaso, sabe? Você me conhece e sabe que eu não sou curiosa, ainda mais em relação a vestiários masculinos! IVETE: Ei para com isso...conte logo...o que você viu? Minha nossa que suspense irritante, Gisele! Abra o jogo de uma vez, menina! GISELE: Calma, amiga. Pela porta aberta dava pra ver um homem nu,

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de costas, do jeito que veio ao mundo...em trajes de Adão...se enxugando. IVETE: E daí...continue ô criatura irritante! GISELE: Era uma imagem paradisíaca, minha amiga. Aquilo não era um homem, era uma apoteose...uma homenagem divina ao bicho homem. Costas largas e musculosas, pernas esguias e bem definidas, um bumbum arrebitado e bem durinho...uma visão em carne e osso do deus Apolo, ao vivo e a cores! Pena que só o vimos de costas! IVETE: (dando pulinhos de excitamento ) E daí, o que você fez para resistir o impulso de pular em cima do Apolo e testar a dureza do mármore daquele deus grego? GISELE: Eu não fiz nada, amiga. Com aquelas duas piranhas do meu lado eu não podia dar mancada, minha querida. Eu só comentei para elas: Tenho certeza que não é o meu marido. Sabe o que a Ritinha disse?: (imitando a voz ) “E também não é nenhum dos professores de tênis ou de tiro ao alvo”. (Pausa ) Aí a puta da Lurdinha arrasou de vez: (imitando a voz ) “E com certeza absoluta nem é sócio do nosso clube!!!”.

CENA 21 FREUD: (caminha coçando a barba com o charuto na mão, rindo discretamente ) Interessante...muito interessante. Me diga qual a sua interpretação, meu jovem. RAYMUNDO: Essa situação ficou bem clara, Dr. Freud. As duas amigas Gisele e Ivete estão prontas para trair os maridos, vontade para tanto não falta e elas fazem uma espécie de joguinho perigoso com outros homens, aparentemente sem concretizar a traição. Até aqui está correto Dr. Freud? FREUD: Até aqui 100% correto, meu jovem. Faça a conclusão final agora, por favor. RAYMUNDO: A diferença entre as quatro mulheres é a seguinte: a dupla Ritinha/Lurdinha tem a coragem de colocar em pratica os seus desejos e aspirações no campo da sexualidade. Já a dupla Gisele/Ivete tem os mesmos desejos, mas, por razões provavelmente de ordem moral, se reprimem, consideram errado, e não tem coragem de assumir. A antipatia que elas sentem por Ritinha e Lurdinha se deve à síndrome da imagem de espelho. Quando a Gisele e a Ivete olham para as outras duas, elas sentem uma feroz antipatia. A dupla Gisele/Ivete vê projetada

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na dupla Ritinha/Lurdinha uma imagem interna de si mesmas e que elas consideram errada e, por isso, não gostam de ver. FREUD: Muito bem, mas muito bem mesmo, meu jovem. (Freud e Raymundo caminham em um grande círculo no p alco, como se estivessem passeando em uma praça ) FREUD: Agora nós vamos analisar o lado mais dramático da Síndrome da Imagem de Espelho. É quando a antipatia deriva para reações mais fortes que podem chegar à violência física. RAYMUNDO: Violência física? FREUD: Sim, violência física, agressão, porrada, pancadaria, espancamento e, muitas vezes, morte. Essa violência é muito comum nas reações homofóbicas principalmente envolvendo pessoas mais radicais. Vamos ver um exemplo.

CENA 22 ESQUETE 8 - Um oficial e um soldado fardados. OFICIAL: (Lendo um papel ) Soldado, enquadre-se! SOLDADO: (fica em posição de sentido, perfilado ) Sim senhor! OFICIAL: Está aqui o relatório do sargento onde o senhor é acusado de estar praticando atos libidinosos com um colega no banheiro. O que o senhor tem a dizer? Nega ou confirma? SOLDADO: Eu não posso negar, capitão, tenho que confirmar. OFICIAL: (interessado ) E o que o senhor estava fazendo? Tocando uma punhetinha no cara, fazendo um boquete ou ia brincar de mágico e fazer uma vara sumir, hem? SOLDADO: (constrangido ) Ah capitão...eu fico até sem graça de dizer OFICIAL: Ora, diga...eu quero saber dos detalhes. SOLDADO: Eu estava só segurando o pirulito dele quando o sargento chegou. OFICIAL: Ah, segurando o pirulito, é? Que gracinha! No mínimo estava se preparando para um boquete. Se o sargento demora mais um pouco

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para chegar ia te pegar com o pirulito na boca, não é? SOLDADO: Ah, sei lá capitão...tudo ia depender se pintava um clima né? OFICIAL: Ah, é? Muito bem. Se pintasse um clima você faria um boquete e se não pintasse o clima o que aconteceria? SOLDADO: Ah, eu sei lá...talvez nada...talvez...rolasse outra coisa..ah sei lá! OFICIAL: Quer dizer que o veadinho são sabia o que iria acontecer, não é? SOLDADO: Veadinho? Por que será nós os homossexuais somos sempre humilhados e discriminados? OFICIAL: Homossexual? Então você tem a audácia de se considerar um homossexual? SOLDADO: Sim senhor, eu sou um homossexual! OFICIAL: Você é uma bonequinha pretensiosa querendo se passar por homossexual. Ora vejam só! SOLDADO: Se eu não sou homossexual, então quem seria? OFICIAL: Homossexual era o grande general e imperador Julio César, um dos maiores conquistadores dos tempos gloriosos do império romano. Homossexual era o general da Macedônia, Alexandre o grande, que com apenas 20 anos de idade já tinha conquistado metade do mundo. Homossexual era o general e guerreiro Aquiles que junto com seu amante Pátroclo enfrentou o exército de Tróia mostrando a bravura dos soldados gregos. Homossexual era o grande general Aníbal, o cartaginês, que revolucionou as táticas militares daquela época e infringiu derrotas históricas ao poderoso exército romano. Esses eram homossexuais! SOLDADO: E eu o que eu sou? OFICIAL: Você?... Você é um veadinho de merda, um queima-rosca escroto, uma bicha nojenta, um boiola ridículo, um baitola desclassificado, um xibungo horroroso! A aqui na caserna você vai se ferrar na minha mão! O meu líder se chama Jair Bolsonaro, ouviu veadinho? Sentiu o drama? E não adianta o Supremo Tribunal ou o Congresso querer passar a mão na cabecinha de vocês, não! E também não adianta os esquerdinhas efeminados ficarem com essa história de

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bulling e outras frescuras. Aqui, Boiola é tratado na ponta do coturno, porque nas forças armadas não tem lugar para veados! Homossexuais sim, veados não!

CENA 23 FREUD: Entendeu a sutileza da síndrome nesse exemplo, Raymundo? RAYMUNDO: Ora que legal, o senhor já sabe meu nome!. Entendi, sim, Dr. Freud. Nesse exemplo o oficial é um homossexual não assumido que se identifica com os generais homossexuais antigos que a história consagrou. Mas ele permanece enrustido porque sabe que atualmente ele seria considerado apenas mais um veado fardado. Como a imagem do soldado reflete essa realidade que ele não gosta, então ele maltrata e destrata o coitado do soldadinho. FREUD: Muito bem analisado, meu jovem Raymundo. O oficial provavelmente antipatizou com o soldado desde a primeira vez que o viu. E essa antipatia evoluiu para atitudes violentas e agressivas. É importante compreender também que, nesse caso e em outros onde existem reações extremadas ou violentas , quanto maior for a dificuldade para esconder a homossexualidade reprimida mais forte será a reação da violência homofóbica. RAYMUNDO: Isso quer dizer, Dr. Freud, que o capitão está ali, na linha da fronteira....se derem em empurrãozinho... FREUD: Se alguém passar a mão na bunda dele, aposto que ele vai gritar (falando e gesticulando de modo efeminado ) Uau, me chama de pudim e enfia o dedo em mim! (ri comedidamente . Pausa ) Bem vamos voltar a falar sério e ver mais um exemplo.

CENA 24 Esquete 09 - Dois policiais (Taborda e Carraro) entram em cena, acompanhado pelo canhão de luz, correndo como se estivessem perseguindo alguém. Chegam até um homem (Reginaldo) que, só então, fica sob as luzes. CARRARO: Teje preso meliante (apontando a arma ) atentado violento ao pudor. REGINALDO: Calma seu guarda, calma eu sou do bem. Por favor, nada de violência.

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TABORDA: (Dá um safanão em Reginaldo ) Carraro, o que o meliante está enchendo o saco? REGINALDO: (Se levantando ) O seu Taborda, que violência, eu sou um cidadão, como vocês dizem, sangue bom! Por favor, não me bata! CARRARO: Quer dizer que o cidadão quer nos convencer que é CB, sangue bom, não é, o veadinho? REGINALDO: Espera aí seu Carraro, pó o senhor está me ofendendo. TABORDA: (Dá outro safanão em Reginaldo ) Tá ofendidinho, é ô veadinho meliante? Pensa que nós não vimos o ato libidinoso que você e o teu parceiro estavam cometendo ali no escurinho? REGINALDO: (Constrangido ) É...bem...eu só estava conversando com um amigo meu...nada além de uma conversa entre amigos! CARRARO: Uma conversinha entre amigos, não é, ô vagabundo? E por que o amiguinho saiu correndo desesperado daquele jeito? REGINALDO: Eu acho que ele percebeu a chegada de vocês e saiu correndo apavorado, com medo, em pânico, sei lá!. TABORDA: Escuta aqui ô boiolinha, a boneca está achando que nós não vimos o que estava acontecendo? Você acha que nós não vimos você de pé com o instrumento de trabalho para fora e o outro ajoelhado na tua frente brincando de falar no microfone? (Dá outro safanão em Reginaldo ) Ta pensando que nós somos cegos, ô chupetinha? Pensa que nós vimos você com as duas mãos grudadas na cabeça dele empurrando e puxando para marcar o ritmo? REGINALDO: O senhor está enganado. O meu amigo estava abaixado pegando umas moedas que tinham caído no chão, seu Taborda. CARRARO: Ah, já sei Taborda. Naturalmente na sequência ele iria enfiar as moedinhas no teu cofrinho, não é o veadinho? REGINALDO: O senhor está enganado. Nós não estávamos cometendo nenhum ato libidinoso não senhor! Ele ficou com medo e fugiu a toda velocidade quando percebeu que vocês estavam chegando. TABORDA: Ah, foi assim é? (apontando para o chão ) E como é que você explica essas duas orelhas que estavam penduradas nas tuas mãos quando nós chegamos aqui? (Dá outro safanão em Reginaldo )

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CARRARO: Negócio é o seguinte Taborda: vamos levar o boiolinha para a delegacia. Lá ele vai pagar uns boquetes pra nós e mais um prá cada preso que estiver no xadrez. Depois vai lavar a roupa de todos os encarcerados e dar um brilho na delegacia, quero tudo limpinho. Por fim damos uma surra nele, pra esse veadinho aprender a ser homem, daí mandamos ir embora. Tá de bom tamanho Taborda? TABORDA: Na justa medida, Carraro. Cumprimos a lei e ajudamos a moralizar esse mundo pervertido. Tenho certeza que esse aí nunca mais vai querer brincar de microfone sem fio. Um boiola a menos no planeta, Carraro! CARRARO: Porrada nele Taborda. Vamos moralizar esse mundo! ( Os dois policiais saem de cena dando safanões em Re ginaldo ).

CENA 25 FREUD: Vamos moralizar esse mundo pervertido...essa é incrível. Incrível, mas acontece ainda muito por aí! Vamos ver a sua análise, meu jovem. RAYMUNDO: Ficou claro que os dois policiais são homossexuais enrustidos. Na imagem de espelho, eles vêem projetada por Reginaldo uma imagem do interior deles, uma imagem que eles não gostam de admitir publicamente. FREUD: Exatamente. Nesse caso vemos uma reação excessivamente violenta, típica dos que detém o poder de força, usando como pano de fundo a masculinidade e uma suposta moralidade. Fica evidente também um elevado grau de homofobia. Nesse caso a antipatia inicial evoluiu para uma homofobia crônica disfarçada em princípios legais. Outra característica dos homofóbicos que detêm o poder de força é a humilhação a que eles submetem aqueles que os fazem lembrar daquela “face oculta” que eles não gostam de ser lembrados. Vamos ver um último exemplo para concluir seu treinamento.

CENA 26 Esquete 10 – Dois carecas (skinheads), Renatão e Geraldão, conversando. Depois chega Maurício, um gay sem trejeitos afetados ou outro qualquer estereotipo. RENATÃO: Pô Geraldão esse mundo tá perdido ô meu. Os veados estão tomando conta de tudo. Os políticos, deputados, senadores prefeitos, governadores ta todo mundo defendendo as bichonas como se

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fossem umas coitadinhas! Agora até no tal de Supremo eles já estão dando as cartas. GERALDÃO: Supremo, ô meu? Que que é isso? RENATÃO: Sei lá Geraldão...eu só vi uma foto no jornal. Eu acho que esse tal de Supremo fica lá pros lados da terra do Drácula...uns homens de capa preta, com cara de vampiro...todos protegendo os veadinhos, coitadinhos, tratando esses merdas como se fossem gente, ô meu! GERALDÃO: Aí não dá pra segurar não, Renatão. É como o nosso guru, o deputado Jair, diz...”veado bom é veado morto” ! Por isso tem que ser na base da porrada...ou aprende a ser homem ou desinfeta o planeta, ô meu! RENATÃO: Eu tenho ódio desses gays, Geraldão. É um negócio muito forte que sai de dentro de mim. Eu olho pra eles e me dá vontade de bater, de matar esses bichos nojentos. Eu só me acalmo quando vejo a bichona ensangüentada no chão. Aí, eu vou pra casa e durmo gostoso, que nem um anjinho, cara! GERALDÃO: Eu também, cara! É uma visagem bonita ver o boiola se contorcendo no chão, colorindo o piso com sangue, e agente ali, ó, só na sola do coturno (chutar o ar ) ensinando o cara a ser macho. Eu também me sinto superbem, ô meu, durmo tranqüilo...naquele dia a minha missão está cumprida. Ou os veados aprendem ou morrem! E não adianta chororô ou pedir socorro para a mamãezinha não! Nós dois somos foda é ou não é Renatão? RENATAO: Foda, não, Geraldão. Nós somos fodão.

CENA 27 (Mauricio entra em cena num ponto do palco distante dos “carecas”, simulando um ponto de ônibus. Ele é um rapaz relati vamente franzino, de estatura mediana. Educado mas não afet ado. ) GERALDÃO: Renatão, olha lá, tá vendo aquele cara no ponto do ônibus? RENATÃO: Tô vendo. O que é que tem ele? GERALDÃO: Lembra aquela vez que nós fomos azarar a saída da boate gay perto da casa da tua tia? RENATÃO: Aquela vez que nós seguimos uma bichinha escrota que

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levou um show de porrada e foi parar na UTI?? Aquela que ficou um mês na UTI? GERALDÃO: Essa mesma, cara! Pois aquela bichona ali também estava lá. RENATÃO: Você tem certeza? GERALDÃO: Tenho cara! Ele se despediu de uma outra boneca com um longo beijo na boca, na porta da boate. Eu lembro que eu senti um nojo tão grande que eu quase pulei no pescoço dele!... Para estrangular, viu Renatão? Ele só sobreviveu porque a gente já tinha combinado cercar a bichinha escrota na outra quadra, e eu tive que sair dali. RENATÃO: Olha...olha ele tá vindo prá cá. O cordeiro...quer dizer...a ovelha está vindo direto para a boca do lobo, Geraldão! GERALDÃO: Legal, Renatão. Mais uma candidata para a UTI. Só cuida prá não matar a boneca, viu? Começou a sair sangue pára de bater. Isso é suficiente para ele aprender a ser homem, ok? MAURÍCIO: Boa noite. Os senhores sabem me dizer se tem algum ponto de táxi aqui por perto? RENATÃO: Ponto de táxi, ou ponto de veadagem? Tá procurando o ponto das coleguinhas, tá veadinho? MAURÍCIO: Desculpe-me, senhor. Eu apenas pedi uma informação, educadamente, e não quero confusão. Por favor! GERALDÃO: Tô sacando você, o bichona! Eu te vi na saída da boate gay beijando na boca outra bicha nojenta. Não foi selinho não, o que já seria uma nojeira! Foi beijo de língua...e demorado! Eu quase vomitei, viu o bichona? MAURÍCIO: E daí? Eu não vim aqui discutir a minha orientação sexual com vocês. Isso é um problema meu que não diz respeito a ninguém mais. Se vocês não sabem me informar o que eu preciso saber, tudo bem, muito obrigado e boa noite. (Vira-se para retornar ao ponto em que estava antes ) RENATÃO: (Obstruindo a saída de Maurício ) Onde a bonequinha pensa que vai? Você só sai daqui depois que receber um tratamento antiveadagem para aprender a ser homem! (Geraldão agarra Mauricio por trás. Mauricio se liv re dele,

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derrubando-o e aplicando alguns chutes. Mauricio p arte para cima de Renatão e dá sucessivos sopapos nele. Apos o últ imo sopapo ele cai ao lado de Geraldão, os dois deitados de barrig a para cima. Em seguida eles sentam e conversam ). RENATÃO: Você tem certeza que esse cara era o boiola da boate gay? GERALDÃO: Certeza absoluta, o cara! Não estou entendendo mais nada, Renatão. Nós vamos perder para esse veadinho, o meu? RENATÃO: Claro que não. Foi um lance de sorte dele. Vamos atacar os dois ao mesmo tempo. Cair matando, entendeu? (Os dois se levantam e partem ao mesmo tempo para ci ma de Mauricio. Com uma série de golpes Mauricio se defe nde e bate sucessivas vezes nos dois “carecas”. Os dois caem e xaustos de bruços, gemendo e massageando diversas partes do co rpo ). MAURÍCIO: Vamos, levantem machões! O show de porrada só começou, skinheads filhos da puta. Vamos levantem! RENATÃO: (continua deitado ) O meu, tá na cara que ouve um engano da nossa parte. Você é um cara igual a nós, cara! Tu é espadão sarado. Tu é igual a nós cara! MAURÍCIO: Neste ponto eu dou razão a vocês, babacas. Nós somos iguais sim, mas não como vocês ainda estão pensando. Eu não sou espadão sarado igual a vocês. Vocês é que são homossexuais iguais a eu! A diferença e que eu assumi e vocês ainda estão enrustidos, se escondendo atrás da violência e da covardia em cima dos mais fracos que vocês! (Renatão e Geraldão sentam, intimidados, olhando pa ra Mauricio ) GERALDÃO: Aí não, o cara. Você...chamar dois machões como nós de veados? Quem é você, cara? (Mauricio tira do bolso da calça uma cédula de ident ificação e entrega a Geraldão ) GERALDÃO: Ih cara, eu tô com a visão embaralhada, Renatão. Lê aí o que diz a carteirinha. RENATÃO: Pô o meu, o cara é Instrutor Senior de Artes Marciais da SWAT de Nova Iorque! O cara é um barra pesada internacional ô meu! Coisa de cinema americano! (devolve a carteira para Mauricio )

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GERALDÃO: Dr. Mauricio, desculpa o mal-entendido...nós não tivemos a intenção de sacanear o senhor não doutor! Deixa a gente ir embora e vamos dar o dito pelo não dito, doutor. MAURÍCIO: Ir embora? Eu estava me lembrando que existem dois skinsheads que fizeram várias agressões a homossexuais aqui nessa área, inclusive hospitalizando alguns deles. Vocês sabem alguma coisa disso? RENATÃO: Nós? Com certeza não. Nós somos dois brincalhões e até gostamos dos bichas, não é Geraldão? GERALDÃO: É claro que nós gostamos! E gostamos de fazer carinho neles também...bilu-bilu boiola, bilu-bilu boiola...viu como nós somos legais? MAURICIO: Hum... já entendi. Tirem toda a roupa...os dois...e já! RENATÃO: O meu...tu tá brincando? Tirar tudo? MAURÍCIO: Podem ficar com a cueca. (PAUSA) Joguem a roupa para mim e podem se levantar. Eu acho que pelados vocês não vão tentar fugir. E se tentarem eu corro atrás, pego e quebro as duas pernas, entenderam? (Eles se levantam e entregam as roupas para Mauricio ) GERALDÃO: O meu, qual é a tua? Você disse que é veado, mas age como se fosse um espadão sarado que nem nós! (Maurício se adianta e dá um tapa na cara de Geraldã o que se contrai evidenciando uma reação de medo ) MAURÍCIO: Você precisam aprender algumas coisas. A primeira delas é que essa palavra “veado” é pejorativa, mostra preconceito e falta de respeito com alguém que tem orientação sexual diferente da sua. (falando mais alto ) Entenderam? AMBOS: Sim senhor, Dr. Mauricio. MAURÍCIO: Vocês sabem o que é homofobia? RENATÃO: Eu sei. É aquela doença de cachorro doido! MAURÍCIO: Grosso, inculto e homofóbico. Aquela doença de cachorro

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chama-se raiva e o nome científico é hidrofobia. Homofobia é o que vocês sentem quando veem um homossexual e querem agredi-lo. E a agressão nem sempre é física, porrada, entendem? Muitas vezes a agressão é feita com palavras, com olhares, com atitudes ou com gestos. Você pode discriminar uma pessoa de muitas maneiras. O grau mais extremo é o de vocês, o que descamba para a violência física. Sabem qual é o significado desse comportamento de vocês? AMBOS: Não senhor, Dr. Mauricio. MAURÍCIO: É que vocês são gays enrustidos! GERALDÃO: Pô, doutor, não judia de nós MAURÍCIO: Judiar? Nada disso! A experiência tem mostrado que o homofóbico, mais cedo ou mais tarde acaba assumindo a sua homossexualidade. Querem ver uma coisa? Os dois aqui, na minha frente, fazendo fila! (Renatão abre os braços para protestar. Mauricio erg ue o braço como se fosse dar um soco. Renatão se intimida e se coloca imediatamente atrás de Geraldão ). MAURÍCIO: (Apontando para Renatão ) Você...dê uma fungada no cangote do teu parceiro. GERALDÃO: Eh, ô meu, qual é a tua? (Maurício dá um tapa e Geraldão se intimida, abaixan do a cabeça e puxando o cabelo para liberar o cangote. Renatão dá uma fungada discreta ). MAURÍCIO: Funga direito, careca babaca! Com força, porém carinhosamente. Vamos lá! (Renatão dá uma fungada demorada encostando a boca n a nuca do parceiro. Geraldão dá uns saltinhos, acelera a res piração grunhindo. Em seguida, rapidamente se recompõe e fa z cara de mau para a platéia ) MAURÍCIO: Agora inverte. Você (apontando para Geraldão )...você agora funga o cangote dele. (Os dois invertem as posições e Geraldão funga o can gote de Renatão que tem uma reação semelhante à do parceiro . Depois encara o público com olhar ameaçador )

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RENATÃO: (Voz mais suave ) Geraldo, eu acho que preciso ir ao médico. Estou sentindo uma coceira diferente (gesticula esfregando uma perna na outra ) ...eu acho que é verme...só pode ser verme! GERALDÃO: (Voz mais suave ) Marca consulta pra mim também, Renato. Acho que nós precisamos de um vermífugo bem forte porque essa coceira tá incomodando, o cara! MAURÍCIO: Vermes, é? A coceira mudou de nome agora? Tá bom! Vamos para a etapa seguinte. Os dois aqui, de frente prá mim , juntinhos, lado a lado. Cada um apalpando o bumbum do outro. Com força mas com muito carinho. Vamos lá. AMBOS: Pô, Dr. Mauricio... MAURICIO: (Ergue a mão ameaçando um soco ) Apalpando, apalpando! (Os dois se intimidam e começam a se apalpar. Fazem trejeitos faciais e contorcem os corpos como se estivessem go stando ). MAURICIO: (Dando risada e se afastando um pouco dos dois ) Hei, chega, chega. Gostaram não é? RENATÃO: (Segredando com a voz progressivamente mais efeminada e com trejeitos ) Pô Geraldinho, a coceira aumentou e o pior é que estou gostando dela. GERALDÃO: (Segredando com a voz progressivamente mais efeminada e com trejeitos ) Fala baixo Renatinho. A minha coceira também aumentou, mas vamos tomar um vermífugo bem forte que isso passa. MAURÍCIO: (Se aproximando dos dois ) O que as meninas estão cochichando? Aumentou a coceirinha não é? Vamos para o terceiro estágio. Beijo na boca. Quero um beijo de língua, com emoção, com carinho e sem pressa. RENATÃO: Aí não, ô cara. Aí você já tá humilhando a gente. Beijo na boca no meio da rua, tenha dó ô meu! MAURICIO: Mas eu estou tendo dó de vocês. Eu ainda não fiz o sangue correr, como vocês gostam de fazer. Agora...se não começar o beijão já, aí sim, o show de porrada só vai parar quando o chão ficar vermelho, do jeito que vocês gostam e costumam fazer com os outros. (Faz um

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movimento de arte marcial como se fosse atacar a d upla ) Vão beijar ou não? (Renatão e Geraldão imediatamente se abraçam e simu lam um beijo demorado. Eles se afagam durante o beijo. Mauricio se afasta um pouco dos dois dando risadas ). MAURICIO: Ei, ei...chega! (risada ) Pelo jeito gostaram, não é? Bem...o tratamento de vocês está concluído. Podem ir embora. RENATÃO: E a nossa roupa, Dr. Mauricio? Por favor, o senhor vai deixar a gente pelado no meio da rua? MAURICIO: A roupa vai ficar comigo. Vocês vão para casa assim como estão...vão caminhar pela cidade a pé...vão pegar os ônibus só de cueca...e se alguém perguntar, vocês sempre poderão dizer que foram assaltados e que os ladrões levaram tudo. Simples, não é? E se eu encontrar com vocês fantasiados de skinheads outra vez, eu vou moer os dois na base da porrada. Entenderam? AMBOS: Sim senhor, Dr. Mauricio! (Mauricio vai embora levando as roupas dos dois skin heads ) RENATÃO: Ô cara você tá sentindo o mesmo que eu? GERALDÃO: (Voz ligeiramente efeminada ) Acho que sim, ô meu. Mexeu tudo por dentro...as coisas não estão mais como eram antes. (Desse ponto em diante os dois falam de modo nitidam ente efeminado ) RENATÃO: Comigo também. Tô sentindo umas coisas estranhas...umas vontades diferentes...um desejo de me soltar, de me libertar, de assumir toda essa loucura que está borbulhando e transbordando dentro de mim. GERALDÃO: (Com a voz claramente efeminada ) Sabe de uma coisa? Eu também vou me soltar. Vou liberar aquela fera que está enjaulada dentro de mim me deixando oprimido e revoltado. De agora em diante quero ser chamada de Priscila. Vou colocar uma peruca e quero cair na gandaia e recuperar o tempo perdido. RENATÃO: Pois eu também vou mudar de nome. Daqui prá frente só me chame de Samanta. Eu vou arrasar no pedaço, menina. Vamos embora? Se encontrarmos com a policia não se esqueça de representarmos o papel de Renatão e Geraldão. Caso contrário vamos ser presas e vão

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colocar nossas caras no noticiário policial. GERALDÃO: Noticiário...TV... (pausa ) Guria, tire fora essa calcinha...vamos! RENATÃO: O que é isso, mulher? Ficou louca? Você acha que eu vou ficar pelada, Samanta? GERALDÃO: Ah guria, como você é bobinha! Você não entende nada de propaganda. Nós vamos sair daqui e vamos direto à polícia dar queixa de um assalto que incluiu o roubo das nossas roupas. RENATÃO: Samanta...e se nós formos presos por atentado ao pudor, mulher? GERALDÃO: Isso é um pequeno detalhe, guria! Vale à pena correr o risco. Ou você acha que nós podemos perder a chance de aparecer no Programa do Ratinho e do Datena, no horário nobre, ao vivo e a cores e mostrar as nossas bundas para todos os homens do Brasil? (Os dois viram-se de costas para o público, tiram as cuecas e jogam longe. De mãos dadas saem correndo e dando pulinhos até uma saída no final do palco ).

CENA 28

RAYMUNDO: (Coçando a cabeça como se estivesse em dúvida ) Dr. Freud, eu deveria então concluir que todo indivíduo homófobo é um homossexual enrustido? FREUD: Deveria não. Deve! Por qual motivo você acha que o homófobo se sente tão incomodado pela presença do homossexual? RAYMUNDO: Pelo que vimos até agora é devido à Síndrome da Imagem de Espelho. FREUD: Muito bem! Você precisa entender agora que as reações de antipatia são reações de antagonismo e algumas vezes são atávicas. São reações para a defesa do espaço que cada ser vivo possui. Um cachorro, por exemplo, marca com xixi um espaço que ele acredita ser dele. Se outro cachorro invade esse espaço ele tende a reprimir o invasor. O mesmo acontece com uma pequena abelha ou com um leão. Se uma abelha sentir que você invadiu o espaço dela, ela vai te atacar. Se um leão não estiver faminto e você não invadir o espaço dele, ele não vai se incomodar com você.

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RAYMUNDO: O senhor está afirmando que algumas reações de antipatia começam com uma invasão de espaço? FREUD: Exatamente. Vamos ver como isso acontece na prática. Se alguém invadisse a sua casa, como é que você reagiria? RAYMUNDO: Eu reagiria mal, inclusive com o uso da violência, se fosse preciso, para defender meu lar. FREUD: Você reagiria para defender um espaço que é seu. Nesse exemplo teria havido uma invasão de um espaço físico de sua propriedade e você expulsaria o invasor. (Pausa ) O mesmo aconteceria se alguém, competindo com você, colocasse seu emprego em risco. Você reagiria tentando afastar o suposto invasor do seu espaço profissional. Com o homófobo é a mesma coisa. Ele vê o homossexual como alguém que está invadindo o espaço da sua sexualidade, pois lá estão guardadas coisas que ele não quer revelar para os outros. Daí inicialmente nasce uma antipatia, aparentemente sem explicações, que pode derivar para reações mais violentas. Ele vê no homossexual uma imagem refletida daquilo que está escondido no espaço psicológico da sua sexualidade e que ele quer manter em segredo. RAYMUNDO: Interessante, Dr. Freud. Quer dizer que todo homófobo é um homossexual enrustido? FREUD: Exatamente. Você ainda tem dúvida? Analise o seu caso. RAYMUNDO: Êpa, como meu caso? FREUD: (Rindo ) Calma, um jovem. Pense e responda: que tipo de reação você tem quando vê um homossexual? RAYMUNDO: Eu?...eu não tenho reação nenhuma. No campo da sexualidade ele é tupiniquim e eu sou tupinambá. Somos de tribos diferentes, mas um não interfere na floresta do outro. Podemos ser amigos e convivermos em um clima de cordialidade, respeito e amizade. Qual o problema? FREUD: Exatamente. Essa é a questão: Qual é o problema? Onde está o problema? O problema existe sim, e ele está dentro da cabeça do homófobo. (Freud balança o corpo como se estivesse tonto, gira ndo o tórax em movimentos circulares ) RAYMUNDO: O que foi, Dr. Freud? Está se sentido mal?

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FREUD: Estou me sentindo tonto e fraco. Sinto que estou sendo puxado de volta...creio que os anjos lá em cima estão com saudades de mim...Faça bom uso do que eu te ensinei, meu jovem...escreva o teu TCC e desenvolva uma bela tese de mestrado. (Começa a aparecer uma nuvem de fumaça que aos pouco s vai aumentado até envolver totalmente o Dr. Freud, pe rmitindo sua saída do palco ). RAYMUNDO: Dr. Freud...eu posso fazer alguma coisa pelo senhor? FREUD: Não meu jovem, ninguém pode. Estou indo embora e tomara que ninguém mais me traga de volta para a terra. Adeus Raymundo. espero que o nosso próximo encontro demore bastante...mas um dia nos encontraremos e vamos juntos descobrir qual é o sexo dos anjos. (Dá uma gostosa risada e desaparece por completo na fum aça). RAYMUNDO: Adeus, Dr. Freud...e muito obrigado. (Pausa) Preciso contar tudo para a Mãe Isolete. Ela não vai acreditar que estou com quase todos os meus problemas resolvidos. Agora basta somente pegar o meu chá de picão e adeus xoxotinhas infernais. (Entusiasmado ) Vida nova, cabeça leve, sorriso nos lábios e coração aberto para o futuro. (Pausa) Tomara que ela não demore muito para chegar, eu estou exausto e com sono. Preciso descansar um pouco e começar imediatamente a escrever o meu trabalho de conclusão de curso. (Raymundo senta-se na mesma cadeira e na mesma posiç ão que estava no início da cena 02. Após sentar-se o palc o deve escurecer totalmente por poucos segundos, o suficiente para e le trocar de jaqueta e boné (usar os coloridos) indicando que na próxima cena passa-se do sonho para a realidade . Mãe Isolete retorna do atendimento usando as roupas coloridas da Cena 01 .

CENA 29

ISOLETE: O meu filho, demorei muito? Sonhou com muitas xoxotinhas?

RAYMUNDO: (espreguiçando ) É...dei uma pequena cochilada. Que bom que a senhora chegou. Estou só esperando para pegar o chá de picão, já que o Dr. Freud resolveu os problemas do TCC. ISOLETE: Chá de picão? Dr. Freud? Que negócio é esse meu filho? RAYMUNDO: Como “que negócio é esse” ? A senhora não disse que ia fazer um despacho para anular o trabalho da dona Guiomar? Não disse

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que ia me dar umas folhas de picão para fazer um chá?, e não conseguiu trazer o Dr. Freud do além? ISOLETE: Meu filho, você andou cheirando alguma coisa diferente? Tomou algum chazinho esquisito? RAYMUNDO: Péra aí, Mãe Isolete, péra aí! . Agora quem diz “que negócio é esse” sou eu. A senhora me diz um monte de coisas, traz o Dr. Freud do além e depois sai correndo apavorada dizendo que tem medo de alma penada e me deixou sozinho com o cara. Eu pergunto novamente: que negócio é esse? ISOLETE: Meu filho...eu acho que você não bate bem da cabeça. Eu saí para atender o Waldir Rossoni e meia hora depois, quando eu volto, você diz que eu prometi fazer despacho, que eu prometi te dar chá de picão. Tudo bem, isso eu disse. Agora, trazer do além um tal de doutor que eu nunca ouvi falar, aí é loucura, meu filho. Acho que você esqueceu de tomar o remédio hoje. Por acaso teu nome completo não é Raymundo Requião? RAYMUNDO: Não senhora, meu nome é Raymundo Fagner de Oliveira e Silva. E acho que louca é a senhora. Louca, vigarista e medrosa. Para mim chega de enrolação. C’est fini, entendeu? Chega! (Raymundo sai de cena indo embora. Isolete fica sozi nha resmungando e caminha até o ponto onde a fumaça enc obriu o Dr. Freud e ele desapareceu. Lá ela acha um chapéu anti go, uma bengala e um charuto ). ISOLETE: É cada maluco que me aparece. Despacho e chá de picão funciona, eu sei, eu já usei e deu certo... Mas, a tal da alma penada...o moleque é doido varrido...imagina se eu vou fugir de coisas do além...(se abaixa e pega a bengala, o chapéu e o charuto ) uai o que que é isso? Ai ai ai...o doidinho esqueceu as coisas dele aqui... e que coisas esquisitas! (Isolete corre até a porta e chama Raymundo de volta ) Ô Raymundo...Raymundo...vem cá doidinho...você esqueceu umas coisas aqui. RAYMUNDO: (retorna visivelmente contrariado e encara Isolete ) O que foi dessa vez? Quer pedir desculpas? ISOLETE: Desculpas? Não meu filho...eu só quero que você pegue suas coisas e nunca mais volte aqui. RAYMUNDO: Minhas coisas? O que foi agora? Pirou de vez?

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ISOLETE: Não o doidinho (Empurra com força a bengala, o chapéu e o charuto para as mãos de Raymundo ). Toma que o filho é teu! RAYMUNDO: Ei, pera aí...essas coisas aqui não são minhas. (Joga tudo no chão, aos pés de Isolete). ISOLETE: Claro que são, o doidinho. Eu não uso chapéu, não preciso ainda usar bengala e o charuto que eu fumo não é coisa fina como esse aqui não, meu filho. RAYMUNDO: Eu também não uso chapéu, nunca usei bengala e não fumo nem cigarro que dirá charuto! Eu acho que “o filho é seu”, dona Isolete. ISOLETE: O doidinho, para com essa estória, meu filho. Eu varri toda a casa hoje de manhã e não tinha nada aqui. Depois disso só entrou você...então quem que é o pai da criança, hem? Quer saber de uma coisa? Pega essas tralhas e se manda daqui, se não eu chamo a polícia! (Raymundo se abaixa e pega o chapéu colocando-o na c abeça. Coloca o charuto na boca, segura a bengala com uma das mãos. Caminha até o proscênio, encara a platéia e abre os dois braços com quem diz: E agora?) RAYMUNDO: E agora? (Apagar as luzes e fechar as cortinas )

FIM

3) DESCRIÇÃO DOS PRINCIPAIS PERSONAGENS Dr. FREUD: Ator de meia idade vestindo terno preto com colete, chapéu preto, bengala (que era usada como complemento de indumentária) e um charuto que fica na boca apagado. Cabelos ralos e barba brancos. RAYMUNDO: Jovem na faixa dos 20-25 anos, estudante de psicologia usando roupas informais, calça jeans, jaqueta e boné (pretos e de cores vivas). Usa uma prancheta ou caderno para anotações. ISOLETE: Mulher de meia idade (faixa dos 35-45 anos) que se veste de maneira extravagante nas cores e nos formatos das roupas. Deve usar roupas coloridas e preto & branco nos dois momentos da peça. ATORES DOS ESQUETES: Atores versáteis observando-se as faixas etárias dos personagens.

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4) SUGESTÕES PARA A MONTAGEM

A peça tem 10 esquetes que exemplificam a teoria do personagem Freud. Podem ser escolhidos apenas alguns esquetes observadas as limitações de tempo ou características do público. O cenário é bem simples, bastando apenas a caracterização de dois cômodos de uma casa: uma sala de espera e uma outra sala onde se desenrolam os diálogos entre Freud e Raymundo e também os esquetes. A peça tem um total de 27 personagens (18 homens e 9 mulheres). Mas, se os atores se revezarem em mais de um papel é possível chegar-se a um número mínimo de 07 atores (duas mulheres e cinco homens) ou outra qualquer combinação julgada mais adequada ou conveniente

05) DADOS SOBRE O AUTOR Nome: Joaquim Carlos Sena Maia (JC Sena Maia) Endereço: Rua Padre Pinto 178 – Graciosa de Cima – Antonina PR E-mail: [email protected] Telefones: (41) 9117-9117 e (41) 9111-9391