o impÉrio do brasil, a repÚblica oriental e a guerra do...

277
UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRA Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO PARAGUAI. Estudo sobre as relações do Império do Brasil com o Prata 1864-1866 VASSOURAS 2007

Upload: trankiet

Post on 11-Feb-2019

223 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

UNIVERSIDADE SEVERINO SOMBRAPró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação

PROGRAMA DE MESTRADO EM HISTÓRIA

O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E AGUERRA DO PARAGUAI.

Estudo sobre as relações do Império do Brasil com o Prata

1864-1866

VASSOURAS2007

Page 2: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Livros Grátis

http://www.livrosgratis.com.br

Milhares de livros grátis para download.

Page 3: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

LUÍS MARTINI THIESEN

O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E AGUERRA DO PARAGUAI.

Estudo sobre as relações do Império do Brasil com o Prata

1864-1866

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em História da Universidade Severino Sombra como requisito à obtenção do grau de Mestre em História.

Orientador: Professor Doutor Eduardo Scheidt.

VASSOURAS2006

2

Page 4: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Aos meus pais, Dona Adhyles e Seu Renato, cada passo dado aqui, quis ser um testemunho do mundo que eles me deram. Ao meu filhinho Erwin, para que as horas de separação sejam um exemplo da disciplina que a vida requer. Aos meus mestres, que este possa ser um testemunho digno dos seus esforços. Aos companheiros da Seção de Inteligência do 4º/7º GAv, Vitor Pinto Atayde e Alexandro Fonseca da Silva, pela inexcedível paciência e lealdade. Aos tenentes-coronéis Pitrez e Roberto, capitães Carrocino e Assis, tenente Víctor, que se empenharam pessoalmente para que a realização deste curso fosse possível.

3

Page 5: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

RESUMO

Este trabalho buscou alinhar dados, do período imediatamente anterior à deflagração da Guerra do Paraguai, e dos seus lances iniciais, até 1866, para análise da política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da Prata. Para tanto buscou levantar indicações das propensões e interesses políticos e culturais das camadas sociais encarregadas da gerência do Estado, e seus instrumentos políticos e coercitivos disponíveis para a concretização dos seus eventuais objetivos estratégicos em relação aos Estados platinos.

PALAVRAS-CHAVE: Brasil, século XIX; Relações Internacionais; Região Platina; Questão Oriental; Guerra do Paraguai.

4

Page 6: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ABSTRACT

This work tries to align data from the period immediatly before the beggining of the Paraguayan War and some of its early developments until 1866 in a way to stablish some analisys of the Brazilian Empire´s foreign policies related to the River Plate region. So it sought some indications of the main political and cultural tendencies related to the social layers responsible for the Brazilian State administration, as wel as it´s political and coercitive instruments available to implement its, if any existed, strategies toward the Plate States.

KEYWORDS: Brazil XIXth Century; International Affairs; River Plate Region; “Oriental” Affair; Paraguayan War.

5

Page 7: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

SUMÁRIO

INTRODUÇAO............................................................................................................p. 07

1 - SOCIEDADE E POLÍTICA IMPERIAIS; AS BASES PARA A CONDUÇÃO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS...................................................................................p. 20

1.1 A questão inicial: a província e a nação.....................................................p. 201.2 Elites e autonomia provincial.....................................................................p. 331.3 Elites: autonomia, estrutura de conservação e sobrevivência social..........p. 431.4 Elites e o processo de acomodação intra-estrutural....................................p. 511.5 A consolidação dos princípios modelares do Estado Imperial...................p. 60

2 – ELITES / ESTADO – POLÍTICA DOMÉSTICA, MOLDE DE COERÇÃO E POLÍTICA EXTERNA................................................................................................p. 72

2.1 Instituições e comércio exterior..................................................................p. 72 2.2 Mudança e conservação..............................................................................p. 82 2.3 América do Sul: reações e necessidades....................................................p. 94 2.4 Instituições, regulações e o caminho para a guerra..................................p. 105

3 – A QUESTÃO ORIENTAL...................................................................................p. 129

3.1 O contexto imperial..................................................................................p. 129 3.2 Como a piora da situação interna no Uruguai se conjuga com as estruturas imperiais..................................................................................p. 139 3.3 Prenúncios da confrontação......................................................................p. 150 3.4 Ruptura. Conjunturas políticas imperiais; interesse partidário e negócios de Estado...................................................................................p. 158 3.5 A Missão Saraiva e a manifestação das contradições imperiais...............p.171

4 – GUERRAS...........................................................................................................p. 190

4.1 Descompassos imperiais. Estratégias mancas e nenhuma muleta............p. 190 4.2 Culminâncias. A falência da diplomacia..................................................p. 201 4.3 Duas guerras, duas frentes e nenhum exército.........................................p. 212 4.4 De como se constrói um exército, mas não se supera uma cultura..........p. 226

CONCLUSÃO...........................................................................................................p. 259

BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................p. 270

6

Page 8: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

INTRODUÇÃO

O ano de 1864 manifesta um acirramento das antipatias que uniam os Estados

Imperial e Oriental; acirramento que de fato levará ao rompimento de relações e

declaração de estado de guerra entre eles. Acreditamos que esta situação precisa ser

colocada sob a perspectiva das relações entre os dois países, pelo menos, desde 1850,

acompanhada de um olhar sobre a evolução das suas respectivas realidades internas; é

um esforço de análise que leva em consideração as permanências; os entes dos tempos

médio e longo. Singularmente, o evento marcante pode, como a eclosão da Questão

Oriental, pela sua visibilidade, ocultar as pequenas tramas cotidianas que constituíam, na

verdade, o fulcro das relações entre os dois países, e suas estruturas:

“O historiador político deverá, portanto, fazer cada vez mais apelo ao longo prazo, quer dizer, encarar a temporalidade em que trabalha sob o ângulo da permanência, e não apenas, da mudança. Ser-lhe-á necessário também renunciar a essa continuidade histórica que se desenvolve ao longo de um tempo homogêneo, continuidade de que havia feito um dogma, para reunir, por meio da comparação, os elementos de uma estrutura que o acontecimento oculta, atrás de sua singularidade.” 1

É evidente que em paralelo à análise do problema político propriamente dito a

que nos propomos, há um labirinto cultural de proporções gigantescas. A complexidade

desta confluência é a complexidade das delimitações teóricas. Entendemos nosso

trabalho como uma incursão no campo da história política, embora entendamos, em

função das ligações cerradas entre as diversas manifestações humanas, que não é a mera

inclinação ao político, que pode classificá-lo como trabalho desta ordem2. Portanto,

buscamos o político, entendido como uma emanação do ponto para onde convergem a

1 JULLIARD, J. A Política. In: LE GOFF, J. & NORA. P. História: novas abordagens. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986, pp. 186-188. A preocupação com longo prazo, especificamente entendido como ferramenta para superar os problemas do relacionamento do Mercosul, aparecem em ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. São Paulo: SENAC; Brasília: FUNAG, 2001, pp. 21-22.2 BORGES, V.P. História e política: laços permanentes. Revista Brasileira de História. V. 11. Política e cultura. Nº 23/24. São Paulo, ANPUH, 1991, p. 9.

7

Page 9: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

cultura e a economia, por exemplo. Aceitaríamos dizer então, que nossa concepção de

política exige que existam determinantes sociais.

Portanto, é desta forma que entendemos as relações políticas do Império com a

região platina: a sociedade imperial, considerando o que seriam suas estruturas sociais

de poder, se convertia, a rigor, nas vertentes políticas definidoras de políticas de Estado.

Será em função de seus interesses objetivos nas fronteiras meridionais, que se

desenvolverá um tipo específico de relações com o Prata. Admitimos o risco de assumir

um entendimento em alguma medida divergente da visão que credita um grau muito

elevado de independência aos fenômenos políticos3. A política imperial em relação ao

Prata só pode, portanto, se caracterizar como projeção das suas próprias representações,

ou seja, “[...] as classificações, divisões e delimitações [...] categorias fundamentais de

percepção e de apreciação do real [...] embora aspirem à universalidade [...]”

relacionam-se com a posição social de quem os articula enquanto discurso, conforme

entendido por Chartier4.

A política externa, em contraposição à efervescência das disputas políticas

domésticas, tende a revelar um caráter muito mais afeito às permanências e

continuidades.5 Ora, no caso das relações do Império com o Estado Oriental pareceu-nos

apropriado considerar o papel que as estruturas domésticas imperiais, sua sociedade,

principalmente sua sociedade política concederam às relações com aquela República:

“[...] esse papel foi decisivo e mesmo crucial em diversas instâncias do relacionamento

econômico internacional do Brasil [...] na construção e fortalecimento de um

‘instrumento diplomático’ condizente com as ambições da nação [...]”6. Interessou-nos

apreender quais seriam aquelas “ambições”. A despeito da análise que possamos fazer

agora, desde o século XIX acusações do exterior e, mesmo surgidas das circunstâncias

da política imperial, imputavam ao Estado brasileiro a manutenção da herança colonial

portuguesa, praticante de um anexionismo territorial voraz. Acusações que, entretanto,

3 GOMES, Ângela de Castro. Política: História, Ciência, Cultura etc. Estudos históricos. Rio de Janeiro, nº 17, pp. 59-84, 1996.4 CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p. 17.5 ALMEIDA, op. cit. p.25.6 Idem, p. 50.

8

Page 10: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

mesmo à época causavam certa perplexidade: “[...] quais são, pois, os fatos que revelam

o propósito atribuído ao Governo brasileiro de restaurar a política tradicional colonial,

relativamente aos Estados do Prata?”7.

Independentemente da análise da evolução do processo de formulação e

aplicação de política externa para a região, os problemas concretos do Império no Prata,

como o separatismo gaúcho, ou, as pressões rosistas no início da década de 1850,

implicavam numa determinada postura imperial que está identificada, de comum, pela

historiografia, como “neutralidade”8 ou “imobilismo”9. A partir daquela data, contudo, é

comumente defendido que o Estado imperial brasileiro implementou uma “política

imperialista” 10, ou, “de potência”11, impondo os seus “interesses hegemônicos”12 sobre

os países platinos. Este fenômeno é creditado à existência de uma política específica e

determinada do governo brasileiro; uma estratégia definida para o Prata. Segundo estas

correntes interpretativas, por exemplo, a intervenção contra Oribe e Rosas seria um

exemplo da aplicação desta política: “[...] o Brasil tem o dever de exercer no Rio da

Prata a influência que lhe dá direito sua posição de primeira potência na América do

Sul.”13.

Mas a posição não é nova: as constantes intervenções – cuja natureza precisam

ser circunstanciadas - e a mera desproporção de recursos entre o Império e a República

Oriental já conduziam, naquele tempo, a América Espanhola e a Europa a esta percepção

7 JOURDAN, Emilio Carlos. Historia das Campanhas do Uruguay, Matto Grosso e Paraguay, Brazil 1864-1870, Vol I – 1864-1865, Uruguay. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893 (a), p. 9.8 SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pp 45-46.9 CERVO, A. e BUENO, C. História da política exterior do Brasil. 2ª ed. Brasília: UNB, 2002, pp. 51-ss.10 BERNARDES, Denis. Um Império entre Repúblicas: Brasil século XIX. 5ª ed. São Paulo: Global, 1997. p.1111 CERVO & BUENO, op. cit., p.109; GRAHAM, op. cit., p. 814; SALLES, 1990, pp. 47, 49.12 SALLES, R. Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Int. Lilia Moritz Schwarcz. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2003.13 MAUÁ, Visconde de, apud MATTOS, Ilmar R. de. O tempo Saquarema; a formação do Estado Imperial. 4.a ed. Rio de Janeiro: Access, 1999, p.162. O emprego da citação de Mauá desconsidera que a concepção de “influência” pensada por Mauá, expressava o liberalismo dependente da paz, exigida para a o benefício do “progresso” financeiro liberal, justamente o “progresso” que não encontra eco no ambiente social, político e burocrático do Império e que, a rigor, conduzem Mauá à falência. Portanto, a “influência” de Mauá, não traduz os motivos que pudesse ter o Estado imperial.

9

Page 11: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

sobre a agressividade brasileira.14 Segundo estas interpretações, este período de

passividade, deveria ser substituído por uma manifestação do “expansionismo

imperialista brasileiro"15 e, para tanto só aguardava o momento propício para vir à luz.

Esta posição, contudo, carece, a nosso ver, de um sério trabalho de resgate de fontes.

Baseamos nossa conclusão, por exemplo, no parecer do Conselho de Estado, das Seções

de Negócios Estrangeiros e da Fazenda, de 2 de abril de 1857. Este documento

aconselhava a renegociação do Tratado de Navegação e Comércio de 1851, iniciativa

que se dava por solicitação do governo Oriental: “[...] o comércio do Brasil com a

República [...] é vantajoso ao Império e que convém empregar os meios convenientes

não só para o não deixar perecer, como para lhe dar incremento.”.16

Ainda segundo aquele documento, era mister aceitar as propostas uruguaias

naquele momento (1857) não só em função da garantia dos fluxos comerciais, mas

também pela ampliação das vantagens fiscais que oferecia o governo Oriental aos

produtos agrícolas brasileiros. Ainda mais incisivo para as considerações da

historiografia que defende a disposição brasileira em basear suas estratégias na

afirmação sobre os vizinhos, o parecer considerava que a aceitação dos termos

oferecidos pelo Uruguai, tendiam a superar os problemas que quase arrastaram o

Império a uma guerra sangrenta e dispendiosa contra Oribe e Rosas. É a manifestação de

que a guerra era uma situação que poderia, e deveria ser evitada por um novo tratado,

afinal, a guerra é a antítese do comércio, do progresso, da civilização, da qual se

entendiam representantes.

Evidentemente, no sentido de defesa das teses que conferem um caráter

agressivo às formulações estratégicas do Império, seria producente realizar investigações

no sentido de determinar o papel da coerção dentro do aparato do Estado. Um estudo

que defenda a existência da guerra com política de Estado precisa incorporar estudos

14 OLIVEIRA LIMA. O Império brasileiro 1821-1889. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1989, p.160.15 LYNCH, J. As repúblicas do Prata, da independência à Guerra do Paraguai. BETHELL, Leslie (org). História da América Latina: da independência a 1870. Vol. III. Rad. Maria Clara Cescato. São Paulo: EDUSP: IOE; Brasília: FUNDAG, 2001, p. 687.16BRASIL. Parecer... In: VASCONCELLOS, Henrique Pinheiro de. Uruguay-Brasil; Commercio e Navegação 1851-1927. 2 vol. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1929, vol. I, p.153.

10

Page 12: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

sobre a existência dos meios objetivos de gerenciar a violência. Sendo assim, nosso

objetivo é dirigir indagações sobre: 1º Existiam, assim como a busca pela sua

implantação, “interesses hegemônicos” no Prata, por parte das elites políticas imperiais?

2º O recurso à violência e à guerra seriam a opção das elites políticas imperiais para

fazer valer, quaisquer que fossem seus interesses no Uruguai? 3º Como o Império

brasileiro se estrutura do ponto de vista dos seus meios de coerção: interessa-nos

investigar se há nesta estrutura indícios da existência de um aparato militar capaz de

suportar políticas expansionistas ou intervencionistas. Acreditamos que o desencadear

da Questão Oriental, e a maneira pela qual é conduzida pelos agentes imperiais

destacados para a sua solução são fontes para respostas. A declaração de guerra de

Solano López, que se segue às medidas tomadas pelo Império no Uruguai, serve para

aumentar a escala das nossas análises.

O entendimento prevalecente a respeito da política externa Imperial em relação à

região platina, a que vimos nos referindo, deriva e representa permanências das

conclusões desenvolvidas, pelas correntes historiográficas ditas “revisionistas”. No

Brasil, a partir da década de 1970, seus principais pressupostos foram difundidos pelo

historiador argentino León Pomer17, seguido de perto pelo jornalista brasileiro, Júlio José

Chiavenato18. A obra de Pomer, no que diz respeito ao objeto de nossa pesquisa,

equivoca-se por atribuir ao complexo da economia imperial, interesses burgueses no pior

sentido do economicismo, confundindo Mauá e Estado19, por exemplo. O autor argentino

identifica na descapitalizada sociedade escravista uma “...burguesia comercial anglo-

brasileira [ávida pela] unificação do mercado e o livre acesso a todas as partes.”20 Quer

significar que interesses comerciais, precisavam do acesso ao interior brasileiro,

realizável apenas pelos rios, no caso de Goiás e Mato-Grosso. Mais, estes interesses,

aliados às pressões do capitalismo britânico deveriam utilizar o Estado brasileiro como

17 POMER, Leon. A Guerra do Paraguai: a grande tragédia rioplatense. 2a ed. Trad. Yara Peres. São Paulo: Global, 1981.18CHIAVENATO, Júlio J. Genocídio americano, a Guerra do Paraguai. 1a ed. São Paulo: Moderna, 1998.19 Para uma análise deste equívoco veja-se CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 549; veja-se também MAUÁ, Irineu E. de S. Visconde de. Correspondência política de Mauá no Rio da Prata (1850-1885). Prefácio e notas de Lídia Besouchet. 2ª ed. São Paulo. Cia. Ed. Nacional; Brasília: INL, 1977, pp. 19-20.20 POMER, op. cit., pp. 73-74.

11

Page 13: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

aríete, de maneira a subjugar o Paraguai, que obstava a navegação fluvial com o Mato-

Grosso, completando assim a integração do “mercado”.

Ampliamos a análise do trabalho de Pomer para salientar a inadequação dos

pressupostos que apresenta, principalmente nos possíveis interesses comerciais com o

Mato-Grosso, e a ligação que este autor faz destes interesses, com a política externa

brasileira na região platina. A rigor, só a partir de 1856 há uma ligação fluvial efetiva,

ainda que irregular daquela província com o Prata. De qualquer maneira, uma província

com a economia baseada no extrativismo, com uma produção primária estruturada para

atender o escasso mercado interno representado por 53 mil almas de população não

indígena, de muito pouco aproveitou tal abertura. Os cofres públicos continuaram

deficitários, e a abertura da navegação serviu mesmo para escancarar a precariedade

econômica da região, completamente dependente do governo central21.

Existem mais indícios a depor contra a alegada importância comercial da ligação

fluvial com o Mato-Grosso: só em 1858 se criará a Companhia de Navegação do Alto

Paraguai, e só em 1859 surgirá a primeira linha regular, ligando Cuiabá e Corumbá a

Montevidéu a cada 45 dias. Os fluxos comerciais devem ser baixos o suficiente – como

na verdade sugere a freqüência com que se fazia a viajem dos vapores - para que

somente em 1861 seja instalada a alfândega do porto de Corumbá. Que interessasse ao

governo imperial o desenvolvimento da região parece plausível, mas que ele esteja

disposto a ir à guerra para manter a “liberdade” de navegação nos parece uma outra

proposição. Na verdade, durante a década de 1850 não faltaram oportunidades para o

desencadear de uma guerra entre os dois países. Portanto, acreditamos que a questão do

comércio e comunicações fluviais não se constitui como de interesse “vital” para o

Império, talvez, salvo no discurso das autoridades imperiais. Fosse este o caso, não há

porque não supor que não teria merecido uma resposta do Estado, como a que se

organizou contra Rosas.

21 PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade em Mato Grosso no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001, pp. 38-41.

12

Page 14: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Já Chiavenato, incorporou com irreflexão22 as hipóteses do historiador argentino,

no esforço por denunciar o que qualificava de “história oficial” brasileira. Para ele, os

problemas que abordamos a partir do nosso objeto de pesquisa, a invasão do Uruguai,

em 1864, resume-se a derrubada do governo Oriental pelo Império, unido a Argentina,

numa “...cumplicidade internacional liderada pela Inglaterra ...”23 Para ele, aquela

intervenção era a maneira deliberada de começar uma guerra, planejada para destruir o

Paraguai. Para Chiavenato, a Questão Oriental resume-se à intenção de esmagar o

Paraguai, permitindo-se transformar o Império em mero fantoche britânico, e os seus

vizinhos do Prata em agentes passivos da malícia escravista do imperador24.

Além disso, a respeito dos pressupostos sobre os quais se julgam as relações do

Império com os demais Estados platinos, consideramos que, em geral, se fazem a partir

de um exercício de teleologia. Devemos dizer: analisar as intenções e relações do

Império com os vizinhos platinos, partindo do princípio de que o Brasil venceu a

Questão Oriental – neste caso a resolução não se deu pela via militar - e a guerra contra

o governo do Paraguai, é, de fato, um exercício teleológico. Ora, o Império impôs-se

nestas ocasiões; sim, mas nada indicava que este seria o resultado seguro, que havia

garantia de sucesso, em 1864. Muito pelo contrário, principalmente contra o Paraguai.

Não fosse uma percepção muito equivocada dos seus próprios objetivos e possibilidades,

o Paraguai, no momento de desencadear a guerra, poderia ter feito o Império passar por

serias dificuldades; sobre as quais não toca à história comentar, senão reconhecer a

possibilidade de suas manifestações.

Ora, a vitória fora obtida pela posse de um exército que não existia em 1864; as

forças que o Império levou onze meses para agrupar, desde que fora criada a Missão

Saraiva, não fora suficiente nem mesmo para subjugar o partido blanco, sitiado em

Montevidéu. Ora, para se avaliar as deficiências militares do Império, deve-se lembrar

que a pior derrota militar da Tríplice Aliança ocorreu em 22 de setembro de 1866, e

22DORATIOTO, F. Fernando M. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Cia das Letras, 2002, pp. 19-20; SALLES, 1990, p.16. 23 CHIAVENATO, op. cit. p.62.24 Idem, idem.

13

Page 15: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

obrigou o governo imperial a rever toda a estrutura de comando criada no início da

campanha. O quanto custou – quer em termos materiais como em termos de tempo - o

processo de formação do exército para as operações contra o Paraguai, pode ser

aquilatado pelos seus efeitos na duração da guerra. Transcorreu um ano e dois meses

para, a partir de Montevidéu, após a solução da Questão Oriental, de acampamento em

acampamento, avançar pela margem esquerda do rio Paraná, reunir, treinar e armar o

contingente que vai invadir o Paraguai em abril de 1866. É um período em que não há

combates importantes, os paraguaios retraem da província argentina de Corrientes, e os

aliados seguem à distância.

Seja como for, a versão de Chiavenato sobre o desenrolar das tramas sulinas,

acabou por alcançar o status de única via para as interpretações sobre as relações

exteriores do Brasil com os Estados platinos, e a Guerra do Paraguai. O fenômeno se

aprofundou na medida em que suas conclusões se projetaram sobre a produção dos

livros didáticos de história25. Problemas conjunturais como a pouca tradição dos centros

de pós-graduação em História, e o crescente questionamento à legitimidade do regime

implantado em 1964, impediram o surgimento de pesquisas empíricas específicas sobre

o assunto. Seguiu-se a aceitação e generalização das teses “revisionistas”. Identificamos

no fenômeno, que se estende do grande público até setores da academia26, uma sugestão

do tempo social de produção27.

Deve-se ressaltar também, considerando o período final do regime militar

brasileiro, o esforço das editoras de livros didáticos em incompatibilizar-se com as

orientações do sistema de ensino28 daquele regime. O mercado editorial exigia posturas

25 Cf: NADAI, E. & NEVES, J. História do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1995 pp. 228-230; DORIGO, G. & VICENTINO, C. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1999 pp. 247-253; COTRIM, G. História para o Ensino Médio, Brasil e geral .São Paulo: Saraiva, 2002 pp. 334-335; PILETTI, N. & PILETTI, C. História e vida- integrada 7ª série. São Paulo: Ática; 2002 pp. 150-15426 SCHWARCZ, L. M. Uma batalha de imagens; a Guerra do Paraguai. In: SALLES, 2003 p.9; BARROS, A. T. de M. (ed).Holocausto sul-americano;1864-1870 a destruição do Paraguai. Niterói: UFF-IACS, 1999.27 Cf. o “lugar social de produção”, CERTEAU, M. A escrita da história. Trad. Maria de L. Menezes. Rev. Arno Vogel. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 66. 28 MUNAKATA, K. Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In: FREITAS, M. C. de (org). Historiografia brasileira em perspectiva. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2003 p. 274- ss.

14

Page 16: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

mais “democráticas” e “críticas”. Isto aprofundou o processo de assimilação das

conclusões “revisionistas”, transformadas em dogma para a percepção das relações inter-

Estados no Prata. Acreditamos ter sido este o mecanismo principal pelo qual se

cerravam os canais da especulação em favor da admissão naturalizada da malevolência

capitalista sobre a região, e que culminou com a Guerra do Paraguai.

Nota-se então, a partir da década de 1980, uma curiosa inversão: o

“revisionismo”, de oficioso tornou-se a “história oficial”, cristalizando o conhecimento

que se vulgarizou a respeito daquelas questões. Esta interpretação, por exemplo, se

restringia a inferir culpas pela Guerra do Paraguai ao capital inglês e ao

intervencionismo servil de seus satélites do futuro Mercosul; acabou-se por deixar de

lado o estudo das especificidades das complexas relações que resultaram no conflito

platino. Instituiu-se com fervor ideológico a crítica à crítica. Enveredar a análise da

Guerra do Paraguai para além da superfície econômica - cristalizada na lógica da luta de

morte que o capital inglês travava contra o “insólito Paraguai”29 - para Chiavenato e

seguidores, era condenar o esforço a “um exercício de cata às pulgas dos detalhes

históricos”30.

Seja como for, uma renovada produção acadêmica31, vem permitindo que se faça

uma revisita ao “revisionismo”, e para além das novas teses e possibilidades de análise,

vai resgatando à luz – trazendo à discussão - uma produção historiográfica e fontes

publicadas em datas mais recuadas. Esta produção que, de comum seria identificada

como “positivista”, do final do século XIX e do início do XX, já denunciava e admitia

que o Brasil sempre esteve distanciado das repúblicas hispano-americanas seja pela

herança colonial escorada nos relacionamentos metropolitanos, seja pelas “...prevenções

filiadas na sua natureza imperial que parecia prenunciar absorções...”32. Contudo, de

geral suas análises são sustentadas por um vasto esforço de levantamento e

29 POMER, op cit., p.25.30 Introdução. In: CHIAVENATO, op. cit. p. 9.31 SALLES, 1990 & 2003, op. cit; DORATIOTO, F. Fernando M. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Cia das Letras, 2002; REBER, Vera Blinn. The Demographics of Paraguay: A Reinterpretation of The Great War, 1864-1870. Hispanic American Historical Review. Durham, 68:2, 289-319, 1988..32 OLIVEIRA LIMA, 1989, p.153.

15

Page 17: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

transcrição/citação de fontes, documentais e testemunhais. Esta a lógica que guia nossa

opção por privilegiar em nosso trabalho as obras que, a despeito da pecha de “história

tradicional”, permitem que se reintroduza a discussão através não do emprego de

análises de terceira mão, mas dos testemunhos e documentos. Ângela de Castro Gomes

identifica nesta produção os “historiadores clássicos”; a autora admite que eram bastante

“sofisticados”, por diversificarem o emprego de fontes e metodologias, além de

executarem a contextualização de suas análises33.

Estas facilidades permitem, por um lado, integrar arquivos muito separados

geograficamente, assim como a disponibilização de material já inexistente, como no

caso dos arquivos que foram devolvidos ao Paraguai. As conveniências metodológicas

da consulta destas obras não podem passar despercebidas ao pesquisador, e se estendem

à questões teóricas, dada a ausência dos maniqueísmos mais recentes, como a

contraposição capitalismo/socialismo. Claro, estas ausências favorecem a focalização

das especificidades daquele recorte histórico, aqueles textos permitem perceber os

preconceitos próprios daquela época. Fica por evidente que não lhes atribuímos,

simploriamente, o caráter de expressões da verdade, mas que reconhecemos a

necessidade de um esforço de análise sobre eles, como chave para aprofundar as

questões sobre o recorte temporal do nosso problema.

Acreditamos, contudo, que as respostas para as questões sobre a política externa

imperial para com o Prata presentes na historiografia, desde o século XIX, estão no

estudo das estruturas que regiam o convívio entre os governos do Rio de Janeiro e as

capitais da bacia do rio da Prata. Este convívio deveria estar firmado sobre os conflitos

entre as bases de interesses que moldavam os interesses domésticos de grupos muito

específicos, próximos ou mesmo ocupantes dos círculos de poder do Império.

Confinamos nosso entendimento na convicção da não existência nos domínios do

político, do que se chamaria modernamente de “participação popular” e que, portanto, as

definições das políticas externas estariam referidas àqueles interesses. Neste sentido, por

sua vez, nos países platinos, principalmente no Uruguai, a falta de consistência

33 GOMES, op. cit., p. 61.

16

Page 18: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

institucional conduzia à falta de consistência na definição de políticas em relação ao

Brasil. Acontecia, na verdade, a formulação, e multiplicação de discursos destinados a

cooptar apoios, tão necessários quantas fossem as mudanças no controle do governo, o

que inevitavelmente atingia as questões de relacionamento com o Brasil. Um excesso de

formulações ideológicas em detrimento da fixação de políticas concretas.

Neste sentido, nos dois primeiros capítulos pretendemos concentrar nossas

investigações sobre as linhas gerais da organização social e política do Estado brasileiro,

considerando a política externa como manifestação, ou, expressão de estruturas

endógenas ao Estado. Procuraremos investigar de que maneira estas estruturas

domésticas poderiam se revelar nas questões de política externa; se, e como poderiam

determinar as estratégias da atuação brasileira no Prata. Desta forma, nossas reflexões se

projetam sobre uma das inferências mais comuns que se creditam ao Império, e que se

têm cristalizado na historiografia: o do “imperialismo” do Brasil. É uma exigência destas

questões, um esforço de análise sobre o Estado brasileiro, procurando perceber as

inclinações das camadas sociais que se habilitavam a ocupar os postos políticos e

administrativos do Império. Mais que isto na verdade: por não considerarmos as elites

imperiais como um bloco monolítico, não entenderemos os diferentes discursos,

presentes nos diversos setores destas elites, como necessariamente alinhados com os

discursos que foram transformados em ações do Estado.

Neste sentido, enquanto consideramos o Estado como

“[...] a força unificadora de um projeto nacional [...] foi a burocracia pública enquanto tal [...] a própria corporação de homens públicos extraídos de setores das elites que alimentou e deu substância à atuação do Estado no plano do desenvolvimento econômico e no da afirmação externa da nação.”34

Entendemos que o discurso das elites burocráticas nacionais35 diz respeito, e vai

atender, às necessidades políticas presentes no mister de conduzir as questões de Estado, 34 ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. São Paulo: SENAC; Brasília: FUNAG, 2001.35 Distintas do que seriam as elites políticas provinciais, cf.: DOHLNIKOFF, Miriam. O pacto imperial; origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.

17

Page 19: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

concomitantemente à própria preservação dos partidos no poder, especialmente o partido

liberal, vítima da hierarquia determinada pelos saquaremas. Necessidades políticas

especificamente, e não interesses de classe ou de poderosos locais. Constitui-se em um

padrão comum tanto a liberais como a conservadores. É este padrão, aplicado às

questões de política externa, que nos interessa mais diretamente.

Nos dois últimos capítulos, é nossa intenção demonstrar que ainda há espaço

para a investigação sobre as circunstâncias específicas que levaram o Império a intervir

no território uruguaio naquele dezembro de 1864. Assim também pretendemos

determinar a inexistência de quaisquer estruturas imperiais capazes de gerenciar a

violência requerida por políticas que pretendessem uma imposição da vontade imperial

pela força. É importante, a nosso ver, averiguar a forma pela qual se deu a montagem da

missão diplomática chefiada pelo conselheiro Saraiva em suas duas dimensões, a

diplomática e a militar. Como foi tocada pelas estruturas políticas, econômicas, e sociais

do Estado imperial; pelas conjunturas da política doméstica que cercaram as decisões

dos gabinetes liberais. Da intervenção paraguaia na crise entre o Império e a República

Oriental resultou a guerra que vai se arrastar longamente até a morte de Solano Lopes,

em março de 1870. Aqui também, em seus estágios iniciais, se vão projetar os

complexos da sociedade imperial sobre a organização das forças necessárias a enfrentar

a agressão guarani. Interessou-nos investigar o papel desempenhado pelos agentes

imperiais, oriundos não de uma estrutura coercitiva coerente com os fins do Estado, mas

meramente peças pinçadas das conveniências políticas, que no mais das vezes servirão

de obstáculo à consecução dos objetivos do Estado imperial.

Marc Bloch36 sugere que a História mal entendida pode arrastar no seu descrédito

a História mais bem compreendida; para tanto é necessário perceber que não se pode

mudar o fato passado, mas seu conhecimento é uma construção constante. As lendas e

crenças populares, a exploração contínua de paixões que alimentam as percepções

ingênuas sobre o Estado imperial e a Guerra do Paraguai, principalmente as inferições

de imperialismo e genocídio, atentado deliberado a um povo, precisam ser revisitados.

36 BLOCH, M. Introdução à História. 4ª ed. s.l.: Europa-América, s.d. p.12

18

Page 20: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Do ponto de vista da Universidade, o esquecimento do tema contribui para “resucitar

rencores y malentendidos que ninguna razón tienen de subsistir en nuestros días.”37 Em

tempos de Mercosul, quando as arestas históricas criam embaraços e óbices à integração

de povos continuamente explorados, o desconhecimento e a incompreensão mútuos

tendem a estreitar a estrada da emancipação da América meridional.

1 – SOCIEDADE E POLÍTICA IMPERIAIS;

AS BASES PARA A FORMULAÇÃO DOS NEGÓCIOS ESTRANGEIROS.

37 BRAY, Arturo. Solano Lopez, soldado de la gloria y del infortunio. 3ª ed. s.l.: Carlos Schaumann, 1984 p.16.

19

Page 21: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

1.1 – A questão inicial: a província e a nação.

Neste espaço procuraremos investigar a tramas eminentemente internas à sociedade

imperial, conectadas com as principais questões com a região platina. Nosso objetivo foi

o de enquadrar suas elites a partir dos processos sociais responsáveis, se não pela

formação específica das elites políticas imperiais, pela sustentação e reprodução das

estruturas sociais herdadas dos processos coloniais. A busca pelo controle daqueles

mecanismos de reprodução é o que permitiu a definição dos atores responsáveis pela

direção política do novo Estado, bem como o surgimento de suas demandas em relação à

região do rio da Prata. Um foco estritamente intestino buscando o detalhamento sobre a

problemática do poder que acreditamos ser fundamental para os nossos objetivos.

Acreditamos que aquelas estruturas podem esclarecer para onde caminhou o

Estado imperial brasileiro - sempre entendido enquanto espaço conquistado e

aproveitado para a reiteração dos mecanismos de sobrevivência social das elites das

quais se constituía - no que diz respeito às relações internacionais. Mercê dos seus

principais interesses econômicos e políticos, seus valores culturais e simbólicos

predominantes, o Império focava especialmente um aprofundamento das relações com as

nações tidas como modelos de civilização do Hemisfério Norte. É a partir dessas

premissas que se constitui o papel dos países platinos, principalmente a República

Oriental do Uruguai38, no contexto das relações exteriores do Estado imperial.

Ao final do período colonial, a dispersão geográfica entre os principais pólos de

ocupação portuguesa do território americano, revelou a existência de centros

populacionais e de comércio pouco integrados entre si, “[...] pontos indicando um

traçado a realizar”39 ou, “[...] partes da América [portuguesa]”40 que apresentaram

38 O adjetivo “Oriental” provém da condição geográfica do país, situado à margem oriental do rio Uruguai; a delimitação já aparece como efeito do tratado de Madri, de 1750: “[...] território e povos da margem oriental do rio Uruguai [...]. PORTUGAL. Tratado pelo qual se regulam as instruções dos comissários que devem passar ao sul da América, assinado em Madri, a 17 de janeiro deste presente ano [1751], e ratificado pelo rei, nosso senhor, em 8 de maio; e pelo rei Católico, em 18 do dito mês do mesmo ano. In: GOLIN, Tau. [Luiz Carlos Golin] A Guerra Guaranítica: como os exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul (1750-1761). Passo Fundo: EDIPUF, Porto Alegre: Editora da Universidade - UFRGS, 1998, pp. 145, 151.39 ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História colonial. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982, p. 233.40 JANCSÓ, István (org) Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003, p. 15. Grifo nosso.

20

Page 22: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

trajetórias de formação distintas. As elites de cada uma destas antigas capitanias, ainda

que reunidas em torno de alguns centros regionais que, eventualmente formavam blocos

regionais de comércio, ansiavam pela autonomia necessária à gestão de seus interesses.

A geografia sempre se constituíra em marco importante que conspirava contra a unidade,

influenciando os diferentes processos formativos que entravavam as possibilidades de

uma homogeneização de interesses no território português-americano. Seus efeitos se

amplificavam principalmente pelas limitações à mobilidade impostas pelos meios de

transporte, principalmente os navios à vela.

Estas limitações que afligiam os navegadores sem meios de propulsão autônoma

tiveram um papel determinante nos movimentos portugueses, pois “[...] os ventos que

sopravam a favor na ida eram contrários na volta [...]”41

“As embarcações que, a partir da latitude de Natal, no verão (ou de Salvador, no inverno), descessem a costa brasileira só retornariam a Portugal passando próximo à África e contornando o anticiclone do Atlântico Sul; e as naus que aportassem acima de Natal, já sob a influência da fortíssima corrente das Guianas, voltariam subindo pelo Caribe até se livrarem da imponência dos alísios de nordeste [...]”42

Como se vê, a geografia sugere a própria separação administrativa

implementada pelos portugueses nos seus territórios americanos entre o Estado do

Brasil, ao Sul, e o do Maranhão e do Grão Pará, ao Norte. Esta separação imposta pelos

elementos, e que tornava, para os territórios do Norte uma viagem para Portugal mais

fácil e rápida do que chegar ao Rio de Janeiro, marcou fortemente o estilo de vida e

postura política das populações daquelas regiões. Mesmo na ocasião da independência,

por estes mesmos motivos algumas províncias nortistas preferiram não aderir à

independência promovida a partir do Rio de Janeiro. Apesar disto, se entre todo o

território luso-americano a geografia e os elementos conspiravam contra a comunalidade

existiram, também, pontos de convergência, como o interesse das elites regionais na

manutenção43 da agricultura escravista e a presença, ao fim do período colonial, do

41 KLINK, A. Cem dias entre céu e mar. 32ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 70.42 Idem, p. 73.43 Para uma discussão sobre as questões em torno da unificação do território luso-americano ver CARVALHO, J.M. de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política

21

Page 23: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

próprio rei português no Rio de Janeiro. Estas tensões entre demandas por autonomia,

interesses compartilhados e controle centralizado entre as partes componentes da

América luso-americana sobreviverá por grande parte do século XIX, mesmo após a

Independência.44

É evidente que a “dispersão” não pode ser confundida com hermetismo, como

revelam as redes de comércio que se estabeleceram entre o Rio de Janeiro e o restante da

América portuguesa, ainda que, também, retivessem algum caráter de limitação

geográfica. Os dados que selecionamos demonstram a existência e vitalidade daquele

comércio bem como, também, aquelas limitações geográficas que vimos abordando.

Entre 1799 e 1822, enquanto as entradas de charque gaúcho no porto do Rio de Janeiro

cresceram 249 %, as importações de farinha de mandioca, do sul da Bahia até Santa

Catarina, no mesmo período subiram 307%.45. Neste período, o porto do Rio de Janeiro

já se consolidara como o mais importante do Império português.

Não é, portanto, de surpreender, que a vitalidade comercial do porto fluminense,

sua posição geográfica em relação à região mineradora, o tenham transformado em

centro de um complexo de relações inclusive com a região platina. A crescida

importância econômica em tempos de reformas do Estado Português terminou por

transformá-lo em sede do Vice-Reino luso-americano, a partir de 1763. Mais tarde, todo

o peso econômico e administrativo lá concentrado funcionou como elemento natural de

atração para o estabelecimento da nova sede do absolutismo mercantilista Bragança, em

seu movimento para pôr-se a salvo das tropas de Napoleão. As soluções para resolver os

desafios de abastecimento da cidade, cuja população crescera muito após a chegada da

Corte portuguesa, confirmam, por sua vez, a existência de articulações comerciais inter-

regionais. Desde o Prata, passando pelos litorais gaúcho, catarinense e paulista,

imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, pp. 13-22.44 DOHLNIKOFF, Miriam. O pacto imperial; origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005, p.11.45 FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, J.L. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia; Rio de Janeiro, c.1790-c. 1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, pp. 94-95.

22

Page 24: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

chegavam à Corte mantimentos diversos, enquanto a partir de Minas Gerais vinham os

animais a pé, para abate no Rio de Janeiro.46

A chegada do Regente português, além de representar um aumento importante

sobre os fatores de coesão entre as distintas capitanias e o Rio de Janeiro, implicou no

aprofundamento dos problemas de política externa que Portugal experimentava na

Europa. Dentre estes problemas destaca-se a rivalidade peninsular com a Espanha,

especialmente a recente tomada da cidade portuguesa de Olivença. Transportavam-se e

aprofundavam-se, no território americano, os discursos e práticas européias em relação à

política externa, aí ganhando relevo os problemas referentes à delimitação das fronteiras

meridionais portuguesas. As maneiras européias transplantadas aparecem registradas no

diálogo entre Dom João e o encarregado dos negócios franceses, ao tempo da

intervenção portuguesa na Banda Oriental em 1816: “Os franceses falaram e

escrevinharam muito em tempo sobre fronteiras ou limites naturais: tratava-se sempre,

de um lado, do Reno e do outro, dos Alpes; ora, o que é o Reno comparado ao rio da

Prata?” A perspicácia do príncipe português exigiu da resposta do representante de

França o consentimento de que a “beleza e a amplidão desse grande rio deviam

dispensar todo e qualquer comentário [...] sendo assim muito lógico concluir que limites

alguns existiriam mais naturais que o citado rio da Prata [...].47 É preciso reiterar que

naquele período a eventualidade da expansão territorial portuguesa sobre as possessões

espanholas na América sempre se inscreveu no complexo das relações internacionais de

Portugal com a Europa, não restritas somente à Espanha. Thomaz Antônio Vila Nova

Portugal,48 por exemplo, defendera o envio para a América do príncipe da Beira,

acompanhado de força militar bastante para ameaçar os territórios platinos, no momento

em que o exército espanhol se alinhava com o invasor francês para a invasão a Portugal.

Os movimentos de Napoleão sobre o trono espanhol deflagraram o colapso do

seu domínio colonial sobre os territórios americanos. Diante da vacuidade institucional 46 MATTOS, op. cit., pp. 48-49.47 O diálogo está transcrito em OLIVEIRA LIMA. D. João VI no Brasil. 3ª ed. Prefácio de Wilson Martins. Rio de Janeiro: Top Books, 1996, p. 73. Toda a nossa abordagem sobre a intervenção portuguesa sobre a Banda Oriental está escorada na obra de Oliveira Lima, salvo quando indicado.48 Que, no momento da anexação definitiva da Cisplatina seria o ministro de Estrangeiros e da Guerra de D. João VI.

23

Page 25: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

oferecida pelos movimentos de independência, a coroa Portuguesa já transplantada

oscilou entre a pretensão de unir aqueles territórios aos seus, por força dos direitos

dinásticos de dona Carlota Joaquina, até mesmo à cessão daqueles direitos para obter o

consentimento inglês para a anexação definitiva da Banda Oriental a Portugal. Não era

estranha ao governo português, contudo, a percepção de que investir contra aqueles

territórios representava um problema que não se resolvia com a mera ocupação. A ação

militar não seria suficiente para vencer as defesas colocadas pela rivalidade xenofóbica

entre portugueses e espanhóis; “[...] traria em si um germe pernicioso para a nação

conquistadora, depositado pela lealdade, ainda apreciável, dessas possessões para com

sua mãe pátria, sobretudo tratando-se de uma absorção portuguesa.”.49 De fato, contudo,

uma primeira intervenção militar sobre aquele território, à qual se opuseram espanhóis,

orientais, portenhos e a Inglaterra, foi frustrada em 1811, resultando no retraimento das

forças portuguesas. Contudo, entre esta intervenção e a que se verificou em 1816,

transcorreu o Congresso de Viena, destinado a rearranjar a Europa após a derrota de

Napoleão. Portugal sofreu uma longa lista de desatenções por parte das principais

monarquias do Velho Mundo durante aqueles trabalhos, em função das quais o governo

lusitano organizou uma reação que, se tinha um ponto de aplicação americano,

respondia, como se vê, a estímulos eminentemente europeus. Assim, se de um ponto de

vista eminentemente americano não existia motivo ou justificativa imediata para uma

nova intervenção sobre a Banda Oriental, os menoscabos recebidos por Portugal do

Congresso e Viena deram o impulso para transformar questões circunstanciais em

motivos suficientes para uma nova invasão.

De geral, mesmo analistas argutos têm declinado de considerar este caráter

relacional entre as iniciativas portuguesas na América com as suas convivências

européias, comprometendo o entendimento que se tem sobre aqueles acontecimentos.

No mais das vezes são alinhadas razões imediatas ou aparentes para a intervenção, ou,

comprometendo a análise atribuindo-lhe circunstâncias específicas do seu próprio tempo

sobre os fatos de 1816. Veja-se a duas próximas citações: motivado pelo “[...] projeto

secular de conquistar as regiões do Sul [o príncipe regente] resolve invadir pela segunda

49 OLIVEIRA LIMA, 1996, p.197.

24

Page 26: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

vez o Estado Oriental [...]”,50 alegando proteger a fronteira contra as forças artiguenhas

que “[...] saqueavam as estâncias próximas à linha divisória, roubando gado,

assassinando os habitantes inermes e protegendo a fuga de escravos e desertores [...]”51.

Seja como for, mesmo internamente ao Estado português a ação não gozou de

unanimidade. Os ministros de D. João, o conde Barca e o marquês de Aguiar divergiam

da política em relação à Banda Oriental, naquele momento. Segundo Maler, o ministro

francês junto à corte portuguesa, o marquês de Aguiar, amigo do rei

“[...] levantara os maiores obstáculos aos desígnios imperialistas de seu colega Araújo [...] morrendo inconsolável de os não ter podido frustrar.”“Fui testemunha de que os seus últimos momentos foram perturbados pelos olhares que ele lançava sobre esta guerra já iniciada e de que ele não lograva perceber nem o fito nem os motivos verdadeiros.”52

A oposição interna, contudo, nem a oposição na Europa, mesmo a do aliado

inglês, não obstaram o movimento português. Os portugueses foram favorecidos com a

disponibilidade de tropas experientes vindas da Europa, uma vez que Napoleão fora

derrotado, e pelos desarranjos e instabilidade internos do governo de Pueyrredon em

Buenos Aires. Esta circunstância em especial, ao mesmo tempo em que impedia uma

reação portenha reforçava também o discurso da necessidade da defesa das fronteiras

meridionais

“Dom João e Barca, unidos em espírito, resolveram procurar no Novo Mundo as compensações que no Velho lhes eram devidas e negadas, mesmo a justa restituição de Olivença, motivo, aliás, excelente para um desforço ultramarino envolvendo a ocupação definitiva da Banda Oriental.”53

50 FRAGOSO, Augusto Tasso. A batalha do Passo do Rosário. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bibliex, 1951, pp. 129-130.51 PARANHOS, José Maria da Silva. In: SCHNEIDER, Louis. A Guerra da Triplice Alliança/Imperio do Brazil,Republica Argentina e Republica Oriental do Uruguay contra o governo da Republica do Paraguay(1864-1870). Vol I. Com cartas e planos por L.Schneider. Rio de Janeiro: H.Garnier,1902. Traduzido do Allemão por Manoel Thomaz Alves Nogueira; Annotado por J.M. da Silva Paranhos. Nota 3, p. 5. As justificativas de Paranhos estão bem de acordo com os problemas que ele próprio enfrentou enquanto diplomata do Império, treinado pelo convívio com seu amigo, o Visconde do Uruguai, e dos recentes acontecimentos que resultaram na missão Saraiva, em 1864.52 Apud. OLIVEIRA LIMA, 1996, pp. 184-185.53 Idem, pp. 374-375.

25

Page 27: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Seja como for, em 31 de julho de 1821, uma vez derrotado Artigas, e sujeitas as

forças que o apoiavam, uma comissão de notáveis do território Oriental deliberou pela

conveniência de se unirem ao Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves54. A Banda

Oriental passa a incorporar a monarquia portuguesa na condição de Estado Cisplatino,

como uma maneira de neutralizar as cobiças das burguesias de Buenos Aires sobre o

porto de Montevidéu.

Não obstante, a anexação territorial não serviu para atenuar a inconformidade dos

portugueses da península com o abandono ao qual se sentiam relegados pelo seu rei. Na

esteira da perda da Corte para a colônia americana, este sentimento de menoscabo

agudizou-se após a abertura dos portos - o fim prático dos nexos coloniais que ligavam o

território brasílico ao Reino de Portugal e a perda dos fluxos comerciais e financeiros

que sustentavam a economia da península, significando súbita pauperização. A derrota

de Napoleão por sua vez, parece deixar o país definitivamente abandonado à discrição

do controle inglês. Todos estes desconfortos acabam desaguando no movimento liberal

surgido na cidade do Porto, em agosto de 1820. Na seqüência do movimento, Lisboa

transformou-se na sede das Cortes deliberativas, uma assembléia encarregada de

elaborar uma Constituição liberal para Portugal, sem pretensão, contudo, de se

apartarem da monarquia. Um dos reflexos mais importantes daquele movimento, no

Brasil, foi a exigência para que se elegessem, em cada uma das antigas capitanias, uma

Junta Governativa que deveria subordinar-se diretamente a Lisboa.

Esta providência aparentemente simples, na verdade, se inseria num plano mais

amplo: “[...] na desvairada política recolonizadora [...]”55 das Cortes. Se na sua

motivação inicial pretendia esvaziar o poder do Príncipe Regente, deixado por Dom João

VI na sede do Reino americano, acabou por colocar o conjunto dos principais interesses

políticos e econômicos regionais, antes concentrados nas Câmaras Municipais, na

necessidade de se articularem para assumir o controle político das respectivas

54 PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 6.55 FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. Rev. São Paulo: Globo, 2001, p. 361.

26

Page 28: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

províncias.56 A significação deste fato não pode ser exagerada, considerando-se o

próximo processo pelo qual se efetuará a separação política entre o Brasil e a sua matriz

ibérica. Através do liberalismo, instrumentalizado para a defesa de seus interesses,

buscaram as elites provinciais, ainda que a princípio não uma separação de Portugal,

“[...] o reconhecimento de uma igualdade jurídico-política, que garantia o direito de

participar na legislação e na administração.”57 Diríamos mais, contudo, a referência à

“igualdade” e “participação”, mais que mera auto-identificação com o poder – percebido

no “outro”, no elemento português - encampa a necessidade de dominar os mecanismos

de auto-reprodução social. Dito de outra maneira, domínio dos mecanismos de

sobrevivência social,58 no espaço da província, primeiramente.

Contudo, se diante das exigências da recolonização ditadas pelas Cortes, uma

aliança entre estas elites políticas provinciais não se verificou na esfera do Império

português, elas puderam ser atraídas pelas propostas liberais vindas do Rio de Janeiro.

Aparentemente suas demandas por autonomia regional e participação política no plano

do novo Império, foram contempladas pelo Príncipe Regente através da convocação da

Constituinte59. Esta era sem dúvida, da parte das forças políticas mais próximas de D.

Pedro, uma maneira de garantir a manutenção da monarquia.

No “Manifesto aos Povos deste Reino”, de agosto de 1822, D. Pedro assegurou

às elites provinciais, representadas nas respectivas Juntas Governativas, principalmente

às do Norte60 - histórica e geograficamente, como se viu, menos simpáticas à idéia de

união política com o Rio de Janeiro - a manutenção da monarquia era o caminho mais

aplanado para a manutenção das estruturas de poder. Dentre as heranças coloniais a

serem preservadas pela monarquia, do ponto de vista das elites provinciais, estavam

centralmente as questões em torno da preservação da propriedade, quer fosse de terras

56 DOHLNIKOFF, op. cit. p. 29.57 MATTOS, op. cit. p. 53.58 Para uma discussão sobre as teorias atuais a respeito da instrumentalização humana para a sobrevivência em sociedade, “[...]jogar eficazmente o ‘xadrez social’[...]”, ver CARDOSO, C.F.S. Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru: EDUSC, 2005, pp. 57-63. 59 DOHLNIKKOF, op. cit. p. 43.60 BASILE, Marcello O.N. de C. O Império brasileiro: panorama político. In: LINHARES, M.Y.(org). História Geral do Brasil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, p. 202.

27

Page 29: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ou de outros homens – como, talvez, não pudesse deixar de ser. Além delas, como

chamariz para os que suspiravam pela manutenção de iniciativas liberais, como os que

dependiam da exportação da produção agrícola, bem como dos setores ligados à

importação, o Manifesto acenava com liberdade de comércio e respeito à Constituição.61

Garantir a defesa do sistema constitucional é a barganha de natureza estritamente

política, tendente à federação enquanto monárquica, que explicita o compromisso, por

parte do futuro imperador; a garantia às elites provinciais, principalmente as mais

reticentes em declararerem-se sujeitas ao Rio de Janeiro, que preceitos como autonomia

provincial e participação nos espaços de poder nacional, através da representação no

Legislativo, estariam assegurados. De uma maneira geral o estratagema constitucional

surtiu efeito. A soberania “do povo”62 pela qual o Frei Caneca será imolado, perpassa o

complexo da costura política que se ia alinhavando, conforme detectado pelo Timandro

no “O Libelo do Povo”:

“Em virtude do princípio de soberania do povo, a nação preferiu a monarquia como poderia ter preferido a república [...] aclamou rei o primogênito [...] Bragança [...] Esse rei era uma simples feitura das suas mãos; nenhum direito antigo e preexistente o assistia, pois tudo era novo, tudo datava da véspera [...]”.63

Uma vez realizada a Independência, a continuidade do caráter português na

direção da burocracia central garantiu a manutenção das estruturas políticas e sociais,

embora significasse perdas econômicas importantes, pelo menos no que diz respeito aos

setores brasileiros envolvidos com o comércio internacional. Estes setores comerciais

ligados à importação/exportação, reunidos nos principais centros urbanos,64 formavam o

setor econômico mais importante do recém nato Império. Eles sofreram terrivelmente

61 GUIMARÃES, L.M.P. Liberalismo moderado: postulados ideológicos e práticas políticas no período regencial (1831-1837). In: GUIMARÃES, L.M.P.& PRADO, M.L. (orgs.). O liberalismo no Brasil imperial; origens conceitos e prática. Rio de Janeiro REVAN: UERJ, 2001, pp. 124-125.62 Para uma discussão a respeito dos loci sociais das idéias liberais, bem como seus meios de difusão para as camadas não letradas da população veja-se BASILE, op. cit. pp. 204-208; e NEVES. L.M.B.P. Liberalismo político no Brasil: idéias, representações e práticas. In: GUIMARÃES, L.M.P.& PRADO, M.L. (orgs.). O liberalismo no Brasil imperial; origens conceitos e prática. Rio de Janeiro REVAN: UERJ, 2001, pp. 73-101.63 Apud. OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 172.64 Permitimo-nos considerar que os processos e fenômenos formativos dos setores comerciantes do porto do Rio de Janeiro, conforme demonstrado por Fragoso & Florentino possam ser, grosso modo, atribuídos aos demais portos brasileiros.

28

Page 30: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

com os tratados comerciais assinados com o intuito de garantir o reconhecimento da

Independência brasileira pelas potências européias, principalmente o assinado com a

Inglaterra, em 1827. De alguma maneira, e para descontentamento geral das elites que

apoiaram Dom Pedro, muitos vestígios do Estado português tenderam a ser perpetuados

na nova entidade política. Na percepção das elites, na verdade, estes vestígios, entre eles

a tendência autocrática do Imperador, pareciam ainda mais piorados sob o choque da

dissolução da Assembléia Constituinte e a outorga da Constituição de 1824,

acontecimentos que cercearam os espaços almejados por elas nos círculos de decisão

política.

Historicamente, esta continuidade significou um sistema fechado à acumulação

social, sem repartição social dos ganhos,65 a “[...] contínua reiteração de uma hierarquia

rural cujo aristocrático topo era constituído por senhores de homens e terras.”.66 Ora, no

plano privado, o prestígio e o poder residiam na posse da terra, conforme registrado por

Saint-Hilaire: “A posse de um engenho confere aos lavradores dos arredores do Rio uma

espécie de nobreza. Só se fala com consideração de um ‘senhor de engenho’, e vir a sê-

lo é a ambição de todos.”.67 Ainda que as grandes fortunas sejam provenientes da

atividade comercial, em muitos casos, muito mais lucrativa do que a agricultura, foi na

compra de terras que elas acabaram, invariavelmente, alienadas68 demonstrando a busca

das elites econômicas brasileiras pelos signos de nobilitação e de prestígio próprias do

herdado modelo arcaizante colonial.

Seja como for, e apesar da relativa comunalidade da natureza das atividades a

que se dedicavam as elites das diferentes províncias “brasílicas”, mesmo que garantidas

as estruturas econômicas e sociais herdadas da colonização, as condições políticas

haviam mudado irremediavelmente. Aquelas elites espalhadas pelo conjunto das

províncias eram “[...] portadoras de inúmeros projetos de futuro, cada qual sintetizando

particulares trajetórias coletivas balizadoras de alternativas dessemelhantes de futuro.”.69

65 ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. São Paulo: SENAC; Brasília: FUNAG, 2001, p.68.66 FLORENTINO & FRAGOSO, op cit, p. 233.67 Apud, MATTOS, op. cit., p. 37.68 FLORENTINO & FRAGOSO, op. cit., p. 228.69 JANCSÓ, op. cit., p. 16.

29

Page 31: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Apesar destas disparidades em vislumbrar um porvir comum, que poderia ter apontado

as diferentes regiões para diferentes direções no plano político, estabeleceu-se a

“informal confederação”, o frouxo “pacto monarquista”.70 Este arranjo político,

aparentemente paradoxal, escorado, como já assinalamos, nas promessas constitucionais,

garantirá o apoio ao príncipe no momento da guerra da independência. A solução

violenta foi necessária para que se impusesse a autoridade imperial sobre os setores

rebeldes de algumas províncias no Norte e no Sul e, minimamente, conciliou aquelas

“alternativas dessemelhantes de futuro”.

Esta articulação em torno do imperador Bragança obedecia a questões mais

gerais, identificadas como interessantes pelo conjunto de províncias, entendidas aqui

como as suas elites. A mais imediata é a da sua própria sobrevivência no complexo

social que as mantinham enquanto camadas dirigentes. Neste sentido, a manutenção da

integridade do território herdado pelo Império, aparecia como um meio de satisfação à

demanda de garantir apoio mútuo à manutenção da estrutura social; estrutura que lhes

permitia a ocupação das posições de direção das respectivas unidades administrativas.71

Por outro lado, contudo, esta unidade territorial, pela ótica do Estado brasileiro, era um

imperativo no sentido de obstar quaisquer tendências centrífugas que estimulassem a

desagregação territorial. Conciliar o governo central e as províncias só seria viável uma

vez que se garantisse a autonomia das partes diante do conjunto maior.

A aceitação, por parte das províncias, do ônus político de gerenciar esta tensão

entre o todo e a parte é perceptível pelo envio ao Rio de Janeiro, dos deputados eleitos

para a Constituinte; até mesmo os rebelados pernambucanos de 181772: “[...] o problema

não consistia na chefia do Estado, mas na natureza do regime, que devia ser tão liberal

quanto o das Cortes de Lisboa, restringindo severamente as prerrogativas do Poder

executivo.”.73 Para aquelas elites o imperador gozava de uma confiança limitada, não era

o diretor exclusivo ou onipotente dos desenvolvimentos relativos ao Estado. Desta

direção queriam tomar parte, concorrendo para o desenrolar dos acontecimentos, elas 70 FAORO, op. cit., p. 362.71 Idem, p. 398.72 DOHLNIKOFF, op. cit., pp. 55-56.73 MELLO, apud Idem, pp. 56-57.

30

Page 32: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

sim, encarregadas da direção em função da legitimidade do voto obtido

provincialmente.74

A independência do Brasil encontrou o Estado Cisplatino dividido entre

portugueses e partidários orientais de Buenos Aires e brasileiros apoiados por outras

facções orientais. Os portugueses se viram sitiados no porto pelas forças do general

Lecór, bloqueados por uma divisão naval brasileira. Isolados após a derrota e retirada

dos últimos defensores portugueses do restante do território brasileiro, os portugueses de

Montevidéu iniciaram as negociações para abandonarem a praça. Em 14 de fevereiro de

1824, finalmente Lecór pode entrar em Montevidéu, confirmando a incorporação do

Estado Cisplatino como a 19ª província brasileira, a província Cisplatina. De qualquer

maneira, ainda em 17 de outubro de 1822, setores importantes da sociedade Oriental

haviam assinado uma ata de aclamação, reconhecendo D. Pedro I imperador do Brasil.75

Os ideais de liberdade que ocupam o período, e temperam os projetos das elites

provinciais com essências federalistas, recuaram, porém, lentamente, quer por interesses

dependentes, em alguma medida, do Trono, ou pelas lições nascidas da experiência.76 A

dissolução violenta da Assembléia Constituinte, neste sentido, revelou a existência de

outras tensões no conjunto político embrionário: o convívio das formulações teóricas

liberais, com o liberalismo possível diante de estruturas enraizadas no absolutismo. Os

constituintes pecaram pela ânsia “[...] de operar como peça principal do maquinismo do

Estado [acabando por] ser dissolvida manu militari por não haver lugar para duas

autoridades soberanas rivais [...]”.77 Pecaram os constituintes por não reconhecer o preço

a ser pago por afrontar a vontade do Imperador, no momento da transição entre o regime

da vontade real e a implantação embrionária de alguns princípios liberais. No tocante à

Cisplatina esta inabilidade liberal insistiu, durante os trabalhos constituintes, que haviam

mudado as circunstâncias políticas e que “[...] a justiça de um Império livre talvez não

74 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 58.75 PARANHOS, nota 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 6-7; idem, nota 4, p.7. Contudo, ao que parece o processo de adesão ao Brasil não foi unânime. Registra-se que Lecór e suas tropas foram os responsáveis pela adesão de Montevidéu à Independência brasileira. VIANNA Helio. História diplomática do Brasil. Rio de Janeiro: Bibliex, 1958, p. 94.76 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 171.77 Idem, pp. 17, 56.

31

Page 33: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

seja a conveniência de uma colônia escravizada. É preciso lembrarmo-nos que a

incorporação da Cisplatina foi feita à força de armas.”.78 Também o constituinte Silva

Maia defendia que:

“Se tomamos o Rio da Prata ao sul por ser uma divisa natural e bem visível, então, pela mesma razão deveríamos tomar por divisa, ao norte, o Amazonas, o que seria em grande prejuízo das possessões que temos para lá desse rio. Mas assim como não devemos perder o que de certo nos pertence, não podemos querer o que pertence aos vizinhos, estendendo-nos até ao Prata. Não faltemos às regras e princípios de justiça.”79

De acordo com este espírito, na verdade, a Constituinte não incluiu a Cisplatina

no rol de províncias brasileiras.80 Este assunto se resolveu a favor da incorporação com o

encerramento violento das suas atividades. Ora, foram os moldes coloniais que

definiram a falta de vigor político dos diversos setores sociais brasileiros, vigor que é

uma exigência para que se possa prevalecer num ambiente liberal. Ainda que

enriquecidos, como no caso dos grandes comerciantes do Rio de Janeiro, como já

referimos acima, miravam as estruturas81 nascidas da matriz absolutista portuguesa;

ansiavam apoderar-se dos símbolos do poder disponíveis no arsenal das representações

da sua sociedade, ainda que ao custo da participação política.

A nosso ver, as elites provinciais reunidas para formular a Constituição brasileira

esbarraram nos limites desta estrutura simbólica. Neste caso, a nobilitação como forma

de sobrevivência garantida pelo Estado, a aspiração por cargos no serviço burocrático,

num movimento não de superação, mas de manutenção82 se impôs como a solução

imediata para a acomodação. Seja como for, nem todos os setores das elites poderiam

ser acomodados pelo estreito arranjo centralizador. O gesto imperial de dissolução da

Constituinte significou, na prática, a interrupção do “pacto” proposto pelo “manifesto”

de 1º de agosto de 1822, como referido acima. Por isso, inaugura um novo processo de

78 BRASIL. Discurso do deputado constituinte José de Alencar. Apud, PARANHOS. In: SCHNEIDER, op. cit. nota 1, p. 15.79 Apud. Idem.80 PARANHOS. Idem.81 FLORENTINO & FRAGOSO, op. cit. p. 227.82 CARVALHO, op cit, 2003, pp. 27, 31.

32

Page 34: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

reivindicação por liberdade: “[...] dissolvida essa assembléia [...] começou a luta política

que acabou em 7 de abril de 1831 pela abdicação de D. Pedro I [...]”.83 Devido aos

excessos do imperador se estabeleceu uma linha divisória: constituíram-se em campos

antagônicos os domínios do Imperador e os da sociedade política. Este confronto

estabeleceu uma relação abrasiva entre os Poderes constitucionais, o Moderador e o

Executivo apartados do Legislativo, e num futuro próximo fará periclitar a Coroa de D.

Pedro I.84

1.2 – Elites e autonomia provincial.

James Harrington, intelectual inglês que testemunhou os desenvolvimentos que

sacudiram a sociedade da Inglaterra do século XVII, procedeu à análise dos mecanismos

que conduziram, no momento da execução de Carlos I, à fratura entre “povo” e Estado.

“Harrington interpretava os desenvolvimentos políticos como determinados pela

distribuição não do poder, mas da propriedade [...]: ‘todo governo é interesse, e o

interesse predominante fornece a essência ou o fundamento do governo’.”.85 Se bem que

as circunstâncias históricas tenham variado entre Harrington e o recorte que nos toca,

assim como as sociedades envolvidas, uma comparação nos parece possível.

Recorremos aos argumentos já alinhados sobre a luta pela sobrevivência social que, a

nosso ver, apontam à prevalência de determinados setores sociais sobre os demais86, quer

sejam setores concorrentes ou setores subordinados, sobre os quais se manifestam mais

diretamente os efeitos da dominação.87 Arriscamos alguma aproximação da sociedade

brasileira no momento da formação do Estado imperial brasileiro com os diagnósticos

do pensador inglês.

83 PARANHOS. Nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I p. 15.84 Ibidem, p. 19.85 Apud PIPES, R. Propriedade e Liberdade. Trad. L.G. B. Chaves e C.H.P.D. da Fonseca. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 54.86 CARDOSO, op. cit. pp. 53-ss.87 Cf. BOURDIEU, op. cit., p. 10-15; também sobre a disputa pela prevalência, ou hegemonia, que envolve aspectos tanto materiais quanto imateriais, veja-se o que Chartier designa as lutas de representação: CHARTIER, op. cit., p. 17.

33

Page 35: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Os fatores que, no limite, determinaram a abdicação de Pedro I, encontram-se

justamente na desatenção para com as demandas das parcelas sociais que, a rigor,

beneficiavam-se do modelo de distribuição de propriedade e prestígio herdados dos

processos formativos coloniais. Estes setores, contemplados por aqueles modelos de

garantia da propriedade, tinham garantida, também, a possibilidade da participação

política. De acordo com o pensamento político brasileiro do início do século XIX, o

“cidadão” brasileiro estava bem definido pela Constituição de 1824, que delimita a

sociedade civil em função do atributo da liberdade: “[...] é evidente que a sociedade civil

não poderia existir sem qualificar, sem fixar previamente os caracteres segundo os quais

pudesse reconhecer os membros de que se compõe e os que lhe são estranhos”.88

Continua Pimenta Bueno, explicitando o que propriamente seria a liberdade: “[...] a

condição essencial do gozo de sua inteligência e vontade, o meio de perfazer seus

destinos.”.89 Contudo, a mera posse da liberdade não qualifica para a participação

política, faculdade a que se habilita, segundo o texto constitucional, apenas o detentor de

determinada renda anual. Este preceito legitimador da participação na vida política do

Império, já estava reconhecido no projeto constitucional desaparecido com a Assembléia

Constituinte e em nada se distinguia dos principais modelos europeus. Segue-se daí a

diferenciação entre os homens simplesmente livres, e os livres detentores de

propriedade. Reside aí, a diferença entre sociedade civil e sociedade política, a diferença

mesma estabelecida entre os cidadãos ativos e os cidadãos não ativos: “A sociedade

política ou massa dos cidadãos ativos não é senão a soma dos nacionais, que dentre o

todo da nacionalidade reúne as capacidades e habilitações que a lei constitucional exige:

é a parte a mais importante da nacionalidade.” 90

“Assim, pelas ‘capacidades e habilitações’ de seus membros, sempre ‘brancos’, a ‘boa sociedade’ tende a se confundir com a sociedade política – ‘a parte mais importante da nacionalidade’. Por ser portadora de liberdade e propriedade, a ela compete governar, isto é, ‘dirigir física ou moralmente’ [...]” 91

88 SÃO VICENTE, marquês de, apud MATTOS, op. cit., p. 109.89 Idem, idem, p. 110.90 Ibidem, idem.91 MATTOS, op. cit., p. 111, grifo do autor.

34

Page 36: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Constituíam-se os diversos setores das elites, quer nas províncias, quer mais

próximas do poder central, portanto, na sociedade civil, de acordo com as formulações

liberais coevas, de cuja posição procuravam se constituir, habilitados pela propriedade,

em sociedade política e dominar aqueles mecanismos que assegurariam sua

sobrevivência no conjunto da sociedade brasileira. Foram elas que, premidas por aquelas

necessidades haviam cedido ao apelo constitucional, se tinham unido ao príncipe

português contra os termos propostos pelas Cortes de Lisboa para a continuidade da

ligação política com Portugal. Se, como se acha em Harrington,92 a soberania sempre

tenderá a pender em favor da riqueza,93 a abdicação de Dom Pedro I, a partir do

momento em que ele rompia com o pacto constitucional, seria então, apenas, uma

questão de tempo.

Henry Neville, contemporâneo de Harrington, concordava que o governo é uma

função da distribuição da propriedade: “A conseqüência é: toda parte natural do nosso

governo, que é poder, está, por meio da propriedade, nas mãos do povo; enquanto a parte

artificial, ou o pergaminho no qual a forma de governo está escrito, continua na

moldura.”.94 O resultado da disputa entre “o povo” e a coroa brasileira, entendida a partir

deste quadro de desafio às prerrogativas e proeminência das elites proprietárias das

províncias, reunidas para a formação do independente Estado brasileiro, só se alteraria

com uma revisão das posições do imperador Bragança em relação àquele pacto,

conforme o “Manifesto” de 1822. Esta mudança, em função de todas as características

autocráticas do filho do absolutismo Bragança, provou-se irrealizável.

A dissolução da Constituinte e a outorga de uma Constituição, contudo, geraram

protestos, repressão e mártires; fatores que se conjugaram para explicitar a cisão entre a

sociedade política e o Imperador, inapelavelmente. Aquelas elites, no momento da

revolta contra o rei incorporam, em função da defesa da sua liberdade, o sentido

rousseauniano de “povo”: a soberania popular é uma função da vigilância coletiva dos

cidadãos contra o Estado. Esta formulação significa um rompimento, o contrato não é 92 Considere-se que, segundo Pipes, no entender de Harrington o governo é uma entidade independente dos proprietários, sobre o qual estes não exercem controle; cf. PIPES, op. cit., p. 55.93 Idem, pp.54-56.94 Apud, ibidem, p.56.

35

Page 37: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

para criar o Estado, mas para garantir a liberdade. O indivíduo é um “[...] ente público

voltado para a esfera pública.”95. O resultado desta vigilância pela liberdade seria, de

acordo com Rousseau, a soberania popular, ou seja, o rei e a autoridade são obras do

país, e não realidades preexistentes, históricas e religiosas.96

Para aquela parte “mais importante da nacionalidade”, D. Pedro I obstou o acesso

às posições de definição das políticas e direção do Estado, ao optar pela manutenção dos

modelos da burocracia portuguesa97. Esta opção não significava, a rigor, a expressão de

uma mentalidade obscurantista por parte do imperador. Suas opções estavam em

sintonia com sua reconhecida interação com as linhas de pensamento européias, como

testemunha a institucionalização do Poder Moderador. As opções do imperador

materializavam adoção das doutrinas disponibilizadas pela restauração européia, do

período pós-napoleônico; a tradição procurava neutralizar o liberalismo, mais do que

meramente controlá-lo. Eram estas as marcas presentes Constituição Outorgada, que

admitia que a monarquia e o imperador precediam à própria Carta constitucional e à

Independência. Embora obedecendo à lógica histórica das monarquias tradicionais,

contrapunha-se inapelavelmente às aspirações, mais federativas do que liberais98, das

elites provinciais.

Neste processo encetado pelo imperador, de defender-se contra as aspirações

liberais que se irradiavam das províncias para o centro político do Império, serviu de

lenitivo a abertura dos trabalhos legislativos da Assembléia Geral em 1827. Aquele

espaço de expressão política, por congregar os representantes das províncias, ávidos por

espaço político, cedo se transformou em um canal poderosíssimo de explicitação dos

descontentamentos das elites contra o governo imperial. Por sua vez, contudo, contra o

risco da tirania imposta pela “vontade da maioria”, representada na Câmara dos

Deputados, D. Pedro alinhara o Senado vitalício, que exerceu, por sua vez, um papel de

contrapeso “conservador” durante todo o Primeiro Reinado99. Como reforço para a

95 PEIXOTO, A. Carlos. Liberais ou conservadores?. In: Guimarães & Prado, op. cit., p. 21.96 FAORO, op. cit. p. 32097 Idem, p. 319.98 Ibidem, p. 321.99 Ibidem, p. 332.

36

Page 38: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

limitação das prerrogativas da Câmara dos Deputados, pairava, ainda e sempre, a sombra

do Poder Moderador. Ele detinha a prerrogativa de dissolução da legislatura, em caso de

extrapolações “da maioria”. O Poder Moderador, o Senado vitalício e o Conselho de

Estado constituíam o “[...] poder minoritário, concentrado na aristocracia em construção

e na alta burocracia, vigia, disciplina e educa o poder majoritário, numa reformulação

brandamente absolutista da realidade monárquica.”100

As restrições impostas à participação das elites políticas provinciais na condução

das questões de Estado espraiaram-se até mesmo por sobre os espaços políticos

provinciais. Os presidentes das províncias eram indicados pelo governo central, que

poderiam ser naturais de outras províncias. Este arranjo possuía óbvios inconvenientes

para as relações entre as elites provinciais e o imperador; ao representante do governo

central obviamente faltaria a perfeita percepção a respeito das necessidades regionais, o

que poderia compor-se com a falta de domínio dos canais de entendimento e diálogo

junto às lideranças locais. Para piorar o caráter de dependência em relação ao governo

central, não havia provisão constitucional para a existência de Legislativos provinciais;

existiam apenas os Conselhos Gerais de Província, cujas decisões estavam sujeitas à

aprovação da Assembléia Geral. A rigor, as províncias careciam de autonomia para

decidir sobre suas próprias despesas e receitas, estando as questões tributárias, também,

controladas pela Assembléia Geral.

Contudo, os espaços políticos que permaneceram abertos permitiram que se

manifestassem os interesses das elites provinciais na vida política do Império, pelo

menos em alguma medida. O caninho da efetiva conquista dos processos de ingerência

nas decisões de Estado constituiu-se num verdadeiro desbravar de caminhos e

possibilidades, permitidas pelo liberalismo monárquico brasileiro que se implantava.

Esta atividade política se exercia através da Câmara dos Deputados que, extrapolando

para os espaços de discussão pública, até onde alcançava a imprensa, deram vitalidade à

vacilante sociedade “nacional”, recém surgida. A força das limitações daquelas

estruturas liberais, entretanto, açodava, também, a contraposição entre o Executivo e o

100 Ibidem, pp. 332-333.

37

Page 39: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Legislativo - representante do eleitorado, portanto, do “povo”. Para todos os efeitos,

aqueles primeiros passos legislativos, numa sociedade saída das formas absolutistas, não

deixam de ser surpreendentes, ainda mais se considerados os encaminhamentos que

resultaram dali. A Câmara dos Deputados adquire uma função de incubadora da elite

política imperial101, estando a um instante de assumir as rédeas do Estado imperial

brasileiro. A falta de “[...] um laço comum de parentesco político[...]”102 decretaria em

breve o rompimento definitivo do relacionamento entre o imperador e as elites políticas

brasileiras.

A partir das limitações impostas aos interesses políticos provinciais, o

federalismo103 transformou-se na principal bandeira dos homens que, generalizando

interesses sob as cores liberais, arquitetavam a oposição ao imperador. Longe,

entretanto, do nódulo de poder fluminense, os interesses que se contrapunham na

província Cisplatina certamente não se inseriam no mesmo arranjo institucional que terá

seu clímax em sete de abril de 1831. A antiga Banda Oriental se prestava, para além das

demandas federativas, do paradoxal equilíbrio província-centro, a palco para a

complexidade das relações que se nasceram nas relações entre Portugal e Espanha. Esta

realidade conflitiva piorara exponencialmente após a desagregação dos impérios

coloniais e a conseqüente pulverização dos centros de poder.

Da herança colonial, a independência do Brasil concedera ao território cisplatino

um tratamento diferenciado, conforme preservado no momento da anexação a Portugal,

Brasil e Algarves. Desde aquele momento ficara preservado o código legal preexistente,

o idioma espanhol assim como o aparato fiscal, entre outros.104 Estas circunstâncias não

foram suficientes, entretanto, para aplainar as tensões e disputas tão profundamente

enraizadas, agora, principalmente, as que opunham Buenos Aires e o Império. Um

movimento de rebelião contra o governo imperial, apoiado pelo governo portenho105,

conseguiu estabelecer-se na região da campanha e isolou os brasileiros em Montevidéu e 101 Ibid. p. 333.102 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 62.103 COSTA, E. Viotti da, apud DOHLNIKOFF, op. cit., p. 45.104 VIANNA, op. cit., p. 94105 JOURDAN, 1893 (a), p. 10. Ver também GOLIN, Tau [Luís Carlos Golin] A fronteira. Porto Alegre: L&PM, 2002, Vol. 1, pp. 96-97.

38

Page 40: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Colônia. Estabelecido um governo provisório foi adotado o sistema republicano de

governo e declarada a Banda Oriental incorporada às Províncias Unidas do Rio da Prata.

O Brasil declarou guerra aos argentinos em 10 de dezembro de 1825, após terem

declarado que proveriam apoio aos orientais na sua luta por emancipação contra o

Império106. O confronto exauriu as Províncias Unidas e o Império, imobilizados diante

do impasse militar decorrente da impossibilidade de qualquer das partes em alcançar

uma decisão pelas armas. Após várias tentativas platinas para se alcançar um acordo, o

Império admitiu abrir mão do território oriental, assim como o fizeram as Províncias

Unidas. Através da mediação britânica107, as Províncias Unidas e o Império chegaram à

convenção provisória de paz de 27 de agosto de 1828. Por este documento se criava a

República Oriental do Uruguai.

“De há muito o Brasil ansiava não por aumento de território de que não carecia, mas por limites naturais e invariáveis, que lhe dessem garantias de segurança, de paz estável, e de permanente ordem interna; eis explicada a causa porque com franqueza, sem debates nem dificuldades, se concluiu a mencionada convenção, logo que os negociadores argentinos vieram, não a receber a jóia da Cisplatina, mas a desistir dela; não a sustentar a pretensão da República sobre ela, mas a ceder do direito com que a mesma república se supunha, de incluí-la no seu território; não a ganhar, mas a perder.”108

Apesar do discurso dos “[...] estrategistas [...]”109 do governo imperial, a guerra

não gozara do apoio das elites brasileiras, tanto pela pouca importância que se dava aos

argentinos, quanto pela oposição que se fazia ao imperador, quer seja no parlamento

como na imprensa110, órgãos umbilicalmente ligados.111 Para todos os efeitos o Brasil

perdera sua província numa guerra impopular, a convenção provisória de 27 de agosto

de 1828 “[...] não foi outra coisa mais do que a submissão de d. Pedro I à vontade do 106 ARGENTINA. Nota do ministro das Relações Exteriores ao Governo Imperial, de 03 de novembro de 1825. In: PARANHOS, nota 7. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 9-10.107 Segundo Cervo & Bueno, a mediação da coroa inglesa não significou que o arranjo tenha sido uma imposição daquela potência ao Império e às Províncias Unidas. CERVO & BUENO, op. cit., p. 41. Ver também GOLIN, 2002, op. cit. Vol. 1, pp. 147-153108 SÃO LEOPOLDO, Visconde de. Apud PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 15-16.109 GOLIN, 2002, Vol. 1, p. 148.110 PARANHOS, nota 3 Nota 3. In: SCHNEIDER, , pp. 12-13. Cervo e Bueno defendem que não faltou apoio ao governo no parlamento, em função da campanha bonairense contra as instituições imperiais, veja-se à p. 49.111 GUIMARÃES. In: GUIMARÃES & PRADO, op. cit. pp. 112-ss.

39

Page 41: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Brasil [...]”112. Os acréscimos de todas as ineficiências do governo imperial na condução

da Guerra Cisplatina só fizeram aumentar as pressões contra o imperador, apontando e

acelerando o processo para a consumação daquele relacionamento convulso, a

abdicação.

Evidentemente o nível de mobilização social exigida pelo clímax da crise entre o

Moderador e o Legislativo, na madrugada de sete de abril de 1831, não poderia

prescindir da pressão das ruas. Não foi difícil à imprensa liberal atrair as populações

pobres urbanas contra o imperador, ao se conjugar a cultura antilusitana, com os

problemas da carestia e instabilidade econômica do país após a Independência. A

eficiência do discurso da oposição liberal fica patente, no momento em que falta ao

monarca até mesmo o apoio da sua guarda pessoal: “A luta tem chegado a um tal ponto

de apuro, que a conciliação, quando não seja impossível, é pelo menos muito dificultosa

[...] Onde está a opinião pública interessada em manter o governo? Eu não os vejo [...]”

escreveria ao filho, o amargurado ex-monarca.113

Este rompimento materializado na Abdicação representou o sucesso da

resistência política das elites provinciais, aglutinadas e articuladas por seus

representantes no Legislativo, contra os entraves criados às suas demandas pelo o credo

centralizador de Pedro I. Se esta resistência não visava, diretamente, assumir o controle

do Estado, conforme demonstra a própria manutenção do Trono, ainda que vacante,

procuravam nele as garantias de atendimento de seus interesses. A partir das novas bases

políticas continuava na Regência a perseguição daqueles interesses presentes no

momento da independência: sua sobrevivência enquanto grupo social, nos limites

provinciais.114 A “boa sociedade”, eleitora e representada por suas elites políticas na

Corte, buscava os meios de consolidação dos modos e condições para a reprodução de si

mesma, no complexo do convívio provincial englobado pelo Estado imperial. Uma

reprodução social que trazia consigo a reprodução do modelo de econômica agrária, com

suas variantes regionais, mas que resultava na crescente exclusão e conseqüente

112 NOBRE, F. apud GOLIN, 2002, Vol. 1, p.148.113 CALDEIRA, op. cit., pp. 125-126.114 Cf. referência da nota nº 6.

40

Page 42: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

hierarquização115; marcas do escravismo brasileiro, naturalizadas por sua mera repetição

durante quase três séculos.

Como dizíamos acima, múltiplas demandas históricas, faziam as prioridades das

diversas elites provinciais. Vencida a centralização do Primeiro Reinado abriram-se

novas possibilidades para um arranjo que deveria combinar a ampliação das liberdades

provinciais – considerando-se aí, também, o espaço de participação na definição das

políticas de Estado - com a manutenção da unidade territorial116. Mas, o clima de

exaltação pública atingido pelo movimento oposicionista ao imperador, que mobilizou

grandes agrupamentos populares, inclusive a tropa estacionada no Rio de Janeiro, devia

ser arrefecido. Teófilo Ottoni, um dos expoentes liberais do período, naquele momento

admitiu sacrificar suas postulações liberais mais exaltadas, diante do medo...

“[...]da anarquia demagógica e o temor do despotismo militar, entre um e outro baixio soçobrando a América espanhola [...] Não renunciaram eles às suas crenças políticas, mas num espírito de oportunismo falavam de republicanizar a Constituição imperial, conservando muito embora a forma de governo. O Brasil converter-se ia naquilo em que de fato veio a transformar-se – uma democracia coroada.” 117

Sob o ponto de vista da moldagem, que desde 1822 se fazia do Estado

brasileiro, o início da Regência parece apresentar finalmente algumas definições. Foi

possível, a partir das eleições dos deputados às Cortes de Lisboa, passando pelas

primeiras legislaturas - sem desconsiderar a experiência algo limitada da Constituinte -

enrijecer na prática política um conjunto de homens provenientes das províncias que

agora assumiam o controle do Estado brasileiro118. Devemos considerar, diante do que

dissemos, que os fluxos e refluxos da política brasileira experimentados no período,

estão ligados a movimentos mais largos, acompanhando os desenvolvimentos no mundo

ocidental. Neste sentido podemos considerar o final do século XVIII e, pelo menos a

primeira metade do XIX, uma época de “fronteira”. Assistia-se aos esforços de

115 FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit. p. 19.116 DOHLNIKOFF, op. cit. p. 25.117 OLIVEIRA LIMA, 1989, p.19.118 FAORO, op. cit. p. 344.

41

Page 43: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

instalação e consolidação do Liberalismo contra os estertores convulsos das tradições

monárquicas: “[...] uma época de doutrinas, e a novidade das circunstâncias a estimulou

a sê-lo mais que qualquer outra, entre um mundo antigo destruído e um futuro

obscuro.”119

São estas incertezas quanto ao futuro que perpassam as ações das classes

políticas brasileiras no momento em que, por fim, ocupam os espaços de poder do

Estado que não contava nove anos. No momento em que esta classe política que já

dominava o Legislativo converge sobre o Poder Executivo, os propalados ideais do

liberalismo, que amalgamaram os esforços contra o Imperador deposto, foram

substituídos pelo que, então, passa a ser identificado com os renovados interesses da

nação, agora identificados com os seus próprios. Abertos os espaços para de fato

exercerem o controle provincial, foi preciso desenvolver os mecanismos de controle

sobre o que, potencialmente, poderiam ser situações de risco. Era o momento de coibir a

distribuição da liberdade individual, a abertura generalizada de espaços de manifestação

política, o afloramento de alternativas ao modelo social vigente. Se a abdicação foi um

momento revolucionário, iniciava também um esforço de conservação, visando a

manutenção do controle sobre os mecanismos de sobrevivência social.

Interpretando com fineza o peso humano da dúvida e incerteza que pairavam

sobre os espíritos dos liberais, em relação ao futuro, Oliveira Lima120 defendeu que o

medo foi um dos responsáveis pela manutenção da “bela unidade nacional”. Para o

experimentado homem de Estado, o medo permitiu que a “vontade popular” agisse de

maneira a indicar, ou, fazer supor a existência de uma ação organizada, de um partido na

defesa da monarquia. Para ele, contudo, não havia, rigorosamente, nem mesmo uma

classe realmente interessada na defesa das “instituições monárquicas”; segundo ele a

imprensa é que desempenhara o papel preponderante na condução do ânimo público.

Este o papel, de fato, de publicistas como Borges da Fonseca e Evaristo da Veiga,

119BÉNICHOU, P. apud WINOCK, M. As idéias políticas. In: RÉMOND, R. (org). Por uma História Política. 2ª ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003. 2003. p. 277).Sobre este longo período de transição, ver também, HOBSBAWM, E.J. A era das revoluções. EUROPA 1789-1848. Trad. Maria Tereza L. Teixeira e Marcos Penchel. 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.120 OLIVEIRA LIMA, 1989, pp. 19-20.

42

Page 44: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

transmutando os discursos que haviam inflamado a revolta contra o imperador, em

defesa aflita de princípios do conservadorismo político europeu.121 A luta destes homens

letrados direcionou-se para, no momento da exaltação popular, evitar extrapolações que

pudessem desfigurar as estruturas sociais e políticas: “[...] Nada de jacobinismo de

qualquer que seja a cor. Nada de excessos. A linha está traçada: é a da Constituição que

se jurou no dia 25 de março. Nada de alterações que a desfigurem e lhe façam perder a

virgindade [...]”.122 A elite política que se utilizara dos ideais liberais para desalojar do

trono o Imperador D. Pedro I, obrigava-se a distanciar-se, em alguma medida, dos seus

discursos iniciais – embora não tenha significado o abandono das demandas federalistas

e, muito menos, da preservação da monarquia123.

1.3 – Elites: autonomia política, estrutura de conservação e sobrevivência social.

Para o sucesso dos setores políticos asenhorados dos mecanismos de definição

das políticas de Estado, estes mesmos tiveram que ser capazes de identificar em si

próprios os objetivos mais gerais da nação, contemplando o conjunto mais geral dos

interesses de cada província. Se não fossem capazes de enfeixar estes interesses

reunidos em torno do governo do Rio de Janeiro, corriam o risco da impugnação

“popular”, como o ocorrido com o antigo Imperador. Sendo assim, em certa medida,

tiveram que assimilar o discurso das parcelas que os precederam no domínio do Estado e

da sociedade política nacional. Tiveram que convencer a “[...] opinião pública, que o seu

triunfo particular [seria] a condição para o sucesso da própria nação.”124

Neste esforço em atrair e convencer a opinião pública dois objetivos eram claros

e deviam ser assimilados, tanto pelas parcelas dominantes das sociedades provinciais,

quanto pelas camadas pobres e incultas. Assim, como em 1822, seus alvos principais

foram “[...] a manutenção da monarquia e o revigoramento da unidade nacional [...]”125

sem prejuízo do desenho institucional pretendido pelos liberais de 1831, que

contemplava uma monarquia federativa.126 É justamente este o papel que as elites 121 Principalmente Edmund Burke, Cf. PEIXOTO, op. cit. pp. 24-ss e nota 74.122 VEIGA, Evaristo da. Apud GUIMARÃES. In GUIMARÃES & PRADO, op. cit., p. 115.123 DOHLNIKOFF, op. cit. p. 25.124 BRAUDEL, F. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 63.125 FAORO, op. cit., p. 344.126 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 36.

43

Page 45: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

provinciais exigiam para o Estado: o governo central deveria articular a unidade entre as

províncias e, ao mesmo tempo, não deveria interferir nos espaços regionais de poder.127

Segue-se a delimitação de dois espaços bem definidos: o provincial e o nacional, mas

sem que reste qualquer questionamento sobre a hierarquia interna do arranjo, onde

deveria prevalecer o predomínio do último sobre o primeiro.

Esta convergência dos interesses das diferentes províncias deriva de fatores já

identificados pela historiografia, que concorda, em linhas gerais, com o fato da

comunalidade das bases de formação intelectual daquelas camadas sociais. Mesmo que

apartadas geograficamente nas diferentes províncias, ou por origens sociais diversas,

constituíam setores sociais que podiam custear a educação européia dos seus filhos,

mormente em Coimbra128, num primeiro momento e, depois, nas instituições

estabelecidas aqui mesmo no Brasil. Se provenientes de camadas sociais menos

importantes, o acesso à educação habilitava-os à ascensão social, perseguindo e

incorporando os valores do sistema simbólico129 da sociedade imperial. A incorporação

daqueles sistemas simbólicos determinava mudanças na vida pregressa dos indivíduos,

significando o seu encaixamento nos padrões da boa sociedade,130 reproduzindo-os131.

Se, por outro lado, fossem provenientes dos quadros sociais mais elevados, seu papel era

o de, meramente, dar continuidade aos padrões herdados da convivência doméstica, o

que, evidentemente incorporava o mando, e o domínio sobre outros homens.

Num ou noutro caso, o resultado era a contínua reiteração das estruturas sociais

herdadas dos processos formativos da Colônia. Esta identificação das elites com os

modelos que importavam da Europa, quer sejam culturais, políticos ou materiais, tinham

um papel dúplice e fundamental na exteriorização do ordenamento social. Um primeiro

objetivo era o da preservação132 das próprias estruturas sociais, através das suas

127 DOHLNIKOFF, op. cit. p. 15.128 CARVALHO, 2003, p. 37.129 BOURDIEU, op. cit., pp. 7-15.130 CANDIDO, Antônio. Um funcionário da monarquia: ensaio sobre o segundo escalão. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2002, p. 33.131 O assunto aparece, embora discutido a partir de uma leitura baseada em fatores ideológicos, em CARVALHO, op. cit. 2003, p. 33.132 MATTOS, op. cit , p. 64.

44

Page 46: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

representações, cuja manutenção era garantia da estabilidade. Por outro lado, a

“civilização”, a que pretendiam - fixada através do uso dos símbolos importados -

deveria servir de marco ao próprio processo de construção do Estado a que se

entregavam, no sentido de distinguir os que o implementavam, da massa da população.

“Fundadores e consolidadores do Império do Brasil tinham os olhos na Europa e os pés na América – eis o segredo da trajetória de individuação [das elites], e que se revestia da forma de construção de um ‘Corpo Político’ soberano [...] olhos na Europa porque tinham como ideal erigir um Império soberano, à semelhança dos estados nacionais europeus [...] pugnaram por uma igualdade que tanto repelia a subordinação colonial quanto almejava o reconhecimento do Império ‘como Reino irmão e como Nação grande e poderosa’. Reclamaram um lugar na Civilização, por se considerarem também filhos da ilustração.”“Os pés na América porque [...] tornava-se necessário marcar a singularidade deste Reino americano, enfatizando que “a África civiliza” Afirmavam que no conjunto da civilização, constituíam uma cultura singular, como a própria Monarquia – ‘flor exótica na América’.” 133

Não só na objetividade da vida política, mas também nas expressões menos

materiais, como a vida cultural, do teatro à exploração dos meios impressos134,

consolidavam o sistema de representações, criando legitimidades, naturalizando as

estruturas que marcavam a dinâmica da vida social e política do Império. Uniam “[...] a

seus ideais e proposições os demais componentes da ‘boa sociedade’ e muitos homens

livres, proprietários unicamente de suas pessoas [...] indicando [...] os inimigos a

enfrentar, as forças que deveriam apoiar, os perigos que deveriam ser evitados [...]”135

Seja como for, os padrões transplantados de Coimbra incorporavam o liberalismo

ilustrado, originário das reformas pombalinas, que privilegiavam as visões de um Estado

unitário. Para aquelas elites o Estado significa a totalidade do território atendendo a um

governo central; eram avessas ao que pudesse sugerir o fracionamento territorial, do

ponto de vista político.136 Sincronicamente incorporavam os princípios do 133 MATTOS, op. cit., p. 119.134 BOBBIO, apud BORGES,op. cit., p.16; ver também MATTOS, op. cit. p. 173.135 MATTOS, op. cit., p. 173.136 NEVES. L.M.B.P. Liberalismo político no Brasil: idéias, representações e práticas. In: GUIMARÃES, L.M.P.& PRADO, M.L. (orgs.). O liberalismo no Brasil imperial; origens conceitos e prática. Rio de

45

Page 47: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Jusnaturalismo Ilustrado, o ordenamento social que cria os “chefes naturais” da

sociedade, encarregados da difusão das benesses da civilização para os setores

deseducados desta sociedade137. O papel da educação formal, contudo, por si só não

daria conta de explicar o papel de proeminência destas elites que permitiram a

Independência, forçaram a abdicação e conseguiram impor-se na direção política da

nação, no momento em que se construía institucionalmente o Estado brasileiro. A nosso

ver, a educação, tanto em seu caráter formal como informal está inserida em

mecanismos sociológicos, que sofisticam a leitura histórica.

Acreditamos que a educação permitiu àquelas elites sociais engendrar propostas

e encaminhamentos, talvez, muito menos políticos, do ponto de vista da construção

deliberada de uma estratégia de dominação, do que, a mera reiteração de

condicionamentos objetivando a sua sobrevivência, não meramente biológica, mas

também social. Tais medidas “condicionadas” dizem respeito aos limites dos sistemas

simbólicos predominantes então. Impossível desconsiderar, neste sentido, que os

sistemas simbólicos, enquanto construtores da realidade exercem um papel de

instrumentos de conhecimento, derivando daí um enquadramento da origem, natureza e

limites da cognição138. Vale dizer que, se o sujeito histórico não está engessado a uma

estrutura determinista, ele faz parte de um complexo social ao qual podemos atribuir

algum “[...] consensus acerca do sentido do mundo social que contribui

fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração ‘lógica’ é a condição

da integração ‘moral’.”.139

São originários daquele consensus os substratos sociais do Império, de onde

procedem os jovens encarregados da própria reiteração social, presumida no processo

Janeiro REVAN: UERJ, 2001, p. 77; Também Cf. CARVALHO, 2003, op. cit. pp. 80-81.137 Reflexões sobre o Jusnaturalismo no pensamento político do período em CHIARAMONTE, op. cit., passim; Referências às “chefias naturais” em INHAUMA apud FRAGOSO, Augusto Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai. Vol. III. Rio de Janeiro: Imprensa do EME, 1934, p. 159; MENDONÇA. S.R de. Estado e sociedade, a consolidação da república oligárquica. In: LINHARES, op. cit. p. 317. O papel civilizador das elites que controlam o Estado: DOHLNIKOFF, op. cit. p. 46.138 Cf. o termo “gnesiológico” em BOURDIEU, op. cit, p. 9; GNESIOLÓGICO. In: HOUAISS A. e VILLAR, M. de S.Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1ª reimp. com alt. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.139 BOURDIEU, op. cit., p.10.

46

Page 48: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

educacional. Necessariamente, aqueles sistemas simbólicos, modelos mentais

interiorizados, regiam suas expectativas pessoais, projetadas sobre os laços inter-pesoais.

Influíam sobre seus posicionamentos em assuntos pessoais e coletivos, com reflexos nas

relações intra e intergrupos sociais. Em nossa análise, estas relações constituem uma

aproximação legítima com o que Roger Chartier admite serem “[...] esquemas geradores

das classificações e das percepções, próprios de cada grupo ou meio, como verdadeiras

instituições sociais, incorporando sob a forma de categorias mentais e de representações

coletivas as demarcações da própria organização social.”140 Não pretendemos uma

análise, contudo, que se aproxima de uma “naturalização” das estruturas sociais do

Império senão, pretendemos admitir um arcabouço sócio-cultural, do qual emerge o

mundo político do Império, a partir dos quais se possam efetuar análises

circunstanciadas, que permitam compreender que...

“[...] os ideais liberais não surgem como um programa modernizador do conjunto das forças sociais: eram veiculados por uma minoria ilustrada e culta [...] reservava para si a missão paternalista de modernizar e reformar o arcabouço político e administrativo do país, sem comprometer a continuidade social e econômica da sociedade colonial.”141

Os domínios do mundo político imperial, entendido como a ocupação dos postos

mais importantes da burocracia, estão reservados às elites; homens provenientes de

diversos setores sociais, ou seus agregados, quer o sejam por laços de sangue, favor,

matrimônios ou alianças. Nestes espaços sociais, alimentavam um sentimento

“inteiramente aristocrático”, ao mesmo tempo em que incorporavam, ou, interiorizavam,

as próprias fronteiras sociais historicamente construídas, onde “não só as diversas raças

nunca se confundiam mas que muito pelo em vez disso, cada raça e cada uma das classes

nunca deixavam de mais ou menos manter e de conhecer o seu lugar.”142 Era este um

“sistema”, nos moldes de Chartier, ou “o sentido imediato de mundo” de Bourdieu.143

Não constituía um projeto intentado e implantado pelos homens da década de 1830.

Significava, na verdade, a cristalização dos processos de reiteração, de reprodução

140 CHARTIER, op. cit., p.18.141 DIAS, M.O.da S. apud DOHLNIKOFF, op. cit., p. 27.142 RESENDE, F.de Paula F. apud MATTOS, op. cit., p. 106.143 BOURDIER, op. cit., p.9.

47

Page 49: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

histórica da sociedade, por onde passavam os fenômenos ligados à cognição, à educação,

como vínhamos salientando.

Neste sentido, a importância da educação está ligada à capacidade de apreensão

da realidade, principalmente o complexo de relações sociais. Há um papel sócio-

biológico do processo educacional, que se relaciona com as próprias estratégias de

sobrevivência das sociedades, ou dos grupos. A importância da ênfase nestes complexos

processos cognitivos remetem-nos à atualidade dos estudos paleoantropológicos e

neurobiológicos, segundo os quais pode-se definir que a “[...] função central do cérebro

é construir um modelo de realidade que permita ao animal existir neste mundo, nele

funcionando e sendo bem sucedido.”144

“Qualquer dono de cachorro sabe que existe um mundo olfativo aberto ao ser canino, mas não ao humano. [...] O mundo dentro da cabeça [...] é, pois, formado pela natureza qualitativa do fluxo de informação do mundo exterior para o mundo interior, e pela capacidade que tiver o mundo interior de processar a informação. Há uma diferença entre o mundo real “lá fora” e aquele percebido na mente, “aqui dentro.”145

A educação, ou a sua falta, insere-se no complexo social, portanto, como

instrumento de reprodução da realidade social. Para tanto, no caso dos humanos, a

complexidade das interações sociais leva à exigência de uma “infância protraída”, que

consuma tempo na aprendizagem, no desenvolvimento dos mecanismos de cognição e,

portanto dos mecanismos sociais146. No caso das camadas sociais superiores, a educação

habilita, instrumentaliza para enfrentar as eventuais emergências, ou, convulsões em que

sua sobrevivência enquanto grupo pudesse estar ameaçada por mudanças.

“[...] a consciência [além da cognição e da emoção, que formam a base da psique humana] é aquilo que permite ao homem dar-se conta do que ele sabe, bem como tentar prever o futuro, o que inclui o conhecimento da sua mortalidade: com a consciência, a vida percebe-se a si mesma no mundo, domesticando simbolicamente o tempo e o espaço. A consciência provê o ‘olho interior’ que possibilita a auto-análise e em seguida a aplicação do que nela se aprenda, estendendo os seus

144 CARDOSO, op. cit., p. 59, grifo do autor.145 LEAKEY apud idem, pp. 62-63.146 Ibidem, p. 61.

48

Page 50: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

resultados ao esforço de inteligência e previsão das motivações de outrem – esforço este que informa os antagonismos as alianças as defesas, as manipulações, no complexo jogo social humano.”147

O fenômeno da busca pela prevalência social está ligado às características que

nos arriscamos a admitir como arquetípicas148, relacionadas mesmo à condição humana

pré-consciente. É verificável em outros contextos sociais e políticos, e acreditamos que

não “[...] pode ser visto nem descartado como uma tentativa obscurantista de defesa dos

privilégios das classes possuidoras contra os miseráveis.”.149 No processo de

emancipação política das treze colônias, aquelas populações que conquistavam a

autonomia exprimiam clivagens que emprestam alguma similaridade com o processo

brasileiro150: “[...] o autodomínio assim alcançado restringia-se aos homens – os homens

brancos – e, entre estes aos donos de propriedades, fazendeiros, negociantes, ou aos que

estavam pelo menos respeitavelmente empregados.”151

A qualidade da educação, pensada como instrumento para controle dos

mecanismos de reprodução social, permite às elites tirarem vantagens das crises, ou,

conduzindo-as às conclusões mais satisfatórias àquela própria reprodução. Por sua vez, a

falta de educação, formal e informal, por certo é um instrumento de manutenção das

estruturas sociais, por não ser capaz de oferecer uma alternativa ao status quo. No caso

específico do Império, no recorte em que colocamos nossa análise, à falta de educação

se estabelece o espaço da “[...] massa enorme de homens ferozes, sem moral, sem

religião e sem instrução alguma, eivados de todos os vícios da barbaridade [...]”152,

conforme denunciava o ministro da Justiça Paulino José Soares de Souza. Estas camadas

deseducadas são aqueles, portando, destinados a serem civilizados pela ação política do

147 Ibid., pp. 61-62.148 Não nos referimos meramente à carga simbólica do conceito formulado por Jung, mas também ao que o próprio psicólogo ligou com processos de “[...]desenvolvimento biológico [...] da mente do homem [...]” e que compreendem inclusive as noções de organização social. (JUNG, Carl G. Chegando ao inconsciente. In: JUNG, C.G. (org) O homem e seus símbolos. Trad. Maria L. Pinho. 19ª imp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d., pp. 67-69). 149 PEIXOTO, op. cit. p. 25.150 A questão está esboçada também em CARVALHO, op. cit. 2003, p. 28.151 MEE, Jr. Charles L. A história da Constituição americana: o gênio do povo. Trad. Octávio A. Velho. Rio de Janeiro: Expressão e cultura, 1993, p. 9.152 Apud MATTOS, op cit., p. 105.

49

Page 51: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“elemento dirigente”153 do povo, ou seja, suas elites. Colocado de outra maneira, da

manutenção das estruturas sociais participam, também, as camadas sociais subalternas,

receptores do poder simbólico, que é um poder em “[...] forma transformada, quer dizer,

irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras formas de poder [...] ignorado

como arbitrário [...] capaz de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia,

[...] construindo o dado pela enunciação[...]”154.

“A noção de ‘representação coletiva’ [incorpora] os esquemas interiorizados, as categorias incorporadas, que as gerem e estruturam. Aquela noção [a de representação coletiva] obriga igualmente a remeter a modelação destes esquemas e categorias, não para processos psicológicos, sejam eles singulares ou partilhados, mas para as próprias divisões do mundo social.155

1.4– Elites e o processo de acomodação intra-estrutural.

No processo de acomodação e consolidação do controle dos mecanismos estatais

que se estabeleceram no período pós-abdicação, o Estado tornou-se a referência para um

projeto de unidade nacional. Pela ação da burocracia nacionalizada, extraída das

clausuras dos espaços políticos provinciais, tomou corpo a idéia do Estado monárquico

como instrumento do desenvolvimento da nação156. De acordo com as experiências do

Primeiro Reinado, o Estado deveria contemplar mais do que a solução dos entraves que

obstavam a expansão econômica. Neste sentido, os liberais paulistas157 puderam “[...]

articular em um projeto político coerente os anseios compartilhados pela maior parte dos

grupos provinciais [...]”,158 reforçando o caráter federativo do seu projeto político,159

embora sem cogitar a troca do sistema monárquico.

Embora seja francesa a matriz das idéias de liberdade, de onde deriva a idéia do

federalismo que seduzia os liberais da década de 1830160, verifica-se a adoção do modelo

153 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 23.154 BOURDIEU, op. cit., pp. 14-15.155 CHARTIER, op cit., p. 19.156 ALMEIDA, op. cit. p. 48.157 Sobre as elites terratenentes de São Paulo, ver MATTOS, op. cit. pp. 45-47.158 DOHLNIKOFF, op. cit., p. 28.159 Lúcia Guimarães defende, algo contrariamente, que “[...]os grupos mais radicais postulavam a instituição de uma “monarquia federativa’[...]”(2001, p. 119). 160 OLIVEIRA LIMA, op. cit. p. 171

50

Page 52: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

federalista norte-americano para aplicação no arranjo institucional que se desenhava. No

modelo norte-americano, contudo, podemos admitir que o recurso ao termo federalismo,

como entendido em 1830 pelas classes políticas estadunidenses, tinha um apelo muito

mais simbólico do que de fato indicativo de um arranjo concretamente federalista. A

constatação é possível a partir da comparação dos Artigos da Confederação com o

arranjo que efetivamente brotou da Convenção da Filadélfia. Aquele documento que, em

certo sentido, precedera à Constituição norte-americana,161 fora redigido por um

conjunto de delegados, um para cada uma das treze colônias que se rebelavam contra a

Inglaterra, no qual se consideravam “[...] estados soberanos independentes [...]”162:

“O que provavelmente foi uma trapaça mais baixa foi o fato de os defensores da constituição passarem a chamar-se de federalistas. Na verdade, “federalistas” eram pessoas que acreditavam na forma federativa de governo prevista pelos Artigos da Confederação. Partidários da constituição, que acreditavam em um forte governo nacional, deviam honestamente chamar-se a si mesmos de nacionalistas. Mas o qualificativo federalista possuía uma tradição longa e conhecida, e os americanos gostavam dele; por isso, as forças pró-constituição ocultaram-se atrás da palavra, insistindo em que queriam demonstrar que favoreciam um governo federal vigoroso e eficiente; e os verdadeiros federalistas viram-se reduzidos a chamar-se a si próprios de antifederalistas.163

Os liberais de 1831, apesar de influenciados pelo modelo do federalismo norte-

americano,164 cuidadosamente, tiveram, também, que proceder a alguns ajustamentos no

padrão que lhes serviu de guia.165 A rigor, “[...] foi na prática política que se

estabeleceram os limites e as possibilidades do credo liberal [...]”166, portanto, para evitar

maiores abalos causados por radicalismos e exacerbação das exigências populares,

procedeu-se a uma atenuação dos discursos, como dizíamos acima. A idéia de república,

precisou ser descartada, em benefício da estrutura monárquica, símbolo máximo da

161 MEE, op. cit. p. 243.162 Idem, p. 21.163 Ibidem, p. 243.164 SOUZA, Paulino José Soares de. “Ensaio sobre o Direito Administrativo”. José Murilo da Carvalho (org), Visconde do Uruguai. São Paulo: 34, 2002, pp. 496-500.165 Faoro chama estes políticos de “moderados” (2001, p. 344), num primeiro momento, e depois afirma terem os liberais transformado a si próprios em conservadores, como meio de restringir a anarquia (2001, p. 345). Para os objetivos de nosso trabalho, até o momento das definições do movimento regressista, aproveitaremos a posição de Dohlnikoff, considerando-os liberais.166 GUIMARÃES. In: GIMARÃES & PRADO, op. cit., p. 107.

51

Page 53: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

estabilidade social a que almejavam suas elites. Também a democracia, conforme

preconizada pelo ideário dos founding fathers, precisava, de acordo com o espírito de

contenção da “anarquia”, ser adequada, de maneira que abrigasse apenas as “oligarquias

dominantes”.167 Diante do espaço vacante de poder deixado pelo imperador, foi

necessário o esforço das elites políticas em combater o “clima de permissividade,

inquietude e incerteza”,168 criado pela abertura dos espaços de manifestação política às

camadas mais baixas da nação, durante o processo de oposição a dom Pedro I.

Seja como for, identificamos na escolha de um modelo federalista, a

continuidade do modelo de atração das elites provinciais, de maneira a preservar a

unidade, ao mesmo tempo em que existiu um alargamento da experiência de

incorporação destas elites complexo político nacional; alargamento em relação ao que se

verificara no período anterior à Regência. A construção institucional que iniciava a ser

implementada deveria permitir, como mecanismo de manutenção da unidade entre as

províncias, a composição expandida entre a liberdade provincial, ao mesmo tempo em

que se alargavam os espaços das elites provinciais no governo central.169 Ainda antes da

coroação de D. Pedro I, Gonçalves Ledo denunciava a necessidade de coesão entre as

províncias, defendendo, de acordo com seus ideais liberais, que a união poderia ser

obtida, se é que fosse possível, se uma Constituição liberal lhes garantisse um espaço de

participação.170 A Regência, portanto, parecia ser o momento propício para implementar

um plano que contemplasse a unidade. A principal diferença com o momento da

independência era que as propostas e encaminhamentos para a condução das políticas de

Estado partiam das próprias elites políticas nacionais. O publicista Evaristo da Veiga,

que como Bernardo Pereira de Vasconcelos, estava preocupado em refrear o “carro

revolucionário” que destituíra o imperador, defendia nas páginas de a Aurora

Fluminense, em 12 de março de 1832: “Faça-se a federação, mas conserve-se o Brasil

unido e não se afrouxem demasiadamente os traços que prendem a esta união.”171

167Aproximam-se as análises de Faoro (pp. 345, 389) e Dohlnikoff (p. 27).168 GUIMARÃES, op. cit., p. 109.169 DOHLNIKOFF, op. cit., p. 27.170 FAORO, op. cit., p. 324.171 Apud, GUIMARÃES, op. cit, p. 119.

52

Page 54: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

É absolutamente necessário, contudo, que não se exagere a importância do papel

do “federalismo” no arranjo institucional pós-abdicação, sob pena de se mascarar a

preocupação imanente com a manutenção das estruturas sociais, e da própria hierarquia

política do arranjo entre as esferas provincial e central. Nas províncias, a implantação de

um modelo federativo não tinha o caráter de uma cruzada dogmática baseada no

liberalismo, pensado como manifestação pura das suas formulações teóricas clássicas.

Não poderia ser o caso por estar necessariamente conectado às expressões e

manifestações políticas prevalentes na sociedade escravista e hierarquizada.

Liberalismo, federalismo não poderiam significar “democracia”. Limitou-se, na verdade,

às demandas regionais por autonomia em relação à ingerência do governo central nos

assuntos provinciais, segundo a lógica da manutenção das hierarquias sociais.

Por sua vez, na esfera do governo central, o “federalismo” não poderia obstar o

controle político do país, a partir da centralidade da Corte; o Estado brasileiro não se

destinava a ser manipulado pelos interesses provinciais. Não pode restar dúvida: “A

Soberania – se de soberania se trata – será a nacional, que pressupõe um complexo de

grupos e tradições, de comunidades e de continuidade histórica, e não popular [...]”.172

Do Rio de Janeiro o Estado brasileiro deveria se irradiar e impor ao conjunto do

território. Neste sentido, as articulações que se seguiram ao sete de abril redundaram no

Ato Adicional, aprovado como foi em 1834; constituiu-se na reforma constitucional

possível. Embora requerida pelo arranjo federativo, conforme proposto pelos liberais

paulistas, significou uma acomodação com setores políticos mais tendentes ao

conservadorismo, principalmente reunidos no Senado.

Para uma perfeita apreciação do caráter dos objetivos das elites que conduziram

aquele processo reformista, é bom considerar que ele transcorreu de acordo com os

preceitos constitucionais de 1824173. Um processo transcorrido dentro da ordem legal, e

que se repetiu por todo o período imperial. Ordem desenvolvida para garantir a

estabilidade necessária para preservar os seus autores. Por outro lado, lembramos que o

eventual estabelecimento de um modelo, ou, pelo menos, de padrões de condução do

172 FAORO, op. cit., p. 321.173 DOHLNIKOFF, op. cit. pp. 55-ss.

53

Page 55: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Estado, não anula a existência do conflito objetivamente estabelecido por projetos

divergentes. Conflitos que, para todos os efeitos, resolveram-se no campo político.

Acreditamos que nossa análise não sugere algum processo naturalizado de

tomada de poder. No seio das elites que se transmutavam em elites políticas nacionais as

disputas permearam os incertos passos da sociedade política imperial, na senda de

dominar os meios de controle do Estado. De fato, no início da Regência, a vitória liberal

significou a derrota de dois outros projetos de Estado.174 O projeto reformista liberal

sepultou o centralismo Bragança, excludente das elites provinciais, e ao mesmo tempo, o

projeto europeu ilustrado, centrado nas propostas de José Bonifácio.175 Este último

projeto de modelo de Estado incluía reformas significativas em questões como o

fortalecimento da cidadania e inclusão dos cidadãos no esforço de erguimento da nação,

como o sistema de posse de terras, fim da escravidão, papel do Estado,

Seja como for, a Constituição reformada, era a fundadora e legitimadora da

autoridade176 deveria promover a liberdade que, conforme o exposto pelo marquês de

São Vicente, acima, se identificava com a propriedade. Esta é a orientação e o princípio

da estabilidade177 do modelo político aristocrático-rural do Império. Às classes pobres

não poderia caber outro papel que não o de objeto sobre o qual se aplica a vocação

paternalista das elites que se habilitavam a exercer o papel de “civilizadores” do país.178

É, portanto, coerente constatar que do conjunto de reformas, a mais importante foi a

criação das Assembléias Legislativas Provinciais, dotadas “[...] da devida competência

para legislar sobre uma série de itens, incluindo tanto a criação de impostos como a

distribuição das rendas arrecadadas.”179

Portanto, a legitimação constitucional do arranjo entre autonomia provincial e

preservação das prerrogativas do Estado deixava livre às elites provinciais o espaço

destinado ao desenvolvimento dos seus mecanismos de reprodução social que, para 174 Idem, p. 77.175 Veja-se sobre este particular OLIVEIRA LIMA, op. cit. p. 62.176 FAORO, op cit., p. 321.177 Idem, p. 321.178 DOHLNIKOFF, op. cit., p. 72.179 Idem, p. 65.

54

Page 56: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

acontecer, pressupunha a apropriação “[...] de parte substantiva da riqueza social em

detrimento do restante da sociedade [...]”180. Esta constatação é corroborada pelo fato de

terem sido as rendas provinciais, legitimamente arrecadadas após o Ato Adicional,

aplicadas primordialmente em obras ligadas aos transportes, como estradas e pontes. Ora

estes serviços, se prestavam em alguma medida aos interesses da circulação e mercado

interno, interessavam diretamente aos envolvidos com os complexos de produção e

escoamento das produções rurais voltadas à exportação.181 Como se vê, neste sentido o

Ato Adicional representou uma sofisticação dos mecanismos de defesa dos interesses

das elites, contribuindo poderosamente para a manutenção dos seus mecanismos de

perpetuação.

Como dizíamos, contudo, as necessidades de consolidação da unidade política

nacional, como a entendiam “[...] a maioria que a si avocou representá-la [a nação] e a

agir no seu nome [...]”182 visava a diminuir os riscos do separatismo. Ao mesmo tempo,

permitiram aproveitar a autonomia provincial para o aumento da eficiência

administrativa, pois uma vez incorporadas ao projeto nacional, as elites provinciais

transformaram-se em agentes do governo central, ocupando as brechas da presença

estatal deixadas pela extensão do território, pela baixa densidade demográfica e dinheiro

escasso183. A incorporação destas elites provinciais no nível nacional, por sua vez, após

as restrições e oposição sofridas pela Câmara dos Deputados durante o Primeiro

Reinado, permitiu estabelecer a “[...] preponderância política da Câmara eleita [que]

adquiriu por fim força bastante para impor suas tendências conservadoras [...]”184, no

entender de Oliveira Lima. Entendemos, contudo, que naqueles embates do início da

década de 1830, aqueles homens não eram “conservadores”; compunham, na verdade,

alguns dos setores nos quais se dividiam os estratos superiores da sociedade imperial, às

voltas com a tarefa de dar encaminhamento às questões do Estado. Acreditamos que nas

disputas políticas estabelecidas ao redor dos seus projetos de conformação institucional,

180 FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit., p. 66.181 DOHLNIKOFF, op. cit., pp. 171-ss.182 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 2.183 MATTOS, op. cit. pp. 191-196.184 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 63.

55

Page 57: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

este Estado - no, e pelo qual trabalhavam - em muitos momentos, na verdade, parecia

periclitar.

Não obstante, o Parlamento manifestava o caráter federativo do arranjo

institucional, no sentido da existência negociada de uma dupla esfera de poder, que

permite articulações entre as elites políticas provinciais e o governo central, na verdade

preservando os respectivos espaços de poder:

Os objetos provinciais acham-se cautelosamente descritos e extremados para se evitarem, destarte, os conflitos e as lutas intermináveis, que tão fatais podem ser aos interesses dos povos, comprometendo a sua paz e segurança; a unidade e energia de ação, sem as quais o corpo social enlanguesce e definha, são conservados no governo geral para poder preencher com vantagens do Estado as variadas e difíceis obrigações a seu cargo; o princípio federal, amplamente desenvolvido, recebe apenas na sua aplicação aquelas modificações que são filhas do estudo e da experiência das nações mais cultas. [...] Releva, pois, senhor, que V.M. Imperial se digne de mandar promulgar esta lei de reforma, penhor da união das províncias, objeto dos votos e esperanças da nação a que preside, para que a sua execução faça sentir quanto antes todos os melhoramentos, e a par deles a prosperidade geral que promete e assegura.185

A teia de relacionamentos que rege a “[...] sociedade de prebenda e mercê, onde

no fundo trabalhar era feio [...]”186 nasce, localmente, nas províncias, quer seja através de

casamentos, concessão de empregos, cargos públicos ou assunção de cargos eletivos. A

cada um destes centros provinciais de socialização política, deveriam corresponder

outros tantos conjuntos de interesses, que, transpostos ao cenário nacional, não permitem

que se pense a vida política imperial de forma monolítica, auto-centrada e apolítica.

Desenha-se um entendimento sobre a política imperial que deve considerar a

inexistência de uma homogeneidade - uma “pasteurização” do pensamento político –

mas uma pulverização; de fato, o parcelamento das discussões. É perceptível a

necessidade de negociação para a condução da vida política da nação, explicitando a

185 Apresentação do Ato Adicional à Regência pela Câmara dos Deputados para sua promulgação, de 9 de agosto de 1834 apud DOHLNIKOFF, 2005, p. 81.186 CANDIDO, Antônio. Um funcionário da monarquia: ensaio sobre o segundo escalão. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2002, p. 13.

56

Page 58: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

existência do conflito entre administração do Estado e as exigências da política

propriamente dita, entre o nível provincial e o nacional187.

O contraditório das disputas políticas fornece o terreno movediço do mundo

político, o local onde identificamos a complexidade do “[...] ‘xadrez social’ [...] já que as

regras, derivadas de alianças e antagonismos mutáveis no tempo, se transformam ou até

mesmo se invertem, o mesmo se aplicando ao papel e à hierarquia das ‘peças’

intervenientes no jogo.”188 Neste sentido, já o malfadado “Golpe da Chácara da

Floresta”, em 1832, explicita a existência de antagonismos entre as bancadas

provinciais. O objetivo imediato do “golpe” era superar os impasses que restringiam a

aprovação da reforma constitucional, em função das suas estipulações originais. O

predomínio dos liberais paulistas era contestado pelos elementos menos alinhados com

os liberais, principalmente dos senadores, e no momento do “golpe”, pela intervenção

dos círculos reunidos em torno do político fluminense Honório Hermeto Carneiro Leão;

futuro Marquês de Paraná, e esteio político do vindouro Partido Conservador189. A

presença do confronto de interesses provinciais no interior da Assembléia Geral, durante

a década de 1830, permitiu que brotasse o predomínio de um feixe de alianças, uma

hegemonia, que regerá os principais movimentos e interesses que se imporão ao

conjunto político imperial. Admitimos que este conjunto de interesses se manifestará,

também, nas definições da política externa, quer seja em relação com o Hemisfério

Norte, quanto com o Prata.

Na lógica das convulsões regenciais, as dissensões no interior da Câmara dos

Deputados se agudizarão, permitindo que se estabeleça o movimento do Regresso; é a

partir deste movimento político que, sob comando dos políticos fluminenses, os

interesses reunidos em torno do principal porto do país se projetam sobre o Executivo.

Esta migração da hegemonia política provincial permitiu a busca de maneiras para se

aperfeiçoar o aumento das prerrogativas do governo central, visando efetivar o controle

sobre o todo político brasileiro. Este controle não poderia significar a destruição do

187 Idem, p. 131.188 CARDOSO, op. cit., p. 60.189 GUIMARÃES, op. cit. pp. 119-122.

57

Page 59: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

arranjo federativo, contudo. Desta maneira, a luta redobrada pela conservação das

estruturas será o norte daquelas elites no momento de confusão provocada pelas

rebeliões provinciais; momento em que o Estado como um todo parece à beira de

desmoronar diante dos movimentos separatistas.

Muito naturalmente estes setores políticos fluminenses passaram a ser

conhecidos por conservadores. Posto que a boa sociedade fluminense entendia a si

própria como oposta à barbárie do “sertão”, representante da civilização. Europeizada

pelos contatos comerciais propiciados pela sua condição litorânea, enxergava em si

mesma a personificação da nacionalidade. Buscou legitimar-se como centro da nação

que se construía190. Estender o domínio do projeto político daquela parcela da sociedade

política brasileira, sobre o conjunto da nação deverá passar, principalmente, pela

homogeneização na aplicação da Justiça. Este esforço em adequar o aparato legal ao seu

próprio projeto político deverá estender-se pelo menos até 1850, com o Código

Comercial e a Lei de Terras.

Em seu cerne, o Regresso apresenta a característica de contrapor os dois

principais blocos de poder provincial, que se relacionam entre si a partir dos parâmetros

que permitiram a instalação do “pacto monarquista” a “informal confederação”191. Neste

sentido, e a nosso ver, a disputa e eventual manifestação de hegemonia por parte das

elites políticas fluminenses correspondem a um processo de ajuste sincrônico entre o

principal eixo político do Império com o seu principal eixo econômico. A

preponderância política no cenário nacional, desempenhada pelos liberais de São Paulo

pelo menos até 1837, migrará progressivamente até entrar em foco com as elites

centradas no porto fluminense e sua consolidada condição de “centro”, herdada do

período colonial; condição reavivada e reforçada pela nova proeminência econômica

cafeeira.

A província paulista, conquanto viesse de aumentar a sua participação no

mercado exportador, concentrava sua produção em gêneros destinados para o

190 BASILE, op. cit. p. 208; MATTOS, op cit. pp. 32-33.191 Cf. nota 33.

58

Page 60: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

abastecimento. Objetivamente, se segue que em relação à principal área de produção

exportadora e comercial, os paulistas possuíam mecanismos de reprodução social menos

dinâmicos, do ponto de vista das articulações sociais próprias da sociedade imperial,

baseados nos mecanismos de relações e privilégios pessoais. Um dinamismo que tenderá

à subordinação em relação aos padrões impostos pela “boa sociedade” que se servia do

porto do Rio de Janeiro,192 imposto até mesmo pelo distanciamento geográfico dos

paulistas em relação ao centro dinâmico da economia imperial.

Outro fator marcante a determinar a alternância da hegemonia política entre as

duas províncias – sem pretendermos que o assunto se esgote - é sugerida pela presença

dos setores financiadores mais importantes, capazes de influenciar poderosamente os

meios políticos, potencializando o predomínio de seus interesses. Entendemos, por

exemplo, como evidência da preponderância dos interesses dos setores “capitalistas”

entre os deputados gerais, naquele momento, a aprovação da Lei regencial de 30 de

agosto de 1833, que anulou a impenhorabilidade de minas, engenhos e escravos, de

maneira que os detentores do escasso crédito pudessem ter seus interesses sobrepostos

aos proprietários rurais193. A sociedade imperial, baseada na conveniência dos favores,

nas alianças que habilitam às honrarias assim como aos ostracismos,194 colocaram os

políticos de São Paulo em posição subalterna em relação aos setores exportadores. A

“indústria” do litoral é o índice de diferenciação em relação com o “sertão”, o interior

inculto; “[...] a agricultura de gêneros para a exportação era a fonte de Civilização.”.195

1.5 – A consolidação dos princípios modelares do Estado imperial.

O desenvolvimento dos quadros institucionais dava-se, como vimos, a partir de

parcelas sociais muito estreitas. Neste arranjo, a proeminência da burocracia reforçava a

tendência a confundirem-se as camadas superiores da burocracia com a elite política

nacional.196 No Estado imperial brasileiro, naquele momento, o modelo constitucional

considerava que a possibilidade de participação política estava atrelada à renda.

192 FLORENTINO & FRAGOSO, op. cit. pp 153-155. 193 MATTOS, op. cit. pp. 80-81.194 CÂNDIDO, op. cit. p. 30. 195 MATTOS, op. cit., p. 33.196 CARVALHO, op. cit. 2003, p. 28.

59

Page 61: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Portanto, o afunilamento dos quadros sociais propiciado pelo voto censitário, resultava

em uma quase coincidência entre o quadro institucional e os quadros de pessoal197. A

burocracia imperial, advinda dos processos que vimos de expor, demarcava, cada vez

mais acentuadamente, seu espaço de trabalho “[...] essencialmente no Estado, pelo

Estado e para o Estado.”198 Circulavam aqueles homens pelos diversos níveis da

burocracia, do provincial ao nacional199, num círculo limitado que permitiu aos coevos

denunciarem que o Estado precedia a nação,200 indicando a aparente perpetuidade com

que os mesmos personagens se revezavam nas diferentes posições da burocracia.

A consolidação da hegemonia fluminense, entretanto, não significou um domínio

do Estado por facções provinciais, no sentido de permitir que os interesses locais dos

grandes fazendeiros ou comissários de café determinassem a condução dos assuntos de

Estado. O espaço do governo imperial, embora em alguma medida determinado pelas

desigualdades e rivalidades regionais201, não se confundia com os limites políticos

provinciais. Esta confusão não se verificou nem mesmo no caso fluminense, província

onde conviviam as elites políticas provinciais, no âmbito da Assembléia Provincial e

suas parcelas transmutadas em elites políticas nacionais,202 que ocupavam os espaços da

Assembléia Geral e os cargos do Executivo. Da mesma maneira, estabelecidas e

delimitadas pelo Ato Adicional,203 as instâncias Legislativas provinciais não se

confundiam com os poderes locais. De maneira a resguardar a hierarquia entre as esferas

do poder estatal,204 a sociedade política imperial cuidava para que a autonomia

provincial não degenerasse para um municipalismo205; um localismo, que permitisse ao

poder e a liderança dos grandes fazendeiros ganhar relevo.

197 CERVO & BUENO, op. cit., p. 67; Também em CALDEIRA, op. cit., pp. 194-195.198 ALMEIDA, op. cit., p. 48 grifos do autor.199 CARVALHO, op. cit. 2003, p. 121.200 CERVO e BUENO, op. cit. p. 67.201 CARVALHO, 2003, op. cit. p. 121.202 Pode-se ver a respeito do fenômeno, no conflito entre o presidente da província, Tolentino, e a Câmara provincial fluminense, no capítulo 6 da obra de Antônio Cândido, op. cit. pp. 77-ss. 203 Lei de 12 de agosto de 1834.204 SOUZA, Paulino, op. cit. p. 497.205 FAORO, op. cit. p. 354.

60

Page 62: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Com esta preocupação em vista, os poderes provinciais na verdade deveriam

“[...] empreender a ação disciplinadora do Estado. Caberia ao governo provincial

controlar o poder local, ensinando-lhes as maneiras e os padrões de comportamento

adequados ao jogo político no interior do Estado moderno.”206. Neste sentido, o sistema

consagrado pelas reformas de 1834 não colocou o Estado nas mãos dos grandes

fazendeiros, interesses particulares ou de grupos, que não expressassem um caráter

nacional.207 Pelo contrário, garantidos aos legislativos provinciais a participação nos

monopólios da legislação, tributação e coerção, as elites das diferentes províncias

aderiram ao projeto de Estado nacional208. Por seu turno, cuidavam as elites políticas

nacionais para que a autonomia provincial não descambasse para a soberania209.

A própria organização partidária que, a passo e passo, vai se desenhando, como

expressão da atuação destas elites inseridas no projeto de construção do Estado, se faz de

maneira a extrapolar as lealdades provinciais. Os cidadãos ativos participantes do

sistema partidário, de expressão verdadeiramente nacional, formam uma elite política

tendente à homogeneidade em torno de objetivos de caráter nacional.210 Desempenhar

um papel no plano nacional é o papel dos partidos que se vão conformando, centrados na

Corte; deveriam ser capazes de, ao mesmo tempo em que se espalharam pelas distâncias

do território, congregar-se enquanto entidades nacionais. A coerência da unidade ficava

por conta da “[...] estabilidade do comando [partidário, que] se irradia de chefes,

encastelados no Senado e no Conselho de Estado [...]”211 que, por sua vez, apontava para

a centralidade pretendida e instaurada a partir do Rio de Janeiro. A esse respeito, é

importante salientar que durante as turbulências regenciais, as discussões políticas em

torno das questões nacionais centraram-se principalmente no âmbito parlamentar. Neste

sentido consideramos que as grandes revoltas provinciais são expressão das disputas

206 DOHLNIKOFF, op. cit., p. 48.207 Idem, p. 78. Veja-se também: MATTOS, op. cit. pp. 85-86; FAORO, op. cit. p. 447.208 DOHLNIKOFF, 2005, p. 65.209 Cf. Bernardo Pereira de Vasconcelos, citado por Dohlnikoff, p. 67.210 FAORO, op. cit. pp 390-391.; ver também em DOHLNIKOFF, op. cit. p. 82.211 FAORO, 2001, pp. 391. Embora na transcrição o autor refira-se ao período após a consolidação das tendências do movimento regressista, ele revela bem o caráter da centralidade política exercida pelo Rio de Janeiro já prevalente no recorte abordado.

61

Page 63: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

políticas meramente intra-regionais, e não um problema verdadeiramente de

confrontação entre as esferas do poder provincial e central. 212

A Câmara dos Deputados, enquanto foro dos representantes das províncias no

nível nacional, transformou-se no palco principal das atividades de definição dos passos

do Estado brasileiro213.

“Fui liberal; então a liberdade era nova no país, estava nas aspirações de todos, mas não nas leis, não nas idéias práticas; o poder era tudo; fui liberal. Hoje [...] os princípios democráticos tudo ganharam e muito comprometeram; a sociedade, que então corria o risco pelo poder, corre o risco pela desorganização e pela anarquia [...] Não sou trânsfuga, não abandono a causa que defendi, no dia do seu perigo, de sua fraqueza: deixo-a no dia que tão seguro é o seu triunfo que até o excesso a compromete.”214

O discurso acima, proferido pelo deputado fluminense, regressista em 1838,

demonstra o temor dos representantes da elite quanto aos rumos do período regencial. O

conteúdo conservador que se estabelece, portanto, nos meios políticos imperiais,

conforme se sedimentam as exigências do Regresso, centraram-se nas demandas das

elites políticas fluminenses, organizadas no Partido Conservador. O conservadorismo,

enquanto formulação de teoria política não se confunde com reação, oferecendo uma

estrutura coerente de pensamento. Suas formulações admitem que a vida em sociedade

seja inerentemente conflituosa, e a política tem um caráter limitado enquanto

instrumento capaz de produzir modificações sociais, não podendo oferecer respostas

globais às contradições da sociedade. Segue-se que, em contraposição ao pensamento

liberal, o conservador não cria que fosse possível revolucionar uma sociedade,

transformá-la radicalmente através da ação política.215

212 Veja-se, por exemplo, a respeito da Farroupilha: FRAGOSO, A.T. A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: s.e. 1939. Ver também em DOHLNIKOFF, op. cit., passim.213 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 24.214 VASCONCELOS. Apud: BASILE op.cit., p. 237)215 PEIXOTO, op. cit. pp. 25-26. De acordo com o credo conservador, as sociedades são o resultado de longos processos formativos, exclusivos e específicos para cada sociedade; processos que, em verdade, as conformam; este processo de formação não é, portanto, um produto da razão. Suas histórias não podem ser submetidas a leis gerais. Para o pensamento conservador a história não é necessariamente movimento e transformação. Só o tempo pode produzir mudança. O choque de elementos irracionais, como as tradições, crenças e preconceitos, com um projeto político revolucionário, de transformação global, tenderia a quebrar a tradição, as estruturas fundadoras da sociedade, e o resultado seria a fragmentação destas

62

Page 64: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Com este fim de conservação, o projeto regressista alcançou o fortalecimento do

aparato institucional que orlava o governo central, num movimento complexo de

fortalecimento da ordem, a partir do robustecimento de uma centralidade política,

conforme dissemos, e não de centralização política propriamente dita. Embora seja uma

sugestão do próprio nome do movimento Regressista, salvo ajustes pontuais, o arranjo

da reforma de 1834 que garantiu a autonomia das províncias, não sofreu um ataque

fundamental, de maneira que o tivesse inviabilizado ou desmontado216. Os ajustes

costurados pelo Partido Conservador giraram todos em torno da definição do papel da

Coroa, transformando-a no símbolo reconhecível e propiciador daquela centralidade217.

Para amalgamar as diferentes tendências e demandas da sociedade brasileira, a

neutralidade da Coroa era a ferramenta simbólica primordial. Deveria aplainar as

paixões dos interesses individuais e coletivos em prol do bem nacional. Para tanto ela

estaria protegida politicamente pelos órgãos vitalícios, cujos integrantes eram por ela

escolhidos. Neste sentido, estes órgãos vitalícios, que por natureza constitucional

deveriam expressar o desarmamento em relação aos interesses partidários, aparecem em

força como redutos do conservadorismo político.218 È um fenômeno inevitável, dada a

estreiteza das bases sociais a que nos referíamos acima, e da homogeneidade social e de

treinamento a que estavam sujeitos os homens que compunham a burocracia imperial.

A importância do Conselho de Estado enquanto órgão de consolidação do projeto

político conservador/regressista conduzido pelos Saquaremas aparece na pressa219 com

que o Conselho é reinstituído, após sua extinção pelo Ato Adicional. A oposição liberal,

ou, o que sobra dela, naquele momento, estava convencida “[...] de que a oligarquia

renasceria do Conselho vitalício, centro da burocracia permanente, e limitada aos doze

membros ordinários e doze extraordinários.”.220 O Senado foi a outra instituição imperial

estruturas sociais.216 DOHLNIKOFF, op. cit. passim.217 Embora não dividam integralmente as mesmas premissas, suas análises se aproximam bastante: FAORO, op. cit. pp. 405-ss; MATTOS, op. cit. p. 168.218 FAORO, op. cit. p. 396219 Oliveira Lima, dirá a respeito da importância do Conselho para os regressistas: “[...] o seu restabelecimento foi o primeiro cuidado da reação conservadora.” (1989, p.25)220 FAORO, op. cit., p. 382.

63

Page 65: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

que com o Regresso se robustece no papel conservador de controle da nação, entendida

como o conjunto de interesses representados na Câmara. Tornou-se o “[...] centro de

gravidade política [...] ‘porque ele se acha mais perto de São Cristóvão do que a Câmara

dos Deputados.’”.221

O Senado, ainda poderia servir como ente regulador, domesticador, por

representar um dreno da experiência política construída dentro da Câmara dos

Deputados. Considerando que a Assembléia Legislativa era o foro da representação

provincial, o lugar onde se buscavam os interesses provinciais no contexto do conjunto

das províncias lá representadas, o prestígio político eventualmente nascido nas lides

camaristas facultaria ao deputado a possibilidade de concorrer a uma cadeira no Senado.

Se aquele prestígio atraísse a atenção imperial,222 resultava na transferência daquele

político, do plano da luta pelas demandas provinciais, para o plano da constituição da

centralidade conservadora. Desta maneira o Senado foi o lugar, arriscaríamos dizer, da

cooptação, da formação das eminências políticas endossadas pela escolha imperial.

Destas 181 eminências sairão a maioria dos nomes dos conselheiros e dos ministros “[...]

não obstante a doutrina oficial de que o Senado não faz política. Não faz, na verdade,

outra coisa senão política [...]”.223

Neste contexto político e cultural marcado pelo conservantismo se insere o

complexo econômico herdado do período colonial, as raízes sociais excludentes sobre as

quais se estabelecia o novo Império, “[...] oferecia aos moços ampla oportunidade para

não trabalharem e luxarem, sedentos apenas de empregos públicos.”.224

[...] aristocrática na sua função e nas suas raízes históricas, fecha-se na perpetuidade hereditária, ao eleger os filhos e genros, com o mínimo de concessão ao sangue novo [...] A nossa aristocracia é burocrática: não que se componha somente de funcionários públicos; mas essa classe forma a sua base, à qual adere, por aliança ou dependência, toda a camada superior da sociedade brasileira.”.225

221 GOES E VASCONCELOS apud idem, p. 383.222 Ibidem, p. 404.223 Ibid. p. 451.224 OLIVEIRA LIMA, op. cit., p.180.225 FAORO, op. cit., p. 445; ALENCAR, J. Cartas a Erasmo apud idem, p. 447; Esta análise se verticaliza em Carvalho, 2003, op cit passim.

64

Page 66: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Para os filhos de famílias não proprietárias, mas capazes de obter o bacharelado,

o casamento com herdeiras de terras e fortunas226 permitia o ingresso no mundo da elite

ilustrada. De qualquer maneira, no seio das famílias se emulava a Europa, consumia-se

produtos ingleses e imitava-se as maneiras francesas.227 As famílias se constituíam nas

formadoras dos padrões políticos, de onde provieram os maiores homens públicos do

Império: “[...] a educação européia incorporava teorias, mas estas se fundiam ao calor da

família e dos interesses ligados à terra do grupo inicial.”.228 Era ali que se abriam as

janelas para a alta burocracia ou que habilitavam à uma vaga no Parlamento.

A centralidade, conforme a concebemos, portanto, pode ser confundida com

proximidade, no sentido da comunalidade dos interesses políticos e econômicos

projetados sobre a corte, a partir das províncias. Deriva desta proximidade a aparente

simplicidade da estrutura política imperial; proximidade que tendia a tornar as esferas de

pressão que agiam sobre o governo bastante indistintas. “É razoável supor que as

decisões de política nacional eram tomadas pelas pessoas que ocupavam os cargos do

Executivo e do Legislativo, isto é, além do Imperador, os conselheiros de Estado, os

ministros, os senadores e os deputados”.229 Segundo Oliveira Lima, Joaquim Nabuco já

denunciava a homogeneidade da sociedade política brasileira;

“Os partidos, como os ministérios duravam ou deviam durar o tempo que duravam as idéias que os legitimavam. Os partidos seriam, portanto, todos de ocasião, liberais ou conservadores, de acordo com as circunstâncias e os interesses, não de acordo com os princípios de doutrina ou escola, ou com tradições históricas. A ausência de privilégios condenava os partidos a defenderem somente princípios de atualidade, idéias ondeantes às quais não podiam sobreviver.”.230

Aquelas estruturas econômicas imperiais, portanto, a partir das reformas liberais

pós-abdicação, aprofundavam os dilemas sociais das elites brasileiras na medida em que

se constituíam em camadas sociais que falavam “[...] no parlamento como se fossem

226 MATTOS, 1999, pp. 63, 177; ver também CARVALHO, 2002, op. cit. p. 14.227 ALMEIDA, op. cit. p.58.228 BESOUCHET. In: MAUÁ, op. cit., pp. 5-6.229 CARVALHO, 2003, p. 51.230 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 45.

65

Page 67: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ingleses [mas] a insistir na rede e na cadeirinha como meios de transporte [...]”; que se

desvanecia em ver Dom Pedro II “[...] falar, em Filadélfia, no aparelho inventado por

Graham Bell [mas] aspirava a não perder jamais os seus moleques de recado[...]”231. Era

a contradição entre a “civilização” e a coerção necessária ao funcionamento da agro-

exportação escravista; coerção exercida quer seja sob o ponto de vista do controle social,

quer seja sobre os domínios econômicos, um liberalismo condicionado e limitado pelo

escravismo. De qualquer maneira, ao redor de 1850, o arranjo conservador de controle

do Estado, que se consolida a partir do Regresso, se beneficia do fato de que, em função

da expansão dos ganhos com a exportação de café “[...] os tempos das urgências

econômicas e da instabilidade crônica do Estado haviam ficado para trás [...]”232.

As regiões cuja vida econômica e social não estavam ligadas diretamente à

riqueza da agro-exportação dependiam das redes de barganha que admitia o servilismo

ao governo em troca das benesses do emprego público, o que conferia poder e prestígio

locais. A lógica dos favores que aproximavam do poder. Nas áreas de economias ciliares

aos complexos exportadores, existia a necessidade da sua ligação a elas em função das

conveniências econômicas: “naturalmente os conservadores inspiravam maior confiança

ao sentimento de ordem da nação e parlamentarmente lhes seria mais fácil fazerem

vingar projetos adiantados sugeridos pelo espírito de progresso.”233. O “espírito de

progresso” a que alude Oliveira Lima relaciona-se com o próprio conceito de civilização

que ligavam à sua auto-imagem. A realização desta imagem se consuma na afirmação do

país sobre a natureza, o desbravamento da selva com a finalidade de substituí-la pelas

culturas úteis ao homem, de maneira a expandir a agricultura, o aproveitamento da terra,

o comércio exterior234.

A nosso ver é este o papel do sempre crescente complexo exportador cafeeiro.

Em 1832 ele respondia a 18% dos valores exportados, ficando atrás dos outros principais

produtos da pauta exportadora, o açúcar e o algodão. Apenas para indicar o grau de 231 COSTA E SILVA, Prefácio. In: ALMEIDA, op. cit., p. 17.232 CALDEIRA,op. cit., p. 195.233 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 45.234 CARDOSO, R. O derrubador brasileiro, de José Ferraz de Almeida. Nossa História. FBN, Rio de Janeiro, ano I, nº 8, junho de 2004, pp. 24-27; DUARTE, R.H. Um suíço acima de qualquer suspeita. Nossa História. FBN, Rio de Janeiro, ano I, nº 4, fevereiro de 2004, pp. 23-27.

66

Page 68: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

comprometimento das energias sociais que precisaram ser empregadas na produção

cafeeira, e não para salientar o poder dos cafeicultores, visto que em 1832 não se

poderiam supor os números futuros, damos os dados a seguir. Vinte anos após a Lei da

Regência, em 1852, o café terá alcançado 40% do total do valor das exportações,

embora, para tanto, as quantidades exportadas tiveram que ser quintuplicadas, devido à

queda dos preços no mercado internacional235. Estes dados são importantes no momento

em que nos debruçamos sobre o problema do estabelecimento dos principais interesses

na sociedade imperial;

O conceito de progresso que, como vimos, permeava o imaginário brasileiro de

meados do século XIX, não compreendia o conceito de desenvolvimento como a

aplicação de uma “[...] política orientada com vistas a maximizar o crescimento

econômico e a capacitação material do país no plano interno e externo.”236. Prevaleceu

nas decisões do Estado a concepção das elites sobre a ordem natural da estrutura

econômica internacional237, concepção que não prescindia de um controle estrito.

Procurava-se preservar a estrutura de juros altos, conseqüência da falta de capitais e, ao

mesmo tempo, causa dos lucros dos grupos financistas que, a rigor, através da

disponibilização de capitais para o financiamento das lavouras238 sustentavam o edifício

da economia imperial. Estava colocado todo o sistema econômico, quer o mercado

interno, quer o mercado externo, na dependência mais da autoridade que da eficácia239.

Vinte e seis anos de vida independente ainda não tinham sido suficientes para que o Parlamento cuidasse do assunto [a reforma do Código Comercial, levada a efeito em 1850, a partir de reuniões feitas em casa de Irineu Evangelista de Sousa, o futuro Visconde de Mauá]. Os hábitos e normas comerciais da época da Colônia sobreviviam intactos, com todos os seus problemas: não havia títulos com garantias legais, o que limitava o crédito à confiança pessoal dos emprestadores [...] cobrar dívidas era quase uma ficção [...] Como tudo isto estava

235 FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 30ª ed. São Paulo:Cia. Editora Nacional, 2001, pp. 113-114.236 ALMEIDA, op. cit., p. 63.237 ROCHA, A. Penalves, Economia política e política no período joanino. In: SZMRECSÁNYI, T. & LAPA, J.R. do Amaral (orgs) História econômica da Independência e do Império. 2ª ed. rev. São Paulo: Hucitec/ UNESP/ Imprensa Oficial, 2002, p. 27; CERVO & BUENO, op. cit. pp. 34-ss.238 No caso da lavoura cafeeira os produtores teriam que esperar, até a primeira safra, pelo menos quatro anos.239 SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1981, p. 15.

67

Page 69: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ligado à organização mercantilista do tráfico, que privilegiava o poder pessoal dos donos do dinheiro, as tentativas de modernizar o sistema sempre esbarravam no desinteresse. Um projeto de código circulava havia quinze anos no Parlamento, sem que se chegasse a qualquer conclusão efetiva.240

Esta dependência da autoridade, e a manipulação do sistema simbólico, conforme

vimos salientando, tenderá a aprofundar a repartição da sociedade imperial entre

dirigentes e dirigidos241, a “antinomia”242 entre o Estado e a sociedade. A causa desta

polarização é a falta de uma categoria rica e vigorosa entre os dois; resta aos últimos

experimentarem a coerção nos dias de eleição ou na cobrança de impostos, ao passo que

os agricultores sujeitam-se aos financistas, fornecedores de escravos e propiciadores da

safra. Resta, sobranceiro, no complexo, apenas o Estado, privilegiando a burocracia.243

Será fácil perceber a partir da estrutura social do Império, e, dada a conjunção de fatores

como educação, posição social, características do corpo burocrático, interesses

econômicos, que a ação do Estado estará marcada pelo esforço de conservação daquelas

estruturas sociais, garantidas pelo modelo econômico agro-exportador e escravista. O

governo imperial admitia que o “[...] comércio é o primeiro elemento das relações

internacionais, e para nós quase a base exclusiva em que elas assentam atualmente.”244

Nesta estrutura o liberalismo adquire feições próprias, e admite que “[...] uma política

inteligente de industrialização seria impraticável num país dirigido por uma classe de

grandes senhores agrícolas escravistas [...]”245.

É a partir deste entendimento do Estado e sociedade imperiais que procuramos

abordar o lugar que ocupam as relações do Império com o Estado Oriental. A economia

fortemente voltada para os mercados consumidores dos seus produtos agrícolas, faz do

Prata, o fornecedor do charque, “[...] alimentação diária e quase exclusiva de famílias

inteiras, da escravatura de nossas Fazendas (sic) pelo que pode ser considerado como a

matéria prima para a nossa única produção que é a da lavoura, e que já luta com tantas

240 CALDEIRA, op. cit., p. 198.241 MATTOS, op. cit. p. 175.242 FAORO, op. cit., p. 446. 243 Idem,idem.244 Relatório do ministro de Estrangeiros de 1859. Apud CERVO & BUENO, op. cit., p. 76.245 FURTADO, op. cit. p. 107.

68

Page 70: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

dificuldades.”246 Produto primário, para a manutenção de uma estrutura que, à época, já

era percebida e reconhecida como retrógrada, quer por brasileiros quer pelos vizinhos,

como registrado pelo ministro plenipotenciário do Estado Oriental junto à Corte:

[...] só se buscam as forças do homem animal, e as forças do homem animal se desperdiçam ou se reduzem pelas tradições industriais atrasadas e pela falta de educação e de hábitos profissionaisNão há ainda ali nem aqui, a consciência da importância real e do progresso das ciências físicas, químicas e mecânicas.Não sabemos nem seriamente cuidamos de saber pela aplicação prática, como se supre a extensão e a força produtiva da terra, como se aumenta o valor da produção, como se centuplicam as forças animais do homem.As necessidades de braços e de capitais não se satisfaz [...] senão com o auxílio do tempo e dos sucessos.E não nos faltam só braços: falta em meu país, como também no Brasil, uma verdadeira revolução social e industrial [...]As ciências centuplicariam as forças animais de que dispomos, e as que com tão natural lentidão, ou com tão crescidos sacrifícios, adquirimos ou nos propomos adquirir; e centuplicá-las por esse meio seria um dos mais seguros elementos para a solução do grande desideratum atual destas novas nacionalidades, criarem o gosto e os hábitos da produção industrial, produzir muito, logo, bem e barato.Porém essa revolução benéfica, a colonização científica, será lenta, como todas as mudanças profundamente sociais.247

O edifício Imperial, construído sobre tradições econômicas tão frágeis,

como a exploração extensiva dos produtos primários através da mão-de-obra escrava;

sobre experiências políticas tão limitadoras, tendentes a estreitar a busca por alternativas

para seus problemas, do mesmo modo que estreitava a participação das camadas sociais

habilitadas para o exercício da vida política, admitiria que tipo de interação com o seu

vizinho do Prata? Se o Estado imperial carece da independência derivada da posse de

domínio técnico, se não havia a possibilidade da aplicação de excedentes de capitais em

outras atividades produtivas, o caminho possível à realidade do século XIX, haveria de

restringir-se ao comércio externo248.

246 BRASIL. Parecer do Conselho de Estado, de 6 de dezembro de 1860. In: VASCONCELLOS, op. cit., Vol I, p. 379. 247 BRASIL – URUGUAI. Exposição do ministro d. Andrés Lamas registrada no protocolo de 15 de julho de 1857. In: VASCONCELLOS, op. cit. pp. 241-242. 248 FURTADO, op. cit. p. 110.

69

Page 71: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Ao Império a necessidade de estimular o comércio, que permitia o escoamento

das suas produções, e a aquisição da “matéria prima”249 da sua principal indústria, lhe

imporia que tipo de atitude para com a antiga Cisplatina? A política externa brasileira,

de maneira geral movia-se com pragmatismo, sem obedecer a um projeto consciente de

caráter nacional; condicionava-se pela sua posição naturalizada como produtor primário,

ou em função das “[...] necessidades e requisitos do ‘progresso’ da nação [...]”,

conforme identificado pelos agentes do Estado. Certamente, partindo-se dessas

premissas, o Império pode ter desenvolvido, não uma relação desinteressada, mas muito

menos maligna do que propalavam seus adversários coevos, e como ainda persistem em

algumas tradições historiográficas.

249 Cf. nota 207.

70

Page 72: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

2 – ELITES / ESTADO -

POLÍTICA DOMÉSTICA, MOLDE DE COERÇÃO E

POLÍTICA EXTERNA.

2.1 – Instituições e comércio exterior

Considerando-se que a política externa é uma manifestação institucional, do

Estado, e que este não subsiste de maneira abstrata, como dado preexistente à sociedade

e modelador dela e de si mesmo, sua capacidade de promover quaisquer interesses está

justamente atrelado aos fins, à orientação que lhe confere o complexo social que o

domina. Uma avaliação sobre o sucesso de suas políticas está atrelada à identificação e

compreensão dos objetivos daquelas mesmas camadas sociais que se encarregam da

implementação das políticas estatais250. No caso de uma sociedade com as características

da imperial, marcada a nosso ver, menos pela hierarquização do que pela estreiteza das

camadas que detinham o poder de fato, resulta a confusão do corpo político com o corpo

burocrático251. Portanto, os interesses estatais deveriam responder também a objetivos

bastante delimitados: os objetivos que compunham os interesses da “parte mais

importante da nacionalidade”. Estes interesses, conforme revela o movimento do

regresso, bem como os seus efeitos, estavam centrados no complexo cafeeiro da

província do Rio de Janeiro252.

250 Cervo & Bueno desenvolvem um argumento que nos parece não considerar estes mecanismos, admitindo “nação” como interesses de caráter muito generalizado: “Sucederam-se períodos em que a leitura do interesse nacional, feita pelos homens de Estado, ditou políticas restritivas, favoráveis a segmentos sociais e prejudiciais à nação, e períodos em que aquele interesse foi atendido de forma mais global e abrangente [...]”;CERVO & BUENO, op. cit, p. 11.251 CARVALHO, 2003, p.28.252 BETHELL, L. & CARVALHO, J.M. de. O Brasil da independência a meados do século XIX. In: BETHELL, Leslie (org). História da América Latina: da independência a 1870. Vol. III. Trad. Maria Clara Cescato. São Paulo: EDUSP: IOE; Brasília: FUNDAG, 2001, pp. 713, 730-732, 737.

71

Page 73: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

De acordo com Cervo e Bueno, para a compreensão da história das relações

internacionais é preciso admitir a ação dos sistemas causais e de finalidades como

categorias explicativas. As necessidades identificadas e expressas pelo Estado, quanto

mais próximas estiverem das políticas efetivamente implementadas, mais aproximam

aquelas categorias explicativas identificadas com as causas e fins do Estado. “Não se

vinculam [...] quando, precisamente, a política exterior tenha por finalidade quebrar

estruturas internas e superá-las.”.253 Neste sentido, no caso da sociedade imperial, a

aproximação que admitimos entre seus pólos político e burocrático, permite considerar

que os imperativos da economia imperial, marcada por seu secular caráter agrário e

exportador, transposto ao campo político se traduziu em conservadorismo, portanto,

longe de significar a “superação de estruturas internas”. Não identificamos, desta forma,

nenhuma dicotomia entre interesses e iniciativas do Estado: “Fatores institucionais como

a inexistência prática de uma opção pelo mercado [...] uma preferência atávica pela

regulação estatal [...] atuaram poderosamente para [...] de fato impedir o

desenvolvimento de uma cultura industrial [...]”.254 As ações imperiais no campo das

relações externas orbitavam, irremediavelmente, em torno dos interesses mais gerais da

agroexportação, sustentáculo da economia brasileira, que estava ancorada nas ligações

com o hemisfério Norte.

Sendo assim, concordando com Cervo e Bueno, sistemas causais e de

finalidades, se aproximam, e tendem a ser um instrumento de manutenção das estruturas

herdadas da matriz colonial. Elas foram laboriosamente preservadas nos transes da

independência e da Regência. A posse dos mecanismos de reprodução social marca

também os domínios da economia, informando ali os limites culturais dentro dos quais

se movimentam as elites imperiais. De uma maneira geral o governo imperial cristalizou

a defesa dos interesses da base social que o apoiava; a tendência era não ameaçar os

interesses que sustentavam a autoridade imperial: a própria lista dos ministros indica que

253 CERVO & BUENO, op. cit., p.12.254 ALMEIDA, op. cit., p. 164. Ver também OLIVEIRA LIMA, 1989, pp. 138-139.

72

Page 74: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

72% eram bacharéis, 54% tinham algum tipo de ligação com interesses agrários, e 14%

com o grande comércio255.

É em função disto que admitimos que a terceira categoria explicativa para as

questões da política externa imperial está na “[...] análise das decisões de Estado [...] é

no processo decisório que se digere a causalidade histórica, direcionam-se as energias

para metas concretas, de acordo com um sistema de cálculo comumente chamado de

estratégia, que pondera meios, fins e riscos.”.256 Neste sentido, no momento da

consolidação da hegemonia dos quadros saquarema fluminenses, da ascensão do

complexo exportador cafeeiro, e do domínio político conservador na esfera nacional, o

Estado imperial “[...] ‘parece estar concentrando a parte do leão de sua vitalidade na

exploração dos abundantes recursos do seu solo e no desenvolvimento de seus interesses

materiais’[...]”257 O objetivo é eminentemente conservador, desenvolver a principal

“indústria” do país, a agricultura exportadora. Este complexo imaginário, assim como a

posição e papel dos setores sociais que fixavam a sociedade imperial, era cultivado no

cotidiano por vários meios, dentre eles, pela literatura, que “[...] qualificou situações e,

mais importante, produziu uma tradição, delegando aos políticos a constituição

institucional [...]”258. Um processo de fixação das representações que se derramava da

literatura para jornais e panfletos, que penetravam nos círculos iletrados, através do seu

aproveitamento oral em manifestações em espaços públicos259. O resultado desta auto-

valorização introjetiva reflete-se num caráter introvertido e protecionista da sociedade

imperial260, justamente quando o Brasil beneficia-se crescentemente do seu redivivo

papel no mercado internacional. Um “nacionalismo”, entendido como política que se

opunha ao “estrangeirismo”261.

255 GRAHAM, R. O Brasil de meados do século XIX À Guerra do Paraguai. In: BETHELL, op. cit., pp. 801-803, 807.256 CERVO & BUENO, op. cit., p.12.257 Carta do presidente da província fluminense Manuel de Jesus Valdetaro, de maio de 1848. Apud BETHELL & CARVALHO, op. cit., pp 766-767.258 Idem, p. 130.259 BASILE, op. cit., pp. 206-207.260 ALMEIDA, op. cit., p. 115.261 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 175. Embora o autor defenda que a introspecção tendeu a abrandar após 1848.

73

Page 75: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

A vinculação entre as instituições e o comércio externo deve considerar que o

caráter secular do conjunto das atividades propiciadoras da agroexportação escravista, e

os mecanismos de financiamento da produção, legaram ao Brasil uma realidade

financeira muito acanhada. Os setores que detinham liquidez suficiente para

desempenharem o papel de investidores, formados justamente numa realidade alheia à

lógica de mercado262, não possuíam a cultura econômica que se traduzisse na abertura de

novas perspectivas ou alternativas de investimento263. As “[...] novas técnicas criadas

pela revolução industrial escassamente haviam penetrado no país, e quando o fizeram foi

sob forma de bens ou serviços de consumo sem afetar a estrutura do sistema

produtivo”.264

Neste sentido, os esforços do Estado na defesa das atividades das quais se

aproveitavam suas elites abrangeram a instalação da infra-estrutura destinada ao

escoamento da produção, como portos e ferrovias265. Estas atividades todas, por volta de

meados do século XIX, do financiamento, passando pelo escoamento até os mercados

consumidores estavam “[...] solidamente ancoradas na fortaleza britânica [...]”266,

embora não exclusivamente. Crescentemente se ampliava a ligação do país com o

hemisfério Norte, sendo assim, a sedimentação deste conjunto estrutural transforma a

região platina num apêndice do complexo de interesses políticos e econômicos

imperiais. Em 1855, o Império enviou para a Inglaterra, 32% do valor geral das suas

exportações; para a Europa como um todo, este número chegou a 62%. No mesmo ano

os Estados Unidos responderam por 28,1% dos valores exportados pelo Império, sendo

que os valores correspondentes às exportações para o Prata estão diluídos nos 9,9%

restantes267.

A partir da regência, a política externa, enquanto área específica de atuação do

Estado, inserida no esforço de consolidação dos mecanismos de preservação social das

262 “[...] mercado imperfeito [...]” FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit., p. 66.263 CALDEIRA, op. cit., p. 242.264 FURTADO, op. cit. p. 110.265 FAORO, op. cit., p. 458; DOHLNIKOFF, op. cit., pp. 57, 158-159, MATTOS, op. cit., pp. 57-58.266 ALMEIDA, op. cit. p. 58.267 PALAZZO, apud. Idem, p. 84. Em 1853 o Império importou do Prata 5,6 % do total importado. Em 1863, este número era de 6,7% das importações; BRASIL. IBGE. Ibidem, p. 171.

74

Page 76: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

elites imperiais exigia historicamente, romper com os princípios que balizaram o

estabelecimento da “política de tratados” do início do Primeiro Reinado. Naqueles

lances iniciais do novo Estado, preservara-se a herança colonial das relações luso-

britânicas268 e, a rigor, sacrificou-se parcelas importantes da Soberania, principalmente

em função do Tratado com a Inglaterra, comprometendo o Erário e os interesses

brasileiros ligados ao comércio externo. Os tratados, firmados à revelia da nação

representada no parlamento, apresentaram claros limites aos interesses comerciais

forjados no período colonial. O processo de reconhecimento da independência permitiu

identificar as divergências entre os interesses do Estado e das elites brasileiras como um

todo, e abriu caminho para o inicio das demonstrações parlamentares daquele desacordo,

nascido com a desatenção para com os interesses dos grandes comerciantes:

“[...]a Câmara dos Deputados folgará muito que nos tratados anunciados por Vossa Majestade Imperial a par dos interesses de comércio e navegação, respire desassombrada a honra e a glória do nome brasileiro; mas consinta vossa Majestade Imperial que a Câmara lhe faça a respeitosa observação que tratados de comércio são desnecessários ao Estado, que se acha no gozo pleno e legal de um comércio franco e livre, quase sempre prejudiciais ao mais fraco, o mais novo na carreira das nações.”269

Tem sido demonstrado o papel do comercio externo e das camadas sociais a ele

ligadas como componentes estruturadores da sociedade brasileira. Portanto, acreditamos

que não seja possível exagerar o papel dos interesses comerciais, principalmente os que

se articulavam em torno do Rio de Janeiro, no conjunto dos “interesses do Brasil”,

conforme o discurso de Gonçalves Ledo, citado acima. As classes agrário-exportadoras

que se desenvolviam à sombra dos setores detentores do crédito, formavam um

complexo de relações profunda e amplamente imbricados nos meandros burocráticos e

políticos. Este fenômeno que se desenvolveu, desde os tempos da América portuguesa,

ajudou a dar as feições do Estado imperial brasileiro270.

268 Ibidem, p.119; CERVO & BUENO, op. cit. p. 22.269 Voto de graças de 6 de maio de 1829, referente ao anúncio dos tratados com os países baixos e os Estados Unidos, assinado, entre outros, por Martim Francisco, Feijó, Paula Souza, Bernardo Pereira de Vasconcelos e Limpo de Abreu. Apud, ALMEIDA, op. cit., p. 121.270 FRAGOSO & FLORENTINO, op.cit., passim.

75

Page 77: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Seja como for, no início das regências as necessidades das elites brasileiras

continuavam atreladas ao caráter escravista da sociedade, onde o tráfico se constituía em

“[...] motor da economia [...] o centro de toda a engrenagem do dinheiro [e estabelecia]

todo um modo de encarar o mundo [...]”271. No caminho que trilharam para garantir a sua

prevalência sobre as demais camadas sociais do Império, as elites políticas imperiais

expressaram naqueles processos de reprodução social uma “ordem” interna que tem o

poder de moldar, entre outras coisas, o mercado, como meio de perpetuação das

hierarquias sociais.272 Objetivamente aquela “ordem” necessitava de alternativas para a

situação de baixa nos ganhos com as exportações, verificada nos períodos 1821-1830 e

1831-1840. Naquele período a renda real das exportações cresceu 40% menos que o seu

volume físico273.

Esta “ordem” comercial e escravista, conformada pelos negociantes agrupados

pelo porto do Rio de Janeiro, vai se revelar nas decisões do Estado, expressando estas os

traços da busca pelos seus objetivos sociais, políticos e econômicos, transformadas em

orientações de caráter nacional274. Neste sentido, as demandas do complexo

agroexportador, beneficiadas com o crescimento do mercado internacional do café,

permitem admitir que a política externa do Império tinha seus olhos postos, de maneira

marcada sobre o que definimos como a frente atlântica, ou seja, as linhas de comércio

que ligavam o Brasil aos grandes consumidores dos seus principais produtos

exportáveis. Estes consumidores efetivamente se situavam no Hemisfério Norte275.

Por sua vez, muito longe de possuir a mesma densidade comercial, as relações

com o que chamamos de frente Sul, a região platina, estavam em franco contraste com o

que vimos de expor. É a partir deste contraste entre os complexos de interesses que

ligavam o Império a estes dois corredores de comércio, que entendemos o papel do

Prata; principalmente o da República Oriental do Uruguai. Para fins de comparação

271 CALDEIRA, op. cit., p. 220.272 FRAGOSO & FLORENTINO, op.cit., p.19.273 FURTADO, op. cit., p. 108.274 BUENO & CERVO, op.cit. p.12. Veja-se também, FURTADO, op. cit., pp. 115-116.275 Caio Prado Jr afirma que pelo meio do século XIX os Estados Unidos já absorviam 50% da produção cafeeira do Brasil, fenômeno que seguirá em ritmo sempre crescente durante a segunda metade do século: PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 11ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1969, p. 158.

76

Page 78: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

note-se que, em 1863, por exemplo, as exportações brasileiras para a Inglaterra foram de

5.068.781£, totalizando 37,7% do total das exportações; No mesmo ano para o Prata -

compreendendo a Confederação Argentina, a Republica Oriental do Uruguai e a

República do Paraguai - o Brasil enviou 4,2% das suas exportações, somando

464.659£276. Julgamos oportuno salientar que os dados de 1863 foram citados,

justamente por apresentarem o salto nas transações comerciais entre o Brasil e a

República Oriental, permitido pela vigência dos tratados comerciais de 12 de outubro de

1851, e sua revisão de quatro de setembro de 1857, dos quais falaremos mais adiante.

A própria relação entre o Estado imperial e as relações com o estrangeiro salienta

a preeminência e consistência das relações do Brasil com a Europa, principalmente com

a Inglaterra. O Estado brasileiro, após 1831, se coloca como a estrutura destinada a

absorver os choques advindos daqueles influxos externos, adaptando-os aos padrões das

elites dominantes277. Esta preeminência, entretanto, principalmente no que diz respeito à

hegemonia das atividades do capital baseado na Inglaterra, sobre a economia brasileira,

não conferia um caráter colonial278 à relação entre os dois países; a Inglaterra não dirigia

a produção. A aceitação da proeminência inglesa obedecia, às idiossincrasias dos

interesses “[...] de uma camada social apta a participar das vantagens do intercâmbio,

preocupada, não raro, em desviar-lhe o rumo submisso”279.

Além disto, acreditamos que seja necessária uma tipificação das relações que

uniam o Império com a Inglaterra. Há que se distinguir as relações do Estado imperial

com a Coroa britânica, das relações com os setores econômicos e financeiros da

sociedade inglesa, assim como das relações com o governo inglês. Um caso típico da

independência entre estas relações aconteceu por ocasião da resposta à “política do

porrete”, desenvolvida pelo governo inglês, que levou o governo imperial, em 1863, a

romper relações diplomáticas com a corte de St. James. Entretanto, o rompimento não

impediu que o governo imperial mantivesse a prática manifesta durante todo o século

276 IBGE, apud. ALMEIDA, op. cit. p.171.277 Salles, 1990, p.32, embora, evidentemente, não concordemos com o viés marxista com que aborda esta relação; ver também GRAHAM, op. cit. p.771.278 BETHELL & CARVALHO. op. cit., p. 697; FAORO, op. cit., p.473.279 FAORO, op. cit., pp. 457-459.

77

Page 79: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

XIX, levantando seus empréstimos junto a instituições privadas280 inglesas. A rigor, a

diplomacia brasileira foi muito eficiente em garantir a simpatia internacional, quer fosse

de negociantes, ou da opinião pública britânicos, devido à resistência da sociedade que,

ainda que escravista, resistia às violências do governo inglês que insistia em intervir em

seus assuntos internos.281 Se as regências deveriam significar a superação da “política

dos tratados”, por significar a maior liberdade de comércio frente ao mercado

internacional, esta disposição para a autonomia ficou reconhecida pelos agentes

diplomáticos ingleses. Este fenômeno, conforme percebido por aqueles agentes, ficou

registrado no despacho de 23 de janeiro de 1843, do encarregado de renegociar o tratado

de 1827, Henry Ellis, a Lord Aberdeen. Segundo aquele, a Assembléia brasileira

recusaria “[...] qualquer tratado com qualquer nação que recusasse aos produtos

brasileiros o mesmo tratamento que o concedido aos produtos das colônias desta

nação.[...]”.282

Uma vez que seja possível identificar as características dos interesses que se

concentram ao redor das decisões de Estado pode-se, em conseqüência, perceber as

linhas principais da estrutura da política doméstica. Acreditamos que, se a “ordem”

social do império é capaz de moldar o mercado, a rigor, são os movimentos da política

doméstica que determinaram o caráter das ações imperiais no âmbito externo. Até 1850

os ganhos do grande comércio brasileiro baseavam-se no tráfico de escravos, os ganhos

com as exportações crescentemente se deviam à especialização da produção, sob a capa

da possibilidade da expansão ilimitada de terra e mão-de-obra. Este sistema impedia o

surgimento de opções que pudessem significar aumento “[...] da renda disponível para

investimento e [ou] diversificar as fontes de acumulação.”.283 A rigor, desde os espaços

de produção de gêneros para a corte e para as plantações de café, o esforço das elites

estava concentrado em reproduzir o eixo econômico agro-exportador baseado no

trabalho escravo284. “O comércio é o primeiro elemento das relações internacionais, e

para nós quase a base exclusiva em que elas assentam atualmente [...]”.285

280 ALMEIDA, op cit. Nota 1, p. 92.281 CERVO & BUENO, op. cit., pp. 82-83.282 Apud, ALMEIDA, op. cit. p. 125.283 Idem, p. 72284 FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit. p. 158.285 CERVO & BUENO, op. cit., p. 72.

78

Page 80: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Na estrutura patriarcalista e patrimonialista brasileira, seria irreal admitir que um

empresário liberal, individualmente, pudesse gerir capitais maiores do que a sua fortuna

pessoal, num esquema baseado no agrupamento de vários investidores. A mera menção

já sugeria uma revolução no conceito de propriedade286. A idéia de multiplicar fortunas

no Império estava mais associada a casamentos287, do que à formação de sociedades

anônimas, mesmo após o surgimento do Código Comercial de 1850. Um contraponto

aos costumes financeiros do Brasil é a comparação possível com as fortunas que, pelo

meio do século XIX, consolidavam a Inglaterra como o principal centro fabril e de

comércio do mundo. Lá, a origem de muitas fortunas acumuladas também estava no

tráfico negreiro, mas que migraram para outras atividades, após o fim do tráfico, em

1807; “[...] ao contrário do Brasil, os comerciantes enriquecidos com o tráfico acharam

tempo e modos de fazer uma reciclagem completa de suas fortunas e inaugurar uma

nova fase econômica.”.288

O tráfico no Brasil, contudo, significava costume; à sua clientela o traficante

fundia o papel de financiador e fornecedor de mão-de-obra. O esquema tinha um alto

custo para o fazendeiro, que pagava os grandes lucros dos traficantes, ganhos que “[...]

só os comércios ilícitos podem suportar [mas que], ditava a lei à praça e impunha sua

vontade aos governos.”.289 Neste sistema inseguro, sem as garantias de execução de

dívidas, o endinheiramento que se formava em torno do tráfico, poderia servir para a

compra de títulos do governo, fornecer os empréstimos a juros altos para os plantadores,

ou a montagem de uma nova viagem para adquirir mais negros290. A lógica parece

inexorável, e é forte o bastante para sobreviver ao fim do tráfico: é imprescindível ao

Brasil aferrar-se aos seus grandes centros de consumo, para manter a engrenagem da sua

economia funcionando.

286 CALDEIRA, op. cit. p. 252.287 Idem, idem.288 Idem, p. 159.289 SOUTO, Visconde de, apud. CALDEIRA, op. cit., p. 243290 Idem, pp. 227, 252-253.

79

Page 81: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Sendo assim, identificamos a respeito do convívio do Estado imperial com a

região platina, quer seja no domínio econômico ou político um caráter secundário, sem

qualquer roupagem estratégica mais elaborada além das de linhas muito gerais que, a

rigor, em certos aspectos, como o do apoio à independência paraguaia como meio de

impedir a expansão de Buenos Aires, já existiam desde os tempos da regência de dom

João291. Além do mais as repúblicas platinas, conforme eram percebidas pelas elites

imperiais, perdiam-se em idéias e práticas que repugnavam à idéia de civilização que

emanava da corte. Causava-lhes horror as turbulências belicosas do caudilhismo, assim

como o conceito de civilização que se aproximava demais da “civilização do capital”,

uma civilização de manufaturas industriais, que atacava a escravidão, especializava a

mão de obra, etc. Propostas bem de acordo com as idéias de um novo expoente da

sociedade da Corte, o Sr. Irineu Evangelista de Sousa292.

A Regência removeu os óbices ao “nivelamento”293 pretendido pelas elites

políticas nacionais centradas na Corte; significou a expansão do domínio daquelas elites

sobre os maquinismos institucionais. A Lei da Regência, aprovada em 14 de junho de

1831, permitiu aumentar a influência do Legislativo sobre as questões de política

externa. Pela Constituição de 1824 o imperador levaria ao conhecimento do parlamento

os sucessos relativos à política externa, somente depois de assentados, e “[...] quando o

interesse e segurança do Estado o permitirem.”.294 O domínio expandido das elites

brasileiras sobre as instâncias estatais, portanto, verificado pela ocupação do Poder

Executivo, permitiu que estas instâncias se conjugassem para uma redefinição

harmônica quanto aos objetivos da política externa295.

A mesma Lei da Regência obrigava ao governo submeter à Câmara a aprovação

de quaisquer tratados ou atos internacionais296. Outra evidência do controle aumentado

das elites sobre as questões internacionais aparece na criação da exigência para que o

291 CERVO & BUENO, op. cit., p. 45.292 BESOUCHET, op. cit. pp. 18-19.293 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 180.294 Texto Constitucional de 1824. Apud ALMEIDA, op. cit., nota 5, p. 118.295 CERVO & BUENO, op. cit., passim.296 Função que, ao tempo da Maioridade, reverte ao Conselho de Estado.

80

Page 82: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ministro de estrangeiros apresentasse um relatório anual à Assembléia.297, o “Relatório

da Repartição dos Negócios Estrangeiros”. Este expediente expunha os problemas e

projetos da pasta, com vistas à discussão orçamentária, transformando-o num

mecanismo de pressão e controle parlamentar que atravessará o Império.298 Escorados na

prática parlamentar e nas ações do Executivo, os interesses das elites forçaram uma

redefinição do “interesse nacional” a ser perseguido pelo Estado, redefinição cada vez

mais alinhada com o complexo cafeeiro fluminense.299

2.2 – Mudança e conservação.

A reorientação que se procedeu na condução das relações extenas não significou,

contudo, o descumprimento dos tratados já em vigor com os demais países. Neste

sentido, o grande comércio brasileiro, e as elites reunidas em torno dos interesses

fluminenses ligados ao comércio internacional, por volta de 1842, estavam muito atentos

aos políticos regressistas. Estava para expirar o “Tratado Inglês”, e eles estavam pouco

dispostos a ouvir dissonâncias no que dissesse respeito à superação definitiva dos seus

efeitos. Também lhes interessava muito a supressão dos últimos focos de “radicalismos”

liberais, além da revisão tarifária aprovada na Câmara que, embora dotada de um forte

viés fiscal, acenava para a formulação de uma nova política comercial além de,

alegadamente, introduzir alguma proteção a produtos manufaturados localmente.300

Transformada aquela revisão tarifária na Lei Alves Branco, de 1844, as novas taxas

alfandegárias que incidiriam sobre os produtos importados, saltaram de 15%, para

índices que variaram de 30% a 60%. Em que pese as novas taxas ficarem abaixo dos

índices que se praticavam na Europa301, trouxeram um grande alento para as receitas da

Alfândega, a principal fonte de divisas para o Tesouro. O novo arranjo desonerava os

grandes proprietários e exportadores, e não mexia na estrutura de arrecadação das

províncias, que desde o Ato Adicional, estavam impedidas de cobrarem impostos

relativos a transações externas302. 297 ALMEIDA, op. cit., p. 121; CERVO & BUENO p. 62.298 BUENO & CERVO, op. cit. p. 53.299 FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit. pp. 167-ss; VIANA, op. cit.; p. 100; ALMEIDA, op. cit., p. 44.300ALMEIDA, op. cit., p. 133.301 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 146302 DOHLNIKOFF, op. cit., pp. 168-169.

81

Page 83: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Quanto ao caráter de incentivo às manufaturas da Lei Alves Branco, conforme

alegado pelos legisladores, é interessante por demonstrar a utilização instrumental de

teses liberais pelo Estado brasileiro. Evidentemente os princípios do liberalismo, desde o

movimento liberal do Porto, vinham servindo às elites políticas de ferramenta na

construção dos discursos e na cooptação, mas “[...] dificilmente poderiam ser

encontrados numerosos representantes de uma suposta ‘burguesia industrial emergente

[...]”303 que pudessem pressionar o Legislativo, buscando exigir medidas protecionistas

para a atividade manufatureira. Acreditamos que os óbvios limites entre a civilização

escravista brasileira e a civilização iluminista ocidental se manifestam no caso da

extinção do tráfico negreiro, e a conseqüente disponibilização de uma grande massa de

capital que não encontrou os melhores meios de aproveitamento, de acordo com o credo

liberal, como veremos. Não obstante, marcou o processo de transição brasileira do

mercantilismo colonial para a abertura aos novos imperativos da concorrência

internacional.

O escravismo era um fator de estabilidade política e de formação do caráter

brasileiro: uma sociedade de senhores e escravos sem os proletários que

intranqüilizavam as potências européias. Também o sentimento de igualdade, nivelador

entre ricos e pobres, nasce da escravidão, ou melhor, do seu oposto: “[...] não sou

escravo [...]”304. A escravidão era o paradoxo da “civilização” que as elites políticas

procuravam tornar coerentes para si próprias, e “[...] sobretudo para a percepção dos

outros, o país que era e o que temiam que fosse com o país que sonhavam e o país que

fingiam [...]”305

“Até fora do país acatamos e distinguimos os estrangeiros. Exemplos de aí mesmo os afagarmos é ocioso de apresentá-los, há grande cópia.E bem poucas vezes, da parte deles, tem o Brasil merecido justiça, se os vê arvorados seus juízes no além mar transatlântico e continental.Céu ameno, terreno ubérrimo, florestas gigantes, rios oceânicos, montanhas a topetar com as nuvens, é o que lhe dão por não poderem negar, e para alegarem imparcialidade no tocante ao nosso caráter, de

303 ALMEIDA, op. cit., pp. 162-163.304 FEIJÓ, apud DOHLNIKOFF, op. cit., pp. 35-36. Grifo nosso.305 COSTA E SILVA, op. cit., p. 18.

82

Page 84: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

nosso regime social, de nossos costumes, feitas a jorros de sarcasmos e a vôos de improvisos entre o ridículo e a indecência.”306

Contudo, o fim do tráfico foi, sem dúvida, um marco que permitiu, se não a

superação das estruturas da cultura escravista brasileira, uma estréia do Brasil na vida

financeira do período. A disponibilidade de capitais resultante permitiu a abertura de

negócios em outros setores quase impensáveis como o financeiro e o industrial. É

verdade, reafirmamos, que a tendência à conservação, à tradição, presentes nas

estruturas sociais do século XIX imperial não permitiriam o mero salto de uma realidade

para a outra. Das primeiras experiências na lida com os fluxos financeiros do liberalismo

resultou “[...] num desastre tremendo – a crise de 1857, seguida logo por outra mais

grave, em 1864 [...]”307. Paradoxalmente, a enorme expansão do café, que irá

proporcionar os superavits crescentes, a partir de 1860, ao invés de ampliação da base de

investimentos, significou o reforço da estrutura tradicional da economia imperial,

monocultora; estrutura que “[...] consegue se refazer e prosperar mesmo

consideravelmente, ainda por muito tempo [...]”308.

Acreditamos, pelo viés das sólidas bases da sociedade imperial, e pela

consolidação do café como novo elemento a ser explorado para a estabilidade da

economia, que a opção do Estado Imperial pela observância à letra dos tratados, ao

contrário do sentido que tem sido atribuído pela historiografia, nada tem de

“passividade”. Sua opção não sugere uma impossibilidade brasileira de pugnar por seus

interesses diante de pressões das potências mais fortes; de “[...] medir-se e reagir [...]”.309

Em nossa análise o Estado brasileiro, escorado na bem constituída estrutura social

demonstra capacidade de auto-definição. Até 1850, por exemplo, afrontou as restrições à

escravidão propugnadas pela Inglaterra. Conselheiros, senadores e deputados “[...] eram

favoráveis ao tráfico de escravos (e em alguns casos, como fazendeiros e donos de

306 BARROS, v. Solidariedade de vistas. In: MADUREIRA, A. de Sena. Guerra do Paraguai. Resposta ao Sr. Jorge Thompson, autor da “Guerra Del Paraguay” e aos anotadores argentinos D. Lewis e A. Estrada. Brasília: Universidade de Brasília, 1982, p.1307 PRADO Jr. op. cit., pp. 150-151.308 Idem, p. 166.309 CERVO & BUENO, op. cit., p.54.

83

Page 85: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

escravos, eles próprios estavam envolvidos indiretamente nele), ou, então, em vista de

sua importância para a economia brasileira preferiam não intervir [...]”310

Esta maneira de conduzir as questões de política externa concordava, no

discurso, com a potência da época; não obstante, procrastinava, e esvaziava de conteúdo

prático as suas próprias resoluções311. Esta relativa autonomia “[...] demonstra que, mais

que uma técnica diplomática, tratava-se de um poder de barganha [...] que não deve ser

subestimado”,312 quando se considera o poder das elites em defender seus interesses no

campo da política externa. Esta relação entre Brasil e Inglaterra, aliás, parece-nos bem

desenhada no momento em que expirava o “tratado inglês” de 1827. Em que pese o

Conselho de Estado ter aconselhado a abertura de negociações com a Inglaterra sobre

um novo tratado comercial, de acordo com o Relatório de Estrangeiros de 1845/1846, a

promulgação do Bill Aberdeen, e seu caráter atentatório à soberania brasileira, levaram o

governo imperial a uma reversão de curso. Apoiado por largas parcelas da sociedade, e

guiado por um zelo inflacionado pela soberania nacional, decidiu-se a pôr um fim a

qualquer nova iniciativa de renovação do tratado.313 O resultado foi que a renovação do

Tratado e o atendimento aos interesses ingleses, estavam fadados a não acontecer: “O

governo imperial querendo ir de acordo com a opinião, que se tem manifestado nas

câmaras contra semelhantes tratados, se recusou a entrar em semelhantes ajustes.”314

Seja como for, o papel do Estado procurando conciliar o cadinho de interesses

que congregava no cotidiano administrativo, sedimentado de tradições e vinculado a

uma ordem econômica patrimonial, mercantilista nos processos, favorece as atividades

econômicas mais importantes e estrutura em si próprio os imperativos de sua

sobrevivência315. Em termos de política externa o Império moveu-se a partir de

estratégias que atendiam a esses interesses econômicos estruturais. Eram interesses

estreitos, nascidos da estreiteza da participação de camadas sociais representadas nas

esferas de poder, limitando a formulação e surgimento de alternativas de políticas novas.

310 BETHELL & CARVALHO, op. cit. p. 759.311 GRAHAM, Richard. Apud. SALLES, op. cit., p. 33.312SALLES, idem.313 ALMEIDA, op. cit. p. 125.314 CAMPOS, Carneiro de. Apud CERVO & BUENO, op. cit., p. 63.315 FAORO, op. cit., pp.447-448; outra reflexão sobre o tema em CERVO & BUENO, op. cit., pp. 21-22

84

Page 86: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Uma estrutura que punha mesmo homens extremamente ricos, embora defensores da

ordem liberal, como Irineu Evangelista de Souza, em rumo de colisão com a burocracia

patrimonialista, guardiã ciumenta de todo o conjunto que a sustentava “[...] retrógrados,

tradicionalistas, lentos [...]”316. Era justamente o conflito entre o Estado intermediador

dos interesses tradicionais, baseados nas estruturas peculiares do escravismo, frente ao

liberalismo ocidental. Conflito que exigiria, na luta pela conservação da “ordem” que

abrigava e sustentava as elites brasileiras, o sacrifício de algumas de suas peculiaridades,

como no caso do tráfico.

O modelo de reprodução do conteúdo das estruturas coloniais,317 maturadas no

processo de afirmação do porto fluminense permitiu que a política externa imperial

continuasse a se concentrar na superação de alguns problemas básicos da rotina

mercantil. Estes passavam pela regulação dos fluxos comerciais do intercâmbio externo,

alternativas para o problema da mão-de-obra e financiamentos 318. Para os fins de

entendimento do complexo papel exercido pelo Rio de Janeiro nas definições das

políticas do Estado imperial, considerando os interesses fiscais e sociais que deveriam

ser protegidos pelo Estado, é preciso não entendê-lo apenas como porto exportador de

produtos agrícolas tropicais. Já à época da independência a cidade estava consolidada

como centro de uma malha fornecedora de abastecimento, uma vez que “[...]

conformava uma área de ponta, voltada para o mercado exterior [...]”319. Para uma

medida da importância desta centralidade vivida pelo Rio de Janeiro, é interessante

considerar que os fluxos das mercadorias destinadas ao abastecimento, comparadas com

os dos produtos destinados à exportação, dependendo do produto, poderiam representar

até 2/3 do valor dos carregamentos de açúcar, seu principal produto de exportação.

Outros, em volume, poderiam individualmente superar o açúcar, como aconteceu com o

charque, desde 1806320. Acreditamos que não há porque não considerar que esta

centralidade, com o surgimento do café, só tenha se tornado ainda mais pronunciada.

316 BESOUCHET, op. cit., p.3.317 FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit. p. 158.318 ALMEIDA, op. cit. p.63.319 Cf. nota 285320 FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit. p. 151.

85

Page 87: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

É a partir deste contexto que se deve considerar a introdução de medidas como as

tarifas Alves Branco. Em que pese a discussão sobre o caráter protecionista daquela

lei,321 ela apresentava um dispositivo que desonerava a importação de produtos que

servissem às indústrias nacionais. Em função deste dispositivo, algum esforço se verifica

no campo dos investimentos industriais, liderado por Irineu Evangelista de Sousa.322

Com o café se firmando como o principal produto agrícola da pauta exportadora

brasileira, naturalmente as atividades a ele ligadas atraiam a principal parte dos capitais

disponíveis para financiamento. Deste modo, medidas nominalmente voltadas para

iniciativas industriais incidiam sobre, se não o vazio, um universo muito limitado.

Qualquer coisa que não fosse a derrubada das matas, construção de fazendas e compra

de escravos só poderia ser encarado como excentricidade, nunca uma alternativa para

ganhar dinheiro, era o caso dos investimentos em fábricas; uma fábrica era uma coisa

“abstrusa”323.

Carente de capitais para investimento, consumidos pela crescente produção

cafeeira, a economia do Império caracterizava-se pela escassez de dinheiro em

circulação. Viviam-se os dilemas do país agro-exportador: apesar de uma elevado índice

de participação relativa nos fluxos de mercadorias no mercado internacional, per capita -

um grande volume comercializado, em relação à população - os valores correspondentes

daquelas mercadorias não possibilitavam ganhos monetários per capita elevados.

Considerando o caráter agrário da sociedade escravista, o problema da falta de

numerário tendia a se aprofundar com o crescimento da economia, uma vez que permitia

o aumento de consumo. Quando o aumento no consumo se transformava em aumento

das importações, implicava em maiores desequilíbrios na balança comercial. Para sanar

este problema da balança comercial, a economia brasileira, no seu caráter de pretendente

à equiparação com a “civilização” européia, insistiu sistematicamente em emular o

modelo inglês do padrão ouro. Este princípio consistia no estabelecimento de uma

reserva de metais para cobrir os eventuais desequilíbrios entre as importações e as

321 Citando HARDMAN & LEONARDI, Almeida defende que o protecionismo da Lei contribuiu menos para o surto industrialista da década de 1840, do que a recuperação das exportações. Op. cit. p. 158. Ver também em OLIVEIRA LIMA, 1989. p. 148.322 CALDEIRA, op. cit., pp. 176, 180.323 Idem, pp. I80-181, 187.

86

Page 88: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

exportações. Quando se lançava mão desta reserva – a rigor uma quantia estéril, incapaz

de produzir riqueza – para cobrir a diferença entre o que foi comprado com o que foi

vendido, na verdade, se mandava para o exterior ainda maiores somas de dinheiro,

descapitalizando ainda mais o mercado interno.

A pouca participação nas trocas comerciais durante o século XIX, fruto da

especialização da produção para o comércio exterior, punha o Brasil na condição de

tornar-se um grande consumidor de capitais disponíveis no mercado internacional. De

fato, investimentos estrangeiros diretos auxiliaram o comércio nas taxas crescentes de

crescimento econômico, financiando a plantação e a infra-estrutura. De certa forma, o

desfecho deste ciclo financiamento/produção – especialização da produção, baixa

redistribuição de renda e descapitalização - era mesmo algo inevitável, se se considera

que o “[...] desenvolvimento com base em mercado interno só se torna possível quando o

organismo econômico alcançar um determinado grau de complexidade, que se

caracteriza por uma relativa autonomia tecnológica”.324

“A despeito de ter sido um dos mais importantes importadores de capitais de risco [...] desde meados do século XIX, o impacto da produção própria e do comércio de tecnologia na transformação da estrutura industrial do Brasil foi de pequena magnitude quando comparada à importância que esses processos ocuparam nas mudanças então em curso em outros países emergentes da ‘periferia’ capitalista (como Estados Unidos e Japão)”.325

No momento da expansão do mercado cafeeiro o sistema exportador exigia

maior quantidade de recursos para financiar a lavoura e a infra-estrutura necessária ao

escoamento, através da compra da tecnologia, a custos altíssimos326. Ainda que

requerendo menores níveis de capitalização que a produção açucareira, por se basear

“[...] mais amplamente na utilização do fator terra [manifestando] necessidades

monetárias [...] muito menores, pois o equipamento é mais simples e quase sempre de

324 FURTADO, op. cit., pp. 110-111.325 ALMEIDA, op. cit. p. 71.326 Para a reflexão sobre as estruturas do mundo financeiro do Império baseamo-nos na leitura de CALDEIRA, op. cit. passim; GONÇALVES, Cleber Baptista. Casa da Moeda do Brasil. 2ª ed. rev., ampl. e atualizada. Rio de Janeiro: Casa da Moeda do Brasil, 1989, pp. 317-ss; FURTADO, op cit., passim; ALMEIDA, op. cit, passim; FAORO, op. cit., passim.

87

Page 89: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

fabricação local [...]”327, o fazendeiro não prescindia do financiador citadino. Este, por

sua vez enraizado no comércio externo, permitia ao fazendeiro aliar às necessidades da

produção a sua experiência comercial. Com fatores de produção baratos, como se viu,

era possível a garantia da lucratividade dos plantadores, apesar das altas taxas de juros

prevalentes na realidade carente de meio circulante.

Esta especialização no comércio de produtos primários vai importar numa média

de crescimento do Produto Interno Bruto brasileiro, per capita, entre 1820 e 1870, de

0,2%, mantendo-se em 0,3% entre 1870 e 1913. Os valores per capita do PIB oscilaram

de US$ 670,00 em 1820, até US$ 740,00 em 1870, tendo despencado para US$ 704,00

em 1900328. Para estabelecermos meios de comparação entre o modelo econômico

escravista do Império, com uma outra sociedade monárquica, fortemente marcada pela

tradição, evocaremos o exemplo do Japão, da Restauração Meiji: “The Japanese are a

people wedded to the past as they chart and create the future”. Sendo assim, esta...

“[...] dichotomy of alienation with the present as they test and surpass it´s boundaries has been a characteristic of the Japanese people ever since the decision was taken in the 1860´s to absorb Western technology and folkways into the nation in order to prevent the destruction of the essence of the Japanese national character (Kokutai) through colonization [...]”329

Em três de janeiro de 1868, para proteger o Bushido, o código Samurai330, contra

a ocidentalização, um grupo de nobres de algumas províncias depuseram o xogunato

Tokugawa (Bakufu), instalando o imperador Meiji como o governante do Japão. O golpe

foi aplicado “[...] when it became clear that under the (Bakufu), modernization which

could stave off Western invasion would never take place.”331A restauração imperial foi

levada a efeito por um grupo de homens que dividiam um conjunto de idéias e valores o

327 FURTADO, op. cit., p. 114.328 MADDISON. Apud ALMEIDA, op. cit., p. 82; A tabela foi organizada de acordo com o câmbio de 1990.329 MAYER, S.L. Introduction. In: MAYER, S.L. (ed.). The Japanese War Machine. s.l. Bison Books, 1977, p. 6.330 SAKAI, S. Kamikaze, piloto suicida. 2ª ed. Trad. Noé Gertel. São Paulo: ABRASA, 1975, p. 85.331 Idem nota 297.

88

Page 90: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

que, afinal, lhes permitiu o estabelecimento de um novo modelo de regime político que

fosse viável:

“The abolition of the daimyo domains brought all territory under the control of the central government and provided [...] tax revenues far greater than [...] the Tokugawa house might have drawn [...] Japanese leaders had little hesitation about adopting Western technology [...] it was their intention to strengthen the country and preclude foreign invasion or incursion [...] creating a new conscript army.”332

Este esforço em absorver tecnologia estava voltado a desenvolver uma base

industrial própria, em criar bases de uma economia diversificada e autônoma, capaz de

sustentar as políticas do Estado Imperial japonês e evitar a ingerência que as grandes

potências exerciam com a sua gunboat policy na China;

“In 1878 [...] reorganized the Imperial Army along the German lines, expanding its numbers to approximately 75.000 men on active service with another 200.000 in reserve status. This whole force was equiped with modern weaponry; much of which was by the time of Japanese manufacture [...] the Imperial Navy also underwent an important reorganization and expansion [...] from 17 ships 14.000 gross tons in 1872 to 28 ships, all ironclad,of some 57.000 gross tons by 1897.”333

Ao se analisar o esforço para implementar uma política eminentemente industrial

como apoio à implementação das políticas de Estado, desenvolvido pelas elites

nipônicas, evidentemente deve-se levar em conta o caráter marcial da nobreza do Japão,

e os desafios claros que enfrentavam com as ameaças de intervenção militar das

potências estrangeiras. A ligação que parece evidente entre indústria e armamento, no

caso japonês, também deve ser considerada à luz da história das relações conflituosas

daquela ilha com seus vizinhos, que revela ter sido o arquipélago salvo de uma invasão

pelo providencial Vento Divino, ou, Kamikase, que desbaratou a frota invasora334. Como

se vê, realidade diametralmente oposta à brasileira, dominante uma elite civil à

medula335, que não enfrentava agressões outras que a verborragia republicana 332 HEIFERMAN, R. The Rising Sun. In: MAYER, op cit., p. 12.333 Idem, p. 16.334 BARKER, A.J. Kamikases. Trad. Nacif Japour. Rio de Janeiro: Renes, 1975, p. 67.335 CARVALHO, 2003, op. cit., p. 19; SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2ª ed. São Paulo: Cia. Das Letras, 2003, p. 299.

89

Page 91: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

circundante na América. Contudo, uma relação entre os dois países pode ser estabelecida

a partir da análise que executávamos para o caso do desenvolvimento do PIB brasileiro.

Entre 1820 e 1870 a média do crescimento per capita no Japão foi de metade da

brasileira, ou seja, 0,1%. Contudo, entre 1870 e 1900, enquanto a média brasileira foi de

0,3%, a japonesa subiu para 1,4%. Nestes 30 anos, enquanto a renda per capita brasileira

passou de US$ 740,00 para US$ 740,00, os números japoneses pularam de US$ 741,00

para US$ 1.135,00336.

As perspectivas do liberalismo industrializante, contudo, permaneceram

invisíveis para as elites e Estado imperial; misteriosos os seus mecanismos. Causou

profunda estranheza e apreensão que, sem adquirir terras e escravos, sem possuir uma

grande sede de fazenda de café e transportar sua produção em mulas para comercializá-

la, o Sr. Irineu Evangelista de Sousa administrasse, em 1852, investimentos que

montavam Rs 15.750.000$000. O montante representava metade da produção de café

daquele ano, ou, dois terços do que o Tesouro arrecadou com as exportações. A principal

fortuna cafeeira, a do comendador Souza Breves pouco excedia os Rs 1.500.000$000.

Ninguém entendia muito bem como uma fortuna surgia longe dos negócios agrícolas.337

As iniciativas de caráter industrial no século XIX, enquanto alternativa à

estrutura produtiva, esbarravam nos limites culturais, no conjunto das representações

impostos pelo escravismo. Numa sociedade em que ser “[...] ‘empregado no governo, na

polícia, é honroso, mas descer abaixo de empregos no governo, mesmo para ser

negociante, é degradante’[...]”,338 dificultava a simples contratação de empregados

especializados:

“[...] ‘Os mecânicos brancos consideravam-se todos eles fidalgos demais para trabalhar, e consideravam que ficariam degradados se vistos em público carregando a menor coisa pelas ruas, ainda que fossem as ferramentas de seu ofício. O orgulho tolo e a presunção formalizada, que dominava todas as classes da sociedade brasileira,

336 Dados retirados de ALMEIDA, op. cit., tabela 3.5, p. 80.337 CALDEIRA, op. cit., pp. 251-152.338 EWBANK, Thomas, apud, idem, p. 182.

90

Page 92: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

atingiam nessa categoria de homens um absurdo singular e ridículo.’ [...]”.339

Para além da eventual necessidade de importar mão-de-obra, o pretendente a

industrial deveria disponibilizar uma grande quantidade de capitais para manter um

estoque de matérias-primas e peças de reposição para suas máquinas; a medida se

justificava como maneira de evitar interrupções na produção, na eventualidade de

atrasos nas entregas, que dependiam do transporte marítimo. Além disto, os preços

deveriam ser competitivos, o que significava que, se os custos adicionais com mão de

obra especializada e estoques não fossem cobertos pela proteção tarifária, a manufatura

brasileira não poderia vender seus produtos por preços mais baixos que os similares

vindos do exterior. Se a Lei Alves Branco ajudava, certamente não fora pensada para o

fim de atender a indústria, mais do que às necessidades fiscais do Estado.340 Seus efeitos

evidenciaram que, por natureza, constituía-se num “[...] subproduto, talvez involuntário,

das dificuldades estruturais do Tesouro, cujas necessidades fiscais levaram à própria

taxação das exportações [...]”.341 Independentemente de qualquer outra coisa, entretanto,

ao investidor liberal cabia resignar-se à dependência do governo para a garantia da

legislação favorável e, num aspecto peculiar da sociedade escorada no patriarcalismo e

no favor, para garantir o ressarcimento de eventuais serviços ou produtos fornecidos ao

Estado: “[...] o industrial teve de acrescentar mais um trabalho [...]: [...] escrever

requerimentos, descobrir onde deveriam ser entregues, visitar [...] potentados que

pudessem favorecê-lo em suas pretensões, amolecer seus corações com mimos e

pequenos favores.”.342

A própria Lei Alves Branco, no tocante à criação e regulação de taxas e direitos

no proveito do comércio exterior, evidenciou ainda outros problemas de ordem

estrutural, como as ineficiências da burocracia. O peso da administração pública, por

primeira vez ensaiava os passos para ajustar-se a um novo ritmo para o qual não fora

339 LUCCKOCK, J. apud ibidem, p. 184.340 CALDEIRA, op. cit., pp 182-ss. Note-se que as receitas “saltaram” de 15,4 mil contos em 1843, para 24,8 mil contos de réis em 1845. Idem, p. 176341 ALMEIDA, op. cit., p. 151. Lei Calmon de 1836, taxando as exportações em 8%. Cf. OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 146.342 CALDEIRA, op. cit., p. 187. O “caráter pré-burguês” do Estado imperial em MATTOS, op. cit., p. 197.

91

Page 93: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

criada, e que exigia a agilidade compatível com a velocidade que o liberalismo demanda

para o aproveitamento das oportunidades fugazes. Serve de ilustração ao que dissemos,

uma referência aos efeitos da Lei Alves Branco, que esbarraram na desarticulação

nascida de um profundo desconhecimento dos dados referentes àquelas transações. O

relatório do ministro de Estrangeiros de 1846 apresentava desculpas por não estarem

disponíveis os dados estatísticos de:

“[...] direitos de importação que pagam nas alfândegas estrangeiras os artigos de nossa produção, e os direitos de porto a que estão sujeitos os navios brasileiros [...]; e bem assim os direitos diferenciais estabelecidos em favor de nacionais ou estrangeiros mais privilegiados que possam prejudicar nossos produtos e os nossos navios [...]”.343

Como até a aprovação do novo Código Comercial os fluxos de capitais, dinheiro

e mercadorias estavam adstritos ao âmbito privado344, aponta quase ao natural o fato de

faltarem dados concretos para o Estado imperial determinar, ou, precisar sua linha de

ação no que diz respeito ao comércio externo. A diplomacia, refletindo os ideais formais

do Estado, relacionava-se com as questões econômicas de maneira muito “[...] mais

empírica do que unívoca [...]”. Durante o século XIX, assuntos comerciais estavam

adstritos ao corpo consular, distinto dos ministros que representavam o Império “[...] e

que desfrutavam, muitas vezes, de menor prestígio político e pessoal (isto é, do ponto de

vista das remunerações e das possibilidades de ascensão funcional)”.345 Entretanto, a

nova orientação sobre tarifas aduaneiras, direitos de navegação e de portos, obedeceu a

uma estrita postura de reciprocidade: se taxados os navios brasileiros em portos

estrangeiros, taxados também os navios estrangeiros em portos brasileiros. Havia uma

clara preocupação com os interesses nacionais, quando se estabeleciam novas relações

comerciais346. De qualquer maneira, é em meio à necessidade de esforços de

ajustamento, visando à preservação das estruturas sociais através da manutenção dos

laços de intercâmbio com a Europa e os Estados Unidos, que o Império procura

desenvolver seu relacionamento com os países da região do Rio da Prata.

343 BRASIL. Relatório... Apud ALMEIDA, op. cit., p. 126.344 FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit., pp. 114-115; CALDEIRA, op. cit., p. 274.345 ALMEIDA, op. cit., p. 62346 ALMEIDA, op. cit., pp. 134-135.

92

Page 94: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

2.3 – América do Sul: reações e necessidades.

Na sociedade política encimada pelo imperador, no ambiente de riqueza

crescente a “[...] miragem do progresso tomava conta da sociedade, atingindo-a de cima

para baixo. O monarca criava em sua corte as aparências da civilização, vinculando-se a

intelectuais [...]”; por sua vez, os ingleses despidos dos seus privilégios, pela livre

concorrência, transformaram-se nos agentes daquela modernização347, marcada pelas

peculiaridades locais:

“[...] O desprezo pelo trabalho efetivo, prático, se revelava abertamente nessa sociedade aristocratizada pelo sistema social escravocrata e pela influência das cortes européias. Não existia base real para as realizações [industriais, ou, de caráter liberal]: tudo marchava a passos lentos e rotinários. A cultura livresca, fofa, superficial; o culto quase fanático pela literatura estrangeira, pelas formas políticas importadas da Europa, em pleno surto industrialista, imitação superficial que não ia às camadas profundas, eram as características típicas do Brasil do II Império [...]”348

Indiferente aos compassos vagarosos audíveis do Rio de Janeiro vai se impondo

a principal personagem política sul-americana do período. Juan Manuel de Rosas

pretendia expansionar o controle da sua província sobre as demais Províncias Unidas do

Rio da Prata. Dali Buenos Aires seria o centro para a reconstituição do antigo Vice-

Reinado. Seus planos, contudo, esbarraram na resistência que parcelas das sociedades

daqueles Estados, puderam opor-lhe, resultando em repetidas convulsões que

permanentemente intranqüilizavam o ambiente platino. No que dizia respeito ao

Império, as demonstradas pretensões rosistas sobre o território da província brasileira de

São Pedro do Rio Grande do Sul, punham os gabinetes imperiais de sobreaviso. Não

obstante, as preocupações com a sustentação dos seus interesses vitais, alimentados pelo

comércio com os principais centros consumidores dos seus produtos, as elites políticas

brasileiras mantinham uma postura de expectativa, procurando manter-se longe das

posições de hostilidade349:

347 CERVO & BUENO, op. cit., pp. 74-75.348 BESOUCHET, op. cit. pp. 7-8.349 BESOUCHET, op. cit., pp. 14-15.

93

Page 95: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“O governo imperial não abandona a causa do Paraguai, cuja independência, de fato, reconheceis; mas não pode contrair a obrigação de sustentar essa independência à força de armas; obrará em conformidade do fato que reconheceu enquanto ele existir, mas não se encarregará de sustentar o direito, bem certo de que nunca firmará a independência do Paraguai, enquanto não conseguir para ele a livre navegação do Paraná, e isso nunca Rosas há de conceder, senão quando completamente derrotado em uma guerra de longos anos ou prestes a ser derrubado do poder; e que ao Brasil não convém empreender uma tal guerra, e perseverar nela até conseguir esse fim, é coisa que parece óbvia.”.350

Ora, pode-se mesmo avaliar o quanto de importância os eventuais problemas

com os países limítrofes351 ocupavam, de fato, no contexto da sociedade voltada ao

comércio de exportação agrícola. Como nem mesmo a Constituição imperial regulava os

limites do território, estas questões começam a aparecer concretamente a partir de 1838,

o que nos permite creditar à ação da política externa voltada para os vizinhos

americanos, um caráter puramente reativo, diante dos incidentes com os vizinhos

bolivianos, uruguaios e franceses. A partir daí, para o Estado imperial, era preciso

estabelecer uma política que garantisse a coexistência pacífica, e a paz com os vizinhos

passava pelo assentamento dos princípios de uma política de limites: “[...] ‘O mesmo

governo conceitua, como uma das primeiras necessidades públicas, a determinação

definitiva dos limites do Brasil’ [...]”.352

Por não poder negar o fato geográfico e político da interseção fronteiriça com

outros Estados nacionais, o Estado imperial conduziu suas relações políticas com os

vizinhos americanos de maneira bastante pragmática. As questões demarcatórias foram

tratadas a partir das mesmas lógicas das relações comerciais: pouco intercâmbio, pouco

interesse. Neste sentido, à exceção do Prata, levando-se em conta a importância do

charque como “matéria-prima” para a principal “indústria” brasileira, o comércio com os

países hispano-americanos era quase “[...] irrisório no conjunto do intercâmbio externo

350 BRASIL. Despacho de 4 de setembro de 1847 do ministro interino dos Negócios da Justiça. Apud URUGUAI, Visconde de. Discurso pronunciado na sessão do dia 4 de junho de 1852, pelo Ministro de Estrangeiros Paulino José Soares de Sousa, perante a Câmara dos Deputados. In: URUGUAI, op. cit.,p. 620. Grifos do autor.351 Para uma discussão teórica e conceitual entre “fronteiras” e “limites”, veja-se GOLIN, 2002, pp. 9-26.352 BRASIL. Relatório de Estrangeiros de 1838. Apud CERVO & BUENO, op. cit., p. 91.

94

Page 96: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

do Império [...]”.353 Segue-se daí que os tratados firmados com os vizinhos americanos, a

rigor, restringiam-se a garantir reciprocamente a aplicação dos princípio de nação mais

favorecida354. Consistentemente os tratados com os países americanos tinham mais uma

motivação de caráter político, de maneira a atender problemas concretos e específicos,

do que criar ou garantir vínculos econômicos; tocando-os, mas de maneira marginal355. A

fragilidade dos laços no convívio político Sul-americano não era surpreendente,

contudo; das ex-colônias hispânicas “[...] distanciavam o Brasil antipatias peninsulares

herdadas e transplantadas e prevenções filiadas na sua natureza imperial que parecia

prenunciar absorções [...]”.356

A característica e aparente despreocupação, ou, desaparelhamento do Estado

imperial para cultivar as relações com os demais Estados Sul-americanos, até mesmo no

que se refere aos limites, está patente na falta de uma estratégia que “[...] vinculasse

pensamento e ação [...]”. Faltavam as regras gerais pelas quais seria possível identificar

a presença de uma doutrina consistente para reger o comportamento do Estado frente aos

seus vizinhos. A chancelaria brasileira rejeitou o recurso a Santo Ildefonso com a Grã-

Colômbia em 1826, e em 1834 com a Bolívia. Por sua vez, recorreu a ele em relação à

Bolívia, em 1837. Deixou de reconhecer o uti possidetis como a base para os

entendimentos com o Peru em 1841, e com o Paraguai em 1844, quando recorreu ao

Tratado de Santo Ildefonso357. A ênfase numa diplomacia mais focada na América,

renovada no esforço que se verificou na década de 1840, demonstra em si a falta de

consistência e rigor naquelas relações. As mesmas intenções, ao menos no nível do

discurso, já estavam registradas a partir do primeiro Relatório da Repartição dos

Negócios Estrangeiros enviado à Assembléia Geral e Legislativa do Império, em 1831.

Este documento salientava que se deveria conferir “[...] mais atenção às missões na

América, comparativamente às da Europa e mais às relações comerciais do que políticas

353 ALMEIDA, op. cit. p. 140. Pela primeira vez este relatório apresentou o título “Fronteiras do Brasil”.354 Este princípio garante entre dois contratantes iniciais que, em caso de um deles assinar novo acordo sobre o produto que os unia, com um terceiro país, em condições mais vantajosas, aquela vantagem seria estendida ao outro dos parceiros iniciais.355 ALMEIDA, op. cit., pp. 138-140.356 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 153.357 CERVO & BUENO, op. cit., p. 90; ALMEIDA, op. cit., p. 124.

95

Page 97: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

[...]”.358 A nosso ver, a constatação desta falta de consistência nas relações entre o

Império e as Republicas hispano-americanas, está justamente ancorada na inexistência

de fatores de troca que engendrariam relações comerciais de maneira a vincular

efetivamente aqueles países e que, amiúde os lança nos turbilhões da incompreensão e

rancores recíprocos; do distanciamento construído a partir da manipulação e

aproveitamento político dos imaginários.

No Prata, propriamente, contrapostos os imaginários locais, a “Civilização”

contra a “Barbárie”359, de acordo com o esquema de Domingos Faustino Sarmiento,

intelectual opositor de Rosas, o “caudilho” governador de Buenos Aires constitui-se na

antítese do ideais das intelectualidades liberais citadinas. No Prata como no Brasil, as

cidades eram os centros irradiadores do progresso, canal das trocas comerciais e

intelectuais com os centros europeus; da civilização, em suma. Civilização contraposta à

bárbara existência do interior, das populações embrutecidas, gaúchos ou índios360. Neste

sentido há uma identificação do rosimo com uma ameaça, além de para com a

integridade territorial e com o projeto de consolidação do poder por parte das elites

políticas imperiais361, com o projeto de civilização que se pretende emanado da corte.

Da intelectualidade pratense que se opõe ao “[...] conservadorismo

nacional de Rosas [...]”362 despontam nomes como Herrera y Obes e Andrés Lamas,

ministro das Relações Exteriores do governo sitiado de Montevidéu, e seu ministro

plenipotenciário junto à corte do Rio de Janeiro, respectivamente. O governo oriental

estava, havia nove anos, enfrentando uma guerra civil, em que a parcialidade rebelde era

comandada por Oribe, lugar-tenente de Rosas, enquanto a tudo isto assistiam os

sucessivos gabinetes imperiais. Em 1850, Herrera y Obes e Lamas, contudo, recorreram

ao Império em desespero de causa, buscando apoio contra o garrote rosista que jugulava

358 ALMEIDA, op. cit., pp. 138-139.359 GOLDMAN, N. & SALVATORE, R. Introducción. In: GOLDMAN, N. & SALVATORE, R. (compiladores). Caudillismos Rioplatenses; nuevas miradas a um viejo problema. Buenos Aires: Eudeba, 1998, pp. 8-9; 360 GUIMARÃES, M.L.S. Nação e Civilização nos trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história Nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. 1/88.05-27. 1988, passim.361 Idem, p. 23.362 BESOUCHET, op. cit., p. 17.

96

Page 98: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

inexoravelmente o governo legal363. Os conservadores haviam assumido o governo em

1848, e estavam atravessando problemas terríveis para resolver, no campo das relações

internacionais. O fim do tráfico de escravos da África era a exigência britânica, pelo que

cresciam as ações dos cruzadores da Royal Navy. Apesar de longamente esperado, o fim

do tráfico causava sofrimentos atrozes para vir à luz, principalmente pela exagerada

aplicação do fórceps inglês, instrumento de violência inaudita contra a soberania do

Estado Imperial364.

A França, que emprestava seu apoio ao governo de Montevidéu na forma de uma

mesada, após o acordo de Le Predour, assinado com Rosas, decide retirar aquela ajuda

pecuniária. Senhor apenas da capital portuária, com os mandatos legislativos expirados e

sem poder organizar novas eleições por todo o território, o governo oriental parecia estar

com os dias contados. Nada dava a entender da próxima intervenção imperial, “[...]

depois de um longo período de afastamento [político do cenário regional]”365. Rosas

parecia com o caminho livre para a reconstrução do Vice-Reinado do Rio da Prata.

A natureza da atividade pecuária, espraiada pelas extensões de terreno, desde os

tempos coloniais desafiava a lógica dos limites preconizada pelos Estados. Por serem

espaços altamente permeáveis aos mais variados fluxos legais e ilegais de mercadorias

pessoas e relações “[...] ‘o mesmo centro que promovia, idealmente a arrumação das

fronteiras segundo perspectivas formalmente rígidas, percebera já a impossibilidade de

erradicar os fatores que perturbavam essa arrumação’ [...]”366. Este o caso do espaço

fronteiriço aos limites entre a República Oriental do Uruguai e o Império do Brasil, que

abarcava a peculiaridade do estabelecimento de pecuaristas luso-brasileiros, no Norte do

território oriental. Sobre aquela realidade afirmará mais tarde o então Visconde do

Uruguai: “As relações comerciais dos dois países estão determinadas [...] pela sua

proximidade, e pela [...] comixtão da população das fronteiras, da sua indústria, relações

363 Ibidem, idem.364 Veja-se a s transcrições dos discursos do Visconde do Uruguai dos dias 15 de julho de 1850, na Câmara dos deputados, e de 29 de maio de 1852, no Senado. In: URUGUAI, op. cit., pp. 537-598.365 BESOUCHET, op. cit., p. 19.366 MARTINS. Apud GOLIN, op. cit., p.20

97

Page 99: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

e interesses [...]”.367 Os espaços ao Norte do território Oriental, incultos em grande parte

ainda em 1850, ganharam grande incremento a partir da anexação do Estado Cisplatino

ao Reino Unido de Portugal Brasil e Algarves. Obtida a independência oriental, aqueles

mesmos estancieiros preferiram manter-se em território da república, dando azo a uma

série interminável de confrontos diplomáticos entre os governos de Montevidéu e do Rio

de Janeiro. O empenho dos estancieiros brasileiros em crescentemente adquirirem terras

no Uruguai, vinha da superioridade daqueles campos para a engorda do gado vacum, que

era, então, vendido às charqueadas no Rio Grande do Sul, para a feitura do charque que

iria alimentar a escravaria brasileira, bem como as suas populações pobres. Entre

aqueles estancieiros brasileiros encontram-se homens importantes no cenário provincial

do Rio Grande do Sul e do Brasil, como Antônio de Souza Neto, o marechal barão de

Porto Alegre e o general João Propício Menna Barreto, além do marechal João Frederico

Caldwell368.

Não obstante, dividido o Uruguai pelas facções em guerra civil, aqueles

estancieiros brasileiros, ou suas propriedades, sofriam as conseqüências das demandas

do conflito doméstico: requisições de gados vacum para alimentação, cavalar para

transporte e tração; mantimentos de toda ordem incluindo serviço militar forçado. Os

súditos do Império residentes no território oriental passaram a sofrer uma onda

engrossada de represálias e violências de toda ordem, uma vez que o Império,

formalmente, apoiava o governo legítimo, sitiado em Montevidéu. Impotente para

esboçar uma reação, o governo Imperial parecia alheio aos problemas daqueles

proprietários que, cada vez mais recorriam às suas relações com o território gaúcho, para

a mobilização de tropilhas particulares, para ações de represálias em território oriental.

Foi este clima de inquietação e de violência crescente, além das impertinências de Rosas

para com o governo de Sua Majestade, que forçaram uma revisão das posições imperiais

em relação a Rosas369. Mais tarde, em 1857, o Visconde do Uruguai declarou que o

transtorno das relações comerciais, nos fluxos de gado por aquela fronteira, foi “[...] uma 367 BRASIL – URUGUAI. Protocolo de ajuste do tratado de navegação e comércio de 04 de setembro de 1857, de 11 de julho de 1857. In: VASCONCELOS, op. cit. vol I,368 Conforme aparece na nota do ministro do Império em Montevidéu, de 16 de dezembro de 1852, citada em: VACONCELLOS, op cit., vol I p.40.369 URUGUAI. Carta de Lamas a Herrera y Obes, de 21 de Março de 1850. In: BESOUCHET, op. cit., p. 21.

98

Page 100: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

das causas poderosas que levaram o Brasil a tomar em 1851 a parte que tomou na guerra

que derribou o governador de Buenos Aires e sua influência [...]”370.

O problema, contudo não se esgotava aí, segundo transparece de uma carta do

plenipotenciário oriental radicado na corte, ao ministro das relações exteriores de seu

país:

“[...] ‘Creio que o governo imperial teme robustecer Montevidéu antes de estar seguro de obter os objetivos que se propôs ao salvá-lo, que são: [...] acertar definitivamente a questão dos limites, demarcá-los sobre o terreno e estabelecê-los solidamente; concluir algumas estipulações de comércio de conveniência recíproca. V. Exa. Conhece as pretensões do Brasil no que se refere aos limites. Quer o governo aceder às pretensões de território, ao preço que se sabe?’ [...]”.371

O registro do missivista apresenta a análise insuspeita do representante oriental

sobre as intenções do governo imperial, a respeito de quem, a rigor, os políticos do Prata

não podem ser acusados de condescendência. De qualquer modo, o testemunho vem

ajustar-se com as análises historiográficas que temos apresentado, sobre a proeminência

das questões de limites no contexto das relações do Império com os demais países da

América do Sul com os quais faz fronteira.

Ainda de acordo com o que foi registrado pelo ministro oriental junto à corte, em

março de 1850 o Império já havia admitido a necessidade de articular uma ação contra

as ameaçadoras pretensões de Rosas, consubstanciadas mais proximamente do território

brasileiro na rebelião chefiada por Oribe. Esta admissão não considerava, contudo, como

necessária a opção armada:

“Me parece que se reconoció bien la dificultad de evitar la guerra entre este pais y la llamada Confederación Argentina; y en consecuencia, se resolvió prepararse seriamente para ella, haciendo entretanto todo lo possible para evitarla, y, sobre todo, para ganar el tiempo, que demandan los preparativos que estimaron necessários.”372

370 BRASIL – URUGUAI. Protocolo de negociação sobre a revisão do Tratado de Navegação e Comércio de 12 de outubro de 1851, assinado em 15 de julho de 1857, In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 223.371 Carta de Lamas a Herrera y Obes, apud CALDEIRA, op. cit., p. 217. Grifo nosso.372 URUGUAI. Carta de Lamas a Herrera y Obes, de 21 de março de 1850. In: BESOUCHET, op cit., p. 21. Grifo nosso.

99

Page 101: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Lamas informava que o Império procurava, contudo, algum aliado regional

dentre o Paraguai de López, e as demais províncias da Confederação Argentina que se

opunham a Rosas e Buenos Aires. Sem um aliado o Brasil se absteria de intervir e

precipitar uma guerra para a defesa de Montevidéu, para a qual não estava preparado, e

precisava de tempo para tanto. Contudo, com a notícia da retirada do apoio Francês ao

governo oriental, o governo brasileiro...

“[...] juzgando que no podia impedirse la caída de Montevideo sino por actos que precipitasem la guerra antes de estar preparados y de saber la resolución del Paraguay y suponiendo que la conservación de Montevideo no compensaria ni la falta de um aliado que tiene por indispensable, ni la de preparativos, se pensó, y aún se resolvió, abandonar a su suerte aquella atormentada ciudad.”373

Lamas acreditava que somente a eclosão de um fato novo e importante no Rio

Grande do Sul, como um ataque platino contra o Barão de Jacuí, que arregimentara uma

força de cavalarianos para aplicar represálias contra o dispositivo oribenho, demoveria o

Império da sua posição de expectador interessado. Mesmo assim Lamas solicitara, se

não o apoio militar direto contra Oribe, algum auxílio pecuniário. Entretanto, mesmo a

concessão deste auxílio periclitava, em função da anunciada retirada da França, o que

deixava o governo de Sua Majestade com medo de ver-se isolado e exposto à

reclamações e revides bonairenses, em virtude de sua alegada neutralidade material

frente às facções orientais em luta374. Por fim, de acordo com o representante oriental no

Rio de Janeiro...

“Em la mañana del 20 me escribió el señor Paulino que me recibiría a las 2 de la tarde; y en la conferencia de esa hora, después de manifestarme el interés del gobierno imperial en encontrar a Montevideo en pie el dia, que parecia próximo, de una guerra com sus enemigos; y de haberme, sin embargo, repetido que harían lo que pudieran para evitarla sin mengua del honor, concluió por asegurarme había un negociante que me proporcionaria la mayor parte de los artículos de guerra que necesitaba, haciendose cargo de el flete, gastos, etc. como yo deseaba”.375

373 Idem, p. 22.374 Ibidem, idem.375 Ibid. p. 23.

100

Page 102: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

A solução dos problemas do angustiado ministro do governo oriental, segundo

seu próprio relato, permite-nos estabelecer que a decisão brasileira de intervir contra

Rosas naquele momento, encaixa-se com nossa formulação anterior a respeito das

políticas brasileiras em relação aos vizinhos. Mesmo para o caso do Prata, como se vê,

estas políticas tinham um caráter eminentemente reativo, e respondiam às imposições do

momento histórico. A reação imperial contra Rosas e Oribe, em nada sugere ter sido

gestada no seio de uma estratégia adrede preparada.

Da mesma maneira não temos encontrado referência à ligação das questões

platinas com os sérios problemas que se desenrolavam entre os governos imperial e

britânico. Ora, em março de 1850, a marinha inglesa jugulava o comércio marítimo

brasileiro, e acendia a indignação da população e da oposição liberal pela incapacidade

do Estado imperial defender sua soberania376. Por certo seria temeroso supor que o

governo brasileiro estaria buscando, naquele momento preciso, deliberadamente, o

estabelecimento de “[...] uma política de potência periférica regional, auto-formulada,

contínua e racional, na medida em que se guiava por objetivos próprios, aos quais

subordinavam-se os métodos e os meios”377.

Contudo, como se viu da carta de Lamas a Herrera y Obes, o governo de Sua

Majestade buscava uma solução para os problemas causados por Rosas. Evidentemente,

para evitar que ele pudesse vir a afrontar o Império a partir de uma posição mais

vantajosa, era preciso não permitir a queda do governo legal em Montevidéu. Portanto,

foi a Irineu Evangelista de Souza, o rico comerciante, recém transmutado em industrial

que o governo conservador recorreu, materializando a possibilidade de socorro a

Montevidéu. Mais do que o apelo ao futuro barão, na verdade o seu atendimento, surgia

justamente da lógica dos favores que dirigia a sociedade imperial, assim como do

momento da disponibilidade de capitais e de florescimento das possibilidades

376 CARVALHO, 2003, p. 297.377 CERVO & BUENO, op. cit., p. 109. Também, Jorge Caldeira defende que, como o tráfico assumira um caráter de resistência nacionalista, desde que vinha significando a resistência contra as pressões da poderosa Inglaterra, a suspensão do tráfico atirou o orgulho nacional num abismo. Nasceu daí a decisão de estabelecer o Prata como “[...] um novo espaço de influência econômica [...]” Op. cit., p. 223.

101

Page 103: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

econômicas surgidas com o fim do tráfico. Dependente da boa vontade das elites

políticas que dominavam o Estado para a consecução dos seus planos de expansão dos

negócios - principalmente a próxima criação do que se tornaria o segundo Banco do

Brasil, e que poderia estender suas atividades até o mercado platino378 - o industrial

acedeu à convocação imperial.

Através de financiamento ao Estado oriental, o Sr. Irineu garantiu-lhe a

sobrevivência, investindo “[...] interesses meus de vulto [...]”.379 É preciso salientar, de

qualquer maneira, que ainda que arregimentado pelo governo brasileiro, Irineu estava

por sua conta no Uruguai, não havia garantias outras, para o retorno do seu dinheiro

investido lá, do que a capacidade do Estado platino em recuperar-se e, então, pagar-lhe

de volta. Obviamente, esta capacidade estava atrelada à pacificação interna e ao

crescimento da economia interna, em seguida. Portanto, não é possível confundir o

Estado imperial com a pessoa do futuro Visconde de Mauá, “[...] eram forças paralelas e

soberanas, ainda que agissem em conjunto em algumas circunstâncias [...]”.380 Mais

tarde, em virtude das dificuldades que encontrou, a partir da volatilidade a situação

política interna da República oriental, e dos limites impostos pelas rivalidades entre as

nacionalidades, Irineu desabafou com quem já se tornara um grande amigo:”[...] a vista

disso creio que é hora de eu também desanimar [...] maldita hora em que fui levado a

entrelaçar-me no Rio da Prata! [...]”.381

De qualquer maneira, alertado Rosas sobre o acordo entre o Brasil e Montevidéu,

os acontecimentos se precipitaram, e o Império viu-se em guerra mais cedo do que

imaginara382. A alianças de 29 de maio – que determinou a rendição de Oribe ainda em

1851 - e 21 de novembro de 1851 uniram as províncias Argentinas de Entre Rios e

Corrientes, além do Brasil e Montevidéu, que rapidamente derrotaram Rosas na batalha

de Monte Caseros, em 3 de fevereiro de 1852, Ainda em 1851, em 12 de outubro, a

República Oriental do Uruguai e o Império do Brasil celebraram uma série de cinco 378 CALDEIRA, op. cit., p. 219; “[...] campo de expansão para sua indústria nascente [...]” BESOUCHET, op. cit., p. 20.379 Carta a Lamas de novembro de 1860. In: MAUÁ, op. cit. pp. 116-117.380 BESOUCHET, op. cit., p. 20; a dicotomia aparece também em CALDEIRA, op. cit., p. 192.381 Carta a Lamas de 10 de abril de 1858. In: MAUÁ, op. cit. p. 68.382 CALDEIRA, op. cit. pp. 217-218.

102

Page 104: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

tratados: de aliança, de extradição, de comércio e navegação, de limites e de prestação

de subsídios383. O tratado de comércio e navegação era o primeiro ratificado pelo

governo brasileiro na nova fase das relações externas iniciada após 1844, com a extinção

do tratado inglês; “[...] seguia uma terminologia que seria praticamente reproduzida ipsis

litteris nos demais instrumentos do gênero. A cláusula de nação mais favorecida estava

no artigo 2º [...]”384:

“Las dos altas partes contractantes, deseando poner el comercio y la navegación de sus respectivos países sobre la basa de una perfecta igualdad y benévola reciprocidad, convinieron mutuamente en que los agentes diplomaticos y consulares, los ciudadanos y súbditos de cada una de ellas, sus buquês y los productos naturales ó manufacturados de los dos Estados gozen reciprocamente en el otro de los mismos derechos, franquicias é immunidades yá concedidas, ó que se concedieren en adelante á la nación más favorecida, siendo gratuita la concesión si lo fuere ó hubiere sido para esa nación, y quedando estipulada la misma compensción si la concesión fuere condicional.”385

Enquadrados no processo de consolidação dos Estados nacionais, o mero

estabelecimento de mecanismos reguladores das relações entre os países, como os

tratados de 1851, por si já representava um avanço. A liminaridade entre o Uruguai e o

Brasil jamais havia gozado de termos recíprocos de convivência, e regras gerais para

regular aquele tipo de relação. O estabelecimento das negociações que conduziram ao

tratado, como ratificado, fazia parte do esforço realizado pelo governo oriental para

atrair aliados para a sua causa contra Oribe e Rosas, tendo para isso aceito pedidos

reiterados do ministro oriental no Rio, o Sr. Lamas. O estabelecimento de um tratado

sobre fronteiras, sabendo-se das pretensões rosistas quanto aos limites estabelecidos pelo

Tratado de Santo Ildefonso, seria uma vitória política importante. Além disso, a

regulação do comércio pela fronteira imporia óbices importantes, no plano internacional,

a qualquer plano agressivo proposto por um eventual novo governo que se estabelecesse

em Montevidéu. Neste sentido Andrés Lamas, propôs a abertura de negociações, “[...]

dando como razão a conveniência de remover todo o motivo de ulterior desinteligência,

383 VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p.9.384 ALMEIDA, op. cit. p. 140. 385 BRASIL – URUGUAI. Tratado de Comércio e Navegação entre o Brasil e a República Oriental do Uruguai. In: VASCONCELLOS, op. cit. vol I, pp. 12-13

103

Page 105: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

e colocar as relações dos dois Estados sobre bases claras e bem definidas [...]”.386

Conforme exporemos, entretanto, infelizmente as intenções do senhor Lamas não

tiveram um efeito imediato.

O pedido do representante uruguaio só foi atendido após a celebração do

convênio de 29 de maio de 1851, que alinhou Brasil, a província de Entre Rios e

Montevidéu, contra Oribe387. De acordo com o governo imperial, este fato se deu em

função da necessidade de proteger o Império de alegações de ter-se aproveitado da

fragilidade da posição oriental, para obter um acordo vantajoso388, ou baseado na coação.

A partir de 29 de maio de 1851 o Estado oriental já não estava isolado, e já se havia

estipulado qual e como se daria o auxílio imperial à sua causa. Mesmo que a partir dali o

governo platino se decidisse por encerrar as negociações quanto a um tratado, a ajuda

brasileira já estaria estabelecida por um instrumento internacional válido e legalmente

reconhecido389.

2.4 – Instituições, regulações e o caminho da guerra.

As pressões portenhas, descrédito financeiro, desordem da produção; fronteiras

largas e contrabando desenfreado que afetava negativamente o orçamento, a natureza

aventureira da grande massa de estrangeiros que chegava a Montevidéu; o baixíssimo

poder de compra das populações rurais, arregimentadas para as lutas políticas “[...]

transformavam o Uruguai num país de ínfima capacidade consumidora e incapaz de se

estabilizar [...]”.390 As paixões políticas afloradas permitiam toda sorte de

aproveitamento político dos acontecimentos e da maneira com que se encontraram

encaminhamentos para as graves questões que afligiam o país Oriental...

386 BRASIL. Discurso do Sr. Paulino José Soares de Sousa pronunciado na sessão do dia 4 de junho de 1852, na Câmara dos srs. deputados. In: CARVALHO, 2002, P. 608.387 O Paraguai juntou-se a esta frente contra Oribe, em 14 de outubro de 1851.388 Veja-se, sobre as intenções do Império, a transcrição da carta de Lamas a Herrera y Obes feita por Caldeira, à nota 343.389 BRASIL. Discurso do Sr. Paulino...In: URUGUAI, op. cit., pp. 607-608, 611.390 BESOUCHET, op. cit., p. 33

104

Page 106: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“[...] tratados [de base meramente política, no dizer de Mauá] que foram a tábua da salvação em que escapara de um naufrágio infalível a nacionalidade Oriental foram desde logo mal apreciados [...] e tornaram-se a origem de lamentáveis recriminações, quer da imprensa periódica de ambos os países, quer da parte de membros do Parlamento, tanto em Montevidéu como aqui [a corte], azedando os ânimos e dificultando [...] o acordo de idéias entre os governos [...]”391

O desabafo de Mauá é importante, na medida em que oferece uma visão sobre as

situação, baseado que estava na defesa dos seus interesses mais imediatos, mas que,

diante das circunstâncias, estavam diretamente vinculados à necessidade de se manter

estável a situação interna bem como a relação entre os dois países. Ademais, as

motivações liberais de Mauá estavam em franco desacordo com o que aceitavam como

próprio as elites políticas brasileiras392; neste sentido, a análise política que se percebe

em Mauá oferece uma base para a crítica do complexo político que implicava nas

relações do Estado imperial, com o Estado uruguaio.

Francisco Giró assumiu o governo oriental em 1º de março de 1852; o novo,

presidente sendo membro do partido blanco, o mesmo do qual Oribe, contra quem o

Império fora à guerra, era integrante. Este partido iniciou, então, uma série de investidas

contra os Tratados de 12 de outubro de 1851, alegando entre outras coisas não serem

eles legítimos, por não terem sido ratificados pelo congresso.393 Ora, o fato de não ter

sido possível obter o aval do Legislativo, por ocasião da ratificação dos Tratados,

explica-se pelas condições internas da República Oriental, que impediam a realização de

eleições legislativas. Entretanto, o governo de Montevidéu era o governo de direito, e

como tal era reconhecido pela comunidade internacional, enfeixando, naquela situação

extrema, todos os poderes da República,394 apto, portanto, a contrair compromissos

internacionais.

De fato, contra a posição do governo uruguaio, o Império argumentou que o

convênio de 29 de maio de 1851, que permitiu a superação da guerra civil, havia sido

391 MAUÁ, carta a Lamas, de novembro de 1860. In: MAUÁ, op. cit. p. 117392 BESOUCHET, op. cit., p. 31; CALDEIRA, op. Cit., p. 190; OLIVEIRA LIMA, op. cit., p.69.393 Veja-se URUGUAI. Nota do ministro das Relações Exteriores ao Plenipotenciário brasileiro de 23 de março de 1852. In: VASCONCELLOS, op cit., vol I, p. 27.394 VASCONCELLOS, op cit., vol I, p. 29.

105

Page 107: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ratificado apenas pelo Executivo do país, independentemente do Legislativo, e foi aquele

compromisso que preparou o convênio de 21 de novembro de 1851, que “[...] levou a

guerra à margem direita do Prata e destruiu a tirania de Rosas [...]”.395 O mal-estar,

entretanto continuava, insuflado, também, pela própria oposição e imprensa brasileiras,

que acusavam o governo imperial de ter obtido os tratados sob coação. Contudo, o

governo Giro, não só nas relações com o Império empregava as práticas políticas

tradicionais dos caudilhos, ou potentados locais, senão, também, no âmbito doméstico.

O uso do enfrentamento direto, quer contra o Estado vizinho, quer contra sua oposição

interna, o fragilizava na medida em que robustecia seus adversários: “[...] os atentados

que eles têm cometido contra todos os direitos levarão os espíritos a tal ponto de

irritação que sua queda parece infalível em qualquer casa [...]”.396 De fato, e

paradoxalmente, o governo Giró teve que recorrer às “[...] garantias do tratado de aliança

do grupo de 1851, em virtude da ameaça de revolução [...]”,397 e o Império socorreu-o,

na condição de governo legal.

Não obstante, os tratados continuaram a trazer uma série interminável de

reclamações, reivindicações e modificações que conduzirão a um clima de extrema

irritação entre as partes.398 Já em 30 de abril de 1852, o ministro da Confederação

Argentina intermediava uma proposta de modificações399, que incluíam reformas no

tratado de limites. O pleito Oriental fazia recuar para o norte aquele limite, implicando

em ganho de território para a República. Os desejos orientais foram acolhidos pelo

Império, e a linha demarcatória foi modificada de acordo com a vontade do governo

platino,400 sendo para isto estabelecido o tratado de 15 de maio de 1852.

395 BRASIL. Nota do plenipotenciário brasileiro, Honório Hermeto Carneiro Leão, ao ministro da Relações exteriores oriental, Florentino Castellanos, de 17 de abril de 1852. In: Idem, p. 28396 MAUÁ, carta a Lamas, de 21 de abril de 1852. In: MAUÁ, op. cit., p. 40.397 VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 30. Novamente, após a eleição de Flores, em 11 de marco de 1853, atendendo a um pedido do governo uruguaio baseado no tratado de aliança de 12 de outubro de 1851, o Império enviou à Montevidéu, 4.000 homens para garantir a ordem pública. PARANHOS, nota 1 In: SCHNEIDER, op. cit., vol I p. 21.398 JOURDAN, op. cit. pp. 11-ss.399 VASCONCELLOS, op. cit., p. 31; encontra-se ali a lista das modificações pretendidas.400 Idem, pp. 31-33; JOURDAN, op. cit. p. 11.

106

Page 108: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Entretanto, a implementação de regras como as previstas nos tratados, sobre

largas extensões de terra sem possibilidade de fiscalização, opondo-se a práticas há

muito estabelecidas como tradição, deveria encontrar resistências. De parte a parte

surgiam reclamações e cobranças quanto ao descumprimento dos acordos,

principalmente quando a transgressão cometida pelo outro confrontava perceptivelmente

o interesse de uma das partes. As violações, eventualmente interessantes para um ou

outro dos lados interessados, permaneceram convenientemente ocultadas pelas lonjuras

dos prados, vigiados pelo gado e pelos quero-queros401.

Do arranjo institucional do Império, temos defendido que a centralidade exercida

pela corte escorava-se nos interesses que rodeavam a estrutura financiadora do complexo

cafeeiro fluminense, numa conjunção de interesses e geografia. O outro pilar deste

arranjo era a união das províncias através de relações com o centro político,

caracterizadas por um caráter federativo. Neste sentido, o Rio Grande do Sul e suas

elites, estão inseridos num sistema que, embora garanta a participação provincial na

política nacional, não representa a defesa de interesses particulares por parte do governo

central.402 Os grandes pecuaristas gaúchos, ligados às relações de fronteira com o

Uruguai, de fato têm problemas em defender seus interesses em função das políticas

tarifárias do governo central. A maioria dos interesses reunidos na Assembléia Geral

está, na verdade, preocupado em não onerar a importação do charque platino, forçando o

preço do produto do Rio Grande do Sul para baixo, como meio de manter a

competitividade. O charque era produto básico da alimentação dos escravos e das

populações pobres: “[...] a matéria prima para os nossos estabelecimentos de lavoura tão

ameaçadas de decadência [...]”.403 Além do mais, as próprias taxas provinciais,

determinadas pela Assembléia provincial do Rio Grande do Sul, continuavam a ser

cobradas, onerando o charque gaúcho: “[...] os produtos do gado que se exportam do Rio

401 Como exemplo: o governo Oriental informara ao governo imperial sobre a captura de negros livres em território uruguaio, para serem escravizadas no Rio Grande do Sul. “[...] o governo imperial expediu as convenientes ordens para prevenir a continuação desse crime, e punir seus autores e cúmplices. Recomendou muito especialmente o governo imperial que fossem restituídas à liberdade as vítimas de tamanha cobiça [...]”. BRASIL. Relatório de Estrangeiros de 1855. Apud. VASCONCELLOS, op. cit. pp. 50-51402 DOHLNIKOFF, op. cit. pp. 224-225.403 BRASIL. Parecer do Conselho de Estado de 2 de abril de 1857. In: VASCONCELLOS, op cit., vol I, p. 156

107

Page 109: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Grande para os demais portos do mesmo Império estão sujeitos a um imposto provincial

de 3% [...]”404.

Percebem-se, portanto, níveis de tensão, provinciais e nacionais, onde o

pecuarista parecia perder sempre. Se havia um antagonismo nos interesses entre os

pecuaristas e a elite política provincial, que “[...] não aceitava como solução a

diminuição de impostos provinciais que também gravavam os produtos [...]”,405 entre a

província e o governo central também se estabelecia uma disputa, na medida em que a

bancada nacional do Rio Grande do Sul na Câmara dos deputados, lutava para modificar

a legislação central sobre os impostos.

Todas estas tensões se compunham, quer no campo doméstico quanto no

internacional, em problemas de monta para o governo imperial. No primeiro caso,

prevaleceram os interesses fiscais das demais bancadas provinciais, principalmente as

produtoras de sal, e do próprio governo imperial, que pode sustentar os ganhos do

Tesouro.406 Esta era uma situação potencialmente perigosa, pois, o precedente histórico

demonstrava que o descuido do governo para com as demandas das elites pecuaristas

gaúchas, podia transmutar o seu federalismo e insuflar pendores republicanos.407 No

segundo, aquelas relações de fronteira,408 entre o Rio Grande do Sul e a República

Oriental transtornavam o convívio entre os dois Estados; convívio permanentemente

sobressaltado pela fragilidade das instituições Orientais, e instabilidade política entre os

seus partidos. A confusão e desordem dos serviços públicos e a fragilidade da rede

administrativa preveniam que os funcionários do Estado Oriental, muitas vezes, sequer

conhecessem os tratados sobre cujo cumprimento deveriam exercer fiscalização.409 A

partir das estipulações contidas no art. 4º do Tratado de Comércio e Navegação, de 12 de

404 URUGUAI. Parecer da Comissão Especial da Câmara de Representantes sobre o tratado de comércio e navegação de 4 de setembro de 1857. In: VASCONCELLOS, op cit., vol I, pp. 296-297.405 Idem, p. 225406 DOHLNIKOFF, op. cit., pp. 215, 274-276.407 OLIVEIRA LIMA, 1989, op. cit. ; FLORES, M. Apud, DOHLNIKOFF, pp. 206-207.408 Tais relações eram constituídas pelos interesses de estancieiros, que poderiam ter terras e parentes do outro lado da divisa, e vice versa, interesses ainda mais intrincados se se considera que os casamentos entre pessoas das duas nacionalidades complicavam ainda mais as opções individuais sobre a escolha das lealdades.409 VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp. 35-36.

108

Page 110: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

outubro de 1851, montou-se o principal ponto de atrito entre os dois governos. Firmou-

se nos governos orientais que se sucediam, a idéia da necessidade de uma revisão

daquele art. 4º:

“Para ampliar y facilitar el comercio que por la frontera de la provincia del Rio Grande de San Pedro se hace con el Estado Oriental del Uruguay, se convinó en que seria mantenida por el espacio de diez años la exención de derechos de consumo de que actualmente goza el charque y los demás productos de ganado, importados em la provincia del Rio Grande por la referida frontera, conviniendose en que continuem equiparados á iguales productos de la dicha província; y como compensación se convinó igualmente en la total abolición del derecho que cobra actualmente el Estado Oriental por la exportación del ganado en pie para la mencionada provincia del Rio Grande, conviniéndose en que esa exportación se haga de ahora en adelante libremente y exenta por los mismos diez años, de esse y de cualquiera derecho.”410

Além das pressões vindas do costado meridional do Império, domesticamente o

governo brasileiro ainda estava exposto à oposição política formal e à opinião pública,

embalada pela imprensa, que explorava os problemas cotidianos como a carestia dos

produtos básicos, principalmente o charque, sofrendo de crescente escassez e

conseqüente aumento dos preços. Qualquer problema de abastecimento com o charque

tinha o condão de alinhar contra o governo desde a classe plantadora, até os setores mais

baixos da população, em virtude do caráter cultural do consumo. Neste sentido o

governo esboçara um esforço de adequar as tarifas incidentes sobre as importações de

produtos básicos por via marítima, incluindo charque, de maneira a abaixar-lhe o preço

no mercado interno. Este projeto fiscal do governo brasileiro deu azo, curiosamente, à

primeira reclamação do governo oriental, através de Lamas, feita em 1854.

Quando o projeto fiscal definitivo foi publicado, em meados de 1856,411 Lamas

manifestou-se novamente com uma nota em 14 de outubro daquele ano.412 Do ponto de 410 BRASIL – URUGUAI. Tratado... Ibidem, pp. 13-14.411 Segundo o Relatório da Fazenda de 1856, a diferença na arrecadação do Tesouro, para menos, seria de 900.000$000 rs. Isentava-se produtos como farinha de trigo, charque, bacalhau, sal, chá, ferragens. Havia também favores à indústria: ferro em barra, cobre em chapa, cobre em barra sofreram reduções nas tarifas. Ibidem, pp. 65-66.412 Ibid., pp. 66-67. O Relatório de Estrangeiros de maio de 1857 refere-se àquela reclamação uruguaia, p. 55.

109

Page 111: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

vista oriental, sendo diminuídas as alíquotas da importação que incidiam sobre os

produtos uruguaios, a rigor o Império diminuía, também, o quantum que, em tese,

deixava de arrecadar. Este montante era importante pois equilibrava o sacrifício que o

Uruguai fazia, por ter aberto mão do imposto sobre a passagem do gado em pé pela

fronteira. Desfazia-se, na prática, a reciprocidade garantida pelo art. 4º do Tratado. Para

o governo uruguaio, seu país tendia a fazer maiores sacrifícios em benefício dos

charqueadores gaúchos, do que o Brasil, a favor dos charqueadores orientais, com claros

reflexos fiscais. Por sua vez, a argumentação do ministro uruguaio se fragilizava, pois o

mesmo relatório de estrangeiros de 1856 denunciava a retaliação oriental; no Uruguai, se

implantara a cobrança dos “impostos departamentais”, um imposto que incidia sobre a

passagem do gado pela fronteira de cada departamento produtor, o que também feria

frontalmente a letra do Tratado.413

Ora, o Uruguai carente de ordem e organização interna dependia de alguma

estabilidade institucional. A situação das finanças era extremamente preocupante, e o

Estado estava pressionado, pela situação interna, e devia por todos os meios criar as

rendas necessárias para evitar a desordem414. Esta uma das razões da ansiedade oriental

em reclamar contra o desequilíbrio percebido nas vantagens auferidas com as concessões

fiscais mutuamente acertadas. Contudo, para Vasconcellos, o primeiro objetivo do

governo Oriental não era a equiparação das isenções, mas forçar uma renegociação dos

tratados de maneira a obter uma revisão nas questões referentes à navegação nas águas

da Lagoa-Mirim e no rio Jaguarão415.

De fato, é de muito difícil compreensão a natureza da reclamação uruguaia, visto

que qualquer isenção de impostos aos produtos orientais, no Império, só poderia baratear

os custos do produto importado, incentivando o seu consumo e a produção Uruguaia, à

medida que incentivava o consumo no Império, onde havia um grande déficit de oferta

de charque. Aliás, no momento em que os dois governos convieram na revisão do

tratado, em setembro de 1857, é curioso notar que o que os orientais imporão, na

413 Ibid., pp. 55, 103.414 MAUÁ. Carta a Lamas de 14 de setembro de 1856. In MAUÁ, op. cit., pp. 52-53.415 VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp. 67, 77, 117-118.

110

Page 112: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

verdade – e paradoxalmente - será a completa isenção das tarifas do produto importado

por mar. A rigor, estenderam o benefício ao produto que entrava no Brasil pelos portos,

pois o charque que era importado pela fronteira terrestre, conforme o estabelecido pelo

art. 4º, já vigorava desde 1851. Seja como for, no momento anterior à reforma do tratado

de comércio, em 1854, as Seções dos Negócios Estrangeiros e da Fazenda, do Conselho

de Estado, desaconselharam a abertura de negociações para uma revisão do Tratado de

1851, conforme pedido pela República. Em seu parecer nº 177, de 20 de novembro

daquele ano, os conselheiros acreditaram que qualquer modificação no tratado seria

inócua,416 em função da instabilidade interna da República; além disso, defendiam a

idéia de que não deveria haver pressa nas negociações, dando tempo ao país Oriental

para se reorganizar. O estado de coisas no Uruguai mantinha desorganizada a produção e

impedia o povoamento da campanha. Quanto à questão da navegação que referimos

acima, embora tenha sido contemplada pela revisão do tratado de quatro de setembro de

1857, os Orientais só puderam “[...] ver realizadas as suas justíssimas pretensões [...]”417

em 1909.

Mauá, o maior interessado privado na normalidade da administração e do

comércio orientais, mantém intensa articulação com o amigo Andrés Lamas. Diz-lhe

que as reclamações de seu governo faziam muito barulho por uma causa menor, como a

reclamação sobre as isenções na transferência de gado em pé para o Rio Grande do Sul.

Segundo Mauá, a saída de gado em pé nunca deve ter ultrapassado 70.000 patacões...

“[...] até agora o Estado Oriental é que tem lucrado porque é notório terem entrado para o Estado Oriental mais de 36.000 reses de gado de criar, o que excede muito ao gado de corte que tem passado do Estado Oriental para o Brasil. No mal-estar de que se recente a República, os tratados com o Brasil não têm por ora culpa alguma; o que a respeito se diz na República não tem pois base; é imaginação [...] por tão pouco não vale a pena romper e colocar as relações entre os dois países em mau pé, conservando-se o espírito público ali em contínua agitação contra um mal imaginário[...]”418

416 Ibid., pp. 118-119.417 Ibid., p. 447.418 MAUÁ. Carta a Lamas de 26 de setembro de 1856. In: MAUÁ, op. cit. p. 54.

111

Page 113: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Não obstante, o ministro Oriental junto à corte permaneceu firme na defesa das

pretensões de seu governo – Mauá tem plena consciência do que seriam iniciativas de

Lamas, e o que seriam imposições das ordens vindas de Montevidéu. Segundo Mauá

desabafa com o amigo Lamas, a insistência oriental com a reforma tarifária brasileira,

demonstra que seu governo não tem olhos para o estudo dos “[...] meios de sanar os

males reais que impedem a consolidação da paz e a ordem nas finanças [...]”.419 “Donde

está la exención de un impuesto de 25% adquirida por la Republica mediante los

sacrificios que hizo por el art 4º de su Tratado de Comercio con el Brasil?”420

Contudo, em outubro de 1856 a insistência enervante, por partir de bases tão

discutíveis, do governo Oriental em abrir negociações para a revisão do tratado parece

ter aberto as primeiras brechas junto ao governo brasileiro - a lentidão administrativa

brasileira respondia em grande medida pela demora, mais do que qualquer má vontade a

priori, em relação ao Uruguai. O Império foi levado a negociar, trazido pela mão do

ministro uruguaio.

Os documentos trocados entre as autoridades brasileiras a respeito da abertura de

negociações para uma revisão no Tratado de 12 de outubro de 1852, por sua vez,

revelam uma intenção deliberada de retardar a efetivação do início dos trabalhos. Um

exemplo aplicável à falta de objetividade da qual um velho positivista, que servira ao

Império, escrevera com irritação em 1893 a respeito da política externa brasileira após a

derrota de Rosas: “[...] a política moderna das tergiversações, das tangentes, dos zig-zags

e das condescendências [...]”.421 José Maria da Silva Paranhos, ministro de Estrangeiros

do Império, após receber o projeto uruguaio com as bases de um novo tratado,

comunicou a Lamas estar aguardando dados do ministério da Fazenda e da presidência

da província do Rio Grande do Sul, de maneira a avaliar a procedência das reclamações

uruguaias. De posse daquelas informações poderia, então, informar o governo imperial

419 Idem, idem.420 URUGUAI. Nota nº 1, de 14 de outubro de 1856. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 71.421 JOURDAN, op. cit., p. 9. As vacilações, atrasos e protelações promovidas pela parte do governo brasileiro, para Vasconcellos, eram fruto das desconfianças nascidas do antagonismo colonial. Op. cit. p, 141.

112

Page 114: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

sobre a conveniência de modificações no Tratado de 1851.422 As informações que

Paranhos diz a Lamas ter solicitado junto a outras autoridades do governo, na verdade, já

estavam de sua posse naquele mesmo dia, 30 de outubro, o que indica a intenção do

governo imperial em seguir a linha sugerida pelo Conselho de Estado, ainda em 1854.423

Por se turno, a pressa dos orientais incomodava o governo brasileiro, o problema

passa a ser a disputa entre a insistência uruguaia e a política protelatória de São

Cristóvão: “[...] três, quatro e mais meses não é muito tempo para iniciar e levar a efeito

negociações importantes. O Sr. Lamas porém acha tudo fácil e quer tudo a pressa. O

possível espero que se fará [...]”.424 Estas “boas intenções” dos homens de governo do

Império, foram dadas a conhecer a Lamas por Mauá, que lhe escreveu dizendo que suas

esperanças na abertura das negociações eram não só possíveis, como prováveis.425 Não é

de crer que Mauá estivesse ciente daquela política de retardar o início das negociações.

Além dos atrasos deliberados, acentuavam as demoras os costumes dos

interlocutores do governo oriental. Os procedimentos pesados e tradicionais da

burocracia patrimonialista, característica da sociedade escravista, faziam ser de duvidar

que as demandas do Estado Oriental pudessem ser atendidas com a presteza que ele

requeria, aumentando o quadro de irritações mútuas: O “[...] Ministério está morto, resta

apenas fazer-lhe o enterro. As brigas dos ministros estão por tal forma que dois deles

nem se cumprimentam [...]”.426 Enquanto o governo da República Oriental esgrimia os

argumentos de que se encontrava pressionado pela opinião pública, pois era “[...]

universal la creencia de que la libre exportación del ganado en pié para el Rio Grande

perjudica à la producción nacional [...]”,427 impedindo que houvesse um clima de “[...]

fraternidade entre os dois povos vizinhos [...]”428, o Governo imperial emperrava em si

mesmo. “[...] o Ministério está morto [...] tem de viver uma vida de expediente até maio,

422 BRASIL. Resposta à nota nº 1 do plenipotenciário oriental, de 30 de outubro de 1856. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I,., p. 81.423 Idem., p. 86.424 PARANHOS. Carta a Mauá de 20 de dezembro de 1856. In: MAUÁ, op. cit., pp. 55-56.425 Carta a lamas de 22 de dezembro de 1856. Idem, p. 55.426 MAUÁ. Carta a lamas de 17 de janeiro de 1857. Ibidem, p. 57.427 URUGUAI. Nota nº 30 ao governo imperial de 6 de fevereiro de 1857. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 131.428 URUGUAI. Nota nº 27 ao governo imperial de 31 de janeiro de 1857. Idem, pp. 125-126.

113

Page 115: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

e portanto que será mais depressa acusado por fazer alguma coisa nas circunstâncias

atuais em que se acha do que por deixar de fazer: o fim do Sr. Paranhos hoje é evitar

decisão [...]”429

Não obstante a análise quase amargurada de Mauá sobre a situação política do

governo do Império, Paranhos comunicou a Lamas430 que o governo do Império aceitava

uma revisão dos termos do Tratado de Navegação e Comércio de 1851, embora não se

comprometesse em aceitar o projeto já apresentado pelo governo da República. Neste

mesmo dia o governo imperial solicitou às Seções de Estrangeiros e Fazenda que se

pronunciassem em pareceres sobre as propostas do governo oriental. Admitia o governo

imperial a conveniência de concordar com a revisão, devido ao extremado antagonismo

que o dito Tratado insuflava entre os dois países. Além disso, permitiria aprimorar o

Tratado com a experiência adquirida de sua aplicação, e permitir estreitar mais, por

meios “[...] prudentes, e que os interesses do Império comportem, a aliança dos dois

países [...]”. Pedia-se um parecer com base nas propostas uruguaias, sem aceitá-las à

princípio: “[...] antes declarando que elas contém matéria nova que não se pode

considerar como desenvolvimento natural e lógico dos artigos do Tratado vigente, e que

por sua natureza e importância demandam o mais refletido exame [...]”431

Por sua natureza de documento interpares, não nos parece exagero reconhecer

nele, que a elite política imperial pode identificar, quatro anos antes da data estabelecida

para que expirassem as estipulações do art. 4º do Tratado de 1851, algo como uma de

situação limite. A partir daquele ponto, as inconsistências do sistema político dos

orientais, aliadas à intranqüilidade gerada pelos problemas da agropecuária, devidamente

explorados pela oposição, poderiam servir à violência na fronteira, como o que se

verificara por ocasião da agudização do movimento de Oribe. O resultado das

convulsões institucionais sempre foram as desordens e o estremecimento das relações

entre os dois países. Aliás, fora a propósito de evitar estas situações que fora acordada a

429 MAUÁ, carta a Lamas de 20 de janeiro de 1857. In: MAUÁ, op. cit., p. 57.430 BRASIL. Nota ao ministro oriental de 24 de fevereiro de 1857. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp. 137, 139.431 BRASIL . Aviso do governo imperial ao Conselho de Estado, transcrito no parecer daquele Conselho, de 2 de abril de 1857. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I p. 145.

114

Page 116: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

introdução dos Tratados de 1851. Era chegada a hora de, cedendo aos pedidos

uruguaios, realizar um esforço para preservar aquelas relações, para não desviar o

Império do rumo tradicional a que lhe conduzia a sua principal “indústria”. Lamas era

incansável em repetir que um novo tratado permitiria ao governo de Montevidéu se

sobrepor às resistências domésticas nascidas do inconformismo com o Tratado; “[...] El

infrascripto no puede y no debe ocultar a Su Exa. El Sñr. Paranhos que esas resistencias

enbarazaban cada dia mas al Gobierno de la Republica [...]”.432

O esforço que começava a desenvolver o Império para estabilizar as relações

entre os dois países - em cuja direção o Parecer do Conselho de Estado de dois de abril

de 1857 era o próximo passo necessário - se materializava. Contudo, começou a esbarrar

nas evidências de que as relações com o Prata estavam mal cuidadas, demonstrando os

mesmos limites nos quais esbarrou o Império no momento da implantação das tarifas

Alves Branco: a falta de informações empíricas sobre tudo o que dizia respeito à relação

dos dois Estados.

“[...] Os dados que lhes foram presentes são muito incompletos, e não há talvez onde os colher mais amplos e dispostos de modo que ofereçam as indicações precisas para as apreciações que convém fazer [...] Seja dito de passagem, é deplorável a falta de dados estatísticos coordenados a tempo, e de modo que possam fornecer elementos para cálculos completos e seguros [...]”433

Segundo os conselheiros, os dados já publicados consistiam em mera curiosidade

histórica, até porque em grande medida os dados se registravam sob o título “Rio da

Prata”, sem discriminar o Uruguai. O comércio com a fronteira estava absolutamente

falto de dados, restando algumas fontes consulares e documentos avulsos que foram

utilizados para esboçar uma parte do comércio marítimo, quer de exportação, quer de

importação entre os dois países. Os conselheiros imperiais detectaram que, embora os

fluxos comerciais indicassem ser favoráveis ao Brasil, estavam diminuindo, o que

sacrificava os exportadores e o país como um todo. Ademais, as exportações para aquele

432 URUGUAI. Nota da legação oriental nº 32 de 1º de março de 1857. Idem, p. 140. 433 BRASIL. Parecer do Conselho de Estado de 2 de abril de 1857. Ibidem, pp. 144-167. A partir daqui, salvo quando indicado, todas as citações dizem respeito a este documento.

115

Page 117: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

país ajudavam a pagar o charque, imprescindível e sem substituto perceptível, ainda

mais considerando-se que a produção gaúcha era insuficiente. De maneira preocupante o

consumo daquele item no Império vinha caindo, conforme se podia perceber. O

fenômeno não se explicava pela diminuição do mercado, mas ao da insuficiência da

produção, pois que, somados os fornecimentos de Buenos Aires, Montevidéu e Rio

Grande do Sul, não se satisfazia o consumo. “[...] Estas considerações são suficientes

para demonstrar que o comércio do Brasil com a República [...] é vantajoso ao império e

que convém empregar os meios convenientes não só para o não deixar perecer, como

para lhe dar incremento [...]”.

Acreditamos que seja importante realçar que a conclusão dos conselheiros não

passou por questões como a obtenção do “controle”, ou, “domínio” das fontes

produtoras do charque, antes, pelo incremento dos fluxos comerciais como um todo,

preocupados que estavam também, pelo escoamento dos produtos brasileiros, de

maneira a incentivar a produção doméstica. Neste sentido acreditamos conveniente

sugerir que o verdadeiro interesse do Estado brasileiro em relação ao país vizinho, é que

ele dispusesse de maneira crescente de estabilidade política como meio de obter a

robustez econômica que o transformasse crescentemente em consumidor dos produtos

brasileiros. Alianças é que deveriam servir de garantia à importância política que o

Império vinha de conquistar junto aos vizinhos platinos, pelo menos enquanto o

permitirem ou, resistirem os interesses que permitiram essas alianças, pois “[...] é uma

ilusão contar com a gratidão das nações quando falha o interesse [...]”.

Entendemos ser necessária atenção para a utilização da palavra “gratidão”. Ela

remete certamente à posição que estas elites políticas imperiais julgam ocupar no

concerto das elites Sul-americanas. Considerando-se os agentes legítimos da civilização,

monarquistas como a quintessência das nações européias, entre bárbaras repúblicas de

gaúchos e caudilhos. A paz e a estabilidade fornecidas por tratados são concessões

graciosas do Império, pelo que merecia receber a deferência e a reverência dos vizinhos.

Os vexames sofridos no exterior são extremamente dolorosos:

116

Page 118: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“[...] Sob pretexto de nossas velhas faltas (que foram numerosas) a legação britânica tem assumido um tom de censura, de polícia, de domínio insuportável [...] não há mais negócio algum, por mais ridículo que seja, que não nos valha uma injúria por parte da legação britânica [...] tudo é objeto para uma nota, que é sempre insolente [...]”.434

Considerando este caráter de nobreza generosa que esperam de si mesmos como

meio de autodistinção, e de insuspeita confiança no alcance do diálogo entre iguais, a

sugestão dos conselheiros é que...

“[...] a aliança e os laços políticos estão a expirar, não convém a continuação dos sacrifícios que temos feito. É preciso substituir os quase rotos laços que ela formou por outros que em lugar de sacrifícios nos trazem lucro435, e que por serem fundados em interesses mais gerais e permanentes, serão mais vantajosos, mais sólidos e menos odiosos [...]”

Os conselheiros não poderiam deixar de considerar como circunstâncias especiais

as questões em torno da dependência brasileira do charque, e da condição de limítrofes,

que unia os dois países, inapelavelmente. Por isso decidiram não levar muito longe o

princípio da política externa imperial de evitar os tratados, como se conviera após os

desastrados acordos pós-independência. O Tratado de Navegação e Comércio de 1851

estaria extinto em quatro anos, e se não fossem resolvidas as questões tarifárias,

sobreviriam problemas ao sistema doméstico de fornecimento de charque. Aberto o

caminho da livre tarifação do gado pelo governo oriental, os charqueadores gaúchos

teriam sua produção diminuída, desviado o gado em pé para os saladeiros orientais. No

todo o processo resultaria em elevação do preço daquele produto para o consumidor

brasileiro. A perturbação nos fluxos de gado pela fronteira no tempo de Oribe quase

levaram o Império à uma guerra dispendiosa e sangrenta.

Os tratados de 1851 tinham garantido a paz por seis anos, e agora as propostas

dos uruguaios pretendiam tornar permanentes as vantagens de que o Brasil já gozava,

434 PENEDO, Barão de, carta a Paranhos de 6 de maio de 1856. Apud OLIVEIRA LIMA, op. cit., pp. 154-155.435 Acreditamos que o termo não deva ser entendido no sentido convencional da sociedade capitalista, mas no das vantagens que citam ao final da citação: ordem e paz.

117

Page 119: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ampliando-as, na verdade, para o que for comerciado por via marítima, além de alcançar

outros produtos agrícolas e extrativistas, pedindo em troca a plena reciprocidade. Fora

justamente para baixar o preço do charque que se negociara o art. 4º do Tratado de 12 de

outubro de 1851; resultava para o governo imperial naquele momento, portanto, a “[...]

necessidade urgente de favorecer a nossa produção agrícola, e de conservar-lhe e

aumentar-lhe os mercados [...]”.

Ao relator do parecer, o Visconde do Uruguai, não escapou que a garantia da paz

na região de fronteira evita gastos muito maiores, em dinheiro e sangue, do que qualquer

eventual isenção de taxas aduaneiras. Aceitar a proposta do governo uruguaio para uma

renegociação dos tratados, portanto, “[...] prescindindo de considerações políticas, a

aliança com o Estado Oriental, uma justa influência do Brasil sobre ele, uma boa

inteligência sobre questões econômicas, hão de trazer grandes vantagens ao Império

[...]”.

As bases históricas das relações entre a República Oriental e o Império

impediriam que a negociação do novo tratado se desse sem desgastes e sobressaltos,

principalmente pelas irritantes demoras do Império para dar continuidade à decisão de

aceitar abrir negociações para a revisão do Tratado.436 Apesar do parecer favorável do

Conselho de Estado, foi preciso tempo para nomear um plenipotenciário; mais tempo

para dar-lhe as instruções pertinentes...; mais, neste meio tempo o Império

experimentou, ainda, uma mudança de ministério. Enquanto isso o governo de

Montevidéu debate-se contra a oposição, que condena a subserviência em relação ao

Brasil. Na expectativa de que o novo tratado fosse completado com brevidade,

Montevidéu decretou uma prorrogação dos trabalhos legislativos, para que fosse

possível aprová-lo e ratificá-lo com presteza; tudo em vão. Lamas estava às portas de,

extenuado, suspender as negociações e, unilateralmente, denunciar o art 4º do Tratado,

ato contra o qual o Império se opunha incondicionalmente. Mauá, que a tudo

acompanha, com trocas quase diárias de cartas, em uma delas escreve ao amigo,

dizendo-lhe que não deveria abandonar as negociações em função das demoras da

436 Comunicado ao ministro Oriental em 27 de abril de 1857. VASCONCELLOS, op. cit., p. 168.

118

Page 120: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

administração brasileira, que deveria ter grande confiança no fato de que o negociador

imperial seria o visconde de Uruguai.437 Por fim, no início de setembro Mauá escreve-lhe

na certeza “[...] que o negócio está decidido segundo me disse ontem a noite um dos

ministros e segundo os desejos de V. Exa. graças à perseverança de V. Exa. chegamos

ao termo favorável das negociações, e os dois países muito devem a V. Exa.”.438 De fato,

o tratado foi assinado em quatro de setembro de 1857.

Passados os impasses com o governo imperial, era o momento, agora, das

características estruturais da sociedade política do Uruguai projetarem-se sobre a

definitiva solução para o problema da ratificação do novo Tratado. Em seis de outubro o

Executivo Oriental submeteu o Tratado à Câmara dos Representantes, acompanhado de

uma exposição de motivos feita por Lamas439. No documento assinado pelo presidente e

seu ministro das Relações Exteriores, transparece a idéia de que a possibilidade de

sucesso do tratado residia na capacidade da sociedade oriental em implementar a

estabilização da situação política do país. Era clara a dependência na qual colocava a

possibilidade de implementação daquela estabilidade, aos esforços objetivos que

deveriam ser gestados e desenvolvidos domesticamente; fazemos este destaque para

sublinhar o papel que Lamas e Mauá creditavam aos discursos de oposição ao governo,

blanco ou colorado, que invariavelmente transferiam as responsabilidades pelas

condições instáveis do país Oriental, às interferências ilícitas do Império.

Mas, como dizíamos, as estruturas da política uruguaia não se fizeram demorar

sobre o encaminhamento do processo de aprovação do Tratado de quatro de setembro de

1857. A comissão especial formada para analisar o Tratado sugeriu a sua aprovação e

reconheceu que estava “[...] baseado na reciprocidade e pode vir a dar grande

desenvolvimento ao comércio e à navegação dos rios interiores [...]”. Em que pese a

posição pouco satisfatória que se alcançou em relação à navegação na Lagoa-Mirim e no

Jaguarão, julgaram que a ocasião não era a mais apropriada para aquela discussão.440

437 Carta de 24 de junho de 1857. In; MAUÁ, op. cit., pp. 61-62438 Carta a Lamas de 3 de setembro de 1857. Idem, p. 64.439 URUGUAI. Encaminhamento de 6 de outubro de 1857 à Assembléia Geral Legislativa. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp. 294-295.440 O Parecer da comissão, na íntegra, está em VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp.295-298.

119

Page 121: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Como o período eleitoral se avizinhava e crescessem a excitação e as paixões entre as

parcelas antagônicas, o governo do presidente Gabriel Pereyra decidiu encerrar as

atividades parlamentares, como uma maneira de evitar que o Tratado, a tanto tempo, e

por tantos sacrifícios conseguido, corresse o risco de não ser aprovado. Isto não era tudo;

ao final das eleições, iniciou o movimento de rebelião patrocinado pelo coronel Brigido

Silveira, que só foi abafado no final de janeiro de 1858, após ter o governo uruguaio que

solicitar a intervenção das guarnições dos navios de guerra do Brasil, Espanha, Estados

Unidos, França e Inglaterra que se encontravam surtos no porto.

Somente em março de 1858 o Congresso Oriental pode voltar a debruçar-se

sobre a o novo Tratado, quando foi sumariamente aprovado em seção ordinária das

câmaras, sendo que ainda faltava a troca de ratificações. Enquanto isso continuavam os

problemas comezinhos da fronteira; ofensas mútuas de toda sorte, roubos, assassinatos.

Lamas colocou as reclamações orientais em termos que irritaram profundamente o

governo imperial. Ao ensaio de crise Mauá interveio em 10 de abril: “[...] para se

reclamar em termos violentos contra esses atentados era preciso convicção de que o

Governo Imperial patrocina tais desatinos [...]”. Recriminações e acusações que

transitavam de parte a parte, pois Mauá acreditava ser possível a responsabilidade do

governo Oriental em assassinatos e roubos contra brasileiros residentes no Uruguai. “[...]

eu mesmo tenho sido vítima de roubos na minha estância do Rio Negro [...]”. Seja como

for, o clima de irritação mútua parece atingir até mesmo a Mauá “[...] hoje estou

persuadido que a política que queria seguir o falecido marquês de Paraná é a única

possível no Rio da Prata: não ter pretensão que não seja justa para com os nossos

vizinhos, mas não ceder nem uma linha desde que a justiça esteja bem averiguada

[...]”.441

Junto ao governo imperial, a irritação com os uruguaios aumentava na medida

em que, após tanto terem pressionado o Império, eram eles próprios incapazes de

acelerar um processo de ratificação do qual já se ouviam vozes de acusação contra o

Brasil, creditando-lhe intenções malévolas contra a República. Além disso, a oposição

441 MAUÁ. Carta a Lamas de 10 de abril de 1858. In: MAUÁ, op. cit. p. 67.

120

Page 122: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

doméstica ao gabinete apregoava que os termos do Tratado de quatro de setembro

representavam uma rendição à uma nação estrangeira. Surpreendentemente os Estados

Unidos reclamavam! O novo tratado tendia a prejudicar as importações que realizavam

dali; o ciclo de reclamações e desapontamentos parecia interminável, justamente quando

se pensava ter aplainado o caminho das relações entre os dois países. O grande

complicador, entretanto, foi o novo acordo de limites, firmado também em quatro de

setembro de 1857, o “Tratado de Permuta”, que deveria permitir que uma área de

território uruguaio fosse cedido ao Brasil, de maneira a preservar as propriedades

brasileiras em torno do município de Sant’Anna do Livramento. Em troca desta

concessão o Império cederia um terreno equivalente, em local a ser definido. Este

tratado, embora aprovado pela Câmara, não passou pelo Congresso oriental.

O Tratado de Permuta beneficiava diretamente o Brasil, uma vez que durante os

trabalhos de demarcação, no traçado de uma linha entre dois pontos culminantes,

ocorreu cortar as terras da vila de Sant’Anna do Livramento. “[...] Este era uma espécie

de compensação pela parte a maior de vantagens que alcançaria o Uruguai com o tratado

de comércio de quatro de setembro [...]”.442 Em conseqüência disto, o Legislativo

Oriental não lhe deu a atenção devida, precisando mesmo aguardar a legislatura de 1859

para voltar à apreciação dos congressistas. O governo de Montevidéu, contudo,

esforçava-se para a sua pronta aprovação, inutilmente, como se verificou. Desta vez,

contudo, a atitude imperial mudou em relação às desatenções orientais. Contrariamente

ao que Mauá classificava como o “[...] antigo sistema da política do medo [...]” que

permitia ao “[...] Brasil com sua política de água morna [...] fazer ali [sempre] uma

figura ridícula [...]”,443 o governo do Rio de Janeiro endureceu a sua posição. O governo

imperial colocou na dependência da ratificação do tratado de permuta, a ratificação do

tratado de comércio, que tanto interesse despertava para os orientais444. As implicações

para as relações entre os dois países, no caso da não ratificação de ambos os tratados,

seria a adoção, por parte do governo imperial, de uma posição que consideraria em pleno

vigor os Tratados de 12 de outubro de 1851, o que incluía a manutenção do seu art. 4º. 442 VASCONCELLOS, op. cit., p. 341.443 MAUÁ. Carta a Lamas de 17 de setembro de 1857. In: MAUÁ, op. cit., p. 103.444 BRASIL. Nota do ministro de Estrangeiros ao plenipotenciário oriental, de 23 de setembro de 1858. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp. 342-345.

121

Page 123: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Posição diametralmente oposta ao que pretendiam os orientais, e que apontava para o

confronto direto entre os dois Estados

O endurecimento da posição brasileira, não anulava, a priori, as conseqüências

práticas positivas que o Tratado de quatro de setembro trazia sobre o comércio brasileiro

e o da República Oriental do Uruguai. Em função disto, as ratificações do Tratado de

comércio foram trocadas em 23 de setembro de 1858, para não se deixar de aproveitar

dos seus efeitos. Não obstante, de acordo com uma nota da mesma data, a ratificação

seria anulada, no caso de não se dar a ratificação do tratado de permuta. Neste meio

tempo, ocorriam negociações multilaterais difíceis, em função das instabilidades dos

laços que uniam as províncias da Confederação Argentina. O governo uruguaio, apoiado

nos interesses brasileiros em preservar a sua independência, bateu-se para se manter

distante daquelas disputas. A confluência dos interesses, que transtornava tanto a

situação da região, permitiu até mesmo a Mauá desempenhar abertamente um papel

político importante: “Meus amigos da Confederação e Buenos Aires destinam-me uma

missão de paz! – Poderei fazer algo?”.445

Seja como for, e para todos os efeitos, começara a ser aplicado o estipulado no

Tratado de quatro de setembro de 1857, decorrendo daí os tropeços e as reclamações de

parte a parte, como os que se verificaram durante a vigência do tratado primitivo. Uma

permanência era sentida, porém, a principal e pior delas: as requisições indevidas de

gado, dos súditos residentes na República. Estas “requisições” servem de termômetro da

antipatia recíproca imperante entre as duas nacionalidades, habilmente manejadas pelos

partido blanco e colorado, ao sabor das circunstâncias. Vencendo os limites das

propriedades, e dos departamentos onde se localizam, estas antipatias migram para os

níveis mais altos da burocracia oriental e brasileira, permitindo a elevação do tom no

diálogo entre os governos:

“[...] Isto é um mal [as requisições], porque é infração do tratado e ofensa a direitos que ele garante, e porque a freqüência das requisições perturba a economia dos estabelecimentos, e fadiga e desgosta os proprietários. Mas as autoridades que fazem essas requisições tomam,

445 MAUÁ. Carta a Lamas de 20 de fevereiro de 1859. In: MAUÁ, op. cit., p. 86.

122

Page 124: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

as vezes sem pedir, tomam a força, e nem sempre dão o recibo que deve garantir o pagamento. Quando isso acontece, a requisição já não é um mal, é um ato mais grave que me abstenho de qualificar [...]”446

As queixas sucedendo-se de lado a lado estabelecem um clima desconfortável de

desconfiança mútua. As susceptibilidades afloradas provocaram mesmo a retirada do

representante diplomático do Brasil de Montevidéu.447 Por seu turno Lamas queixara-se

a Mauá por alguma desatenção de que se julgara vítima, por parte de Sinimbu, o novo

ministro de Estrangeiros, que se demorara em responder a algumas propostas feitas pelo

representante oriental. O clima entre os governos, em função das reiteradas negativas em

concluir o tratado de permuta, a ratificação precária do tratado de comércio, tudo

desgastara a disposição de negociar do governo brasileiro, como se depreende da carta

que Mauá endereçou a Lamas em quatro de abril de 1860:

“Demorei a responder ao prezado favor de V. Exa. de 22 do passado até ter conseguido ver o Sr. Sinimbu o que só ontem teve lugar [...] que enquanto a não ter respondido as suas notas só foi isso devido à extensão e importância delas que exigiam tempo e estudo para serem cabalmente respondidas; que a política do Governo é amistosa para com os vizinhos; que nada quer deles senão o cumprimento dos tratados e ajustes feitos e a manutenção das boas relações. Que entende não haver conveniências em novos tratados ajustes ou convenções que só têm dado lugar a ser o Brasil insultado e caluniado, e desfeiteado mesmo, assim como V. Exa., que tem proposto e insistido para esses tratados e ajustes para vê-los mal interpretados e maltratados em seu país [...] o Governo do Brasil espera os atos que possam vir, no firme propósito de ser justo e benévolo, porém resolvido a não ceder a outras exigências desarrazoadas que se apresentem [...]”448

Em 1860 assumiu a presidência Bernardo Berro, do partido blanco, partido

historicamente antagônico ao estancieiros brasileiros; indicativo poderoso de que o

governo brasileiro deveria esperar dificuldades ainda maiores para a aprovação do

tratado de permuta. Esta possibilidade por sua vez enegrecia ainda mais o horizonte

político entre os dois Estados, em virtude da dependência que o governo imperial criara

entre as ratificações daquele tratado e o de comércio. Prenunciando a crise, Mauá, a

446Nota do representante diplomático imperial em Montevidéu de 29 de agosto de 1859. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 370.447 MAUÁ. Carta a Lamas de 25 de setembro de 1859. In: MAUÁ, op. cit., pp. 104-105.448 MAUÁ. Carta a Lamas de 4 de abril de 1860. Idem, pp. 106-107.

123

Page 125: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

partir da sua clarividência de espectador interessado, de primeira fila, insta seu amigo

Lamas a ir até Montevidéu “[...] explicar de viva voz a conveniência de não estarmos em

desinteligência por nada [...]” Atestava o grande trabalho dos orientais em organizar-se e

que a consolidação da ordem é o único desejo brasileiro.

“[...] A meia dúzia de léguas de terra de que trata o tratado de permuta não valem uma nota entre os dois governos quanto mais uma desinteligência. O tratado de comércio vale uma mina de ouro para o comércio de Montevidéu, e não se vá com atos impensados ali impossibilitar disposições permanentes no fim dos 4 anos [...]”449

Os cuidados de Mauá foram em vão. Em 24 de maio de 1860, a Câmara dos

representantes, em Montevidéu aprovou um projeto de fundação de uma vila no terreno

fronteiro a Sant’Anna do Livramento, tendo o Senado adicionado modificações,

aprovando-o, também, em seguida. Em decorrência da atitude do Estado Oriental,

convencido de que as atitudes uruguaias estavam ligadas à possibilidade de obterem por

barganha novas vantagens em algum novo pleito,450 o governo de Sua Majestade

promulgou um decreto em 29 de setembro, ordenando a suspensão do tratado de

comércio de quatro de setembro de 1857, declarando em vigor o de 12 de outubro de

1851, cujos efeitos retornariam à plena efetivação a partir de 1º de janeiro de 1861.451

Avisado da decisão imperial o governo uruguaio respondeu ao representante imperial em

Montevidéu que “[...] o Poder Executivo da República está conforme a anulação do

tratado de 4 de setembro de 1857, devendo-se considerar desde o 1º de janeiro do ano

próximo como se nunca tivesse existido [...]”.452 A altivez da resposta Oriental só

encontra paralelo na situação em que se colocara o Império, ao atrelar a ratificação dos

dois tratados de 4 de setembro de 1857. Em função daquela decisão imperial, agora o

governo de Sua Majestade abria mão das vantagens comerciais propiciadas pelo tratado

de comércio, ao contrário do que havia recomendado o parecer do Conselho de Estado

de 2 de abril de 1856. Concomitantemente, o governo Oriental decretou a equiparação

dos produtos brasileiros aos dos demais países, isentou de direitos a carne beneficiada 449 MAUÁ. Carta a Lamas de 21 de maio de 1860. Ibidem, pp. 109-110. Grifos do autor; os 4 anos referem-se ao prazo mínimo de vigência do tratado de comércio de 4 de setembro de 1857.450 BRASIL. Parecer do Conselho de Estado de 6 de dezembro de 1860. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 378.451 Relatório de Estrangeiros de 15 de maio de 1861, apud idem, pp. 375-376.452 URUGUAI. Nota de 26 de outubro à legação imperial em Montevidéu. Ibidem, p. 405.

124

Page 126: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

destinada à exportação e definiu uma série de atitudes que foram tomadas em relação ao

comércio exterior, beneficiando-se das experiências acumuladas durante a vigência do

tratado de quatro de setembro de 1857.453

Paralelamente é esta a época de nova agudização dos conflitos que contrapõe

Buenos Aires às províncias “litorâneas” da Confederação. Novamente ressurgem os

problemas que mesclam, sem harmonizar, o papel geo-estratégico do território da

República Oriental, com os desígnios dos Estados que dividem os espaços platinos.

Montevidéu vê-se presa novamente dos interesses de corrientinos, bonairenses,

entrerianos e brasileiros. Para as elites uruguaias, reacende-se a alternativa de uma

terceira opção para alianças, e a escolha natural, como se aventava em 1850, era o

Paraguai. A situação não estava tranqüila no tocante às relações do Império com o Rio

da Prata como um todo. Havia, como se viu, “[...] alguma razão para que o Governo do

Brasil esteja enjoado de tratar com o da República [...] a posição do governo do Brasil é

difícil porque também tem precisão de haver-se com a opinião do país. No entanto,

concordarei e reconheço que temos o tino de errar no que toca às relações exteriores”.454

Novamente a clarividência dos interesses liberais se manifesta com precisão em Mauá: o

governo Oriental decretou o fechamento dos rios Cebollati, Taquari, Olimar, e outros,

impedindo o acesso ao interior do território uruguaio à navegação brasileira455.

“[...] vejo que a cegueira dessa gente de Montevidéu vai dar-nos na cabeça a todos [...] farei o possível para abrir os olhos aos Sr. Acevedo, Villalba e Berro456 [...] e se o Governo aqui não desdenhar que eu trabalhe deveras pessoalmente lá, farei o sacrifício de pôr-me a caminho [...] Desde já faço sentir a gente do Governo de Montevidéu que na hipótese de complicações com o Brasil não podem contar com um real de meus recursos [...]”.457

Os esforços de Mauá no campo político, a aceitação de suas idéias, dependente

da ação da tradição, ou das estruturas simbólicas predominantes, resultaram em

453 Ibid., p. 377.454 MAUÁ. Carta a Lamas de 29 de maio de 1860. Idem, pp. 110-111.455 O comércio com a esparsamente povoada campanha era pequeno, e aqueles rios serviam mais para escoar o charque oriental para o Rio Grande do Sul. VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp. 446-447.456 Ministro das relações exteriores, vice-presidente e presidente da República Oriental, respectivamente.457 MAUÁ. Carta a Lamas de 5 de setembro de 1860. Idem, pp. 110-111.

125

Page 127: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

frustrações tão grandes quanto a sistemática perseguição a que se via exposto no âmbito

da economia brasileira. A sua frustração pressagia os desastres que se avizinhavam. Para

ele, a condição de vizinhos é inarredável. Portanto...

“[...] repetirei até o cansaço: o que cumpre aos estadistas, aos homens que refletem, aos homens bons do Brasil e do Rio da Prata é afastar as causas de desagrado que predominam [...] guiar a opinião em vez de transviá-la por meio de manifestações semelhantes às de Vellasco e seus adeptos no Parlamento Oriental [...] e dos Bellos e Mendonças na Câmara dos Deputados do Brasil [...]”458

Este deveria ser o caminho a ser seguido também pela imprensa, coadjuvante ao

papel de insuflar ódios e impedir a resolução de problemas cuja solução “[...] necessária

é a guerra [...] sem querer lembrar-se que esse recurso é um atentado contra a civilização

e bem-estar dos povos [...]”. A eficácia das suas análises será consistentemente

desconsiderada. A insensatez se manterá firme em sua senda de preparar o terreno para a

tragédia, que os horizontes limitados dos interesses imediatos impediam de reconhecer.

458 MAUÁ. Carta a Lamas de novembro de 1860. Ibidem, p. 118.

126

Page 128: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

3 – A QUESTÃO ORIENTAL.

3.1 – O contexto imperial.

O complexo que compõe a sociedade do Império estruturava um mecanismo

econômico profundamente apoiado na atividade de comércio exportador. Ele é o

instrumento propiciador daquele complexo, objeto do olhar atento do Estado. Mas os

interesses são múltiplos, a partir das esferas de influencia a que está exposto o Estado.

Atrelados ao conjunto das representações das elites brasileiras, estes interesses, em

última análise, determinaram as políticas do Estado, contando-se aí suas relações com a

República Oriental do Uruguai. Relações baseadas, numa estratégia de tímida espera

passiva, privilegiando o gerenciamento de problemas, de conflitos, que são abordados na

medida em que se apresentavam, como temos visto. Portanto, a analise destas relações

precisa ser estabelecida levando em conta as imposições do complexo político,

econômico e institucional, que rege o dia-a-dia do Império. Um complexo de análise

que, pelo menos no nível do “[...] ‘fenômeno político não se confunde mais com a teoria

do Estado [...] Os progressos da antropologia [...] impõe o reconhecimento de formas

127

Page 129: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

políticas outras [...]”,459 que evidenciam as incompatibilidades, as contradições e tensões

inerentes a toda sociedade.

Na década de 1860, institucionalmente, o Império usufruía do que resultara das

mudanças e experimentações das décadas de 1820 e 1830; no que tocava às relações

externas o Império experimentava plena autonomia política. O desenvolvimento

institucional, possível a partir dos atributos da sociedade política que emergia do

processo de independência, abdicação e regência, permitiu a aplicação gradativa de

reformas legais que resultaram em robustecimento do Tesouro e alargamento das

oportunidades econômicas. Neste sentido verificava-se, inclusive, a expansão da área

cultivada para compensar a queda nos preços internacionais dos produtos agrícolas;460

tudo agindo como estímulo ao mercado doméstico461. Todas estas questões de caráter

estrutural estarão em composição com aspectos conjunturais muito importantes, como as

mudanças no sistema financeiro causado pelo do fim do tráfico de escravos, e

crescimento da economia cafeeira, assim como da ascensão política do Partido Liberal, a

partir do ano de 1860. Suas conseqüências sobre a condução dos problemas que se

agudizarão com o Estado Oriental não podem ser exageradas.

A extinção do tráfico de escravos abriu o caminho para um período de mudanças

importantes, normalmente identificado como o período da especulação financeira. O

período da “[...] política utilitária [...]”,462 baseado na disponibilidade de capitais,

francamente embalado pela avassaladora expansão cafeeira. Sintomaticamente é o

momento, também, da projeção de Irineu Evangelista de Sousa, beneficiário do quadro

geral463. Esta primeira introdução da tradição cultural, econômica e política do

escravismo, aos padrões novos do liberalismo capitalista transformaram-se,

concomitante, num período de luta dos setores tradicionais para manterem - como já

haviam feito sob as tempestades políticas precedentes – o controle sobre os mecanismos

459 BALANDIER, apud JULLIARD, op. cit., p. 191.460 FURTADO, op. cit. pp. 107-108; para o caso específico do Rio de Janeiro FRAGOSO & FLORENTINO, op. cit., pp. 92-96.461 FAORO, op. cit., pp. 483-484; considere-se obviamente, o contraste nos motivos que Faoro enumera para o crescimento, com Furtado e Fragoso e Florentino.462 OLIVEIRA LIMA, op. cit., p. 138.463 CALDEIRA, op. cit. p. 165.

128

Page 130: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

que determinavam a sua prevalência sobre o complexo da sociedade imperial em

mudança. O governo, com sua rede de interesses tradicionais à volta de si, esforçava-se,

“[...] em revolta contra o esquema especulativo para instituir a especulação oficial [...] o

velho estamento agia e vivia, preocupado em manter sua supremacia [...]”.464

Antes da metade da década de 1850, a expansão econômica estava submetida

aos interesses dos antigos traficantes, preocupados, com que o “[...] capital especulativo

[continuasse] fiel às suas origens, preocupado em acumular grandes lucros em curto

espaço, como se fosse uma viagem para trazer escravos da África.”.465 O controle das

novas possibilidades econômicas pelos dos setores tradicionais se baseou no controle

estrito do crédito, concedido a juros altos, através do Banco do Brasil estatizado. O

esquema transformou o antigo traficante, agora acionista do Banco, em seu sócio

rentista, sustentado pelos juros. Com os juros altos, havia menos disponibilidade de

crédito, o que descapitaliza a economia; para remediar a situação, o Estado

monopolizador emite ou, autoriza a emissão, o que causa inflação e desvalorização do

câmbio, prejudicando o comércio e agricultura. Contudo, com a libra esterlina valendo

mais em relação ao mil-réis, na verdade aumentam os lucros dos rentistas/acionistas,

pois beneficiavam-se mais os setores exportadores da economia. O ciclo é permanente, e

é nele que se embasa a lógica mercantil exportadora que sustenta o Império. É este

círculo que, definido após o fim do tráfico, precisa ser protegido pelo Estado.466 É este

círculo que não nos permite conceber que o Estado imperial pudesse desenvolver uma

política em relação à República Oriental que evidenciasse planos de exercer uma

dominação daquele país à moda dos padrões capitalistas clássicos. O Império não

reconhecia os métodos do capital, de maneira a permitir que desenvolvesse a submissão

do Uruguai nos moldes do mercado financeiro internacional. O envolvimento brasileiro

que se vai seguir no Uruguai não tem base em princípios de dominação capitalista, nem

mesmo em mero aproveitamento das oportunidades de negócio embalados pelos

melhores conceitos econômicos liberais, pelos quais pelejava Mauá inocuamente.

464 FAORO, op. cit. p. 486-ss. Discordamos do autor no tocante à consideração da Burocracia imperial como um “estamento”, preferindo a análise de CARVALHO, 2003. op. cit.465 FAORO, op. cit. p. 485;466 FAORO, op. cit., p. 481-ss; CALDEIRA, op. cit. p. 297.

129

Page 131: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

O homem público brasileiro entretido com as maneiras de preservar as estruturas

que garantiam sua posição social desinteressava-se da interpretação da mecânica do

sistema econômico internacional.467 Sua missão, no interesse do bem público, deveria

garantir a “[...] primazia de ‘práticos direitos sociais’ sobre os vagos ‘direitos

individuais’, aceitando, por exemplo, que se fizessem as necessárias restrições à

liberdade natural em nome do interesse do bem público”;468 por certo não era a transição,

mas conservação. Esta era a luta que se desenvolvia entre Mauá e a Burocracia imperial,

forças que agiam em oposição.469 A queda-de-braço entre os dois gigantes determinou

que o Estado, comprometido com o comissário e o exportador – pois que é preciso

vender café – deveria conduzir a nação à prosperidade.

A gerência estatal da economia leva à crise inflacionária de 1857. Era o final da

“conciliação” do gabinete Paraná, que pretendeu uma reorganização da estrutura

partidária, tornando a estrutura mais flexível às necessidades “[...] do progresso material

do país [...]”.470 Esta “estrutura flexível” se verificaria através da inclusão de setores das

elites que atenderam ao chamado dos investimentos possíveis, a partir da disponibilidade

de capital proveniente do fim do tráfico, quer fossem estradas de ferro, navegação a

vapor, colonização, infra-estrutura urbana, entre outros. Controle pelo Estado, dominado

pelos conservadores, da economia, frustração das promessas do renovado e promissor

sistema financeiro são os fenômenos que permitiram aos liberais assumirem o controle

político do governo, e que irá colocá-los em posição de intervir na condução dos

problemas com o Uruguai, que cresciam constantemente, enquanto se deteriorava a

situação financeira do Império.

A Lei do Círculo, de 19 de setembro de 1855, tirou os liberais do ostracismo,

fazendo avançar a estrutura eleitoral que impunha, ao peso de si própria, os interesse dos

governos central e provincial sobre as localidades.471 Um dos seus objetivos era diminuir

a presença de funcionários públicos entre os deputados, principalmente magistrados:

467 FURTADO, op. cit., p. 160.468 ALMEIDA, op. cit. pp. 153-157.469 BESOUCHET, op. cit., p. 31; CALDEIRA, op. cit., p. 258.470 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 39.471 Idem, idem, FAORO, op. cit. 425.

130

Page 132: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“[...] ‘olhemos para os bancos desta Câmara, vemos que todos ou quase todos são

ocupados por funcionários públicos. Não há aqui um negociante, não há um

lavrador’[...]”472. A vigilância conservadora se alarma quanto aos seus efeitos, como

política de governo, “[...] ‘achava-a na espécie arriscada a converter-se numa burla e

assim prejudicar as instituições; não porque fosse uma transação, [mas] porque, sem ela,

a reação ultra-democrática poderia irromper irresistivelmente e abalar o edifício político

e social’ [...]”.473 De fato no próximo gabinete, o “Círculo” retrocederá.474

Contudo, o resultado prático da Lei do Círculo foi a legislatura de 1857-1860, a

primeira brecha na unanimidade no sistema político regressista, que permitiu que as

“notabilidades de aldeia”, dividissem o espaço da Câmara com as elites originais. O

arranjo resultante foi julgado pejorativamente pelos políticos tradicionais como um

rebaixamento da atividade política.475 De qualquer maneira, a maré política ainda fervia

sob os efeitos da economia pós-tráfico, com sua carga de novidades do mundo

financeiro, e seu corolário de grande inflação. Neste sentido, foi o Gabinete Ferraz,476

um gabinete conservador, que aprovou a Lei Bancária, destinada a cobrir as brechas por

onde penetravam as idéias “desestabilizadoras” do capitalismo; a inverter a política

financeira. Pelo Decreto 2711 de 19 de dezembro de 1860 foram restritas as

possibilidades de formação de sociedades, inibindo-se as iniciativas industriais.

Consagrava-se “[...] a tese do país essencialmente agrícola [...]”.477

Estas medidas tutelatórias sobre a livre iniciativa, contudo, permitiram

arregimentar as forças liberais, setores médios urbanos que se haviam deixado tocar

pelas possibilidades da abertura de crédito. Apoiadas pelos setores liberais e

comerciantes das grandes cidades, lideranças políticas liberais alcançaram a Câmara dos

deputados, nas eleições de 1860. Dessa jornada de 1860, “[...] a pressão de baixo

modificou o ambiente eleitoral sem destruir a máquina [...]” gerando a primeira

472 COTEGIPE, barão de, In: PINHO apud FAORO, op. cit., p. 427.473 ROCHA, J.J. da apud OLIVEIRA LIMA, op. cit. p. 177.474 GRAHAM. In: BETHELL, op. cit. p. 812.475 OLIVEIRA LIMA, op. cit. p. 40; FAORO, op. cit. p.426. A reação se faz sentir na aprovação do alargamento do círculo para 3 deputados, ao invés de um.476 De 10 de agosto de 1859 a 2 de março de 1861.477 FAORO, op. cit. pp. 490-491. Ver também GONÇALVES, op cit, pp. 336, 341.

131

Page 133: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

contestação relevante ao mecanismo eleitoral presidido pelos conservadores. A 11ª

legislatura, de 1861 a 1864,478 determinou a assunção dos liberais ao governo do

Império, o primeiro deles o gabinete efêmero de Zacarias.

A prosperidade das fazendas da vasta região sul, direta e indiretamente ligadas ao

complexo cafeeiro em expansão, permitiu aos setores proprietários, por um momento,

ingerir no processo eleitoral. No que concerne aos proprietários do Rio Grande do Sul,

as dívidas resultantes do apoio eleitoral no momento da virada liberal, haverá de

propiciar complicações importantes para os gabinetes liberais, principalmente pela

demora em verem atendidas suas demandas em relação à situação da fronteira com o

Estado Oriental.479 A Lei do Círculo evidenciou a existência de setores políticos

organizados nas províncias, fora das alianças tradicionais, que seriam capazes de

interferir, via parlamento, na condução do jogo político governamental.480

O resultado das eleições de 1860 alcançou o Partido Conservador de maneira

avassaladora,481 provocando um grande cisma. Durante a vigência do Gabinete Caxias,

de 1861 a 1862, formou-se a Liga Progressista que, segundo Raymundo Faoro,

significou a minimização do predomínio liberal de 1860. A Liga, de acordo com as

práticas mais comezinhas dos “donos do poder,” significou a aplicação de um “[...]

remédio [...] com [...] eficiência secular: a absorção dos elementos desvairados e a

transação retardadora.”.482 Nomes importantes como Zacarias de Góes, Nabuco,

Sinimbu, Saraiva e Paranaguá, deixaram as hostes conservadoras para emprestar a força

do prestígio dos seus nomes à nova associação, tornando-se os expoentes entre os

políticos liberais. Para a análise do comportamento daquela nova composição das elites

políticas liberais, que ajudaria a circunstanciar, em essência, o diagnóstico da “absorção”

e “transação” de Faoro, devemos considerar o papel concreto dos políticos, nas lidas

parlamentares e burocráticas. São suas opções individuais, efetivas, durante as votações

478 FAORO, op. cit. pp. 436-437, 489, 492; OLIVEIRA LIMA, op. cit. pp. 138-139.479 GRAHAM. In: BETHELL, op. cit. p. 813.480 DOHLNIKOFF, op. cit., pp. 228-229.481 Veja-se a extrapolação do antagonismo partidário outras as atividades sociais, no caso, a Maçonaria em BARATA, A. Mansur. Compasso e esquadro na sala de aula. Nossa História. Rio de Janeiro, Ano 2, nº 20 pp. 22-25, junho 2005, p. 24.482 FAORO, op. cit. p. 504; OLIVEIRA LIMA, op. cit. p. 40.

132

Page 134: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

no parlamento, ou suas decisões no Executivo – arriscaríamos dizer – que determinam

suas reais orientações políticas, mais do que seus eventuais discursos. Estas decisões

podem mesmo estar apartadas das orientações partidárias, ou das tendências sugeridas

pela intenção dos eleitores ao concederem seus votos;483 isto nos parece particularmente

correto para o caso do sistema eleitoral do Império.

Por sua vez, a pauta de propostas nascidas do “renascer liberal”, inflamada pela

euforia da vitória, e pela necessidade de atender aos apoios recebidos, apontava para

mudanças importantes no sistema político imperial. Incluía a limitação do Poder

Moderador, extinção da vitaliciedade do Senado, eleições para presidentes de província

e extinção das prerrogativas judiciais das autoridades policiais, entre outras.484 A

candência das disposições iniciais, contudo, tendeu a minguar ao contato com a

concretude dos interesses e costumes, causando dissidências entre os liberais. Este fato

ajuda a endossar, em grande parte, a análise de Faoro quanto à minimalização do

movimento liberal. Não haveria mudanças significativas no quadro político ou

institucional. “Nenhuma dessas reformas de longo alcance poderia ter seguimento na

década de 1860.”.485

Enquanto o gabinete liberal chefiado por Olinda se via hostilizado inclusive por

setores liberais descontentes, desenvolveu-se no Uruguai um novo movimento sedicioso.

Esta rebelião, comandada pelo ex-presidente Venâncio Flores, eventualmente abriu as

portas de uma nova guerra civil na República, que inevitavelmente envolveu os

proprietários brasileiros residentes no território Oriental. Iniciava-se uma nova espiral de

tensões entre aquele governo e os gabinetes imperiais. Para piorar a situação do gabinete

Olinda no tocante às questões de política externa, pondo-o ao alcance das baterias da

oposição conservadora e da opinião pública, agudizou-se a crise provocada pelo ministro

britânico, William Dougall Christie. Pretendia o representante do governo inglês, obter

indenizações pela perda da carga de um navio inglês, naufragado na costa do Rio Grande

do Sul, em 1861, e reparações pela prisão de oficiais da Marinha Real, bêbados, em

483 JULLIARD, op. cit. p. 189.484 OLIVEIRA LIMA, op. cit. p. 40.485 GRAHAM. In: BETHELL, op. cit. p. 812.

133

Page 135: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

1862, no Rio de Janeiro. Como meio de pressão, o diplomata ordenou aos navios de

guerra ingleses do esquadrão sul-americano, que bloqueassem o porto da corte, e

apreendessem navios mercantes brasileiros. O governo liberal, sob pressão, atendeu a

algumas das demandas inglesas, embora a arbitragem do rei belga, solicitada para

dirimir a questão entre os dois países, desse ganho de causa ao Brasil. O resultado das

truculências inglesas foi o rompimento das relações diplomáticas com a Inglaterra, em

1863.486

As conseqüências políticas da questão Christie foram consideráveis, e revelaram

mais um aspecto estrutural do Império que dentro em breve, em função dos problemas

com o Uruguai, irão se manifestar vivamente: a falta de uma estrutura coercitiva capaz

de gerenciar a violência em proveito do Estado. A reação da opinião pública foi sensível,

tendo tido as autoridades extremas dificuldades “[...] em conter o furor da população que

queria atacar a legação britânica, o consulado e as casas de comércio inglesas.”.487

Inflamada pelo discurso da oposição conservadora, que acusava o governo de frouxidão

frente à Inglaterra e pedia providências para socorrer os súditos do Império em apuros

no Uruguai,488 a população voltava-se, também contra o governo:

“Na verdade corremos aqui um grande risco pondo em rua o povo soberano a intimar a sua vontade ao governo! Na questão com o Sr. Christie, em que as coisas não correram tão bem como os papéis públicos assoalham, pois que, infelizmente, o nosso Governo deu provas de seu tino de errar!”489

Agourentamente, como dizíamos, a Questão Christie escancara o estado de

desarmamento do Império. Recaía sobre o governo a acusação de ser incapaz de

defender a soberania brasileira, mesmo dentro dos limites da baía de Guanabara. O

fervor “bélico-patriótico” permitiu até mesmo que se formasse uma subscrição pública

para a aquisição de um navio de guerra encouraçado.490 O gabinete liberal provava por si

486 BASILE, op cit., pp. 256-257. Veja-se a transcrição da carta do barão de Penedo a Sinimbu, de 1860 em OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 155-156.487 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 156.488 DORATIOTO, op cit, p. 51.489 MAUÁ. Carta a Lamas de 6 de fevereiro de 1863. In: MAUÁ, op. cit., p. 135. Grifos do autor.490 MARTINS, H.L. A dramática aventura do Encouraçado Brasil. Revista Marítima Brasileira. Rio de Janeiro, 115, 4/6 pp. 85-95, 1995.

134

Page 136: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

mesmo as contradições da política doméstica: antes de assumir a presidência do gabinete

“[...] a oposição liberal nas câmaras pedia que se reduzissem as nossas pequenas forças

militares; e não faltou quem [...] sustentasse que não precisávamos nem de exército nem

de marinha.”.491

No caso do Brasil, a “[...] ‘realização da tendência nacional que vinha sendo

reclamada pela opinião pública e pelo sentimento de autonomia’ [...]”492 prescindira

sempre do poder militar. O mundo das representações brasileiras incorporava o mito da

“grandeza nacional”, tendente à introversão escorada na abundância, na auto-suficiência,

fornecidas pela natureza generosa, e na vastidão geográfica. O efeito desta introjeção

congênita se manifestava na ausência de um impulso de expansão voltada ao exterior,

como o demonstrado pelo “destino manifesto” norte-americano. Impulsos desta natureza

pelo menos não tiveram peso capaz de determinar a formulação de políticas estatais; o

resultado é a redução dos problemas com os vizinhos, principalmente os referentes aos

limites, em problemas político-jurídicos. No caso do Império, o estabelecimento da “[...]

política de limites, pela lógica dos elementos, haveria de ser a da preservação, da defesa

intransigente do legado, do uti possidetis [...]”.493 Portanto, para o Estado dominado

pelos bacharéis em direito, com interesses latifundiários, as opções para solução dos

problemas políticos não incorporam a previsão de “[...] grandes organizações militares,

dotadas de poder e influência [...]”. O sistema coercitivo deveria preservar, e não se

sobrepor aos sistemas de clientelas e poderes locais.494

É preciso considerar que a “[...] natureza da guerra é, até certo ponto,

determinada pela concepção que dela se tem, uma vez que, como fenômeno humano, ao

contrário dos fenômenos naturais, pode ser fortemente influenciada pelo que sobre ele se

pensa ou se diz [...]”.495 Ora, os liberais do tempo da abdicação admitiam que o exército

constituía-se em fonte de resistência à ordem política, um foco potencial de

491 PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 151.492 CÂNDIDO & CASTELO, apud RODRIGUES, op. cit. pp. 139-140. Grifo nosso.493 Todo o parágrafo está baseado nas formulações de CERVO & BUENO, op. cit., pp. 89-90.494 ISECKSOHN, Vitor. Resistência ao recrutamento para o Exército durante as guerras Civil e do Paraguai. Brasil e Estados Unidos na década de 1860. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. No 27.84-109. 2001, p. 85.495 RAPOPORT. Apud ALBUQUERQUE, op. cit., p. 170.

135

Page 137: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

instabilidade, conforme demonstrava a militarização da política que depusera o

imperador, em 1831. Contudo, aquele flerte durou somente até o dia seguinte à

abdicação, era necessário “[...] dissolver esse exército em orgia revolucionária [...]”.496

“A glória [...] de Feijó foi haver assegurado a supremacia do poder civil [...]”.497

Era garantir esta supremacia do poder civil o papel reservado para a Guarda

Nacional, quando foi criada em 1831; coadjuvante na formação de uma base provincial

estável de apoio ao Estado. Um “[...] elemento conservador e civil [...]”498 para ocupar

um espaço na estrutura coercitiva do Estado, que estivesse mais à feição do mundo

escravista. Instrumental na garantia da posse da terra, e meio “[...] difusor das noções de

ordem, disciplina e hierarquia, da associação entre unidade do Império e unidade da

nação, do estabelecimento da relação entre Tranqüilidade e Segurança Pública e

Monarquia (sic).”.499 A Guarda Nacional gozou da condição de força das elites

proprietárias, fenômeno que se manifestava no próprio processo de recrutamento, que

era censitário; um instrumento de reiteração das hierarquias sociais.500 O significado e o

resultado social e político desta estrutura militar é diagnosticada nas reminiscências de

Taunay, que se reporta às vésperas dos grandes transes no Prata:

“Caminhava naquele tempo [1861] o Exército para a desconsideração que, um tanto suspensa durante a guerra qüinqüenal do Paraguai, grandemente se agravou depois dela, até que os despeitos e desgostos, acumulados [...], fizessem explosão no fatal 15 de novembro de 1889, em que o militarismo suplantou a bacharelocracia, derrubando ao mesmo tempo a monarquia, e todas as instituições constitucionais, para erigir o Brasil em pretensa república federativa.”501

Por certo que o “tipo” brasileiro, a partir das manipulações simbólicas das elites,

não corresponderia a um militar. O imaginário relacionado a esta “figura” não vestiria

fardas, embora não lhe faltasse virilidade. Cevado nas lides agrícolas, o brasileiro

496 OLIVEIRA LIMA, 1989, pp. 73-74; SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965, p. 119.497 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 25.498 FAORO, op. cit. p. 347; DOHNIKOFF, op cit. 91.499 MATTOS, op. cit. p. 203.500 SODRÉ, op. cit. pp. 119, 129.501 TAUNAY, Alfredo d´Escragnole Taunay, Visconde de, Memórias do visconde de Taunay. Rio de Janeiro: Bibliex, 1960, p. 76. Grifo do autor.

136

Page 138: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

conforme concebido por suas elites emprega sua energia e atenção no domínio do

ambiente agreste, refletindo a “[...] afirmação sobre a natureza do povo brasileiro e do

país [...]”.502 Estar despido do caráter belicoso não lhe rende demérito, pois preserva o

tino do desbravador, “[...] duro [...] resistente [...] que encara a dura tarefa de limpar a

selva para abrir caminho para a cultivação [...]”,503 a própria civilização brasileira,

agrícola, introjetiva, civil e mercantilista em suas bases.

3.2 – Como a piora da situação interna no Uruguai se conjuga com as estruturas

imperiais.

O complexo de relações que se desenvolveu ao redor da produção e

comercialização do charque atrelou o Império, inapelavelmente, aos espaços fronteiriços

com o Estado Oriental. As necessidades de consumo de charque do Império, contudo,

não impunham ao Estado a condição de protetor dos setores produtores gaúchos.

Sujeitos ao complexo político nacional, a proteção daqueles interesses dependia da

capacidade da sua bancada em enfrentar os interesses das outras províncias: “[...] não é

justo que os [produtores] das províncias do Rio de Janeiro, Pernambuco, Bahia e outros

paguem mais caro o charque com que mantém os braços que empregam, para que, [...]

colham maiores benefícios os do Rio Grande do Sul”.504

No palco da política doméstica os gaúchos não conseguiram as desonerações que

julgavam justas, contudo, com a extinção do Tratado de comércio de quatro de setembro

de 1857, abria-se a possibilidade de acentuar o contrabando como alternativa tradicional

para compensar a falta de isenções que agora agravava a passagem do gado que cruzava,

a pé, a linha demarcatória. Para o Império, o contrabando realizado pelos gaúchos para

alimentar as charqueadas da província poderia ser tolerado; grande parte das autoridades

civis e militares da fronteira eram também estancieiros e se beneficiavam da atividade

pecuária como um todo. Para o governo Oriental, no entanto, as coisas pareceriam bem

piores. O fim do Tratado de Comércio, ainda que seus efeitos tivessem sido benéficos a

502 CARDOSO, R. O derrubador brasileiro, de José Ferraz de Almeida. Nossa História. FBN, Rio de Janeiro, ano I, nº 8, pp. 24-27, junho de 2004, p. 24.503 Idem, p. 27.504 BRASIL. Parecer do Conselho de Estado de 6 de dezembro de 1860. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 384; ver também DOHLNIKOFF, op. cit. p. 276.

137

Page 139: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ambos os lados da fronteira, só poderia fazer aumentar, as más-vontades recíprocas,

transpostas do âmbito regional para o das relações entre os dois Estados. As

indisposições crescentes estão aparentes na correspondência entre o ministro Oriental na

corte, Diogo Lamas, e o ministro brasileiro Sinimbu, dos Estrangeiros. Ela manifestava

amargamente o recurso ao tema da “[...] política tradicional [...]”,505 do Brasil em relação

aos seus vizinhos:

“É fato notório que as dificuldades que tem encontrado na República a aprovação dos tratados celebrados pelo Brasil têm provindo sempre do temor que esses tratados, por mais iguais, justos e convenientes que fossem na letra de suas estipulações, seriam praticamente desiguais, porque o Brasil, abusando da posição relativamente forte, os executaria pela sua parte como melhor lhe conviesse, desatenderia às reclamações da República, e não deixando a esta outro recurso senão o da guerra para reivindicar seu direito convencional com o Brasil, o Brasil, na generalidade dos casos, faria impunemente dos tratados o que lhe aprouvesse.”506

Este recurso de retórica é empregado por Lamas mesmo à luz da experiência

recente, em que o próprio ministro Oriental conseguira levar o Brasil a negociar. Para o

governo imperial a nota acima soava à desfeita criminosa. Revoltava aos brasileiros,

principalmente, por ter o Império aceito os pedidos de renegociação uruguaios, e por ter

concordado com a maioria das modificações propostas pelos orientais ao tratado de 1851

- do qual o Brasil poderia ter gozado, ainda, de uma vigência de quatro anos.

De qualquer maneira, junto com o “renascer liberal” no Brasil, iniciava-se no

Uruguai a administração do presidente blanco Bernardo Berro, num clima recíproco de

exasperação indignada; Mauá adverte que do novo presidente o governo imperial, “[...]

espera os atos que possam vir, no firme propósito de ser justo e benévolo, porém

resolvido a não ceder a outras exigências desarrazoadas que se apresentem”.507 De

qualquer maneira, as expectativas brasileiras quanto à permuta dos territórios frustraram-

se em 24 de maio de 1860, quando se aprovou no legislativo uruguaio a criação de uma

505 JOURDAN, 1893 (a), p. 7.506 URUGUAI. Nota nº 334 de 29 de março de 1860 ao ministro dos Negócios Estrangeiros. In: VASCONCELLOS, op cit., vol I, p. 351.507 MAUÁ. Carta a Lamas de 4 de abril de 1860. In: MAUÁ, op. cit., p. 107. Grifo do autor.

138

Page 140: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

vila fronteira a Sant’Anna do Livramento. Na prática a atitude uruguaia significava a

extinção da ratificação do Tratado de Comércio de 1857.

O mal estar causado por aquela decisão uruguaia, misturado com a impaciência

crescente quanto aos assuntos pendentes com o governo Oriental, levou o governo de

Sua Majestade a solicitar um parecer do Conselho de Estado. Nele, o visconde de

Jequitinhonha defendeu a posição Oriental; segundo ele, a Constituição da República

previa a ingerência legislativa nos tratados, “[...] o governo imperial que devera saber

isto sujeitou-se à contingência da rejeição [...]”. Já o arquiteto da derrubada de Rosas

nove anos antes, o visconde do Uruguai, defendeu que em função do pouco tempo que

restava à vigência do Tratado de Comércio de 1851, não valeria a pena estabelece-se

uma crise com o Estado Oriental. Na mesma linha, na apreciação do visconde de Abaeté

aparece:

“Pondo de parte quaisquer considerações políticas, todas elas desfavoráveis a um rompimento com o Estado Oriental, se o governo entende que deve coagir aquele Estado deverá neste caso procurar outro meio que não prejudique os interesses do Brasil: entretanto, ele, Visconde, não aconselharia que isto se fizesse nas atuais circunstâncias, uma vez que a questão possa resolver-se em um casus belli”. 508

A posição do Conselho, portanto, foi que no seu conjunto, os principais

interesses do Império não se confundiam com as relações com os orientais; neste sentido

a resolução das dificuldades com aquele país deveria ser outra que não a guerra. Aliás,

reconhecia-se que a confrontação bélica deveria ser cuidadosamente evitada, pois ela

figurava aos conselheiros de Sua Majestade estar demasiadamente próxima. Sendo

assim, e no mesmo parecer, o visconde de Maranguape questionou “[...] se o governo

imperial tem desesperado dos meios diplomáticos, e se estamos em estado de entrar já

em guerra”.509

508 BRASIL. Parecer do Conselho de Estado de 6 de dezembro de 1860. In: VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp. 387-389.509 Idem, grifo nosso.

139

Page 141: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

As políticas desenvolvidas pelo Estado Oriental naquele recorte obedeciam às

suas próprias lógicas internas, onde o Império do Brasil figura, ao lado da Argentina,

como a influência a ser superada. Em consonância com estas lógicas foi realizado um

censo em 1860, que revelou um grande aumento no número de estrangeiros no país,

além da posse de terras por cidadãos de outras nacionalidades. A partir daqueles dados,

no ano de 1862 se iniciou uma política de nacionalización de la frontera,510 da fronteira

norte do país, a fronteira com o Brasil, ocupada por grade número de estancieiros

brasileiros. Esta política de nacionalização previa o povoamento da região com

nacionais, e o combate à utilização de escravos nas estâncias de brasileiros, de maneira a

equalizar os custos dos produtos pecuários. Evidentemente medidas antibrasileiras.

Também nesta linha, em função da denúncia do Tratado de Comércio de 1857, e da

próxima extinção do de 1851,511 o governo Oriental executou reformas na legislação

aduaneira, principalmente, anulando efeitos do tratado de 1851. Sobre o trânsito de gado

em pé ficou estabelecido um imposto de 4%. Diante da novidade da situação, do

impacto sobre os criadores brasileiros, e suas potencialidades sobre as relações entre os

dois Estados, o governo imperial solicitou a reconsideração do regulamento e moderação

aos agentes do governo na aplicação de seus efeitos, “[...] tendo em conta a repugnância

com que sempre são acolhidas medidas dessa natureza”.512

O governo uruguaio prestou-se a algum relaxamento na aplicação da nova

legislação, mas sem ferir o seu âmago. Contudo, de acordo com uma memória

apresentada pelo presidente Berro ao Legislativo do seu país, transcrita no relatório de

estrangeiros de 1862, a implantação do imposto não estava alcançando os seus fins

práticos: “[...] deve ter-se como certo que o seu produto dificilmente [o imposto de 4%

sobre o gado em pé] corresponderá aos grandes gastos que exige a fiscalização e a

guarnição militar que, para auxiliá-la foi colocada na fronteira”.513 Efetiva ou não para os

510 GOLIN, 2004, p. 194. Os dados do autor quanto a criação da vila de Zeballos divergem do Relatório de Estrangeiros de maio de 1861, cf. VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp 375, e desconsidera que o Tratado estava sendo analisado pelo Legislativo da República desde 27 abril de 1858. Suas conclusões sobre os efeitos políticos daqueles fatos ficam prejudicados.511 Deveria-se extinguir em 26 de dezembro de 1861; após esta data só restaria seu art 2º, com a cláusula de nação mais favorecida, o que sempre seria uma vantagem para o Uruguai, e sua indústria de charque.512 BRASIL. Relatório de Estrangeiros de 13 de maio de 1862. Apud Vasconcellos, op. cit., vol I, pp. 487-488.513 Idem, p. 488.

140

Page 142: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

fins do Estado Oriental, o certo é que as suas medidas feriram “[...] importantes

interesses de muitos súditos do Império na República e na província limítrofe [...]”.514 De

qualquer maneira, no campo econômico e da política externa, passados os impactos

iniciais das frustrações quanto aos tratados, as coisas pareceram caminhar bem, num

retorno à boa vontade. No Rio, o ministro Lamas conseguira junto ao Império avanços

sobre assuntos de interesse uruguaio, principalmente no que toca à proteção da

República contra a eventualidade de invasão por dissidentes vindos do outro lado do

Prata515. Interessado e esperançoso quanto à situação de paz e estabilidade no país

Oriental, Mauá acreditava que...

“[...] os emigrados nada ousarão e apoio direto e eficaz da gente de Buenos Aires não o terão – portanto a paz desta república não será perturbada – tenho fé que nisto serei bom profeta. Os ânimos aqui, tanto na cidade como na campanha, querem a paz a todo custo – nenhuma idéia de agitação pode vingar [...]”516

Por sua vez, e contra a profecia esperançosa de Mauá, o governo oriental iniciara

a implementação de outra medida com efeitos diretos sobre os estancieiros gaúchos.

Ficou instituída a necessidade de registro dos contratos de trabalho dos “peões negros”,

junto aos chefes departamentais. Estes contratos não poderiam exceder seis anos, em

contraste com os 20 anos antes permitidos. Os negros deveriam estar juntos no momento

do registro dos seus contratos, quando um funcionário do governo lhe ministraria

instruções sobre as leis que regiam a abolição no Uruguai.517 Considerando o princípio

de propriedade contemplado pelo escravismo brasileiro, ainda que a atividade pecuária

não se prestasse ao uso intensivo de escravos, a medida não poderia deixar de ter

impacto negativo, explicitando uma interferência direta do governo oriental no âmbito

da propriedade privada e nas relações de trabalho, algo impensado no ambiente

imperial.518 Além das medidas governamentais, os estancieiros brasileiros residentes no

Uruguai, invariavelmente, acabavam imprensados entre os antagonismos e violências

que separavam os partidos uruguaios, blanco e colorado. Esta característica da vida em 514 Ibidem, p. 487.515 MAUÁ. Carta a Lamas de 16 de novembro de 1861. In: MAUÁ, op. cit., p. 125.516 Idem, pp. 126-127. Grifos do autor.517 GOLIN, op. cit., p. 194.518 Para uma discussão sobre esta relação ver GEBARA, A. Evolução da legislação civil e o problema da indenização. In: SZMRECSÁNYI & LAPA, op. cit., pp. 77-97.

141

Page 143: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

território Oriental determinava a fragilidade da análise do barão de Mauá que citamos

acima. O seu parecer estava limitado pelas características da sua “[...] infância, a

educação rudimentar, incompleta, prática, estrangeira [...]”:519 “Penso que não haverá

grande dificuldade em sustentar-se aí a paz, visto que me parece ter acabado a República

o reinado dos caudilhos [...]”.520

Para todos os efeitos, a complexidade da composição de interesses presentes no

extremo sul do Império, precisa admitir que a área fronteiriça é o espaço privilegiado por

onde se desenrolam as relações, se não entre os dois Estados, entre as duas

nacionalidades. Neste sentido, a permeabilidade das suas distâncias, a promiscuidade

dos espaços, resultantes de fluxos de bens e pessoas, foram formados e se reproduziam

historicamente, e agora, resistiam à penetração dos aparelhos administrativos do Estado.

As fronteiras entre o Estado Oriental e o Império são espaços culturalmente

homogêneos, ainda que separados pelas imposições positivas dos códigos legais dos dois

Estados-Nação.521 Estas características permitem-nos que considerar que a...

“[...] ‘fronteira não pode ser mais pensada exclusivamente como franjas do mapa em cuja imagem se traduzem os limites de uma determinada formação social.’ Ela é um ‘espaço excepcionalmente dinâmico e contraditório’ na relação deste ‘com a totalidade de que é parte.’ [...]”.522

Dentro deste complexo cultural que desafia a lógica das teorizações, e contra as

estimativas de Mauá, o governo uruguaio recebeu de um estancieiro brasileiro residente

na república, preocupado com a possibilidade de roubos de gado, a notícia de que se

arregimentavam voluntários no Rio Grande do Sul, para atravessarem a fronteira:

“[...] ‘a uns se dizia que era para fazerem tropa de gado de criar’ [...] para outros [...] ‘que era para fazerem tropa no Estado Oriental, não declarando o lugar; a outros, que era para uma Califórnia como a passada; e a outros, que era para se reunirem a Flores, à quem esperavam todos os dias: esta voz é a que ele [o arregimentador]

519 BESOUCHET, op ci., pp.5,6.520 MAUÁ. Carta a Lamas de 27 de março de 1863. In: MAUÁ, op. cit., pp. 138-139.521 GOLIN, op. cit., vol I, pp. 14-26. Ver também SODRÉ, op cit. p. 79 e PESAVENTO, Sandra J. Fibra de Gaúcho, tchê! Nossa História. Rio de Janeiro, pp. 42-47, nº 2, dezembro de 2003, p.46.522 FARRET, apud GOLIN, op. cit., vol I, p. 17.

142

Page 144: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ultimamente propalava; [acreditava o missivista] muito verossímil [...] que aproveitem essa confusão para levarem seus gados’ [...]”523

Da data da ação não se sabia precisar, mas “[...] ‘o que é verdade é que eles já

estão para os lados do Quarai, à vista da maneira porque convidam, alguma coisa vão

fazer, e com alguma proteção, de quem, não sei’ [...]”.524 Outro grande fazendeiro

residente no Uruguai escreveu ao governo uruguaio e ao ministro do Império em

Montevidéu:

“[...] ‘Acabo de ter notícias positivas de que alguns brasileiros e orientais que residem no Brasil, de juízo turbulento, se reúnem em Ibicuí para darem um assalto neste Estado. Dizem eles que para se reunirem ao general Flores, o que duvido, porém veremos que é só para roubos de gados. Em 23 do que rege, fiz um aviso ao general Canabarro participando estas ocorrências e pedindo medidas sérias para evitar o mal entre o Brasil e este Estado.´[...]”525

Ainda naquele mês O ministro das Relações Exteriores Oriental escreveu ao

encarregado dos negócios brasileiros em Montevidéu, Avellar Barbosa, lembrando-lhe

da conveniência de alertar as autoridades da fronteira, pedindo-lhes que procurassem

prevenir o atentado que se anunciava, provavelmente o roubo de gado.526 No que tange

às relações entre os dois Estados começava a desenhar-se um quadro funesto. A resposta

de Canabarro, o comandante militar da fronteira do rio Quarai, depois de alertado por

Avellar Barbosa, dizia que felizmente nada de errado se verificava em Alegrete, como o

mencionado.527 Dois dias após a nota de Canabarro, em 16 de abril de 1863 o ex-

presidente da República, Venâncio Flores, emigrado na Argentina, deixou a margem

direita do Prata, desembarcando no Rincón de las Galinas, em território oriental, em 19

do mesmo mês. O governo de Montevidéu, sabendo do desembarque, acreditou tratar-se

de uma agressão nascida “[...] ‘de país estrangeiro’ [...]”,528 uma invasão protegida a

partir do solo de Corrientes, província Argentina, e do Rio Grande do Sul529. Segundo o

523 Cartas de Manuel Bicca e O. p. Bicca de 25 e 27 de março de 1863. Transcritas na nota de Herrera para Saraiva, de 24 de maio de 1864. Apud GOLIN, 2004, vol II p. 240.524 Idem, idem.525 Carta de Francisco Modesto Franco, Ibidem, pp. 240-241.526 SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 1, p.3.527 Idem, nº 3, p. 4.528 Nota de J.J. Herrera a Avellar Barbosa, de 25 de abril de 1863. Apud Golin, 2004, vol II, p. 202.529 SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 4, p.3.

143

Page 145: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ponto de vista Oriental, havia uma “aliança” que unia a Argentina de Mitre, passando

por chefes políticos e militares gaúchos “[...] e expressa na figura do caudilho colorado

Venâncio Flores”.530

Ora, a análise das motivações que poderiam determinar algum apoio a um

movimento armado no Uruguai precisa estar bem delimitada, para que se possa

considerar com precisão o papel das personagens do drama. Os estancieiros

estabelecidos no Rio Grande, ou em território Oriental, foram penalizados pelo esforço

do governo Oriental para “nacionalizar” a fronteira, entre eles o pagamento de direitos

sobre a exportação do gado em pé. Seria do interesse destes estancieiros, contudo, um

movimento no Uruguai que, ainda que removendo o governo Berro, os envolveria em

violências e instabilidades de toda ordem, presentes nas revoluções, já tão conhecidas de

todos? Neste sentido, é perceptível pelos documentos que pudemos enumerar até aqui,

que existem setores dos pecuaristas, dos dois lados da fronteira, ligados por laços

pessoais ou pela mera necessidade de estabilidade dos negócios, que ante a possibilidade

das califórnias, recorreram à proteção do governo Oriental. É mister, portanto, admitir

que o eventual apoio a Flores não é generalizado, e não atende ao conjunto dos

proprietários brasileiros, residentes ou não no território uruguaio.

De qualquer maneira, em que pese a resposta negativa de Canabarro a respeito do

ajuntamento de bandos no Rio Grande do Sul para agir no território uruguaio, o

cruzamento ilícito da fronteira por tropilhas armadas se verificou na fronteira da

província de Salto531 no dia 24 de abril. De acordo com o governo oriental, não só na

área de Canabarro, mas também em Uruguaiana, onde aqueles bandos se reforçaram de

corrientinos, e tomaram as povoações de Santa Roza e Santo Eugênio, depredando o

território ocupado em maior parte por brasileiros.532 A inquietação levantou-se logo na

530 GOLIN, 2004, vol II, p. 199. Embora o autor incorpore a idéia de “aliança”, expressa pelas autoridades uruguaias, não expõe o modo como se formou, objetivos e meios. Estabelece apenas a ligação de Canabarro com propriedades na fronteira, inclusive no território a que foi negada a permuta prevista no Tratado de 1857, o que sugeriria seus interesses em auxiliar a desestabilização e queda do governo blanco de Montevidéu.531 SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 5, p.4.532URUGUAI. Nota do governo Oriental à legação do Império, de 8 de maio de 1863. Idem, nº 9, pp.6-7.

144

Page 146: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

corte, tendo o ministro de Estrangeiros, o marquês de Abrantes, se dirigido ao presidente

da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, para que procedesse aos inquéritos

necessários para “[...] responsabilizar e punir [...], além de envidar todos os esforços

para que, constatada a guarida a simpatizantes de Flores, evitar a sua repetição “[...] e

fazer efetiva a completa neutralidade que nos cumpre guardar.”. Do mesmo modo pediu

ao representante imperial em Montevidéu, que de tudo isso participasse ao governo

uruguaio.533

O governo Oriental por sua vez tornou a pedir “[...] a punição dos culpados, entre

os quais não hesita em incluir o brigadeiro Canabarro e o comandante Ferreirinha [...]”. 534 O governo Berro pressionou o representante brasileiro em Montevidéu, a ponto deste

ter que exortá-lo no sentido de que era “[...] preciso ter em consideração o tempo

indispensável para que as comunicações da legação imperial cheguem aos seus destinos

[...]”.535 O presidente uruguaio, não obstante, já havia declarado a Avellar Barbosa que a

defesa da autoridade e da dignidade orientais o impeliam a abrir mão dos escrúpulos

para com o respeito ao território e jurisdição brasileira, em função da inutilidade dos

rogos às autoridades da fronteira brasileira. Dispunha-se a invadir o território imperial

em perseguição aos rebeldes que se abrigavam sob a proteção das autoridades gaúchas,

que se dividiam entre o dúplice papel de pecuaristas e agentes do Império.

No Império, para a irritação do governo central, as medidas visando o pleno

estabelecimento da neutralidade entre as facções orientais em guerra civil pareciam ser

afrontadas e boicotadas por parte das autoridades da fronteira e parcela dos

estancieiros.536 Canabarro, como autoridade, negava informações sobre atividades

clandestinas de apoio a Flores, sobre as quais o governo imperial estava

preocupadíssimo.537 Preocupação e irritação transparecem do documento do marquês de

533BRASIL. Despacho do ministro de Estrangeiros ao encarregado dos negócios do Império em Montevidéu, de 7 de maio de 1863. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 8, pp.5-6.534 URUGUAI. Nota do governo Oriental à legação do Império, de 8 de maio de 1863.Idem, nº 9, pp. 6-7.535BRASIL. Nota de Avellar Barbosa ao governo de Montevidéu, de 12 de maio de 1863. Ibidem, nº 12, pp. 7-8.536 GOLIN, 2004, vol II, p. 200.537 Idem, p. 201.

145

Page 147: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Abrantes que, a rigor endossava as reclamações uruguaias, nele o governo imperial

expressava...

“[...] profunda mágoa que, a despeito de suas instantes e reiteradas ordens e recomendações, a causa da rebelião, que atualmente flagela o Estado Oriental, continua a encontrar apoio e concurso de alguns brasileiros irrefletidos, que desconhecendo os seus próprios interesses e os do país, expõe assim o mesmo governo a acusações de deslealdade em suas declarações solenes, e por ventura a conflitos internacionais de conseqüências gravíssimas [...] a imprudência daqueles brasileiros é tanto mais criminosa e condenável, quanto não só inibe o mesmo governo de prestar-lhes a proteção devida, reclamando contra quaisquer vexames ou violências de que podem ser vítimas no caminho desatinado a que se lançaram, como, e o que mais dificulta a proteção e o apoio a que tem sagrado direito os brasileiros inofensivos, que residem no território da República, exclusivamente dedicados ao seu trabalho e a sua indústria [...]”538

O vulto das relações, dos laços culturais existentes entre os estancieiros gaúchos

que, de alguma maneira apoiavam ou se aproveitavam do movimento de Flores,

contudo, não pode ser subestimado. São elas que permitem que o domínio público se

imiscua com o privado, uma vez que a autoridade civil ou militar é ela mesma

componente dos setores proprietários.539 Aquelas relações foram, a rigor, o que permitiu

às autoridades encarregadas da fiscalização das fronteiras gaúchas, se não externar um

anelo político mais sofisticado, secundando Flores num movimento de desestabilização

do governo blanco, ao menos aproveitar-se das práticas tradicionais do contrabando e do

abigeato. Trataram de, num momento de reagir contra o governo de Montevidéu, tirar

vantagem da confusão geral no Estado Oriental, para praticar as arreadas em proveito

próprio, ou de seus protegidos.

538 BRASIL. Ofício do ministro de Estrangeiros ao presidente da província do Rio Grande do Sul, de 22 de dezembro de 1863. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 29, pp. 16-17.539 Veja-se, para o caso de Davi Canabarro, GOLIN, 2004, vol II, pp. 200-201. Na nota do ministro brasileiro em Montevidéu de 16 de dezembro de 1852 são listados como proprietários no Uruguai Antônio de Souza Netto, o barão de Porto Alegre – à época, Comandante das Armas da Província – João Propício Menna Barreto, então comandante de um distrito da fronteira de Bagé, e futuro comandante do exército de observação que deveria apoiar a Missão Saraiva, e o marechal João Frederico Caldwell, Comandante das Armas ao tempo da rebelião de Flores. Cf VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 40.

146

Page 148: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

A proteção mútua consagrava as práticas corriqueiras que permitiam todo tipo de

desvio, ainda mais facilitados pela distância física em relação à administração central e a

falta dos meios de fiscalização, conforme os dados de domínio do governo central.

Referimo-nos como exemplo aos trabalhos da comissão que - em 4 de fevereiro de 1863,

às vésperas dos primeiros sinais da rebelião de Flores - foi nomeada pelo ministro da

Fazenda para verificar in loco a situação do contrabando na fronteira com o Uruguai.

Seu relatório confirmou “[...] o escandaloso descaminho das mercadorias das estações

fiscais na fronteira, desde a foz do Chuí a Bagé, no alto Uruguai”.540 Por sua vez, o

Cônsul Geral do Império em Montevidéu propõe, entre outras medidas para inibir o

contrabando, que o administrador da Alfândega de Uruguaiana fosse “[...] um

empregado de reconhecida prudência, inteligência, e prática nos negócios fiscais, sendo

conveniente que não seja natural da Província.”.541

Estavam, portanto, atrelados, justamente aos interesses destes pecuaristas

investidos da autoridade legal, a implementação das ordens imperiais no tocante à

neutralidade frente à rebelião que lavrava em território Oriental; era claro para o governo

de Montevidéu que Canabarro passava pelo centro deste problema.542 Estes estancieiros

utilizavam-se da estrutura provincial de arregimentação da Guarda Nacional, permitindo

o seu emprego à feição dos seus interesses. Era a garantia de mobilização de caráter

militar “[...] sem necessariamente contar com a aprovação de uma política de

intervenção pelo Rio de Janeiro.”.543 Este é um fenômeno que carece de algum

alargamento, pois permite a possibilidade de contextualização quanto às denúncias de

Montevidéu a respeito dos auxílios prestados a Flores “[...] por militares ao serviço do

governo Imperial.”.544

Tropas e chefes da Guarda Nacional precisam ser distintos do exército imperial, a

tropa de linha. Os primeiros estão notadamente ligados aos horizontes provinciais, e

540 VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 601.541 BRASIL. Relatório do Cônsul Geral em Montevidéu, de 18 de abril de 1863. Idem, p. 598. Grifos nossos.542 Posição com a qual concorda Golin, cf. 2004, vol II, p. 201.543 DOHLNIKOFF, op. cit., p. 92.544 URUGUAI, nota do governo Oriental à legação imperial em Montevidéu, de 22 de outubro de 1863. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 19, pp. 11-12.

147

Page 149: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

como tal, sujeitos às lealdades regionais, ainda que não impeçam ou excluam a

possibilidade da participação de soldados de linha, embora sob o signo dos laços de

lealdade. Alguma demonstração deste imbricamento não deixa de ser notada, conforme a

denúncia de uma “[...] proclamação do major da guarda nacional brasileira Fidelis Paes

da Silva, que serve no exército da revolução, e diz que com ele servem algumas praças

do 5º regimento de cavalaria do Império.”.545 Seja como for, a rigor não podem ser

tomados como demonstração do envolvimento do Estado imperial nas questões internas

do Uruguai, da “[...] aliança regional contra o governo blanco [...]”.546

A partir do que temos colocado, os desdobramentos da intromissão de interesses

pecuaristas gaúchos no movimento do general Flores dão o caráter de resistência das

antigas práticas da fronteira, contra o avanço do controle estatal sobre aqueles espaços,

práticas e homens. Um modo de vida tradicional e secular contra as imposições dos

ajustamentos necessários aos fins dos Estados nacionais. Esta contradição estava

profundamente presente naquela crise, embora concebamos que a sua perfeita

compreensão não estivesse ao alcance do governo imperial, cujos homens e interesses

provinham de experiências provinciais marcadas por condições históricas diferentes.

Esta conclusão nos parece correta justamente por ser evidente o esforço do governo

imperial em aplicar os meios institucionais para a resolução daqueles problemas.547 Para

o Estado, a solução daqueles impasses históricos e culturais, evidentemente, estavam

além dos meios disponíveis; faltos até mesmo para a superação da geografia: “[...]

‘Ninguém desconhece quanto é difícil policiar uma fronteira tão extensa e em grande

parte despovoada, e também é certo que as circunstâncias anormais em que se achava a

República deviam acoroçoar os malfeitores de um e outro país que ali se refugiam.’

[...]”.548

3.3 Prenúncios da confrontação.

545 URUGUAI, nota do governo Oriental à legação imperial em Montevidéu, de 23 de outubro de 1863. Idem, nº 20, p. 12.546 GOLIN, 2004, vol II, p. 200.547 Idem, p. 221.548 BRASIL. Relatório de Estrangeiros de 1856. Apud VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 51.

148

Page 150: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Seguindo-se à invasão de Flores, da “[...] parte do Brasil, são prontas e enérgicas

as ordens e providências do governo para que os salteadores de Flores não tenham

apoio.”.549 O governo determinou às autoridades provinciais do Rio Grande do Sul que

quaisquer “[...] ‘forças rebeldes que se asilassem nessa província deviam ser colocadas

em posição inteiramente inofensiva. As autoridades que se deslizassem de seus deveres,

não guardando ou não fazendo respeitar a mais perfeita neutralidade, deviam ser

severamente punidas.’ [...]”.550 Evidentemente em contato com suas pares do rio da

Prata, as legações estrangeiras no Rio de Janeiro representaram um meio de pressão

adicional sobre o gabinete imperial, cobrando uma atitude coerente entre o discurso

neutralista e as ações das autoridades na fronteira. Esta coerência era especialmente cara

ao gabinete, até mesmo em virtude da exposição à oposição conservadora, indócil em

sua posição de subalternidade:

“O governo de Sua Majestade adotando os princípios políticos que julgou mais ajustados aos seus deveres para com a República e mais conformes aos seus próprios interesses, não poderia, por amor destes e da sua mesma dignidade, deixar de empenhar todos os esforços conducentes à efetividade daqueles princípios, sob pena de revelar uma contradição e inépcia incompatíveis com o simples bom senso [...] se instruirá o Sr, Herrera das medidas tomadas, não só pelo governo imperial, como também pelas autoridades superiores da província vizinha, para tornar real a neutralidade absoluta adotada em presença dos atuais sucessos da República”.551

Ora, uma comunicação do presidente da província de São Pedro, dava conta que

este começara a agir ao primeiro sinal dos boatos sobre possíveis instabilidades na

fronteira, antes de abril. Expedira o Comandante das Armas para a fronteira, autorizado

a realizar o que fosse necessário para que “[...] se evitasse qualquer reunião de nacionais

ou estrangeiros no território do Império e a passagem de grupos armados pela linha

divisória, com o desígnio de auxiliar os movimentos que tenham lugar no Estado

549 MAUÁ. Carta a Lamas de 7 de junho de 1863. In: MAUÁ, op. cit., p. 144.550 BRASIL. Relatório de Estrangeiros de 1864. Apud PARANHOS, nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 25-26. Segundo Paranhos, na mesma nota, “[...] alguns revoltosos batidos pelas tropas do governo de Montevidéu, penetraram no Rio Grande do Sul e foram logo desarmados e internados.”551 BRASIL. Nota do ministro Imperial em Montevidéu ao governo Oriental, de 24 de outubro de 1863. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 21, pp. 12-13.

149

Page 151: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

vizinho”.552 Dadas as dicotomias que analisávamos, entre as esferas locais de poder, e as

esferas oficiais, quer do governo central quanto do provincial, admitimos baldadas

aquelas providências do presidente Gonzaga. Tanto mais se reforça nossa análise o fato

de que Herrera acusou que Flores continua recebendo cavalos, armas e munições do Rio

Grande do Sul “[...] Em 7 meses não se sabe quais são as medidas que com sucesso

tenham sido adotadas na fronteira.”.553

Em grande parte, como verificado nas negociações da década de 1850, as

posições brasileiras em relação ao Uruguai expressavam, menos má vontade, do que os

reflexos da lentidão burocrática, o que, evidentemente, era prejudicial em problemas de

natureza urgente.554 Serve de indicativo da intensão imperial de manter-se ao lado do

governo legal na crise uruguaia, a oferta do ministro imperial em Montevidéu, para que

tropas da marinha, a bordo de navios fundeados no porto daquela capital, ficassem à

disposição do governo Oriental. Na eventualidade de um ataque florista à capital elas

poderiam ser utilizadas para serviços de defesa da “[...] Alfândega, o banco e quaisquer

outros edifícios em cuja conservação estivessem interessadas as nações que tinham

representantes [...]”555 em Montevidéu.

Seja como for, enquanto ferviam os canais diplomáticos entre Montevidéu e o

Rio de Janeiro, o movimento florista fazia-se sentir pelas extensões dos campos

orientais. Ali também o governo imperial esforçou-se em impedir a participação de

brasileiros nos assuntos da rebelião. Em 18 de julho de 1863, o ministro brasileiro em

Montevidéu, Avellar Barbosa, já havia sido substituído por João Alves Loureiro, que se

dirigiu ao Cônsul geral do Império para que orientasse os vice-cônsules no sentido de

que, “[...] por todos os meios ao seu alcance, procurem evitar a ingerência de brasileiros

nas dissensões domésticas do Estado Oriental.” Uma vez que “[...] o governo imperial

mantinha-se firme no propósito de observar e fazer observar pelos súditos brasileiros a

mais perfeita e absoluta neutralidade nas lutas internas[...]”. Aos vice-cônsules caberia 552 BRASIL. Informação do presidente da província do Rio Grande do Sul ao ministro Imperial em Montevidéu, de 27 de maio de 1863. Idem, nº 13, p. 8.553 URUGUAI, nota do governo Oriental à legação imperial em Montevidéu, de 23 de outubro de 1863. Apud ibidem, nº 20, p. 12.554 MAUÁ. Carta a Lamas de 16 de abril de 1858. In: MAUÁ, op. cit., pp. 71-71.555 PARANHOS. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 25, p. 14.

150

Page 152: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

fazer ver aos residentes brasileiros que a intervenção na rebelião os exporia às

conseqüências desastrosas da luta “[...] e malograriam a proteção que o governo imperial

sempre tem prestado aos brasileiros [...] alguns brasileiros hão sofrido vexame e

extorsões, e é provável que excessos análogos se reproduzam.”.556

Os fazendeiros brasileiros não eram simpáticos à imprensa de Montevidéu, e esta

tensão estimulava o crescente entendimento entre eles, de que deveriam ser capazes de

prover a sua própria proteção contra as violências sofridas por parte dos orientais.

Sentindo-se molestados pela opinião pública e pelas autoridades policiais e militares,

que executavam represálias e requisições, os fazendeiros tenderam a cerrar fileiras com

Flores. Contudo não julgamos apropriado “[...] dizer rigorosamente que os fazendeiros

brasileiros fossem correligionários de Flores e do partido colorado, ou que lhe

prestassem auxílio por motivos políticos [...]”.557 Tampouco a generalidade deles

assumiu uma posição pró Flores, visto que muitos brasileiros pediram a proteção direta

do governo Oriental.558 Fosse como fosse, em julho, Flores estava fraco demais para

bater as forças do governo, sendo que o principal empecilho à sua derrota era a falta de

“[...] harmonia nos chefes blancos [...] verdadeira causa da demora e nenhum sucesso

das operações até aqui. O Sr. Herrera (filho) parece desesperado da situação.”.559 O

Estado Oriental dispunha de forças suficientes para “lavar” os 500 homens que Flores

pode ajuntar no campo, o problema é que elas estão dispersas. Desgraçadamente, se

Flores não consegue derrubar o governo blanco, “[...] ao menos derrama o susto, a

consternação e a desconfiança por toda parte durante 3 ou 6 meses; de que serve a

existência de semelhante nacionalidade?”.560

Ao mesmo tempo em que o governo Oriental responsabilizava os governos

vizinhos pela invasão e seus efeitos, é preciso considerar que o partido blanco sofria de

sérios problemas nascidos de antagonismos internos, como já detectados por Mauá, que

dificultavam uma ação inequívoca do governo. Os blancos exaltados tinham em Berro 556 BRASIL. Recomendações do ministro Imperial em Montevidéu aos súditos residentes no Uruguai, de 13 de julho de 1863. Idem, nº 17, pp. 10-11.557 SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 26-28.558 GOLIN, 2004, vol. II p. 205559 MAUÁ. Carta a Lamas de 27 de julho de 1863. In: MAUÁ, op. cit., p. 145. Grifo do autor.560 MAUÁ. Carta a Lamas de 29 de julho de 1863. Idem, p. 146. Grifos do autor.

151

Page 153: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

um elemento moderado, o qual acusavam de fazer uma política que favorecia aos

colorados:

“[...] É em tais circunstâncias que esse mil vezes malvado Flores vem perturbar a paz da República sob pretexto de obter garantias para o partido colorado! Acreditou ele que a dissidência da presidência com os tigres [os elementos exaltados] faria com que estes abandonassem a autoridade – eis o segredo da invasão, e com efeito é verdade que a inação das forças em campanha em parte se deve a essa idéia.”561

A partir do ponto de observação privilegiado de Mauá, escrevendo de

Montevidéu, onde goza do convívio dos homens que carregavam as responsabilidades

pela condução da crise que, se apresentava complicações bastantes em função dos seus

problemas no âmbito das relações externas, possuía características profundamente

perturbadoras no front interno. Aproximava-se o final da administração de Bernardo

Berro e com ela o problema das eleições e o afloramento concomitante das paixões. Os

blancos exaltados, “[...] os Moreno e a sua súcia [...]”,562 estavam preocupados em

formar uma frente contra o partido colorado, e isto, passava pela desestabilização dos

moderados no governo. Esta postura extremada, acreditamos, incluía uma opção política

clara contra a preeminência argentina e brasileira na política uruguaia, e a opção por

uma terceira via para uma parceria regional, que deveria aproximá-los do Paraguai.

Alternativa anelada por setores das elites uruguaias desde a década de 1850: “Nadie más

piensa que en Brasil. Hoy es la estrella polar para todos (sic)”.563 Por outro lado, o

partido blanco, partido dos grandes criadores uruguaios, coloca-se em relação ao Estado

Oriental no mesmo sentido dos proprietários da fronteira do Rio Grande em relação ao

Estado imperial. Infensos à ordem estatal. No complexo das especificidades orientais são

os fatores que desenvolvem as dores do parto do Estado nacional uruguaio.

Continuando nos seus esforços para enfrentar a crise, em que pesem as intrigas

eleitorais, o governo de Berro esperava, uma vez expulso ou derrotado Flores, “[...]

obrar com a máxima moderação, dando todas as garantias ao partido colorado nas

561 MAUÁ. Carta a Lamas de 3 de agosto de 1863. Ibidem, p. 149. Grifos do autor.562 Ibid., idem.563 HERRERA, apud BESOUCHET, op. cit., p. 2.

152

Page 154: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

próximas eleições [...]”.564 A idéia é favorecer a pacificação com uma ampla anistia.

Iniciou-se mesmo uma aproximação entre Flores e o governo. Mais tarde, para

desestabilizar ainda mais as bases do partido blanco, Flores publicou a notícia sobre

aquela aproximação, acusando o governo de lhe procurar para propor um acordo, e

implicando Mauá, como grande interessado do Império em promover acordos com os

colorados. Mauá obrigou-se a publicar um “a pedido”565 na imprensa portenha,

defendendo-se, e ao governo uruguaio, frente à opinião pública. Afirmou que partiram

de Flores as iniciativas de aproximação. Disse o empresário brasileiro ter exigido do

emissário florista “[...] que por escrito me hiciese saber cuales eran las condiciones del

señor Flores para deponer las armas y restituir la paz a su pátria.”

De posse da declaração por escrito, Mauá a entregou ao governo uruguaio,566 que

lhe restituiu “[...] las concessiones que habia espontáneamente y no por medios de

arreglos para que los revoltosos se sumetesen a la autoridad [...]”. Entre estas

concessões estavam “[...] una amnistía amplia y sin restriciones [...]” e a garantia de que

todos os orientais seriam respeitados de acordo com a Constituição. Flores, por sua vez,

não manifestou aceitação às propostas de Berro, dizia apenas que “[...] aceptaría del Sñr.

Berro proposiciones de arreglo: Declaro altamente que no fué este jamás el pensamiento

de S.E. [...] que la autoridad quedase humillada [...] eso no era la paz sino el triunfo de la

rebelión [...]”.

As divisões internas dos blancos, na verdade, encontravam terreno fértil diante de

si. As condições de vizinhança pioravam a cada instante; naquele momento a Argentina

lançou uma ação militar contra ilhas do rio Uruguai, que terminou com o aprisionamento

dos expedicionários portenhos por tropas uruguaias. O governo do general Bartholomé

Mitre designou a José Marmol como enviado especial junto ao governo uruguaio para

obter a libertação dos soldados argentinos. Sem que sua ação obtivesse sucesso, pois os

564 MAUÁ. Carta a Lamas de 1º de agosto de 1863. In: MAUÁ, op. cit., p. 147. É importante para a delimitação dos projetos políticos divergentes dentro do partido blanco, que se guarde as idéias de Berro quanto à condução de uma anistia, com o acordo de Puntas del Rosário, de 20 de junho de 1864, frustrado pelo novo governo exaltado de Aguirre.565 A nota está transcrita em BESOUCHET, nota 70. In: MAUÁ, op. cit., p. 164-167. Todas as citações que se seguem correspondem a esta transcrição, salvo quando indicado.566 MAUÁ. Carta a Herrera de 2 de setembro de 1863. Idem, p. 152

153

Page 155: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

orientais exigiam antes, o desarmamento da ilha de Martin Garcia; as relações entre os

dois países foram rompidas. A ilha, militarizada por Buenos Aires em 1859, punha sob

controle argentino a foz do rio Uruguai, criando embaraços ao controle das águas

jurisdicionais uruguaias. A militarização gerou ameaças de rompimento entre as duas

repúblicas, tendo sido solicitada a intervenção diplomática do Império,567 que não mais

fez do que obter a garantia portenha de que a ilha não representaria risco à

independência e integridade orientais, nem para a navegação pelo rio Uruguai. De

qualquer forma, naquele momento explosivo, lutavam argentinos, brasileiros e uruguaios

pela regularização daquele problema, através da negociação de um protocolo. Mauá

intervém fortemente, preocupado:

“Se esta gente em sua estupenda inabilidade tem feito alguma asneira, vamos tratar de desfazê-la em vez de deixar ir o país no caminho da perdição, entregando-o exclusivamente a pilotos inábeis no meio de tão medonha tempestade. Os homens do governo, propriamente ditos, pouco perdem, porque quase nada têm a perder, porém eu, meu bom amigo, que cometi o desatino de acreditar que o senso comum valia a alguma coisa nesta terra, estou demasiadamente comprometido: ajude-me, pois a salvar a situação [...]”568

O ministro Herrera, assim como procurava uma aliança com o Brasil, de maneira

a se sustentar contra Mitre, enviou a Assunción Octavio Lapido para propor a López

uma aliança que, por sua vez, pudesse neutralizar as influências da corte e de Buenos

Aires. Previam as instruções de Lapido o estabelecimento de uma obstaculização da

influência argentina sobre o movimento armado de Flores, com o recurso à força das

armas. Propunha a tomada imediata da ilha de. Martin Garcia, e uma aliança com

Corrientes e Entre Rios, cujas negociações já estavam em andamento.569 Mauá

continuava a lutar para que se aprovasse o protocolo sobre a questão de Martin Garcia,

procurando evitar a guerra entre os dois países; enquanto isso detectou “[...] alguma

espinha nas negociações [do Uruguai] com o Paraguai.”.570 É interessante notar

materialmente a entrada do país guarani nas idas e vindas da convivência dos vizinhos

567 BRASIL. Relatório de Estrangeiros 15 de maio de 1860. Apud VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 471.568 MAUÁ. Carta a Lamas de 29 de outubro de 1863. In: MAUÁ, op. cit., p. 156.569 BESOUCHET, nota 58. In: MAUÁ, op. cit., p.135.570 MAUÁ. Carta a Lamas de 29 de outubro de 1863. Idem, p. 155.

154

Page 156: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

platinos, pelo que Mauá reconhece mais um espaço político para ser satisfeito. Neste

particular o empresário brasileiro escreve a Lamas, quando este se aproximava de

alguma solução para os problemas do protocolo sobre Martin Garcia, com a Argentina:

“Em seguida será V. Exa. rogado [pelo governo] a iniciar outra negociação em que a voz do Paraguai pode ser ouvida – essa negociação terá ou não resultado, isso pouco importa, consegue-se o fim de mostrar deferência para com López que parece tanto desejar o governo Oriental. Disse a Herrera que o protocolo é questão de limítrofes e que não o sendo o Paraguai não podia razoavelmente ter que ver nesta questão – não lhe parece que assim vamos bem? Salva-se o presente e vamos cuidar do futuro.”571

Contudo, novas rusgas nasciam justamente quando se pensava ter alcançado um

acordo. A inclusão de López como mediador no acordo sobre Martin Garcia, por parte

do governo Oriental, implicou na retirada do nome do Imperador, originalmente incluído

no texto do documento como mediador da questão. Loureiro, ministro imperial em

Montevidéu, enxergou “[...] uma ofensa pessoal e direta ao magnânimo monarca que em

obséquio à paz das Repúblicas [...] se prestava a aceder ao desejo manifestado nesse

protocolo de servir de árbitro entre as duas nacionalidades.”.572 Aqui aparece a

sensibilidade do homem de negócios, prognosticando com acerto os desastres que se

prenunciavam no Prata; afirma ao ministro das Relações Exteriores Oriental que lhe

parecia “[...] é que a República Oriental substitui a aliança do Brasil pela do Paraguai, o

que me parece seria prenda de paz enquanto que a outra poderá sê-lo para que a guerra

[civil] se atice.”.573 De qualquer maneira, o protocolo e seus efeitos não se

materializaram. Tristemente, entretanto, haveriam de se confirmar o desejo Oriental de

uma aliança com López, e os prognósticos de Mauá quanto ás paixões que embalavam a

rebelião de Flores, “[...] os elementos em fermentação nesses países são demasiado

incandescentes para não produzirem uma explosão.”.574

571 MAUÁ. Carta a Lamas de 5 de novembro de 1863. Ibidem, p. 159. Veja-se também a carta de 9 de novembro. Ibid, p. 159-160.572 MAUÁ. Carta a Herrera de 18 de novembro de 1863. Ibid, p. 155.573 Idem, ibd.574 Ibidem, ibid.

155

Page 157: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

3.4 – Ruptura. Conjunturas políticas imperiais; interesse partidário e negócios de

Estado.

Quatro Estados reunidos ao redor da fogueira que lavrava por conta do

movimento do general Venâncio Flores; “[...] a atmosfera platina era rubra e a rio-

grandense tinha com ela pontos de contato [...]”.575 Para a extinção da crise, dadas as

opções políticas do governo uruguaio - não exclusivamente, mas apenas por apresentar

conseqüências mais evidentes - não se poderia mais verificar a solução tradicional a que

estavam reservadas as questões do Império com o Prata, ou seja, a acomodação. A

ênfase do governo blanco na alternativa paraguaia adicionava elementos novos que

pressagiavam as instabilidades percebidas por Mauá. A solução da crise ao afastar-se

cada vez mais das práticas tradicionais entre os dois Estados avançava sobre o

desconhecido.

A tendência ao afastamento mútuo, enraizada na situação da política interna do

Uruguai, vinha se estabelecendo desde os desgastes diplomáticos de finais da década de

1850. O movimento se verificou a despeito dos eventuais avanços, principalmente com a

ratificação e posterior revisão do Tratado de Navegação e Comércio de 1851. Seja como

for, as diretrizes Imperiais no tocante às relações com os vizinhos platinos, considerando

a natureza da formação das elites burocráticas do Império, giraram consistentemente em

torno do “[...] respeito à letra dos tratados, e as reclamações por violências e prejuízos,

compreendendo, portanto, matéria de direito internacional público e de direito

internacional privado.”.576 Evidentemente que esta análise incorpora o pragmatismo dos

interesses materiais do Império em relação ao Estado Oriental,577 principalmente o

comércio, importação de charque e exportação de produtos primários578 É fundamental,

contudo, admitir que não houve recurso à violência e à intimidação, exercendo o Estado

Oriental, na verdade, o papel de mentor dos processos que definiram as relações entre os

dois Estados.

575 OLIVEIRA LIMA, op. cit., p. 168.576 Idem, pp. 157-158.577 Cf. nota 400.578 Segundo os números de 1868-69, em tonelagem, o mais importante era a erva mate, seguida do açúcar, milho, fumo, toucinho, café. VASCONCELLOS, vol II, pp. 102-109.

156

Page 158: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

A opção política Oriental pela parceria com o Paraguai, traduziu a crescente a

pressão dos setores exaltados do partido blanco, exprimindo a materialização, o

aproveitamento com fins objetivos, do imaginário a respeito da “intervenção

imanente”579 do Brasil: “A política tradicional, as intervenções do Brasil nos Estados do

Prata, as frases ocas, mas retumbantes, que se têm empregado para definir um sistema

que se atira como labéu ao governo do Brasil, mas que na realidade jamais foi por ele

esposado.”.580 Ora, as opções brasileiras pelas intervenções no território uruguaio

responderam sempre às solicitações dos governos legais estabelecidos em Montevidéu,

quer fossem blancos ou colorados. Antes, em 1851, como se viu, atendendo ao pedido

do governo sitiado de Montevidéu, o governo imperial manteve distância das questões

internas da República, a ponto de permitir a escolha de um político do partido de Oribe,

um blanco pouco amigo do Império, Francisco Giró.

Havia menos de dez anos, sendo presidente o próprio Venâncio Flores, foi

solicitada, de acordo com o Tratado de Aliança de 12 de outubro de 1851, que o Império

enviasse tropas para a defesa da ordem pública em Montevidéu. O Império enviou o

Visconde de Abaeté, Antônio Limpo de Abreu, como plenipotenciário para o Prata, ele

“[...] deveria obrar segundo as circunstâncias; parece-me porém provável segundo as

frases ministeriais que se sustente o governo de Flores como princípio legal, se o estudo

dos acontecimentos desde que dali partiu o Camila o permitirem.”.581 Também foram

despachados 4000 soldados à capital Oriental, que ainda assim abstiveram-se de ingerir

na situação doméstica, de maneira que Flores acabou deposto.582

Movidos, no entanto, por suas próprias práticas, objetivos e circunstâncias, as

forças políticas orientais em contraposição, ao final de 1863, precipitavam os

acontecimentos. A adesão de brasileiros que viviam no Uruguai ao movimento florista, a

579 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 158.580 JOURDAN, 1893 (a), p. 7. Segue um pequeno histórico das principais intervenções brasileiras no Uruguai, pp. 14-15.581 MAUÁ. Carta a Lamas de 14 de setembro de 1855. In: MAUÁ, op. cit., p. 49.582 BESOUCHET, nota 7. In: MAUÁ, op. cit., p. 48. Da análise da autora, no mínimo se poderia questionar a capacidade militar e diplomática do Império em fazer valer sua vontade sobre um adversário tão menos capaz: “[...] embora auxiliado abertamente pelas forças imperiais que enviou 4000 soldados para lhe garantir no governo [...]”.

157

Page 159: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

despeito das ordens em contrário expedidas do Rio de Janeiro, incitou revides contra

aqueles residentes, súditos de Sua Majestade. Não se pode, entretanto, perder de vista as

demandas próprias das movimentações militares naqueles descampados: as distâncias

são grandes, o inimigo move-se à cavalo, os movimentos das tropas após o alarme

precisam ser prontos. Os exércitos, revoltoso ou legal, estão obrigandos à leveza, sem a

possibilidade de emprego de pesados e lentos trens de guerra, movidos à força de bois,

para o transporte de mantimentos e outros itens de logística. À chegada em qualquer

paragem, esta deve prover a subsistência da tropa que, por vezes, alcançava alguns

milhares de homens e cavalos, que exigem, por sua vez, reposições constantes. Partindo

destes princípios da guerra que se praticava na pampa, é possível contextualizar as

reclamações de confiscos provenientes dos fazendeiros; o reconhecimento destas

peculiaridades eram tão “naturais”, que estavam reconhecidas nos tratados de 12 de

outubro de 1851. Os dois Estados não pretenderam obstar aquelas práticas, mas regulá-

las e estabelecer com clareza as devidas indenizações aos proprietários eventualmente

alcançados pelas necessidades militares dos Estados.

Contudo, as reclamações dos proprietários brasileiros, veiculadas pelos canais

formais – e informais, via apoio à rebelião - não se baseavam nas requisições em si, mas

nos excessos:

“Tendo as forças d’esse general acampado desde o dia 13 até 16 de julho junto à estância de Mataperros, de propriedade de Manoel Antônio Braga, ali praticaram toda espécie de violência e espoliação, queimando ranchos, curral e madeiras destinadas a construções; matando indistintamente, entre gado manso e bravio, cerca de 300 rezes, isto somente durante aqueles três dias, sem contar outras muitas que depois de haver a divisão passado o Sarandy, foram arrebatadas e as que foram lanceadas no campo; finalmente levantando toda a cavalhada existente na estância, sem ao menos deixar os animais necessários para os serviços mais urgentes. Por todo este prejuízo, a muito custo, passou o general [Diego] Lamas um recibo de limitado número de rezes. Os estabelecimentos de João Ignácio, vizinho de Braga, de Manoel Ferrão, nas pontas de Sopas, e lugar denominado Curral de las Piedras; de Lucindo José Tarouco e Lauriano José Tarouco, tiveram igual sorte [...] Na estância de Ferrão, nem a mesma

158

Page 160: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

casa de habitação foi respeitada; parte d’ela foi destruída e incendiada.”583

É preciso compreender, também, que a guerra, o litígio estabelecera claramente

as separações entre os lados castelhano e o português durante o período colonial, muito

antes, portanto, do estabelecimento do fato jurídico de criação dos limites.584 As

reclamações incorporavam a denúncia da sobrevivência de clivagens históricas, que

ajudaram a sedimentar as nacionalidades:

“Tais violências de que têm sido quase exclusivamente vítimas os súditos brasileiros residentes na campanha da República, não se podem de maneira alguma justificar com as necessidades extremas da guerra em que infelizmente anda envolvido o país; são elas verdadeiros atentados que só tem explicação nas prevenções e ressentimentos que ainda se nutrem contra uma tão importante parte da população do Estado.”585

Da parte do governo Oriental, seu ministro das Relações Exteriores reconhecia a

existência daqueles atentados contra os brasileiros, e, a rigor, escusava a sua aplicação, o

que por si só implicava no reconhecimento da estratégia governamental de aproveitar-se

deles, como meio de pressionar o governo imperial no sentido de tomar atitudes

conclusivas na contenção dos atos de apoio à rebelião que partiam do Rio Grande do

Sul:

“O governo Oriental não tolerará abusos dos seus, mas os culpados dos prejuízos que sofrem os brasileiros ao norte do Rio Negro são os próprios brasileiros que servem a Flores, e que são auxiliados por militares a serviço do governo imperial. O meio mais eficaz de garantir os interesses brasileiros não é entabular reclamações como essa, mas impedir que a guerra civil seja alimentada por elementos militares brasileiros, e por isso o governo Oriental não pode aceitar nem a responsabilidade dos prejuízos até agora sofridos, nem a dos muito maiores que se seguirão. O governo oriental faz justiça ao do Imperador, mas lamenta a falta absoluta de rigor, a ausência de meios

583 BRASIL. Nota da legação de Montevidéu ao governo Oriental de 20 de outubro de 1863. Apud SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 18, p. 11.584 PESAVENTO, apud DOHLNIKOFF, op. cit. pp. 213-214.585 BRASIL. Nota da legação imperial em Montevidéu ao governo Oriental de 20 de outubro de 1863. Apud SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 18, p. 11.

159

Page 161: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

práticos com que poderia ser evitada a reprodução de fatos criminosos”.586

Como se pode perceber, gradativamente se eleva o tom dos discursos na troca de

notas entre o governo uruguaio e a legação brasileira que, evidentemente transmitia o

clima de enfrentamento para a corte.

De qualquer maneira, no início de novembro de 1863, o gabinete imperial envia

em missão confidencial a Buenos Aires, o seu ministro residente em Montevidéu,

respondendo à necessidade de “[...] esclarecer os fatos e provocando explicações que de

certo prevenirão futuras dificuldades e complicações de ordem mui séria [...]”. As

relações rompidas entre Buenos Aires e Montevidéu, por força da captura da força

expedicionária Argentina, complicavam-se pelo fato de continuar a ocupação militar da

ilha de Martin Garcia. Neste ambiente de confronto, subsistiam as increpações do

governo Oriental quanto ao apoio do governo argentino ao movimento de Flores, o que

ameaçavam ainda mais o quadro geral. Por conta destas circunstâncias, não podia o “[...]

governo imperial deixar de acudir aos reclamos do governo Oriental para

convenientemente entender-se a tal respeito com o da República Argentina”. Loureiro

diz-se,587 portanto, “[...] encarregado de solicitar amigavelmente [...] explicações [quanto

à neutralidade portenha, em relação à rebelião florista]”. Em relação a estas declarações,

o Império admitia pela nota de seu enviado, que estava convicto de guardarem coerência

em relação ao proceder do governo portenho. Segundo o ministro brasileiro, seu governo

não poderia dar “[...] testemunho mais solene desta sua convicção, do que

proporcionando-lhe a presente oportunidade de remover do espírito do governo oriental

aqueles receios e dissipar aquelas apreensões.”.588

586 URUGUAI. Nota do governo Oriental em resposta à nota da legação imperial em Montevidéu, de 20 de outubro de 1863, datada de 22 de outubro de 1863. Idem, nº 19, pp. 11-12.587 Veja-se em GOLIN, 2004, vol II, p. 219, que o autor acredita que em função das complicações das relações com o Paraguai, “[...] a política de neutralidade [imperial] no Uruguai necessitava de um alinhamento continental [...]” admitindo que o Império procurava ganhar as boas graças da Argentina, para uma eventual aliança. Grifo nosso. Jourdan aceita o caráter intimativo da missão de Loureiro, op. cit., p. 15.588 BRASIL. Nota de João Alves Loureiro, ministro residente do Brasil em Montevidéu, ao ministro das Relações exteriores argentino Rufino Elizalde, de 3 de novembro de 1863. Ibidem, nº 25, pp. 14-16.

160

Page 162: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

A despeito de ter-se o governo de Sua Majestade mostrado satisfeito com as

garantias oficiais da neutralidade Argentina, que responderam às indagações de

Loureiro, no entanto, aquelas declarações não tiveram efeito junto ao governo de

Montevidéu. Manteve-se a atmosfera belicosa entre os dois países. A rigor, a

demonstração proporcionada pela missão de Loureiro quanto ao interesse do governo

brasileiro na neutralidade dos países limítrofes, foi inócua. Mantinha-se o

aproveitamento político, pelas facções políticas, dos eventos desenvolvidos no nível dos

governos, em busca dos seus objetivos mais imediatos; pinçados em sofismas que os

isolavam das suas circunstâncias geradoras, de suas reais possibilidades. Neste sentido a

ação – irritante - da imprensa de Montevidéu, tem seu papel reconhecido à larga; insufla

as paixões ao publicar artigos comprometidos com objetivos das facções, que “[...]

ficarão produzindo o seu efeito, e aí mesmo não deixaria de ser aproveitado pelos

inimigos da situação para desprestigiar o governo [...]”.589 Era à imprensa que Mauá

responsabilizava por provocar a adesão de “alguns centos” de brasileiros à causa de

Flores.590

De qualquer maneira, de 1863 para 1864, os canhões argentinos em Martin

Garcia obstaculizavam a navegação oriental pelo rio Uruguai, justamente no momento

em que aquele governo precisava alcançar seus portos para prover os socorros às forças

da legalidade. A ocupação da ilha prestava “[...] indiretamente a esta [a revolução]

poderoso auxílio em prejuízo da [...] soberania e independência [da República

Oriental]”.591 Contudo, as tentativas para evitar a guerra entre as duas repúblicas, mesmo

com a intervenção do ministro inglês em Buenos Aires, esbarravam nos uruguaios, que

recusavam-se a libertar a tropa argentina aprisionada,592 sem que antes houvesse a

neutralização da ilha.593 O impasse faz o encarregado argentino das negociações, José

Marmol, ameaçar retira-se de Montevidéu, do que foi dissuadido pelo ministro Loureiro.

Mauá escreveu a Herrera, alertando-o que qualquer passo em falso faria irromper a

589 MAUÁ. Carta a Juan José de Herrera, de 20 de dezembro de 1863. In: MAUÁ. op. cit., p. 166.590 Idem, p. 167.591 BRASIL. Relatório de Estrangeiros de 14 de maio de 1864. Apud VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 479.592 Esta era a causa de estarem rompidas as relações entre os dois países.593BRASIL. Relatório de Estrangeiros de 14 de maio de 1864. Apud VASCONCELLOS, op. cit., vol I, p. 477. O diplomata inglês chamava-se Edward Thornton.

161

Page 163: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

guerra com Buenos Aires; “Se o governo Oriental tem um exército forte, esquadra

suficiente ou alianças seguras, além de recursos pecuniários indispensáveis para o

estado de guerra, nada direi [...]”.594

O ministro das Relações Exteriores Oriental, o Sr. Herrera, interpelara o ministro

imperial em Montevidéu em nota de 23 de dezembro de 1863 sobre a posição do Brasil

diante da ocupação argentina da ilha.595 Segundo a interpretação do governo uruguaio a

situação feria os pactos contraídos quanto à navegação no rio Uruguai596 e obrigariam o

Império a intervir. Por seu turno, ainda que não concordasse com a posição uruguaia, o

governo brasileiro decidiu colaborar com o esforço para apaziguar os vizinhos

hispânicos, secundando os esforços do ministro inglês em Buenos Aires.

Naquele momento, como acontecera quando Buenos Aires ocupara a ilha em

1859, o Brasil entendeu que não podia exigir o seu desarmamento. Não obstante, o

ministro imperial em Buenos Aires, Felipe José Pereira Leal, insistiu em chamar a

atenção do governo portenho sobre a “[...] conveniência de remover-se mais este

elemento de discórdia nos conflitos infelizmente tão freqüentes no rio da Prata.”.597

Resultou dos esforços diplomáticos conjugados a garantia de que o governo argentino

não se utilizaria da ilha para atentar contra a soberania e independência Oriental.

Declarou também o governo argentino não obstar o comércio fluvial com os meios

coercitivos que preparara para obter a satisfação dos agravos recebidos do governo

uruguaio, e ainda pendentes. Aqueles meios coercitivos “[...] não têm [...] tido as

conseqüências de que tanto se arreceiava (sic) o governo [...] do Uruguai: a ilha de

Martin Garcia ficou de fato desarmada.”.598

594 MAUÁ. Carta a Juan José de Herrera, de 3 de dezembro de 1863. In: MAUÁ. op. cit., pp. 167-168. Grifo do autor.595 GOLIN, 2004, vol II, p. 224.596 BRASIL. Relatório de Estrangeiros de 14 de maio de 1864. Apud VASCONCELLOS, op. cit., vol I p. 477.597 Idem, idem, p. 479.598 Ibidem, ibidem, p. 480. Grifo nosso. Para uma exposição pormenorizada sobre a ocupação militar de Martin Garcia, desde 1859, bem como os problemas de caráter diplomático que contrapuseram a Confederação, Buenos Aires e o Uruguai naquele período, veja-se em Vasconcellos pp. 469-480. Curiosamente Golin defende que o Império tergiversa sobre a militarização de Martim Garcia, admitindo-a e tolerando-a como manifestação da aliança entre Mitre e Flores. A postura brasileira atendia à estratégia para facilitar invasão em “futuro imediato” do território Uruguaio, quando a Argentina “[...] também não poderia recorrer aos tratados de neutralidade, ou sequer ao tratado preliminar de 1828. Os dois grandes do

162

Page 164: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Antes que estivesse minimamente assegurada a paz entre as Repúblicas

Argentina e Oriental, extinguira-se o mandato de Bernardo Berro. Em 1º de março de

1864 assumiu Atanásio de la Cruz Aguirre, que era o presidente do senado Oriental e, na

impossibilidade de se realizarem eleições gerais em função da rebelião florista, assumira

pela pressão das parcialidades “militares” do partido blanco de Montevidéu.599 Estes

setores, de postura mais incisiva e truculenta, eram contrários a “[...] acordo algum com

a oposição, [...] só aconselhava violências e vinganças [...]”.600 Numa tentativa de obstar

o apoio que Flores recebia das parcialidades argentinas que lhe eram simpáticas, Aguirre

procurou, além de manter e aprofundar as ligações com o Paraguai,601 entender-se,

também, com o general Justo José de Urquiza.602 Urquiza era o governador da província

argentina de Entre Rios, historicamente antagônica ao predomínio político e comercial

de Buenos Aires; alinhá-lo com Aguirre abriria a possibilidade de neutralizar a ação do

Comité de Buenos Aires603 que apoiava os rebeldes colorados. Encaminhavam-se

secretamente conversações entre Assunção e Montevidéu, das quais se encarregava o

representante Oriental na capital guarani, Vasquez Sagastume. A “diplomacia mental”

desenvolvida por Sagastume, esperançoso em escorar os interesses orientais na estrutura

militar paraguaia,604 conspiraram para que o presidente Francisco Solano López cresse

em um conluio monárquico-argentino para a partilha comum das repúblicas menores.605

Tendo como pretexto todos estes complicadores platinos, que se alinhavam aos

problemas na sua própria fronteira sul, e às condições movediças da disputa política

doméstica entre liberais e conservadores, consideramos possível admitir que no início de

1864 o governo imperial pudesse estar considerando uma “[...] possível intervenção

hemisfério, cada um ao seu tempo, descarnavam o corpo oriental.” Quanto à tolerância argentina em relação a ação brasileira no Uruguai, sua base seria o temor à ameaça representada pelo Paraguai. 2004, vol II, pp. 223, 224.599 DORATIOTO, op. cit., p. 52.600 JOURDAN, 1893, p. 17; SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 32.601 GRAHAM, op. cit. p. 815.602 SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 33; OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 161.603 PARANHOS. Nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 29.604 DORATIOTO, op. cit., p. 52.605 OLIVEIRA LIMA, 1989, pp. 163, 165.

163

Page 165: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

[...]”606. Contudo, do Uruguai. Mauá oferece um testemunho discordante: a “[...]

política brasileira, V. Exa. a conhece, é sumamente demorada em ação; as idéias que ali

prevalecem são de abstenção nos negócios e políticas destes países [Argentina e

Uruguai]; para resolver outra coisa seria preciso muito trabalho [...]”.607 O aparente

descompasso entre nossa posição e a do eminente homem de negócios imperial pode

residir no fato de que Mauá estivesse levando em consideração apenas os aspectos

convenientes à política externa Imperial, que lhe seriam também caras por interessantes

aos negócios, de resto tão diligentemente seguidas nos anos anteriores. No entanto, o

Barão desconsiderava, como era marcante nas suas tomadas de posição, as imposições

da política doméstica brasileira, que conduzia cotidiana, e muitas vezes,

paradoxalmente, as parcialidades brasileiras, aos expedientes destinados meramente a

garantirem sua preeminência no cenário político.

Dentro da lógica pela manutenção daquela preeminência, assumira o governo do

Brasil em 15 de janeiro de 1864 o gabinete liberal chefiado por Zacarias de Góes, em

substituição ao do marquês de Olinda, o “ministério dos velhos”. Este último gabinete,

devido ao seu compromisso com a atenuação dos projetos liberais de maior

profundidade, atraiu o desagrado dos liberais triunfantes, criando pressões internas ao

partido. Pelos vexames da Questão Christie e pelas questões inconclusas no Prata, era,

também, acossado pela oposição conservadora assim como por setores da Liga

Progressista,608 atentos à dignidade nacional. As pressões escorriam para as ruas de onde

retornavam ao governo embaladas pela imprensa – sempre irritante – que tendia a cobrar

uma resposta do governo aos pedidos de socorro vindos dos estancieiros brasileiros

envolvidos pela rebelião florista.609 O novo gabinete assumia pressionado, também,

pelos setores liberais interessados em respostas convincentes do Império, em relação aos

desafios montados no Prata, e no Rio Grande do Sul, de onde rufavam as ameaças do

separatismo.610

606 GOLIN, 2004, vol II, p. 227; o autor é assertivo e credita a postura imperial à “[...] geopolítica do Prata e das ações dos grupos caudilhescos independizados.” Idem.607 MAUÁ. Carta a Lamas, de 3 de agosto de 1863. In: MAUÁ. op. cit., p. 148. Grifo do autor.608 OLIVEIRA LIMA, 1989, pp. 80-81; GRAHAM, op. cit. p. 813.609 PARANHOS. Nota 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 35.610 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 169.

164

Page 166: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Ora, durante todo o processo de alargamento da crise doméstica uruguaia,

juntaram-se aos eventuais interesses dos fazendeiros gaúchos que apoiavam Flores, dos

dois lados da fronteira, as demandas dos pecuaristas neutros, residentes no território

Oriental. Desgostosos com as represálias que sofriam dos agentes da República, e da

ineficácia das ações do governo brasileiro em garantir-lhes as seguranças e socorros que

requeriam; ameaçavam, tomar a si a tarefa de se protegerem, ou, contarem com o apoio

para isso vindo dos gaúchos residentes no lado brasileiro da divisa. Evidentemente o

histórico de queixas sobre a ação predatória de agentes do Estado Oriental sobre aqueles

pecuaristas, precedia a crise causada pelos colorados de Flores: “[...] eu não podia

imaginar a que o ato de que me queixei [carta de 10 de abril de 1858] era fundado em lei

[...] contentando-me em lamentar que exista uma lei que ataca a propriedade particular,

desde que a indenização não segue logo o esbulho.”.611 Contudo, naquela quadra, os

excessos aproximavam-se da institucionalização, como nos tempos da guerra civil de

Oribe. No final da década de 1840, o barão de Jacuí montara uma forte tropilha e

vagueava pela fronteira, cruzando os limites a discrição, para impor aos oribenhos

algumas represálias.612 Impunha-se, em 1864, impedir aos particulares que tomassem a si

a iniciativa pela proteção dos fazendeiros residentes no lado Oriental da linha

demarcatória. Agora com muito mais razão, visto que uma ação de retaliação contra os

blancos, diferentemente do caso oribenho, implicaria em ação contra as forças de um

governo legal, e poria o Império diante de sérias dificuldades internacionais.

Dentro da moldura federativa que regia a relação entre as províncias com a

Corte, e definia os equilíbrios entre o poder provincial e o central, no caso dos cuidados

para com os grandes proprietários gaúchos, existiam cicatrizes que serviam de

advertência ao Rio de Janeiro: a República Rio-grandense. A guerra de quase dez anos

de duração, levava naquele momento o governo do Brasil a considerar que, se insuflados

pela crença de terem sua própria identidade regional613 vilipendiada por menoscabos da

parte do governo central, os gaúchos poderiam colocar em risco o equilíbrio consentido

611 MAUÁ. Carta a Lamas, de 6 de novembro de 1858. In: MAUÁ. op. cit., pp. 73-74.612 PARANHOS. Nota 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 19.613 O imaginário do gaúcho que teimava em ser brasileiro, diante das centenárias lutas de fronteira, diante mesmo da opção farrapa em retornar ao concerto político do Império e, portanto, deveriam ser respeitados pelo centro.

165

Page 167: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

em 1845.614 De qualquer maneira, aos desafios que internamente se antepunham à

cultura da longanimidade615 brasileira em relação ao Uruguai, naquele momento juntava-

se o problema do fim do mandato do presidente Berro. Ora, em oposição à sociedade

marcadamente civilista do Império,616 assumiam no Uruguai parcelas exaltadas,

confiantes no auxílio militar do Paraguai e, portanto, tendentes à radicalização.

Os laços familiares e de interesses que uniam os proprietários residentes no

Uruguai e a província gaúcha constituíram o general Antonio de Souza Netto em porta

voz da província. O general Netto, indo ao Rio de Janeiro, esforçou-se para que o

Império, se não interviesse militarmente na República Oriental, ao menos o fizesse “[...]

diplomaticamente com especial energia e mostrar aos dominadores de Montevidéu que

erravam zombando assim da moderação do Brasil;617 de maneira a garantir a defesa dos

seus concidadãos618 residentes na República. Defendeu o antigo chefe Farrapo que não

era prudente deixar a província entregue a si mesma para a defesa da vida e propriedade

dos residentes no Uruguai:

“[...] ‘Não desconheça o governo imperial as conseqüências que hão de porvir da atitude independente dos rio-grandenses; bastará o apelo de algum exaltado para por em armas muitos milhares de homens, que trarão, se não em nome do governo, de certo em nome do Brasil , de incutir aos orientais o respeito devido a um vizinho poderoso.’ [...]”619

Através desta moldura, a sessão da Câmara dos Deputados de 5 de abril de 1864

apresentou um caráter diferenciado. Nela, vários oradores intervieram cobrando do

governo uma posição sobre a situação dos brasileiros em território uruguaio. Presente à

sessão, o ministro de Estrangeiros do Império, Dias Vieira, disse que enxergava

dificuldades para o governo na situação Oriental, externando desesperança na solução

diplomática daquelas questões - visto que o governo Oriental negava-se mesmo a

atender pedidos da Inglaterra e da França. Afirmou que o governo imperial “[...] ‘estava,

resolvido a reclamar com energia contra os atentados de que eram vítimas os brasileiros’ 614 PESAVENTO, op. cit. p. 45; DOHLNIKOFF, op. cit., p. 216.615 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 169.616 CARVALHO, 2003, p. 55.617 SCHNEIDER, op. cit., vol I p. 35.618 JOURDAN, 1893 (a), p. 19.619 Apud. SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 35.

166

Page 168: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

[...]”. Declarou também que o Império não pretendia “[...] ‘ingerir-se nas questões

domésticas de um país vizinho, nem tomar a defesa dos brasileiros imprudentes que,

contrariando as ordens do governo imperial, tomavam parte na guerra civil da

República.’[...]”.620 Mas, revelou a intenção do governo em enviar uma missão especial

ao Uruguai, a ser chefiada pelo conselheiro Saraiva,621 que deveria exigir do governo

Oriental, a partir da aplicação das leis da República, o fim das violências contra

brasileiros, e a punição, principalmente, dos transgressores reconhecidos e conhecidos

por serem funcionários do governo, civis e militares, além de ressarcimento das perdas

impostas por eles aos súditos do Império.622

Ainda que a missão do conselheiro Saraiva fosse um esforço para a solução dos

problemas sem que se recorresse a medidas objetivamente coercitivas – e queremos

dizer com isso que uma opção eminentemente militar não constituía a única opção de

coerção623 - certamente ela carregava em si um caráter terminativo. Ao que parece, a

longa linha de rusgas - com sua carga de aproveitamento das antipatias mútuas -

nascidas entre os dois Estados, desde 1851, quando do estabelecimento das primeiras

regras comuns que deveriam servir para balizar o relacionamento entre as duas

sociedades nacionais, encontrara seu limite, no que toca ao Império.624 As circunstâncias

políticas, internas e externas, se conjugavam para lançar o Estado imperial numa

empreitada inusitada, principalmente por suas conseqüências, como vistas à distância no

tempo. Para emprestar lastro à Missão Saraiva, acompanhava-a o vice-almirante, barão

de Tamandaré, para comandar a força naval brasileira no Prata, da qual se trocavam

alguns navios,625 sem contudo, aumenta-lhe o número. Além disto ordenava-se a

formação de um pequeno exército de observação na fronteira, para policiar aqueles

espaços no interesse da neutralidade que insistia em guardar o Império, e,

620 Apud. Idem, p. 34.621 GOLIN, 2004, vol II, p. 227.622 PARANHOS. Nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 37.623 Veja-se o Parecer do Conselho de Estado de 6 de dezembro de 1860, cf. transcrito em VASCONCELLOS, op. cit., vol I, pp. 383-384.624 Acreditamos ser possível admitir que, por sua vez, a opção Oriental por um alinhamento com o Paraguai tem o mesmo significado.625 BRASIL. Despacho à legação imperial em Buenos Aires de 21 de abril de 1864. Apud. GOLIN, 2004, vol II. p. 228.

167

Page 169: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

eventualmente, estar a postos para a execução de alguma represália no caso de Saraiva

não conseguir a satisfação dos seus objetivos.

Como vimos de expor no decorrer do nosso trabalho, seria temeroso buscar

identificar uma causa suficiente para a mudança de rumos da política externa brasileira

em relação ao Estado Oriental; por certo, como visto, elas compõe um complexo de não

fácil apreensão. Contudo, considerando-se as características que julgamos identificar no

arcabouço social que sustenta o Estado imperial, acreditamos que a verticalidade das

implicações políticas daqueles problemas no Sul, no tocante à luta pela prevalência do

Partido Liberal em relação à oposição conservadora, exerceu um grande papel sobre a

resolução de se montar a Missão Saraiva. Pelo menos nos moldes em que foi feita, ou

seja, admitindo o emprego da força, mesmo não sendo uma solução eminentemente

militar, para obter a satisfação das reclamações contra os maus tratos recebidos pelos

brasileiros não coadjuvantes de Flores.

“Os partidos militantes, sem nenhuma orientação política e obedecendo a instintos apaixonados, dão o caráter de questões políticas às pendências internacionais; e restolham neste campo, se divisam no correr dos debates a esperança de uma reconstituição ministerial em que figurem homens da mesma opinião política.”.626

Naquele momento, não atender incisivamente às questões de Estado que estavam

dadas, de maneira satisfatória, significaria atrair sobre o governo liberal o descrédito do

Imperador e do povo das ruas, uma vez que “[...] o estado de espírito brasileiro era em

1864 propenso à intervenção armada em favor [...] de Venâncio Flores [...]”.627

No país agro-exportador, cioso de sua integridade territorial e de seu caráter de

campeão da “civilização” perante as Repúblicas caudilhescas, a sobrevivência do Partido

Liberal no poder exigia medidas enérgicas e definitivas, que demonstrassem cabalmente

aos gaúchos e aos conservadores a capacidade liberal de manter a “ordem” das coisas.

Neste sentido, a manutenção do equilíbrio entre província e centro, do arranjo 626 JOURDAN, 1893 (a), pp. 7-8. Embora não desconheçamos a distância entre um positivista como o autor, e a classe política, não entendemos inválida a sua análise, inclusive em função dos originais da obra serem de 1870.627 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 168.

168

Page 170: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

institucional que regulava a estrutura social e política do Império, teria que ser

conseguida, em proveito do Partido Liberal, defendendo-se os interesses dos rio-

grandenses residentes no Uruguai; “O trabalho da diplomacia [...] consiste em converter

oportunidades externas em possibilidades internas.”628 Foi por pressão da estrutura

política doméstica do Império, portanto, que as reclamações dos gaúchos, incorporando,

“[...] como sempre acontece em semelhantes ocasiões, o elemento de especulação [...]”629

que o governo decidiu-se pela Missão Saraiva.

3.5 – A Missão Saraiva e a manifestação das contradições imperiais.

É conveniente notar que se transformara em questão inter-Estados o que

começara, a rigor, como fenômeno eminentemente regional; o choque entre a cultura da

fronteira com o arcabouço legal e ordenador dos Estados Nação. Este conflito estava

instaurado quer do lado Oriental, quer do lado brasileiro. As possibilidades disponíveis

para a solução daqueles problemas - baseadas nas experiências precedentes e no choque

entre aquelas culturas distintas - ofereceram o substrato para a formação dos meios

necessários, e os suficientes, para que se transformassem em questões de política

internacional.630 Seja como for, do lado imperial, tomada a decisão de fazer acompanhar

a missão diplomática de Saraiva de um aparato militar, ficou o governo frente a uma

contradição inerente à formação do Estado escravista brasileiro. O Império dispunha de

mecanismos defeituosos para mobilizar forças e lideranças militares. Mesmo

considerando que naquele momento o governo não pretendia uma guerra, nem mesmo

operações de maior vulto, a situação mostrou-se extremamente complicada.

A experiência já mostrara que, em 1850, em vias de se consumar o

enfrentamento com Rosas, embora o governo imperial pretendesse evitar a guerra até

onde fosse possível, fora difícil vencer as inércias do mecanismo militar do Império,

mesmo para iniciar um processo de mobilização. O ministro da Guerra, naquela ocasião, 628 ALMEIDA, op. cit., p. 33.629 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 161; DORATIOTO, op. cit. p. 52.630 THIESEN, L.M. A Questão Oriental: pequeno estudo bibliográfico sobre o Estado imperial, sua política externa e a eclosão da guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: FEUC – Centro de Estudos, Pós-graduação e pesquisa, 2003. Monografia final do curso de especialização em História do Brasil. p. 49. Ver também em GOLIN, 2004, vol II, p. 210.

169

Page 171: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

precisou dirigir-se à Assembléia Geral em 11 de fevereiro de 1850, para tentar vencer as

resistências dos deputados a respeito das necessidades de recrutamento de pessoal para

realizar o que o Estado propunha.631 Em 1864, contudo, na medida em que o escopo da

Missão Saraiva era bastante mais limitado do que os lances contra Rosas, o gabinete

Zacarias não pretendeu atrair maiores custos políticos para si. Por isso pretendeu não

recorrer ao recrutamento, recurso extremamente impopular, que trazia grande potencial

de resistência e perturbação. Ora, o próprio Zacarias denunciaria em 1868 que o

recrutamento forçado - a modalidade praticada no Brasil imperial - era a principal arma

eleitoral, quer para fazer amigos como inimigos,632 devendo, portanto, ser evitada para se

restringir a oposição. As províncias não aceitavam passivamente a fixação de cotas para

o recrutamento, dentro da lógica dos horizontes políticos das suas respectivas elites, o

“[...] ‘tributo de sangue’ era palatável quando em benefício da força provincial, mas não

quando era para o Exército nacional.”.633

A força militar que efetivamente, embora muito lentamente, pois inexistia “[...]

força de terra organizada e pronta a marchar na província do Rio Grande do Sul [...]”634

se foi agrupando na fronteira com a República Oriental, deveria ser formada por

unidades de linha sediadas no território rio-grandense. “Não havia ali um corpo

completo e nas condições desejáveis. Mesmo para exercícios não há pessoal bastante; e

me consta que já têm fechado os portões quando os corpos saem dos quartéis.”.635

Unidades da Guarda Nacional foram convocadas apenas para preencher os claros

deixados nas cidades de onde proviessem os soldados de linha. Como dissemos, o

deslocamento de soldados não foi acompanhado de recrutamento, pelo que se julga que

não havia expectativa quanto à necessidade de recompletamento de eventuais perdas em

combate. Além do mais, não se previu a formação de um trem de guerra, capaz de

garantir o suprimento de equipamentos armas e munições para a tropa, necessários

631 DOHLNIKOFF, op. cit., p. 258.632 Apud. FAORO, op. cit., pp. 434-435.633 DOHLNIKOFF, op. cit., p. 258.634 JOURDAN, 1893, p. 25635 Discurso do Deputado Campos na seção de 30 de março de 1864 da Câmara dos Deputados. Apud. JOURDAN, 1893 (a), p. 41.

170

Page 172: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

quando em deslocamentos longos;636 evidencia-se que suas ações deveriam restringir-se

a limites geográficos limitados.

Conquanto o gabinete declarasse não confiar na solução diplomática da crise,

ainda em maio de 1864 nada se fizera em termos militares no Rio Grande do Sul.637

Somente em 21 de julho o ministro da Guerra e da Marinha, Francisco Carlos de Araújo

Brusque despacha para “ o serviço das forças estacionadas na fronteira do Rio Grande

do Sul ” as primeiras instruções. Sublinhamos o destinatário da correspondência do

governo, para destacar o fato de que não havia sequer um comandante designado para

aquele exército de observação. As instruções ali contidas são genéricas, e desvinculadas

do conhecimento dos meios disponíveis e das implicações da geografia sobre elas.

Ordenavam às unidades estar “sempre prontas”; a expedição de “forças em todas as

direções de nossas fronteiras”, guarnecendo-as “do melhor modo que for possível”.

Mais: “Os comandantes parciais dessas fronteiras deverão ter as necessárias ordens para

obrar repentinamente, como o caso exigir, nas seguintes hipóteses: 1ª Polícia da

fronteira; 2ª Repelir qualquer invasão do nosso território; 3ª Exercer as represálias.”.638

As represália consistiriam na travessia da linha divisória para perseguição e captura dos

autores de atentados contra os brasileiros residentes. Esta penetração deveria ficar

circunscrita “[...] aos departamentos da fronteira terrestre do Estado Oriental [...]”, e os

detidos deveriam ser entregues às autoridades militares da província gaúcha.639

De qualquer maneira, é possível confirmar que o poder coercitivo do Império não

estava estruturado mesmo ante a porosidade da fronteira sul, de onde poderiam advir,

pela história e pelo contato com o republicanismo, os maiores desafios para a ordem

imperial.640 É possível um olhar com alguma profundidade sobre a desconsideração do

636 SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 36637 JOURDAN, 1893 (a), p. 25638 BRASIL. Instruções... 21 de julho de 1864. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 31, pp. 19-20. Grifos nossos.639 A análise deste documento per si exige a revisão de análises que admitem a Missão Saraiva como “[...] atitude imperialista brasileira de buscar um pretexto a qualquer custo para uma intervenção militar.” SALLES, 1990, p. 17; ou que intentava a derrota dos blancos, “[...] liberando o Império para pressionar, militar e diplomaticamente o Paraguai [...]” DORATIOTO, op. cit., p. 46; ou que o caráter imperialista da hegemonia brasileira explica-se pelo uso explícito da força ou sua ostentação para amparar seus objetivos econômicos e geopolíticos. CERVO & BUENO, op. cit., p. 125.640 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 26.

171

Page 173: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Império com as questões de defesa, sobre o estado geral de desarmamento da fronteira

do Rio Grande do Sul a partir do testemunho do Cônsul-Geral do Império em

Montevidéu. Em 1863, procedendo a uma inspeção para avaliar as condições da

fronteira quanto ao contrabando, pode reunir argumentos para sugerir a criação de uma

esquadrilha de quatro vapores de pequeno calado, capazes de fazer ‘[...] oito milhas por

hora, tendo em atenção a corrente do rio [...] armadas com rodízios de calibre que o

casco comporte [...]”; a esquadrilha atenderia aos serviços de combater o contrabando, e

se prestaria, também, aos interesses de defender a fronteira.641 Os fatos durante a invasão

paraguaia do Rio Grande do Sul em junho de 1865, dariam razão à praticidade das

recomendações do diplomata, embora, para felicidade dos soldados guaranis, não

tivessem sido aproveitadas. Em 1864 o Império foi surpreendido ‘[...] achando-se em um

estado deplorável, de desarmamento completo”.642

Enquanto o exército de observação ainda não possuía um chefe designado, a

força naval do Império acolhia o seu novo comandante, o barão de Tamandaré, que ao

tempo de sua nomeação era o nome mais evidente no Brasil e no Prata.643 Contudo, sua

nomeação para acompanhar Saraiva ao Prata, ao menos para a Marinha, foi um

imprevisto; seus pares não reconheciam nele “[...] o conjunto de qualidades que se

exigem para os altos comandos de grande responsabilidade.”644 A formação técnica de

Tamandaré pertencia aos tempos imediatamente pós-independência, distinguiu-se pelo

mérito e impôs-se pela impulsividade e pelo ardor pessoal, numa das carreiras mais

rápidas da instituição. Com sua gênese marinheira entre os rigores da vida das enxárcias

e da exposição aos elementos, ficou-lhe a falta de embasamento literário e científico.645

Para os tempos da Questão Oriental, contudo, tempos de rápidas e constantes mudanças

no que toca à tecnologia naval e de armamentos, com suas implicações sobre as táticas e

procedimentos, além do relacionamento entre as nações, Tamandaré aparecia aos mais

novos como ultrapassado. Para o almirante, a inspiração pessoal do chefe era o

641 BRASIL. Ofício reservado do Cônsul-Geral em Montevidéu, de 18 de abril de 1863. In: VASCONCELLOS. op. cit., vol I, p. 599.642 JOURDAN, 1893 (a), p. 4.643 JACEGUAY, Artur Silveira da Mota, Barão de. Reminiscências da Guerra do Paraguai. 2ª ed rev. e at. Rio de Janeiro: SDGM, 1982, p. 59.644 Idem, idem.645 Ibidem, pp. 56-57.

172

Page 174: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

determinante para os sucessos da guerra; “[...] fazia alarde de desprezar os princípios, os

métodos, os sistemas e a experiência recolhida na história, tudo, enfim, que se pode

adquirir pelo estudo [...]”.646

O antigo secretário de Tamandaré testemunha que, além das limitações de

formação daquele chefe naval, escolhido em função de suas ligações com o partido

liberal, existiam, também, problemas de ordem física. À época de sua nomeação, o

venerável marinheiro já apresentava “[...] visíveis sintomas de velhice precoce que se

manifestava por achaques de reumatismo gotoso, seguidos de um estado de torpor

cerebral que lhe não permitia fixar a inteligência sobre assunto algum, mesmo aqueles

que exigiam com urgência a sua atenção.”.647 Tamandaré desprezava o concurso dos

diplomatas, e ressentia-se de estar subordinado à sua autoridade, este traço do seu caráter

terá conseqüências de reflexos profundos. Os meios alinhados pelo Império, portanto,

para a condução daquele último apelo à diplomacia, levando em conta a disposição de

manter-se distante das facções em luta no território uruguaio, não estavam estruturados e

careciam de unidade. As deficiências destes meios, se percebidos em profundidade por

olhos argutos, podem ter inspirado o pensamento do representante do Partido

Conservador no Senado a vaticinar: “Ainda que o governo imperial não o queira, nas

circunstâncias atuais em que se acha a República Oriental, a sua ação coercitiva há de

traduzir-se em auxílio à revolução.”.648

Alheia à situação concreta das forças de terra e mar, bem como dos dotes e

limitações pessoais de suas chefias, em 1864 era grande a irritação da opinião pública

contra o Uruguai. As instruções que Saraiva levou para Montevidéu previam que em

caso de não poderem, ou, não querer acolhê-las o governo Oriental, o ministro

plenipotenciário brasileiro deveria apresentar-lhe um ultimato, sob pena de realização

das represálias. Contra esta solução colocava-se o barão de Mauá, parte de uma “[...]

minoria [...] nesse caso desoladora.”.649 Ao opor-se à solução violenta Mauá

desdenhava...646 Ibid. p. 139.647 Ibid, p. 64.648 PARANHOS. Nota 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 36.649 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 169.

173

Page 175: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“[...] a acusação de que se o governo brasileiro deixasse de corresponder aos apelos frenéticos de proteção dos seus nacionais estabelecidos no estrangeiro e ali envolvendo-se em lutas políticas, a razão estava no patrocínio dispensado aos interesses do seu agente financeiro, consubstanciados com os do partido blanco.”650

Como praxe dos momentos de exaltação, a chegada de Saraiva em Montevidéu

se fez sob uma campanha pesadíssima da imprensa da capital, com acusações contra as

intenções do Império e do seu ministro plenipotenciário, “[...] cada qual a mais ridícula e

mais odiosa [...]”.651 Em 12 de maio de 1864 o ministro brasileiro foi recebido pelo

governo uruguaio, quando se apresentou e à sua missão. Reclamava contra as limitações

do alcance das garantias constitucionais da República sobre todos os brasileiros

residentes, uma vez que muitos eram inocentes no que tange ao apoio a Flores. Partia daí

o aumento das queixas e o estado de sobressalto que se verificava na opinião pública

brasileira. Recriminava a tolerância para com estes abusos que no mais das vezes eram

cometidos por autoridades policiais e militares que, em raros casos eram meramente

destituídas de seus cargos.652 Mal ocultando as deficiências na implementação da plena

neutralidade que propalava o governo brasileiro, Saraiva salientou as responsabilidades

do Estado Oriental em garantir aos residentes pacíficos que...

“[...] serão para o futuro respeitados os seus interesses e direitos, aliás, garantidos pela própria Constituição do Estado. [...] Esta missão [...] têm por objeto conseguir por meios amigáveis, [...] a solução de várias reclamações importantes [...] e a adoção de providências e medidas que eficazmente protejam e garantam no futuro a vida, honra e propriedade dos brasileiros.” 653

No nosso entender, baseada como estava, nos próprios limites do Estado imperial

em impor-se diante das elites regionais do Rio Grande do Sul, e nos imperativos da

sobrevivência política do gabinete Liberal, as demandas da Missão Saraiva teriam que se

650 Idem, idem.

651 JOURDAN, 1893 ap. 18.652 BRASIL. Discurso de apresentação do conselheiro Saraiva ao governo Oriental, cf. Relatório de Estrangeiros de 1865. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 30, pp. 17-18.653 Idem, idem.

174

Page 176: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

basear, em alguma medida, na transferência das responsabilidades pela situação entre os

dois países, para o governo Oriental. Não significa isto que as estratégias orientais de

exploração da violência contra os brasileiros residentes não tivessem criado uma

situação que exigisse a ação do Estado brasileiro. O Uruguai colhia os frutos da sua

temerosa política de enfrentamento com o Império. Era, contudo, seu primeiro passo na

direção de provar o valor das relações construídas com o Paraguai.

Por sua vez, o governo da República contra-argüiu ao emissário brasileiro

e, consoantemente a Saraiva, transferiu as suas próprias responsabilidades pela

crise, à incúria brasileira em atender as reclamações do governo Oriental. Não

poderia ser evidente para o governo da República a ligação dos problemas

decorrentes da “invasão” de Flores, aí incluídos os que atingiam a população

brasileira residente, com a fragilidade da estrutura partidária e institucional

uruguaias. Assim também não seria admissível considerar o conjunto das

dificuldades com o Brasil como conseqüência das opções políticas e estratégicas

das suas elites políticas. Recaíam as responsabilidades sobre a não satisfação d’

“[...] as sérias queixas e reclamações, que [...] foram dirigidas reiteradamente

pelo governo da República ao de S. M. o Imperador do Brasil.”.654

Seja como for, ainda que a “[...] ação imperial [pudesse] em rigor assistir a

justiça, [...] faltava o desinteresse [...]”.655 Saraiva colocou, junto com o seu discurso de

apresentação, as exigências do governo brasileiro que serviam de pretexto à sua presença

em Montevidéu. Incluíam uma longa lista de atentados contra brasileiros desde 1852656

que, de maneira geral, pedia a punição, se não de todos, pelo menos dos transgressores

mais notórios, que estavam livres e ocupavam cargos públicos. A destituição dos agentes

de polícia que abusaram da sua autoridade; restituição de propriedade extorquida dos

cidadãos brasileiros e a liberação de qualquer súdito constrangido ao serviço militar da

República. No mais, exigiam o respeito aos acordos já assinados, respeito aos agentes

654 URUGUAI. Nota do Sr Herrera ao conselheiro Saraiva de 16 de maio de 1864. Apud GOLIN, 2004, vol II, p. 229.655 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 164-165.656 Uma lista das reclamações apresentadas por Saraiva aparece em JOURDAN, 1893 (a), nota 1, pp. 27-29

175

Page 177: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

consulares e, imprevidentemente, lembrava a presença das forças na fronteira – que

como vimos, naquela quadra, sequer possuíam instruções do governo sobre suas

atribuições:

“[...] para fazer respeitar o território do Império, e melhor impedir a passagem de quaisquer contingentes pelas fronteiras [...] para o general Flores [...] a qual servirá ao mesmo tempo para proteger e defender a vida, a honra e a propriedade dos súditos do Império, se, contra o que é de esperar, o governo da República, desatendendo ao nosso último apelo amigável, não quiser ou não puder fazê-lo por si próprio.”657

Evidentemente o plenipotenciário brasileiro compreendia a posição na qual sua

espinhosa missão o colocava. O governo imperial não queria a guerra, não poderia

querê-la, pois se reconhecia desarmado e sem intenção de impor a si mesmo os

sacrifícios de um conflito militar, no momento do triunfo cafeeiro. Contudo, dividido

entre apaziguar os gaúchos e a oposição com uma ação forte e convincente no Uruguai,

colocava-se, e ao país, no limiar de uma guerra. Embora declarado pelo próprio Saraiva

que sua missão era “[...] conseguir que por meio de uma política previdente e com

perseverança executada, fossem garantidos os direitos e os interesses legítimos dos seus

cidadãos domiciliados no interior da República”,658 ela certamente alimentaria os

interesses que ardiam por ver o Império como a força a ser superada no Prata. De

qualquer maneira as posições defendidas pelo ministro imperial irritaram profundamente

os uruguaios, que lhe atribuíram um tom arrogante e senhorial, truculento e

impositivo.659 Um experiente diplomata brasileiro classificou as exigências brasileiras

apresentadas por Saraiva como “[...] tão precisas e integrais quanto rigorosas e

humilhantes.”660

Curiosamente, na troca de notas que se seguiu entre Herrera, o ministro das

Relações Exteriores uruguaio, e o plenipotenciário brasileiro, surgiu com clareza

cristalina o diagnóstico sobre as raízes da crise que chegava preocupantemente ao seu

657 BRASIL. Discurso de apresentação do conselheiro Saraiva ao governo Oriental, cf. Relatório de Estrangeiros de 1865. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I.Apêndice, nº 30, pp. 17-18. Aparecem, também, em GOLIN, 2004, vol II, pp. 230-231.658 JOURDAN, 1893(a), p. 28.659 GOLIN, 2004, vol II, p. 233.660 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 161.

176

Page 178: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

clímax. Era o reconhecimento das limitações da ação dos Estados contra práticas

arraigadas em populações, cujas ações se revestiam de grande mobilidade, sobre um

terreno vastíssimo e parcamente povoado:

“O vínculo que liga até à fraternidade o mau elemento limítrofe argentino ao mau elemento limítrofe brasileiro, que se dão a mão pela posição geográfica das fronteiras com este país [...] explica-se pela identidade de índole, comunidade de instintos, e cumplicidade no crime. São elementos de barbaria que sempre se tem apresentado unidos e dóceis, quer tenham sido capitaneados por caudilhos orientais, argentinos ou brasileiros (Suarez, Calengo, Hornos, Jacuí [curioso o comedimento em não ter incluído o nome de Canabarro] ) elementos chamados por sua mesma condição para instrumentos de qualquer atentado, para qualquer subversão meditada e por meditar-se, hoje no território Oriental, amanhã no território vizinho. Assim como convergem no Quarai as fronteiras do Império, da República Argentina e da Oriental, onde não é fácil chegar com vigor a ação do governo central, assim também convergem, se enlaçam, se concentram e se confundem ali mesmo os elementos da caudilhagem bárbara dos três países, dona e senhora irresponsável desses territórios, centro de ameaça permanente contra a civilização que a cerca [...] sempre disponíveis para o mal, núcleo de onde parte sempre o primeiro grito selvagem, destinado a repercutir em toda a extensão de nossas extensas, mal povoadas e dificilmente administradas fronteiras [...]”661

Ao que parece, os fatores da cultura fronteiriça que formaram as populações

lindeiras durante um processo multissecular, aparecem ao estadista Oriental como

explicação para o fenômeno que contrapunha o seu país ao Império; mal encobrindo o

fato de que a piora das relações entre os dois países respondia, portanto, a outras

motivações, diferentes das que o próprio governo de Montevidéu defendia. A explicação

oriental para a responsabilidade pela crise teria então que ter outra raiz que não o

Império. Contudo, os demais objetivos políticos do seu governo, ou de qualquer outra

ordem, impediram que a mesma clarividência contribuísse para encontrar alternativas à

condução das relações entre os dois Estados, herdeiros daqueles mesmos problemas

históricos. O ministro Oriental percebe que a política do seu governo também é vítima

do mesmo complexo.662 Em função disto, uruguaios e brasileiros, envolvidos pelas

661 URUGUAI. Nota de Herrera a Saraiva, de 24 de maio de 1864. Apud. GOLIN, 2004, vol II, p. 237.662 Golin, a nosso ver também isola em sua análise o Uruguai destes problemas culturais; afirma que o Império atrelava-se ao “[...] ‘ determinismo pampeano’, dava ao caudilhismo gauchesco um lugar

177

Page 179: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

disputas para satisfação das demandas dos seus complexos políticos internos, estavam,

naquele momento, confrontados inexoravelmente, pagando um tributo à resistência da

“barbaria”, da falta de Estado contra o próprio Estado, contra a “civilização.663

De qualquer modo os lados estavam definidos, assim como os contendores, as

esperanças de alinhar-se com um parceiro capaz de aplicar algum golpe contundente

sobre as relações do Império com o Uruguai estimularam o governo Aguirre a

tergiversar a respeito das posições do Império.664 Em Assunción, Vasquez Sagastume, o

ministro Oriental na capital paraguaia, trabalhava para influenciar Francisco Solano

López.665 De longo tempo o presidente paraguaio mantinha-se objetivamente atento à

situação bélica do Império, o que lhe garantia o conhecimento da impotência militar

brasileira. De fato, no Império, em março de 1864, quando havia um perceptível

aumento da tensão no sul, os números do Exército atingiam 16.824 homens, embora

certamente não se encontrassem efetivamente este contingente nos quartéis. Em que

pese a Câmara dos Deputados ter aprovado naquele mês um aumento do efetivo

“ordinário” para 18.000666, o Exército do Paraguai alinhava 38.611667 homens, e uma

grande quantidade de recrutas estavam em processo de preparação em vários centros de

adestramento.668 Francisco Solano López também possuía um eficiente sistema de

informantes, que se movimentavam pelas fronteiras gaúcha669 e mato-grossense. Em

1862 realizara um profundo reconhecimento sobre o território em litígio ao sul da

província do Mato-Grosso,670 levantando metodicamente a situação das defesas, de

maneira que “[...] tem-se a convicção [pelo exame das ordens e instruções das tropas

paraguaias que invadiram o Mato-Grosso] de que o governo paraguaio conhecia, tão

fundamental no seu projeto geopolítico americano, especialmente quando se acirravam as relações com o Paraguai.” p. 243.663 Neste sentido consideramos questionáveis as conclusões que indiquem que o Uruguai estava acuado “[...] entre os objetivos expansionistas do Brasil e as intenções ameaçadoras embora incertas da Argentina [...] procurou [...] uma aliança com outra nação ameaçada pelos dois gigantes, o Paraguai.” LYNCH, op. cit., p. 679.664 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 161.665 MELLO, op. cit, pp. 129, 130.666 Idem, p. 41; SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 32, p. 21.667 REBER, Vera Blinn. The Demographics of Paraguay: A Reinterpretation of The Great War, 1864-1870. Hispanic American Historical Review. Durham, 68:2, 289-319, 1988, p. 309. 668 THOMPSON, apud PARANHOS. Nota 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 92-93.669 DORATIOTO, op. cit., p. 71.670 MELLO, op. cit., p. 63.

178

Page 180: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

bem ou melhor do que as autoridades brasileiras, o conjunto e os vários pormenores da

situação econômica e militar da província.”.671

De qualquer maneira, escorado na crença da aliança com López, a nota de

Herrera, o ministro de exteriores do Uruguai, de 24 de maio de 1864 negava ao Império

o atendimento à lista de 63 reparações entregue por Saraiva. Em que pesem os “termos

desabridos”672 com os quais o governo Oriental se contrapunha às exigências imperiais,

o documento apresentava algum caráter de moderação,673 o que foi entendido como

tentativa uruguaia de protelar o encaminhamento daquelas questões. A posição em que

se colocara o governo brasileiro, as posições que adotara para com o Uruguai em função

das imposições do cenário político doméstico do Império, não permitiam mais

condescendências. Embora pareça-nos evidente que Saraiva percebia com profundidade

a verdadeira natureza de sua missão, como haverá de demonstrar em seguida, a despeito

de quaisquer considerações sobre os mecanismos e circunstâncias que o levaram a

Montevidéu, o recurso aos sofismas da diplomacia punham em risco o sucesso da sua

missão e ele não transigiria...

“Esperar que o poder supremo se torne respeitado em todos os pontos do país, confiar na reorganização da administração e do Poder Judiciário, e fazer votos pela paz é um conselho que o governo imperial não desprezaria, se, infelizmente, a experiência dolorosa de perturbações nunca interrompidas, e cujo termo não é lícito prever, não houvesse tornado incontestável a sua esterilidade.”674

De qualquer maneira Saraiva optou por não entregar o ultimato final ao governo

Oriental, ficando à espera de instruções do Rio de Janeiro. Os grandes interesses

reunidos na cosmopolita Montevidéu viam com grande preocupação a possibilidade de

um agravamento da crise, contra a qual trabalhavam incansavelmente homens de

671 Idem, p. 66.672 PARANHOS. Nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., p. 37.673 Conforme trechos da nota de 24 de maio de 1864, de Herrera, transcritos em GOLIN,2004, vol II, p. 245.674 BRASIL. Resposta de Saraiva a Herrera de 4 de junho de 1864. Apud GOLIN, 2004, vol II, p. 252. Não concordamos com o autor, contudo, que identifica na resposta de Saraiva uma indicação de que o Império procurava se aliar a Flores para obter em função desta “aliança”, a satisfação para as reclamações. Não cremos que fossem as reclamações o objeto da Missão Saraiva, senão apenas um pretexto para na verdade permitir aos liberais contraporem os problemas políticos de caráter interno.

179

Page 181: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

negócio e diplomatas das potências lá representadas. Estas legações viam com grande

estranheza as posições brasileiras, identificando a fragilidade das suas pretensões e

objetivos. Mauá era um dos interessados na ordem necessária ao andamento da

economia uruguaia, que vinha já inspirando alguma confiança ao empresário. Em algum

momento, talvez embalado pelas contradições inerentes à sua missão, Saraiva

incorporou os procedimentos de moderação defendidos por Mauá. A notícia desta opção

ao alcançar o Império levou o conselheiro liberal a ser duramente criticado, acusado de

excessiva indulgência.675

O corpo diplomático de Montevidéu pressionou o governo Oriental para aceitar

uma tentativa de mediação entre as facções em luta fratricida, a ser desenvolvida pelo

ministro inglês em Buenos Aires, Edward Thornton, acompanhado do ministro das

Relações Exteriores argentino Rufino Elizalde. Estes chegam a Montevidéu em seis de

junho, e encontram-se com o conselheiro Saraiva, que “[...] não hesitou em aceitar os

bons ofícios que lhe eram oferecidos [...]”.676 A presença de Thornton serviria para

avalizar ao governo Oriental as intenções legítimas dos representantes dos países

vizinhos,677 assim como representava um país igualmente comprometido com a

manutenção da independência e soberania uruguaias.678 Sem prejuízo para as

reclamações que os governos argentino e brasileiro tinham em relação ao Uruguai, as

conversações de paz chegaram a um decreto do governo Oriental no qual se fixavam as

condições para o estabelecimento da paz entre as parcialidades blanca e colorada. Este

decreto foi encaminhado a Flores pelos três ministros mediadores.679 O general Flores

aceitou os seus termos e em 18 de junho de 1864, no seu acampamento de Puntas del

Rosario foi assinado um protocolo preliminar de paz, tendo os representantes do governo

Oriental feito a assinatura ad referendum. Além do protocolo, Flores fez chegar a

Aguirre uma carta reservada em que afirmava que as condições apresentadas para o

estabelecimento da paz...

675 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 169. É interessante notar a dicotomia identificada pelo autor no âmbito governamental, presente, também em: “Saraiva mantinha, porém, a postura moderada, quando comparada ao intervencionismo belicoso do governo Imperial.” DORATIOTO, op. cit. p. 58.676 PARANHOS. Nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 37.677 DORATIOTO, op. cit. p. 55.678 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 161.679 GOLIN, 2004, vol II, p. 255.

180

Page 182: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“[...] seriam estéreis [...] se não prevalecesse [...] a idéia de que necessitam, como garantia de seu fiel cumprimento, a organização de um ministério que, secundando a política da paz que iniciamos, aquiete os espíritos e prepare o caminho para chegar à livre organização dos poderes públicos que devem reger o país segundo a nossa Constituição.”680

As sugestões de nomes para compor o novo ministério sequer haviam sido feitas

por Flores, mas pelo próprio corpo diplomático, ansioso por costurar o acordo.681 O

governo Oriental, de qualquer maneira, tergiversou quanto à carta reservada de Flores;

imbuído do auxílio lopista, Aguirre não abrigava nenhuma pretensão de executar

efetivamente nenhum acordo de paz.682 Contudo, mesmo ignorando a carta, mas dando

continuidade à pantomima, o “[...] presidente da república, em conselho de ministros,

resolve aceder por sua parte às bases da proposta [...]” reconheceu o protocolo de Puntas

del Rosário, para cujos efeitos se deveriam expedir as necessárias ordens.683 Quando o

acordo foi levado a Flores, este recusou-se a aceitá-lo por não contemplar a

recomposição ministerial, numa reação esperada pelos membros do governo legal de

Montevidéu,684 que não puderam ou não quiseram vencer os setores radicais do partido

blanco.685 As divisões deste partido, contudo, ameaçaram uma rebelião dos setores

moderados, mais alinhados com os interesses comerciais do porto da capital, quando se

confirmou, em 2 de julho o fracasso das negociações.686 Revoltaram-se contra a perda da

oportunidade de pacificação, diante de condições tão moderadas, principalmente porque

elas preservavam os blancos no poder,687 também o corpo diplomático radicado em

Montevidéu:

680 Carta reservada de Flores a Aguirre, de 18 de junho de 1864. Apud. Idem, 256. O documento não aparece completo. Embora Paranhos não revele nada a respeito, Schneider e Doratioto, este citando Pelham Horton Box, defendem que Flores pedira apenas que se procedesse à substituição de elementos radicais que pertenciam ao ministério de Aguirre, e que fossem incluídos políticos blancos moderados que tivessem trânsito entre os colorados. DORATIOTO, op. cit., p. 56; PARANHOS. Nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 37; SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 37-38; 681 URUGUAI, Resposta ao ultimato de Saraiva, de 9 de agosto de 1864. Apud. GOLIN, 2004, vol II, p.257; SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 37.682 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 161.683 URUGUAI. Acordo de 23 de junho de 1864. Apud. GOLIN, 2004, vol II, p.257.684 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 161.685 DORATIOTO, op. cit., p. 56.686 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 161.687 JOURDAN, 1893 (a), p. 32.

181

Page 183: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“[...] sentimos profundamente que V. Exa. tenha julgado não lhe ser permitido aceder às indicações feitas em nossa visita de ontem, que acreditamos poderiam salvar a República, sem menoscabo do princípio nem ainda da dignidade da autoridade [...] fazemos os mais ardentes votos para que, em sua sabedoria, encontre algum meio para dar à sua pátria os estimáveis benefícios da paz e salvá-la das complicações e da desolação que a ameaçam.”688

Enquanto se desenrolavam as negociações intermediadas entre Flores e o

governo Uruguaio, Vasquez Sagastume obtinha em Assunción o compromisso paraguaio

para servir de mediador entre o Brasil e o Uruguai.689 Sagastume apresentara o pedido do

seu governo ao governo paraguaio, que acenou positivamente em 17 de junho de 1864,

quando o ministro do Exterior guarani, José Berges, comunicou a disposição do seu

governo a Saraiva e ao ministro Dias Vieira, dos Negócios Estrangeiros.690 As

autoridades brasileiras responderam ao governo guarani, Saraiva a 24 de junho, e Dias

Vieira em sete de julho:

“[...] declarando que havia devidamente apreciado a nota paraguaia, mas por enquanto achava sem objeto a mediação oferecida. A Missão Saraiva limitava-se a pedir satisfações de agravos sofridos pelos súditos brasileiros [...] e a apresentar um ultimatum, caso as suas justas reclamações não fossem atendidas.”691

Em seis de julho reiniciaram as operações militares suspensas desde o dia nove

do mês precedente, para que se entabulassem as frustradas negociações de paz. No dia

21 de julho o governo imperial, informado do fracasso da iniciativa de paz, emitiu uma

série de instruções aos seus agentes envolvidos na Missão Saraiva. Depois de certificado

da neutralidade Argentina, ainda que Urquiza representasse o elemento de risco no caso

de uma intervenção de López,692 o governo instruiu Saraiva a entregar o ultimato ao

governo Oriental. “É necessário que na apresentação do ultimatum fique bem patente

que das conseqüências supervenientes só terá o governo da República de queixar-se de si

próprio [...]”, pois para o Império só interessava que os seus súditos gozassem da

688 Carta dos três mediadores, Thornton, Elizalde e Saraiva, a Aguirre, de 2 de julho de 1864. Apud. GOLIN, 2004, vol II, p.258.689 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 161.690 GOLIN, 2004, vol II, p. 255; JOURDAN, 1893 (a), pp. 19-20.691 JOURDAN, 1893(a) pp. 19-20.692 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 170.

182

Page 184: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

proteção da Constituição da República.693 Era constante, e verdadeira, a referência a que

os interesses do Brasil no Uruguai não punham em risco a integridade territorial e a

independência orientais

Contudo, o abscesso existente entre o discurso imperial e as motivações do

governo do Rio de Janeiro para agir no Uruguai é preenchido de uma matéria mole,

inconsistente e confusa. Saraiva entregou o ultimato em quatro de agosto de 1864,

concedendo seis dias para que se satisfizessem as exigências do Império, ou, do

contrário se fariam efetivas as represálias:

“[...] não podendo este tolerar por mais tempo os vexames e perseguições que sofrem seus concidadãos, e tendo indeclinável necessidade de garanti-los [...] estou habilitado a declarar a V. Exa. o seguinte:

- Que as forças [...] estacionadas na fronteira receberão ordem para procederem a represálias, sempre que forem violentados os súditos de Sua Majestade ou for ameaçada a sua vida e segurança [...]

- Que também o almirante barão de Tamandaré receberá instruções para do mesmo modo proteger [...] aos agentes consulares e aos cidadãos brasileiros ofendidos [...]

As represálias e as providências para garantia dos meus concidadãos, acima indicadas, não são, como V. Exa. sabe, atos de guerra; e eu espero que o governo d’esta República evite aumentar a gravidade d’aquelas medidas, impedindo sucessos lamentáveis, cuja responsabilidade pesará exclusivamente sobre o mesmo governo.”694

Como se vê, o ultimato deixava aberto ao governo Oriental a possibilidade de

não piorar a situação, evitando novas ocorrências contra brasileiros, transformando, na

prática, o objeto da sua missão no Prata. As represálias, a partir do que registra o

ultimato, não seriam aplicadas para reparar as ofensas passadas, constantes da lista de 63

itens apresentada por ele em maio, mas as reservava para a eventualidade de novos

“sucessos”. Passavam a ser, portanto, instrumento não de cobrança das queixas, mas de

prevenção.695 A confusão entre os objetivos partidários do gabinete liberal e os objetivos

de Estado estabeleciam a inconsistência e as incoerências do plano açodadamente

montado para a intervenção contra o Uruguai:693 BRASIL. Instruções ao conselheiro Saraiva de 21 de julho de 1864. Apud. GOLIN, 2004. vol II, pp. 264-265694 BRASIL. Ultimatum de 4 de agosto de 1864. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 34, p. 30. 695 DORATIOTO, op. cit., p. 58.

183

Page 185: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“Toda nossa política nessa questão foi infeliz desde a origem. Começamos por enviar uma missão especial, levados por uma ameaça de revolução dos rio-grandenses que apoiavam Flores, e que visam a estender sua influência ao Estado Oriental. Assim deixamo-nos arrastar por um princípio revolucionário e fomos apoiar uma revolução, a de Flores contra o governo legal de Montevidéu. Fomos exigir a satisfação de reclamações que tínhamos abandonado há doze anos, enquanto o Estado Oriental tinha outras tantas coisas contra nós, uma verdadeira provocação, mais ainda, pois no momento em que apresentávamos semelhantes pretensões contra o governo da República do Uruguai, esse governo estava, e continua estando, a braços com uma revolta que não consegue dominar, e que é sustentada sobretudo pelos brasileiros que abraçaram a causa de Flores.”696

São do dia 21 de julho de 1864 as instruções do governo de S. M. para as forças

de terra que deveriam dar respaldo às exigências da Missão Saraiva. Já nos referimos a

estas instruções ao tocarmos sobre o assunto da situação das defesas brasileiras na

fronteira gaúcha. Portanto, percebe-se que no momento mesmo da necessidade de

aplicação das represálias, por mais obscuras que fossem os princípios de sua aplicação,

não havia materialmente, meios práticos para sua implementação. Firme em sua senda

de não vincular fins a meios, intenções e as possibilidades objetivas permitidas pela

realidade, própria da sua missão, Saraiva instruiu o presidente da província de São Pedro

do Rio Grande do Sul, a respeito da prontificação das tropas: “[...] para obrar, no sentido

de fazermos justiça pelas nossas próprias mãos.”.697

Em que pesem os registros historiográficos que pintam com acentuados matizes

dramáticos o quadro que revela que o “[...] imenso aparato militar imperial já estava em

movimento e, agora, passava, com agressividade, à ofensiva.”, 698 a realidade era, de fato,

bastante diversa. Do poder coercitivo disponível para o governo imperial, apenas a

divisão da Marinha Imperial no Prata estava em condições de praticar, concretamente, as

represálias. Em que pese não serem elas “[...] bem definidas”,699 Tamandaré recebeu

suas instruções do Rio de Janeiro, também, em 21 de julho de 1864. Aquelas instruções 696 CALÓGERAS, J.B. Carta ao seu filho Pandiá Calógeras, de 6 de novembro de 1864. Apud. Idem, p. 65.697 BRASIL. Instruções ao conselheiro Saraiva de 21 de julho de 1864. Apud. GOLIN, 2004. vol II, p. 265.698 GOLIN, 2004. vol II, p. 271; também aparece que o Uruguai se encontrava cercado “[...] pelo poderoso exército imperial [...]”. Ver também SALLES, 1990, pp. 48-51.699 JOURDAN, 1893, p. 32.

184

Page 186: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

admitiam que se estabelecessem navios de guerra brasileiros nos principais portos sobre

o rio Uruguai, de maneira a atenderem a quaisquer requisições das autoridades

consulares brasileiras no tocante à proteção dos brasileiros. Deveriam usar “[...] a força

que for compatível com os meios de sua ação, para repelir as agressões feitas a súditos

brasileiros, capturando aqueles que forem os autores d’esses atentados, ou sejam

autoridades, ou simples cidadãos do estado Oriental.”.700

Em nove de agosto o governo Oriental respondeu ao ultimato, devolvendo-o ao

conselheiro Saraiva, “[...] por inaceitável, a nota do ultimatum que dirigiu ao governo.

Ela não pode permanecer nos arquivos orientais.”.701 Também propunha a Saraiva um

arbitramento internacional, conforme as sugestões do Tratado de Paris,702 ao que o

enviado do governo de S. M. declinou. O representante brasileiro, em resposta,

denunciou a intensão uruguaia de ganhar tempo “[...] expediente que ilude a questão, ou

adia a dificuldade [...]”,703 e restringiu-se a confirmar as ordens para o início das

represálias. Diante da irredutibilidade a que chegara a posição do enviado extraordinário

e ministro plenipotenciário do Império, convencido, do caráter protelatório das

manobras orientais, crescia a ansiedade em Montevidéu pela intervenção paraguaia, que

se tornava mais e mais vital para sustentar a posição do governo Aguirre. Por ordem

deste, em Assunção, Sagastume procurava por todos os meios obter apoio concreto de

López.704

Esperando por López, o governo uruguaio emite ordens aos chefes de

departamento que soaram quase como uma admissão, a respeito da posição relativa em

que as autoridades orientais colocavam os brasileiros em relação aos demais estrangeiros

residentes. Deveriam aqueles chefes departamentais prevenir-se contra qualquer tipo de

atentado a súditos brasileiros, concedendo-lhes “[...] a proteção a mais eficaz que se

700 BRASIL. Instruções ao comandante em chefe das forças navais brasileiras no Rio da Prata, de 21 de julho de 1864. In: SCHNEIDER, op. cit., apêndice, nº 31, pp. 20-21.701 URUGUAI. Nota de 9 de agosto de 1864 ao conselheiro Saraiva. Apud. SCHNEIDER, op. cit., vol I, Apêndice, nº 35, p. 31.702 GOLIN, 2004, vol II, p. 270.703 BRASIL. Resposta à nota do governo Oriental de 10 de agosto de 1864. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 35, pp. 31-32. 704 SCHNEIDER, op. cit, vol I, p. 43.

185

Page 187: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

concede aos demais estrangeiros laboriosos e pacíficos.”.705 Naquele mesmo dia onze,

Saraiva entregou uma cópia do ultimato ao barão de Tamandaré, passando-lhe novas

instruções. Estas instruções tiveram, a nosso ver, as piores conseqüências para os

objetivos do gabinete liberal. Elas revelavam com maior profundidade, a falta de clareza

dos objetivos imperiais, associada à natureza intrínseca da intervenção a que se

propusera o governo brasileiro na República Oriental. As contradições e os paradoxos da

política doméstica imperial que impelia o gabinete liberal em direção ao Uruguai,

estavam para somar-se dramaticamente ao imponderável, instância intimamente ligada

ao conjunto das atividades humanas. As orientações e escolhas pessoais, os detalhes da

formação individual dos sujeitos históricos, no caso da Questão Oriental, encontraram

seu momento crucial.

Saraiva instruía Tamandaré sobre a conveniência de “[...] haver em Paysandu,

Salto e Colônia estacionados navios de guerra, e que estes, além da proteção devida aos

nossos concidadãos, não devem tolerar que os dois vapores de guerra do governo

Oriental e quaisquer outros levem tropas para os pontos indicados.”.706 Ora, a ordem

constituía-se em flagrante contradição com as reiteradas manifestações oficiais do

governo do Rio de Janeiro quanto à sua neutralidade diante das facções orientais em

luta. Declarações, que o Império repetia solenemente ao governo de Montevidéu e ao

corpo diplomático daquela capital, e o continuaria fazendo pelo menos até setembro.

Aparece um claro descompasso entre o discurso do governo brasileiro e a ação dos seus

agentes no Prata.707 Impedir a navegação dos navios do governo equivalia a impedir que

o governo legal da República tomasse as medidas que melhor lhe parecessem para obstar

o movimento rebelde que assolava seu território. O resultado deste proceder só poderia

705 URUGUAI. Circular do governo Oriental, de 11 de agosto de 1864. Apud. GOLIN, 2004, vol II, p. 271. Grifo nosso.

706 BRASIL. Ofício de Saraiva a Tamandaré, de 11 de agosto de 1864. Apud GOLIN, 2004, vol II, pp. 271-272.707 Golin entende que estava “[...] demonstrado claramente [...] a aliança de fato já firmada com Flores.”. 2004, vol II, p. 272. A contradição das posições de Saraiva e, a nosso ver, o equívoco da conclusão de Golin, aparece em documento citado pelo autor, mas não exclusivamente, de Saraiva, da mesma data de 11 de agosto, em que ele aconselha “[...] ‘aos brasileiros que não devem envolver-se nas lutas internas da República.” BRASIL. Ofício do ministro brasileiro em missão especial ao cônsul geral do Império em Montevidéu, de 11 de agosto de 1864. Apud p. 272.

186

Page 188: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

resultar no benefício da rebelião, para a qual o Império, pela ação dos seus agentes

especiais, acabava incorporando os seus favores.

No mesmo dia 11 de agosto de 1864, Saraiva deixava definitivamente

Montevidéu, deixando atrás de si um país no qual o governo, dominado pelos setores

radicais do partido blanco, mais que nunca anelava livrar-se das influências do Império

através da solução violenta das suas pendências. Segundo o ministro do rei da Itália,

“[...] ‘aqui estão muito contentes com a nova atitude do Brasil’ e os blancos esperavam

explorar ‘o melhor possível’ a situação criada com o ultimatum.”.708 Esperavam de

López que aquele gesto imperial fosse o fato definitivo, que o traria para os planos

orientais de um alinhamento político alternativo.709

4 – GUERRAS

4.1 – Descompassos imperiais. Estratégias mancas e nenhuma muleta.

No Império, considerando que a aristocracia é a camada social que fornece os

quadros de chefia das forças armadas, e sendo estas chefias preenchidas pelos indivíduos

tocados pela graça do favor, em grande medida se pode supor que as lealdades pessoais

se sobrepunham à eficiência militar propriamente dita. Até 1864 o emprego das forças

militares brasileiras no Prata se caracterizaram pela pequena escala, ações normalmente

baseadas na Guarda Nacional gaúcha; para aquelas condições a estrutura de coerção do

Estado parecia adequada. Mesmo a campanha contra Rosas serve de exemplo dos baixos

efetivos empregados contra as ameaças platinas: havia quatro mil brasileiros entre os 24

mil soldados empregados contra o governador de Buenos Aires, na batalha final de

Monte Caseros. Para socorrer o governo legal de Montevidéu, em 1853, também se

movimentaram quatro mil homens. Contudo, se as demandas superassem os padrões

históricos, o resultado não poderia ser outro a não ser o aparecimento de sérias

limitações na aplicação deste poder coercitivo.

708 DORATIOTO, op. cit. p. 59.709 BESOUCHET, op. cit. p.2.

187

Page 189: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

A administração pública, que emanava do zeloso civilismo da Coroa, contudo,

não contemplava a estruturação de um exército e marinha dotados de autonomia

suficiente para se transformarem em entidades dotadas de um ethos próprio, e capazes

de definir políticas independentes que tendessem à insubmissão.710 Nada que

contradissesse o “[...] caráter pacífico e industrioso que deve convir a um povo agrícola,

habitando um território enorme, deserto e sem vizinhos formidáveis.”.711 Este caráter

embasava a postura externa imperial de apoio às independências paraguaia e Oriental,

política por si mesma contrária às anexações712 e ligada a uma baixa demanda por um

aparato militar mais sofisticado. Neste propósito se desenvolviam os homens de Estado,

como José Maria da Silva Paranhos, herdeiro da tradição política conservadora,

transformou-se no principal expoente da política externa do Império na década de 1860.

Nas relações com os vizinhos propunha a conjugação de política com economia,

baseando-os na prosperidade comum, fundada em relações pacíficas, confiantes e

benéficas.713

As tropas de linha do Exército estavam dispersas pelo “território enorme”,

ocupando-se de atividades que amesquinhavam seu caráter constitucional; de geral

perdiam-se nas disputas políticas locais, onde o recrutamento transformava-se em

escoadouro conveniente de adversários políticos. Entre as suas atribuições corriqueiras,

aparecia o aproveitamento dos contingentes para atividades policiais, desonerando os

tesouros das províncias, que deixavam de comprometer o orçamento com as forças

policiais. O ministro da Guerra, em 1858, queixava-se que nos “[...] países regulares há

organizada uma força especial, destinada às diligências policiais e inteiramente distinta

da do Exército.”.714 Entre o governo central e as províncias, aliás, desenvolvia-se a

disputa pela prerrogativa sobre o recrutamento forçado; o Exército e a Marinha, e os

corpos policiais, conforme o previsto pelo Ato Adicional de 1834, disputavam os

contingentes disponíveis. A disputa pelos recrutas se acirrava pela eventual estreiteza

das fontes, pois não eram recrutáveis os escravos, assim como acontecia com os 710 Veja-se OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 46.711 TIMANDRO,. Apud, OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 178.712 CERVO & BUENO, op. cit., p. 118.713 Idem, idem.714 Apud. DOHLNIKOFF, op. cit. p. 194. No relatório do ministro da Guerra de 1865 aparece a repetição do problema, cf. p. 195.

188

Page 190: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

membros da Guarda Nacional. Além disso, muitas vezes dentre a população pobre,

muitos elementos eram agregados de algum poderoso local.715 De todo modo o

recrutamento alcançava somente as classes inferiores, no Exército e nos navios:

“[...] só se viam negros e mestiços de vários tons, além de brancos dos sertões, que todos sabiam bem morrer com as armas nas mãos, inexcedíveis na coragem e na indiferença ao sofrimento físico, mas oferecendo uma matéria prima de crassa e brutal ignorância para o manejo político.”716

E era justamente o perigo do seu aproveitamento político que precisava ser

evitado; a existência do Exército está vinculada à própria natureza da estrutura da

sociedade imperial, conforme vimos defendendo. Os interesses centrados na atividade

agro-exportadora prescindiam de uma estrutura de defesa mais elaborada, quanto mais

que concomitantemente, faltavam-lhes objetivos em terras alheias. Centrando o

gerenciamento deste cadinho de interesses provinciais, o Estado não poderia anelar o

aproveitamento de força armada como esteio de qualquer intervenção com o caráter

“imperialista” - como o desenvolvido pelo vocabulário marxista, e entendido como

limite demarcatório de uma etapa do desenvolvimento do capitalismo. A própria

natureza dos interesses nascidos da estrutura social, política e econômica do Império

serviriam para embasar nossa posição; em suas demandas mais urgentes e imediatas, a

guerra não ocupa senão as franjas do sistema: “O Estado, presente a tudo e que a tudo

provê, centraliza as molas do movimento econômico e político, criando um país à sua

feição, o país oficial.”.717

Para as demandas de coerção, se o Exército corresponde ao país oficial, a Guarda

Nacional responde pelo país real, escravista e agrário.718 Esta instituição teve sua gênese

na necessidade dos liberais de 1831 de controlar o Exército, vulnerável às pregações

políticas. Para tanto a Regência votou às pressas o projeto de Lei para a criação da

Guarda Nacional; os eleitores receberam armas do governo, num movimento em que a

715 Idem pp. 225, 256716 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 113.717 FAORO, op. cit. p. 450.718 Veja-se sobre as necessidades objetivas que se agrupavam em torno da Corte, bem como desenvolvimentos institucionais do Exército: MATTOS, op. cit., p p. 163, 194.

189

Page 191: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

coerção contra as “classes perigosas” passava do governo às mãos das classes

abastadas.719 Constituiu-se, desde sua criação, em resposta civil720 às instabilidades

políticas e às necessidades de unidade e controle social do escravismo agro-exportador.

Para as camadas dirigentes da sociedade imperial, a Guarda Nacional tem um papel “[...]

cuja missão é mais elevada justamente porque formada por cidadãos ativos [...]”,721 ou

seja, os membros das famílias com os interesses radicados na estabilidade do sistema e

gozando das prerrogativas de intervir no sistema legal que pretendia garantir aquela

estabilidade. A sedimentação da ordem social desejada e buscada encontra na Guarda

Nacional um amparo poderoso, sendo que seus principais postos ficavam reservados aos

filhos das elites provinciais.

Estando aberto o acesso ao oficialato do Exército, ainda na década de 1850, aos

filhos das famílias que não poderiam custear o bacharelato de seus filhos, inclusive a

mulatos, mantiveram-se as clivagens sociais nos instrumentos de coerção do Estado.

Contudo, a Guarda Nacional guardava o caráter paradoxal de agente do governo central,

ao mesmo tempo em que era força de base eminentemente provincial, confusão que se

mostrou vivamente nos combates da Revolução Farroupilha, das rebeliões liberais de

1842 e nas lidas da fronteira do Rio Grande do Sul com o Estado Oriental. Sua ação em

tais eventos mostrou-a hermética ao controle do Rio de Janeiro.722 Em função disto a

consolidação do programa regressista, em 1850, procurou aumentar o controle do

governo central sobre ela, submetendo-a ao ministro da Justiça e aos presidentes das

províncias, que deveriam, por sua vez, indicar os seus oficiais.723

Neste sentido, a partir destes princípios que regiam os mecanismos de aplicação

da violência do Estado imperial, se o recurso à força contra o Uruguai pretendia ser um

recurso aos padrões históricos de tais intervenções, constituiu-se, se não num equívoco,

719 BETHELL & CARVALHO. In: BETHELL, op. cit. pp. 714-715. Considere-se que os eleitores encontram-se um patamar acima dos votantes no sistema censitário de arregimentação política.720 CASTRO, J. B. Apud, DOHLNIKOFF, op. cit. p. 91.721 MELO, A.M. de Campos, Sessão da Câmara dos Deputados de 28 de Julho de 1846. Apud, MATTOS, op. cit., p. 162.722 Para uma discussão entre esta dubiedade do caráter da Guarda Nacional consulte-se MATTOS, op. cit., p. 203; DOHLNIKOFF, op. cit. pp. 84-85, 91-92; OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 28.723 MATTOS, op. cit., p. 202.

190

Page 192: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

num risco. A entrega do ultimatum por Saraiva admitiu um novo e evidente

descompasso entre as partes do Estado imperial, envolvidas no encaminhamento da

Questão Oriental. A constatação se baseia no fato de não estar ainda organizada na

fronteira gaúcha, o exército de observação que fora concebido ao se montar a Missão

Saraiva, e que deveria estar pronto para dar conta de aplicar as represálias. É também

clara a limitação das forças navais em aplicar as medidas de represália conforme

definidas pelas autoridades imperiais no Prata, porque só podiam agir sobre as vias

navegáveis e suas margens; longe da principal área de confronto ao norte da campanha

oriental. De qualquer maneira, aproveitando o clima de boa vontade que se formara entre

Buenos Aires e o Rio de Janeiro, ao deixar Montevidéu Saraiva vai à capital argentina.

Ali assina um protocolo no qual os dois governos reconhecem mutuamente seu direito

de...

“[...] proceder nos casos de desinteligência como procedem todas as nações, servindo-se para extingui-la dos meios que se reconheçam lícitos pelo direito das gentes, com a única limitação de que, qualquer que seja o resultado que o emprego destes meios produza serão sempre respeitados os tratados que garantem a independência, a integridade do território e a soberania da mesma República.”.724

Fragilidades militares, fragilidades também da diplomacia liberal brasileira.

Saraiva falhara em obter a superação da crise e, deixando Montevidéu, perdeu a

oportunidade de seguir para Assunção, de maneira a assegurar aos paraguaios as

intenções brasileiras em relação ao Uruguai e à Argentina. Por parecer-nos evidente que

o Paraguai buscava a satisfação de seus próprios interesses ao se aproximar do Uruguai,

e estando estes interesses encorpados “[...] pelas intrigas dos blancos [...]”, uma visita de

Saraiva a Assunção teria sido, a nosso ver, inócua. Contudo, a falta de uma iniciativa

naquele sentido, considerando-se o crescente interesse mútuo que revelavam

Montevidéu e Assunção, mais explicita a ligeireza com que era considerado o Paraguai

no conjunto dos problemas platinos. Fenômeno que expressa a posição tanto do governo

como da opinião pública.725

724 ARGENTINA-BRASIL. Protocolo de 22 de agosto de 1864. Apud GOLIN, 2004, vol II, p. 278.725 JACEGUAI, op. cit. p. 170.

191

Page 193: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

A despeito do conceito que pudesse ter o governo de Sua Majestade sobre o

vizinho país mediterrâneo, e dos objetivos de Solano López, outras forças interessadas

na estabilidade que permitia a normalidade dos negócios no rio da Prata movimentavam-

se, prevendo o pior. O ministro inglês em Buenos Aires, Edward Thornton foi até

Assunção tentar acalmar o governo paraguaio, assegurando-lhe que o Império não tinha

intenções malévolas em relação ao país Oriental. O representante inglês defendeu que o

Império procurava, conforme o direito de qualquer nação, reparações junto ao governo

Uruguaio.726 Não obstante, o governo paraguaio manobrava para colocar o Brasil em rota

de colisão com o Inglaterra. Conforme correspondência do ministro paraguaio creditado

em Londres e Paris, Cândido Bareiro, ao ministro Earl Russel, a intenção imperial era a

anexação dos países menores, de maneira a obter o controle do comércio no Prata, o que

evidentemente contrariava os interesses comerciais europeus. Concomitantemente os

agentes de López procuram instigar Urquiza contra o Império.727

No Uruguai, por sua vez, as intrigas acontecem, também, no seio do grupo de

agentes imperiais, em curiosa disputa pela precedência entre colegas. Tendo Saraiva,

violando a propalada neutralidade imperial, recomendado a imobilização dos vapores

uruguaios a serviço do governo de Montevidéu,728 Tamandaré - infenso ao controle dos

diplomatas, que subordinavam a ele e à Marinha - denuncia a medida a Loureiro.

Segundo o vice-almirante, executar as instruções de Saraiva o obrigaria a “[...] ‘sair do

estado de expectativa pacífica, para proceder à alguma represália que [...] agrave a

situação precária em que se acha o governo, o que justamente tenho procurado

evitar’.”729 De fato, a ordem fazia o Império atentar contra o direito das gentes,

auxiliando a revolução contra o governo.

Contudo, de maneira aparentemente equívoca em relação à carta que mandara a

Loureiro, naquela mesma data Tamandaré ordenou ao comandante da 3ª Divisão das

726 Citando carta de Thornton a Earl Russel, de 5 de setembro de 1864, DORATIOTO, op. cit. p. 57.727 Idem, pp. 57, 62.728 BRASIL. Ofício do plenipotenciário brasileiro a Tamandaré de 11 de agosto de 1864. Apud, GOLIN, 2004, vol II, pp. 271-272. 729 BRASIL. Carta de Tamandaré a Loureiro, de 22 de agosto de 1864. Apud GOLIN, 2004, vol II, p. 277

192

Page 194: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Forças Navais do Império no Rio da Prata, a imobilização daqueles navios uruguaios.

Testemunhando suas próprias convicções e inclinações, conforme confirmadas por suas

atitudes posteriores, Tamandaré reconheceu no texto do documento, ter suas forças

lutando “[...] com um Estado fraco e dividido em partidos [...]”.730 É preciso notar que a

Missão de Saraiva e seus efeitos, se não constituíam atos de guerra, conforme admitido

pelo próprio plenipotenciário no texto do ultimato de quatro de agosto, não deveriam por

as forças imperiais “em luta” contra o Estado oriental, conforme agora descrito por

Tamandaré. Ao que parece, apesar da intriga que formulava contra Saraiva, junto a

Loureiro, o militar já estava particularmente imbuído de estar engajado contra o Estado

Oriental, ainda que não houvesse cometimento imperial contra o Estado uruguaio

propriamente.

Tamandaré reconhecia o ponto de vista legal das iniciativas do seu governo, que

não se tratava de uma ação contra o governo de Montevidéu. Isto é perceptível nas suas

ordens, quando identificou a força que se organizava no Rio Grande do Sul, como “[...]

exército que está de observação na fronteira [...]”.731 Qualificando aquela tropa como

“de observação” identifica a limitação dos seus objetivos, não sendo destinada a uma

campanha, principalmente a uma invasão. A distinção é importante para determinar

tanto as intenções do governo imperial como, também, a própria linha pessoal de

conduta do vice-almirante, que, enquanto citava a possibilidade de uma penetração no

território Oriental, a ser realizada por algum destacamento daquele exército de

observação, ele mesmo se adiantava às ordens da corte e, efetivamente usava seus navios

na aplicação de medidas violentas contra o governo uruguaio, em proveito da rebelião.

A princípio o governo Oriental pareceu ceder às exigências de imobilização dos

navios, aplicando-a ao vapor General Artigas.732 Apesar daquela ação intrusiva contra o

governo uruguaio, no mesmo momento em que se aplicavam aquelas medidas

atentatórias à soberania Oriental, os navios de guerra brasileiros surtos em Montevidéu

730 BRASIL. Instruções ao comandante da 3ª divisão naval... Apud, GOLIN, 2004, vol II, p. 275. Grifo nosso731 Idem, idem. Grifo nosso.732 Fê-lo passar a operar sob bandeira inglesa, rebatizado de Perla del Uruguay, fazia os transportes em proveito do governo, burlando aquelas exigências. Veja-se GOLIN, 2004, vol II, p. 282.

193

Page 195: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

saudaram à nação uruguaia pelo dia da sua independência, 25 de agosto.733 No dia

seguinte, contudo, o Villa del Salto negou-se a atender à intimação da corveta brasileira

Araguahy,734 cujo comandante, cumprindo o que era “[...] de nossa competência nas

atuais circunstâncias[...]”,735 encetou uma perseguição ao vaso oriental. Aquele navio

transportava auxílios e reforços às forças do governo na cidade de Mercedes,736 e acabou

se refugiando em águas argentinas. A chegada da notícia sobre a perseguição ao Villa

del Salto, tornou evidente ao governo Oriental as implicações do fato, e delas os blancos

haveriam de tirar proveito. Esperando, segundo acreditamos, criar uma situação de fato,

com a qual pudesse apressar o socorro prometido pelo exército guarani, o ministro

uruguaio das relações Exteriores comunicou o rompimento das relações diplomáticas

com o Império, em 30 de agosto. Sem que recorresse à declaração de guerra, contudo, o

ministro Oriental declarou que havia sido...

“[...] ‘a bandeira brasileira, posta com toda a eficácia, e na devida oportunidade ao serviço da invasão [...] À vista destes fatos, e tendo o governo do Brasil disparado o primeiro tiro de canhão no Prata, S. Exa. o Sr. Ministro residente junto ao governo da República compreenderá que é inútil sua permanência diplomática no território nacional.”737

Como se o governo paraguaio atendesse instantaneamente aos desejos do

governo de Montevidéu, no dia seguinte, 1º de setembro de 1864, o ministro imperial em

Assunção, Sauvan Vianna de Lima, recebeu uma nota datada do dia anterior. Nela

afirmava o ministro das Relações Exteriores da República, José Berges, estar inquieto o

governo do seu país desde a entrega do ultimato de quatro de agosto; dizia-se

impossibilitado de ficar indiferente à sorte do povo oriental. Estranhava o abandono da

moderação que marcava a política externa imperial, especialmente por ter recusado a

mediação oferecida pelo governo de Assunção e, embora reconhecesse o direito das

733JOURDAN, 1893 (a), p. 33.734 Paranhos afirma que fora a Jequitinhonha a responsável pela perseguição do vapor oriental. PARANHOS, NOTA 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 40-41.735 BRASIL, Ofício de Tamandaré ao governo imperial, de 6 de setembro de 1864. Apud, GOLIN, 2004, vol II, p. 285.736 URUGUAI. Nota do governo Oriental comunicando o rompimento das relações entre o Uruguai e o Império. Apud, GOLIN, 2004, vol II, p. 281-282.737 URUGUAI. Nota do governo Oriental comunicando o rompimento das relações entre o Uruguai e o Império. Apud, GOLIN, 2004, vol II, p. 281-282.

194

Page 196: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

nações de ajustar entre si qualquer problema, não prescindia “[...] do direito de apreciar

por si o modo de efetuá-lo, ou o alcance que pode ter sobre os destinos de todos os que

tem interesses legítimos nos seus resultados.”.738 Para o governo do Paraguai, as

represálias significavam a possibilidade de ocupação de “alguma parte” do território

Oriental, o que “[...] pode vir a exercer conseqüências sobre os interesses legítimos que a

República do Paraguai possa ter em seus resultados.”.739 O governo paraguaio lamentava

a agudização da crise, ainda mais depois de ter o Império aderido às estipulações do

Congresso de Paris.740 Não podia concordar com a possibilidade de ocupação territorial

ainda que momentânea, que seria considerada...

“[...] atentatória do equilíbrio dos Estados do Prata, que interessa à República do Paraguai como garantia de sua segurança, paz e prosperidade, e que protesta da maneira a mais solene contra tal ato, desonerando-se desde já de toda responsabilidade pelas conseqüências da presente declaração.”741

A despeito do caráter ameaçador do que na prática era um ultimato ao governo

brasileiro, este se restringiu a apoiar a resposta dada a Berges por Vianna de Lima no

mesmo dia: “Inteirado o governo imperial desta comunicação, completamente aprova os

termos da resposta de V. Sa. [...]”. Realçava o novo ministro de Estrangeiros, Carlos

Carneiro de Campos, que a posição brasileira era de respeito à independência Oriental, o

que é “notório”, como são também a “[...] neutralidade e abstenção que está no propósito

de observar em suas questões e lutas internas [...]”.742 Na verdade as justificativas

paraguaias para sua ameaça de intervenção na crise eram, a rigor, despropositadas, como

os próprios paraguaios haveriam de demonstrar, dentro de quatro meses, ao investirem

contra o Mato Grosso, abandonando os blancos de Montevidéu à própria sorte. As

posições defendidas pelo governo guarani não puderam deixar de conduzir o governo

brasileiro a considerar a iniciativa paraguaia como mera “hespanholada”.743 Seja como

738 PARAGUAI. Nota do governo paraguaio à legação imperial em Assunção, de 30 de agosto de 1864. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, Nº 48 pp. 75-76.739 Idem, idem.740 O Congresso de Paris, ao qual aderira o governo imperial, prescrevia o recurso à mediação de uma terceira potência, antes que dois Estados fizessem a opção pela solução bélica para as suas divergências.741 Ibidem, ibidem.742 BRASIL. Despacho do governo imperial à legação em Assunção, de 22 de setembro de 1822. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, Nº 52, pp. 80-81.743 JOURDAN, 1893 (a), p. 37.

195

Page 197: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

for, em nota do dia três de setembro, o ministro paraguaio Berges recusou as explicações

dadas pelo ministro brasileiro em resposta à sua nota de 30 de agosto. Diante disto, para

o governo guarani, a situação permanecia inalterada, o que o levava a assegurar “[...] que

terá o pezar de fazê-lo efetivo [o protesto de 30 de agosto], sempre que os fatos ali

mencionados venham confirmar a segurança que V. Exa. acaba de dar em sua nota à que

esta responde.”.744

Para considerar a origem do continuado pouco caso imperial em relação aos

posicionamentos paraguaios, cabe averiguar o papel do imaginário brasileiro a respeito

do país guarani, que permeava os meios políticos e militares do Império. A posição

brasileira, de acordo com os coevos,745 estava baseada nos 50 anos de quase total

isolamento auto-imposto do Paraguai. Desconsiderava-se que, quando Carlos Antônio

López, pai de Solano López, assumira a presidência em 1844, o Paraguai iniciara uma

aguda aproximação com a Europa, pelo menos até onde permitiam as parcas condições

da economia paraguaia, onde o Estado era o principal consumidor. O Brasil enquadrava

o Paraguai nos marcos gerais das suas relações com o Prata, relações marcadas pela falta

de interesses materiais que permitissem a construção de relações consistentes entre os

vizinhos. A rigor, da parte do Império, aquelas relações revelam pouco mais do que a

atribuição ao Paraguai, do papel de obstáculo ao estabelecimento de uma Argentina

fortalecida e expandida. Portanto, de há muito pecavam as elites encarregadas dos

negócios de Estado pela falta de “vigilância diplomática” sobre o Paraguai; mesmo nos

momentos de crises entre os dois países, quer fosse sobre seus preparativos militares,

quer fosse quanto em procurar “[...] neutralizar as sugestões estranhas que ele pudesse

receber dos nossos inimigos no Prata, tendente a envenenar-lhe o ânimo [...]”.746

Os estadistas brasileiros souberam da legação imperial em Assunção que, apesar

da cumplicidade entre López e Montevidéu, havia alguma tensão entre os dois países,

pois López negara apoio armado ao Uruguai em 25 de agosto. O governo paraguaio

queixava-se que “[...] nem sempre o governo uruguaio mantivera o Paraguai informado 744 PARAGUAI. Nota de José Berges à legação imperial, de 3 de setembro de 1864. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, Nº 51, pp. 79-80.745 JOURDAN, 1893 (a), p. 37.746 JACEGUAI, op. cit., pp.169-170.

196

Page 198: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

de todas as negociações que fazia.”;747 esta informação servia para aumentar a

desconsideração em relação às declarações guaranis de apoio ao Uruguai, além de

sugerir a fragilidade da aliança entre os blancos e López. No Uruguai, contudo, o

governo mantinha-se firme na sua política em relação ao Brasil, e aproveitava-se da

confusão entre o discurso do gabinete do Rio de Janeiro e as ações da Marinha Imperial

no Prata. As agressões militares brasileiras alimentaram os projetos políticos uruguaios

em relação ao alinhamento com Assunção, emprestando veracidade ao seu discurso de

vítima da agressão imperial. Aquela agressividade, segundo o discurso oriental deveria

transformar o Paraguai no seu próximo alvo. Parece-nos importante realçar que López,

por conhecer a fragilidade militar brasileira, não deveria ter ilusões quanto à

possibilidade de uma agressão imperial. Novamente a invasão que o Paraguai promoveu

no território mato-grossense , em dezembro, demonstra que na verdade os cálculos

lopistas estavam baseados na disputa territorial que nascera nos tempos coloniais, entre

espanhóis e portugueses.

De qualquer maneira a ação da armada brasileira no rio Uruguai, permitiu ao

governo uruguaio sentir-se fortalecido o suficiente para prosseguir nas demonstrações de

oposição aberta ao Império. O próximo passo foi cassar o exequatur dos agentes

consulares brasileiros, proibindo também que se fizesse comunicação entre o seu

território e quaisquer forças navais ou terrestres do Império. Na prática, e para todos os

efeitos, era uma decisão que a princípio garantia o estabelecimento do confronto entre as

forças da República e quaisquer forças brasileiras que tentassem a aplicação de

represálias. Cerradas quaisquer possibilidades de reversão da tragédia que se avizinhava:

“Repetindo-se todos os dias, com caracteres de maior gravidade, os atos atentatórios da marinha imperial do Brasil contra o pavilhão nacional, e até que sejam dadas à República as reparações que exige sua honra ultrajada pelos atos de injustificada hostilidade que, sem preencher os requisitos estabelecidos pelo direito das gentes, tem sido perpetrados em nome do governo do Império, criando uma situação de guerra que torna agravante a permanência no território da República do escudo das armas e da bandeira sob cuja sombra se tem cometido aqueles atentados [...]”748

747 DORATIOTO, op. cit. p. 60.

197

Page 199: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Continuando a marcha do enfrentamento entre os dois Estados - conforme

prognosticado por Paranhos, quanto ao inevitável da ação brasileira no Uruguai

transformar-se em apoio aos rebeldes - o dia seis de setembro assistiu ao reinício da

perseguição ao Villa del Salto. A perseguição realizada pela corveta Belmonte culminou,

no dia seguinte, com o encalhe do vapor oriental e sua destruição levada a cabo por seus

próprios tripulantes. Flores aproveitou a oportunidade para angariar simpatias junto à

opinião pública oriental, e exigiu explicações ao comandante da divisão naval brasileira

que operava no rio Uruguai. Em nova demonstração da posição esdrúxula em que os

agentes do governo de S. M. colocavam o Império, o oficial brasileiro satisfez a

reclamação do líder rebelde que afrontava o governo legal de Montevidéu. Respondeu-

lhe não ter sido sua “[...] intenção ofender a bandeira Oriental; e tanto assim que

mandaria salvar a bandeira da República com 21 tiros, se o general o exigisse.”.749

Começava a tomar contornos dramáticos a ação individual do chefe naval no Prata, que

fazia os fatos fugirem, aos limites das experiências precedentes do Império na região

platina. Numa estrutura consolidada institucionalmente como o Estado imperial, “[...]

nunca se deu a um general tanta latitude de ação como a que teve Tamandaré [...] desde

que Saraiva deu por terminada a sua missão diplomática e encarregou o nosso almirante

de proceder a represália contra o governo blanco de Montevidéu.”.750 O barão de

Tamandaré seguiu firmemente no caminho de evitar as ingerências e a precedência dos

burocratas civis sobre ele.751

4.2 – Culminâncias. A falência na aplicação de Poder.752

Apesar de que “[...] uma meia dúzia de ideólogos ou alguns caturros da política

tradicional do Brasil no Prata [pudessem] acreditar que o poder militar de López só

ameaçava a República Argentina [...]”,753 Solano López aprestava-se para o rompimento

748 URUGUAI. Resolução do governo Oriental, de 3 de setembro de 1864. Apud, GOLIN, 2004, vol II, p. 284. Em 16 de setembro o governo brasileiro tomou idêntica medida, cassando o exequatur dos agentes consulares orientais. Idem, p. 285.749 JOURDAN, 1893 (a), p. 34.750 JACEGUAI, op. cit. p. 140.751 GOLIN, 2004, vol II, p. 285.752 PODER. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. 2 vol. 5ª ed. Brasília: UNB: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000. 753 JACEGUAI, op. cit. p. 169.

198

Page 200: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

com o Império. Tornavam-se razões complementares a impulsividade de Tamandaré na

execução dos atabalhoados planos do Partido Liberal, e os planos que o Paraguai traçava

para si no tocante às relações com o Império. Tendo em vista, como já dissemos, as

fronteiras em litígio, no início de setembro de 1864, uma deputação de notáveis de

Assunção pedia ao presidente López, El Supremo, que se efetuasse a declaração de

guerra ao Brasil.754. A resposta presidencial expunha:

“El Paraguay no debe acceptar ya por más tiempo la prescindencia que se há hecho de su concurso, al agitarse en los estados vecinos cuestiones internacionales que han influído mas ó menos directamente en el menoscabo de sus mas caros derechos [...] vuestra union y patriotismo, y el virtuoso ejercito de la Republica, han de sostenerme en todas las emergencias para obrar cual corresponde á una nacion celosa de sus derechos y llena de su grandioso parvenir.”755

No dia da destruição do Villa del Salto, Saraiva patrocinou uma inflexão

importante nas posições brasileiras em relação ao Uruguai, ordenando não a aplicação

das represálias como o prescrito pelas instruções imperiais de 21 de julho, conforme

vimos, mas, a invasão de fato do norte do território Oriental.756 Os motivos desta guinada

não nos são, ainda, aparentes, embora haja pistas sobre suas intenções e motivações nas

instruções que enviou para o presidente do Rio Grande do Sul e para Tamandaré. Para o

presidente Gonzaga, Saraiva, sugeriu celeridade nos preparativos para a invasão, de

maneira que o Império se beneficiasse das operações que Flores intentava contra os

portos do rio Uruguai. Dever-se-ia aproveitar o ímpeto florista para “[...] castigar em

Paysandú aos chefes e agentes do governo de Montevidéu, que mais violências têm

cometido contra brasileiros.”.757 Por sua vez, a Tamandaré o plenipotenciário

recomendou que, uma vez tomadas aquelas localidades ribeirinhas pelas tropas floristas,

o vice-almirante deveria “[...] entender-se com as autoridades que o general Flores tiver

754 JOURDAN, 1893 (a), p. 23; SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 101.755 Discurso de Solano López de 2 de setembro de 1864. Apud, PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 101.756 JOURDAN, 1893 (a), p. 38.757 BRASIL. Instruções do plenipotenciário imperial ao presidente da província do Rio Grande do Sul, de 7 de setembro de 1864. Apud GOLIN, 2004, vol II, p. 289.

199

Page 201: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

nos portos do Uruguai que for ocupando; convindo que sejam tratadas com deferência

enquanto protegerem, como é propósito seu [...] aos nossos compatriotas.”.758

Ora, desde as negociações de Puntas del Rosário, quando se estabeleceram os

primeiros canais de comunicação entre Flores e Saraiva, é possível que os dois homens

mantivessem abertas aquelas instâncias de correspondência. Seria possível que assim

Saraiva estivesse ciente dos planos do líder rebelde, podendo, então, explorar seus

movimentos, ainda que representasse nova mudança de rumos nos planos – ou

demonstram a falta deles – no tocante à aplicação das forças do exército imperial, em

consonância com os termos do ultimatum. Verificando-se o fenômeno que aventamos

acima, é lógico que, por seu turno, Flores estivesse ciente das ameaças contidas na nota

paraguaia de 30 de agosto - agravada pela ameaça constante de que Corrientes e Entre

Rios apoiassem López. Para Flores era forçoso, então, reconhecer a necessidade de

acelerar o ritmo das suas ações militares para impedir o acesso paraguaio, ou de seus

eventuais aliados argentinos, aos portos orientais sobre a costa do rio Uruguai. Eles não

poderiam servir de ponto de apoio para qualquer tentativa de socorro ao governo blanco,

o que poria aquelas forças à retaguarda das de Flores, com evidentes desvantagens

táticas e estratégicas.759

As instruções de Saraiva para a invasão, uma vez que desconhecemos a

existência de comprovação em contrário, portanto, obedeciam ao princípio da

oportunidade, fazendo com que as forças brasileiras se beneficiassem de uma ofensiva

dos rebeldes colorados sobre os portos do rio Uruguai. Como se vê das instruções de

Saraiva, o objetivo das forças brasileiras não era tomar ou mesmo ocupar as referidas

cidades, sempre que possível; a aproximação brasileira se daria apenas após a ação das

forças de Flores. Seja como for, sabedor das resistências que encontrava em Tamandaré,

758 BRASIL. Instruções do plenipotenciário imperial ao almirante Tamandaré, de 7 de setembro de 1864. Apud Idem, p. 290.759 Golin acredita que a opção pela ocupação obedecesse ao fato de estar acertado, verbalmente, que Flores se comprometeria a aceitar as reclamações do Império, resultando, implicitamente, num acordo com o líder rebelado. Partindo do princípio de que um acordo com o líder rebelde só faria periclitar a posição política doméstica do gabinete liberal, por ilegal, e que não eram as reclamações os determinantes da presença imperial no Uruguai, acreditamos que a explicação da aproximação seja o resultado das negociações de Puntas del Rosario, e não implicavam em coadjuvação militar, para a deposição do governo legal. GOLIN, 2004, vol II, p. 287.

200

Page 202: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Saraiva enviou as suas novas instruções ao Rio de Janeiro, de maneira que, chanceladas

pelo governo, fossem retransmitidas aos comandantes brasileiros no Rio Grande do Sul e

no Prata;760 é de se notar que o exército de observação ainda não tinha sequer um

comandante designado: “A ordem do dia nº 416 do Ministério da Guerra, de 22 de

setembro de 1864, dá a nomeação do Marechal Menna Barreto para comandar o exército

que ainda se ia organizar”.761

De fato, estas ordens, avalizadas pelo gabinete imperial, foram retransmitidas a

Tamandaré em ofício de 21 de setembro de 1864. Elas estabeleciam peremptoriamente

que as forças brasileiras deveriam ocupar o mais rápido possível as cidades de Paysandú,

Salto e Cerro Largo. No entanto, é importante salientar naquelas instruções a reiteração

da disposição imperial em manter-se eqüidistante das facções em luta civil:

“Se as forças do general Dom Venâncio Flores vierem ocupar os departamentos mencionados, desde que, embora como governo de fato, oferecerem as desejadas seguranças à vida, honra e propriedade dos brasileiros, cumprirá que as forças imperiais se retraiam, pois não tem o governo de S.M. o Imperador o intento de favorecer uma ou outra parcialidade.”762

Estas ordens, embora de caráter tão incisivo, eram de toda forma inócuas, pois,

somente em dezembro as forças que se organizavam no Rio Grande do Sul estariam em

condições de marchar sobre o território Oriental. Repetia-se a imprevidência

manifestada na entrega do ultimatum, quando não estava organizado o exército que lhe

deveria dar suporte. Repetia-se a confusão que embalava consistentemente as iniciativas

e ordens do Estado imperial, em função da desestruturação militar e da desarticulação

dos mecanismos de implementação de políticas imperiais em relação ao Uruguai. 763

760 Idem, p. 290.761 JOURDAN, 1893, op. cit. nota 1, p. 3.762 BRASIL. Ofício do Ministério de Estrangeiros ao Barão de Tamandaré, de 21 de setembro de 1864. Apud. JOURDAN, 1893 (a), p. 38.763O Visconde de Rio Branco faz uma descrição que oferece pouca luz sobre os problemas gerados ao redor da ordem de invadir oterritório do Uruguai. É preciso notar que o eminente estadista tratava suas intervenções na obra de Schneider, como fórum para explicitar e explicar suas posições, após sua demissão como plenipotenciário, em março de 1865. Neste mister ele tende a transferir para o almirante Tamandaré, seu algoz, as responsabilidades pelos equívocos que se cometeram no Uruguai. PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 43-44.

201

Page 203: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Do ponto de vista da necessidade do gabinete liberal em apaziguar a opinião

pública e a oposição, sem falar nas boas graças do Imperador,764 - para a qual eram

dirigidos os desenvolvimentos platinos - o mês de setembro de 1864 trouxe novas

preocupações domésticas. Uma corrida bancária levou à bancarrota a casa Souto,

provocando um efeito dominó sobre outros estabelecimentos na praça do Rio de Janeiro.

“As ações depreciaram-se, furando a bolha de sabão do surto comercial e industrial

levantado sobre o crédito, manipulado este pelo Estado, por via de suas agências

emissoras.”.765 A utilização de crédito em substituição ao capital fora a causa do

desastre, crédito garantido pela lógica mais intrínseca da sociedade imperial, as ligações

de favor. Entre os acionistas sacrificados estavam nomes importantes do mundo político

e burocrático do Império, “[...] pessoas que lhe eram [à casa Souto] dedicadas pelo nobre

sentimento de gratidão [...]” que acreditavam que haveriam de, a despeito de “[...]

quaisquer que fossem os vícios de seu sistema, dado o momento de perigo [aquelas

ligações ] a salvariam do naufrágio.”.766

Aumentavam, portanto, de maneira dramática, as pressões sobre o gabinete

liberal, o que nos sugere que naquele momento, mais do que nunca, o governo precisava

de uma ação diversionista para desviar a atenção daqueles problemas agudos, mas, não

menos vital, deveria evitar uma guerra, em face das deploráveis condições financeiras

causadas pela aflitiva crise bancária. O caso contrário, ou seja, o aumento dos gastos do

Estado com a intervenção no Uruguai, e seus efeitos, poderiam resultar num,

aprofundamento da crise para os liberais. O momento era de se resolver problemas, não

aumentá-los; tanto que para auxiliar na superação da crise financeira, recorreram ao

auxílio de José Rodrigues Torres, visconde de Itaboraí.

O eminente líder conservador vinha sendo o incansável algoz de Mauá,767

profundamente dedicado à manutenção das tradicionais estruturas do Império,768

764 Que haverá de se esgotar, finalmente, na crise de 1868, em que apesar da maioria liberal na Câmara, Dom Pedro II alija os liberais e os substitui por um gabinete conservador.765 FAORO, op. cit., p. 493.766 BRASIL. Relatório sobre as causas principais e acidentais da crise do mês de setembro de 1864. Apud Idem, p. 494.767 CALDEIRA, op. cit., pp. 262-282, 305-ss.768 OLIVEIRA LIMA, 1989, pp. 66, 141.

202

Page 204: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

incluindo-se aí as financeiras, em franco desacordo com a lógica liberal dos juros baixos

e multiplicação das fontes de acumulação. O choque e a confusão experimentados pela

sociedade naquele momento poderiam, no entanto, desde que sem maiores

cometimentos do Tesouro, admitir a ampliação do escopo da ação pretendida no

Uruguai. As oportunidades oferecidas pela guerra patrocinada por Flores assim o

convidavam, o “[...] entusiasmo pela guerra era grande na capital do Império, e depois

de tantos anos de paz, e da questão inglesa, que ferira tão profundamente as nossas

suscetibilidades nacionais, todos se deixavam tocar dele.”. 769

Estas considerações sobre os novos acontecimentos domésticos do Império são

importantes em função da associação sugerida entre, de um lado a moderação dos

procedimentos de Saraiva com o gabinete de 15 de janeiro de 1864; de outro, se

enxergam convergências entre o proceder sanguíneo de Tamandaré, e as atitudes mais

incisivas do gabinete de 31 de agosto.770 Essas aproximações que parecem incidentais, na

verdade parecem obedecer à lógica mais intrínseca dos antagonismos do sistema

partidário imperial. Para além desta aproximação entre determinantes internas sobre os

desenvolvimentos no Prata, entre objetivos partidários transformados em políticas de

Estado, precisamos incluir as considerações sobre as iniciativas pessoais dos indivíduos

encarregados da aplicação daquelas políticas. Um complexo em que se expõe o quanto

as “idéias” de Estado podem esbarrar nas escolhas e atitudes pessoais dos sujeitos

históricos, resultando em “[...] comportamentos políticos julgados aberrantes do ponto

de vista da consciência racional.”771 Os atos da administração, assim como as pressões

de grupos, contudo, são...

“[...] fatores contingentes, únicos e originais do processo histórico respondem, na maior parte das vezes a motivações pessoais, circunstâncias e situações momentâneas que em alguns casos, muito pouco tem a ver com algum grande ‘plano governamental’ ou alguma ‘estratégia política’, que tivesse sido hipoteticamente debatida de forma exaustiva nos gabinetes ministeriais, no parlamento ou na

769 PEIXOTO. Apud, PARANHOS, nota 4. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 70-74.770 JOURDAN, 1893 (a), p. 43.771 WINOCK, M. As idéias políticas. In: RÉMOND, R. (org). Por uma História Política. 2ª ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 284.

203

Page 205: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

sociedade, para ser em seguida implementada segundo modernos requisitos de ‘ação racional-legal’, impessoal, do Estado.”772

Portanto, na maneira como foram aplicadas as ordens imperiais de 21 de

setembro de 1864, identificamos a inclusão deste “fator pessoal”, fenômeno que não

entendemos como necessariamente coincidentes com “razões de Estado”, conforme

tentamos demonstrar. Esta dicotomia permite um alargamento do fenômeno do corte

entre a aplicação de ações do Estado imperial, enraizadas nas necessidades da política

partidária. Um corte que acabou se aprofundando a partir da distância que separa a Corte

de seus funcionários no Prata. Agiam de maneira descompassada, separados. Tamandaré

manifestava a sua ânsia pela satisfação da desforra dos políticos do Partido Liberal, seu

patrono, frente aos seus opositores, além de marcar sua independência em relação aos

diplomatas. O próprio governo, por sua vez, tinha que se equilibrar - numa situação onde

era impossível o retorno ao ponto da não intervenção - entre a demonstração de força

para a oposição e as questões de Estado ligadas aos problemas platinos. Neste sentido,

especificamente, o governo do Império estava sob o olhar vigilante dos corpos

diplomáticos de Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro; vigilância à qual não

poderia meramente desconsiderar, sob pena de comprometer a figura do Imperador; este,

zeloso da integridade de sua condição de condutor de um Império revestido de

“civilização”.

O vice-almirante brasileiro havia recebido orientações de Saraiva para obstar o

tráfego fluvial à qualquer ação do governo oriental; o cumprimento daquelas ordens

culminou no incêndio do Villa del Salto. Contudo, dado o reconhecido zelo de

Tamandaré por suas prerrogativas de autoridade militar, frente a funcionários civis,

admitimos que não foi o estrito cumprimento das ordens do representante imperial

revestido de plenos poderes, que o levaram à sua fiel execução. A denúncia sobre sua

conduta é oferecida pelo futuro secretário do Almirante: “Confia-se a um general uma

força armada para um fim determinado e não para ele usar dela discricionariamente.”.773

Os exemplos de que suas ações tendem a extrapolar o limite das ordens do governo em

direção a objetivos pessoais, começam a aparecer em rápida sucessão. Segundo 772 ALMEIDA, op. cit., p.p. 45-46.773 JACEGUAY, op. cit., p. 140.

204

Page 206: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Jaceguai, de maneira algo maniqueísta, a motivação de todos os seus exageros, a par das

“[...] suas deficiências de educação e de cultura mental, com todos os erros políticos e

militares [...]”, estavam no patriotismo incrustado de prevenções contra os antigos

inimigos das campanhas platinas, que deixaram-no desconfiado e irritado.774

De fato, agindo após o recebimento das instruções do governo para que se

ocupassem as cidades portuárias, o vice-almirante decidiu-se a enviar uma nota ao corpo

diplomático de Montevidéu, em 11 de outubro de 1864. Solicitou que os seus

respectivos mercantes não transportassem material de guerra àquelas localidades, “[...]

mantendo assim a perfeita neutralidade [sem o que teria que] cumprir o penoso, mas

indeclinável dever de exercer sobre eles uma vigilância constante, e de apreender

aqueles contrabandos de guerra que forem encontrados a bordo.”.775

De qualquer maneira, a distribuição da circular de Tamandaré quanto ao direito

de visita aos navios das potências representadas em Montevidéu levantou contra o

Império a indignação dos representantes diplomáticos radicados na capital Oriental.776

Oficialmente o Império aplicava represálias no interesse de justamente evitar a guerra.

“Não havia, pois, beligerantes e não podíamos falar em deveres de neutros, em

contrabando de guerra e em direito de visita.”.777 Em 17 de outubro o representante

italiano em Montevidéu, Ulisses Barbolani, declarou ao governo Oriental que como não

houvera declaração de guerra, as forças navais dos países ali representados, presentes no

porto, não “[...] permitiriam semelhante violação de todo direito internacional [...]”, 778

pois sequer fora declarado um bloqueio naval.779 O ministro inglês, por sua vez,

salientou que, a partir da inexistência do estado de guerra, periclitavam infalivelmente as

pretensões brasileiras, principalmente no que dizia respeito ao direito de visita nos

navios mercantes. Aquela iniciativa serviria para inibir a ação do governo legal contra

774 Idem, p. 142.775 BRASIL. Circular de Tamandaré ao corpo diplomático de Montevidéu, de 11 de outubro de 1864. Apud, GOLIN, 2004, vol II, p. 293.776 SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 43.777 PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 43-44. Grifos do autor.778 Apud, GOLIN, 2004, vol II, p. 295.779 PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 43.

205

Page 207: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

uma ameaça à ordem e legalidade da República Oriental. Para o governo inglês, Flores

era um mero rebelde.780

Enquanto Tamandaré expedia sua nota ao meio diplomático estabelecido em

Montevidéu, no dia seguinte deu-se a penetração de uma brigada do exército brasileiro

contra a Villa de Melo, capital do departamento de Cerro Largo, em busca de

autoridades orientais acusadas de violências contra brasileiros. Sem que encontrassem os

autores das agressões, em seis dias aquela força retirou-se do território Oriental,

reunindo-se ao restante do exército, em Piraí Grande, próximo à Bagé. O movimento

brasileiro de certo desdenhava da nota paraguaia de 30 de agosto, assim como da sua

reiteração da quatro de setembro. Neste sentido, o vice-almirante Tamandaré também

alargava seus passos, expandindo ainda mais o alcance que tinham as instruções

imperiais de 21 de setembro, e reuniu-se com o general Flores para formalizar um

convênio com o chefe rebelde.781 De fato, em 20 de outubro de 1864 o barão de

Tamandaré estava na barra do rio Santa Lúcia, onde recebeu uma nota de Flores, na qual

declarava considerar necessário aliar os interesses seus com os do Império. Aquele

acerto serviria para solucionar as questões internas da República, e seria conveniente

para o atendimento dos reclamos imperiais, que ele passava a garantir.782 Tamandaré,

sem que o governo brasileiro tivesse reconhecido o general colorado como um

beligerante, guardando meramente, portanto, o caráter de líder de uma rebelião,

respondeu-lhe de bordo da corveta Recife:

“Fazendo a devida justiça à nobreza dos sentimentos de V. Exa. e à maneira honrosa com que se mostra disposto a reparar estes males e ofensas, devo declarar a V. Exa. que terei a maior satisfação em cooperar com V. Exa. para o importante fim de restabelecer a paz da República e de reatar as amigáveis relações d’ela com o Império [...]”

780 Resposta do corpo diplomático à circular de Tamandaré. Apud, idem, pp. 293-294.781 Doratioto acredita que o militar brasileiro, no caso do convênio, cumpria ordens do governo, de 7 de setembro. Como vimos, as instruções desta data foram de Saraiva, depois chanceladas pelo governo nas instruções de 21 de setembro, onde não encontramos ordens no sentido de estabelecer-se negociações com o líder rebelde; DORATIOTO, op. cit., p. 63. Jourdan também confere o caráter de cumprimento de ordens superiores à exigência de neutralidade que Tamandaré dirigiu às legações estrangeiras. 1893 (a) p. 42.782 Ofício de Flores ao barão de Tamandaré, de 20 de outubro de 1864. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 37, pp. 32-33.

206

Page 208: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

[...] a divisão do exército imperial que penetra no Estado Oriental, com o concurso da Esquadra [...] se apoderará do Salto e Paysandu, e imediatamente subordinará estas povoações à jurisdição de V. Exa. [...] e só conservará aí a força que V. Exa. requisitar para garanti-las[...]Não duvidarei também operar com o apoio das forças dependentes de V. Exa. [...]”.783

Após firmar aquele acordo ilegal, em 26 de outubro, em função da resistência do

corpo diplomático, Tamandaré declarou bloqueados os portos de Paisandu e Salto, para

que seus pleitos se conformassem aos acordos internacionais, e aplacasse da resistência

do corpo diplomático de Montevidéu. O comandante-em-chefe das forças navais do

Império no Prata sentia-se “[...] violentado pelo corpo diplomático, que exigia aquela

proclamação formal para cumprir o [que julgava ser o] seu dever.”.784 Novamente a

reação do corpo diplomático estabelecido na capital uruguaia foi francamente de repulsa

à atitude brasileira. Reclamaram os representantes estrangeiros quanto aos aspectos

formais da declaração - do ponto de vista do direito internacional - quanto à própria

substância das exigências brasileiras785 e a maneira com que eram perseguidas. Talvez o

que não fosse tão claro aos diplomatas fosse a percepção sobre a infeliz conjugação da

natureza da iniciativa do governo brasileiro, que possuía seus limites intrínsecos, e sua

aplicação abandonada à vontade de Tamandaré. Uma manifestação material da confusão

causada pela postura que adotara o vice-almirante, de arrogar-se a condição de

plenipotenciário,786 está no fato de que as instruções aos comandantes dos navios

encarregados da aplicação do bloqueio, só foram expedidas, por ele, em 28 de

outubro,787 dois dias após a publicidade da própria declaração.

De fato aqueles eram os limites intrínsecos do movimento do governo brasileiro,

cuja racionalidade eminentemente doméstica que gerara a fracassada Missão Saraiva, se

transformava agora, pela própria falta de planejamento, em intervenção de fato. O

governo de Sua Majestade, que por obra de seus agentes se punha a favor dos rebeldes

colorados, testemunhava o esgotamento do seu projeto de afirmação doméstica, na justa

783 Ofício de Tamandaré a Flores, de 20 de outubro de 1864. Idem, pp. 33-34.784 GOLIN, 2004, vol II, p. 296.785 Idem, pp. 296-300.786 Jaceguai refere-se ao Império Romano chamando-o “pró-cônsul”. Op. cit., p. 141.787 Ibidem, pp. 300-301.

207

Page 209: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

medida em que se confrontava com os demais interesses internacionais que povoavam a

cosmopolita Montevidéu. A incompatibilidade entre a sua lógica geradora e as

necessidades de compartilhamento dos espaços platinos com as demais potências, assim

como na insuficiência dos seus meios de concretização “[...] preveniu contra nós o corpo

diplomático estrangeiro, porque as nossas declarações oficiais estavam em contradição

com os nossos atos.”.788 A posição imperial precisava de uma profunda reestruturação.

De sua parte, López esperava pela ação brasileira; escrevendo para Resquín, um

dos seus generais, em 28 de outubro, indicava ter sabido de boatos sobre o agrupamento

de forças do Império na fronteira com o Mato-Grosso. “[...] ‘Oxalá assim seja’[...]”.789 O

ministro americano em Assunção diz que López desejava o confronto com o Brasil.

“Solano López preparava-se para guerrear [...]”790 com o Império, enquanto o governo

brasileiro desmanchava suas ilusões quanto a fazer uma fácil intervenção contra os

blancos. O Estado imperial reconhecia a fragilidade da sua posição e admitia que no

“[...] estado a que tinham chegado as cousas, não havia outro procedimento a seguir senão reconhecer desde logo o general Flores como beligerante e confessar francamente a aliança, que de fato já existia, e o estado de guerra com o governo de Montevidéu, que não se podia mais dissimular.”791

Neste sentido, o gabinete liberal presidido por Ferraz recorre, novamente, a um

eminente estadista conservador, José Maria da Silva Paranhos, dotando-o “[...] com

plenos poderes para negociar e celebrar quaisquer ajustes concernentes ao estado de

guerra, em que o Brasil se achava com o governo de Montevidéu.”.792 A moderação de

Paranhos, que marcara sua atuação durante a década de 1850, nas exaustivas

negociações com os orientais, dera lugar, por sua vez, a um endurecimento que

recomendava inflexibilidade diante “[...] das bravatas de Montevidéu e Assunção.”.793

Os gabinetes liberais que se sucediam, trazendo o Estado imperial a reboque, acordaram

788 PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 43-44.789 Apud, DORATIOTO, op. cit., p. 64.790 DORATIOTO, op. cit., p. 64.791 Idem, idem.792 JOURDAN, 1893 (a), p. 46.793 PARANHOS. Carta a J. Marmol, de 22 de setembro de 1864. Apud, DORATIOTO, op. cit. p. 71.

208

Page 210: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

do sonho das glórias partidárias à custa das tropilhas gaúchas, para uma realidade que se

iria revelar ainda mais tenebrosa. Conquanto o governo devesse esperar que a nomeação

de Paranhos pudesse remediar a má condução das iniciativas em relação ao Uruguai,

suas esperanças logo resultariam baldadas.794

4.3 – Duas guerras, duas frentes e nenhum exército.

Um mês após a penetração das tropas brasileiras no departamento Oriental de

Cerro Largo, em doze de novembro de 1864, Solano López ordenou que o vapor de

guerra Tacuari subisse o rio Paraguai, a montante de Assunção, para interceptar e trazer

de volta a capital o vapor brasileiro Marques de Olinda. Por volta das nove horas da

manhã do dia treze, Sauvan Vianna de Lima já sabia do retorno do navio brasileiro ao

porto da capital guarani, mantido sob a guarda dos canhões do Tacuari. O representante

do Império, então, dirige-se a Berges pedindo explicações.795 À noite daquele dia,

Vianna de Lima recebe uma nota pós-datada do dia doze796 na qual se expressava o

governo paraguaio:

“É porém com profundo pezar que o governo do abaixo assinado vê, que longe de haver merecido a atenção do governo imperial, sua moderação, as declarações oficiais de 30 de agosto e a confirmação de 3 de setembro, responde a elas com atos agressivos e provocadores, ocupando com forças imperiais a villa de Mello [...] sem prévia declaração de guerra, ou outro qualquer ato público dos que prescreve o direito das gentes.Este ato violento, e a patente falta de consideração que esta República merece do governo imperial, chamaram a atenção do governo do abaixo assinado sobre suas ulteriores conseqüências, sobre a lealdade da política do governo imperial, e sobre o seu respeito à integridade territorial desta República, tão pouco segura já pelas contínuas e clandestinas usurpações de seus territórios [...]Em conseqüência de provocação tão direta devo declarar a V. Exa. que ficam rotas as relações entre este governo e o de S. M. o Imperador, impedida a navegação das águas da República para a bandeira de

794 JOURDAN, 1893, p. 55.795 BRASIL. Nota da legação imperial ao ministro José Berges, de 13 de novembro de 1864. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 55, pp. 83-84.796 BRASIL. Nota da legação imperial ao ministro dos Negócios Exteriores José Berges, de 14 de novembro de 1864. Idem, nº 56, p. 84.

209

Page 211: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

guerra e mercante do Império do Brasil, sob qualquer pretexto ou denominação que seja [...]”797

O Paraguai escolheu para o ataque um momento em que o inimigo lhe parecia

“[...] pouco disposto a medir-se em uma longa guerra [...]”, estando ele próprio

preparado.798 O documento paraguaio como se vê, ainda que obviamente mencione a

crise instalada na a crise instalada na República Oriental, transfere o seu foco para os

problemas de fronteira que o Paraguai tinha com o Brasil em relação aos territórios ao

sul da província do Mato-Grosso. Acreditamos que esta seja a explicitação das

motivações primárias de Solano López em relação a um enfrentamento com o Brasil. E

estes motivos o afastavam dos argumentos enumerados pelo governo guarani, na nota de

30 de agosto. “Todo o seu procedimento indicava estar-se preparando para a guerra. O

ponto de mira era Mato-Grosso, província do Brasil [...]”.799 É aparente neste sentido,

que a intervenção brasileira no Uruguai serviu como pretexto para a aplicação dos seus

reais interesses. O encaminhamento da crise por López, esclarece que desde o início da

intervenção paraguaia, seu discurso foi marcado por sofismas que escondiam suas reais

intenções. Este esforço é evidente mesmo na correspondência trocada com seus generais,

a Resquín, disse que não entendia como o “Marques” navegava para o Mato-Grosso,

“[...] ‘depois que o Brasil nos declarou guerra’ [...]” ao penetrar no Uruguai após a nota

de 30 de agosto.800 O ministro paraguaio em Londres e Paris comunicou o estado de

guerra entre o Império e o Paraguai, devido a “[...] ‘hostilidades iniciadas pelo Brasil

sem prévia declaração de Guerra’, dando a entender, em evidente falsificação, que

houvera um ataque brasileiro a alvo paraguaio.”.801

797 PARAGUAI. Nota do governo paraguaio à legação imperial em Assunção, de 12 de novembro de 1864. Ibidem, nº 54, pp. 82-83. Esta nota, embora datada de 12 de novembro, conforme dissemos foi entregue a Vianna de Lima no final do dia 13 de novembro de 1864.798 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 163.799 VERSEN, Max Von. História da Guerra do Paraguai. Trad. Manuel Tomás Alves Nogueira; apres. Mário Guimarães Terri. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976, p. 54. Considere-se que Paranhos, a partir da documentação apreendida após a guerra, acreditava que os preparativos de López não visavam o Brasil, no máximo algum movimento sobre Corrientes. PARANHOS, nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 89.800 LÓPEZ. Carta de López de 15 de novembro de 1864. Apud, DORATIOTO, op. cit., p. 66.801 PARAGUAI. Nota de Candido Bareiro a Russel, de 1º de fevereiro de 1865. Idem, idem.

210

Page 212: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

A rigor, as posições de López, ainda que escoradas em objetivo bastante

específico – veja-se que o governo guarani impedia mesmo a passagem de cavalhadas

para o Mato-Grosso802 - estavam de acordo com as idéias que europeus e americanos

dividiam em relação ao Brasil.803 Conforme o Barão de Penedo registrara em carta a um

amigo, o governo inglês dividia o interesse das potências marítimas européias pela paz

no Prata, no que não acreditavam de parte do Brasil, cujas posições acreditavam

requerer atenção devido à origem diversa dos Estados.804 A despeito do “imperialismo”

brasileiro, a iniciativa paraguaia escorada na sua força militar desproporcional,805

considerando a neutralidade argentina, beneficiava-se do virtual isolamento geográfico,

paraguaio e mato-grossense. O cálculo de Solano López foi utilizar o pretexto uruguaio

para conquistar o território disputado com os brasileiros, de maneira a poder negociar

com vantagem.806

Por sua vez, na República Oriental continuavam os desenvolvimentos da luta

civil, com a facção rebelde agora auxiliada pelas forças navais do Império. A primeira

manifestação prática da aliança bastarda foi o cerco do porto de Salto, que acabou se

rendendo sem resistir, em 20 de novembro de 1864. Por seu turno, ainda na primeira

semana de dezembro, o governo Aguirre mantinha-se firme no encaminhamento da

crise, obstinando-se em confiar que o Paraguai interviria a seu favor, invadindo o Rio

Grande do Sul, conforme prometido.807 As possibilidades de sucesso das pretensões

orientais, sem que o soubessem, já estavam esgotadas. Se houvera assistência brasileira

na rendição do Salto, em Paisandu, de fato, se derramou o primeiro sangue brasileiro.

802 MELLO, op. cit. p. 126. Considere-se que o cavalo é uma arma importante, quer seja para conferir o ímpeto característico das tropas de cavalaria como, também, conferir mobilidade à artilharia, por exemplo.803 OLIVEIRA LIMA, 1989, pp. 164-165.804 PENEDO. Carta de 5 de novembro de 1859. Apud, idem, p. 160. 805 REBER, op. cit., pp. 307, 309; DORATIOTO, op. cit., p. 66. Um Exército com 38.611 homens, em relação à população total de 285.715 a 318.114 almas. “A história militar considera como arregimentação absoluta 10%. Porém, toda a sociedade que conheceu este coeficiente, com o passar do tempo, entrou em caóticas crises estruturais.” GOLIN, Tau. [Luiz Carlos Golin] A Guerra Guaranítica: como os exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul (1750-1761). Passo Fundo: EDIUPF, Porto Alegre: Editora da Universidade - UFRGS, 1998, p. 574.806 THORNTON. Carta a Russel, de 9 de dezembro de 1864. Apud, DORATIOTO, op. cit., p. 79.807 Carta do ministro das relações exteriores oriental, Antonio de las Carreras, a Justo José Urquiza, de 7 de dezembro de 1864. Apud idem, p. 74.

211

Page 213: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“Combatíamos, assim, ao lado do chefe da revolução sem que o tivéssemos reconhecido

solenemente como beligerante [...]”.808

Tamandaré, consistentemente opondo-se à ação dos diplomatas, que agrediam

“[...] o seu amor próprio como uma restrição à confiança que exigia de parte do governo

[e que] não admitia restrição alguma em tudo de que era depositário.”,809 foi informado

da designação do novo ministro plenipotenciário. Como maneira de adiantar-se à

intervenção do eminente estadista conservador, Tamandaré procurou apressar o passo

das operações militares, e precipitou-se com Flores à assaltar o porto de Paisandu.810

Suas preocupações - equivocadas - com a presença de Paranhos, estavam na

possibilidade de solução incruenta das questões com o governo Oriental. Buscou,

portanto, que o novo enviado extraordinário encontrasse já instaurada uma aliança entre

Flores e o Império, assim como uma guerra de fato.811

O governo do Império, fragilizado em função dos parâmetros domésticos que o

guiavam na crise, declinava da responsabilidade em estabelecer os planos gerais das suas

ações, suas definições estratégicas, deixando-as nas mãos do vice-almirante.

Aproveitando a fragilidade dos gabinetes, o comportamento arrogante de Tamandaré

permitiu-lhe constituir-se em “[...] árbitro das ralações do Império [...]” com o Prata. O

Convênio do Santa Lúcia, as hostilidades contra o governo legal do Uruguai, o desafio

ao “[...] casus belli intimado por López [...]” são exemplos disto. Segue neste sentido o

ataque a Paisandu, empenhando a vida dos seus marinheiros contra a melhor tropa de

linha do governo Oriental em apoio ao “[...] bando de rebeldes do general Venâncio

Flores [...]”, além de receber munições da Argentina. É possível, contudo, “[...] ‘que

Tamandaré acreditasse estar se conformando ao pensamento do Imperador, para quem

em 1864 parecia ter chegado, como para López, a hora da guerra.’”.812

808 PARANHOS, nota 2. . In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 71.809 JACEGUAI, op. cit., p. 55.810 SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 48; JACEGUAI, p. 55. 811 PEIXOTO. Apud, PARANHOS, nota 4. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 47-48.812 NABUCO, Apud, JACEGUAI, op. cit.p p. 141; 59, 140.

212

Page 214: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Seja como for, carente de tropas, armas e munições, o ataque contra a cidade

portuária realizado em 6 de dezembro de 1864, foi repelido pelos defensores, tendo

Tamandaré e Flores que aguardar a chegada do exército brasileiro que se formara na

fronteira gaúcha.813 Comandado por João Propício Menna Barreto,814 aquele contingente

brasileiro pudera, enfim, iniciar a marcha pelo território uruguaio no dia 1º de dezembro.

A rigor, iniciava aquele movimento quatro meses após a entrega do ultimato cujos

efeitos deveria garantir, conforme o plano da missão Saraiva... idealizada em março,

nove meses antes. Por fim, reforçado pelas tropas brasileiras e um corpo de voluntários

gaúchos, liderados pelo general Neto, a aliança espúria consumou a tomada de Paisandu,

em 2 de janeiro de 1865.

Paranhos apresentou-se em Buenos Aires em dois de dezembro de 1864, quando

procurou atrair o governo da Argentina para apoiar militarmente o Brasil,815 coisa a que

Mitre se negou em função das resistências internas que qualquer apoio ao Império

levantariam, em que pese ele próprio simpatizasse com o Brasil. Para ele, “[...] se a

escravidão era um mal que existia na monarquia, nada se provava contra as instituições

brasileiras. Estas, [...] ‘no liberalismo deixam muito atrás a muitas de nossas

Repúblicas’, que não sofriam nenhuma ameaça ou perigo pela existência do Império.”.816

Contudo, em 13 e 14 de dezembro de 1864, o governo de Montevidéu, motivado pelas

reiteradas seguranças de socorro paraguaio,817 assinou decretos que anulavam os

Tratados de 12 de outubro de 1851, e de 15 de maio de 1852, entre o Uruguai e o

Império.818 No dia 18, promoveu um auto-de-fé, “[...] oferecendo à civilização moderna

esse repugnante espetáculo da queima dos autógrafos dos tratados subsistentes entre o

Império e a República.”.819 A manifestação foi alimentada por insultos à bandeira

813 Veja-se a parte oficial de Tamandaré sobre o assalto em SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 38, pp. 34-41. 814 Comando designado, finalmente, em 22 de setembro de 1864, seis meses após a formação da Missão Saraiva.815 Apesar de Oliveira Lima acreditar que as “[...] hostilidades locais não podiam ser de longa duração, dada a desigualdade das forças.” 1989, p. 162.816 Carta de Mitre a Vicuña Mackenna, 22 de fevereiro de 1865. Apud, DORATIOTO, op. cit., p. 72.817 BRASIL. Nota do plenipotenciário brasileiro ao governo argentino de 19 de janeiro de 1865. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 39, p. 43.818 GOLIN, 2004, vol II, p. 302.819 Cf. nota 792.

213

Page 215: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

imperial. “Não refletiam os homens da situação, que deste modo também o Brasil ficava

desembaraçado de todos os compromissos e obrigações para com o Estado Oriental.”.820

Antes que o ano de 1864 terminasse, contudo, se consumariam de forma cabal os

resultados do descaso que sempre a diplomacia imperial desenvolvera em relação ao

Paraguai. A pouca atenção devotada tradicionalmente ao Paraguai provou ter maior

vitalidade, do que os indícios de confronto que surgiram atrelados à disputa fronteiriça

no Mato-Grosso, conforme se registraram na década de 1850.821 De acordo com

Jaceguai, a pouca importância que se dava ao Paraguai está marcada pela baixa

qualidade dos seus diplomatas designados para Assunção. Às vésperas da conflagração,

por exemplo, Vianna de Lima declarou a Tamandaré que as forças guaranis eram

fantasmagóricas; realçou seu despreparo e pouco número, aduzindo que não se

requeriam mais do que 10 mil homens para vencê-los! Segundo o diplomata as tropas

eram em maioria recrutas e a falta de estrutura das forças se conjugava com oficiais

despreparados e sem brio. Era verdade que seus navios de guerra eram meras adaptações

de navios mercantes, à exceção do Tacuari, mas a falta de atividade de inteligência

preveniu que se conhecesse, por exemplo, a existência das surpreendentes chatas, que

haveriam de marcar tão profundamente os combates fluviais. De maneira geral a inércia

resultante permitiram que o Império se visse completamente desarmado frente ao

rival.822 Os argentinos copiavam o Brasil no menosprezo ao Paraguai. “A imprensa, esse

meio cem vezes mais destrutivo do que construtivo [...]”, atacava a “[...] talabarteria de

Assunção. Sale de la crysalida, no sale de la crysalida, salió de la crysalida era a

metáfora favorita com que a Tribuna de Buenos Aires qualificava a atitude de López no

conflito do Brasil com o governo blanco de Aguirre.”.823

Depois de conseguir deixar Assunção, graças à intervenção do ministro norte

americano, Washburn, Vianna de Lima dirigiu-se com um lamento à corte “[...] o

Governo Imperial está longe de esperar a triste notícia que lhe vou dar do ato de perfídia 820 SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 52.821 MELLO, op. cit., passim. DORATIOTO, op. cit., p. 36; CERVO & BUENO, op. cit., p. 93; JOURDAN, 1893 (b), pp. 10-15; PARANHOS, nota. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 88.822 JOURDAN, 1893 (b), p.27; DORATIOTO, op cit., p. 62; JACEGUAI, op. cit., p. 170. Para uma análise menos ácida veja-se MELLO, op. cit., pp. 91-112.823 JACEGUAI, op. cit., p. 171.

214

Page 216: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

e pirataria praticado pelo presidente López.”.824 Acreditamos que aquele se constituiu no

momento crucial da guerra que o Paraguai deliberara desencadear contra o Império,

considerando os termos da nota de 30 de agosto. Pudesse López mobilizar Urquiza para

uma corrida contra a retaguarda do exército de Menna Barreto, invadindo o Rio Grande

do Sul, o governo blanco estaria salvo e, ao mesmo tempo, o Império teria

irremediavelmente perdido sua única força militar organizada. Com a adesão de

Urquiza, o governo da Argentina estaria, também neutralizado, deixando López numa

situação de força inquestionável, considerando a condução de negociações visando à

definição da questão das fronteiras, ponto mais relevante, e sensível, nas relações entre

os dois países. López estava inteirado do estado de desestruturação das defesas

imperiais. As demoras e dificuldades da mobilização para invadir o Uruguai eram

expostas pelos informantes do governo paraguaio, que quantificavam as tropas e

estimavam não poder o Império mobilizar mais tropa capaz de enfrentar o Paraguai.825

Os modestos efetivos do Exército imperial, além dos pouco mais de cinco mil homens

de Menna Barreto, estavam dispersos pelas imensidões do território brasileiro.

A fortuna, contudo, sorriu para o Império, na medida em que Solano López

negligenciando seus próprios termos da nota de 30 de agosto de 1864, abandonou seus

aliados blancos de Montevidéu à própria sorte. O governo paraguaio optou pelo

movimento em direção ao norte, afastando-se do Prata:

“[...] a invasão do Mato-Grosso, já delineada, foi resolvida e preparada nos mínimos detalhes [...] Qualquer que fosse a hipótese de guerra, a invasão e conquista daquela província brasileira figurariam como constante obrigatória. Seria o primeiro, o preponderante e (quem sabe?) talvez o único objetivo da guerra [...]”826

Consumada a invasão do Mato-Grosso, a generosidade do destino em relação aos

interesses do Império ficou bem registrada pelo ministro de Estrangeiros, que admitia a

impotência imperial: “[...] façam os paraguaios o que quiserem, não podendo batê-los ao

824 BRASIL. Ofício de Vianna de Lima ao ministro de Estrangeiros, de 7 de dezembro de 1864. Apud, MELLO, op. cit., p. 135.825 Cf. carta sem assinatura a Berges, de Uruguaiana, 18 de dezembro de 1864; carta de José Brizuela para Berges, de Montevidéu, 30 de dezembro de 1864. Apud, DORATIOTO, op. cit., p. 71.826 MELLO, op. cit., p. 133.

215

Page 217: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

mesmo tempo que aos blancos do Estado Oriental, só havemos de tratar séria e

exclusivamente daqueles depois de desembaraçados do Uruguai.”.827 A incúria da

administração imperial em relação à distante e pobre província mato-grossense desceu

ao ponto de não ter alertado ao governo provincial sobre as intenções paraguaias em

relação ao Brasil. Das notas paraguaias de 30 de agosto e 3 de setembro informaram-lhe

o vice-almirante Tamandaré e Vianna de Lima,828 de maneira que não houve articulação

possível que evitassem a queda do forte de Coimbra e da cidade de Corumbá.

Se o Império não podia haver-se com a distância e inacessibilidade dos sertões

mato-grossenses, muito menos teria podido se confrontado militarmente com as hostes

paraguaias no Prata. Os primeiros reforços enviados da corte só chegaram ao Rio

Grande do Sul após a partida de Menna Barreto, ele próprio já quatro meses atrasado.

Mesmo com aquele exército já tendo, após a queda de Paisandu, estabelecido o sítio de

Montevidéu, os uruguaios foram capazes de lançar um ataque inusitado à fronteira do rio

Jaguarão, a respeito do qual o presidente da província do Rio Grande do Sul se

espantava:

“Não me persuadi que estando o exército brasileiro na campanha oriental, com forças um pouco numerosas de cavalaria e as forças coloradas, que pudesse uma força inimiga de 1500 homens atacar-nos impunemente em qualquer ponto das fronteiras. Defender as extensas fronteiras da província de invasões rápidas de forças um pouco avultadas é materialmente impossível.”829

A fragilidade da defesa territorial é a fragilidade geral do arcabouço coercitivo da

sociedade escravista. Ela se manifesta não só na defesa do território brasileiro como,

também, quando na ofensiva, conforme demonstra o impasse que se vai verificar diante

da sitiada capital Oriental.

Chegado ao Prata, Paranhos teve que realinhar o discurso do governo brasileiro

com as ações concretas dos agentes imperiais, considerando que Tamandaré já

827 Apud, PARANHOS, nota 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 134-135.828 MELLO, op. cit. p. 270; JOURDAN, 1893 (b), pp. 30-31.829 BRASIL. Ofício da presidência da província do Rio Grande do Sul a Paranhos, de 11 de fevereiro de 1865. Apud, GOLIN, 2004, vol II, p. 305.

216

Page 218: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

concretizara as estipulações que alinhavara com Flores em 20 de outubro. Portanto, o

primeiro passo foi reconhecer, em 19 de janeiro de 1865, junto ao governo argentino e

aos representantes diplomáticos em Buenos Aires, ao general rebelde como beligerante

legítimo. Seguiu-se o reconhecimento do estado de guerra que, de fato, instalara-se entre

os dois Estados.830 Contudo, entre o manifesto de guerra e o primeiro acordo oficial entre

o Império e Flores, o ministro italiano Barbolani serviu de mensageiro a uma nova

iniciativa de mediação argentina, à qual Aguirre declinou dizendo-se apto a sustentar a

defesa da capital sitiada, para o que “[...] contava com a ativa cooperação do Paraguai

em frente de Montevidéu.”.831 De sua parte, no dia 27, Paranhos divulgou o manifesto de

guerra ao governo do Paraguai, para os portenhos e mais legações da cidade de Buenos

Aires:

“O governo da República do Paraguai, surpreendendo a boa fé e moderação do Brasil, declarou-lhe guerra, em aliança com o governo de Montevidéu, e já levou suas armas à povoações quase indefesas da província de Mato-Grosso [...]O governo de Sua Majestade repelirá pela força o seu agressor, mas, ressalvando com a dignidade do Império os seus legítimos direitos, não confundirá a nação paraguaia com o governo que assim a expõe [...] e saberá manter-se como beligerante dentro dos limites que lhe marcam a sua própria civilização e os seus compromissos internacionais.”832

De Buenos Aires Paranhos parte para Fray Bentos, localidade uruguaia, para se

entrevistar com Flores em 28 de janeiro, e fazê-lo assumir a dignidade de autoridade

suprema da República, capaz de contrair compromissos internacionais833 – princípio

previamente negligenciado por Tamandaré. No documento que resultou deste encontro,

o enviado especial e ministro plenipotenciário do Império conseguiu do general uruguaio

o compromisso de atendimento às reclamações brasileiras que motivaram o ultimatum.

Às autoridades diplomáticas brasileiras deveria caber, contudo, a responsabilidade pelo

fornecimento das provas contra os agressores de brasileiros, para que fossem punidos

pelas leis da República. Todos os tratados, inclusive os incinerados em praça pública 830 BRASIL. Nota ao governo argentino e circular ao corpo diplomático, de 19 de janeiro de 1865. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 39, pp. 43-48.831 Carta do ministro inglês Lettsom ao governo britânico, de 26 de janeiro de 1865. Apud, PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 67.832 Brasil. Nota do plenipotenciário imperial ao governo argentino e corpo diplomático residente em Buenos Aires, de 27 de janeiro de 1865. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 59, pp. 89-92.833 JOURDAN, 1893 (a), p. 70.

217

Page 219: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

seriam restabelecidos, enquanto o líder colorado, em nome da nação Oriental

comprometia-se em apoiar o Brasil contra o Paraguai, “[...] considerando como um

empenho sagrado a sua aliança com o Brasil na guerra deslealmente declarada pelo

governo do Paraguai, cuja ingerência nas questões internas da República do Oriental é

uma pretensão ousada e injustificável.”.834

Embora estivesse o governo blanco sitiado nos limites de sua capital, a situação

militar ainda assim expunha o governo brasileiro a embaraços, além do caso do assalto à

fronteira do Jaguarão. Dos pouco mais de oito mil homens reunidos ali, após haver

recebidos reforços ao contingente inicial, não existiam infantes em número suficiente

para tentar o assalto a Montevidéu. Ademais, em grande parte o “exército” era formado

por membros de corpos policiais de algumas províncias brasileiras, além dos voluntários

gaúchos. A realidade teimava em não se conformar aos objetivos políticos dos liberais

no governo imperial, a derrota militar daquela praça, uma derrota cabal e consagradora,

capaz de alimentar a pacificação da opinião pública não estava, ainda ao alcance.835

Contudo, outros problemas, surgiram devido ao início do Bloqueio naval de

Montevidéu, temperado pelo mau ânimo entre Tamandaré e Paranhos.

O início do bloqueio foi estabelecido para 2 de fevereiro de 1865. No dia 29 de

janeiro, contudo, o corpo diplomático de Montevidéu, representado sempre pelo ministro

italiano Barbolani,836 solicitou a Paranhos um adiamento das hostilidades, o que

permitiria que expirasse o mandato de Aguirre e um novo presidente poderia conduzir

negociações de paz. Paranhos responde negativamente, entendendo que a trégua poderia

ser utilizada para reforçar as defesas da cidade, além do que, a eleição assim conduzida

seria inconstitucional, pois os mandatos parlamentares já haviam expirado e não havia

como se organizar eleições.837 Paradoxalmente, uma vez que os plenos poderes haviam

834 URUGUAI. Nota de Flores ao plenipotenciário imperial de 28 de janeiro de 1865. In: SCHNEIDER, op cit., vol I. Apêndice, nº 42 pp. 61-62.835 JOURDAN, 1893 (a), p. 76.836 GOLIN, 2004. vol II, pp. 306-307. No mesmo dia 29 Barbolani entregara uma cópia do pedido a Paranhos, para Tamandaré. Golin defende que o ministro italiano, identificava “[...] a existência de duas ‘esferas’ de representação de poder imperial no Prata [...]” Evidentemente não se pode confundir a influência oficiosa de Tamandaré, admitindo existirem duas esferas de poder, com o plenipotenciário imperial. Paranhos era o representante imperial dotado de plenos poderes.837 SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 63.

218

Page 220: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

sido conferidos a Paranhos, mas consoante com suas posições sempre contrárias às

deliberações dos diplomatas, Tamandaré deliberou, sozinho, conceder o adiamento

solicitado, no dia em que se deveriam ferir as hostilidades.

Como dado consumado, e para preservar o Império daquela demonstração de

falta de coesão, Paranhos resignou-se com a trégua que vigorou até o dia 15 de fevereiro,

quando o presidente do senado Oriental, Tomaz Villalba, assumiu como novo

presidente. Por sua vez, Villalba utilizou mais uma vez a intermediação de Barbolani

para propor a abertura da cidade aos sitiantes, desde que reconhecido como governante

legal. Paranhos admitiu aproveitar a possibilidade de resolver o impasse militar e

político pela via da negociação, desde que Flores dele tomasse parte, sendo nele

justamente que o Império reconhecia o representante da soberania oriental.838

Condicionou, portanto as negociações à presença daquele aliado do Império. Contudo, o

ministro brasileiro não poderia admitir que partissem de Montevidéu os termos de um

acordo, sendo Flores o poder Oriental reconhecido, e estando eles diante da capital

justamente na condição de vencedores.839 Não obstante, assentiram as partes em

conversações, visto que para o Brasil persistia a situação da guerra com o Paraguai e,

nos últimos dias parecia piorar grandemente a posição brasileira. Portanto, urgia a

solução o mais rápida possível do impasse diante de Montevidéu.

No tocante à guerra com o Paraguai, em seis de fevereiro Paranhos havia avisado

Canabarro, responsável pela defesa da fronteira noroeste do Rio Grande do Sul, de que

Solano López havia pedido ao governo Argentino o direito de passagem pelo território

corrientino, de tropas destinadas à invasão do Rio Grande do Sul.840 A resposta de

Canabarro, em 13 de fevereiro, por sua vez anunciou que até doze mil paraguaios se

concentravam em Aguapehy, sobre a região de Missiones, também na Argentina, para

investirem sobre a fronteira gaúcha do rio Uruguai. Canabarro escancarou o estado de

despreparo das defesas, confessando que achava menos perigoso para o Império que os

paraguaios invadissem a fronteira gaúcha, uma vez que permitir aos paraguaios a

838 PARANHOS, Nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 65-66.839 PEIXOTO. Apud, idem, idem.840 JOURDAN, 1893 (a), p. 72.

219

Page 221: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

passagem “[...] ao Estado Oriental [...] com o número de 9 e mesmo 12.000, seria

antecipadamente capitular e entregar as armas.”.841 Passando pelo Rio Grande, não

estariam os guaranis “[...] isentos da derrota infalível, se esta divisão [a que Canabarro

comandava] for reforçada convenientemente e a tempo [...] Eu espero que V. Exa. faça

sentir a necessidade de colocar esta divisão no pé de guerra conveniente.” O comandante

gaúcho, entendia que a agressão estava à porta, e pedia providências “a tempo”; os

paraguaios estavam chegando e o Brasil não tinha tropas de infantaria suficientes sequer

para tentar um assalto a Montevidéu, conforme testemunhara Menna Barreto a

Paranhos.842

Aqueles problemas em relação ao Paraguai, evidentemente recomendavam pressa

na obtenção de um acordo diante de Montevidéu, pois na própria cidade se

manifestavam problemas que exigiam celeridade. Villalba pertencia à facção do partido

blanco contrária à guerra, apoiada em grande parte por comerciantes e estrangeiros.843

Ora, ainda em fevereiro Aguirre recebera uma carta de López em que este o instava a

sustentar a defesa da praça até que se desse a chegada das suas tropas.844 A ação das

facções exaltadas, portanto, ameaçavam de tal forma a tênue iniciativa de paz, que

Villalba pediu o auxílio das guarnições dos navios estrangeiros presentes no porto, para

que desembarcassem em defesa dos partidários da paz. Assim, pressionado, Villaba

enviou para conferenciar com Flores, o experiente Herrera y Obes, de cujas tratativas

Paranhos manteve-se distante, quando diziam respeito às questões domésticas. Era

imperioso manifestar o compromisso com a independência Oriental, sobre a qual o

governo argentino mantinha um olhar cuidadoso. Sem instruções específicas do Rio de

Janeiro, ciente da sua condição de político conservador, e para poupar-se de críticas

posteriores, que poderiam advir se fosse creditado ao Brasil um papel secundário no

desfecho da guerra, contudo, não deixou de...

“[...] figurar no ato das concessões feitas aos vencidos, tratando, como tratei com o Sr. Villalba [...] mas por modo que nem aparecêssemos impondo a pessoa que deveria governar a República [...] nem

841 BRASIL. Ofício de Canabarro a Paranhos, de 13 de fevereiro de 1865. In: idem, nota 1, pp. 72-73.842 PARANHOS, nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 69.843 DORATIOTO, op. cit., p. 74.844 PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 67-68.

220

Page 222: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

sujeitássemos à aprovação do Sr. Villalba os compromissos que conosco contraíra o general Flores.”845

De qualquer maneira as negociações se encaminharam e, pelo dia 19 de

fevereiro estava pronta uma convenio de paz, a ser reconhecido no dia seguinte. No

acampamento do exército Libertador de Flores, contudo, naquela véspera de 20 de

fevereiro de 1865, Tamandaré levantou ainda uma amarga questão de jurisdição com

Paranhos, entendendo que não caberia a ele negociar as condições do convênio.846 O

vice-almirante, diante das demais autoridades brasileiras e aliadas ali reunidas, num

arroubo em prol dos entusiastas da tomada de Montevidéu pelas armas, declarou-se

como a autoridade competente para proceder às negociações. “[...] o visconde do Rio

Branco [Paranhos] depois de fazer algumas reflexões, mostrou-lhe os seus plenos

poderes, com o que deu-se por convencido o mesmo almirante, dizendo que já se não

queixava dele, mas sim do governo imperial.” Procurando, contudo, ser contundente

contra a impertinência do militar, demonstrada desde sua chegada ao Prata, Paranhos...

“[...] acrescentou: - ‘Se V. Exa. declara não estar pelo que eu fizer, entrego-lhe a negociação, porque neste caso a minha responsabilidade, ficará salva. Eu tenho a responsabilidade, não posso decliná-la, salvo se V. Exa. disser que não está pelo que eu fizer.’ O almirante declarou que não, e que, à vista dos plenos poderes, estava convencido de que ao Sr. Rio Branco competia dirigir a negociação.”847

A despeito das claras indisposições internas ao corpo de agentes imperiais

naquela hora decisiva, a solução diplomática de Paranhos, sobrepondo-se à opção

preconizada por Tamandaré, evitou despertar maiores ódios em relação ao Brasil, no

momento em que garantia contra López um aliado incondicional.848 De fato, em 20 de

fevereiro de 1865 estava terminada para o Império a Questão Oriental, restando o

Paraguai e o desafio que representava, que se mostrou descomunal, dada a fragilidade

das defesas militares do Império. Contudo, as determinantes da política partidária

845 Idem, idem, pp. 65-66.846 PARANHOS, nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 69.847 PEIXOTO. Apud, PARANHOS, nota 4. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 71.848 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 162.

221

Page 223: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

brasileira continuaram a manifestar-se na condução das questões de Estado, relacionadas

à política externa.

Na conclusão da Questão Oriental Paranhos obtivera a satisfação dos termos do

ultimato, do ultraje da bandeira imperial no dia 18 de dezembro e das tropelias

praticadas pelos chefes orientais no ataque à fronteira do Jaguarão. Encerrara o

envolvimento militar do Império no momento do surgimento de um assalto muito

superior em escala, ao mesmo tempo em que consolidava o flanco sul do Império,

estabelecendo ali o apoio uruguaio. Para tanto considerara figurar apenas como uma

espécie de fiscal entre Flores e Villaba.

“Esta opinião tem muito de razoável, e devo dizer francamente ao Senado que se eu soubesse que o ato de 20 de fevereiro teria de ser julgado somente pelo governo imperial e pelos homens que tem prática dos negócios internacionais, não duvidaria proceder assim.”849

Não foi julgado apenas por diplomatas, pior:

“Alguns dos mais exaltados adversários políticos do visconde [...] que viram com maus olhos a sua nomeação, e a glória que estava adquirindo, exploravam habilmente as paixões populares [...] declararam desonrosa a solução porque se não tinha tomado de assalto a praça, e o governo deixou-se arrastar por essas influências e por algumas cartas que recebera do teatro dos acontecimentos.”850

Admitindo como verdadeiro o testemunho de Jaceguai, que aponta Tamandaré

como “[...] o causador da demissão de Paranhos”,851 podemos entender o significado das

“[...] algumas cartas [...]” denunciadas pela citação acima. O caráter de resgate político

de que se revestira desde o início o encaminhamento da Questão Oriental, conforme

intentado pelos gabinetes liberais, permanecia mais evidente do que nunca.852 O

conservador Paranhos negara um triunfo liberal pelas ruas do Rio de Janeiro, capaz de

redimi-los das suas limitações nos espaços restritos da vida política brasileira. O

849 BRASIL. Discurso ao Senado do senador Paranhos. Apud, PARANHOS, nota 2. . In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 71.850 PEIXOTO. Apud, PARANHOS, nota 4. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 70-74.851 JACEGUAI, op. cit. p. 75.852 CERVO & BUENO, op. cit. p. 122.

222

Page 224: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

plenipotenciário imperial foi exonerado,853 portanto, e ao “[...] mesmo tempo um sem

número de artigos de origem oficial apareceu nos jornais, adulterando os fatos, tornando

até responsável o visconde [...] por atos que não eram seus, como, por exemplo, a não

efetividade do bloqueio de Montevidéu [...]”.854 Sobre este pormenor já pudemos

discorrer acima, indicando que o adiamento do bloqueio devera-se, na verdade a

Tamandaré. “Dom Pedro II, amigo e admirador de Tamandaré [...] deu o aval para a

desgraça de Paranhos.”.855

4.4 – De como se constrói um exército, mas não se supera uma cultura.

A condução das questões da política externa imperial não podia deixar de refletir

as motivações mais intrínsecas do mundo político-partidário do Brasil que, por sua vez,

enraizava-se no complexo social que compunha o Império. As questões internacionais

não podem deixar de estar permeadas pelas contradições daquela estrutura, assim como

pela sua carga simbólica e pelo mundo do imaginário da sociedade escravista.

Acreditamos que estes fenômenos de conexões complexas estão referidos aos processos

de conservação, de sobrevivência das parcialidades num contexto social, que implicava,

no que toca às elites imperiais, mais que compartilhamento, em competição, apontando a

vitalidade da política imperial. Portanto, Paranhos foi demitido por ter sido o Convênio

de 20 de fevereiro julgado deficiente856 pelo governo imperial, embora o governo tenha

aprovado e mantido todas as suas cláusulas.857

Do ponto de vista das estratégias do Partido Liberal para a guerra, o afastamento

de Paranhos significava a continuidade da orientação partidária. A falta de profundidade

da perspectiva imperial esbarrava, naquele momento, com as implicações do

envolvimento paraguaio. As elites brasileiras não davam crédito ao oponente, ainda que

não lhes escapasse o estado de fraqueza das forças militares brasileiras; perigos

amplificados pelas decisões tomadas a partir dos prismas domésticos tradicionais:

853 GOLIN, 2004, vol II, p. 314.854 PEIXOTO. Apud, PARANHOS, nota 4. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, pp. 70-74.855 DORATIOTO, op. cit. p. 78. Mais aspectos sobre os laços que poderiam unir o monarca ao almirante em JACEGUAI, op. cit. pp. 57-59, 69.856 BRASIL. Carta de João Pedro Dias Vieira, ministro de Estrangeiros, ao conselheiro Paranhos, de 7 de março de 1865. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº43 p. 69.857 JOURDAN, 1893 (a), p. 79.

223

Page 225: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“A meu ver a ação armada do Paraguai não se fará sentir, sendo isso na verdade o melindroso da situação, não porque o Paraguai valha muito, porém porque receio que a República Argentina se deixe ficar quieta não tendo, como creio que não tem compromisso formal com o Brasil para obrarem de acordo, e não vejo que o Brasil esteja preparado com elementos militares suficientes por terra para fazer operações rápidas e decisivas, único meio de evitar maiores complicações, pois enquanto arde semelhante fogueira ninguém sabe até onde as chamas se estenderão.”858

As conseqüências nefastas da guerra, como se depreende de Mauá, eram perceptíveis e

se prenunciavam muito ruins. Esta percepção permitiu mesmo a alguns setores das elites

políticas brasileiras, lamentarem a demissão de Paranhos, pois o encaminhamento dos

problemas no sul, conforme os resultados do Convênio de 20 de fevereiro, seriam o “[...]

‘prenúncio de um arranjo pacífico em toda extensão que tanto teria poupado ao Brasil e

ainda mais ao Paraguai’ pois a guerra poderia ter sido ‘talvez até evitada’.”.859 Talvez, a

partir disto se possa entender o comentário de Joaquim Nabuco sobre não ter nada

contribuído mais para a guerra contra o Paraguai do que as atitudes de Tamandaré.860

Para o ministro das relações exteriores da Argentina, Rufino de Elizalde, a

demissão de Paranhos significou um endurecimento das posições brasileiras, dado o

talento de negociador do antigo plenipotenciário, ameaçando até mesmo a aproximação

que o governo Mitre pretendia executar com a Corte.861 Ora, no momento da crise a

neutralidade era conveniente ao governo portenho, a guerra beneficiaria grandemente o

comércio argentino. Ele deveria colher o ouro imperial que seria necessariamente

despejado no rio da Prata, para o custeio da guerra, principalmente a compra das

provisões e animais de transporte862 que seriam enviados Paraná acima. Mas se a

neutralidade argentina lhe era útil, ela deveria ser um objetivo primário do Império; as

questões geográficas sozinhas obrigavam ao Império manter as boas graças do governo

argentino, por ser limítrofe com o país guarani, e possuir as duas margens do Paraná.

858 MAUÁ. Carta a Lamas, de 8 de janeiro de 1865. In: MAUÁ, op. cit., p. 170.859 BRASIL. Voto do visconde de Niterói na Seção de Negócios Estrangeiros do Conselho de Estado, de 25 de dezembro de 1873. Apud, DORATIOTO, op. cit. p. 78.860 Idem, idem.861Ibidem, p. 79..862 PARANHOS, nota 1. SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 149.

224

Page 226: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Sua neutralidade a transformaria em “[...] um aliado que duplicava o potencial de nossas

forças, mesmo que não pusesse um só regimento em linha de batalha.”.863

Se a experiência de Puntas del Rosario servira para criar uma aproximação entre

a Argentina, o Império e o Uruguai, conforme reconheceu Saraiva,864 não nos parece que

possa significar que um tratado propriamente já pudesse ter sido desenvolvido, unindo-

os contra o Paraguai. Evidentemente, excluída a tese do conluio capitalista contra o

Paraguai, tal inferição conduziria a se considerar que tal origem do Tratado da Tríplice

Aliança teria sido um exercício inaudito de clarividência: como, em julho de 1864, seria

possível prever a necessidade de alinhar os três países contra o Paraguai? Não havia,

portanto, até ali uma aliança865 ou esboço dela. A aliança entre Argentina e Brasil não

seria realizável apenas com a chegada do substituto de Paranhos, Francisco Otaviano da

Rosa em Buenos Aires, em 16 de abril; seria necessário para o Tratado, ainda, uma nova

intervenção lopista. Identificamos como uma demonstração da ausência até mesmo de

um pré-acordo entre os dois países, o ofício do general Manoel Luís Osório, comandante

em chefe do exército brasileiro, datada do dia seguinte à chegada de Otaviano:

“O nosso governo nada tem me dito sobre marchas em operações (sic), apesar de haver indicado [ele, Osório] a conveniência de marcharem para a barra do Quarai estas forças [para reforçar a defesa gaúcha contra os invasores paraguaios, já em território argentino]; enfim, virá espontaneamente a nossa aliança com os argentinos para esta guerra, porém, não me agrada que estejamos tão divididos [as forças no Rio Grande do Sul, e o exército diante de Montevidéu].”866

Por sua vez, a designação do novo plenipotenciário imperial deve ter

desapontado Tamandaré, assim como acontecera no caso de Paranhos. O novo enviado

especial “[...] teve mais dificuldades em captar-lhe a benevolência do que a dos

estadistas do Prata”.867 De início houve certa frieza entre o governo argentino e o novo

plenipotenciário, devido às estipulações brasileiras a respeito da independência e 863 JACEGUAI, op. cit., p. 184.864 DORATIOTO, op. cit., p. 56. 865 Idem, idem; JACEGUAI, op. cit. p. 180. Jourdan defende que os termos do Tratado de 1º de maio já estavam definidos quando da apresentação do substituto de Paranhos, Francisco Otaviano; JOURDAN, 1894, pp. 15, 25. 866 BRASIL. Carta de Osório a Canabarro, de 17 de abril de 1865. Apud, Jaceguai, op. cit., p. 180.867 JACEGUAI, op. cit., p. 55.

225

Page 227: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

integridade territorial paraguaia. Os portenhos alimentavam planos de anexação de

parcelas do território guarani “[...] mas [...] não queriam tomar a esse respeito

compromissos com o Brasil, porque [...]; as circunstâncias poderiam mudá-las [suas

vistas sobre o assunto] mais tarde.”.868 Contudo, como referimos acima a respeito da

nova intervenção de López que reuniria as condições para um tratado portenho-imperial,

sua hipertrofiada confiança na sua capacidade militar fez com que não titubeasse em

atacar a Argentina.869 A província argentina de Corrientes foi invadida por forças

guaranis, em 14 de abril de 1865. Desta forma, López ganhou para o Império os favores

que Mitre recusara a Paranhos,870 e que se iam negados a Otaviano. Os riscos que a

invasão lopista apresentava para a mera integridade política e territorial da Argentina,

contudo, aplainara os óbices à colaboração com o Império: “[...] e posso acreditar que

houve esta manhã inteligência quanto à celebração de uma aliança entre Mitre e o Sr.

Otaviano.”.871

Os efeitos da aplicação dos imperativos da política doméstica imperial, que se

manifestava nos critérios de escolha dos agentes do Estado, se fizeram sentir na simples

chegada de Otaviano, “[...] um advogado, ilustre é verdade, mas completamente neófito

em diplomacia.”.872 De qualquer maneira, dado o estado de desarmamento argentino873 e

sua impossibilidade de revidar à invasão de Corrientes, realizada pelas forças

paraguaias, o governo imperial melhor serviria aos seus próprios interesses, se tivesse

deixado a iniciativa de um tratado, com a Argentina. Contudo, “[...]foi o governo

Imperial, que fez ao argentino o oferecimento de suas forças [...]”.874 Da sua atuação

resultou o Tratado da Tríplice Aliança, de 1º de maio de 1865, um acordo que, enquanto

sedimentou a aliança entre a Argentina, o Brasil e o Uruguai contra o Paraguai, impôs ao

Império as responsabilidades maiores nos compromissos para a guerra contra o inimigo

868 THORNTON. Carta a Russel, de 24 de abril de 1865. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 66, pp.104-105.869 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 163.870 PARANHOS, nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p. 149.871 THORNTON. Carta a Russel, de 24 de abril de 1865. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 66, pp.104-105.872 JOURDAN, 1893 (a), p. 87.873 GOMILA, J. Alberto. In: MORENO, I.J.R. & DE MARCO, M.ª Patricios de Buenos Aires [on line]. Disponível na Internet via www. Edivern.com.ar/suplem.html. Arquivo capturado em 21 de maio de 2001.874 JOURDAN, 1893 (a), p. 25.

226

Page 228: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

comum. O Império cedeu empréstimos à Argentina e ao Uruguai, além de arcar com

“[...] todo o serviço de saúde; o transporte e a alimentação por muito tempo correram

quase exclusivamente por conta do Brasil.”875 Maiores sacrifícios ao Brasil só poderiam

significar na prática, para a oposição ao gabinete liberal, em maiores benefícios à

Argentina, pelo que, desde logo o Tratado passou a sofrer severas críticas no front

doméstico. Permanece por ser investigada a condução daquelas negociações, os fins e

objetivos que se conjugaram para a definição do Tratado de 1º de Maio de 1865, o

Tratado da Tríplice Aliança. Será preciso ter em conta a considerável autoridade e

influência de que estava revestido o vice-almirante barão de Tamandaré, diante de quem

o plenipotenciário Otaviano “[...] só pelos mais refinados processos de sua

extraordinária habilidade consegue manter a dignidade de sua posição[...]”.876 A rigor, o

Tratado da Tríplice Aliança “[...] fez depender os movimentos do exército da ação da

esquadra, restringindo assim prejudicialmente a eficácia da sua ação.”.877 Serve de índice

da importância do estudo dos papeis relativos desempenhados naquelas negociações, a

constatação de que, após a assinatura do Tratado o plenipotenciário imperial admitiu em

carta ao governo do Rio ter sido o acordo negociado por ele e por Tamandaré.878

Ainda que os efeitos do Tratado da Tríplice Aliança tenham sido claramente

favoráveis à Argentina,879 ainda que se considere que havia a necessidade de afastar

Urquiza de López,880 sua implementação exigiu um grande esforço do governo

argentino, frente à oposição interna. Resultou dramático o empenho de Bartholomé

Mitre em sustentar a aliança, quer fosse frente aos comandantes brasileiros, ou a

oposição doméstica que o acusavam de aliar-se ao Império “[...] contra irmãos de raça

[os guaranis]”.881 Em que pese o estipulado em 1º de maio, quando obtivera o encargo de

875 PARANHOS, notas 1 e 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I, p.156.876 JACEGUAI, op. cit., pp. 140-141.877 JOURDAN, 1893 (a), p. 87. Acrescenta o autor: “[...] e admitiu [...] cláusulas que ainda hoje [1892] constituem uma ameaça à integridade do território nacional.”. Veja-se CERVO & BUENO, op. cit., p. 124.878 JACEGUAI, op. cit., p. 141.879 Para considerações a respeito veja-se: DORATIOTO, op. cit., pp. 157-ss; JOURDAN, 1894, pp. 25-ss; SCHNEIDER, op. cit., vol. I, pp. 148-ss; BUENO & CERVO, op. cit., p. 127; OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 168; JACEGUAI, op. cit., pp. 170-171.880 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 110; BURTON, Richard F. Cartas dos campos de batalha do Paraguai. Trad. e notas José Lívio Dantas, 2ª reimpressão. Rio de Janeiro: Bibliex, 2001, p. 185.881 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 165.

227

Page 229: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

comandar em chefe os exércitos aliados (Art. 3º), Mitre detinha muito mais um título do

que uma função. Esbarrou a sua autoridade na má vontade que lhe votaram os generais

brasileiros Tamandaré e Porto Alegre, o que mais acentuou as qualidades de habilidade

política do presidente argentino para o sucesso da Aliança. O presidente portenho

manteve-se em acordo com os chefes brasileiros, e sua confusa estrutura de decisão.

Ainda que os caprichos dos comandantes imperiais muitas vezes conduzissem a

evidentes contra-sensos militares, resultando em dilações nas operações e ao

conseqüente e desnecessário prolongamento da guerra, Mitre insistiu na coesão da

aliança. Os testemunhos a favor de Mitre reconhecem que “[...] o preço desses

benefícios [auferidos com a continuidade da aliança com a Argentina] não se pode

estimar, devidamente, considerando todo o mal que nos poderia provir da infidelidade

daquele aliado [Mitre].”.882

Apesar dos problemas internos à Aliança, para López foi uma surpresa a rapidez

com que foi concluído o Tratado.883 Contudo, López beneficiou-se da inconsistência do

sistema de comando aliado, que se projetou sobre as operações de guerra,884 e do descaso

para com as “[...] forças materiais e morais de que o Paraguai poderia desenvolver

[...]”.885 A intenção aliada expressa no Tratado, fora a de conduzir uma guerra para

evictar o presidente paraguaio (Art. 6º), embora seus governos não estivessem

preparados “[...] para a ação impetuosa, rápida e decisiva que poderia assegurar-lhes a

comunicação estipulada, sem sacrifícios desproporcionados da parte delas e da parte do

mísero povo paraguaio.”.886

A extensão da guerra, resultante da soma de desajustes na formulação das

intenções do Tratado de 1º de maio, e o descompasso com os meios disponíveis para sua

execução por parte dos aliados, é o que por fim determinaria a longevidade da sangria

platina. Caxias, por exemplo, creditou aos termos do Tratado a continuação da guerra, e

dos seus sacrfícios, após os paraguaios terem evacuado Humaitá.887 Os excessos 882 JACEGUAI, op. cit. pp. 114-119.883 CERVO & BUENO, op. cit. p. 123.884 PARANHOS, nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol. I, pp. 154-155.885 JACEGUAI, op. cit. p. 171.886 Idem, p. 161.887 SALLES, 1990, nota 13, p. 122; JACEGUAI, op. cit., p. 160.

228

Page 230: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

estipulados pelo Tratado “[...] amesquinhava[m] os intuitos elevados da guerra [...]”;

Caxias, após a queda de Assunção condenou, com uma expressão feliz, a obstinação

odiosa da guerra contra a pessoa de López: “[...] ‘para mim a guerra está acabada, eu não

sou capitão-do-mato’ [...]”.888 Mas é inegável que ao final de tão longo ordálio,

envolvendo quatro nações, o Tratado se mostrou adequado para, desconsiderados os

processos, a obtenção dos objetivos propostos.889

Independentemente dos termos do Tratado, o Império estava desarmado,

considerando-se as necessidades que surgiram com a definição da estratégia para o

enfrentamento do Paraguai. Sua marinha não era adaptada para a guerra fluvial, nem

mesmo parcialmente, providência reclamada desde a desastrada missão Pedro Ferreira,

de 1855, na qual a fragata Amazonas encontrou-se bisonhamente encalhada antes de

chegar a Assunção.890 Seus navios eram grandes e calavam muito fundo na água,

impróprios para manobrar nos canais estreitos e sinuosos dos rios sempre expostos a

grandes variações no seu nível. Tampouco tinham proteção couraçada, sofisticação

requerida quando se enfrenta uma fortaleza fluvial, que expõe o navio a receber

canhonaços à queima roupa. Seu exército precisava ser inteiramente montado, até

mesmo o mero sistema de recrutamento.

A ação militar imediata contra o Paraguai deveria ser conduzida contra a invasão

do território brasileiro em Mato-Grosso, mas para isso o Império não pode articular mais

do que o descrito por Taunay na sua dramática “retirada”891. Para piorar a situação, em

10 de junho de 1865, conforme prenunciado desde fevereiro, uma coluna paraguaia

transpôs o rio Uruguai no passo de São Borja, e realizou a razia da costa daquele rio, até

a cidade de Uruguaiana. Os guaranis aproveitaram-se da inação dos diretores políticos

da guerra, que não guarneceram a fronteira a tempo com uma flotilha e um exército

888 JACEGUAI, op. cit., p. 161.889 SCHNEIDER, op. cit., vol. I, p. 150. O comentário remete a Jaceguai, considerando que a guerra dependeu mais dos predicados políticos dos participantes do que dos resultados dos combates; op. cit., p. 119.890 MELLO, op. cit., p. 99.891 TAUNAY, Alfredo d´Escragnole Taunay, Visconde de. A retirada da Laguna. 12a edição. Traduzida por Afonso de E. Taunay Rio de Janeiro.Melhoramentos 1936; Também: Em Matto Grosso invadido 1866-1867. São Paulo: Cia Melhoramentos, s.d..

229

Page 231: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

organizado e armado892. Concomitante à ação paraguaia, no Rio de Janeiro, a troca de

gabinete de maio de 1865 substituiu a facção histórica pela ala progressista do Partido

Liberal. Esta condição respingou diretamente no meio dos generais gaúchos, acentuando

antagonismos que a guerra não atenuava, como no caso de Canabarro e Porto Alegre893.

Este último seria designado comandante-em-chefe do exército em operações na

província do Rio Grande do Sul, constituindo-se em aliado importante a juntar-se a

Tamandaré. “O clima de inércia, insubordinação e anarquia em que se encontrava o Sul

levou dom Pedro II a decidir-se por ir à província meridional.”894 O ministro da Guerra e

da Marinha, Ferraz, presente à comitiva imperial que acampou diante de Uruguaiana,

fornece o testemunho eloqüente do estado das defesas militares brasileiras:

“O estado de penúria em que se acha o exército aqui acampado e a provável demora dos recursos de que posso dispor nesta província, atento ao mau estado das estradas, as enchentes dos rios, a falta ou incapacidade dos meios de transporte, obrigam-me a lançar mão do único meio que me resta nestas circunstâncias, em que vejo os hospitais em estado deplorável, a tropa nua e há cinco meses sem receber soldo, etc.; e vem a ser o de autorizar V. Exa. a fazer quaisquer operações de crédito, e remeter para este acampamento até a quantia de 500:000$, e tudo que for necessário para remediar estes males [...]”895

Finalmente, vítimas das próprias deficiências de planejamento e estrutura do seu

exército, sem suprimentos e sem comida, os remanescentes dos doze mil paraguaios

invasores sitiados em Uruguaiana, acabaram por render-se, em 18 de setembro, sem que

houvesse um assalto à cidade.

Ainda domesticamente, no campo político, as necessidades do recrutamento896

obrigaram o governo imperial a uma incursão fora das linhas que marcavam o pacto

entre ele e as esferas provinciais de poder. A falta de reservas humanas mobilizáveis o

fez inaugurar o sistema de alistamento dos Voluntários da Pátria. Esta modalidade de

serviço militar garantia ao voluntário vantagens pecuniárias, tempo de serviço a expirar 892 JOURDAN, 1894, p. 161. Veja-se no capítulo anterior a proposta do Cônsul Geral do Brasil em Montevidéu, de 1863, para que se guarnecesse aquela fronteira com quatro pequenos vapores de guerra.893 DORATIOTO, op. cit., pp. 178-179.894 Idem, p. 179.895 BRASIL. Ofício de Ângelo Muniz da Silva Ferraz a Francisco Otaviano de Almeida Rosa, de 12 de setembro de 1865. Apud, JOURDAN, 1894, pp. 125-126.896 Veja-se sobre o assunto SALLES, 1990. pp. 114-ss; IZECKSOHN, op. cit., passim.

230

Page 232: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ao fim da guerra e concessão de lotes de terras897. Estas promessas drenaram material

humano da estrutura tradicional de lealdades provinciais; principalmente aqueles que

dominavam a formação das tropas da Guarda Nacional. Em agosto de 1865, para melhor

preservar aquelas estruturais que sustentavam a Guarda Nacional, seus membros passam

a gozar dos benefícios garantidos aos Voluntários da Pátria. De qualquer maneira,

durante o surto de indignação patriótica que se seguiu aos ataques paraguaios, apesar do

elevado índice de resistência ao recrutamento, foi fácil reunir o número de soldados

pretendido898, e não faltou ao Império o material humano para seguir os corpos

paraguaios que se retiravam de Corrientes e promover a invasão do Paraguai, transpondo

o rio Paraná no Passo da Pátria899.

Para salientar o arcabouço que as elites políticas brasileiras procuravam

imprimir às forças coercitivas a disposição do Estado, julgamos oportuno salientar o

diagnóstico que justificava a sua cultura civilista: “Tornou-se então uma verdade

reconhecida que o Brasil não necessita de um exército permanente e numeroso para

manter sua integridade e seus direitos [...]”900. Contudo, o governo imperial haveria de

solucionar os problemas políticos criados pelas novas modalidades de recrutamento,

suspendendo o alistamento de voluntários901! Antes de terminar 1866 os efeitos das

baixas em campanha, quer por doenças quer por combate, começarão a ser um problema

que vai comprometer o andamento das operações. Mas, de uma maneira geral, os três

oficiais generais brasileiros, além de profundamente ligados ao partido liberal -

Osório902, Porto Alegre e Tamandaré, que se mantinha na “[...] direção política da guerra

[...]”903 - tiveram limitadas dificuldades com pessoal, salvo apenas aquelas de caráter

sanitário.

897 DORATIOTO, op. cit. p. 114. Também, IZECKSOHN, op. cit., p. 89.898 IZECKSOHN, op. cit., pp. 85-89.899 Para os números a este respeito SALLES, 1990. p. 118.900 BRASIL. Carta de transferência do cargo de presidente da província do Rio de Janeiro, de 10 de maio de 1865. Apud, idem, p. 88.901 JACEGUAI, op. cit., p. 172.902 Caxias recusara-se a servir sob um gabinete liberal, certo da exploração política que se seguiria à sua assunção como conservador, a exemplo do que ocorrera com Paranhos. GRAHAM, op. cit. pp. 119-120. JACEGUAI, op. cit. pp. 54, 175-176. Sobre a nomeação do obscuro Osório, como manifestação de articulações partidárias; idem, pp. 175-177.903 Idem, p. 53.

231

Page 233: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

De qualquer maneira, o exército brasileiro que será transposto para o território

guarani, cruzando o rio Paraná diante do ponto da costa paraguaia chamado de Passo da

Pátria, formou-se “tumultuariamente”904, a partir do núcleo formado pelas forças que

sitiavam Montevidéu, em 20 de fevereiro do 1865905. Dois meses depois, em 20 de abril,

Osório recebe ordens de se dirigir a Daiman e estabelecer seu acampamento ali,

primeiro passo no cumprimento da missão primordial dos aliados, conforme

estabelecido pelo Tratado: encetar a perseguição dos invasores em Corrientes. Sem

provisões e nem meios de mobilidade, e sem se aventurar a usar o Paraná para abastecer

aquelas forças, após a derrota do Riachuelo, o governo paraguaio ordenou-lhe a retirada,

o que ocorre sem que haja combates significativos. Enquanto durou aquela perseguição

pela província correntina, o Império esforçou-se para formar o exército que lhe faltava

para enfrentar o Paraguai.

Chegavam a Corrientes os contingentes de recrutas dos mais diversos pontos do

Império, iniciando o seu treinamento nos rudimentos do serviço militar, de manobras e

evoluções à prática de tiro. Osório, que substituíra Menna Barreto, haveria de tornar-se

“[...] o oficial brasileiro mais admirado pela tropa aliada.”906 Este general, contudo,

carecia dos dons de um administrador encarregado da inédita estrutura, tão avolumada

como o exército expedicionário que o Império montava. As mobilizações locais,

rudimentares e improvisadas que as campanhas platinas até então vinham exigindo, às

quais estava acostumado, lhe privaram de recursos de inteligência e cultura para a tarefa

tão expandida907. Osório entendia como desnecessárias as “formalidades banais” ligadas

à exterioridade da disciplina militar, uniformes, honras, precedências e comportamento

comedido nos gestos e fala; “[...] um general dessa escola não é o mais próprio para

formar o espírito militar em tropas novatas.”908 O destacado guerreiro gaúcho sofreu as

pressões da tarefa que reconhecia serem maiores que seus dotes; o que não era facilitado

904 Ibidem, p. 179.905 Ibidem, p. 175.906 DORATIOTO, op. cit. p. 208.907 JACEGUAI, op. cit., p. 177.908 Ibidem, 177. Jaceguai acrescenta o comentário de Caxias ao assumir o exército “[...] ‘O moral da tropa não é mau, porque o soldado brasileiro é dócil e resignado; mas há muita relaxação; sei que é preciso tolerar muita coisa à gauchada para trazê-la contente, mas o serviço se estava fazendo de modo muito apaisanado.’” Idem.

232

Page 234: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

pelas habilidades da oficialidade encarregada dos cargos de deputado do ajudante-

general e do seu quartel-mestre-general909. A tudo suportou contudo, até o dia da

travessia, ação que haveria de comandar pessoalmente, em 16 de abril de 1866.

“Foi longa a espera, não há negá-lo. Um ano inteiro tem-se gasto em prontificar a esquadra e o exército de operações [...] As forças sob o comando do marechal de campo Osório atingem ao número exatíssimo de 33.078 homens, não incluindo os 2 ou 3.000 chegados recentemente, ou que vão ainda subindo o Paraná. Na América do Sul somente o Império poderia reunir tão numeroso exército, e onde? A 300 léguas do oceano, nas condições de um bom exército europeu [...]”910

A demora a que muito criticava a imprensa dos países aliados devia-se

materialmente ao papel que fora imposto a Tamandaré pelo governo, ao encarregá-lo da

direção da guerra. O vice-almirante viu-se sobrecarregado pela sua falta de talento como

homem de Estado, mas também “[...] um outro motivo de ordem subjetiva, detinha-o em

Buenos Aires. Tamandaré não estava convencido da sinceridade da aliança argentina,

nem a julgava necessária.”911. Por conta disto a Esquadra, além da batalha do Riachuelo,

pouco fizera em apoio ao avanço do exército Paraná acima. A ausência dos navios

brasileiros permitiu maior largueza de atuação às forças paraguaias do que seria

permitido admitir pelo seu poder; ora, cabia aos chefes navais a responsabilidade em

montar ações ofensivas contra o Paraguai ao invés de evitar perder navios sob fogo

inimigo912. O comandante-em-chefe das forças navais do Império, por suspicaz quanto à

lealdade portenha, procurava evitar a destruição dos navios brasileiros, preparando-se

para as eventualidades que lhe pareciam inevitáveis de surgir entre os aliados913, como

uma reviravolta na situação doméstica da Argentina, em função da oposição à guerra.

Na verdade os atrasos todos, na só a condução das operações navais, eram

conseqüência da pouca importância que o Império ligava ao problema da guerra,

909 Idem, p. 179. Os cargos citados respondem pelos atuais chefes de Estado Maior e o Estado Maior, propriamente.910 CORREIO MERCANTIL, de 12 de abril de 1866. Apud, PARANHOS, nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol. I. pp. 273.911 JACEGUAI, op. cit. p. 65.912 DORATIOTO, op. cit., p. 192.913 JACEGUAI, op. cit. p. 120.

233

Page 235: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

enquanto fenômeno de Estado; função do lugar que ela ocupava no imaginário das elites

imperiais. Fugia-se dela e das oportunidades para a sua manifestação, exceto em

momentos extremos, como resposta a situações que, impostas de fora, provassem

arriscar, claramente, aspectos da própria estrutura fundadora da sociedade imperial. A

sociedade escravista acomodava-se em sua integridade, identidade; uma civilização. Um

modelo econômico e social, organizado cultural e politicamente, capaz de sustentar-se

externa e internamente914. Este modelo permitia fazer com que o ministro da Guerra e da

Marinha carecesse de um Estado Maior para assessorá-lo, de maneira a evitar a “[...]

falta absoluta de inteligência profissional na administração da guerra [...]”915. Na

verdade, não havia um fim político que justificasse a guerra na civilização imperial,

desinstrumentalizada dos elementos psicológicos, econômicos e de aplicação da

violência física, como a conscrição, que sustentassem e permitissem aplicar os recursos

da nação numa guerra916.

Contudo, histórica e concretamente chegara o momento do Império conduzir

operações ofensivas em larga escala, com o objetivo de ocupação territorial de um

Estado vizinho. López oferecera a oportunidade do Brasil desenvolver os instrumentos

destinados a gerenciar a aplicação da violência, conformada por um objetivo de política

externa: destituí-lo do governo do Paraguai. Para este fim o Império precisou se

aproveitar do tempo disponibilizado pela estratégia adotada por seus chefes militares,

após o sítio de Montevidéu, de deslocar o grosso do exército aliado, a pé, pela província

de Corrientes917, seguindo os movimentos dos paraguaios que se retiravam inocuamente.

A novidade da situação, contudo, admitiu todo o tipo de inadequações, além das

limitações dos quadros de chefia e comando, tanto militares quanto civis conforme

temos visto. A Escola Militar da Corte, por exemplo, foi fechada e o contingente de

alunos transformado em tropa, foi enviado para o sul: “O governo estancou aquele nobre

viveiro de oficiais, como o selvagem que derriba a árvore para lhe colher os frutos com

mais facilidade.”918 A pressa em arregimentar tropa só minorou em 1868, quando se 914 SALLES, 1990, p. 43.915 JACEGUAI, op. cit., p. 172.916 SNEDECKER, op. cit., p. 122.917 JACEGUAI, op. cit., p. 180918 CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1980, p. 47; ver também JOURDAN, 1894, p. 8.

234

Page 236: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

estabelece um quantitativo médio em torno de 40.000 homens, quando o problema não

era mais formar um exército, mas em mantê-lo919. Outra grande dificuldade foi o manejo

das questões sanitárias da tropa, a partir mesmo das condições de fardamento e

alimentação adequados aos rigores do inverno meridional.

“[...] a maior parte da força de meu comando está completamente desfardada e nua, tanto que me vi obrigado a dividir as praças pelas diferentes casas destas circunvizinhanças, afim de poder resistir à intempérie [...] Assim é que peço a V. Exa. alguma providência, afim de socorrer esta força, ao menos com 1000 ponches, que é o artigo de maior necessidade.”920

Os corpos brasileiros recém chegados ao Prata, principalmente entre os recrutas

do norte, “[...] dissolviam-se pela morte pouco tempo depois de chegarem aos nossos

acampamentos.” Jaceguai admite que da declaração de guerra até o dia da invasão, em

16 de abril de 1866, as perdas brasileiras por doença não devem ser contadas em menos

de doze mil almas.921 Toda “[...] aquela gente [...] era bisonha e não sabia como se

arranjar.”922 Cuidados com “[...] hospitalização, ambulâncias e higiene na alimentação,

vestuário apropriado, abrigo da tropa e asseio dos acampamentos [...]”923 só apareceram

com a chegada de Caxias.

A sucessão de acampamentos do exército brasileiro, durante sua progressão por

Corrientes e Entre-Rios, no rumo do Passo da Pátria, se vai servindo de escola, é

extremamente desgastante em termos administrativos. Mesmo a distribuição de material

bélico vive em completa confusão. Muito do material que existe está deteriorado, o que

se compra é inadequado ou não atende às necessidades de equipamento das tropas;

transporta-se quantidades de material inútil. Ao deixar o acampamento de São Francisco,

a comissão de engenheiros encontra abandonadas no campo “[...] 629 armas portáteis e

919 SALLES, 1990, op. cit., p. 120920 BRASIL. Ofício do comandante da 1ª brigada ao comandante das armas do Rio Grande do Sul, de 2 de julho de 1865. In: JOURDAN, 1894, p. 118. A transcrição é a respeito das tropas dentro do território gaúcho; perdidos na campanha, nos acampamentos provisórios, piores eram as conseqüências.921 JACEGUAI, op. cit., pp. 152-153. Antes da grande batalha de Tuiuti, em 24 de maio de 1866, Osório escreveu a Tamandaré reclamando que entre doentes e feridos sua força estava reduzida em um terço, ou seja, 10.465 homens; op. cit., p. 153.922CERQUEIRA, op cit., p. 51.923 Idem, , p. 153.

235

Page 237: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

seus acessórios. 570 patronas e correames. 296 mochilas [...] muitas ambulâncias [...]

barracas e diversos outros objetos do hospital ambulante.”924 A incompatibilidade entre o

armamento e as munições distribuídas entre os soldados só é, aparentemente, resolvido

após o mês de julho de 1865. O cartuchame inútil, de adarme 17 e 12, bem como as

correspondentes balas esféricas, que em grande quantidade acompanham a marcha do

exército são recolhidas ou utilizados em treinamento de tiro925. A situação, às vésperas

da travessia do Paraná, leva Osório a desabafar: “[...] ‘E é com esse Exército que vamos

invadir o Paraguai... mas não serei eu a quem há de assinar a parte da derrota do

Exército Brasileiro.’”926

A leitura que Paranhos realizou da situação estratégica no momento da solução

da Questão Oriental, levou-o a sugerir ao governo imperial que o comando unificado das

forças navais e terrestres brasileiras fosse entregue a Caxias, sendo a esquadra entregue a

Inhaúma. Ambos os indicados eram eminentes membros do Partido Conservador, e a

sugestão não ajudou em nada a manutenção do seu posto: “[...] venceram S. M. e seu

Almirante mas a vitória da razão há de ser minha.”927 Mais tarde os fatos provaram que,

com sua grande inteligência e conhecimento dos homens, ele tinha razão em aconselhar

a unidade de comando.”928. De qualquer maneira, diante do Passo da Pátria afirmava-se

entre os aliados a precedência de Tamandaré, escorado pela aprovação imperial e pelo

comando-em-chefe dos meios navais da Aliança. A desconfiança que Tamandaré nutria

em relação aos aliados lhe fez buscar a pulverização dos comandos brasileiros, ao invés

da unificação, conforme o proposto por Paranhos. Visava a preponderância nos

conselhos de guerra, que deveriam decidir pelo voto dos generais, os passos a serem

dados pela Aliança.

Se o sucesso dos aliados dependia das habilidades políticas dos seus condutores,

os gabinetes liberais erravam em conferir uma grande latitude de ação a Tamandaré,

baseados na sua ascendência com o imperador. O Almirante enfatuara-se a ponto de

924 JOURDAN, 1894, p. 98.925 Idem, p. 100.926 JACEGUAI, op. cit., p. 93.927 PARANHOS. Carta a Caxias, de 15 de março de 1865. Apud, DORATIOTO, op. cit., p. 78. 928 JOURDAN, 1893 (a), pp. 80-81.

236

Page 238: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

julgar-se com poderes de dissolver a Aliança; ameaçara fazê-lo com Flores em

Uruguaiana, e depois em Monte Caseros, em Corrientes929. Sem resistências, Tamandaré

pode influenciar mais livremente as definições da estratégia do contra-ataque aliado

contra o Paraguai. Neste sentido travava um duelo com Mitre, e com todos que ele

sentisse obstaculizassem suas próprias idéias a respeito de como conduzir a guerra,

criando, mesmo com seus colegas brasileiros, um clima de intrigas e suspeições.

“Tudo revela que a sua idéia [Mitre] é nulificar completamente os generais brasileiros, e converter o nosso grande exército em parte integrante do argentino, no qual mande absolutamente como manda neste. Uma prova mais, além de outras, se acha na ordem do dia de seu chefe de Estado-Maior apresentando-o como general-em-chefe em frente de Uruguaiana... Entretanto, isto pode suceder se o governo imperial não der quanto antes instruções positivas e claras ao general Osório, explicando-lhe que o comando-em-chefe conferido pelo Tratado da Tríplice Aliança ao general Mitre não importa no abandono dos direitos e privilégios que competem aos generais-em-chefe do Império, com o acordo dos quais, tomado em conselho de guerra, se devem empreender todas as operações em qualquer eventualidade, para não ficarem reduzidos a meros instrumentos da vontade estranha... Já o general Mitre se dirigiu ao chefe Barroso, pedindo-lhe certos esclarecimentos e indicando-se como o diretor da guerra. Agora acaba de dividir o seu exército em quatro corpos, com quatro generais-em-chefe, talvez se preparando já para ter maioria nos conselhos de guerra, em os quais sabe que não há de combinar comigo em operação alguma... pedi a V. Exa. amplos poderes para pôr-me de acordo com o general-em-chefe do exército imperial com uma recomendação terminante do governo para se entender comigo sempre que for possível... não hesitarei, em caso extremo, em tomar a responsabilidade de chamar o general Osório para o meu lado, a fim de prosseguirmos na guerra nacional que sustentamos, porque nos acompanhará todo o povo brasileiro.”930

Em 20 de janeiro de 1865, a pedido do ministro da Guerra e da Marinha,

Beaurepaire Rohan, Caxias apresentou um plano estratégico para a condução da guerra

contra o Paraguai, que, em princípio, visava a fragmentação das defesas guaranis. O

plano se baseava na organização de operações ofensivas sobre três eixos diferentes: 25

929 JACEGUAI, op. cit. p. 119. Veja-se o caso com Flores às pp. 66-ss. 930 BRASIL. Ofício de Tamandaré a Ferraz, de 25 de novembro de 1865. Apud, BARROSO, Gustavo. O Brasil em face do Prata. 2a ed. Rio de Janeiro: Bibliex, 1952, pp. 141-142. Grifo do autor. A correspondência aparece na íntegra em JOURDAN, 1894, pp178-180, com data de 24 de novembro.

237

Page 239: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

mil homens apoiados pela Esquadra avançariam pelos rios, ultrapassando Humaitá e

tomando Assunção; Dez mil homens seriam lançados através do Mato-Grosso contra o

norte do Paraguai, com o objetivo de atrair para lá parte do mecanismo de defesa

paraguaio; por fim, mais dez mil homens deveriam penetrar no território da República

do Paraguai num ponto do rio Paraná, bem acima do Passo da Pátria, marchando, então,

em direção a Humaitá. Este movimento deveria forçar o exército paraguaio a deixar a

fortaleza para lhe interceptar o caminho sobre a estrada para Assunção, facilitando a

penetração da 1ª coluna, ou, na pior das hipóteses, cobriria a sua retirada no caso de um

revés931. Por sua vez, sabe-se que, em 3 de março de 1865, Tamandaré submetera,

também, um plano de ação contra o Paraguai, que privilegiava o avanço pelo eixo dos

rios Paraná e Paraguai, bloqueando a confluência entre os dois rios – as Três Bocas – e

desembarcando tropas abaixo da temida fortaleza de Humaitá932. Aparentemente a

proposta de Caxias não encontrou eco no pensamento estratégico liberal, até mesmo

porque Beaurepaire Rohan foi substituído por Ferraz, que indicou para o seu lugar como

ministro da Guerra, o visconde de Camamu, inimigo visceral de Caxias. Como

sobrevivência do seu plano, se alguma relação guardou, restou mesmo o fiasco descrito

pelo visconde de Taunay.

Durante o ano que transcorreu entre o acampamento diante de Montevidéu, e as

cercanias do Passo da Pátria, os aliados não discutiram a travessia do Paraná, por não se

haver previsto a mera retirada geral dos paraguaios: “Quanto às operações futuras, nada

posso por agora dizer a V. Exa. Só depois de conferências entre os generais aliados e o

Sr. Visconde de Tamandaré, que ainda não chegou a Corrientes, se saberá de positivo o

que se fará.”933.

Como comandante-em-chefe dos exércitos aliados, Mitre concebia uma

alternativa estratégica semelhante à proposta de Caxias, mas esbarraria, por sua vez na

prevenção de Tamandaré quanto a sua “[...] pretensão [...] de querer ser o árbitro

931 DORATIOTO, op. cit., pp. 115-117, 118932 CANDIDO, Roberto G. Portugueses e espanhóis no Rio da Prata – disputas territoriais. Revista Marítima Brasileira. S.D.G.M. Rio de Janeiro, pp 129-154, 1o trimestre de 1998, p. 145.933 BRASIL. Ofício de Osório ao ministro da Guerra de 15 de dezembro de 1865. Apud, JOURDAN, 1894, p. 168.

238

Page 240: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

supremo e diretor soberano da guerra [...]”934. Por seu turno, enquanto os chefes de

Estado das repúblicas aliadas se transplantavam para a frente de seus exércitos,

Tamandaré pretendia melhor conduzir a “[...] direção política da guerra, que lhe é

cometida pelo governo imperial [..]”935 e permanecia em Buenos Aires. Somente após a

chegada dos novos encouraçados brasileiros que Tamandaré segue para a cidade

portuária de Corrientes, capital da província de mesmo nome, onde chegou em 21 de

fevereiro de 1866936. Ao chegar a Corrientes, o visconde recebeu de Mitre os volumes

que continham impressos os relatórios do secretário da marinha do governo de Abraham

Lincoln, Gideon Welles937, relativos às operações navais da Guerra Civil Americana, nos

anos de 1864 e 1865. Apesar do valor intrínseco daquelas experiências que guardavam

tantas similitudes com a campanha que se iniciava, principalmente os combates entre

navios e fortificações ribeirinhas, Tamandaré ordenou ao seu secretário,

desdenhosamente, que devolvesse os volumes ao presidente argentino938, segundo ele,

“[...] nos amis les énémis [...]”939.

Em 25 de fevereiro se realizou um conselho de guerra para a definição do local

do desembarque em solo paraguaio, para tanto se realizaria, ainda, um reconhecimento

até o Itati, bem acima das Três Bocas. Mitre e Osório, este ultimo quem, segundo

Tamandaré, “[...] insensivelmente tem sido dominado pela influência daquele [...]”940

preferiam aquele local, mas prevaleceu a opção pelo Passo da Pátria. Do outro lado de

Corrientes e do rio Uruguai, o exército que se formara ao redor de Uruguaiana, menos as

unidades liberadas do acampamento principal dos Aliados, que socorreram aquela praça,

formou-se um exército de observação, entregue ao comando do conde de Porto

934 BRASIL. Ofício de Tamandaré a Ferraz, de 24 de novembro de 1865. Idem, pp. 178-180.935 JACEGUAI, op. cit., p. 141936 Tamandaré explica as demoras de sua transferência de Buenos Aires a Corrientes em ofício ao ministro da Guerra e da Marinha, de 23 de fevereiro de 1866. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 88, pp. 173-174. Os aliados estavam acampados nas proximidades do Passo da Pátria desde dezembro de 1865, foi quando se começou a organizar os meios materiais para a travessia, que consumiram quatro meses, durante os quais as forças aliadas, de 40 mil homens, foram duramente atacadas pelos paraguaios, em audaciosas incursões em canoas, que o poderio aliado não pode nunca obstar. Vexames que a imprensa fazia repercutir e assinalava as deficiências do comando aliado.937 CATTON, Bruce. Picture History of the Civil War. New York: American Heritage, 1988, p. 68.938 JACEGUAI, op. cit. p. 139.939 Idem, p. 65.940 BRASIL. Ofício de Tamandaré a Ferraz, de 24 de novembro de 1865. JOURDAN, 1894, pp. 178-180.

239

Page 241: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Alegre941. Após os paraguaios terem evacuado Corrientes, evidenciou-se que o centro de

gravidade das suas defesas era Humaitá; por isso este exército recebeu ordens para se

deslocar, cruzando o rio Uruguai, até a margem esquerda 942do Paraná. Ali, diante de

Itapua, em território paraguaio, Porto Alegre deveria proceder à travessia das suas

forças, e penetrar o território paraguaio em direção àquela fortaleza943, muito à feição do

plano desenhado por Caxias. Este movimento deveria se dar concomitantemente à

invasão que se efetuaria no passo da Pátria. Contudo, Porto Alegre tinha carência de

meios flutuantes para a transposição, e decidiram os generais deixar aquela manobra

para depois da invasão no passo da Pátria, quando o exército aliado poderia fornecer

alguma ajuda944.

Diante do Passo da Pátria, por sua vez, como uma maneira de superar a falta de

previsão no tocante aos meios de transposição das tropas para a outra margem945, e a

incapacidade do comando em coordenar a defesa contra os golpes de mão que os

paraguaios realizavam desde a sua margem do rio, a engenharia do exército preparava-se

para construir uma ponte sobre o rio946. Os chefes aliados recebiam as críticas da

imprensa dos três países aliados, que expunham aquelas deficiências, além da demora da

Marinha do Brasil, que no momento da invasão, após dispor de vários meses, não

realizara o levantamento hidrográfico dos rios. Quando completado, aquele

levantamento permitiu a seleção do ponto do desembarque947. Porém, antes disto, ainda

haveriam os aliados que amargar a agressividade de uma arma paraguaia tão formidável

quanto rudimentar, e que haveria de transtornar as operações mesmo dos poderosos

941 BRASIL. Instruções de Ferraz a Porto Alegre, de 30 de setembro de 1865. In: FRAGOSO, Augusto Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai: 5 volumes. Rio de Janeiro: Imprensa do EME, 1934, vol III, pp. 37-39.942TRÍPLICE ALIANÇA. Ofício de Mitre a Porto Alegre, de 28 de fevereiro de 1866. Apud, idem, pp. 36-44.943TRÍPLICE ALIANÇA. Ofício de Mitre a Porto Alegre, de 21 de março de 1866. Apud, idem, pp. 46; JOURDAN, 1894, pp.194-195.944TRÍPLICE ALIANÇA. Ofício de Porto Alegre a Mitre, de 12 de abril de 1866. Apud, ibidem, pp. 49-50. 945 JOURDAN, 1894, pp. 183-184, 189-190946 JACEGUAI, op. cit. p. 82.947 BRASIL. Ofício de Tamandaré ao ministro da Marinha, de 13 de abril de 1866. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 90, pp. 181-182. Sobre a falta de iniciativa da Marinha, veja-se DORATIOTO, op. cit., p. 203.

240

Page 242: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

encouraçados brasileiros: a chatas canhoneiras948. Por fim, em 14 de abril se realizou a

bordo do Apa, o capitânia da Esquadra, “[...] a mais solene de todas as juntas de guerra

celebradas entre os generais aliados [...]”, nela se fixou a data da invasão para 16 de

abril949.

Acertado o local do desembarque, o contingente que executaria a ação e sua

disposição tática, contudo, surgiu uma grosseira discussão entre Mitre e Tamandaré, a

respeito da nacionalidade cujas tropas que primeiro pisariam no território inimigo.

Tamandaré, “[...] sempre desconfiado dos generais aliados [...]” não aceitou a proposta

de Mitre para que fossem empregadas tropas argentinas, meramente em função do

caráter com que estava revestido, de comandante-em-chefe do exército aliado:

“[...] ‘O Exército Brasileiro não podia fazer sobressair os argentinos em detrimento dos seus brios e da nação brasileira e que havia uma razão poderosa para que os brasileiros fossem os primeiros a pisar no território paraguaio e era a de não perderem aquela oportunidade de dar solene desmentido às apreciações de que era objeto o exército brasileiro na imprensa de Buenos Aires, e acrescentou que seria a maior das inépcias que ele emprestasse os navios e os transportes, que ali se achavam e pertencentes à Esquadra Brasileira, aos argentinos para que estes colhessem o maior quinhão de glória na operação da passagem do rio [...]”950

Tamandaré tampouco se curvou a uma proposta de Flores para que uma vanguarda

representada pelos três exércitos formasse a ponta-de-lança da invasão.951 O

desembaraço com que Tamandaré agredia os aliados na guerra contra o Paraguai era o

mesmo com que o fizera contra o governo Oriental, em 1864. Neste caso, porém, não é

lícito pensar que agisse de acordo com a vontade do Imperador, conforme conjeturara

Nabuco no caso da Questão Oriental, pois no caso da Tríplice Aliança o “[...] Imperador

era quem corria mais risco com o rompimento da Aliança e ninguém poderia suspeitá-lo

de duplicidade para com seus aliados [...]”.952

948 CARVALHO, A.B.. Construção do modelo das chatas-canhoneiras da Guerra do Paraguai. Revista Marítima Brasileira. C.D.G.M. Rio de Janeiro, pp. 111-126, 4o trimestre de 1995; Sobre os danos infligidos ao encouraçado Tamandaré, ver JACEGUAI, op. cit. p. 79, 86-87.949 JACEGUAI, op. cit. p. 79, 86-87.950 TAMANDARÉ. Apud, JACEGUAI, op. cit., p.92.951 Idem. pp. 92-93.952 Ibidem, pp. 141-142.

241

Page 243: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

De qualquer maneira fez-se com sucesso a invasão, grandemente auxiliada pela

atitude de López que preferiu não dar combate ao invasor e abandonou o campo

fortificado do Passo da Pátria.953 O presidente paraguaio levou suas tropas até uma linha

ao norte dos campos de Tuiuti, para onde os aliados puderam avançar sem dificuldade, a

despeito da sua falta de meios de locomoção. A inexistência de bois e cavalos954 se devia

a inadequação do pasto disponível nos confinamentos do Passo da Pátria, o que expôs os

animais a morrerem por falta de forragem, item bisonhamente desconsiderado pelos

planejadores da Tríplice Aliança. Foi esta mesma falta de mobilidade que também

impediu que os aliados perseguissem os remanescentes do exército paraguaio, após sua

derrota na batalha de Tuiuti; aquela batalha feriu-se em 24 de maio de 1866, e se

efetuada aquela perseguição, muito se teria contribuído para apressar a derrota de López.

Estes sucessos só fizeram aumentar a irritação entre os chefes aliados,

complicando ainda mais o convívio. Mitre se exasperava em carta a Marcos Paz, o vice-

presidente argentino, afirmando que Tamandaré estava muito aquém da tarefa a ele

confiada, para a qual não demonstrava inteligência nem vontade, e, por isso “[...] ‘nada

espero da esquadra, nem conto com ela para nada’ [...]”.955 A esquadra e os exércitos

permaneciam separados pela mataria e charcos que mediavam entre o acampamento de

Tuiuti, e o rio Paraguai, sem nenhuma possibilidade de apoio mútuo:

“Havia, realmente, algo de desmoralizador na inércia daquela esquadra formidável pelo número e poder de seus navios, reduzida a defender-se nas trevas das águas apertadas de um rio contra os minúsculos [as minas flutuantes, então chamadas de “torpedos”] instrumentos de guerra naval do inimigo [...]”956

953 Jaceguai não acreditava no sucesso da invasão, tivesse López demonstrado alguma tenacidade no Passo da Pátria. Op. cit., p. 90.954 DORATIOTO, op. cit., p. 211; JACEGUAI, op. cit., p. 98. PARANHOS, notas 2 e 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 47.955 MITRE. Apud, DORATIOTO, op cit. pp. 228-229. Ver a mesma opinião no depoimento do secretário do almirante, barão de Jaceguai “Mas, nem o homem era o mesmo [do tempo do comando do vapor D. Afonso] nem o governo imperial soube limitar-lhe o papel à pura ação militar em que nunca se desmentiria a sua inata bravura.” Op. cit., p. 64.956 JACEGUAI, op. cit. pp. 104-105.

242

Page 244: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Porto Alegre continuava inutilmente estacionado à margem esquerda do Paraná,

e as baixas em combate ou por doença dos aliados acampados em Tuiuti, assim como a

falta de cavalhadas, impedia que investissem contra os entrincheiramentos paraguaios ao

norte de Tuiuti, que guardavam a passagem para Humaitá e Assunção. Formava aquela

linha fortificada a famigerada linha de Rojas. Com os ânimos neste estado, Flores

solicitou um conselho de guerra para a definição dos próximos passos do exército

invasor, que se realizou em 30 de maio.

Permanecia a necessidade de ultrapassar Humaitá para se chegar a Assunção.

Neste sentido, como originalmente concebido após a rendição dos paraguaios em

Uruguaiana, Porto Alegre deveria proceder, finalmente, à invasão por Itapua, ou seja,

uma penetração perpendicular à linha dos rios, como pretenderam Caxias, Mitre e

Osório, conforme vimos. O objetivo seria novamente atrair o Exército paraguaio para

fora de Humaitá,957 dividindo suas defesas e enfraquecendo-a, permitindo que a

Esquadra agisse pelo rio, e o exército em Tuiuti forçasse a passagem pelo sul.

Tamandaré concordara com este plano antes da invasão no Passo da Pátria,958 e Mitre

mantinha sua fé nas possibilidades que oferecia. Porto Alegre não se opunha

abertamente ao plano, embora não se furtasse de reiterar as dificuldades que antevia à

sua execução.959 Para os fins das articulações de Tamandaré em favor da atuação da

Esquadra, e do impedimento da direção das operações por Mitre, é relevante indicar que

em 20 de abril de 1866, o exército de Porto Alegre passa a se denominar 2º Corpo do

Exército Brasileiro em Operações contra o Paraguai. Este novo caráter da força

comandada pelo conde de Porto Alegre abria-lhe a possibilidade de tomar um lugar nas

definições nascidas dos conselhos de guerra.

E foi justamente no conselho de 30 de maio, que surgiu a proposta de se trazer o

2º Corpo para a região da Confluência – Itapiru – à qual Tamandaré acolhe “[...] com

entusiasmo, quiçá lobrigando a oportunidade de lhe ser assim possível intervir na guerra 957TRÍPLICE ALIANÇA. Ofício de Mitre a Porto Alegre, de 21 de março de 1866. Apud, FRAGOSO,op. cit., p. 48.958 BRASIL. Ofício de Tamandaré ao ministro da Marinha, de 23 de fevereiro de 1866. In: SCHNEIDER, op. cit., vol I. Apêndice, nº 88, pp. 181-182.959 BRASIL, Ofício de Porto Alegre ao ministro da Guerra, de 8 de maio de 1866. Apud, FRAGOSO, op. cit., vol III, pp. 52-53.

243

Page 245: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

de modo mais decisivo [...]”.960 Aliás, por sempre desconfiado dos aliados, Tamandaré

era extremamente cauteloso em expor um navio ao risco dos combates contra as

fortalezas ribeirinhas.961 Segundo o pensamento de Tamandaré, o risco poderia, uma vez

disponibilizadas tropas para operar sobre a margem do rio Paraguai, ser dividido com os

soldados.962

Entusiasmado com a idéia, fiel à sua determinação de atrelar o avanço da

esquadra com os ganhos de terreno do exército, o velho marinheiro, sem conhecimento

dos demais chefes da aliança, escreve a Porto Alegre, em 4 de junho de 1866, sugerindo

sua transferência para a Confluência. Daquele ponto do rio Paraná, seria transferido para

a margem esquerda do Paraguai, de maneira a operar conjuntamente com a esquadra. De

acordo com os argumentos de Tamandaré a Porto Alegre, a chegada do 2º Corpo àquele

teatro significaria um reforço quantitativo que permitiria às combalidas forças em Tuiuti,

vencerem a inação causada pelas doenças e baixas em combate.963 Porto Alegre escreveu

a Mitre a respeito da proposta de Tamandaré, feita sob a base das carências dos aliados

em Tuiuti, e diz-se pronto a atendê-lo, “[...] se Mitre assim o entender e ordenar”.964 Em

que pese Mitre continuar contra a mudança dos planos estabelecidos desde a rendição de

Uruguaiana, convocou uma junta de guerra em 25 de junho na qual...

“Foram todos de opinião que a incorporação projetada [a do 2º Corpo] era conveniente, quer se tivessem em vista os interesses gerais dos aliados, quer o melhor e mais rápido êxito da campanha. Por minha parte, e apesar do que já referi [sua discordância quanto àquele movimento] associei-me ao parecer da maioria [...]”965

960 FRAGOSO, op. cit., vol III, pp. 53-54.961 “Fortalezas” não devem sugerir ao iniciante nas questões da Guerra do Paraguai uma construção sólida e maciça, senão, a mera elevação de parapeitos de barro, com provisões de claros para o estabelecimento de embasamentos para canhões. Estas barrancas artilhadas possuíam o mesmo tipo de construção voltada para o sul, ligando o rio até algum obstáculo natural, como um banhado, destinada a se contrapor ao avanço por terra. Humaitá era a exceção, posição sofisticada e bem construída.962 JACEGUAI, op. cit., pp. 99-100; PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 51.963 PARANHOS. Apud, FRAGOSO, op. cit., vol III, p. 54.964TRÍPLICE ALIANÇA. Ofício de Porto Alegre a Mitre, de 15 de junho de 1866. Apud, idem, idem.965TRÍPLICE ALIANÇA. Ofício de Mitre a Porto Alegre, de 25 de junho de 1866. Apud, Ibidem, pp. 55-56; PARANHOS, nota 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 53.

244

Page 246: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Acreditamos que a aquiescência de Mitre, abrindo mão do plano original,

baseou-se no interesse de preservar a Aliança,966 contudo, significou uma mudança

importante na estratégia aliada, desde que os paraguaios foram derrotados em território

brasileiro. Os efeitos de renunciar ao envolvimento de Humaitá pelo leste, embora

evidentemente não fosse permitido antever as conseqüências da mudança, não podem

ser exagerados. Novamente, nos campos de batalha no Paraguai se refletiam os arranjos

patrimonialistas da sociedade imperial, a ação das parcelas antagônicas que se digladiam

pela preponderância sobre as concorrentes. Olhos fixos no objetivo político mais

imediato, no prestígio e no mando, que tendia a tudo transformar em negócio de caráter

privado, às expensas dos desdobramentos semi-obscurecidos no longo prazo.

Serve de resumo da estratégia que passou a ser perseguida pelos aliados a partir

daquele momento, em junho de 1866, ainda que pareça surpreendente, que os aliados

escolheram combater os guaranis onde estes eram, de fato, mais fortes, e gozavam das

melhores possibilidades de concentrar suas forças para se auxiliarem mutuamente contra

o invasor. Não é demais salientar que os paraguaios desfrutavam do auxilio da própria

natureza do terreno que, de resto, conheciam mais do que o invasor. Tudo foi oferecido

aos paraguaios! Tamandaré mais concorreu para a mudança que alterou o desenho

estratégico original;967 “[...] os assomos do seu amor próprio e a nobreza e o orgulho dos

seus sentimentos em relação à Marinha, não permitindo que ela pudesse ficar diminuída

no seu valor e na sua importância [...]”,968 se conjugaram para comprometer a

consistência da estrutura estratégica da Aliança.

A construção ficou manca: um exército mal montado, e mal conduzido pela

fragmentação do comando, assim como empregado de maneira que suas forças não se

apoiavam, era oferecido ao combate numa frente estreita, cuja natureza do terreno

favorecia a defesa paraguaia. “O conde de Porto Alegre secundou-o [a Tamandaré]

porque assim operava com independência do comando em chefe de Mitre. Tamandaré e 966 DORATIOTO, op. cit., p. 228.967 Jaceguai acredita que a solução encontrada era a única viável, porque o exército de invasão não era forte o suficiente para ser dividido em duas frentes de avanço: próximo ao rio e pelo interior, a partir de Itapua. O autor desconsidera, entretanto, que o novo arranjo não preconizava a operação em conjunto das tropas aliadas. Veja-se op. cit., pp. 76-77.968 JACEGUAI, op. cit., p. 75.

245

Page 247: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Porto Alegre, que eram amigos e parentes, contavam dar um golpe decisivo no inimigo

sem repartir os louros da vitória [...]”.969 Por outro lado, havia pressa dos governos para

que se decidisse o mais rapidamente a guerra, que demorava demais.; “[...] o desânimo

[...] lavrava em todos os países da Aliança pela demora das operações de guerra [...]”.970

“Teria sido necessário, porem, um general de talento para desenvolver a

concepção confusa de Tamandaré [avançar a esquadra pelo rio escorada pelo exército];

esse talento não tinha Porto Alegre que era apenas um sabreador brilhante.”.971 Não era

possível à Esquadra tomar território ou mesmo vencer as fortalezas ribeirinhas. Os

estragos do canhoneio naval, devido à natureza daquelas construções, podiam ser

reparados da noite para o dia e a Marinha Imperial carecia dos grandes morteiros

embarcados, capazes de tiros elípticos, que caíamr por trás dos parapeitos de barro. O

exemplo já havia sido estabelecido pela marinha Yankee,972 nos anos imediatamente

precedentes. A ineficiência do fogo dos canhões convencionais ficou demonstrada no

bombardeio de Curuzu, no início de setembro, e mais ficaria marcada no assalto à

Curupaiti: tiros tensos que, passavam inocuamente por cima da posição inimiga, ou

revolviam o barro em tiros enfiados contra suas paredes, inúteis para apoiar o assalto por

terra. O plano abraçado por Tamandaré, de transferir Porto Alegre da costa do Paraná

para a do Paraguai, se bem executado, poderia ter superado aquelas limitações da

Esquadra em relação às fortalezas: disponibilizando tropas de desembarque para tomar

os fortes dos defensores.973

Antes de se iniciarem as operações conjuntas entre a marinha e o exército sobre

as fortificações da margem esquerda do rio Paraguai, surgiu entre Porto Alegre de um

lado, e Mitre e Tamandaré, de outro, uma rusga quanto à precedência militar durante a

969 PARANHOS, nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 69.970 BRASIL. Ofício de Otaviano ao ministro da Guerra, de 8 de julho de 1866. Apud, FRAGOSO, op. cit., vol III, pp. 60-61.971 JACEGUAI, op. cit., p. 139.972 Veja-se CATTON, op. cit., ilustração nº 1, p. 386.973 O que, de acordo com alguns de seus panegíricos deveria ser repetido rio Paraguai acima até a conquista de Assunção, após a superação da simbólica Humaitá; cf. TAVARES, R. Prefácio da 1ª edição. In: JACEGUAI, op. cit., pp. 30-31. A fragilidade de tal concepção está em não conceber como necessário, antes de tudo, destruir o exército paraguaio que se lhes antepunha na linha de Rojas. Sem isto, mesmo que todo o exército aliado entrasse em Assunção, estaria na condição de ter sua retaguarda atacada, e ficar cortado dos seus suprimentos e reforços.

246

Page 248: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

operação – quem mandava em quem. Houve um acirramento nos desgastes e prevenções

entre aqueles generais, tendo Mitre que intervir para clarificar a situação e não

comprometer a execução do plano estabelecido. Estas dificuldades não estavam de fato

resolvidas quando Porto Alegre foi transportado, junto com seus mais de oito mil

homens, para ser desembarcado abaixo da pequena fortaleza de Curuzu. Aquele pequeno

complexo, resistiu ao canhoneio da esquadra e, no dia dois de setembro, enquanto se

efetuava o desembarque do 2º Corpo, pode assistir ao afundamento do mais novo

encouraçado brasileiro, o Rio de Janeiro, que aparentemente tocou com sua popa num

“torpedo”, enquanto duelava com o forte. “Era a primeira manifestação da fortuna

adversa que ia fazer com que os reveses fossem sempre maiores que os sucessos, na

execução do plano engendrado pelo velho almirante.”.974

Contudo, mesmo com a perda da belonave, o menos formidável dos obstáculos

ribeirinhos975 foi tomado no dia seguinte. Uma parte da tropa brasileira perseguiu os

paraguaios até a barranca artilhada de Curupaiti, e acharam-na praticamente indefesa.976

Porto Alegre, de qualquer maneira, renunciou a estender seu movimento ofensivo,

tomando Curupaiti. Desta maneira as suas vanguardas retrocederam para Curuzu, uma

vez que o general brasileiro estava temeroso da resistência que poderia encontrar e pelo

desconhecimento do terreno a ser coberto pelo restante das suas forças.977 Outro

problema que intimidou o comandante do 2º Corpo era a proximidade de Curupaiti da

própria Humaitá, de onde poderia provir um contra ataque. Preferiu, portanto,

permanecer em Curuzu a espera dos reforços de 4 mil infantes que pedira ao general

Polydoro.978

974 JACEGUAI, op. cit. p. 122.975 DORATIOTO, op. cit., p. 236; JACEGUAI, op. cit., p. 122.976 Fragoso cita Thompson, que acredita que naquele momento Porto Alegre poderia ter-se assenhorado de Curupaiti,. Op. cit. vol III, p. 79; Contudo, e contraditoriamente, na tarde do dia 3 de setembro Tamandaré escreve a Polydoro que as avançadas do 2º Corpo encontraram muita tropa em Curupaiti. Apud SCHNEIDER, op. cit., vol II. Apêndice, nº 48, p. 244.977 PORTO ALEGRE. Apud, FRAGOSO, op. cit., vol III, p. 79.978 Este general substituíra Osório.

247

Page 249: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Não faltaram críticas a Porto Alegre979 pela falta de iniciativa que demonstrara

diante de Curupaiti; os navios de Tamandaré estavam ali mesmo, para apoiá-lo. Ainda

que fosse contra-atacado de Humaitá, poderia pelo menos ter destruído a posição, jogado

os canhões ao rio, destruir seus embasamentos e retirar obstáculos que poderiam ajudar

o próximo ataque. “Estas medidas eram tanto mais indicadas quanto Porto Alegre estava

no propósito de assaltar Curupaiti, para o que ele e Tamandaré requisitaram um reforço

de infantaria [...]”.980 Ficar em Curuzu significou permitir aos paraguaios sofisticarem as

defesas de Curupaiti, de maneira que serão as responsáveis por cobrar aos aliados um

alto preço político e militar num futuro próximo.981

Por seu lado nem Mitre nem Polydoro estavam convencidos da conveniência de

ceder os 4.000 infantes ao 2º Corpo, conforme pediam Porto Alegre e Tamandaré. Um

conselho de guerra realizado em 5 de setembro, contudo, a partir das possibilidades

criadas pela presença do 2º Corpo à margem do Paraguai, buscou averiguar a “[...]

posibilidade, conviencia y necessidad de dar major ensanche á las operaciones militares

para estrechar y vencer al enemigo en menor espacio possible de tiempo [...] obrando en

combinación con la Escuadra”.982 Acreditamos que Mitre vira com frieza a transferência

do 2º Corpo para a margem esquerda do Paraguai, mas naquele momento enxergou a

possibilidade de executar o envolvimento, pela esquerda, do exército paraguaio que

guardava o avanço dos exércitos aliados em Rojas. Considerou a possibilidade de:

“1º Formar un Ejercito de operaciones sobre la base del 2º Cuerpo [...], elevandolo hasta el duplo de fuerza con nuevas tropas de los Ejercitos Aliados, és decir hasta 18 á 20 mil hombres, trasladandose ali el General en Jefe si fuera conveniente.2º Desprender oportunamente la cabaleria por nuestra derecha llevandola por la retaguardia del enemigo hasta donde fuere posible á las ordens del Señor General Flores, con el objeto de cooperar á las operaciones del Exército expedicionario por la parte del rio Paraguay.3º Con el nuevo Ejercito de operaciones asi formado sobre la costa del Paraguay, atacar Curupaity en combinación con la Escuadra y esmagar el Ejercito enemigo por la retaguardia interceptandole el camino de

979TRÍPLICE ALIANÇA. Ofício de Polydoro a Porto Alegre de 3 de outubro de 1866. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II. Apêndice, nº 49, p. 290.980 JACEGUAI, op. cit., p. 125.981 DORATIOTO, op. cit., pp. 236, 237. Sobre as fortificações realizadas pelos paraguaios veja-se: PARANHOS, nota 1. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 93.982 TRÍPLICE ALIANÇA. Ata do conselho de 5 de setembro de 1866. In: TAVARES, op. cit., pp. 32-33.

248

Page 250: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Humaitá á efecto de provocarlo á una batalla tomandolo por la espalda, para lo qual deberá llevar todos los elementos, obrando según queda dicho en combinación con la cabaleria destacada.4º Mantener mientras tanto á la defensiva en campo atrincherado de los aliados frente á las líneas del enemigo (Rojas) para lo cual pueden quedar con el Señor Mariscal Polydoro de 18 á 20 mil hombres, que en caso dado y oportunamente prevenidos pueden concurir a operar por la derecha ó por la frente de las líneas fortificadas del enemigo.”983

Curupaiti, segundo o plano de Mitre poderia mesmo ser evitada, fazendo-se

desde Curuzu, que estava ao norte das trincheiras de Rojas, uma inflexão para a direita,

em direção ao interior do Paraguai, para cortar a ligação entre o exército paraguaio em

Rojas e o Quartel General em Humaitá. Contudo, coerentemente com suas posições em

relação à condução das operações até aqui, Tamandaré e Porto Alegre firmaram pé na

necessidade do ataque a Curupaiti. Além disto, não passou desapercebido aos dois

generais brasileiros que aquela guinada para o interior desbaratava seus planos mais

imediatos para a condução das operações. Além disso, a vinda de Mitre para a costa do

rio tirar-lhes-ia a precedência militar,984 sendo ele o comandante-em-chefe dos aliados.

Por isso, um assalto àquela fortaleza poderia ser uma última manifestação do seu plano

original, e deveria servir-lhes, de alguma forma, de coroamento. Portanto o ataque a

Curupaiti foi julgado indispensável, e para os seus objetivos pessoais deveria ser

consolidado antes da transferência de Mitre para lá.985

Por conta das vaidades e susceptibilidades daquelas autoridades militares

imperiais, aliadas às deficiências apresentadas até aqui na aplicação de um plano de

operações pouco consistente, estavam dadas as condições para a consumação do maior

desastre militar da Tríplice Aliança de toda a guerra. O plano de Mitre para desbordar

Rojas a partir da margem do Paraguai, foi fixado definitivamente em 8 de setembro de

1866, contando com o apoio de Polydoro e Flores.986 Apesar disso, como dissemos

acima, no interesse de coroar positivamente o plano particular de avanço conjunto pela

margem do rio, Porto Alegre e Tamandaré pretenderam adiantar o assalto a Curupaiti.

Pretendiam conduzir a operação de maneira independente, antes da transferência das

983 Idem, idem, pp. 33-34.984 PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 102.985 TAVARES, op. cit., p. 34.986 PARANHOS, nota 3. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 94.

249

Page 251: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

tropas Argentinas e de Mitre para lá. Para tanto recorreram a Polydoro e Mitre por

reforços

Invocaram os brios xenófobo-patrióticos de Polydoro contra os aliados argentino

e uruguaio, esperando receber os 4 mil infantes: “V. Exa. no seu patriotismo pesará tudo

isso e me auxiliará eficazmente [...]”.987 Polydoro, por sua vez manteve-se lealmente ao

lado dos demais generais aliados,988 aguardando a execução do planejado. Mitre,

percebendo evidentemente a manobra do seu contumaz rival, tratou de dirigir-se a ele,

procurando convencê-lo da irrelevância do ataque a Curupaiti naquele momento, e da

inadequação do reforço de 4 mil soldados pretendido. Segundo o comandante-em-chefe,

quer fossem usados para atacar Curupaiti – para o que julgava-o um exagero – quanto

para, no caso de efetuar o ataque, servirem para resistir a um contra ataque paraguaio –

para o que o julgava insuficiente.989 Por fim, prevaleceu o que fora acordado em

conselho, e o ataque a Curupaiti esperaria pela transferência das tropas e chefe

argentinos para a beira do rio Paraguai.

De qualquer maneira, antes que o Exército Argentino completasse sua

transferência para Curuzu, em 12 de setembro, Solano López convocou a célebre e

inócua conferência de Yataity-Corá, ao pressentir o grande movimento aliado.990 No dia

seguinte, visto não se ter chegado a um acordo no encontro do dia anterior, Mitre se

dirige com o restante dos seus compatriotas para junto do 2º Corpo brasileiro,991 apesar

de toda a animosidade reinante. Tamandaré acusava abertamente a Mitre de querer

roubar os louros da vitória aos brasileiros; ele e Porto Alegre tinham entregue um

protesto contra o fato dos brasileiros estarem subordinados a Mitre em Curuzu, e a

Flores em Tuiuti, quando a maior parte das forças presentes era composta por unidades

brasileiras992...

987 BRASIL. Ofício de Porto Alegre a Polydoro, de 8 de setembro de 1866. TAVARES, op. cit., p. 36.988 BRASIL. Ofício de Polydoro a Porto Alegre, de 8 de setembro de 1866. Idem, pp. 36-37.989 TRÍPLICE ALIANÇA. Ofício de Mitre a Porto Alegre, de 8 de setembro de 1866. Ibid., pp. 37-41.990 THOMPSON. Apud, FRAGOSO, op. cit., vol III, p. 108.991 JACEGUAI, op. cit. p. 127.992 FRAGOSO, op. cit., vol III, pp. 103-104; ver também PARANHOS, nota 1. In: : SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 103.

250

Page 252: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“[...] apesar de minha firmeza tranqüila com que vejo essas criancices, pode haver a ocasião em que as coisas não ocorram tão tranqüilamente [...] Porto Alegre é um tonto [...] Otaviano é outra criança, a quem dei algumas advertências, que atiça a vaidade e, parece, conspira em acordo com Tamandaré para concentrar em Porto Alegre o comando do Exército, eliminando Polydoro [...] A cada dia é mais necessária a vitória, que é o caminho para a paz entre os povos e os espíritos.”993

No dia 17 de setembro de 1866, depois de novos retardamentos, candidamente

atribuídos às “[...] delongas que resultaram de um movimento tão considerável de tropas

[...]”,994 estava tudo pronto para o ataque sobre Curupaiti, que deveria abrir o movimento

aliado sobre as espaldas do inimigo entrincheirado em Rojas. Os deuses da guerra,

contudo, pareciam determinados a não bafejar com suas bençãos homens tão incréus nos

seus preceitos quanto os chefes aliados: “A 17 choveu e o almirante achou que isso era

um inconveniente para o bombardeio, o qual, segundo o convencionado, devia preceder

o ataque [...]”.995 Porto Alegre por sua vez vacilava diante das informações sobre as

forças reunidas em Curupaiti, e insistiu para que, de Tuiuti, Polydoro iniciasse um

ataque contra Rojas, de maneira a atrair para si as reservas paraguaias. Mitre agüentou as

pressões dos dois chefes brasileiros, de maneira a preservar o plano original. “É pena

que não houvéssemos feito o ataque a 17, porque tudo estava perfeitamente disposto e

teríamos colhido um dia de glória se o Almirante Tamandaré cumprisse com o que

ofereceu.” É verdade que este otimismo de Mitre, conforme mostrou o fatídico dia 22,

pode ser considerado exagerado. A chuva combinada ao terreno alagadiço e pouco

conhecido, mostraram ser um inimigo tão inexpugnável quanto a mais poderosa

fortaleza inimiga.

De qualquer maneira foi sobre estas bases de má vontade mútua, e confronto de

vaidades que se executou o ataque a Curupaiti, em 22 de setembro de 1866. A chuva só

cessou no dia 20, transtornando todo o levantamento realizado pela comissão de 993 ARGENTINA. Carta de Mitre a Elizalde, de 13 de setembro de 1866. Apud, DORATIOTO, op. cit., p. 239.994 TRÍPLICE ALIANÇA. Parte oficial de Tamandaré sobre o combate de Curupaiti, de 24 de setembro de 1866. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II. Apêndice, nº 58, p. 339.995 O restante deste parágrafo está baseado na carta de Mitre a Marcos Paz, de 20 de setembro de 1866, dois dias antes do ataque, conforme citado por Fragoso, às páginas 109-110. Nesta carta Mitre refere-se a Porto Alegre e Tamandaré como muy pequeños, muito diferentes de Polidoro e Osório; DORATIOTO, op. cit., p. 245.

251

Page 253: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

engenheiros, que reconhecera o caminho para o ataque: “[...] achamo-nos sobre um

lodaçal e com os caminhos perdidos.”.996 O resultado de todos os erros, das disputas

mesquinhas, nascidas do patrimonialismo burocrático aplicado sobre as vacâncias de

uma estrutura militar incapaz de fornecer ao governo brasileiro ferramentas úteis para a

aplicação da força, foi uma escancarada derrota. A condução do ataque foi leviana; a

estratégia de Tamandaré, de agir pelo rio apoiado no exército, “foi um desastre.”.997 O

pior revés das armas aliadas não foi, senão secundariamente, devida à ação das armas

inimigas, mas custou de qualquer maneira o sangue de, em que pese as imensas

imprecisões dos registros numéricos, 999 mortos, 2.978 feridos e 433 extraviados.998

O primeiro plano concreto dos aliados visando o aniquilamento do exército

paraguaio, concebido quando já tão avançada a guerra, ruiu ao primeiro passo. Um

esbaforido general Porto Alegre, coberto pela terra e sujeiras da batalha perdida explodiu

com o atônito Jaceguai: “[...] ‘Eis aqui o resultado do governo brasileiro não ter

confiança em seus generais e entregar a seus exércitos aos generais estrangeiros!’

[...]”.999 O secretário de Tamandaré, apesar das amargas recriminações que ouvia em

relação a Mitre, acreditava que Porto Alegre era tão responsável quanto Mitre pela

derrota.1000 A impossibilidade de se concatenar as vontades pessoais e conflitantes dos

chefes, geraram rusgas que rivalizavam com os objetivos da Aliança; rixas que

formavam a gênese de desfecho tão infrutuoso quanto sangrento, considerando os

objetivos da própria guerra, os objetivos dos Estados, ao se decidirem pela guerra.

O diagnóstico da situação entre os aliados não escapou aos olhos e ouvidos

atentos dos paraguaios, e pode ser recolhido por Paranhos após a guerra, conforme

registrado no jornal El Semanário, de Assunção, controlado pelo governo lopista:

996 ARGENTINA. Carta de Mitre a Marcos Paz, de 20 de setembro de 1866. Apud, FRAGOSO, op. cit., vol III, p. 110.997 JACEGUAI, op. cit. p. 137.998 SCHNEIDER, op. cit., vol II. Apêndice, nº 61, p. 375; DORATIOTO, op. cit., p. 245.999 JACEGUAI, op. cit. p. 131.1000 Na verdade Jaceguai não divide a nossa análise tendente à questões mais estruturais, considerando questões mais próximas e objetivas, como a desconsideração com o tremedal em que se havia tornado o campo fronteiro à fortaleza, e por onde tiveram que chapinhar os soldados aliados sob o fogo paraguaio.

252

Page 254: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

“Porto Alegre no obedece a las ordenes de Polydoro, y Tamandaré, el soberano de la armada imperial, no quiere tampoco entenderse para nada con Polydoro, formando de consiguiente una alianza contra Polydoro, sin admitir en esta Mitre á quien desprecian altamente. Resulta de aqui que hay un ejercito sin cabeza, o, mas bien dicho con muchas cabezas, haciendo impossible una operación qualquiera. Mitre, jefe in nomine del ejercito, está hacendo el papel mas ridículo del mundo.”1001

O gabinete imperial – presidido por Zacarias – por sua vez, não poderia mais

permitir o estado de coisas originado pela não aceitação das recomendações de

Paranhos, feitas um ano e cinco meses antes. Convenceu-se que deveria sacrificar alguns

de seus generais para o bem da Aliança,1002 pois Mitre parecia ter encontrado o seu

limite. Era hostilizado domesticamente por apoiar o Brasil, e era hostilizado em campo

pelos generais aliados “[...] não posso, não quero, nem devo entender-me com o

almirante Tamandaré, o qual considero inadequado em todos os aspectos para o posto

que ocupa e inimigo da aliança por motivos pessoais, para cujo sentimento arrasta a seu

primo Porto Alegre.”.1003

A longa permanência daquele estado de fracionamento presente na condução da

guerra, só pode prender-se ao fato de ser expressão da vontade do governo imperial,

vontade baseada menos no entendimento da guerra como um cometimento de Estado do

que uma questão de prestígio político no conjunto da estrutura doméstica de poder.

Jaceguai, sarcasticamente, justificativa os procedimentos de Tamandaré, por tanto tempo

à frente das forças brasileiras, como uma manifestação “[...] de considerações muito

elevadas de ordem política de que só os governos podem ser juízes.”.1004 Uma análise

mais objetiva da ação do Estado naquela crise, é fornecida por Otaviano,

plenipotenciário brasileiro no Prata, em uma carta para o antigo secretário de

Tamandaré: “[...] ‘As culpas de Tamandaré são filhas da fraqueza dos governos. Tanto

1001 EL SEMANARIO, 27 de outubro de 1866. Apud, PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 102. Grifos do autor.1002 JACEGUAI, op. cit. p. 1321003 ARGENTINA. Carta de Mitre a Elizalde, de 11 de outubro de 1866. Apud, DORATIOTO, op. cit. p. 246. Veja-se também as cartas de Mitre para Elizalde de 9 e 10 de outubro, à página 247.1004 JACEGUAI, op. cit. p. 74.

253

Page 255: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

se humilharam que ele se esqueceu de seu papel de militar para perder-se nas

diplomacias e na administração.’ [...]”.1005

De qualquer maneira o governo de Sua Majestade demonstrou reconhecer, pela

primeira vez, a inadequação da sua estrutura de comando na campanha. Reconheceu a

necessidade de rever suas posições partidaristas e obrar mais em consonância com os

objetivos do Estado. A situação fazia periclitar os gabinetes liberais. Em decreto de 10

de outubro de 1866 o comando comum do exército, e da esquadra, foram postos pela

administração liberal, sob a responsabilidade do unânime, embora conservador

Caxias.1006 As mudanças que o novo comandante das forças brasileiras precisou aplicar

na condução da guerra, por sua vez, refletiram todas as inadequações da estrutura militar

do Império. Haveria de transcorrer largo período de preparações e reestruturações, até

que ele julgasse os aliados capazes de finalmente sair do atoleiro de Tuiuti, num

movimento muito à feição do defendido por Mitre.

Os arrancos promovidos por Caxias finalmente levaram à tomada de Assunção,

em 1º de janeiro de 1869. Contudo, o grande desfecho, ou, melhor, o grande testemunho

dos limites que impediram o Estado imperial de estar preparado para uma aplicação

eficiente de força militar continuaram. Mesmo a vitória e as necessidades que obrigaram

ao estabelecimento de um aparato militar de porte não estimularam mudanças no

entendimento sobre a estrutura coercitiva imperial. Os gabinetes conservadores que se

seguiram a 1868 se encarregarão de um processo de desmobilização gigantesco,1007

como gigantesco fora o esforço para montar a máquina de guerra imperial. Ela não

sobreviveu às necessidade objetivas, criada pelos vizinhos platinos, e que justificaram a

sua montagem. Derrotado o inimigo externo urgia um retorno aos marcos iniciais e

basilares da sociedade imperial, escravista, agro-exportadora e civilista. A civilização

sustentada pela ordem que, sem inimigos externos, terá agora que se haver, entre outras,

com uma categoria social nova compondo a equação social e política doméstica: a dos

guerreiros formados nos charcos guaranis, embalados por novas pregações políticas.

1005 Idem, p. 1341006 PARANHOS, nota 2. In: SCHNEIDER, op. cit., vol II, p. 102; DORATIOTO, op., cit., p. 247.1007 DORATIOTO, op., cit., p. 448.

254

Page 256: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

CONCLUSÃO

A análise das questões referentes às relações externas, ou, política externa,

enquanto campo de atuação estatal remete-nos, forçosamente, ao campo da história

política. Quando a reabilitação da história política parece consolidada,1008 o grande

campo da pesquisa histórica está pronto a receber as polêmicas que rodeiam as

interpretações a respeito do comportamento do Império do Brasil em relação aos Estados

platinos. Ora, a política é o espaço da decisão. É o espaço do poder, “onde todas as

disputas sociais se decidem”,1009 neste sentido, no caso do Império, ela se identificava

com a práxis de diversos grupos de elite entretidos com seus interesses, lutando por eles

num contexto institucional que permite composições, andamentos e orientações muito

específicas e delimitadas nas políticas de Estado.

1008 JULLIARD, op. cit. passim.1009 BORGES, op.cit. p.14.

255

Page 257: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Percebemos, com olhar de viés algo sociológico, os mecanismos de

cristalização das estruturas sociais que emprestavam estabilidade, primeiro às demandas

de sobrevivência de grupos de elite na vida política doméstica brasileira e, depois, às

estratégias em relação ao exterior, ao Prata em geral e, especificamente ao Uruguai.

Consideramos que para a efetivação e perpetuação destes processos de estruturação

social, a educação desempenhou um papel fundamental como fator da reprodução

daqueles padrões e interesses sociais; reprodução entendida como conservação. É

possível inferir, a nosso ver, que a educação, o preparo intelectual, permitiu às elites

imperiais engendrar respostas e encaminhamentos aos seus problemas, talvez, muito

menos “políticos” no sentido da construção deliberada de uma estratégia de dominação,

do que, simplesmente a reiteração de condicionamentos que visava a sobrevivência, não

meramente biológica, mas primordialmente social.

Tais medidas “condicionadas”, dizem respeito aos limites dos sistemas

simbólicos predominantes então. Impossível desconsiderar, neste sentido, que os

sistemas simbólicos, enquanto construtores da realidade, exerceram um papel de

instrumentos de conhecimento, derivando daí um enquadramento da origem, natureza e

limites da cognição, de acordo com Bourdieu.1010 Vale dizer que, se o sujeito histórico

não está engessado deterministicamente à uma estrutura, ele compõe um complexo

social ao qual podemos atribuir algum “[...] consensus acerca do sentido do mundo

social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social: a integração

‘lógica’ é a condição da integração ‘moral’.”1011

A nosso ver, portanto, o problema imposto ao governo imperial pela eclosão da

Questão Oriental, recebeu o tratamento que lhe confere um caráter de grande resumo da

“tradição” imperial em lidar com o exterior – e não só o Prata - além de estar

conformado às possibilidades de solução presas à lógica do sistema doméstico de

relações políticas. Entendemos que esta “tradição” está ligada aos propósitos das elites

políticas do império, que gradualmente, desde a independência, consolidaram seus

espaços de participação política; espaços que permitiram influir no estabelecimento dos

1010 BOURDIEU, P. O poder simbólico. 8ª ed. Trad. F. Tomáz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005, p. 9.1011 Idem, p. 10.

256

Page 258: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

objetivos da política externa. Neste sentido, identificamos que, a partir do final da

Guerra Cisplatina, que significa o esgotamento das tradições herdadas do Estado

português, prevaleceu uma postura crescentemente voltada para os interesses atlânticos,

no que diz respeito às relações internacionais, principalmente nas baseadas no comércio

com a Europa e Estados Unidos.

É deste complexo doméstico que emerge para o historiador do Império o

problema do “Estado”; pareceu-nos um tanto evidente, considerar que aqueles seus

interesses fundadores haveriam de se projetar sobre as relações inter-Estados. Nelas foi

possível explorar as manifestações do Poder, ou, por outro lado, estratégias que visavam

o convívio com os vizinhos platinos, considerando interesses comuns e antagonismos

que cresceram em torno das necessidades e objetivos daqueles outros Estados.

Neste sentido, respondendo à primeira indagação que fazíamos na introdução,

quanto à natureza dos interesses das elites imperiais no Prata, acreditamos que o

tratamento dos assuntos relacionados àquela região tem um caráter compatível com a

complementaridade que lhe é conferida pelo comércio.1012 Havia a necessidade de

fornecimento do charque às escravarias e populações pobres, mas o Uruguai não era a

única fonte do produto, e, dado o tamanho do mercado brasileiro, qualquer que fossem

as condições de produção e taxação do produto, o seu consumo estava garantido pelo

Brasil. Por certo não havia necessidade de nenhuma ação impositiva para garantir que

aquele produto alcançasse o consumidor brasileiro. O caráter de complementaridade

aparece, também, do testemunho deixado pelas medidas imperiais referentes à Questão

Oriental; a natureza pouco incisiva que tradicionalmente desenvolvia em relação aos

seus vizinhos sulinos, se manifesta no sentido de permitir o alargamento da crise com o

governo uruguaio, o que acabou permitindo a atração de um personagem exógeno à crise

primitiva. O Paraguai de Francisco Solano López, executa sua aparição confusa,

dividindo-se entre estratégias divergentes, determinando a deflagração da Guerra do

Paraguai. Este desfecho nos permite considerar que a alegada existência de uma busca

do Império por exercer uma “hegemonia” em relação aos seus vizinhos não se verifica

1012 BUENO & CERVO, op. cit. p. 117.

257

Page 259: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

na verdade, por que careceu, minimamente, de uma definição estratégica clara. O que

dizer, então, dos mecanismos capazes de sua implementação, quer fossem de natureza

política como militar.

Nossa análise pretendeu a superação da noção mais ingênua que distingue

“país grande” de “país pequeno”, ou, “país mais forte” de “país mais fraco”, ou, ainda,

associa “país grande” a “país mais forte”, que parece permear certas análises sobre o

tema. Para citarmos um exemplo das idéias que trabalhamos como merecedoras de uma

nova abordagem, lembraremos a idéia de “política de potência”,1013 que admite que o

Império, a partir de 1850 teria podido impor sua vontade sobre os vizinhos platinos.

Neste sentido, para Clausewitz, “[...] ‘a moeda política é o poder, e este reside na

habilidade em conseguir a destruição física.’ [...]”.1014 Esta concepção coloca a idéia de

poder na dependência da existência de poder militar. É daí que Clausewitz constrói sua

filosofia da guerra: a guerra não é um fim em si mesma: “We see, therefore, that war is

not merely a political act but also a real political instrument [...] War therefore is an act

of violence intended to compel our opponent to fulfill our will.”.1015 Um instrumento

racional de política nacional, “[…] o seu propósito deve ser o da satisfação dos

interesses de um Estado nacional, o que justifica o empenho sempre muito custoso de

toda uma nação, posto a serviço do objetivo militar.”1016 Se guerra e política são

interconexas, a grande estratégia que leva à guerra “[...] deve derivar de objetivos

políticos de uma nação.”1017

Se a primeira e principal reflexão foi determinar quais eram os interesses do

Império no Prata, na República Oriental em particular, o próximo ponto a ser tratado foi

questionar a possibilidade do Império influenciar o comportamento dos seus vizinhos,

em especial no caso uruguaio e paraguaio. Considerando-se as possibilidades do Estado

1013 CERVO e BUENO. Op. cit. p. 109.1014 RAPOPORT. Apud, ALBUQUERQUE, Antônio Luiz P. e. Questões a propósito do pensamento sobre a guerra no Brasil, no século XIX. Revista Marítima Brasileira. Rio de Janeiro,114, 10/12, 169-178, 1994, p. 172.1015 CLAUSEWITZ, Carl Von. On War. New & revised edition. Translated by J.J. Graham. Introduction & notes F.N. Maude. 3 Volumes. London: Routledge & Kegan Paul, 1968, pp. 2, 23.1016 ALBUQUERQUE, op. cit. pp. 170-171.1017 SNEDEKER, E.W. The Conduct of War. U.S.N.I.’s Proceedings. Annapolis M.D., pp. 122-125, april 1962, p. 122.

258

Page 260: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

imperial em impor sua vontade à República Oriental do Uruguai, é de notar que o

convívio entre os Estados é uma relação entre comportamentos, que impõe um caráter

relacional: “[...] não existe Poder, se não existe, ao lado do indivíduo ou grupo que o

exerce, outro indivíduo ou grupo que é induzido a comportar-se tal como aquele

deseja.”1018 Neste sentido, o Poder, no campo das relações políticas, só se manifesta

quando capaz de determinar o comportamento alheio, fazer com que “o outro” aja de

acordo com a “nossa” vontade, ou, no “nosso” interesse, independentemente da “sua”

própria vontade.

É a partir desta perspectiva que entendemos as ações do governo uruguaio - o

governo do “país pequeno”- ocupado pelo partido blanco no momento da agudização da

crise com o Império. Aquele governo, mesmo com a aquiescência imperial em negociar

o novo Tratado de Navegação e Comércio, onde transpareceu a capacidade Oriental em

tirar do Império o que se lhe pedia, repetidamente, negou-se a atender os pleitos do

governo do Rio de Janeiro - o governo do “país grande” – a começar pela não aceitação

do Tratado de Permuta. Aliás, a declarada “dependência” 1019 uruguaia em relação ao

Brasil, que exerceria uma “tutela”1020 a partir dos tratados de 1851, de fato não impediu

aos sucessivos governos daquele país solicitar e conseguir modificar cláusulas e

tratados, nem mesmo as definições orientais em relação a um alinhamento com o

Paraguai.

Seguindo esta linha de argumentação, mais surpreendente foi a própria

intervenção do governo paraguaio, articulado por uruguaios e paraguaios, na crise que

crescia mais feia a cada dia, entre o Império e o Uruguai. Sendo o Paraguai, um “país

pequeno” possuía um exército muito superior ao imperial, fazendo-se, portanto, “mais

forte” que o “país grande”. O governo de Solano Lopez foi capaz de impor suas

condições, embora de maneira efêmera e inócua, ao governo de Sua Majestade Imperial

e ao da República Argentina, quando invadiu os dois países vizinhos, alegadamente, em

defesa do Uruguai. Neste sentido podemos perceber que o Império não foi capaz de 1018 BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. 2 vol. 5ª ed. Brasília: UNB: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000, p. 934.1019 BUENO & CERVO. op. cit. p. 112.1020 OLIVEIRA LIMA, 1989, p. 165.

259

Page 261: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

moldar o comportamento dos seus vizinhos “pequenos” e, no caso do Uruguai,

especificamente, se obriga à realização de represálias e, finalmente, a declarar-lhe

guerra. Neste sentido entendemos o recurso à violência, à guerra ou à mera intervenção

armada, a rigor, como a falência do exercício de Poder.1021 Sendo assim, o recurso do

governo imperial ao ultimatum Saraiva soa ao historiador, se não como uma denúncia,

como uma constatação.

Falhara a demonstração de poder. Uma vez que o governo uruguaio não se

vergava às exigências imperiais, o exército do Império se encarregaria de aplicar as

represálias julgadas necessárias. Para corroborar nossa argumentação quanto ao “poder”

imperial, pudemos demonstrar que o “exército de observação”, que deveria aplicar as

represálias contra o Uruguai não estava pronto para efetuá-las antes de outubro e, no

momento da entrega do ultimato, em agosto de 1864, carecia até mesmo de um

comandante designado! No caso da análise dos movimentos políticos do presidente

paraguaio, seria supérflua a aplicação desta nossa argumentação, visto que a agressão

guarani evidentemente não correspondeu aos anseios do governo imperial, conforme

vimos de demonstrar.

A nosso ver, as características nascidas das necessidades da condução da política

doméstica imperial emprestaram às iniciativas estatais um caráter peculiar que se

estendeu, por sua vez, ao âmbito das relações internacionais. O imbricamento vital entre

a sociedade política do Império e os principais interesses comerciais do país,

forçosamente o ligaram por relações também vitais com o hemisfério norte; para lá se

dirigiram os melhores esforços imperiais no campo das relações exteriores,

independentemente das inclinações partidárias.1022 Derivou destas constatações a

convicção de que, na verdade, pouca utilidade poderia ter a existência de um exército

devido à própria posição geográfica do Império. A desconsideração pelas questões

voltadas ao gerenciamento da violência, em suas manifestações externas, é o que se

identifica no Império comprometido, pelo menos até a década de 1880, em manter um

1021 BOBBIO, MATTEUCCI, PASQUINO, op cit. p. 935.1022 CERVO & BUENO, op. cit., p.62.

260

Page 262: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

caráter eminentemente civil.1023 Por certo o Exército gozou de limitado poder de

influenciar politicamente1024 a condução dos assuntos de Estado.

Nem mesmo a Marinha, num país tão dependente do mar, consegue atrair

cuidados maiores por parte do Estado.1025 Estes fatos se reforçam e se ligam de maneira

mais radical às determinantes internas das políticas externas, quando consideramos o

papel que as necessidades da estrutura escravista desempenharam na concepção e

implementação dos meios de coerção a serem utilizados pelo Estado. É o caso da criação

da Guarda Nacional, instituição que por si só testemunha o caráter das pretensões

brasileiras em termos de determinação de política externa do Império. A Guarda

Nacional, criada no momento em que setores das elites provinciais se convertiam em

elite política nacional,1026 tomou a si o papel que estas camadas políticas procuravam

para as instituições coercitivas do Estado.

A nosso ver, esta instituição revela que os principais interesses das elites

imperiais, no tocante à segurança do Estado, estavam na manutenção da ordem interna,

ao invés das questões com a segurança externa. A obra de Clausewitz vem à luz no

mesmo ano da criação da Guarda Nacional, analisando os desenvolvimentos ocorridos

no fenômeno da Guerra, enraizados no processo revolucionário nascido em 1889. A

Guerra, como conhecida nos períodos precedentes, gozava de um caráter especial,

espécie de arte reservada à nobreza; status que se modificou com a adoção de conceitos

revolucionários como o do “povo em armas”, a ser alimentado pelo “patriotismo”

nascido das necessidades de sustentar a França contra a reação monárquica européia.

Uma atividade de natureza estatal, voltada à relação com outros Estados,1027 que no

Brasil escravista, a rigor, sofreu um enxugamento para adaptar o modelo francês ao

“povo” brasileiro contemplado pelo recrutamento para a tarefa da defesa , não da pátria

– outro enxugamento – mas da ordem interna.

1023 SCHWARCZ, op. cit., p. 299.1024 CARVALHO, 2003, op. cit. p 55.1025 MARTINS, op cit.1026 Cf. DOHLNIKOFF, op. cit.1027ALBUQUERQUE, op. cit., pp. 170-171.

261

Page 263: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Daí nossa ênfase, nosso esforço de apreensão do Estado Imperial. Quais as suas

inclinações e como elas poderiam refletir-se nas suas relações com os Estados platinos.

Foi preciso considerar, ainda que minimamente, a evolução destas relações, se não em

todos os seus marcos mais expressivos, pelo menos a partir da Guerra contra Oribe e

Rosas e os tratados de 1851 e 1852 com o Uruguai. Acreditamos que estes eventos

extraordinários manifestaram certos padrões no que diz respeito ao comportamento do

Estado imperial em relação aos seus vizinhos, padrões que se repetiram e, em verdade,

permitiram a eclosão da Questão Oriental enquanto tal, e o surgimento do seu

desenvolvimento mais funesto, a Guerra do Paraguai. A identificação destas

comunalidades ofereceu os indícios nos quais embasamos nossas hipóteses, que nos

afastaram decisivamente do que de comum se confere ao Império no tocante à políticas

relativas aos países do Prata: “Moreover, in the end Paraguay achieved its principal goal

– wich was to retain its autonomy, despite the hostile states that sought to dismember

it.”1028

Da bibliografia a que temos consultado não surgiu, entretanto, que interesses

havia na região platina que poderiam ter determinado, exclusivamente entre as décadas

de 1850 e 1870,1029 uma política imperial agressiva naquela região. Estas questões ainda

estão por serem demonstradas por parte de seus defensores. A nosso ver, o Império

formulou respostas específicas aos problemas surgidos em diferentes momentos

demonstrando a falta de uma estratégia definida bem como os meios de implementá-las

com aqueles objetivos. Os desenvolvimentos políticos nos demais Estados platinos, mas

principalmente no Uruguai, conjugados com as estruturas da sociedade imperial,

refletidas sobre e a natureza das organizações militares e diplomáticas do Império,

naquele período, deram origem a políticas meramente reativas. A falta de um aparelho

militar organizado é uma demonstração da impossibilidade do Império estruturar uma

estratégia para o Prata, que pudesse admitir sua sustentação pela violência.

1028 REBER, op. cit., p. 319. Grifo nosso. Ver também: DORATIOTO, op cit. pp. 46, 53, 77; SALLES, 1990, pp. 49-51.1029 BUENO & CERVO, op. cit. p.11; SALLES. 1990, p. 44.

262

Page 264: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

A rigor, no campo diplomático o Brasil demonstrou a mesma inadequação no que

toca a demonstração de uma política externa pró-ativa, consciente de seus objetivos,

agindo de acordo com cálculos que considerassem fins e meios. Com o Paraguai, por

exemplo, havia a questão envolvendo a delimitação da fronteira comum, na região do sul

do Mato-Grosso. Era um impasse herdado do Tratado de Madri, de 1750, no qual

Portugal e Espanha pretenderam assentar suas fronteiras nos confins americanos. Em

1862, esgotara-se uma moratória de seis anos acordada em 1856 entre os dois países, no

tocante às negociações sobre aquela fronteira. Naquela ocasião, comprometeram-se a

manter o status quo no tocante à ocupação, devendo retomar as negociações a partir de

1862. Nada se verificou no campo da diplomacia, contudo, a partir daquele ano, quer de

paraguaios quanto de brasileiros, sequer para a retomada das negociações.

Assim como a falta de um esforço para armar o Império, na eventualidade de um

recrudescimento das rivalidades com os guaranis, ao final da moratória, a necessidade de

um posicionamento diplomático consistente para aquele fim não pareceu tirar o sono das

elites políticas imperiais. Não se organizara, em seis anos, um plano de ação por parte da

diplomacia brasileira de maneira a contornar ou dar solução a um problema da ordem

das relações exteriores, que trazia o potencial de acarretar conseqüências sérias, como o

demonstraram a quase confrontação de 1855. Estes fatos nos pareceram reveladores, e

na verdade demonstram um caráter de, como já dissemos, se não desimportância, pelo

menos de mera complementaridade, que as questões platinas representavam no conjunto

dos interesses do Estado imperial.

Os tratados de 1851 com o Uruguai, a despeito de qualquer discussão sobre sua

legitimidade, desempenharam o papel de instrumentos de regulação, de estabelecimento

parâmetros de convivência, que procurava superar a barbárie de um meio ainda pouco

tocado pela ação civilizadora do Estado. De alguma maneira, a fronteira manteve-se

infensa, não completamente submetida, à ordem, conforme emanada da corte. Fazia

prevalecer a vontade dos grandes locais – dos caudilhos, conforme entendidos à época -

senhores possuidores de largas clientelas mantidas pelos favores e laços os mais

263

Page 265: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

variados inclusive os matrimoniais. Neste sentido, aqueles dramas gerados na, e pela

fronteira, também expuseram os limites do Estado dentro do próprio território imperial.

Por outro lado, a inexistência de guerras convencionais, ou, formais entre o Brasil

e seus vizinhos pode ter levado a historiografia a considerar um predomínio da

diplomacia como um biombo que escondia a política da violência, reservada para

manifestações de “[...] força [...] somente em áreas onde seu emprego oferecesse

garantias de sucesso.”.1030 A compreensão das questões de política externa, analisadas a

partir da dialética do mundo político imperial permitem superar estas explicações

monolíticas, em “blocos”, como as que atrelam os acontecimentos às classes. Elas tem a

inconveniência de se apresentarem desconsiderando as contradições das estruturas

domésticas do Império, principalmente as contradições que antepunham os partidos

políticos e, dentro e fora deles o influxo das atitudes individuais. É deste quadro que se

combinaram as insuficiências explicativas sobre as relações do Império com o Uruguai

especificamente, e com o Prata de uma maneira geral. É mister aplicar às manifestações

da política externa, inclusive às guerras, desenvolvidas pelo Império, as manifestações

daquelas contradições: das posições partidárias travestidas de políticas de Estado, da

ação individual e objetiva dos agentes imperiais quando confundidas com o Estado,

principalmente.

É esta a trilha que pretendemos traçar, conduzindo nossa análise até a batalha de

Curupaity, em 22 de setembro de 1866. Pretendemos estabelecer que a mudança

estrutural pela qual passou a organização militar brasileira, após aquela data, foi devida à

manifestação de todo o conjunto de inadequações e contradições do Estado imperial para

desenvolver uma relação agressiva em relação aos seus vizinhos; inadequações e

contradições quer político/diplomáticas como militares. Mesmo após aquela derrota

aliada e a chegada de Caxias, seguiu-se um longo período de estabilidade das linhas

aliadas, para que aquele general pudesse imprimir a ordem que julgava necessária ao

exército brasileiro. Simplesmente não puderam mais do que se entrincheirar diante das

linhas de defesa paraguaias, a mesmas linha de Rojas.

1030 CERVO & BUENO, op. cit., p. 60

264

Page 266: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Contudo, mesmo após a assunção de Caxias como comandante-em-chefe das

forças imperiais, aquelas deficiências estruturais do Império para a condução de um

conflito externo perduraram, e haveria, no limite, de determinar a intervenção pessoal do

Imperador para remover os liberais do governo, em 1868. Somente dez meses após a

derrota de Curupaity, em 22 de julho de 1867 inicia-se a famosa “marcha de flanco” de

Caxias, um arremedo do seu plano inicial, de 1865, idéia que havia sido tão cara a Mitre,

também, procurando desbordar as defesas paraguaias ao redor de Humaitá, e penetrar o

seu sistema defensivo.

Apesar de todas as ineficiências imperiais, Solano Lopes morreu lanceado pelo

cabo Juca Diabo, em março de 1870. Naquele momento parece ao império que todos os

esforços dispendidos nos anos precedentes o dotaram de um aparato militar capaz de

sustentar seus interesses junto aos seus vizinhos. Não obstante, a estrutura da sociedade

imperial, conforme pretendemos expor no desenvolvimento do trabalho, fecha o círculo

sobre o “evento” Guerra do Paraguai, e retorna ao arranjo preexistente, desmobilizando

as tropas, procurando anular o seu potencial de desestabilização da ordem.1031 Como

acontecera após a derrota de Rosas em 1852, assim se repete em 1870: um retorno à

manutenção da ordem modelar inicial, apartada do Prata; proporcionalmente apartado,

na medida em que se distanciava das demandas da sociedade escravista e agro-

exportadora.

1031 SALLES, 2003, p. 190.

265

Page 267: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

BIBLIOGRAFIA

FONTES

BURTON, Richard F. Cartas dos campos de batalha do Paraguai. Trad. e notas José Lívio Dantas, 2ª reimpressão. Rio de Janeiro: Bibliex, 2001.

CERQUEIRA, Dionísio. Reminiscências da Campanha do Paraguai. Rio de Janeiro: Bibliex, 1980.

JACEGUAY, Artur Silveira da Mota, Barão de. Reminiscências da Guerra do Paraguai. 2ª ed rev. e at. Rio de Janeiro: SDGM, 1982.

JOURDAN, Emilio Carlos. Historia das Campanhas do Uruguay, Matto Grosso e Paraguay, Brazil 1864-1870, Primeiro Volume – 1864-1865, Uruguay. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893. (a)

______________________ Historia das Campanhas do Uruguay, Matto-Grosso e Paraguay, Brazil 1864-1870, Segundo Volume – 1864-1865, Matto-Grosso. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1893. (b)

______________________ Historia das Campanhas do Uruguay, Matto-Grosso e Paraguay, Brazil 1864-1870, Terceiro Volume – 1865 a Abril de 1866, Riachuelo, Uruguayana ao Passo da Pátria. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1894.

266

Page 268: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

MADUREIRA, A. de Sena. Guerra do Paraguai. Resposta ao Sr. Jorge Thompson, autor da “Guerra Del Paraguay” e aos anotadores argentinos D. Lewis e A. Estrada. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.

MAUÁ, Irineu E. de S. Visconde de. Correspondência política de Mauá no Rio da Prata (1850-1885). Prefácio e notas de Lídia Besouchet. 2ª ed. São Paulo. Cia. Ed. Nacional; Brasília: INL, 1977.

SCHNEIDER, Louis. A Guerra da Triplice Alliança/ Imperio do Brazil,Republica Argentina e Republica Oriental do Uruguay contra o governo da Republica do Paraguay(1864-1870). Vol I. Com cartas e planos por L.Schneider. Rio de Janeiro: H.Garnier,1902. Traduzido do Allemão por Manoel Thomaz Alves Nogueira; Annotado por J.M. da Silva Paranhos.

SOUZA, Paulino José Soares de. “Ensaio sobre o Direito Administrativo”. José Murilo da Carvalho (org), Visconde do Uruguai. São Paulo: 34, 2002.

TAUNAY, Alfredo d´Escragnole Taunay, Visconde de. A retirada da Laguna. 12a

edição. Traduzida por Afonso de E. Taunay Rio de Janeiro.Melhoramentos 1936.

________ Em Matto Grosso invadido 1866-1867. São Paulo: Cia Melhoramentos, s.d.

________ Memórias do visconde de Taunay. Rio de Janeiro: Bibliex, 1960.

VERSEN, Max Von. História da Guerra do Paraguai. Trad. Manuel Tomás Alves Nogueira; apres. Mário Guimarães Terri. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1976.

Iconografia

CANDIDO Lopez. A Campanha do Paraguai, de Corrientes a Curupaiti. apresentação de Marcos Tamoyo. São Paulo: Record, 1973 – 13 páginas numeradas de 1 a 13 e 48 pranchas a cores.

CANDIDO Lopez. Introducción Augusto Roa Bastos. Texto Marcelo Pacheco. Buenos Aires: Banco Velox, 1998.

HISTORIOGRAFIA

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed. 2ª tir. Trad. Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

ABREU, J. Capistrano de. Capítulos de História colonial. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982.

267

Page 269: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

ALMEIDA, Paulo Roberto de. Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império. São Paulo: SENAC; Brasília: FUNAG, 2001.

AYRES, Fernando Arduini e LAROSA, Marco Antônio. Como produzir uma monografia passo a passo...siga o mapa da mina. Rio de Janeiro: WAC, 2003.

BARKER, A.J. Kamikases. Trad. Nacif Japour. Rio de Janeiro: Renes, 1975.

BARROS, A. T. de M. (ed).Holocausto sul-americano;1864-1870 a destruição do Paraguai. Niterói: UFF-IACS, 1999.

BARROS, J. D’Assunção. O projeto de pesquisa em história- da escolha do tema ao quadro teórico. Rio de Janeiro: s.e. 2002.

BARROSO, Gustavo. O Brasil em face do Prata. 2a ed. Rio de Janeiro: Bibliex, 1952.

BASILE, Marcello O.N. de C. O Império brasileiro: panorama político. In: LINHARES, M.Y.(org). História Geral do Brasil. 9ª ed. Rio de Janeiro: Campus, 2000, pp. 188-301.

BERNARDES, Denis. Um Império entre Repúblicas: Brasil século XIX. 5ª ed. São Paulo: Global, 1997.

BETHELL, Leslie (org). História da América Latina: da independência a 1870. Vol. III. Rad. Maria Clara Cescato. São Paulo: EDUSP: IOE; Brasília: FUNDAG, 2001.

BLOCH, Marc. Introdução à História. 4a ed. s.l.: Europa-América, s.d.

BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de Política. 2 vol. 5ª ed. Brasília: UNB: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.

BOURDIEU, P. O poder simbólico. 8ª ed. Trad. F. Tomáz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

BRAY, Arturo. Solano Lopez, soldado de la gloria y del infortunio. 3a ed. s.l. Carlos Schaumann, 1984.

BURUCUA, J.E. & CAMPAGNE, F.A. Mitos y Simbologias Nacionales em los Países Del Cono Sur. In: ANINO, A. & GUERRA, F.X. (coord.) Inventando la Nación – Iberoamérica – Siglo XIX. México. Fondo de Cultura Econômica, 2003, pp. 433-474.

CALDEIRA, Jorge. Mauá: empresário do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

CANDIDO, Antônio. Um funcionário da monarquia: ensaio sobre o segundo escalão. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2002.

268

Page 270: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

CARDOSO, Ciro F. S. Uma introdução à História. São Paulo: Brasiliense, 1983.

__________________ & VAINFAS, Ronaldo (org). Domínios da História ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.

__________________ Um historiador fala de teoria e metodologia: ensaios. Bauru: EDUSC, 2005.

CARVALHO, J. M. de A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CATTON, Bruce. Picture History of the Civil War. New York: American Heritage, 1988.

CERVO, Amado Luiz e BUENO, Clodoaldo. História da política exterior do Brasil. 2ª ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2002.

CHARTIER, R. A história cultural: entre práticas e representações. Trad. Maria M. Galhardo. Lisboa: DIFEL, 1990.

CHIAVENATO, Júlio J. Genocídio americano, a Guerra do Paraguai. 1a ed. São Paulo: Moderna, 1998.

CLAUSEWITZ, Carl Von. On War. New & revised edition. Translated by J.J. Graham. Introduction & notes F.N. Maude. 3 Volumes. London: Routledge & Kegan Paul, 1968.

DOHLNIKOFF, Miriam. O pacto imperial; origens do federalismo no Brasil. São Paulo: Globo, 2005.

DORATIOTO, F. Fernando M. Maldita Guerra: nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Cia das Letras, 2002.

ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigação sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Trad. Pedro Süssekind; prefácio, Roger Chartier. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3ª ed. Rev. São Paulo: Globo, 2001.

FLORENTINO, Manolo e FRAGOSO, J.L. O arcaísmo como projeto. Mercado atlântico, sociedade agrária e elite mercantil em uma economia colonial tardia; Rio de Janeiro, c.1790-c.1840. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

FRAGOSO, Augusto Tasso. História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai: 5 volumes. Rio de Janeiro: Imprensa do EME, 1934.

269

Page 271: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

________________________ A Revolução Farroupilha (1835-1845). Rio de Janeiro: s.e. 1939.

_______________________ A batalha do Passo do Rosário. 2ª ed. Rio de Janeiro: Bibliex, 1951.

FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 30ª ed. São Paulo:Cia. Editora Nacional, 2001.

GOLDMAN, N. & SALVATORE, R. Introducción. In: GOLDMAN, N. & SALVATORE, R. (compiladores). Caudillismos Rioplatenses; nuevas miradas a um viejo problema. Buenos Aires: Eudeba, 1998.

GOLIN, Tau. [Luiz Carlos Golin] A Guerra Guaranítica: como os exércitos de Portugal e Espanha destruíram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no Rio Grande do Sul (1750-1761). Passo Fundo: EDIUPF, Porto Alegre: Editora da Universidade - UFRGS, 1998.

___________ A fronteira. Volume 1. Porto Alegre: L&PM, 2002.

___________ A fronteira. Volume 2. Porto Alegre: L&PM, 2004.

GONÇALVES, Cleber Baptista. Casa da Moeda do Brasil. 2ª ed. rev., ampl. e atualizada. Rio de Janeiro: Casa da Moeda do Brasil, 1989.

GUIMARÃES, L.M.P.& PRADO, M.L. (orgs.). O liberalismo no Brasil imperial; origens conceitos e prática. Rio de Janeiro REVAN: UERJ, 2001, pp. 103-126.

HEIFERMAN, R. The Rising Sun. In: MAYER, S.L. (ed.). The Japanese War Machine. s.l. Bison Books, 1977, pp. 10-43.

HOBSBAWN, Eric J. A era das revoluções. EUROPA 1789-1848. Trad. Maria Tereza L. Teixeira e Marcos Penchel. 12ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

_________________ Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. 3ª ed. Trad. Maria C. Paoli e Anna Maria Quirino. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

HOUAISS A. e VILLAR, M. de S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1ª reimp. com alt. Rio de Janeiro: Objetiva, 2004.

JANCSÓ, István (org) Brasil: formação do Estado e da nação. São Paulo: Hucitec; Ed. Unijuí; Fapesp, 2003.

JULLIARD, J. A Política. In: LE GOFF, J. & NORA. P. História: novas abordagens. 2ª ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1986, pp. 180-196.

270

Page 272: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

JUNG, C.G. (org) O homem e seus símbolos. Trad. Maria L. Pinho. 19ª imp.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s.d.

KLINK, A. Cem dias entre céu e mar. 32ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

MANUCY, Albert. Artillery Through the Ages. Washington: Div. of Publication, National Park Service, 1985.

MATTOS, Ilmar R. de. O tempo Saquarema; a formação do Estado Imperial. 4.a ed. Rio de Janeiro: Access, 1999.

MAYER, S.L. Introduction. In: MAYER, S.L. (ed.). The Japanese War Machine. s.l. Bison Books, 1977, pp. 6-9.

MEE Jr, Charles L. A história da Constituição americana. Trad. Octávio A. Velho. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1993.

MELLO, Raul Silveira de. A epopéia de Antônio João. Rio de Janeiro: Bibliex, 1969.

MUNAKATA, K. Histórias que os livros didáticos contam, depois que acabou a ditadura no Brasil. In: FREITAS, M. C. de (org). Historiografia brasileira em perspectiva. 5ª ed. São Paulo: Contexto, 2003 p. 274- ss.

OLIVEIRA LIMA. O Império brasileiro 1821-1889. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1989.

_________________ D. João VI no Brasil. 3ª ed. Prefácio de Wilson Martins. Rio de Janeiro: Top Books, 1996.

PERARO, Maria Adenir. Bastardos do Império: família e sociedade em Mato Grosso no século XIX. São Paulo: Contexto, 2001.

PIPES, R. Propriedade e Liberdade. Trad. L.G. B. Chaves e C.H.P.D. da Fonseca. Rio de Janeiro: Record, 2001.

POMER, Leon. A Guerra do Paraguai, a grande tragédia rio-platense. 2a ed. Trad. Yara Perez. São Paulo: Global,1981.

PRADO JÚNIOR, Caio. História econômica do Brasil. 11ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1969.

SAKAI, S. Kamikaze, piloto suicida. 2ª ed. Trad. Noé Gertel. São Paulo: ABRASA, 1975.

SALLES, Ricardo. Guerra do Paraguai: escravidão e cidadania na formação do exército. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.

271

Page 273: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

_______________ Guerra do Paraguai: memórias & imagens. Int. Lilia Moritz Schwarcz. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2003.

SANTOS, Antônio Raimundo dos. Metodologia Científica a construção do conhecimento. 5ª ed. rev. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2ª ed. São Paulo: Cia. Das Letras, 2003.

SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades, 1981.

SMITH, W.H.B. & SMITH, J.E. The Book of Rifles. 3rd. ed. Harrisburg: The Stockpole Co. , 1965.

SODRÉ, Nelson Werneck. História Militar do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,1965.

SZMRECSÁNYI, T. & LAPA, J.R. do Amaral (orgs) História econômica da Independência e do Império. 2ª ed. rev. São Paulo: Hucitec/ UNESP/ Imprensa Oficial, 2002.

TORAL, André. Adeus chamigo brasileiro. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

VASCONCELLOS, Henrique Pinheiro de. Uruguay-Brasil; Commercio e Navegação 1851-1927. 2 vol. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1929.

VIANNA Helio. História diplomática do Brasil. Rio de Janeiro: Bibliex, 1958.

WINOCK, M. As idéias políticas. In: RÉMOND, R. (org). Por uma História Política. 2ª ed. Trad. Dora Rocha. Rio de Janeiro: FGV, 2003. MONOGRAFIAS THIESEN, L.M. A Questão Oriental: pequeno estudo bibliográfico sobre o Estado imperial, sua política externa e a eclosão da guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: FEUC – Centro de Estudos, Pós-graduação e pesquisa, 2003. Monografia final do curso de especialização em História do Brasil.

PERIÓDICOS

ALBUQUERQUE, Antônio Luiz P. e. Questões a propósito do pensamento sobre a guerra no Brasil, no século XIX. Revista Marítima Brasileira. Rio de Janeiro,114, 10/12, 169-178, 1994.

272

Page 274: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

BARATA, A. Mansur. Compasso e esquadro na sala de aula. Nossa História. Rio de Janeiro, Ano 2, nº 20 pp. 22-25, junho 2005.

BORGES, V.P. História e política: laços permanentes. Revista Brasileira de História. V. 11. Política e cultura. Nº 23/24. São Paulo, ANPUH, 1991, pp. 7-18.

CANDIDO, Roberto G. Portugueses e espanhóis no Rio da Prata – disputas territoriais. Revista Marítima Brasileira. S.D.G.M. Rio de Janeiro, pp 129-154, 1o trimestre de 1998.

CARDOSO, R. O derrubador brasileiro, de José Ferraz de Almeida. Nossa História. FBN, Rio de Janeiro, ano I, nº 8, pp. 24-27, junho de 2004.

CARVALHO, A.B.. Construção do modelo das chatas-canhoneiras da Guerra do Paraguai. Revista Marítima Brasileira. C.D.G.M. Rio de Janeiro, pp. 111-126, 4o

trimestre de 1995.

DUARTE, R.H. Um suíço acima de qualquer suspeita. Nossa História. FBN, Rio de Janeiro, ano I, nº 4, fevereiro de 2004, pp. 23-27.

GOMES, Ângela de Castro. Política: História, Ciência, Cultura etc. Estudos históricos. Rio de Janeiro, nº 17, pp. 59-84, 1996.

GUIMARÃES, M.L.S. Nação e Civilização nos trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história Nacional. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. 1/88.05-27. 1988.

ISECKSOHN, Vitor. Resistência ao recrutamento para o Exército durante as guerras Civil e do Paraguai. Brasil e Estados Unidos na década de 1860. Estudos Históricos. Rio de Janeiro. No 27.84-109. 2001.

KLEINPENNING, Jan M.G. Strong Reservations About “New Insights Into The Demographics of The Paraguayan War”; REBER, V.B. Comment on “The Paraguayan Rosetta Stone”; POTTHAST, Barbara & WHIGHAM, Thomas. Refining The Numbers: A response to Reber and Kleinpenning. Latin American Research Review. s.l., volume 37, number 3, 129-148, 2002.

MARTINS, H.L. A dramática aventura do Encouraçado Brasil. Revista Marítima Brasileira. Rio de Janeiro, 115, 4/6 pp. 85-95, 1995.

______________ A dramática aventura do Encouraçado Brasil. Revista Marítima Brasileira. Rio de Janeiro, 115, 7/9 pp. 217-221, 1995.

PESAVENTO, Sandra J. Fibra de Gaúcho, tchê! Nossa História. Rio de Janeiro, pp. 42-47, nº 2, dezembro de 2003.

REBER, Vera Blinn. The Demographics of Paraguay: A Reinterpretation of The Great War, 1864-1870. Hispanic American Historical Review. Durham, 68:2, 289-319, 1988.

273

Page 275: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

SNEDEKER, E.W. The Conduct of War. U.S.N.I.’s Proceedings. Annapolis M.D., pp. 122-125, april 1962.

TORAL, André. Guerra no Mercosul. Super- Interessante. São Paulo,13 , 32-41, Setembro 1999.

INTERNET

GOMILA, J. Alberto. In: MORENO, I.J.R. & DE MARCO, M.ª Patricios de Buenos Aires [on line]. Disponível na Internet via www. Edivern.com.ar/suplem.html. Arquivo capturado em 21 de maio de 2001.

274

Page 276: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Livros Grátis( http://www.livrosgratis.com.br )

Milhares de Livros para Download: Baixar livros de AdministraçãoBaixar livros de AgronomiaBaixar livros de ArquiteturaBaixar livros de ArtesBaixar livros de AstronomiaBaixar livros de Biologia GeralBaixar livros de Ciência da ComputaçãoBaixar livros de Ciência da InformaçãoBaixar livros de Ciência PolíticaBaixar livros de Ciências da SaúdeBaixar livros de ComunicaçãoBaixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNEBaixar livros de Defesa civilBaixar livros de DireitoBaixar livros de Direitos humanosBaixar livros de EconomiaBaixar livros de Economia DomésticaBaixar livros de EducaçãoBaixar livros de Educação - TrânsitoBaixar livros de Educação FísicaBaixar livros de Engenharia AeroespacialBaixar livros de FarmáciaBaixar livros de FilosofiaBaixar livros de FísicaBaixar livros de GeociênciasBaixar livros de GeografiaBaixar livros de HistóriaBaixar livros de Línguas

Page 277: O IMPÉRIO DO BRASIL, A REPÚBLICA ORIENTAL E A GUERRA DO ...livros01.livrosgratis.com.br/cp099882.pdf · política externa do Império do Brasil em relação à região do Rio da

Baixar livros de LiteraturaBaixar livros de Literatura de CordelBaixar livros de Literatura InfantilBaixar livros de MatemáticaBaixar livros de MedicinaBaixar livros de Medicina VeterináriaBaixar livros de Meio AmbienteBaixar livros de MeteorologiaBaixar Monografias e TCCBaixar livros MultidisciplinarBaixar livros de MúsicaBaixar livros de PsicologiaBaixar livros de QuímicaBaixar livros de Saúde ColetivaBaixar livros de Serviço SocialBaixar livros de SociologiaBaixar livros de TeologiaBaixar livros de TrabalhoBaixar livros de Turismo