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O Homem e a sua Circunstância Antes de: Exmº Sr Presidente da CAP e meu particular amigo Caras amigas Coordenadora de Departamento (Arlete Faria) e Delegada de Portuguêas (Lucília Cunha) Caros Colegas Caras antigas alunas/os Mui prezados Amigos Lai, Fabi e Maria Antes de mais um muito obrigado porque quisestes e pudestes estar aqui. É reconfortante a vossa presença. Peço-vos que todos me permitais uma palavra especial para ao antigos colegas que aqui estão. Caros colegas: Estive mais de 30 anos nesta casa e fui sempre muito acarinhado por todos vós. Senti, quantas vezes, a vossa ternura e a vossa tolerância. Obrigado…que isso não se esquece.

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O Homem e a sua Circunstância

Antes de:

Exmº Sr Presidente da CAP e meu particular amigo

Caras amigas Coordenadora de Departamento (Arlete Faria) e Delegada de Portuguêas (Lucília Cunha)

Caros Colegas

Caras antigas alunas/os

Mui prezados Amigos

Lai, Fabi e Maria

Antes de mais um muito obrigado porque quisestes e pudestes estar aqui. É reconfortante a vossa presença.

Peço-vos que todos me permitais uma palavra especial para ao antigos colegas que aqui estão.

Caros colegas:

Estive mais de 30 anos nesta casa e fui sempre muito acarinhado por todos vós. Senti, quantas vezes, a vossa ternura e a vossa tolerância. Obrigado…que isso não se esquece.

O Homem e a sua Circunstância

1. Introdução

Quando a amiga e colega Primavera Costa me sugeriu esta intervenção e depois de uma esfumada a vaidosa alegria do ser convidado, acometeu-me, de imediato, o pudor e um profundo temor. Mas vou dizer o quê? Pus de parte, naturalmente, a hipótese de uma oratio sapientiae, por a julgar sobremesa pesada para o fim de um dia de trabalho. Aliás poderia até acontecer que fosse tão rebuscado e barroco que incentivasse os ouvintes à sesta. Contudo, quando vi o convite que anunciava o homem e a sua circunstância, decidi-me: vou tertuliar sobre alguns momentos da minha vida e referir os ensinamentos que eventualmente deles retirei.

Com efeito, depois que nascemos e que começamos a absorver, esponjas sequiosas, todos os contributos da nossa circunstância, não mais abandonamos o comando que continuamente nos liga à nossa contiguidade afetiva. Torga afirmou-o de forma sublime:

Não tenho mais palavras. Gastei-as a negar-te… (Só a negar-te eu pude combater O terror de te ver Em toda a parte). Fosse qual fosse o chão da caminhada, Era certa a meu lado A divina presença impertinente Do teu vulto calado E paciente… E lutei, como luta um solitário Quando alguém lhe perturba a solidão. Fechado num ouriço de recusas, Soltei a voz, arma que tu não usas, Sempre silencioso na agressão. Mas o tempo moeu na sua mó O joio amargo do que te dizia… Agora somos dois obstinados, Mudos e malogrados Que apenas vão a par na teimosia.

Diz o povo que quem torto nasce torto morre. Às vezes, e numa tentativa de ser um pouco mais benevolente para com o esforço do homem na construção do seu caminho, o ditado tem variante: quem torto nasce tarde ou nunca se endireita.

“Eu sou eu e a minha circunstância”, disse o filósofo. Hoje, poderíamos também dizer: eu sou eu e as minhas estórias de vida.

Mas também aqui me questionei: e que interesse podem ter as minhas estórias de vida para os outros? O escritor brasileiro João Guimarães Rosa, num dos seus contos sobre um burrinho pedrês diz que “ a estória de um burrinho como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia

da sua vida”1 . Talvez por aqui me ousasse expor, muito embora não me visse, nem veja, um homem grande e muito menos um grande homem. Apenas um homem que já viveu muito e em muitas latitudes e quer viver mais. Ajudou-me à decisão ter-me lembrado das refutações que o causídico romano Marco Túlio Cícero tão bem explanou no seu livro DE SENECTUTE DIALOGUS seu Cato Maior (diálogo acerca da velhice ou “Catão,o Velho”).

Cícero, que nasceu no ano 106 a.C., viveu duas épocas marcantes na história de Roma: a época de Mário e a época de César. A primeira “ é uma época agitada, de tendências opostas, rica de germes novos, em literatura não menos que em política” e “onde custam a desaparecer formas antiquadas e, ao lado destas, afirmam-se correntes de novidade revolucionária”.2 A segunda, a época de César, e de acordo com Salústio no seu De Coniuratione Catilinae, assistimos ao “desabamento dos valores morais em Roma e ao início da decadência”3.

Ora Cícero acabou por “personificar, com profundidade exemplar, o mal estar da sua época”4.

No DE SENECTUTE DIALOGUS, publicado em 44 a.C., quando o autor tinha já 62 anos, Catão responde a algumas recriminações que ouviu a cidadãos da sua cidade contra a velhice e refuta, pormenorizadamente, as 4 acusações principais (a velhice afasta os homens da vida ativa, debilita-lhes o corpo, priva-os dos prazeres e é um tempo próximo da morte) deste jeito:

1ª A velhice não afasta necessariamente os homens da vida ativa porque há uma atividade muito própria dos velhos: muitos continuam a servir a pátria com a sua prudência e autoridade; outros entregam-se ao estudo das letras e das ciências; alguns, ao cultivo das terras.

Portanto a velhice não é necessariamente ociosa, mas ativa.

2ª Se as forças corporais diminuem, muitas vezes devido aos vícios da juventude, permanecem e aumentam as do espírito. As forças corporais não foram necessárias a tantos jurisconsultos, nem a tantos oradores nem a muitos homens célebres pelos seus factos guerreiros. A força física não é necessária porque as funções que os velhos têm que desempenhar são diferentes. Além disso, também os jovens acabam por sofrer dos mesmos achaques dos velhos.

3º A velhice não priva os homens de todos os prazeres … priva-os apenas dos maus e perigosos para as nações e para os indivíduos. Não os priva do prazer dos banquetes moderados, dos estudos, da agricultura, da autoridade, das honras.

4ª Por estar próxima da morte não deve a velhice ser menos prezada. Com efeito, a morte tanto ameaça os novos como os velhos; a morte dos jovens é, ordinariamente, mais violenta e custosa que a dos velhos. À morte segue-se uma vida eternamente feliz. Em vez de a temermos, devemos desejá-la.5

Perguntareis porque venho aqui com o de senectute e a resposta é simples: Porque estou mais próximo da velhice do que a maioria de vocês, acumulei já 64 anos de vivências várias e é meu desejo não apenas ter uma velhice ativa como ainda pôr ao serviço comum a minha experiência e as minhas aprendizagens.

Talvez, neste sentido, me possa considerar um homem grande e assim sendo a minha estória poderia resumir-se à vivência de um dia. Mas porque temo que apenas um dia não chegue, talvez porque não seja tão grande assim, aqui partilho alguns momentos mais marcantes do meu percurso.

2. Algumas Estórias de Vida

1 O Burrinho pedrês, SAGARANA, João Guimarães Rosa, Ed Nova Fronteira, 28ª ed., p. 12) 2 História da Literatura Latina, Ettore Paratore (trad. Manuel Losa, S.J.), Fund. Calouste Gulbenkian, p. 155 3 Ettore Paratore, idem, p. 163 4 Ettore Paratore, Idem, p. 179 5 Selecta latina, José Pinheiro, S.J., Livraria A.O., 1960

2.1. A minha infância

Nasci no seio de uma família rural, profundamente católica. Minha mãe era uma mulher viva, pragmática e sadiamente brejeira. Meu pai, ainda vivo e com 95 anos, foi sempre um poeta, um sonhador e amante da música. Com 17 anos comprou um saxofone. Tocou banjo e cavaquinho. Doente, com pneumónica, desenhou a tinta da china, com um estojo que meu tio António lhe havia trazido de Lisboa, vários escritores portugueses: Eça, Camilo, Júlio Dinis, Antero de Quental, etc. Foi o meu primeiro contacto com esses nomes. Contudo, depois de uma violenta canada que lhe inflamou a cabeça, não acabou a 4ª classe mas comprou, aos 15 anos, um dicionário de Português que mais tarde acabou por ser também o meu 1º dicionário.

Era (era porque hoje vive mais o mundo que lhe é contíguo) um artista que nos contava muitas histórias e repetia as fábulas de Fedro e La Fontaine, autores que naturalmente desconhecia. E era de tal jeito que no arrumo da casa e no amanho das terras tinha a preocupação do poeta que lambe os seus versos na busca da perfeição. Dois episódios a título de exemplo: arrendávamos o milho na Leira Nova, o terreno onde hoje tenho a minha casa. O trabalho consistia em arrancar milheiros mais fracos, desbastar a sementeira para que os outros crescessem mais fortes e sadios e fazer bordos de terra para que durante a rega as águas permanecessem algum tempo em cada canteiro. Meus amigos: aquilo tinha de ser trabalhado com régua e esquadro, que o bem feito é sempre bonito, dizia. Linhas retas e bordos alisados com a parte de fora da sachola, como convinha a um perfeccionista. A um poeta. Poeta da natureza e da vida e das histórias. Uma outra vez, por coincidência nessa mesma leira, vindimávamos. Uma das vinhas encostava de tal jeito à do vizinho que os ramos se entrelaçavam e nesta convivência já não sabíamos que cachos eram de quem. Mas ele sabia e porque eu, inadvertidamente, cortei um bonito e gordo cacho que afinal pertencia ao vizinho, lá tive de ir a casa do Lages entregar-lho e pedir-lhe desculpa pelo erro. Eu tinha 11/12 anos.

De meus pais aprendi muito, naturalmente: de minha mãe, o seu optimismo, a sua graciosidade, a sua brejeirice, a sua honestidade, a sua preocupação de marketing e o seu conceito de higiene e imagem pública (nunca saía de casa nem vinha ao portal atender quem a procurasse sem se lavar e pôr um avental um pouco mais a jeito que, dizia, em casa pode entrar-se sujo porque vimos de trabalhar, mas de casa nunca se deve sair sujo); de meu pai aprendi a honestidade, o perfeccionismo, o amor à música, o amor à arte, o amor aos outros.

Dos dois aprendi a tolerância e o diálogo. Estiveram casados mais de 60 anos. Vivi com eles 26 e nunca os vi deitarem-se zangados. Discutiam? Claro. Mas resolviam as suas discussões antes da cama e quantas vezes, depois, não raro os vi rirem-se delas.

Sonhava um dia cumprir-me assim.

2.2. O Seminário

Talvez por influência de meu pai ou do meu tio António de Lisboa6, ou não, eu adorava o palco. Estar na ribalta dava-me pica e toda a minha testosterona entrava em ebulição. Ver um padre, na missa, ator principal, bem vestido e falando, falando, falando sem ninguém o contrariar era coisa radical. Eu tinha 9 anos e queria ser padre. Até porque se assim não fosse teria pela frente uma vida de arrancador de batatas, semeador de milho, vindimador e quejandas situações. Sem dúvida profissão digna mas carregada de muitos sacrifícios. Depois, o pároco da minha paróquia tinha sempre empregadas jovens, bonitas, cheirosas. Não. Padre é que era bom. E disse a meu pai. Que estava doido. E dinheiro? Que não havia problema. Disse-lhe o pároco. Ele falaria lá no seminário para que amenizassem o pagamento, mas alguma coisa terá de pagar que terrenos não lhe faltam, senhor Luis.

6 O irmão mais velho de nosso pai era o Tio de Lisboa. Ficava bem dizer de Lisboa. Dava-lhe vida, vivências, percursos de capital. Depois falava muito bem. Pudera! Tinha ido para grande cidade aos 15 anos e estudara construção civil na Universidade Popular de Bento de Jesus Caraça e era Construtor Civil diplomado – assim fazia questão de o dizer - e acompanhava à guitarra o Alfredo Marceneiro e falava-nos das ruas direitas da capital e da sua “primeira ida às putas”, na rua de Seitães, em Viana.

E não. Faltava o dinheiro.

E acabei por ir. Para o diocesano de Braga e logamente, ainda antes de lá entrar, passei a ser um nº, o 501. 501 em tudo: nos lençóis, nas mantas, nas fronhas, nas camisas, nas calças, nas meias, nos lenços e até nas cuecas.

Estive lá sete anos: 4 na tamanca (Seminário Menor), 1 no conciliar (seminário Maior – Teologia) e dois em Santiago (Seminário Maior – Filosofia). Pelo meio, muita vontade de fugir, outra tanta de ficar e uma devoradora paixão por uma jovem que conheci no Hospital de S. Marcos onde ia fazer umas sessões de raios qualquer coisa num calcanhar que muito me doía e impedia a mobilidade. Quando já era suposto não ter dores, eu continuava a dizer que me doía ainda muito. O médico perplexava-se pois nenhum dos exames mostrava a anomalia inicial. Não podia ser. Eu tinha a certeza que me doía? Oh dr, claro que dói! Bom, mais uma semana. O que nunca lhe disse é que a dor já não era bem no calcanhar mas tinha subida cerca de um metro Era agora no coração. Certa vez, o dr entra no hospital e apanha-me em alegre cavaqueira com a jovem. Impacientei-me. Ele sorriu. E na consulta desse dia deu-me alta, à experiência. E até hoje nunca mais me doeu o calcanhar. O coração? Às vezes.

Mas fiz mais, nestes 7 anos. Fiz teatro e em 66 lutei para que nos deixassem ver teatro na TV, às 4ªs feiras. O reitor, o cónego Luciano, aqui de Alvarães, não queria. Fui bater à porta de outro vianense, o professor AMADEU TORRES ( CASTRO GIL na poesia). O reitor assentiu, mas nos intervalos tínhamos de desligar o aparelho que os anúncios eram pornográficos. Era minha a responsabilidade.

Escrevi poesia e participei em concursos. Um deles ganhei-o eu.

Neste 7 anos voltei a apaixonar-me, agora por uma vizinha de nossa casa. Deixava-lhe cartas sob uma pedra do nosso muro meeiro e no dia seguinte recebia, pelo mesmo meio, a amorosa resposta. A fantasia durou até meu pai se aperceber.

Nestes sete anos, aprendi o valor da disciplina, do cumprimento de horários. Entusiasmei-me com os rituais. Aprendi a estar horas a fio a ouvir concertos de piano e a ser parte ativa em sessões públicas. Encenei pequenas peças e tremi como varas verdes com as disputationes filosóficas.

Nestes 7 anos aprendi a ler muito. Lia, nas férias, montanhas de romances que ia buscar à itinerante da Calouste Gulbenkian. Li Júlio Dinis, Camilo, Eça, Erich Maria Remarque, Somerset Maugham, Maquiavel, Leon Uris, Gorki, Tolstoi, etc. etc.

2.3. O teatro e o associativismo

Chegou 1967. Disse ao meu pároco que queria abandonar o seminário. O homem já devia estar à espera pois não se mostrou espantado. E lá comunicou aos meus pais. Oh sofrimento indigno. Eles que já se viam progenitores de um sr Abade! Durante cerca de 6 meses a mágoa do meu pai foi tão profunda que deixou de me falar. Eu continuava a admirar o artista que ele era. Mas ele não me falava.

É nesse ano que fundo o GAT – Grupo Amador de Teatro da Meadela – que irá, depois de fundarmos a ACEP, chamar-se Grupo Cénico da Meadela. Encenámos peças como o Falar Verdade a Mentir de Almeida Garrett, o FOSSO de Jaime Gralheiro, A traição do Padre Martinho, de Bernardo Santareno, etc.

Li, entre outros, Luiz Francisco Rebelo7, Luso Soares8, Konstantin Stanislavski9, Jerzy Grotowski10, Richard Southern11, Jan Doat12 e Bertolt Brecht13.

7 História do Teatro Português 8 Teatro Vanguarda, Revolução e Segurança Burguesa 9 A Preparação do actor 10 Para um teatro Pobre 11 Manual sobre a montagem teatral para amadores e profissionais 12 Léxpression Corporelle du comédien

Aprendi cenografia e direcção de atores com o Lucilo Valdês e o Dantas. Aprendi ser importante avaliar o espectáculo pelo que a partir de certa altura postava-nos sempre um ou dois, à saída das salas, e questionávamos o público para percebermos a reacção14.

Aprendi a dirigir grupos, a dirigir pessoas, a dirigir reuniões. Aprendi ser necessária pontualidade e muita disciplina para que ensaios e espectáculos não falhassem. Aprendi a ser rigoroso no trabalho, pelo menos pelo respeito devido ao público. Foi um úbere tempo de aprendizagens que mais tarde me foram muito úteis quer no CCAM – Centro Cultural do Alto Minho -, em cujo nascimento participei ativamente, quer na Academia de Música, de que fui o sócio nº 6 e a cuja Direção presidi durante um mandato

2.4. O serviço militar

Chegou entretanto o Serviço Militar obrigatório. Tinha 20 anos. Aprovado para todo o serviço, mandaram–me, primeiro para as Caldas, depois para a Escola do Serviço de Saúde em Coimbra e mais tarde estagiei no Hospital Militar de Tomar, com o Dr Tamagnini. Fizeram-me enfermeiro. Um dia, aí mesmo em Tomar, chegou a notícia: dois para Angola; dois para Moçambique; um para Timor e o Zé de Viana para a Guiné. Desatei a chorar. Sem rede. Para a Guiné ia-se. O regresso não era certo.

Uns dias antes do Natal de 71, saíamos das Devesas, Gaia, rumo ao Cais de Alcântara onde nos aguardava o NIASSA. Não disse aos meus pais nem à Lai, com quem já namorava, que ia partir. Enviei-lhes, de Alcântara, um parco postal, escrito quase na hora de entrar no navio: vou partir para a Guiné. Não fui capaz de vos dizer. Um beijo.

E tantas lágrimas vertidas.

Chegamos ao arquipélago dos Bijagós na 1ª semana de Janeiro de 72. Desembarcamos em Bolama, logo de seguida, e voltei a embarcar, em Bissau, para Portugal a 3 de Abril de 74.

Fui enfermeiro da CART 3494 que pertencia a um batalhão que não tinha médico. O medo invadiu-me. E a adrenalina também. E se fizesse asneira?

Permiti que vos conte um doloroso episódio.

“Era uma manhã de Agosto de 72. Estávamos no Xime. O pelotão comandado pelo furriel Bento partira cedinho para o seu posto de segurança à estrada de Bambadinca, sede o Batalhão. Minutos depois, estrondos sucessivos avisavam-nos: foram emboscados. Corremos em seu auxílio. Era tarde. Haviam morrido uns quantos. O Bento também. Restou-me juntar-lhe os restos: uma mão daqui, uns ossos dali. Ao furriel, uma das minas esvaziara toda a caixa craniana. Um soldado, a meu lado, incontinentou-se. Loguinho. Não fui capaz de chorar. Eu que sou mestre nas lágrimas fáceis. Mas ali não. Tive medo. Era precisa muita coragem. Muito sangue frio. Muito esquecimento.

Nesse mesmo dia à tarde, dois pelotões partiram para o Enxalé, na margem direita do Rio Geba, cobertos por uma carga de obuses. Parece que a emboscada tinha sido obra de um grupo do PAIGC que entretanto fugira para a tabanca dos Balantas.

Anunciava-se a manhã do dia seguinte quando um dos pelotões regressou com um prisioneiro muito ferido e entregou-mo, na enfermaria. Um estilhaço de óbus entrara-lhe no peito e alojara-se junto à

13 Estudos sobre teatro 14 Certa vez, em Freixieiro de Soutelo, apresentávamos o João Tupamaro, de Antonio Larreta. Era uma peça um pouco pesada mas falava da necessidade da revolta contra quaisquer ditaduras. O palco da Casa do Povo era novo e tinha ainda o verniz quase virgem. Como praticamente não havia bastidores e queria controlar o decorrer da peça, aproveitei uma escada que estava por detrás dos panos e subi até poder ver a cena de cima. A dada altura há um personagem que se atrasa na entrada e desata a correr … e ao passar pela escada deu-lhe um inadvertido encontrão. Escada e eu entramos palco adentro, para delírio da assembleia. Na avaliação: ah, gostamos muito … mas a escada a entrar pelo palco dentro é que foi giro!

omoplata direita. No percurso, deixara-lhe um feio buraco onde caberiam, à vontade, três dedos. Três sonhos desarmadilhados. Era um mandinga. Gemia. As lágrimas, em catadupa, faziam inveja a um macaréu. Comecei a limpar-lhe a ferida e quando me preparava para estudar a melhor forma de lhe extrair o estilhaço chegou o comandante do batalhão.

- Afaste-se. Quero falar com o prisioneiro. - Mas ele precisa de tratamento, meu coronel. - E eu preciso de dados. Afaste-se! – E fuzilou-me com o olhar. E agrediu o mandinga com o

pingalim que trazia sempre consigo. E o turra gritou uma raiva de 400 anos. E eu fui afogar o grito numa boa bazuca de cerveja”15.

Ainda na Guiné, além de enfermeiro fui também professor.

O Capitão Pereira da Costa, comandante da companhia, um dia, seco, disparou: “O nosso furriel tem todas as competências para leccionar. A partir de amanhã distribuirá o seu tempo entre a enfermaria e a escola primária”. E assim, logo no dia seguinte, eu era responsável pelo Posto Escolar Militar nº 8, do Xime, Bambadinca. Tinha as 4 classes dentro da sala e os alunos iam dos 6 aos 45 anos, mais ou menos. Não havia livros nem cadernos que só apareceram um mês e tal depois. Mas havia terra e árvores e instrumentos para música. Cantavam as suas cantigas e depois, os mais velhos, escreviam-nas comigo, no quadro. E horticultamos e os mais velhos escreviam no quadro “ananás, alface, tomate, e 1 e 2 e 3 e … etc”.

Até que um dia chegaram os manuais. Portuguesíssimos. Mas enfim. Em um dos textos falava-se da televisão. Querem lá saber a trabalheira que foi explicar-lhes o que que eles nunca haviam empalavrado16. Que a nossa circunstância só existe na medida que somos capazes de a nomear. De a empalavrar.

Com que saudades lembro, hoje, essa fabulosa experiência. No Xime havia uma escola (que revisitei em 2008). Depois fomos para Mansambo e aí construí, com alunos locais, uma outra: com bidões abertos cobrimos o telhado e com varas de palmeira fizemos mesas e bancos.

No final de 73, fui destacado para fazer exames da 4ª classe. Comigo iria uma jovem e bonita professora local, a Teresa, cabo-verdiana e exímia cozinheira.

Entretanto fui também fotógrafo e aprendi com o Bento a arte da revelação. E, depois que este morreu, assumi o seu laboratório.

A tropa ensinou-me a disciplina e a obediência aceites e assumidas, a muito obrigatória pontualidade e, novamente, os rituais tão necessários à continuidade das instituições. Ensinou-me ainda que tudo está escrito no grande livro da natureza e que as nossas aprendizagens, mesmo as académicas, podem partir dessa observação. Aprendi o valor da solidariedade e do companheirismo que, então, se traduzia pelo termo camaradagem. Ao companheiro chamávamos camarada17.

2.5. O ensino

Regressado do ultramar em 3 Abril de 74, logo depois do 25 de Abril, o MDP/Viana contrata-me como seu funcionário (e assim percorri o distrito com o Dr Calvet de Magalhães) e em Fevereiro de 75 fui admitido, como professor de Filosofia, pela Escola Secundária dos Arcos de Valdevez. Depois passei pelo, então, Liceu Nacional de Viana do Castelo, pela então Escola Industrial e Comercial de Viana do Castelo, pela Secundária das Cavaquinhas (Seixal) e em 82 regressei, em definitivo, à hoje Secundária de Monserrate.

15 In Cinco Motes para um Memorial (Separata dos Cadernos Vianenses) José Luis C Ponte, Ed. Câmara Municipal de Viana do Castelo, 2000 16 A dada altura era tal o meu desespero por não ser capaz de lhes explicar o que era a televisão que me lembrei do seguinte: imaginem que o vosso grupo de futebol de Bambadinca vai a Bissau joga com o grupo dos papeis, lá na capital. Pois bem, com a televisão vocês podem seguir aqui esse jogo. Não pode ser! Gritou-me, sorridente, um jovem. E todos se riram. Talvez de mim … que o branco, às vezes, parecia maluco. 17 Companheiro (o termo nasce na linguagem castrense) é aquele que partilha, comigo, o mesmo pão (cum + panis); camaradas (do francês camarade) eram aqueles que partilhavam a câmara (o quarto) e a mesa, eram os soldados e os marinheiros.

Nesta escola, à exceção de Coordenador dos DTs, fui tudo ou quase tudo o que se pode ser: professor de português, latim e jornalismo; diretor de turma; diretor da biblioteca; vogal do Conselho Diretivo nas gestões da Conceição Madruga e da Rosalina Martins; Presidente do Conselho Diretivo e depois do Conselho Executivo; Presidente do Conselho Pedagógico; Presidente da Assembleia de Escola; assessor do SASE, Diretor da ESM … e … jornalista com a criação e direção do jornal OUTRA MARGEM, aí por volta de 83. Fora da ESM … entre outras coisas fui membro da Comissão Central de Colocações de Professores, com o Manuel Simões (pelo distrito de Viana), no tempo do ministro Vítor Alves.

Foi muito interessante o meu percurso. Trouxe para o ensino muito do que adquiri no teatro, na família e no exército. Mas aprendi também imenso com um dos meus mais carismáticos professores da Faculdade de Filosofia de Braga da Universidade Católica Portuguesa, o catedrático António Freire. Acima de tudo aprendi com ele a estar na sala de aula, a procurar ter sempre os meus alunos bem dispostos, bem confortáveis. A ser capaz de lhes transmitir que a paz é possível. Que o amor é possível. Que um futuro diferente é sempre possível. Basta que acreditemos e lutemos por isso. No serviço militar aprendi que a gestão de pessoas deve fazer-se com rigor e respeitando sempre as decisões tomadas. A minha profunda formação cristã bem como, no estágio e depois dele, o contacto com a escola de SummerHill, com Paulo Freire, com Freinet e com Maria de Montssori ensinaram-me que há sempre uma razão que subjaz aos nossos comportamentos e que importa descobrir para entender as reacções dos jovens e mesmo dos colegas professores. Aprendi que o otimismo e a tolerância, valores tanto do humanismo clássico como do cristão, terão de ser a pedra de toque de um líder. Mas tolerância não significa displicência ou anarquia. Pelo contrário. Significa perdoar o erro mas exigir que se corrijam os comportamentos que o originaram. Ser tolerante é respeitar o outro. Aprendi que amar é uma opção de vida. Que ser amigo é uma opção de vida. Na esteira de Ghandi, defendi que a paz, a justiça, a liberdade, a amizade, o amor não são um fim a atingir mas um caminho a percorrer. E procurei aplicar isto na escola. Como professor. Como diretor. Como colega. Como cidadão.

2.6. A doença (O cancro)

Quando dizia aos alunos que o futuro seria o que quisessem que fosse, eu acreditava que a vida nunca nos fecha todas as portas. Há sempre uma porta ou uma janela que se nos escancara. Basta que queiramos olhar a paisagem ou degustar o tempo ou enternecer-nos com o enamoramento das gaivotas sobre a penedia.

Acreditava eu nisto, como acredito, quando um médico amigo me disparou, certa vez, depois de olhar umas análises: eh pá! Está tudo alterado. Pode ser cancro. Pode estar no linfático. Há lá palavras que traduzam o medo das “esquinas nos ombros”18! Tinha 46 anos e uma morte anunciada. Saí para chorar. Para fazer exames. Para arrumar os meus papéis e deixar tudo muito certinho para que a Lai, quando eu partisse, soubesse o que fazer às minhas coisas. Há lá palavras que traduzam a fria mensagem da nossa mortalidade! Há lá palavras que escondam o medo e o desencanto que sentimos quando nos dizem que afinal não somos imortais! Os 15 dias imediatos, o tempo dos exames e das análises, foram uma sufocante via sacra de dor: olhava as fotos dos filhos na parede e chorava porque os não ia ver crescer; sentava-me no sofá procurando rememorar a minha vida. E a minha vida não aparecia. Quem tinha apagado o ficheiro? Que vírus se intrusara na pen do meu passado? Procurava, depois, olhar em frente. Novamente o desespero, que eu via, tão apenas, um enorme muro branco.

É verdade que antecipei dores. Mas aconteceu e foi um tempo em que o passado e o futuro se esfumaram e meu era apenas o presente. Aquele tempo. Nas ruas magoava-me o riso, a boa disposição, os projetos, os sonhos de todos os viandantes. Tudo o que eu julgava que não ia mais ter. Podia lá ser. Fechei-me em casa nesse tempo de incertezas.

18 Verso de Ramos Rosa

Até que um dia saí. Não! Tinha de reagir. E de viver. Até porque não era certo ser cancro. E não é que não era mesmo? Soube-o uns dias mais tarde. Não era!….mas podia vir a ser.

A doença foi-me diagnosticada cinco anos depois: um dia, já em 2000, diz-me o Dr Mendes Leal: professor, o quisto malignizou (já não recordo se foi mesmo este o termo utilizado) e terá de ser operado. Da operação pode resultar que fique 50% incontinente urinário e 50 ou mesmo 100% com disfunção eréctil (uma forma muito eufemística de se dizer impotente sexual). Eu já tinha mastigado o medo durante 5 anos mas, mesmo assim, este murro agrediu-me fortemente: para um homem com 50 anos, com uma arraigada formação judaico-cristã onde a virilidade se mede por símbolos e certezas 100% ativas, a ideia de tantos 50% era paralisante. Mas dr, antes a vida que uma morte tão cedo anunciada que meu avô materno morreu disso e um tio materno morreu disso também. E parti para a intervenção e desatei a contar a toda a gente o que acontecera. Talvez partilhando, desse jeito, o meu medo o repartisse por todos e me sobrasse apenas um pouquinho. Que o pouquinho eu sabia suportar. O todo é que era duro.

E tudo correu bem e as portas não se fecharam tão asinha, nem todas sequer, como o medo anunciava. O danado do bichinho, contudo, acabou por ficar escondido, vá a gente saber onde, e nunca mais abandonei o IPO. Até hoje e de 3 em 3 meses lá vou fazer a minha hormonoterapia. Só que agora já não tenho medo. Primeiro porque aprendi a viver e a dormir com o medo. Depois porque a Lai foi, como sempre tem sido na minha vida, uma adorável companheira. Finalmente, porque decidi viver o meu Carpe Diem, não abandonando tudo e refugiando-me no campo ou no ginásio, não. O meu Carpe Diem passou a significar viver cada dia pensando que a minha felicidade estava na felicidade dos outros. Por isso, quanto mais os ajudasse mais me ajudaria também. Eu já acreditava antes que ninguém poderia dizer-se feliz vivendo entre infelizes. Mas agora tinha essa certeza. Se queria ser feliz tinha de fazer os outros felizes: primeiro os que me estavam próximos e logo-logo outros mais afastados. Como mais tarde aprendi em Rotary, a felicidade está em cada um “dar de si antes de pensar em si”19. Que a felicidade é um caminho.

2.7. A Cooperação e o Rotary

E não querem saber que nestes entretantos me desafiaram para a cooperação, 1º com Timor e depois com a Guiné?!

Aqui estava a porta que se me abria. Aqui estava o meu Carpe Diem: O VOLUNTARIADO! A COOPERAÇÂO. A SOLIDARIEDADE.

E agarrei a ideia. A guiné, esse paupérrimo país de gente fantástica, onde a floresta ainda tem o sabor da origem, onde os rios e braços de mar cheiram ainda ao magma primordial, onde as gentes sorriem sempre … mesmo com fome, onde me sinto bem porque me sinto acolhido! A Guiné foi e vai sendo o meu Carpe Diem.

Com eles aprendi que cooperar é trabalhar com e não trabalhar para ou trabalhar por. Lembraram-me também que a diferença é sempre um ponto de vista. Ensinaram-me que o que faz feliz um europeu pode nada dizer a um africano. Ensinaram-me a amá-los assim mesmo, como são e não como eu talvez gostasse que fossem: afinal eles só querem o pão e a saúde de cada dia e pouco mais. Lembrei-me, certa vez que Nha Angélica me convidou para comer um chabéu de carne, de uma passagem do romance Catarina ou o Sabor da Maçã, de Alçada Baptista. O livro conta a história de um professor que se entusiasma com uma aluna que irá fazer o seu caminho e mais tarde lhe aparece, em jeito de farrapo, que a droga não perdoa. A dado passo, Catarina desabafa: “Eu já não acredito nas ideias e a última coisa em que acreditei foi nos sentimentos. O futuro, se o houver, será dos sentimentos. Acho que sou um projecto falhado mas, a certa altura, o meu projecto parecia bem bonito… “. “Catarina. Não diga que é um projecto falhado … ainda há bem pouco tempo, quando nos conhecemos, tu fazias com o mundo um conjunto tão harmonioso que não é possível esquecê-lo.” E o Narrador, e personagem central, comenta: “disse isto e pus

19 Lema do movimento rotário

a minha mão em cima da mão dela. Ela contagiou-se com a minha emoção e vi os seus olhos embaciarem-se de lágrimas. Chegou a sua cabeça para perto da minha. Foi quando senti todo aquele mau cheiro que lhe vinha da roupa e do corpo sem lavar e fiquei dividido entre qualquer coisa de muito grande e muito forte que mandava responder àquela ternura e uma coisa tão banal e pequena como o meu hábito de higiene, uma realidade tão recente na história. Mais uma vez a minha generosidade não foi suficiente para quebrar aquela barreira.”

A Guiné ensinou-me a aceitar a diferença, esta diferença, e a não desperdiçar o tempo. Ensinou-me a valorizar o pouco dos outros. Ensinou-me a aceitar todos os convites para que entre em suas casas. E às vezes em suas vidas.

Finalmente, foi por causa da cooperação que um dia me convidaram para o movimento rotário onde, para além do lema, que já referi, aprendi ainda que a nossa vida deve reger-se de acordo com a Prova Quádrupla que, adotada em janeiro de 1943 pelo Conselho Diretor do Rotary International com a finalidade de desenvolver e manter altos padrões de ética nas relações humanas, teve origem n’as três peneiras, de Sócrates20.

Procurar aplicar a Prova Quádrupla à minha vida tem-me ajudado, não duvidem, muito embora haja ainda um imenso caminho a percorrer. Que não é fácil. Contudo, olhem que bom! Nem penso no cancro e muito menos no meu bichinho de estimação! Não tenho tempo … e assim confirmo que o ócio, às vezes, é mesmo uma incubadora de doenças.

2.8. Que escola

Por tudo isto sou, inquestionável e lapalissianamente, fruto da minha circunstância que o mesmo é dizer de todas as minhas experiências. E não o somos todos?

Eis porque hoje tenho um conceito de escola que de todo não tinha quer em 72 quer quando em Fevereiro de 75 iniciei o meu percurso profissional.

Em Setembro de 2012, e a pedido da colega Arlete Faria, escrevi um poema a que chamei “Que escola?”. Permitam-me que inicie esta fase final da minha intervenção lendo-vos esse texto.

20

Dizem que, um dia, um homem foi ao encontro de Sócrates. Queria contar-lhe algo que lhe haviam dito e ele julgava que poderia interessar

ao velho filósofo.

Encontrou-o sentado na soleira da porta de sua casa e confidenciou-lhe:

- Mestre amigo: quero contar-te uma coisa a respeito de um amigo teu!

- Espera um momento! – disse-lhe o filósofo – Antes de contar-me, quero saber se fizeste passar essa informação pelas três peneiras.

- Três peneiras? Que queres dizer? – Espantou-se o homem informante.

- Vamos peneirar aquilo que me queres dizer. Devemos sempre usar as três peneiras. Ora vejamos a primeira, a da VERDADE: tens a

certeza de que isso que queres dizer-me é verdade?

- Bem, foi o que ouvi outros contarem. Não sei exatamente se é verdade.

- Pois! Entendo. Vamos à segunda, a peneira da BONDADE. Essa informação é boa para alguém? Para o meu amigo, por exemplo? Para

mim? Porquê? Com certeza, passaste-a pela peneira da bondade. Ou não?

Envergonhado, o homem respondeu:

- Devo confessar que não.

- Ficaste constrangido. Como te entendo! A terceira peneira é a da UTILIDADE. Pensaste bem se é útil o que vieste falar a respeito do meu

amigo?

- Útil? Sei lá! Não pensei nisso. Apenas quis vir contar-te, porque sou teu amigo, também.

- Então, disse-lhe o sábio, se não sabes se é verdadeiro o que queres contar-me, se não procuraste saber se era bom ou útil o que queres

dizer-me, então, meu amigo, é melhor que guardes essa informação apenas para ti.

Foi, pois, como herança socrática que Herbert Taylor, em 1932, implementou a Prova Quádrupla para salvar a Club Aluminum Company

(CAC) e o Rotary Internacional a adotou como ética para o caminho: o que nós pensamos, dizemos e/ou fazemos “ é a Verdade?, É Justo?, Criará

Boa Vontade?, Será Benéfico?”.

Que escola intuir nos desenhos de um grafema? A que nos ensine a ver, nos sentidos de um poema, as avenidas e as estradas que rumem a um porvir onde o trabalho e o lazer convivam de mãos dadas. Que escola desenhar na tela de um pintor? A que nos ensine a cantar a festa mais o labor e no trinado de uma guitarra nos resolva o dilema enclausurado no tema da formiga e da cigarra. Que escola escrever na partitura de um concerto? A que nos ensine a ler sempre com o amor por perto e nos diga o desacerto da correria e do cansaço e nos ensine a lançar papagaios sem baraço. Que escola construir nos projetos de uma cidade? A que nos faça sentir as variações de cada idade e nos ensine os modos vários do ser e do pensar e nos queira solidários em solidários jeitos de amar. Que escola frequentar na paleta destes dias? A que nos ensine a agarrar o real e as fantasias. A do “pelo sonho é que vamos” inventando o nosso caminho. Uma escola onde o Homem se não construa sozinho Explanemos esta ideia de escola. Na clássica sociedade grega, tinha direito à escola, à [skolé], ao otium, ao ócio, o homem livre,

enquanto ao escravo competia a ausência de otium, o negotium. Foi tão forte este conceito que ainda hoje a igreja católica, por exemplo, proíbe os trabalhos servis ao domingo, os trabalhos do negotium, do homem não livre. Ainda hoje a igreja católica defende o domingo como dia livre para refletir, aprender, cultivar a espiritualidade.

Começa na Grécia, então, a "História da Educação" com o sentido que lhe é dado na nossa realidade educativa atual. De facto, são os Gregos quem, pela primeira vez, coloca a educação como problema.

Já na literatura grega se vêem sinais de questionamento do conceito, tanto na poesia, como na tragédia ou na comédia. Mas é no século V a. C., com os Sofistas e depois com Sócrates, Platão, Isócrates e Aristóteles que o conceito de educação alcança o estatuto de uma questão filosófica21.

O ideal educativo grego, no princípio, aparece-nos expresso nos poemas homéricos pelo conceito “arete” que sendo um atributo próprio da nobreza se traduz por um conjunto de qualidades físicas, espirituais e morais tais como a bravura, a coragem, a força, a destreza, a eloquência, a capacidade de persuasão, numa palavra, a heroicidade.

Mais tarde, já nos fins da época arcaica, este conceito alarga-se e passa a exprimir-se pela palavra “kaloskagathia” que defende que mais que honra e glória a educação deve traduzir-se em excelência física e moral. Assim, o homem deve perseguir a beleza (kalos) e a bondade (kagatos) através da ginástica para o desenvolvimento do corpo, da música (aliada à leitura e ao canto) para o desenvolvimento da alma e da gramática.

Mas, se até então o objectivo fundamental da educação era a formação do homem individual como kaloskagathos, a partir do século V a. C., exige-se algo mais da educação. Para além de formar o homem, a educação deve ainda formar o cidadão. A antiga educação, baseada na ginástica, na música e na gramática deixa de ser suficiente.

É então que o ideal educativo grego aparece como Paideia22, formação geral que tem por tarefa construir o homem como homem e como cidadão. Platão define Paideia da seguinte forma "(...) a essência de toda a verdadeira educação ou Paideia é a que dá ao homem o desejo e a ânsia de se tornar um cidadão perfeito e o ensina a mandar e a obedecer, tendo a justiça como fundamento"23.

Assim, a educação moral do jovem grego resultava do contacto directo da criança com o pedagogo, do jovem com o ancião, do menino com o adulto. Todos os mestres se uniam para dar à criança exemplo de dignidade de gestos e de maneiras, de polidez e elegância na conduta, de respeito pelas leis da cidade e pelos mais velhos. Eles ofereciam-se como modelos vivos dos quais as crianças se deviam aproximar através da imitação consciente e inconsciente, favorecida pela convivência constante.

Mesmo a ginástica e a música tinham fins morais. A primeira visava o domínio de si e a sujeição geral das paixões à razão. O objectivo era desenvolver qualidades como a paciência, a tolerância, a força, a coragem, a lealdade, a devoção e a consideração dos direitos dos outros.

Quanto à música, e no dizer de Platão, os mestres familiarizavam “as almas dos meninos com o ritmo e a harmonia, de modo a poderem crescer em gentileza, em graça e em harmonia, e a tornarem-se úteis em palavras e acções; porque a vida inteira do homem precisa de graça e de harmonia." 24.

A PAIDEIA, que os romanos irão traduzir por HUMANITAS, abrangia então, não apenas a preparação da criança para a vida adulta como ainda o resultado do processo educativo que se prolonga por toda vida, muito para além dos anos escolares. A Paideia vem, por isso, a significar "cultura entendida

21 in

1º http://www.infopedia.pt/$educacao-na-antiga-grecia [Consult. 25 de Outubro de 2013].

2º PAIDEIA, WIKIPÉDIA

3º PAIDEIA, VERBO: Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura 22 Inicialmente paideia significava criação dos meninos mas, no século IV. a.C., passa a traduzir o ideal educativo da Grécia clássica. 23 JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.147. Segundo este autor os gregos deram

o nome de paidéia a "todas as formas e criações espirituais e ao tesouro completo da sua tradição daí que "não se possa evitar o emprego de

expressões modernas como civilização, tradição, literatura, ou educação; nenhuma delas coincidindo, porém, com o que os Gregos entendiam por

Paideia. Cada um daqueles termos se limita a exprimir um aspecto daquele conceito global. Para abranger o campo total do conceito grego,

teríamos de empregá-los todos de uma só vez." . 24 Citado por MONROE, Paul, História da Educação

no sentido perfectivo que a palavra tem hoje entre nós: o estado de um espírito plenamente desenvolvido, tendo desabrochado todas as suas virtualidades, o do homem tornado verdadeiramente homem" 25.

Meus caros amigos: Estais, por certo, cansados mas eu vou terminar já. Óscar Gonçalves num texto que leu na

“Conferência Internacional Espaço de Educação. Tempos de Formação”26 diz a dado Passo: “Enquanto alinhavava os meus comentários na antecipação ansiosa de conferência que se aproximava questionei-me, uma vez mais, o que poderia eu saber de política da educação. Afinal só tinham passado 38 anos desde que havia dado entrada, pela primeira vez, na escola com o ingénuo entusiasmo e sem perceber a armadilha que se me estendia pela frente e da qual jamais escaparia. Nunca mais me seria possível sair para a rua sem levar nas mãos o telecomando do sistema escolar”. E mais adiante refere as três coisas que, em seu entender, estragam irremediavelmente a vida afastando-a do prazer do conhecimento: 1. a escolarização da infância; 2. a tirania da avaliação e 3. a subalternização da experiência.

Durante muito tempo sonhei com uma escola da vida e para a vida. Uma escola onde os

adultos fossem o exemplo de percurso e as crianças, desde o jardim de infância, sorvessem a vida na sua circunstância e caminhassem ao seu ritmo. Onde se transformassem em cidadãos do universo mas soubessem também cantar o hino do seu país, ordenhar uma vaca, plantar uma couve, colher amoras, amassar a terra com a ternura do amante que sabe acariciar o peito da sua amada, escrever cartas de amor. Uma escola de afetos onde cada um aprendesse a perscrutar os sentimentos que os seus atos fossem despoletando no outro. Uma escola onde se aprendesse a necessidade do compromisso. Uma escola onde os mais novos soubessem ceder o lugar aos mais velhos. Uma escola onde a cigarra fosse tão respeitada quanto a formiga. Uma escola de artes e ofícios. Uma escola de rigor, onde as crianças, com rigor, soubessem construir papagaios e os deixassem voar, sem prisões ou baraços. Uma escola solidária. Uma escola voluntária. Uma escola de disciplina e horários assumidos. Uma escola comprometida com a Liberdade, a Fraternidade e a Igualdade. Uma escola onde o homem se construísse pluralmente e se tornasse verdadeiramente homem. Uma escola onde se acreditasse que “pelo sonho é que vamos!”.

Dir-me-ão que no Jardim de Infância, nos ciclos 1º, 2º e 3º isso talvez seja possível mas no secundário nem pensar. Dir-vos-ei que não. Em todos os graus de ensino é possível, necessário e obrigatório.

Como sabeis, só o trabalho e o justo vencimento permitem a constituição de família e a real dignidade humana. E sabeis também que mesmo para além da universidade, muitos dos nossos jovens não têm uma coisa nem outra. Se não forem trabalhados de forma segura e consciente, nos quatro pilares da educação – ser, estar, fazer e aprender -, se não lhes incutirem desde meninos a ideia de que mesmo na ausência de regras há condutas comportamentais, se não os educarem para a esperança de um mundo melhor, o desânimo tomará conta deles. Ou então ver-se-ão obrigados a abandonar o seu chão vital, a desenraizar-se. A partir27.

A geração de 51, da revista ÁRVORE e dos CADERNOS DE MEIO DIA, uma geração do pós

guerra, perante um mundo desfeito, atomizado, concluiu que a palavra se havia prostituído e que depois de Auschwitz a poesia não seria mais possível. Urgia pois RECOMEÇAR. RECOMEÇAR com palavras novas mas sentidos primeiros, primeiros sabores. Quem lê Sophia (e a sua proposta de regresso à Grécia), quem lê Ramos Rosa (e o seu desafio de regresso à matriz das palavras mais generosas), quem lê Torga ( e a sua aposta no chão sagrado de trás-os-montes) entende que hoje, como então, de novo o mundo se desfez e as palavras não significam mais o que podiam significar e que é preciso, outra vez, RECOMEÇAR. Nada do que vivemos faz sentido. Diz-se hoje o que já se pensa desdizer amanhã. Rouba-se a dignidade aos homens roubando-lhes o emprego. Fere-se a credibilidade dos jovens não lhes facultando trabalho. E na escola querem-nos impávidos e serenos reprodutores destes tão falhados e falsos ideais.

Por isso sonho com uma escola irreverentemente disciplinada, onde cada um possa construir o

seu devir e onde a todos assista o direito de um grito. De um murro na parede da indiferença. Uma escola 25 MARROU, H I. A Antiga Educação Ateniense, in História da Educação na Antiguidade, São Paulo: E.P.U., Ed. Da Universidade de São Paulo, 1973. 26 In Espaços de Educação. Tempos de Formação – Textos da Conferência, Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 99 27 Emigração forçada pela necessidade de sobrevivência.

onde cada criança, cada jovem, cada adulto se sinta como parte de um todo: todo o universo, toda a família, todos os amigos. Uma escola onde em cada dia todos façam tudo o que é possível como se esse dia fosse o último dia da sua vida. Onde cada um seja ele todo em cada momento. Uma escola onde o 1º e mais importante livro seja o da natureza. Uma escola onde a pré sejam os passeios pela aldeia, pela beira mar, pelos campos de milho e pelos valados carregadinhos de amoras. Porque aí também se aprende a ler e a contar. Porque aí também se aprende a vida.

Sonho com uma escola que seja HUMANITAS nos tempos modernos.

4. Conclusão

E fico-me por aqui. Claro que propositadamente não vos falei da talvez mais importante

estória da minha vida: o meu casamento e a constituição lenta da minha família. Não falei nem vou falar. Permiti apenas que vos diga que também eu e a Lai, como os meus pais, nunca nos deitamos zangados. Nunca permitimos que a raiva fermentasse em nossos corações. Nunca deixamos levedar qualquer mal entendido. Nunca empurramos para os escaninhos da memória qualquer mal estar. Sempre procuramos discutir tudo na proximidade do acontecimento. E já lá vão 37 anos. E outros tantos queremos que aconteçam no diálogo, na tolerância, na fidelidade aos valores do nosso chão ecológico e no respeito pelo outro. Que cada um de nós só é feliz se o outro o for.

Não vos falei também da minha escrita nem de outras atividades em que estive sempre embrenhado e que são também estórias importantes da minha vida. Contudo não me pareceu oportuno e/ou necessário.

Mas digo-vos que tenho ainda muito chão para percorrer. Fui desafiado, muito recentemente, para um grande projeto. Para um projeto com que sempre sonhei mas ao qual nunca pude responder. Posso agora e decidi, depois de muito titubear, dar-lhe cara. Será, porventura, o meu último desafio. Mas talvez um dos mais importantes porque parto para ele com toda a sageza dos meus 64 anos.

A Velhice, disse Cícero, não priva os homens da vida ativa (não é necessariamente ociosa) e as forças corporais diminuem mas a lucidez de espírito mantém-se.

Meus amigos: tudo farei para que a minha velhice seja ativa e, nos últimos, e oxalá muitos, anos que me restam, quero continuar a fazer o que de melhor porventura aprendi durante toda a minha vida, tanto na educação, como no voluntariado e na cooperação.

Nos entretantos, continuarei a escrever. E a sonhar. E a apaixonar-me. E a amar…que só o amor nos salvará.

E porque toda a aula tinha e tem um TPC, aqui vai o vosso: Optem ser felizes! Se quiserem podemos marcar nova aula para daqui a um ano apenas com o objectivo de corrigirmos este TPC.

OBRIGADO pela vossa atenção

Viana do Castelo, 31 de Outubro de 2013 José Luís Carvalhido da Ponte