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133 Riscos Naturais e Protecção do Ambiente O Homem, causa próxima e principal receptor das trágicas consequências do deslizamento da Lousã * Introdução Dos muitos ensinamentos que retive das aulas de Geografia Humana leccionadas pelo Professor Doutor J. M. Pereira de Oliveira, pelo menos um deles tocou-me de forma indelével e duradoura. De entre muitas das suas aulas brilhantes, recordo com particular intensidade algumas das primeiras, talvez aquelas que mais me marcaram e que se centravam em torno da discussão das noções de sítio e de posição. A partir daí, na vasta obra do Prof. Doutor Pereira de Oliveira sente-se o peso do suporte físico, tendo mesmo dedicado no início de uma insigne carreira, alguns dos seus estudos à área da Geografia Física, os quais me foram muito úteis e recordo aqui: “Regime dos ventos. Algumas considerações sobre o regime dos ventos no porto de pesca da Nazaré” e “O ambiente humano e o mundo rural”. Ao ser agora confrontado com a possibilidade de participar numa edição especial dos Cadernos de Geografia, em homenagem ao Prof. Doutor Pereira de Oliveira, não poderia de deixar de tratar um assunto que, sendo embora da área da Geografia Física, não estivesse relacionado com a geografia humana (urbana), ou seja, abordando o tal suporte físico, numa perspectiva de condicionante à implantação urbana. Trata-se, pois, de descrever e de procurar interpretar um deslizamento complexo, que muitos tivemos ensejo de acompanhar e cujas marcas ainda hoje são visíveis, embora já tenham decorrido mais de oito anos sobre a sua ocorrência. * Cadernos de Geografia, nº. 17, Coimbra, 1998, pp. 81-88

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133Riscos Naturais e Protecção do Ambiente

O Homem, causa próxima e principal receptor dastrágicas consequências do deslizamento da Lousã*

Introdução

Dos muitos ensinamentos que retive das aulas de Geografia Humanaleccionadas pelo Professor Doutor J. M. Pereira de Oliveira, pelo menos umdeles tocou-me de forma indelével e duradoura. De entre muitas das suas aulasbrilhantes, recordo com particular intensidade algumas das primeiras, talvezaquelas que mais me marcaram e que se centravam em torno da discussão dasnoções de sítio e de posição.

A partir daí, na vasta obra do Prof. Doutor Pereira de Oliveira sente-se opeso do suporte físico, tendo mesmo dedicado no início de uma insignecarreira, alguns dos seus estudos à área da Geografia Física, os quais me forammuito úteis e recordo aqui: “Regime dos ventos. Algumas considerações sobreo regime dos ventos no porto de pesca da Nazaré” e “O ambiente humano e omundo rural”.

Ao ser agora confrontado com a possibilidade de participar numa ediçãoespecial dos Cadernos de Geografia, em homenagem ao Prof. Doutor Pereirade Oliveira, não poderia de deixar de tratar um assunto que, sendo embora daárea da Geografia Física, não estivesse relacionado com a geografia humana(urbana), ou seja, abordando o tal suporte físico, numa perspectiva decondicionante à implantação urbana.

Trata-se, pois, de descrever e de procurar interpretar um deslizamentocomplexo, que muitos tivemos ensejo de acompanhar e cujas marcas aindahoje são visíveis, embora já tenham decorrido mais de oito anos sobre a suaocorrência.

* Cadernos de Geografia, nº. 17, Coimbra, 1998, pp. 81-88

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Os factos

O Diário de Coimbra do dia 22 de Dezembro de 1989 abria a sua primeirapágina com o seguinte título: “Coimbra também afectada. Mau tempo causainundações e desabamentos” e, nas páginas 6 e 7, relatava vários desabamentos,todos eles associados a intervenções humanas, tendo um caso concreto, daparte oriental da cidade, merecido então uma análise detalhada (N. GANHO; L.LOURENÇO e F. REBELO, 1992).

Mas, o autor ao escrever “Coimbra também afectada” estaria certamentelonge de imaginar que bem perto da cidade tinham ocorrido situações muitomais dramáticas do que as relatadas.

Com efeito, só no dia 29 de Dezembro é que também em notícia deprimeira página, o mesmo diário nos dá conta de qua “a terra deslizou numaencosta da Lousã. Duas casas ameaçam ruir e uma estrada está cortada”. Comeste título sugestivo e uma fotografia que mostrava a empena rachada de umadas casas, prendia a atenção do leitor e, através de um breve comentário,remetia-o para a notícia mais desenvolvida, na página 6, onde se apontavam ascausas prováveis do “deslize de terras” e se dava conta dos prejuízos, alguns dosquais também eram ilustrados através de cinco fotografias. Breve referência aestes acontecimentos veio mais tarde a ser feita por F. REBELO (1991, p. 363),ao considerar o risco de movimentos de massa.

Por se tratar de um problema que envolve processos erosivos actuais, desdelogo motivou a nossa atenção. Além disso, por se situar dentro da área em queacompanhávamos a evolução actual das vertentes, para efeitos da elaboraçãoda dissertação de doutoramento, decidimos acompanhar os acontecimentosque se seguiram ao grande escorregamento de terras.

Não temos dúvidas de que se tratou de um deslizamento, porquanto afectouuma vertente constituída por um material com característias mais ou menoshomogéneas, contendo um elevado teor de argilas e no qual a águadesempenhou um papel preparatório de impregnação e desestruturação (CAMPY

e MACAIRE, 1989, p. 89), o qual pode ser considerado do tipo rotacional, porqueo deslocamento do material efectuou-se ao longo de uma superfície curva.

Quanto às causas que o originaram foram apresentados diversos motivos,

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tamto mais que, genericamente, podem considerar-se diversas situaçõessusceptíveis de dar início ao processo: contributo brusco de água, provenientedirectamente da chuva ou proveniente de escoamento lateral, trabalho de sapana base da vertente, sobrecarga na cabeça(1), estremecimento... (CAMPY eMACAIRE, 1989, p. 98), que, no caso em análise, se devem ter conjugadofavoravelmente, como iremos verificar.

Comecemos por analisar a sucessão dos acontecimentos, na tentativa dediscernir as eventuais causas que o originaram. Os movimentos queprovocaram o deslizamento tiveram o seu início durante a noite de 21 para 22 deDezembro de 1989, tendo abrangido uma área com cerca de 5 400 m2 (90x60m).

No entanto, embora sem efeitos visíveis, esses movimentos já se vinham afazer sentir havia algum tempo, pois, como refere RUI FURTADO (1990, p. 2),vai para três anos, tinham-se encontrado dificuldades na retirada da tampa deuma caixa de esgotos situada na garagem da casa superior, a qual foi difícil derepôr sem a restauração daquela, o que evidencia a forte compressão a queestavam sujeitas as suas paredes(2). Nessa mesma casa foram ouvidos ruídos naconstrução na noite de 20 para 21 de Dezembro, obviamente resultantes dasfortes compressões e tracções a que a estrutura estava sendo sujeita emconsequência dos movimentos, ainda não perceptíveis, do solo.

Com efeito, nas sucessivas visitas que fizemos após termos sido alertadospela leitura do Diário de Coimbra e que, embora mais espaçadamente, ainda

1 A. MILLIES-LACROIX (1981), citado por CAMPY E MACAIRE (1989, p. 98) subdivide o deslizamento em:cabeça, parte superior falhada, porventura com blocos abatidos e levantados, corpo, deprimido, pésobrelevado, e frente, estendida.

2 Foi-nos dito que nesta mesma vertente, há cerca de 60 anos, existiu um “forte escorregamento de terras”.Tentámos procurar a sua confirmação nos periódicos então publicados, mas os poucos exemplares existentes,tanto na Biblioteca Geral da Universidade, como na Biblioteca Municipal de Coimbra, não lhes fazemqualquer referência, eventualmente por não coincidência da data destes com a ocorrência do fenómeno.No entanto, no reconhecimento pormenorizado que efectuámos no local, tivemos oportunidade deobservar na área situada a NE do deslizamento, uma antiga cicatriz de arranque dum outro pequenodeslizamento, na qual era visível uma pequena abertura recente, certamente relacionada com osrearranjos provocados pela nova geometria da vertente.Esta antiga cicatriz é uma prova inequívoca da instabilidade da vertente, a qual aumentou porintervenção antrópica, quer resultante da construção da Estrada Nacional nº. 236, quer devido àinstalação de moradias, tanto pelas sobrecargas como pelas vibrações a que passou a ficar sujeita.

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continuamos a efectuar ao local, pudemos observar como as paredes e demaisestruturas das suas casas situadas na área central do deslizamento foram rachandoprogressivamente (fot. 1) e o solo foi abrindo fissuras, em consequência da sua

movimentação ao longo da vertente,bem como o abaulamento e rotura domuro e das paredes de suporte daestrada situada na base do talude, juntoao qual estava prevista a construção deum conjunto de vivendas (fot. 2).

Fot. 1 - Casa situada na parte central dodeslizamento. Pormenor das fendas abertas

na parede do lado SW.

Face a estes acontecimentos, desde logo procurámos encontrar a suajustificação. Para o efeito, decidimos começar por averiguar a natureza dosmateriais litológicos comprometidos, bem como as condiçõeshidrometeorológicas que acompanharam o desenrolar do deslizamento.

As características geológicas deste tipo de depósitos de vertente sãoconhecidas (S. DAVEAU, 1976, p. 99). Fundamentalmente, são constituídospor uma série inferior, formada por grés de cor esbranquiçada (grés do Buçaco)e por uma série superior, formada essencialmente por material argiloso, de corcastanho-avermelhada, alternando ou passando lateralmente a argilascinzentas. Dispersos nesta matriz argilosa, ocorrem pequenos fragmentossubangulosos de xisto e, raramente, pequenas bolsas gresosas semcontinuidade.

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3 Os ensaios de penetração dinâmica (SPT) consistem na cravação de uma ponteira normalizada, ligadaa um amostrador especial, por pancadas dadas por um pilão com peso e altura de queda normalizadas.O ensaio compreende duas fases, uma primeira para a penetração de 15 cm e a segunda para umapenetração de mais de 30 cm, anotando-se em cada uma o número de pancadas necessárias à cravação.O ensaio considera-se concluído quando se atinge a penetração desejada ou o número de pancadas na2ª fase alcança as 60, registando-se então a penetração conseguida (SOPECATE, 1990, p. 5).

Fot. 2 - Roturas no muro de suporte da estrada da base do talude e detalhe do ponto de inflexão.

As sondagens efectudas pela SOPECATE (1990, p. 7) permitiram determinar aespessura desta série que, em termos médios, é da ordem dos 12 m, mas chega aatingir 18 m na área das sondagens S5 e S6, efectudas na base do deslizamento.

Por sua vez, em termos geotécnicos, foi possível subdividir esta sériesuperior em duas zonas, denominadas zonas geotécnicas 3 e 2, uma vez que azono geotécnica 1 se fez corresponder à série inferior (SOPECATE 1990, p. 9).

Deste modo, a zona geotécnica 3, mais superficial, inclui os terrenos decobertura constituídos pela terra vegetal e o topo das formações argilosas dasérie superior, apresentando as seguintes características:

- velocidade das ondas sísmicas longitudinais VL - 500-700 m/s- ensaio SPT (N)(3) - <25

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A zona geotécnica 2, compreende as restantes formações argilosas da sériesuperior que apresentam características resistentes superiores:

- velocidade das ondas sísmicas longitudinais VL - 1000-1800 m/s- ensaios SPT (N) - 30-60

A zona geotécnica 1, corresponde ao grés esbranquiçado, os chamados “grésdo Buçaco”, apresenta as características resistentes mais elevadas:

- velocidade das ondas sísmicas longitudinais VL - 1000-1800 m/s- ensaios SPT (N) - > 60

Estas sondagens, além de precisarem as características litológicas do depósito,permitiram conhecer o posicionamento do nível freático que, como veremos,terá desempenhado um papel preponderante no desencadear do deslizamento.

Mas, antes disso, vejamos as condições hidrometeorológicas que acom-nharam o deslizamento e contribuiram para a constituição da toalha freática.

A análise comparativa dos valores da precipitação diária registada na Lousãe nas suas proximidades(4), no início do ano hidrológico de 1989/90, mostraque o primeiro trimestre foi bastante pluvioso, com a chuva a distribuir-seregularmente ao longo do período outonal, especialmente nos meses deNovembro e Dezembro (fig. 1). Em termos médios, Coimbra registou nestetrimestre mais de 212,8 mm do que o valor normal 1951-80 em igual períodode tempo. Também individualmente todos os meses registaram maisprecipitação do que a normal no período de 1951-80. O mês de Outubroregistou mais 4,3 mm, Novembro mais 91,4 mm e Dezembro mais 117,1 mm.

Deste modo, quando em 21 de Dezembro, na véspera do deslizamento,ocorreu o valor máximo da precipitação (69,8 em Coimbra, 66,1 na Lousã e84,0 na Louçainha), as reservas hídricas subterrâneas, que já deveriam estarquase completamente preenchidas face à precipitação anterior, tendo atingidoou ficado muito próximas da saturação, o que não só veio aumentar a pressão

4 Escolhemos Coimbra (Instituto Geofísico da U. C.), embora situada mais no litoral, por dispor de umregisto mais minucioso e facilmente acessível, que pode ser usado para termo de comparação.Seleccionámos ainda Louçainha e Coentral Grande, por serem dois postos situados na Serra da Lousã,onde as precipitações são normalmente superiores às verificadas na Lousã.

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Fig. 1 - Distribuição da precipitação diária.

DE

ZE

MB

RO

mm

0

5

10

15

20

25

30

35

40

45

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31

mm

OU

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BR

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OV

EN

BR

O

mm

0

5

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1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30

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40

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50

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60

65

70

75

80

85

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29 30 31

CoimbraLousãLouçainhaCoentral Grande

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que o depósito exercia na base da vertente, mas também permitiu impregnarde água as argilas, as quais terão constituído a camada deslizante quepossibilitou o deslizamento.

Estas circunstâncias deverão ter sido a razão próxima que originou odeslizamento. Mas dizemos razão próxima porque, foi muita coincidência terficado limitado apenas à área onde tinha sido efectuado um desaterro.

A não se ter dado essa movimentação de terras, efectuada pelo homem nabase da vertente, e, consequentemente, a descompressão que acarretou, serálegítimo questionarmo-nos se o deslizamento teria ocorrido? A ter-severificado, certamente apresentaria características muito diferentes e,eventualmente, consequências bem menos nefastas.

Com efeito, uma rápida análise dos valores da precipitação máximaregistada na Lousã apresenta-nos 14 anos, ou seja cerca de 30% dosconsiderados, com valores superiores aos 66,1 mm registados no dia 21 deDezembro de 1989. O valor máximo absoluto, 119 mm, registado em 29 deSetembro de 1936, quase duplica o valor do máximo que antecedeu odeslizamento(5), sendo ligeiramente inferior aos 132,2 mm estimados para umperíodo de retorno de 100 anos (J. M. ROCHA FARIA et al., 1980, p. 59).

Ora, se apenas fosse a quantidade de precipitação a desencadear o fenómeno,certamente muitos deslizamentos teriam ocorrido antes deste. É óbvio que, maisdo que o quantitativo total, no caso em análise interessa a intensidade e, sobretudo,a preciptação antecedente, motivo porque antes lhe fizemos referência.

Como grande parte da água da chuva correspondente a esta precipitaçãoantecedente se terá infiltrado, contribuiu sem dúvida para o desencadear do processo.

À data da realização das sondagens , efectuadas entre 17 de Janeiro e 20 deMarço de 1990, ou seja, depois da ocorrência do deslizamento, o nível freático,quando detectado, encontrava-se cerca de 5 m abaixo da superfícietopográfica, à excepção da área das sondagens S5 e S6, localizadas na base dotalude, onde se encontrava a cerca de 10m de profundidade (fig. 2).5 À mesma conclusão chegou J. GOMES, quando procedeu à análise comparativa da importância da

precipitação para o conhecimento da dinâmica hidrológica das movimentações de terreno em quatrocasos concretos, tendo concluído que o caso da Lousã parece ter ocorrido na dependência de forteconjugação de “Precipitação Bastante Intensa” e uma acumulação de precipitação “Muito acima donormal para a época” (1994, p. 97).

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No entanto, quer devido à diminuição da intensidade da chuva, querdevido a algumas obras de drenagem entretanto realizadas, é de admitir que naaltura do deslizamento o nível freático se situasse mais próximo da superfície.

Por outro lado, verificou-se que se trata de um nível freático suspenso nomaterial argiloso que constitui a série superior, porque, nesta série, eleestabiliza às profundidades antes indicadas, mas desaparece logo depois dassondagens no material gresoso, permeável, da série inferior (SOPECATE, 1990, p. 8).

Embora reconhecendo que as condições geotécnicas encontradas foramdiferentes daquelas que deram origem ao deslizamento, com especialincidência na posição do nível freático, face aos resultados dos trabalhosefectuados, os técnicos chegaram, entre outras, às seguintes conclusões:

- a zona instabilizada tem a forma de concha, com espessura máxima nocentro, que atinge cerca de 13 m, diminuindo quer transversal, querlongitudinalmente;

Fig. 2 - Planta de localização do deslizamento Lagartixa-Alfocheira.(Adaptado de SOPECATE, 1990).

P4

P4A

P2A

P2

P5

P5A

P 1AP 1

PS 2

PS3

PS1

PS5

PS 4

P 3A

P 3

S4S5

S6

S3

S2

S1

S2A

S7

S8S9

S9A

S10

E.N. 2

36

E.N. 2

36

Legenda

Sondagens executadas

N

0 10 m

Perfil sísmico

Corte Geológico-Geotécnico

Cicatriz de escorregamento

Zona Instabilizada

S7

PS2

P4AP4

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- os terrenos escorregados localizam-se essencilamente na zona Geotécnica3, não a abrangendo, no entanto, na sua totalidade e podendo aindainteressar a parte superficial na zona Geotécnica 2;

- os factores que contribuiram decisivamente para o movimento de terrasterão sido as fortes precipitações verificadas, superiores a 70 mm diários,agravadas pela descompressão provocada pelo alívio de terras no base dotalude (SOPECATE, 1990, p. 10).

Considerações finais

Despois desta análise minuciosa e das conclusãoes retiradas poderá parecerque o assunto está encerrado e nada mais haverá a acrescentar. Contudo,pensamos que é possível precisar melhor o terceiro aspecto das conclusões.

Com efeito, tanto o material que constitui o depósito de vertente é domesmo tipo, quer para NE quer para SW, ou seja, segundo a direcção geral davertente NW da Serra da Lousã, como as precipitações também terão sidosemelhantes, pelo que, quanto a nós, a justificação estará sim nadescompressão provocada pelo alívio de terras na base do talude, uma vez queo deslizamento não afecta todo o depósito nem sequer uma parte significativadele, antes fica confinado à área onde se procedeu ao desaterro.

A própria construção das casas situadas na área onde ocorreu odeslizamento constitui mais um elemento desestabilizador, numa vertente jáde si instável. Por um lado, os desaterros e aterros inerentes às construçõesmodificaram localmente o perfil da vertente, obrigando a reajustes das cargas.As edificações em si vieram acrescentar uma sobrecarga que pode serimportante, atendendo a que se trata de uma vertente instável e, por último,originaram a impermeabilização local do solo, o que vai alterar a circulaçãosuperficial e subterrânea, constituindo, por conseguinte, novo factor dedesequilíbrio, tanto mais que as variações laterais de fácies são muitofrequentes no interior do depósito.

Além disso, a trepidação provocada pelos veículos pesados que circulavamna Estrada Nacional nº. 236 poderá também ter contribuído para a

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desestabilização da vertente.O fecho de uma das minas de água existentes na base da vertente foi

também indicado como causa provável, como origem do deslizamento. Terásido mais um factor a conjugar-se favoravelmente, pois um retardamento nasaída da água permite a elevação do nível freático, a qual, por sua vez, transmiteum progressivo aumento de instabilidade à vertente. Contudo, as minas foramconstruídas pelo homem, pelo que, antes da sua existência, a vertenteexpulsaria naturalmente a água em excesso, pelo que este aspecto não nosparece dos mais relevantes. O seu maior interesse poderá residir no facto de sermais um factor estranho, artificial, de origem antrópica.

Quanto a nós, o principal factor decorre da descompressão provocada pelaretirada de terras na base da vertente. Desde logo, alterando-se o perfil deequilíbrio dinâmico, era suposto admitir que essa dinâmica entraria emmovimento de modo a criar novo perfil de equilíbrio.

Naturalmente que se não tivesse chovido abundantemente, o processolevaria mais algum tempo, como também poderia ser retardado ou até travadose o muro de suporte de terras tivesse sido dimensionado e construído parasuportar as pressões exercidas pelo peso da vertente, o que não se verificou.

Não nos restam dúvidas de que foi a movimentação de terras efectuada nabase da vertente que desencadeou o processo, porque, por um lado, ele ficoulimitado à área do desaterro e, por outra parte, precipitações iguais ousuperiores às registadas no dia 21 de Dezembro de 1989, já tinham ocorridoanteriormente, por diversas vezes, sem que se tivessem registado deslizamentos.

Com isto não pretendemos afirmar que as precipitações não foram a causapróxima do desencadear do fenémeno. É óbvio que se não tivesse chovidoabundantemente, as águas não se teriam infiltrado, o nível freático suspensonão teria sido importante — ele terá sido o responsável directo — e, porconseguinte, exerceria menor carga sobre a vertente, logo não teria ocorrido odeslizamento.

Mas também é lícito perguntar: se não tivesse havido a movimentação deterras na base do talude, ter-se-ia dado o deslizamento? Estamos convictos deque não, pois, caso contrário, ele ter-se-ia generalizado a toda a secção davertente com características semelhantes.

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Admitindo que situações locais específicas, facilitadas até pela intervençãohumana na vertente, através da edificação das moradias, poderiam desencadearo processo, ele teria sido de importância bem menos significativa, quer se nãotivesse existido a tal movimentação de terras na base da vertente, quer se tivessesido edificado um muro capaz de suportar as pressões nele exercidas.

Por outro lado, se não tivesse afectado duas casas ( a superior acabou por sedesmoronar completamente e a inferior para lá caminha), bem como a estradanacional nº. 236, cujo trânsito teve de ser desviado durante vários meses, ocaso não teria merecido um estudo tão exaustivo. Apesar disso, as soluções nelepreconizadas para estabilizar a vertente não foram aplicadas, provavelmentedevido aos seus elevados custos, pelo que a vertente continua sujeita amovimentações locais.

Os perfis detalhados, transversais ao deslizamento, levantados ao longo daestrada nº. 236, tanto pelo GAT da Lousã como pela Sopecate, mostramdesníveis em escadaria (fig. 3 - P1/P1A) o que certamente se deverá aimprecisão do desenho. Na verdade, o que observámos no local foi oabatimento do compartimento central que deslizou, relativamente aos laterais(fot.3), aliás, o que também nos parece mais lógico. Na altura, medimos umabatimento da ordem dos 30 cm, do lado NE, enquanto do lado SW, oabatimento terá sido de apenas cerca de metade, na ordem dos 14 cm.

O abatimento do compartimento deslizante, bem testemunhado pelacexistência da estrada, ajuda a melhor precisar as características destedeslizamento que, em termos de forma, se afasta um pouco do modelo teóricoproposto por MILLES-LACROIX (CAMPY e MACAIRE, 1989).

Com efeito, ele é diferente tanto a nível da “cabeça” onde as cicatrizes poucovão além de inicipientes, como sobretudo no “pé”, onde não é visível ainchação característica, a qual em parte poderá ter sido amortecida pelaexistência de roturas de declive ao longo da vertente, correspondentes aostaludes da estrada. Deste modo, este deslizamento acaba por testemunhar amovimentação duma vertente, embora sem a espectacularidade queacompanha os grandes deslizamentos. Não fora a destruição das duas moradiase, certamente, pelas suas dimensões, não teria história, como tantos outros.

Gostaríamos ainda de mencionar que o posicionamento das superfícies de

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deslizamento nºs. 1 e 2, assinaladas pela SOPECATE (fig.4) nos sugerem tambémum contributo de natureza estrutural, em função da paleotopografia da zonageotécnica 1. Com efeito, elas iniciam-se, em especial a 1, no prolongamentodas curvaturas dessas paleotopografias, sendo ambas coincidentes com as duasroturas de declive existentes nessa antiga superfície topográfica.

Deste modo, pensamos ter ficado demonstrado que as características destedeslizamento terão resultado da conjugação de uma série de factores, tais comoa paleotopografia, os materiais litológicos comprometidos, os elementosquantitativos de precipitação e, sobretudo, a intervenção antrópica.

Fig. 3 - Corte resumo do deslizamento da Lagartixa-Alfocheira.(adaptado de SOPECATE, 1990).

Perfil Longitudinal P1 (E.N. 236)Perfil Transversal P2

P2

279.44

E.N

. 236

Eira

256.59

227 .45280 .00228.35228.49

228 .94231.78233.57

230.73231.03

228.94

E.N

. 236

236.64

Cam

inho

205 .00

E.N

. 236

214.51

209.05205.45Cam

inho

Barraco

P1

0 100m

0 10 20 30m

Casas destruídas

Abatimentos do pavimento

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Fot. 3 - Pormenor dos abatimentos da Estrada Nacional 236.A - Lado NE; B - Lado SW.

A

B

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Referências bibliográficas

CAMPY, M. e MACAIRE, J. J. (1989) - Géologie des formations supercielles. Masson,Paris, 433 p.

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606060606060403940392524

606060606060602536191311

601919191514172023221716

6060606060

606060606060605042382925

PS1

S10

S8

S2 PS3

E.N

. 236

30˚

30˚

60606060606060

S5

PS4

NF

NF

NF

ZG3

ZG2

ZG1

Superfície provável de escorregamento

Superfície dedeslizamento 2

Superfície de deslizamento 1

NF

Ancoragens de 400RNespaçados de 1.5m

Delimitação de zona passível de instabilizar

Corte P2-P2A

NF

ZG – Zona Geotécnica (1, 2 e 3)– Nível freático– Terreno Vegetal– Argilas– Grés arcósico– Superfície de escorregamento– Superfície de deslizamento 1– Superfície de deslizamento 2– Zona passível de instabilizar– Material escorregado

Legenda:

Fig. 4 - Perfil com individualização das três zonas geotécnicas e da superfície de escorregamento.(adaptado de SOPECATE, 1990).

Page 16: O Homem, causa próxima e principal receptor das trágicas ... · área da Geografia Física, não estivesse relacionado com a geografia humana (urbana), ou seja, abordando o tal

148 Luciano Lourenço

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