o grito denunciante de mariana alcoforado
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O artigo faz uma leitura contemporânea de Cartas Portuguesas, atribuídas a Mariana AlcoforadoTRANSCRIPT
O GRITO DENUNCIANTE DE MARIANA ALCOFORADO1
Valéria Moura Venturella2
Em 1669, um manuscrito anônimo denominado Lettres Portugaises Traduites en
François transitava nos altos círculos de Paris, causando grande excitação. O texto, a
reunião de cinco cartas, descrevia a candente paixão de uma religiosa portuguesa, Mariana,
por um oficial do exército francês nunca identificado. De conteúdo explícito e quase
indecoroso para a época, as cartas estiveram, por muito tempo, cercadas de misterioso
anonimato, o que as faziam ainda mais atraentes.
Desde aquela primeira edição do editor francês Claude Barbin, as Cartas
Portuguesas têm merecido centenas de edições em diferentes idiomas, além a atenção da
crítica literária e do público leitor. As missivas têm inspirado, entre outras obras, ensaios,
estudos, adaptações para a poesia, o drama e as artes plásticas. E também têm alimentado
uma polêmica que perdura até hoje: Seriam as cartas autênticas? Teria existido uma sóror
lusitana arrebatada a ponto de escrever cartas tão abrasadoras? Ou teriam sido as cartas
encomendadas por um editor interessado em estremecer a corte francesa e, ademais,
colher algum lucro?
A descoberta, no início do século XIX, de documentos comprovando a existência, à
época da redação das cartas, de uma religiosa chamada Mariana Alcoforado em um
convento em Beja, na região central de Portugal, reacendeu os debates sobre a
autenticidade das cartas. Em 1810, uma nota publicada pelo pesquisador francês Jean
François Boissonade de Fontarabie no jornal L’Empire, de Paris, divulgava o resultado das
pesquisas que apontavam o nome da até então desconhecida Alcoforado e do possível
destinatário das célebres Lettres Portugaises, o cavaleiro francês Noël Bouton, o Marquês
de Chamilly, um residente de Paris que tinha esposa e filhos (Museu Regional de Beja,
2007).
A nota explicava que Mariana Alcoforado fora uma das freiras da Ordem de Santa
Clara, do Convento da Conceição de Beja. Nascida em Beja em 1640, Mariana ingressou no
convento aos 11 anos e fez seus votos aos 16. Os registros confirmam que, por volta de
1663, Mariana conheceu Chamilly, oficial francês que na época – período das batalhas pela
restauração da monarquia portuguesa – servia em Portugal, fazendo parte das tropas
francesas de apoio ao Rei de Portugal. As informações confirmam também que, durante sua
1 Texto produzido como pré-requisito para a aprovação na disciplina Tópicos de Teoria da Literatura, ministrada pela Profa. Dra. Vera Aguiar no Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre – de março a julho de 2007.2 Mestre em Educação. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Teoria da Literatura da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Porto Alegre e professora dos cursos de Pedagogia e Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Campus Uruguaiana.
longa vida religiosa, Alcoforado exerceu as funções de porteira – como dizem as cartas – e
escrivã. Mariana faleceu em 1723, após mais de 70 anos no convento.
A existência de Mariana Alcoforado e a de seu amante não são postas em causa.
Documentos e registros as provam. A discussão que há é em relação a Mariana ser ou não
a real autora das cartas, discussão essa que divide os estudiosos em duas correntes: os
que defendem a autenticidade da autoria de Mariana e os que acreditam que a redação e a
publicação das cartas fazem parte de um chiste e de um ardil comercial praticado por
livreiros franceses.
De todo modo, essa controvérsia, aliada à intensidade da paixão sem reservas – real
ou ficcional – confessada por uma religiosa, e o escândalo que uma confissão desse tipo
representa até os dias de hoje, têm contribuído para o triunfo editorial que acompanha as
Cartas Portuguesas desde seu surgimento. Por sua vez, a sóror Mariana Alcoforado – ou
quem quer que seja a Mariana que escreve as belas e atormentadas cartas – tornou-se um
signo por excelência do amor desesperado no imaginário mundial.
Neste trabalho, apresento uma descrição de meu processo de leitura das Cartas
Portuguesas. Inspirei-me, para este procedimento, na tríade hermenêutica compreensão–
interpretação–aplicação tomadas como partes inter-atuantes de um processo que é único
(GADAMER, 1999) e que tem como objetivo último não apenas o conhecimento do que o
texto diz, e da maneira como o faz, mas o alcance de uma auto-compreensão e de uma
verdade que estão além do que é enunciado, e que residem na própria experiência
hermenêutica.
Para Gadamer, a compreensão do leitor faz parte do acontecimento originado pelo
texto, sempre uma ruptura em relação ao já estabelecido que, como tal, requer uma
interpretação. Ao buscar a compreensão, torno-me, assim, uma crítica do texto, mas
também do contexto histórico em que o texto se insere e da ideologia que o fundamenta.
Assim, é com o intuito de buscar uma compreensão aprofundada da história de vida e de
amor descrita pelas cartas de Mariana – e do âmbito da realidade que a circunda – que
realizo esta leitura.
É importante lembrar, no entanto, que a leitura que aqui apresento é uma das
infinitas possibilidades de compreensão do texto selecionado. Não pretendo estabelecer a
verdade única e total – pois, mesmo que tal verdade existisse, isso não seria factível – mas
uma verdade possível, e talvez apenas parte dela. Escolhi abordar Cartas Portuguesas a
partir do ângulo formado pela situação em que Mariana se encontrava e a relevância, para
ela, da escrita das cartas. Desse modo, a tríade compreensão–interpretação–aplicação aqui
exposta é parcial e subjetiva, e está aberta a interpelações que poderão originar debates
que só virão a enriquecer a reflexão.
As Cartas Portuguesas consistem nas cinco cartas de amor que sóror Mariana – seja
ela uma figura histórica ou uma personagem fictícia – escreveu, no espaço de cerca de um
ano, para seu ex-amante. Mariana habitava um convento português, mas não vivia em
clausura, pois podia receber visitas de familiares e amigos, e sair para passear e conversar.
Em um desses passeios, ela avista um oficial do exército francês por quem se sente
atraída. Curiosa, pergunta sobre ele para as amigas, que lhe falam muito bem dele. Quando
ela se mostra acessível, o homem se aproxima com galanteios e promessas. Os dois
iniciam, então, um relacionamento, e ela passa a receber visitas dele em sua habitação no
convento.
Jovem e inexperiente, ela acredita estar vivendo um grande amor, e crê também que
sua paixão avassaladora é plenamente correspondida, uma vez que as palavras e os gestos
do militar francês são sempre doces e apaixonados. Ele lhe dedica atenções, lhe oferece
presentes – pulseiras e um retrato seu – e a cobre de elogios.
No entanto, subitamente, o oficial alega ter recebido uma carta de convocação e
decide retornar à França, deixando a mulher para sempre. Ela passa a viver, então, na
espera por suas cartas, e nas lembranças de seu relacionamento. As visitas nunca ocorrem,
mesmo quando ele vai a Portugal. As cartas, quando chegam, nunca são com o ardor que
ela desejaria.
As cartas de Mariana expressam, primeiramente, a intensa paixão e as alegrias que
as lembranças de seu affair lhe trazem, apesar do sofrimento causado pela distância que
existe entre os amantes. Aos poucos, porém, à medida que as respostas do homem vão lhe
causando decepção e tristeza, as cartas passam a expressar toda a solidão, a
desesperança e a ansiedade que tomam conta de toda sua vida, e a desconfiança de que
ele não a amou como ela acreditava.
Em sua última carta, desapontada com a indiferença do ex-amante, esgotada pela
intensidade e o sem-sentido de seus sentimentos, Mariana anuncia seu rompimento com as
lembranças e com o amor que ela havia decidido cultivar e reverenciar pelo resto de sua
vida.
Como as Cartas Portuguesas foram publicadas pela primeira vez anonimamente e
em francês, há duas doutrinas diferentes no que se refere à sua origem, e há vestígios e
evidências para sustentar ambas (ALCOFORADO, 1999). A versão portuguesa sustenta que
as missivas foram escritas por Mariana Alcoforado para o Marquês de Chamilly, duas
pessoas que realmente viveram e se conheceram no Portugal do século XVII. Já a corrente
francesa afirma que Gabriel Joseph de Lavergne, o Conde de Guilleragues – que na edição
francesa de 1669 é apresentado como o tradutor das cartas – é o verdadeiro autor dos
textos. Sabendo que ambas as versões para a história das Cartas podem ser verdadeiras, é
necessário que consideremos as duas instâncias diferentes de leitor pressupostas pelo
texto.
Se as cartas são autênticas, ou seja, se elas foram realmente escritas por uma
religiosa portuguesa do século XVII ao homem por quem era apaixonada, então essa é uma
escrita autobiográfica, íntima e pessoal, uma escritura que tem o propósito de manter vivos
os sentimentos que lhe são tão caros e de sensibilizar o destinatário. O leitor a quem a
redatora se dirige é apenas um, o militar que ela ama e anseia por rever. As cartas se
referem a eventos que ambos vivenciaram, lugares onde estiveram juntos e diálogos que
tiveram. Ao lermos essas mensagens, mesmo séculos após sua escrita, estamos violando a
intimidade de Mariana, e nos apropriando de seus pensamentos e sentimentos mais
privados.
No entanto, se as Cartas foram escritas pelo homem que se identificou como seu
tradutor, então elas são ficcionais, e – por terem sido apresentadas ao público envoltas em
um grande segredo – têm um fim ao mesmo tempo comercial, zombeteiro e denunciatório.
Porém, considerando que o texto é anônimo, elas visam um público leitor disposto a
acreditar que missivas assim poderiam ter sido escritas, e imaginar vivamente os eventos
narrados e as disposições expressas pela personagem imaginada Mariana.
Em ambos os casos, no entanto, é possível considerar que Mariana é uma
personagem, seja elaborada pelo autor de um romance epistolar – o primeiro registrado na
história da literatura ocidental, se for o caso – seja construída por ela mesma.
Georges Gusdorf (1991) nos lembra que, mesmo nos escritos mais íntimos, naqueles
que o autor não tem intenção alguma de divulgar, o “eu” expresso não é o real, fragmentado
e contraditório que efetivamente existe, mas um “eu” reconstituído, resultante de um
processo de integralização e preenchimento de lacunas que ocorre quando o escritor avalia
o que é, sente, pensa e faz, e expressa o que poderia ser, se fosse verossímil. Se Mariana
for mesmo a autora das cartas, ao se escrever, ela se reconstrói, compondo esta
personagem que nos é apresentada.
Além disso, sejam as cartas legítimas ou não, sua leitura nos convoca a evocar o
tempo e o lugar em que Mariana viveu e encontrou seu amado, a existência a que estava
destinada, e o modo como lidou com seu arrebatamento. Há aspectos dessa história, assim,
que estão acima da discussão a respeito de sua autenticidade, e são esses os aspectos que
me proponho a discutir. Ao ingressarmos no mundo de Mariana – seja ele histórico ou
literário – somos chamados a procurar conhecer sua condição e a buscar compreender seu
amor e os motivos pelos quais ela escreveu suas desoladas e desvairadas cartas.
Mariana é uma jovem lusitana bonita e saudável. Como vive e é educada em um
convento desde criança, ela deve ser filha de uma família bem estabelecida da região.
Mariana demonstra seu refinamento e a educação caprichada que recebeu em sua redação,
que expressa, em linguagem bem-cuidada, os valores e as atitudes que são esperados de
uma moça em sua situação.
Mariana, no entanto, tem uma vida vazia. Apesar de ter crescido em uma instituição
religiosa, não demonstra fervor nem recorre à fé para encontrar sentido para sua existência.
Embora tenha contato com pessoas exteriores ao convento, esses são bastante esparsos, e
ela não considera interessantes as pessoas que encontra. Ela tem pouco a ocupar sua
mente, não se dedica à leitura ou aos estudos, e as poucas atividades a que se dedica não
parecem lhe exigir concentração ou esforço. Mariana tem muito tempo ocioso, tempo para
suspirar por amor “mil vezes ao dia” (ALCOFORADO, 1999, p. 12).
É importante que lembremos que Mariana viveu no século XVII, uma época em que
as mulheres não tinham qualquer atividade produtiva na sociedade, tendo seu papel
reduzido aos afazeres domésticos, à procriação e à socialização primária da prole. Em
famílias em que o número de filhas era grande, as mais jovens eram destinadas à vida
religiosa (CABREIRA, 2006). Esse era possivelmente o caso de Mariana.
Nessas condições, encontrar um homem que ela considera atraente e agradável e
que lhe dedicou atenções como ela nunca antes havia recebido foi um acontecimento na
vida da solitária e ingênua Mariana: “eu era jovem e crédula, tinham-me encerrado neste
convento desde minha infância, só tinha visto pessoas desagradáveis, nunca ouvira as
lisonjas que sem cessar me dirigia. Parecia que era a si que eu devia os encantos e a
beleza que dizia encontrar em mim e de que me fazia dar conta” (op. cit. p. 66), ela
compreende. Para prolongar os novos sentimentos que experimentava, Mariana estava
disposta a arriscar o pouco que tinha: sua reputação e as relações superficiais que tinha
com sua família e amigos.
Assim, mesmo sabendo que jamais poderá ter esse homem, Mariana se entrega
totalmente à nova experiência. De alma ardente e personalidade espontânea, ela expressa
sem reservas o que a atormenta: uma paixão verde, cheia de contradições: por vezes
abnegada, altruísta e compreensiva, mas por vezes exigente – um sentimento que espera
uma retribuição à altura de sua devoção – e até mesmo arrependida e acusatória.
No entanto, obsessivamente, ela afirma que o sofrimento em que se encontra é um
pequeno preço a ser pago pelo privilégio de ter amado e sido amada. Ela prefere a dor ao
vazio. E, assim, Mariana passa a se definir por esse amor e dele extrair o próprio sentido
para sua vida. “A minha religião e a minha honra”, clama, “faço-as consistir unicamente em
te amar loucamente por toda a minha vida” (op. cit. p. 23). A libertação total que ela oferece
a seus sentimentos contrastam fortemente com o amordaçamento a que sua vida estava
submetida.
Por outro lado, esse é um amor que para Mariana é fonte de prazer estético. Não
apenas ela se orgulha de ter sido o alvo das atenções daquele homem que tanto admira,
mas também acredita ser a única a poder amá-lo tão intensamente. Incessantemente, ela
lhe faz lembrar que jamais encontrará tão completa entrega, tão enorme admiração,
tamanha devoção. Mariana cultiva uma imagem de como uma mulher apaixonada deve
viver –os delírios e desfalecimentos, a falta de sono e de apetite, o querer morrer – e se
esforça para agir de acordo com ela, sentindo-se envergonhada e arrependida quando
acredita não ter se comportado à altura dos sentimentos que cultiva.
Neste momento, podemos nos perguntar: Afinal, o que Mariana sente? Quais são os
fundamentos desse sentimento? O que o alimenta? Qual seria o verdadeiro objeto de sua
paixão: o homem que a provocou ou a própria vivência dos sentimentos?
O amor que Mariana expressa é muito similar às intensas sensações eternizadas
pelos cavaleiros, poetas e trovadores da idade média, o chamado amor cortês. Esse é um
sentimento imaterial e sacrificial, fundamentado em confissões de amor, seja por palavras,
gestos, ou mesmo olhares, cuja retribuição esperada é o próprio gesto de reconhecimento
do amor, mas jamais a entrega do corpo (Macfarlane, 1990).
O enlevo de Mariana, embora à primeira leitura possa soar carnal, pode ser
interpretado, em uma leitura mais atenta, como puramente espiritual, uma entrega da alma
que encontra sua expressão em belas declarações de amor. E o que ela espera em retorno
é apenas o acolhimento desse amor, uma atitude receptiva por parte daquele que é o alvo
dessa grande paixão.
É interessante perceber, entretanto, que, embora saiba que seu apaixonado é um
guerreiro em plena campanha, Mariana parece estranhamente desinteressada de seu
destino. Em suas cartas, há sobre os perigos a que ele poderia estar submetido apenas uma
menção. “Acaba de me dizer o teu lugar-tenente que uma tempestade de obrigou a arribar
ao Reino de Algarve. Receio que tenhas sofrido muito no mar”, diz, na abertura de sua
quarta carta, para logo depois complementar “e essa apreensão de tal modo ocupou o meu
espírito que não pensei mais nos meus próprios males” (op. cit. p. 39). O decorrer desta
carta, no entanto, trata apenas dos males de Mariana, que se sente abandonada e não-
correspondida em seu sentimento tão sublime.
Outrossim, mesmo depois de já ter abatido, dentro de si, os sentimentos que nutria
pelo oficial francês, Mariana continua amando seu amor. “Só conheci bem o excesso do
meu amor quando quis fazer todos os esforços para me curar dele (...). Tive então a prova
de que lhe quero menos do que à minha paixão” (op. cit. p. 57). Lucidamente, Mariana
compreende e admite que suas sensações são, para ela, mais significativas que o homem
que inicialmente os inspirou. Essa exaltação amorosa é seu maior patrimônio, e toda sua
revolta contra o militar francês se deve a ele não se mostrar merecedor. “Detesto sua
sinceridade! Acaso tinha lhe pedido que me dissesse sinceramente a verdade? Por que não
me deixou com a minha paixão? Tudo o que tinha a fazer era não me escrever: eu não
procurava ser esclarecida” (op. cit. p. 58). Tudo o que Mariana queria era poder continuar
amando, prendendo-se, assim, ao que era, afinal, sua razão de viver.
Antes de considerar o militar francês um insensível, é importante lembrarmos que, do
início ao fim das cartas, ouvimos apenas a voz de Mariana. Conhecemos essa grande
história de amor somente pelo ponto de vista da mulher que escreve. Nada sabemos sobre
o homem que ela ama a não ser o que nos é contado por ela, o que passa por seu filtro.
Assim, a grande lacuna nessa narrativa é a perspectiva do outro. Se efetivamente há uma
interlocução, não sabemos o que ele diz. Também não sabemos quem ele é, o que fez,
como se sente em relação a Mariana e ao arrebatamento que ela expressa. Ignoramos o
papel que a moça teve em sua vida.
Como a comunicação a que temos acesso é unilateral, somos levados a especular.
Teria um relacionamento de fato acontecido? Seria mesmo esse um caso de amor
compartilhado? Ou teria Mariana tomado as amabilidades do homem por amor, e os poucos
diálogos que tiveram por um ardente romance? Teria Mariana plena consciência do que lhe
acontecia? Saberia ela a diferença entre um flerte e um affair?
Embora da ponto de vista dela – que é só o que temos – o romance pareça real, os
poucos indícios que Mariana nos oferece a respeito do conteúdo das cartas dele pode nos
levar a crer que tudo poderia ter sido delírios e exageros na mente de uma jovem solitária e
sugestionável. De fato, ela se enfurece com o que define como os “impertinentes protestos
de amizade e as delicadezas ridículas de sua última carta” (op. cit. p. 57), indicando que o
homem talvez não considere esse relacionamento do modo como ela o faz.
Até mesmo a comiseração que as outras religiosas e seus familiares demonstram ao
vê-la definhar de amor intenso sugere que Mariana poderia estar presa a um amor que era
dela apenas, que jamais encontrou ou encontraria correspondência. Talvez as pessoas não
fossem tão compreensivas com uma religiosa que houvesse efetivamente quebrado seus
votos e comprometido sua própria reputação e a da instituição a que pertence para
consumar uma paixão. Se o próprio irmão de Mariana se oferece, como ela afirma, para
levar suas cartas ao destinatário, talvez ele mesmo pense que seu conteúdo não passa das
inocentes fantasias de uma pobre moça cuja vida é vazia. Talvez ele chegue a acreditar que
escrever tais cartas torna a vida dela um pouco menos oca, seu tempo um pouco menos
perdido.
Neste ponto da leitura podemos nos perguntar: O que são as cartas para Mariana? O
que elas significam? Por que, afinal, ela escreve? Mariana sabe – sempre soube – que sua
escrita pouca influência terá sobre seu destinatário. As decisões foram todas tomadas, o
homem partiu para sempre e não deixou para ela qualquer esperança de retorno. Mesmo
assim, ela insiste em escrever.
Ao redigir as cartas, Mariana se envolve em seus sentimentos, expressa seu zelo
para com essa paixão, cultiva suas lembranças. Enfim, ao escrever, ela dedica tempo e
energia a seu amado e a seu amor, prolongando sua experiência. Ao mesmo tempo, a
escrita das cartas é um exercício estético. Não é sem apuro que ela escreve. Suas cartas
são sensuais e bastante explícitas, mas sempre bem-cuidadas e sofisticadas. As palavras
são esmeradamente escolhidas, a estrutura é coesa, e as mensagens finais são sempre um
forte apelo. Mariana extrai enorme prazer estético da redação de suas cartas.
Mas, acima de tudo, podemos concluir que a escritura das cartas se constitui em um
processo reflexivo, resultante de momentos de encontro dela consigo própria, com o que
pensa, sente e vive. “Eu escrevo mais para mim do que para ti, e aquilo que procuro é
consolar-me” (op. cit. p. 52), admite. Escrever, para Mariana, é contemplar, compreender e
registrar. A escrita é uma prática de concretização das meditações e das sensações que
abriga, que permite, através do alcance de um certo distanciamento, tanto o ordenamento
de suas disposições quanto a permanência de suas meditações.
Escrever é desafiar a morte. Através da palavra materializada, instantes privilegiados
são eternizados. A escrita permite que nossas elaborações nos transcendam espacial e
temporalmente. Por outro lado, Segundo Bárbara Tuchman (1991), o ato da escritura é
sempre acompanhado do desejo de ser lido. Nenhum texto vive, diz a autora, a não ser que
seu autor vislumbre o leitor.
Nesse sentido, é interessante perceber que as cartas de Mariana não designam um
destinatário, não são assinadas ou datadas. O lugar de onde escreve nunca é referido.
Embora indiretamente ela se identifique e se dirija a seu interlocutor, a procedência e o
destino das cartas nunca são indicados explicitamente. É como se Mariana estivesse
falando por todas as mulheres de sua condição a todos homens na situação de seu amado
– ou a quem quer que se disponha a lê-la – em qualquer tempo ou lugar do mundo. Ao
escrever, Mariana revela e denuncia quem é e como vive.
As Cartas Portuguesas entraram para a história da literatura ocidental como “um
símbolo do amor total” (op. cit., p. 8), a expressão máxima da entrega a uma paixão sublime
e da ansiedade e da solidão inerentes a um amor impossível e não correspondido. A força
dos sentimentos expressos nas cartas fez com que perdurassem no tempo, despertando a
reverência e a compaixão de leitores do mundo todo, e tornando-as o ícone por excelência
da paixão feminina sem limites.
Muito mais do que isso, no entanto, essa é a narração de um longo processo de
aprendizagem. Mariana narra, em suas cartas, seus esforços íntimos para lidar com a
paixão avassaladora que a consome, para preservar o sentimento que é sua própria vida e,
por fim, quando o sentido de tal paixão se perde, para tentar superá-lo e retomar a vida que
sempre teve e que está destinada a continuar.
Enclausurada, – não tanto em um convento mas, acima de tudo, em uma existência
sem qualquer valor – Mariana aprende a amar, a amar seu amor, a desamar e a planejar
novo amor. Essa mulher, no entanto, diferentemente de tantas outras que passaram pelo
mesmo, registra o que vive. E, à medida que escreve, com os avanços e retrocessos que
caracterizam todo amadurecimento, Mariana também percorre o caminho que a leva à
consciência de si e de sua condição. Alcançando, pouco a pouco, um distanciamento que
lhe permite o discernimento, ela reflete sobre o tipo de existência a que está condenada, o
sem-sentido de sua existência e a mediocridade de sua condição.
Acima de tudo, a leitura das cartas se configurou em uma tomada de consciência
para mim também. Para além da moça solitária, imatura e absurdamente enamorada,
aprendi a perceber Mariana como uma mulher que alcançou a maturidade e a lucidez, uma
rebelde que teimou em escapar à sua condição e encontrar algo por que viver, um substrato
em que se apoiar, e um pretexto para deixar sua marca no mundo.
Com suas cartas, longe de lançar um grito absurdo – um apelo para o vazio, um
clamor para o nada – Mariana registrou definitivamente uma pungente denúncia: a vida das
mulheres de seu tempo, a inutilidade de suas existências, a miséria de suas experiências.
Ao se entregar à sua paixão e ao escrever suas cartas, Mariana repudiou seu destino, e
recusou o vácuo e a obscuridade em que viviam as mulheres de sua época. Ao amar e
escrever, Mariana Alcoforado, seja ela real ou imaginada, entrou, para sempre, para a
História.
REFERÊNCIAS
ALCOFORADO, Mariana. Cartas Portuguesas. Porto Alegre: L&PM, 1999.’
CABREIRA. Regina Helena Urias. A condição feminina na sociedade ocidental contemporânea: uma releitura de A Letra Escarlate de Nathaniel Hawthorne. 2006. Tese (Doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas). – Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2006.
GUSDORF, Georges. Le journal intime: dire ma vérité. In: __________. Lignes de vie: écriture du moi. Paris: Odile Jacob, 1991, p. 317-346.
MCFARLANE, A. História do Casamento e do Amor. São Paulo: Cia das Letras, 1990.Museu Regional de Beja. [On line]. Disponível em: «http://www.museuregionaldebeja.net/sorormarianaalcoforado.htm» Acesso em: 25 jun. 2007.
TUCHMAN, Bárbara W. A prática da história. Rio de Janeiro, José Olympio, 1991.