o “gosto” do se7e · segunda forma como o se7e imaginou os tempos livres dos seus leitores...

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1 O “Gosto” do Se7e Uma história cultural do semanário Se7e (1978-1982) Introdução: uma cultura para tempos livres falta-me, no Sete, o espectáculo da literatura. (…) Que alguém no Sete pegue em livros, como pega em filmes, peças ou discos, planificando o espectáculo da palavra lida. Dinis Machado Quando foi lançado, em Junho de 1978, o semanário Se7e procurou desenhar uma quadratura do círculo: materializar uma ideia de cultura politizada na esteira do período revolucionário e reflectir a crescente oferta de espectáculos e procura de tempos livres junto do público urbano em contexto pós- revolucionário. Tal combinação era bastante contra-intuitiva. De facto, desde a sua génese, a cultura de resistência das décadas anteriores fora tanto um anti- fascismo como uma crítica das indústrias culturais e do espectáculo. A ambivalência do Se7e, porém, pode explicar-se a montante e a jusante da relação que o semanário procurou estabelecer com os seus potenciais leitores. Por um lado, apesar da generalidade dos redactores perfilhar uma cultura militante de esquerda 1 , esta estava já entretanto mediada por formas de transgressão cultural emergentes nos anos 60, onde a rebeldia tinha em geral tomado o lugar da ideologia. Por outro lado, o jornal respondeu – como a imprensa sempre faz – a um público imaginado que, naquele contexto da sociedade portuguesa, era visto como essencialmente urbano, culturalmente cosmopolita, mas também progressivamente despolitizado. Podemos começar a definir o perfil deste público através das várias secções do semanário. Enquanto a primeira metade era preenchida por críticas e entrevistas que faziam o estado da arte no cinema, na televisão, na música e no teatro, quase todo o restante espaço do jornal dedicava-se, precisamente, a imaginar e a procurar preencher os tempos livres dos leitores. Isto era feito de duas formas. 1 O Se7e foi uma publicação da Projornal, sociedade de jornalistas que também editava o semanário de esquerda O Jornal.

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O “Gosto” do Se7e

Uma história cultural do semanário Se7e (1978-1982)

Introdução: uma cultura para tempos livres

falta-me, no Sete, o espectáculo da literatura. (…) Que alguém no Sete pegue em livros, como pega em filmes, peças ou discos, planificando o espectáculo da palavra lida.

Dinis Machado

Quando foi lançado, em Junho de 1978, o semanário Se7e procurou desenhar

uma quadratura do círculo: materializar uma ideia de cultura politizada na

esteira do período revolucionário e reflectir a crescente oferta de espectáculos e

procura de tempos livres junto do público urbano em contexto pós-

revolucionário. Tal combinação era bastante contra-intuitiva. De facto, desde a

sua génese, a cultura de resistência das décadas anteriores fora tanto um anti-

fascismo como uma crítica das indústrias culturais e do espectáculo. A

ambivalência do Se7e, porém, pode explicar-se a montante e a jusante da relação

que o semanário procurou estabelecer com os seus potenciais leitores. Por um

lado, apesar da generalidade dos redactores perfilhar uma cultura militante de

esquerda1, esta estava já entretanto mediada por formas de transgressão cultural

emergentes nos anos 60, onde a rebeldia tinha em geral tomado o lugar da

ideologia. Por outro lado, o jornal respondeu – como a imprensa sempre faz – a

um público imaginado que, naquele contexto da sociedade portuguesa, era visto

como essencialmente urbano, culturalmente cosmopolita, mas também

progressivamente despolitizado.

Podemos começar a definir o perfil deste público através das várias secções do

semanário. Enquanto a primeira metade era preenchida por críticas e entrevistas

que faziam o estado da arte no cinema, na televisão, na música e no teatro, quase

todo o restante espaço do jornal dedicava-se, precisamente, a imaginar e a

procurar preencher os tempos livres dos leitores. Isto era feito de duas formas.

1 O Se7e foi uma publicação da Projornal, sociedade de jornalistas que também editava o semanário de esquerda O Jornal.

2

Primeiro, o jornal dava resposta ao crescimento da oferta cultural procurando

reunir no suplemento ‘Roteiro’ a informação exaustiva do que naquela semana se

podia ver nos cinemas, nos teatros e nas salas de concerto, bem como a

programação televisiva e radiofónica, e ainda os novos discos e livros (mais os

primeiros que os segundos), informação sobre museus, exposições, bares, etc. A

segunda forma como o Se7e imaginou os tempos livres dos seus leitores invertia,

de algum modo, a lógica da recepção subentendida no ‘Roteiro’, pois para além

da quantidade de eventos que justificavam a sua existência, o suplemento era

também testemunha de uma diversificação de actividades que combinava

cultura e o entretenimento, as duas razões de ser do semanário. Ou seja, pode

dizer-se que a mistura de discos com televisão, ou de cinema com teatro, era a

expressão de uma variedade que pressupunha um leitor aberto a vários géneros.

Esta ideia de leitor mais autónomo e exposto à diversidade explica, finalmente, a

extensa secção dedicada às actividades de tempos livres com que o semanário

preenchia o último terço das suas páginas. Aqui, o leitor era convidado a ir além

do mero consumo de bens culturais e a desenvolver ele próprio as suas formas

de lazer: através do passeio, que implicava saber fazer percursos e calcular os

gastos (‘Quanto custa um fim-de-semana em Sesimbra?’), nomeadamente na

manutenção do automóvel (‘Como poupar gasolina’), mas que implicava também

um reencontro do público urbano com a natureza, através de actividades como o

campismo (‘Que fazer para começar?’) ou a pesca (‘Um bom pescador ama a

natureza’2).

Em suma, o peso dado aos tempos livres pressupunha a existência de um

público que, simultaneamente, vivesse onde havia uma oferta cultural

diversificada e com poder de compra, tempo de lazer e abertura a novos hábitos

e experiências. Esta disponibilidade implicava também um processo de

terceirização suficientemente amadurecido para desenvolver as suas próprias

formas culturais e simbólicas, uma cultura de classe média onde se combinava,

sem necessariamente se distinguir, consumismo e capital cultural.3 No fundo,

2 Estes títulos foram retirados da edição do Se7e de 22-6-78, aqui escolhida a mero título de exemplo. 3 A publicidade é aqui um bom indicador do estrato social deste leitor imaginado. Pelo Se7e proliferam não só os anúncios que testemunham novos espaços de consumo (nomeadamente os

3

estas formas de autonomização (do lazer, do consumo) e de aspiração (cultural,

simbólica) eram ainda um outro modo de articular a tensão entre

cosmopolitismo e despolitização, tensão que era afinal o que enquadrava a

ambivalência entre cultura e espectáculo dentro do semanário. Alguns

inquéritos, já no início dos anos oitenta, parecem confirmar a ideia de que o

perfil sociológico do leitor correspondia às formas sociais e culturais mais

visivelmente emergentes: o Se7e garantia, então, que mais de 400,000 pessoas

tomavam semanalmente contacto com os 80,000 exemplares do jornal; que este,

em poucos anos, se tinha tornado o maior semanário português; e que a maior

parte dos leitores era constituída por jovens (entre os 15 e os 24 anos) e

mulheres (53%) oriundos das classes média e média-alta.4

Este artigo procurará fazer uma história cultural dos primeiros anos de

publicação do Se7e. Cultural, não porque os seus conteúdos falem de cultura, mas

na medida em que analisará as negociações que o jornal estabeleceu entre a ideia

de cultura dos seus colaboradores, por um lado, e o modo como esses mesmos

jornalistas e críticos imaginavam os seus leitores num contexto marcado por

uma aguda percepção de mudança social.5 Neste sentido, o que o Se7e publica

pode ser lido como uma rede densa de discursos por onde o jornal

simultaneamente comenta e participa no seu contexto, tornando-se assim num

documento particularmente revelador de uma percepção que julgo dominante

entre os contemporâneos, a de que a passagem da década de setenta para os

anos oitenta significou o fim de uma história preenchida pelos dramas do

autoritarismo nacionalista e da rebeldia revolucionária, e a chegada de uma

sociedade mais livre, aberta e próspera, mas também mais conformista. Mas

como esta é uma história, ou seja, um processo de mudança em que cada

decomposição implica algum modo de recomposição, veremos como o fim de

hipermercados) e estilos de vida (‘é tão giro ter um Mini’), mas também formas de valorização sócio-profissional, como o ensino de línguas ou a introdução à informática. 4 Cf. Se7e, 9-6-82. 5 Esta abordagem enquadra-se assim numa história das formas e dispositivos culturais (tanto ou mais que dos conteúdos propriamente ditos), como recentemente proposto por Dominique Kalifa (Kalifa 2008).

4

alguns paradigmas culturais implicou a emergência de outros, e com eles de

novas subjectividades e ideais.

1. O “gosto” do Se7e

Quando as pessoas vêm ao teatro apenas por distracção e divertimento, algo está errado. Ninguém deve entrar num teatro com o propósito de descansar dos problemas da vida lá fora, o

teatro deve servir como tema de reflexão.

Luís Miguel Cintra

Apesar do esforço para cobrir todos os acontecimentos do campo cultural, não

é difícil identificar as preferências dos principais redactores do jornal, tanto no

que diz respeito a autores em cada género artístico, como em relação às

diferentes áreas culturais. Destas, as preferidas eram claramente o cinema, o

teatro e várias formas de música popular. A televisão e, em menor medida, a

rádio, ocupavam o mesmo espaço no interior do jornal, mas gozavam de muito

menos simpatia. Às artes plásticas e à literatura, outrora privilegiadas no campo

cultural, era prestada menos atenção, não porque não fossem apreciadas, mas

por serem menos compatíveis com a forma do espectáculo. A vigilância crítica

em relação à televisão era inversamente proporcional ao gosto pelas outras

artes. Pode dizer-se até que o problema da televisão era, precisamente, não

transmitir os concertos, as peças e os filmes que os redactores do Se7e

privilegiavam. Mas não era uma simples questão de preferência por este ou

aquele autor. O “gosto” do semanário pode definir-se por um conjunto de valores

que talvez não seja possível reduzir a uma determinada corrente ou estilo, mas a

que facilmente chamaríamos anti-televisivo, pelo experimentalismo artístico, a

consciência política e o enraizamento popular. A RTP era criticada por ignorar

estes valores culturais, mas como a televisão era cada vez mais o instrumento

que determinava a visibilidade do espaço público, sem ela tais valores corriam o

risco de ficar escondidos.

O perfil editorial do Se7e pode assim ser definido pela defesa de formas

culturais em processo de marginalização que viviam, por isso mesmo, em

5

permanente estado de fragilidade: o teatro independente, o cinema de autor e a

música popular de pesquisa e empenhamento social. Em 1979, António Macedo,

um dos seus principais críticos musicais, podia ainda assegurar que no caso da

música ‘a qualidade está à esquerda’6, mas talvez não fosse tanto por aí que a

cultura por que o Se7e combatia era marginalizada. Ou melhor, os seus

encenadores, realizadores e cantores eram evidentemente de ‘esquerda’ mas o

que parecia estar verdadeiramente em causa era o modo como os novos

mecanismos de legitimação televisiva pareciam pouco sensíveis ao que no Se7e

se entendia por ‘qualidade’. A progressiva divergência entre os critérios

dominantes do entretenimento e os obstáculos postos à ‘qualidade’ farão com

que o que era considerado político, na esfera cultural, se autonomize de questões

como os artistas serem de esquerda ou de direita, e se coloque, cada vez mais, em

termos da sua subsistência e financiamento.

O Se7e vai neste sentido acompanhando de perto o funcionamento material

das companhias, dando voz às propostas de grupos teatrais e produtores

cinematográficos quanto à relação dos seus respectivos sectores com o Estado,

alertando para os momentos de crise (como quando o financiamento para o

cinema é suspenso7) e escrutinando a política dos Secretários de Estado da

Cultura. Desta forma, o jornal funciona como porta-voz dos interesses culturais

junto do poder político e do público, mas fá-lo em nome da sua própria ideia de

cultura e que tais interesses legitimamente representavam. Para tal não bastava

a informação exaustiva do que era produzido, nem sequer a pressão constante

sobre o poder político. Para que os grupos de teatro independente ou o cinema

de autor continuassem a ocupar um estatuto que justificasse o seu financiamento

público era necessário insistir na mais-valia especificamente cultural de criações

que, para além desse, não garantiam outro tipo de retorno. Mais do que pelo

‘Roteiro’ ou pela sua combatividade política, então, o que verdadeiramente

distinguiu o Se7e foi a criação de um jornalismo cultural que acompanhava a

produção de uma peça ou de um filme, por exemplo, desde o planeamento até à

exibição, através de críticas, reportagens e entrevistas com actores, autores,

realizadores, encenadores, etc.

6 Se7e, 25-4-79, 13. 7 Por exemplo em ‘Cinema Português: a grande seca’, Se7e, 13-1-82, 10.

6

A partir deste jornalismo especializado é então possível proceder a uma

reconstituição dos critérios de legitimação cultural perfilhados pelo Se7e. No

essencial, da escolha dos temas de filmes e peças à sua forma de realização e

encenação, os autores mais próximos do semanário eram aqueles que

procuravam trazer para a cena e para o ecrã problemas que, através de algum

tipo de mediação (os clássicos, autores estrangeiros, o passado) obrigassem o

público a pensar sobre o mundo. É assim que Hélder Costa, do teatro A Barraca,

justifica em 1980 a encenação de Morte de um Anarquista, de Dario Fo, uma peça

deliberadamente política, como uma forma de ‘entrar [no] debate’ ‘sobre os

processos que asseguram a chamada “paz social”’.8 Mas mesmo uma peça

histórica como D. João VI, que a companhia levou à cena no ano anterior, era

vista como uma tentativa de ‘criar um sentimento de repugnância e alerta contra

os que manipulam os hesitantes para depois os traírem.’9 A origem italiana da

primeira peça ou o ambiente oitocentista da segunda eram secundários. As

questões que ambos os textos levantavam deviam ser vistas como intervenções

no contexto da sua produção, um momento em que a política, para Hélder Costa

como para o Se7e, estava controlada por demagogos e submetida a um estado

geral de apatia.

Mas apesar desta mediação teatral – o texto estrangeiro para pensar a

despolitização, o texto histórico para pensar a demagogia – a política aqui

discutida era ainda a política tradicional dos partidos e das eleições. Já a

Cornucópia, outra das companhias cuja actividade o Se7e acompanhava a par e

passo, procurava nessa altura desviar a questão política para os problemas

específicos do teatro, e reflectir sobre a tensão entre êxito e ‘qualidade’, ou seja,

sobre até que ponto o teatro devia ser ‘difícil’ e apresentar-se como um desafio

colocado ao público. Nestas circunstâncias, este deixa de ser visto como eleitor

(que seria preciso alertar para as corrupções do sistema político) e torna-se o

espectador propriamente dito, enquanto a responsabilidade pela corrupção a

que se opõe um teatro como o da Cornucópia era agora atribuído às formas de

entretenimento. Em suma, a acção política da companhia consiste em resistir,

pelo binómio qualidade/dificuldade, às formas de massificação cultural.

8 In Se7e, 21-2-80, 10. 9 In Se7e, 16-5-79, 7.

7

Pela voz de Luís Miguel Cintra, a sua figura mais destacada, a Cornucópia vai

assim experimentando as linguagens teatrais politicamente mais eficazes

naquele contexto, se uma peça ‘agressiva na abordagem dos temas que andaram

na cabeça das pessoas e nas suas preocupações desde o 25 de Abril’10, se arriscar

‘fazer coisas que não nos diziam respeito ou que eram tão difíceis que não

podiam ser apreendidas em duas horas de espectáculo.’11 Um mesmo dilema

parecia percorrer também o cinema português contemporâneo, entre filmes

capazes de atrair os espectadores para questões explicitamente políticas (nestes

anos, o jornal oscilará entre um documentário militante como Bom Povo

Português, de Rui Simões, e a memória intimista da Revolução em Oxalá!, de

António Pedro Vasconcelos) e a pesquisa de uma linguagem cinematográfica

mais subversiva, não necessariamente por abordar interditos políticos, mas por

romper com o ritmo e o imaginário da televisão.

Em suma, a tensão que percorre as formas culturais que o Se7e usava como

referência, e para cuja canonização contribuiu, estabeleceu-se entre dois tipos de

politização artística: uma que levantava problemas do presente, ou que

revisitava autores e reinventava imaginários (formas sempre mediadas com que

a arte política sobreviveu após o período de militância revolucionária), outra que

deslocava o alvo da política ou da história para a nova hegemonia do audiovisual,

com consequências ainda mais radicais para a prática artística (como vimos no

caso da Cornucópia, ou como, no cinema, começou a ser visível em filmes de

realizadores como Manoel de Oliveira, João César Monteiro ou João Botelho). O

paradoxo de todas estas obras é que ao opor a qualidade à hegemonia televisiva,

condenavam-se a um estatuto de marginalidade que era, desde o início, o motivo

principal das suas críticas.

Tal paradoxo será o principal motivo para a relação conflituosa que o jornal

estabeleceu com a RTP. Ainda assim, entre a crítica do espectáculo televisivo e a

luta pela sobrevivência num meio cada vez mais dominado pela televisão, uma

boa parte do teatro independente e do cinema de autor encontrará uma outra

fórmula para preservar a sua legitimidade cultural. Segundo esta fórmula, era

precisamente por ser complexo e problematizador, por ir além da espuma das

10 In Se7e, 28-5-80, 8. 11 In Se7e, 3-10-79, 12.

8

transmissões televisivas e da política do momento, que este teatro e este cinema

tocavam as grandes questões da identidade nacional. É assim, por exemplo, que

uma peça histórica como Fernão, Mentes? do Teatro A Barraca passa de ‘balanço

do colonialismo português’ para ‘balanço objectivo do bom e do mau que se fez

para frisar que o acto mais importante do Renascimento europeu foram os

descobrimentos portugueses’12; ou que, no cinema, segundo João Botelho,

‘depois de se terem feito, logo após o 25 de Abril, filmes de circunstância de que

nada ficou, nós, realizadores, começámos a olhar para os temas da identidade

nacional’13, uma tendência nacionalizadora que, em nome da autonomia da

criação, legitimou as formas de teatro e de cinema com um perfil identitário mais

vincado. A partir daqui, a expressão autêntica das raízes da cultura portuguesa

tornava-se sinónimo de qualidade e liberdade artística, e o seu valor

propriamente nacional tornar-se-á no principal argumento para justificar uma

maior visibilidade (nomeadamente na televisão).

2. A Cultura Televisiva

[a] televisão sofreu, um pouco por todo o mundo, uma autêntica revolução, no início dos anos 60, com a introdução do vídeo. Em Portugal, essa transformação pouco ou nada se fez sentir.

José Nuno Martins

Apesar da programação televisiva não fazer parte daquilo a que eu atrás

chamei o “gosto” do Se7e, procurei também sugerir que a televisão era já, em

finais dos anos 70, um horizonte fora do qual se tornara difícil a esse “gosto” ser

visto e sobreviver. Por outras palavras, a RTP (como único canal televisivo do

país) seria tanto melhor, segundo o semanário, quanto mais transmitisse os

valores de uma cultura que, do teatro independente ao cinema de autor,

procurava resistir à hegemonia do espectáculo audiovisual. Não é assim de

surpreender que o jornal tenha procurado acompanhar o esforço de Fernando

Lopes para fazer da programação do segundo canal uma mostra desses mesmos

12 Afonso Praça, “Fernão Mentes?: nem grandes glórias, nem grande façanhas”, Se7e, 8-12-81, 4. 13 Se7e, 7-4-82, 12.

9

valores culturais. Fernando Lopes reunia todas as qualidades que o semanário

apreciava: era um dos fundadores do Cinema Novo que mais questionava a

linguagem cinematográfica e o imaginário literário e popular, e possuía sólidas

credenciais como artista empenhado na resistência à ditadura e na militância

revolucionária. Os seus planos para a RTP2 coincidiam assim com o que o Se7e

idealizava: um canal que mostrasse os melhores filmes e séries estrangeiros, mas

que fosse também capaz de divulgar o cinema de autor nacional e, mais ainda,

usar a colaboração desses mesmos autores para desenvolver uma ficção

televisiva própria aproveitando, nesse sentido, o que se ia fazendo no campo

teatral.

Estes planos pareciam ser a solução de vários problemas – tanto quanto à

qualidade da programação televisiva como para a visibilidade do teatro e do

cinema – e algumas séries exibidas ao longo de 1978 sugeriam que era possível

conciliar a especificidade do espectáculo televisivo com narrativas bem escritas,

bem realizadas, atentas aos problemas sociais e sensíveis à memória cultural. Foi

assim que Retalhos da Vida de um Médico, baseada na obra de Fernando Namora,

e Zé Gato, um policial com poucos meios mas boa recepção pública e crítica,

pareceram cumprir, no essencial, aquilo que para Fernando Lopes era a missão

da RTP: ‘[ser] um reflexo da nossa sociedade e que, mesmo no campo da ficção,

desse uma ideia do que é o imaginário português, para que não sejamos

colonizados pelo imaginário das outras culturas e dos outros povos.’14 Em 1980,

porém, a RTP substituía ambos os directores de programação15 por Carlos Cruz,

uma figura mais jovem e sem os mesmos pergaminhos intelectuais e políticos

dos seus antecessores, mas com maior experiência de televisão. Sem perder

completamente de vista a missão cultural devida à televisão pública, Cruz

mostrava-se mais sensível às exigências da comunicação televisiva. Como o novo

director de programas garantiu em entrevista ao Se7e, se, por um lado, ‘não

queremos empobrecer o vocabulário das nossas emissões só para atingirmos a

(…) comunicação total’, era por outro lado ‘evidente que não pretendemos

14 ‘Fernando Lopes ao Se7e. “Vamos ter uma Televisão morna”’, Se7e, 12-3-80, 2. 15 Outro intelectual, embora reconhecidamente mais conservador, dirigia o primeiro canal: Vasco Graça Moura.

10

transformar a televisão numa universidade’.16 Ou seja, mantendo a preocupação

identitária que já víramos em Fernando Lopes, e até evocando o mesmo

vocabulário “colonial” – ‘se não queremos ser colonizados por outras televisões

temos de nos colocar ao mesmo nível’ –, para Cruz era fundamental que a RTP

tivesse uma linguagem própria onde, mais do que a complexidade ou a

politização que já vimos noutras áreas, imperasse o valor da imaginação, ‘mesmo

quando se conta uma história ou se escreve uma notícia.’17

Espectador atento destas mudanças, o Se7e pedirá a Fernando Lopes para

comentar a nomeação de Cruz, e em particular a opção da RTP em centralizar a

programação dos dois canais no mesmo director. A crítica de Lopes sintetiza o

modo como toda esta cultura em processo de marginalização via o papel da RTP

à entrada dos anos 80: a televisão estava a tornar-se numa cultura autónoma,

com os seus próprios códigos de comunicação, e isso iria provocar um

progressivo distanciamento com o mundo da cultura. A nomeação de um

profissional “da casa” mostrava que o trabalho televisivo era agora mais técnico

e especializado (e portanto menos político e cultural) e que num futuro breve,

assegurava Lopes, a televisão ia abrir-se a operadores comerciais. Já em 1980,

quando a jornalista Maria Elisa Domingues substituiu Carlos Cruz, resumiu numa

frase o modelo da RTP para o futuro: ‘não estou aqui para fazer uma televisão

profundamente diferente daquilo que se faz noutros países da Europa ocidental,

que são aqueles com os quais nos podemos e queremos, em termos de opção

europeia, assemelhar mais.’18

E como seria, à entrada nos anos 80, esta televisão “europeia” (num momento

em que Europa era cada vez mais o horizonte de todas as expectativas)? No

essencial, a RTP, para programadores profissionais como Maria Elisa Domingues

e Carlos Cruz, devia prestar uma maior atenção ao quotidiano da sociedade

moderna sem perder a capacidade de entreter. Foi assim por exemplo que Maria

Elisa Domingues procurou reduzir o peso das telenovelas na programação, que

considerava excessivo, preferindo séries como Malu Mulher, sobre o dia-a-dia de

16 Se7e, 5-3-80, 12. 17 Idem. 18 Se7e, 31-12-80, 2.

11

uma mãe divorciada.19 Sem abandonar uma das principais fontes da

programação (os produtos da TV Globo que, por serem falados em Português,

mitigavam em boa parte a urgência de produzir ficção nacional), Malu Mulher

constituía assim um bom compromisso entre entretenimento e serviço público.

Mas onde Domingues via o copo meio cheio de problemáticas sociais, o Se7e era

habitualmente mais crítico em relação ao progressivo esvaziamento de

conteúdos políticos. Foi assim que, logo em 1978, o jornal viu com algum

cepticismo a estreia de Directíssimo, talk-show apresentado pelo jornalista

Joaquim Letria como estratégia para tornar a televisão menos ‘chata’, e que se

propunha humanizar as figuras dos mesmos políticos que, até há bem pouco

tempo, tinham protagonizado o processo revolucionário: ‘acho que teria piada

mostrar o Dr. Almeida Santos a cantar o fado (…). Ou apresentar o Dr. Álvaro

Cunhal a falar-nos dos seus desenhos e ilustrações…’20

Por entre os resíduos de uma antiga cultura de resistência e uma emergente

cultura audiovisual – onde entretenimento era equiparado a modernidade – a

televisão vai-se tornando num formato autónomo, menos dependente de outras

formas artísticas (cada vez mais dependentes, por sua vez, da própria televisão)

e progressivamente reconhecível por uma linguagem e estilo próprios. Apesar

das reservas iniciais, o Sete não ficará indiferente ao sopro de modernidade que,

para muitos, significou esta cultura televisiva.21 Afinal, tal como o próprio jornal,

a televisão procurava responder ao mesmo público imaginado de classe média –

ou com aspirações a tal – com a Europa no horizonte e já entretanto

familiarizado com a comunicação audiovisual. Neste sentido, não é de

surpreender que dois dos programas de rádio e de televisão mais populares à

entrada dos anos 80 tenham sido representações humorísticas sobre a própria

rádio e televisão. Pão com Manteiga, transmitido pela Rádio Comercial, e O Tal

Canal marcaram assim o momento em que os formatos se viraram sobre si

mesmo, pressupondo já um ouvinte e espectador suficientemente familiarizado

com os códigos do audiovisual para poder participar na sua desconstrução: 19 Esta atenção ao que parecia moderno tinha, porém, os seus limites, e o Se7e criticará asperamente a directora da RTP pela decisão de não transmitir dois episódios sobre temas sensíveis: o aborto e a homossexualidade. Sobre o impacto da telenovela brasileira na sociedade portuguesa cf. Cunha (2003). 20 Se7e, 24-8-78, 3. 21 Sobre o conceito de cultura televisiva cf. Fiske (1987).

12

‘Porquê fazermos um programa de rádio e não um antiprograma de rádio?’ –

perguntou Carlos Cruz ao Se7e, na apresentação de Pão com Manteiga, de que era

co-autor.

É neste contexto que Herman José, com O Tal Canal, e em particular através da

figura do cantor romântico “piroso” Tony Silva, se tornou paradigmático. A ideia

de um canal de televisão que troça dos vários géneros televisivos, dos

protagonistas e da própria linguagem da televisão, imagina necessariamente um

espectador já muito familiarizado com o dispositivo. Mais ainda, o mau gosto

representado por Tony Silva precisava, para obter o seu efeito cómico, que o

espectador estivesse envolvido por outra norma de gosto. O comediante jogou

aqui uma aposta arriscada, pois implicava uma clara distinção, para o qual o Se7e

contribuiu activamente, entre si próprio e a personagem: o semanário deu-lhe

uma coluna semanal onde será “Tony Silva” quem comentará satiricamente o

meio cultural e televisivo. Herman José, por sua vez, aproveitará uma entrevista

ao semanário para explicar o seu percurso profissional, arrependendo-se das

condescendências ‘ao mau gosto’ no início da carreira e prometendo a partir daí

obedecer aos códigos da nova cultura urbana, organizada em torno da televisão e

moldada ao “gosto” e às aspirações da classe média (jogando, através de Tony

Silva, com a distinção entre esta e o resto).22 A imagem que o próprio actor dá

desta cultura não só descreve rigorosamente os seus valores e referências, como

tem ainda o mérito de situar o lugar do Se7e no seu interior:

- Por exemplo, o Sérgio Godinho não trabalha durante o mês de Agosto para poder passar férias com as filhas... Podia ganhar uma fortuna em Agosto, e no entanto... São estas e outras pequenas-grandes coisas que me fazem pensar no tempo que perdi... (…) O comércio que fiz com o meu nome, as cantiguinhas, todo esse mau gosto... (…) Posso dar um exemplo: esta entrevista ao Se7e é um sintoma bem significativo… Sei perfeitamente que o vosso jornal não é especialista em falar de ou em entrevistar mediocridades…

- Isso alegra-te?

- Muito. É desta gente que eu não quero distanciar-me, porque justamente a minha grande nostalgia é a da qualidade. É a qualidade que eu procuro no novo rumo que tomei.

22 Sobre o valor social do gosto, bem como as suas implicações culturais, cf. Bourdieu (1979)

13

3. A lenta revolução da música portuguesa

Quanto à definição de prática política, vou-te dizer: ao contrário do que afirmas, eu tenho uma prática política. Além de outras actividades, faço canções, faço discos, faço espectáculos. E em

cada canção procuro redefinir tudo.

Sérgio Godinho, carta a Zeca Afonso

Ao cobrir quase todas as áreas e géneros culturais, e ao acompanhar

detalhadamente a actividade de alguns dos seus autores preferidos, o jornalismo

cultural do Se7e permite não só mapear figuras e obras, como também identificar

mudanças nos valores culturais do período pós-revolucionário à entrada da

década de oitenta. É assim interessante verificar como, em 1982, um escritor de

canções como Sérgio Godinho podia servir de modelo a um actor de comédia

como Herman José.23 À primeira vista, as culturas que ambos representavam

tinham pouco em comum. No entanto, se olharmos para a referência à

‘qualidade’ no final da entrevista de Herman José ao Se7e, percebemos que o que

estava ali sobretudo em causa, mais do que uma questão de género (música

popular e entretenimento televisivo) ou postura (o cantor empenhado e o

comediante iconoclasta), era ainda o mesmo valor que o próprio semanário

privilegiava na sua definição de cultura. Neste sentido, Godinho, talvez mais do

que qualquer outra figura, representou para o semanário uma figura modelar. As

críticas a cada novo disco destacavam, invariavelmente, a criatividade das letras,

as experiências instrumentais e ainda o cuidado crescente posto nas condições

acústicas dos espectáculos.24 Mas essas entrevistas eram também momentos que

o jornal aproveitava para apresentar Godinho como um bom exemplo de

adaptação aos novos tempos. As respostas, por vezes tensas, do cantor a

perguntas sobre o significado político do seu trabalho – ‘A tua canção é

individualista?’ ou ‘há quem diga que estás a fugir da canção política como o gato

23 Sérgio Godinho seria aliás o primeiro convidado de The Super All Star Show, o espectáculo musical de Tony Silva, ponto alto de cada episódio de O Tal Canal. Sobre a hibridização de diferentes níveis culturais em sociedades contemporâneas, cf Canclini (2005). 24 Godinho lança três LPs neste período: Pano Cru, Campolide e Canto da Boca.

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foge de água fria...’25 – ajudam-nos a pensar a passagem do paradigma artístico

militante para o plano individual e a esfera íntima.

Dizer, em 1981, que ‘sou um cantor romântico’ (frase que o Se7e destacou

como título da entrevista dada a propósito do lançamento de Canto da Boca) era

uma provocação com vários sentidos, pois onde à primeira vista se podia ler a

renúncia da tradição política onde todos insistiam em mantê-lo, Godinho estava

também a disputar o campo da chamada música “ligeira”. Por outras palavras,

trazer a ‘qualidade’ das suas composições para o campo hegemónico da música

popular podia ser também uma forma de abrir o político às questões emergentes

do quotidiano e, do mesmo passo, agir criticamente sobre o género musical mais

visível. Percebe-se assim melhor por que era a figura do cantor importante para

o Se7e. Mais do que o cinema ou o teatro, menos acessíveis a quem não estivesse

já por dentro do “gosto” do semanário, a música era um campo de batalha entre

os três vértices que organizavam o campo cultural: a cultura politizada, num

momento em que era a própria ideia de política que estava a mudar (como vimos

a propósito das peças da Cornucópia); os processos de modernização cultural,

que incluíam tanto formas emergentes como a renovação do que já lá estava (e

era isto que permitia aproximar Herman José a Sérgio Godinho); e o outro

imenso que ficava de fora do “gosto” do semanário e da cultura de qualidade, do

teatro de revista ao cinema “comercial”, ou da programação televisiva à canção

ligeira.26

Musicalmente, o Festival RTP da canção surge como o único palco onde os

géneros correspondentes a cada um destes vértices podiam, não só ser ouvidos,

como vistos em competição directa. E se é certo que autores como Sérgio

Godinho ou Zeca Afonso ignoraram o festival, já nomes como Maria do Amparo e

Carlos Alberto Moniz, José Jorge Letria ou Samuel aproveitaram aquela que

25 Cf. Se7e, 3-8-78, 10; e 24-6-81, 2. 26 Estes três fenómenos ou processos culturais correspondem, no essencial, às categorias ‘dominante’, ‘residual’ e ‘emergente’ com que Raymond Williams procurou matizar as dinâmicas culturais de uma determinada época. Com uma reserva, que é aqui fundamental: a de que a cultura dominante – na música, por exemplo, as formas românticas, ou “ligeiras” – é sempre mais ou menos a mesma e que o emergente e o residual são definidos consoante a maior ou menor eficácia com que combatem esse mesmo dominante. Assim, veremos como durante este período a música de intervenção se estava a tornar residual, dando lugar a formas pop emergentes no combate contra a hegemonia da música ligeira – que assim se viu obrigada a renovar. Cf. Williams (1978)

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provavelmente era, a partir do final dos anos 70, a única oportunidade que a

canção política tinha de aparecer na televisão. Por outro lado, o festival era a

grande mostra da música ligeira, ou romântica, também pejorativamente

chamada de nacional-cançonetismo. Dentro deste género, porém, e como a

própria dificuldade em o nomear sugere, havia várias tendências: cantores a

meio caminho entre o ligeiro e o político (e com pergaminhos no próprio

festival) como Fernando Tordo e Paulo de Carvalho; o nacional-cançonetismo

propriamente dito, com compositores sobreviventes do tempo do salazarismo e

alguns novos intérpretes como Marco Paulo; e as tentativas de renovar o género,

profissionalizando-o e dando-lhe mais “qualidade”, através de compositores e

intérpretes que eram por vezes também produtores, como Tó-Zé Brito e José Cid.

Finalmente, o festival foi ainda um espaço de renovação por onde géneros mais

próximos da pop anglo-saxónica procuravam aparecer e impor-se.

Seria impossível desenhar este mapa, ainda que sucinto, se não fosse o

destaque dado todos os anos pelo Se7e ao festival. A relevância do evento,

naturalmente, não se devia apenas ao ecletismo de géneros e intérpretes. Mais

do que um acontecimento musical, o festival tocava vários aspectos da

intervenção cultural do semanário: cruzava diversos níveis culturais, levantava

questões sobre a identidade da música portuguesa e era um espectáculo

televisivo. Isto explica por que o semanário começava a falar dos concorrentes

vários meses antes, auscultando músicos para perceber quem iria participar; os

regulamentos, as novidades e as eliminatórias era acompanhadas a par e passo

ao longo dessas mesmas semanas; faziam-se inquéritos junto dos responsáveis

pela indústria musical acerca do impacto e peso do evento nas vendas; analisava-

se o significado da classificação no contexto das transformações na música

portuguesa e, nalguns anos, o Se7e foi ao ponto de organizar o seu próprio júri,

submetendo os concorrentes ao seu critério e definindo portanto quem devia

sair vencedor e vencido.

A polémica que o jornal levantou a propósito da edição de 1979 é um bom

indicador das transformações – e resistências – no campo musical. Nesse ano

ganhou ‘Sobe, Sobe, Balão Sobe’, uma canção ingénua composta por Carlos

Nóbrega e Sousa, um nome que, segundo o jornal, representava o passado mais

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conservador. O problema, porém, não estava tanto na sobrevivência do espírito

do nacional-cançonetismo, nem sequer na marginalização dos intérpretes mais

marcadamente de esquerda, mas na derrota da canção favorita do Se7e, a que foi

atribuído o segundo lugar: ‘Eu só quero’, tema interpretado pela estreante

Gabriela Schaaf – cuja sensualidade contrastava com a inocência de Manuela

Bravo, intérprete da canção vencedora – e composto por Nuno Rodrigues e

António Pinho, da Banda do Casaco.27 Na diferença entre ambas desenhava-se,

para o redactor do jornal, o que estava a mudar na música portuguesa (e que o

júri se recusara a reconhecer):

É curioso notar que foram duas intérpretes femininas (…) que lutaram pelo primeiro lugar. Se Gabriela Schaaf, essa “descoberta” da equipa Nuno Rodrigues/António Pinho, em certa medida, podia simbolizar a nova geração de música ligeira portuguesa – sem contestação nem textos políticos, mas com um cançonetismo preocupado com a qualidade e com o estilo –, Manuela Bravo (a vencedora) aparecia no plano oposto a fazer lembrar (…) as conhecidas vozes do “nacional-cançonetismo” de gerações passadas. Se, em “Eu só quero”, nos aparece retratada uma mulher emancipada, que assume a condução do seu amor e das suas paixões, em “Sobe, Sobe, Balão Sobe”, o casal “vive” estupendamente instalado num balão, que, como é da praxe, está lá em cima e voa que se farta.

Já tínhamos visto, mas talvez não tão claramente como aqui, a ‘qualidade’ (e o

“gosto”, aqui entendido como ‘estilo’) apresentada como a marca da cultura

emergente, mesmo que para isso fosse preciso pagar o preço da despolitização.

E, no entanto, a nota sobre a emancipação feminina (‘Eu só quero’ é um momento

raro em que a mulher assume o desejo e a iniciativa na relação amorosa) sugere

que a despolitização implicou o aparecimento de outros sujeitos, também eles

políticos, mas empenhados em formas de libertação menos ideologizadas. Entre

a música de má memória salazarista e a intervenção revolucionária (‘lá fora ser

de direita ou de esquerda não tem importância nenhuma, o que importa é fazer-

se um bom trabalho’, confessaria António Pinho ao jornal28) começa então a

impor-se um novo conjunto de valores – políticos e estéticos – em que a

27 A Banda do Casaco foi um dos projectos musicais mais interessantes do período, sobretudo devido à fusão experimental entre formas pop e folclóricas. 28 Se7e, 1-2-79, 7.

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qualidade musical é posta em paralelo com as formas de expressão individual

que marcarão a cultura dos anos 80.

No essencial, o Se7e partilhava a ideia de António Pinho que apenas a decidida

profissionalização da música portuguesa poderia permitir-lhe sobreviver num

mercado cada vez mais competitivo. O jornal pode ter sido crítico de algumas

soluções encontradas sob o espírito desta modernização, como as Doce, banda

feminina que ganhou o festival em 1982 com uma nova sonoridade pop, mas

onde a forte sexualização da imagem das cantoras neutralizava, em parte, o

potencial emancipatório de ‘Eu só quero’.29 Quando, no entanto, o mesmo

António Pinho – que tinha estado também por detrás do projecto Doce, como

produtor – ajudou a dar vida a Ar de Rock, de Rui Veloso, contribuindo assim

para uma explosão de rock em Português, o Se7e verá aí, finalmente, o

cumprimento de uma verdadeira revolução cultural, onde à renovação das

formas correspondia a emergência de um novo sujeito político.

Conclusão: o boom do rock português

Eles vieram de comboio, de camioneta de excursão, à boleia. Em grandes bandos ruidosos, ou amorosamente dois a dois, bem vestidos e deixando atrás de si um rasto de água-de-colónia, ou

de “jeans”, camisolona e sapatos de ténis. E também meio esfarrapados, de cabelos sujos e fedorentos. (…) ‘Fumam “beatas” enroladas à mão, ou uns pequenos cachimbos que parecem de brincar. E brincar é algo que eles ali não fazem – quanto a mim, acho que estão simplesmente à

procura.

Manuel Beça Múrias, reportagem do concerto dos Supertramp em Cascais

Concluir com o boom do rock português, como logo à época se chamou ao

acontecimento, é concluir com o início de uma outra história. A proliferação de

bandas e discos de rock cantado em Português logo a seguir à estreia de Rui

Veloso foi também uma resposta a transformações que transcendiam o campo da

cultura e ocorriam na própria estrutura social. Nesse sentido, o aparecimento do

rock respondeu aos mesmos problemas a que o nascimento do Sete também

procurou dar resposta e, assim, constitui um objecto propício para finalizar a

29 Uma boa discussão acerca das ambiguidades da política de género na cultura popular pode ser lida em McRobbie (1999).

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nossa narrativa sobre o papel do jornal na passagem dos anos 70 para os anos

80. Como todos os acontecimentos, também este já lá estava, tendo

inclusivamente de algum modo sido preparado pelo próprio envolvimento do

jornal na cena musical.

Desde o início que o Se7e se debruçou atentamente sobre o rock e a pop,

sobretudo de origem anglo-saxónica. Na falta de muitas bandas nacionais e, salvo

raras excepções, sem grande entusiasmo pelas existentes, o jornal ia dando conta

da edição de discos estrangeiros – e salientando o crescimento do género no

mercado português – para além do acompanhamento dos concertos de bandas

que visitavam o país. O entusiasmo do público, sobretudo juvenil, mostrava

haver ali um enorme anseio por estas formas de expressão musical – depois de

um espectacular concerto de Lou Reed, o crítico do Se7e adivinhava que, ‘em

matéria de espectáculos Rock, nada voltará a ser como dantes’30 – mas o

desenvolvimento de um rock português parecia debater-se com o problema dos

meios. A referência aos muitos milhares de watts das aparelhagens trazidas em

vários camiões em cada concerto de bandas estrangeiras contrastava com a

exorbitância do preço dos equipamentos de que se queixavam todos os rockers

portugueses entrevistados pelo jornal.31 Perante este cenário, as editoras

perceberam que as perspectivas de rock em Portugal dependiam dele ser

cantado em Português, explorando assim a única especificidade que as bandas

nacionais poderiam oferecer a um público já bem familiarizado com os grandes

nomes internacionais. O caso de Rui Veloso foi um bom exemplo disto:

Influenciado por músicos e cantores ingleses e norte-americanos, é surpreendente que Rui Veloso tenha gravado um disco cantado em português, tanto mais que toda a atmosfera sonora do álbum tem pouco a ver (ou teria?) com a nossa língua. Porquê, portanto, cantar em português? ‘(…) A opção pela nossa língua foi mais ou menos forçada. (…) Por insistência do produtor António Pinho, resolvi gravar em português.’32

Perante o sopro de novidade das letras do disco – quase todas com a autoria de

Carlos Tê, embora Pinho também tenha escrito dois temas – nomeadamente pela

30 Se7e, 25-6-80, 11. 31 Cf. Trindade (2013) 32 Se7e, 27-8-80, 4.

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forma como conseguiram renovar a imagem musical do quotidiano, a

publicidade a Ar de Rock apressou-se a tocar no ponto decisivo: ‘Você continua a

achar que é estúpido comprar discos portugueses?’

Percebe-se que o rock tenha, a partir desse momento, passado a ocupar um

lugar central na linha editorial do Se7e. Em certo sentido, um rock português

sintetizava todos os valores culturais perfilhados pelo semanário: em breve seria

o espectáculo mais visível do campo cultural – e de acesso fácil aos ecrãs

televisivos – mas trazia consigo uma crítica social e uma rebeldia de costumes já

pouco visível noutros autores e formas culturais; era uma forma iminentemente

cosmopolita, mas na sua versão portuguesa tornava-se também na expressão de

novas subjectividades e documento de transformações sociais contemporâneas.

A forma como o jornalismo cultural do Se7e começou por abordar o fenómeno

mostra como o jornal estava em boa posição para auscultar as mudanças que

iriam fazer deflagrar a sua explosão. O rock era muito mais do que a resposta às

aspirações de classe média que o semanário imaginou terem os seus leitores.

Como os estudos de mercado iam mostrando, o leitor do Se7e era o segmento

mais jovem das classes emergentes. Do quotidiano das letras de Rui Veloso à

rebeldia dos GNR; da crítica social dos Salada de Frutas aos sons de dança dos

Táxi; ou ainda do protesto suburbano dos UHF ao nacionalismo dos Heróis do

Mar – que o jornal sugeriu serem fascistas – todo o rock português dos primeiros

tempos será apresentado como se fosse, não só um radical questionamento de

todos os géneros musicais existentes, mas também um vasto comentário social

ao desenvolvimento do capitalismo tardio em Portugal, e em particular à

terceirização e ao consumismo: uma espécie de negativo, ou suplemento, político

da irreprimível expansão do mercado. Na tensão entre o espectáculo e a

repolitização musicais, o rock deu ao Se7e a possibilidade de fechar a sua

quadratura do círculo.

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Bibliografia

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Éditions de Minuit

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Periódicos

Diário de Lisboa, 1978-1980

Se7e, 1978-1982