o futuro da democracia - norberto bobbio

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1. Coleo PENSAMENTO CRITICO Vol. 63 NORBERTO BOBBIOO FUTURO DA DEMOCRACIA Uma defesa das regras do jogo Traduo Marco Aurlio Nogueira6 Edio PAZ E TERRA 2. Copyright 1984 Giulio Einaudi Editore S.P.A. TorinoTtulo do original em italiano:II futuro delia democrazia. Una difesa delle regole dei gioco.Reviso: Snia Maria de Amorim Beatriz Siqueira AbroComposio: IntertextoCIP-Brasil. Catalogao-na-fonte.Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.Bobbio, NorbertoB637fO futuro da democracia; uma defesa das regras do jogo/Norberto Bobbio; traduo de Marco Aurlio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986. (Pensamento crtico, 63)Traduo de: Il futuro delia democrazia. Una difesa delle regoledei gioco.Bibliografia. 1. Democracia. I. Titulo. II, Srie.86.377CDD 321.4CDU 321.7Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRARua do Triunfo, 177 - 01212 - So Paulo/SP - Tel. (011) 225-6522Rua So Jos, 90 -11 andar - 20010 - Rio de Janeiro/RJTel. (021) 221-4066que se reserva a propriedade desta traduo1997Impresso no Brasil/Printed in Brasil 3. Nota do digitalizador Pgina intencionalmente deixada em branco para queesta verso digital do livro tenha o mesmo nmero depginas da verso impressa. Diversas pginas foram assim deixadas para,juntamente com a formatao das pginas, o texto nestaverso digital estivesse o mais prximo possvel da versoimpressa. 4. Da capa do livro:O Futuro da Democracia no um livro de gabinete, pura esimplesmente acadmico. Os ensaios nele reunidos, escritos paraservir ao pblico que se interessa por poltica, so textos de combate,desejosos de desfazer equvocos como o que ope a democraciadireta democracia representativa ou o que prope odesmantelamento do welfare state como forma de combater o"excesso" de Estado e preocupados em recuperar para o debate ostemas e ideais do melhor pensamento poltico. Procurando combinar agrande tradio liberal com a grande tradio socialista, num delicadoequilbrio entre liberdade e justia social, estruturam-se como umapolmica vibrante e refinada contra a direita reacionria e contra todosos dogmatismos.Norberto Bobbio nasceu em Turim, Itlia, em 1909. Comoprofessor universitrio e escritor, ocupou-se de teoria poltica, filosofiado direito e histria do pensamento poltico. E senador vitalcio desde1984, alinhado s posies do Partido Socialista Italiano. De sua vastabibliografia, foram j publicados no Brasil: O Conceito de SociedadeCivil (Rio de Janeiro, Graal, 1982), A Teoria das Formas de Governo(Braslia, UnB, 1980), Qual Socialismo? (Rio de Janeiro, Paz e Terra,1983), Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant (Braslia,UnB, 1984), Sociedade e Estado na Filosofia Poltica Moderna (SoPaulo, Brasiliense, 1986), Estado, Governo, Sociedade (Rio deJaneiro, Paz e Terra, 1987). 5. Das abas do livro:O Futuro da Democracia no um tratado de futurologia, masuma reflexo sobre o estado atual e as contradies dos regimesdemocrticos. Uma defesa das regras do jogo, esclarece seu subttulo.De fato, sobretudo isso que podemos nele encontrar. Seu autor, ofilsofo Norberto Bobbio, um dos mais vigorosos pensadores polticosda Itlia, quer fundamentar um alerta: o respeito s normas e sinstituies da democracia o primeiro e mais importante passo para arenovao progressiva da sociedade, inclusive em direo a umapossvel reorganizao socialista. Para ele, a democracia , noessencial, um mtodo de governo, um conjunto de regras deprocedimento para a formao das decises coletivas, no qual estprevista e facilitada a ampla participao dos interessados.Em tempos de burocratizao, corporativismo desenfreado eassemblesmo, nada mais difcil que fazer respeitar as regras do jogodemocrtico. J esse, e no de hoje, o caso do Brasil. O alerta deBobbio no desprezvel. Despojado de qualquer otimismo ingnuo,ele vai fundo na anlise das incoerncias e dificuldades da"democracia real": a sobrevivncia das oligarquias e do poderinvisvel, a revanche dos interesses particulares, a limitao dosespaos polticos, a insuficiente educao dos cidados "promessasno cumpridas" pelos ideais democrticos quando forados a sesubmeter s exigncias da prtica. Mas Bobbio no um ctico, neminsiste sobre o lado negativo das experincias democrticas: "Ademocracia no goza no mundo de tima sade, mas no est beirado tmulo". Seu realismo est associado a uma paixo poltica e a umaconvico fundamental: apesar de seus defeitos, a democracia permitea esperana, pois pode ser melhorada.O Futuro da Democracia no um livro de gabinete, pura esimplesmente acadmico. Os ensaios nele reunidos, escritos paraservir ao pblico que se interessa por poltica, so textos de combate,desejosos de desfazer equvocos como o que ope a democraciadireta democracia representativa ou o que prope odesmantelamento do welfare state como forma de combater o"excesso" de Estado e preocupados em recuperar para o debate ostemas e ideais do melhor pensamento poltico. Procurando combinar agrande tradio liberal com a grande tradio socialista, num delicado 6. equilbrio entre liberdade e justia social, estruturam-se como umapolmica vibrante e refinada contra a direita reacionria e contra todosos dogmatismos.So por isso mesmo textos incmodos, para serem lidos ediscutidos por todos os que buscam seguir adiante. No requeremqualquer concordncia prvia para serem admirados. So um convite reflexo engajada e despreconceituosa. Uma aposta incondicional novalor da poltica e da democracia. Indispensvel em poca de difcilreconstruo e confusas esperanas. Marco Aurlio Nogueira 7. NDICE 8. PREMISSAReno neste pequeno volume alguns escritos dos ltimos anossobre as chamadas "transformaes" da democracia. Uso o termo"transformao" em sentido axiologicamente neutro, sem associar aele nem um significado negativo nem um significado positivo. Prefirofalar de transformao, e no de crise, porque "crise" nos faz pensarnum colapso iminente. A democracia no goza no mundo de timasade, como de resto jamais gozou no passado, mas no est beirado tmulo. Diga-se o que se disser a este respeito, a verdade quenenhum dos regimes democrticos nascidos na Europa aps aSegunda Guerra Mundial foi abatido por uma ditadura, como ocorreraaps a Primeira. Ao contrrio, algumas ditaduras que sobreviveram catstrofe da guerra transformaram-se em democracias. Enquanto omundo sovitico sacudido por frmitos democrticos, o mundo dasdemocracias ocidentais no est seriamente ameaado pormovimentos fascistas.Para um regime democrtico, o estar em transformao seuestado natural: a democracia dinmica, o despotismo esttico esempre igual a si mesmo. Os escritores democrticos do fim doSetecentos contrapunham a democracia moderna (representativa) democracia dos antigos (direta). Mas no teriam hesitado emconsiderar o despotismo do seu tempo igual quele do qual osescritores antigos tinham dado as primeiras descries: pense-se emMontesquieu e em Hegel, bem como na categoria do despotismooriental. Existe inclusive quem empregou, com ou sem razo, oconceito de despotismo oriental para explicar a situao da UnioSovitica. Hoje, quando falamos de democracia ocidental referimo-nos a regimes surgidos h no mais de duzentos anos, aps asrevolues americana e francesa. Apesar disso, um autor muito lidoinclusive na Itlia, C. B. Macpherson, acredita ser possvel distinguirao menos quatro fases de desenvolvimento da democracia moderna, 9. das origens oitocentescas aos dias de hoje.Entre os meus escritos mais recentes sobre o assunto escolhiaqueles que me pareceram de maior atualidade, embora novinculados a eventos cotidianos. Coloquei no incio o ltimo emordem temporal, e ele acabou por dar o ttulo ao volume inteiro.Nascido originariamente como conferncia proferida em novembro de1983 no Palcio das Cortes em Madrid, a convite de seu presidente, oprofessor, Gregorio Peces-Barba, este texto foi posteriormente revistoe ampliado, transformando-se assim na comunicao de abertura pormim apresentada no seminrio internacional II futuro gi cominciato[O futuro j comeou], realizado em Locarno em maio de 1984 poriniciativa do professor Francesco Barone. Ele apresenta sinteticamenteas transformaes da democracia sob a forma de "promessas nocumpridas" ou de contraste entre a democracia ideal tal comoconcebida por seus pais fundadores e a democracia real em que, commaior ou menor participao, devemos viver cotidianamente.Aps o debate de Locarno creio ser til precisar melhor que,daquelas promessas no cumpridas a sobrevivncia do poderinvisvel, a permanncia das oligarquias, a supresso dos corposintermedirios, a revanche da representao dos interesses, aparticipao interrompida, o cidado no educado (ou mal-educado), algumas no podiam ser objetivamente cumpridas e eram desde oincio iluses; outras eram, mais que promessas, esperanas malrespondidas, e outras por fim acabaram por se chocar com obstculosimprevistos. Todas so situaes a partir das quais no se pode falarprecisamente de "degenerao" da democracia, mas sim de adaptaonatural dos princpios abstratos realidade ou de inevitvelcontaminao da teoria quando forada a submeter-se s exigncias daprtica. Todas, menos uma: a sobrevivncia (e a robusta consistncia)de um poder invisvel ao lado ou sob (ou mesmo sobre) o podervisvel, como acontece por exemplo na Itlia. Pode-se definir ademocracia das maneiras as mais diversas, mas no existe definioque possa deixar de incluir em seus conotativos a visibilidade outransparncia do poder. Elias Canetti escreveu: "O segredo est noncleo mais interno do poder". Os construtores dos primeiros regimesdemocrticos propuseram-se a dar vida a uma forma de governo naqual este ncleo duro fosse definitivamente destrudo (ver captulo "Ademocracia e o poder invisvel"). Que a permanncia das oligarquias,ou das elites, no poder esteja em contraste com os ideais democrticos 10. algo fora de discusso. Isto no impede que haja sempre umadiferena substancial entre um sistema poltico no qual existemdiversas elites concorrendo entre si na arena eleitoral e um sistema noqual existe apenas um nico grupo de poder que se renova porcooptao. Enquanto a presena de um poder invisvel corrompe ademocracia, a existncia de grupos de poder que se sucedem medianteeleies livres permanece, ao menos at agora, como a nica forma naqual a democracia encontrou a sua concreta atuao. Assim aconteceno que se refere aos limites que o uso dos procedimentos prprios dademocracia encontrou ao ampliar-se em direo a centros de podertradicionalmente autocrticos, como a empresa ou o aparatoburocrtico: mais que de uma falncia, trata-se de umdesenvolvimento no existente. No que se refere representao dosinteresses que est corroendo pouco a pouco o campo que deveria serreservado exclusivamente representao poltica, deve-se dizer queela , nada mais nada menos, inclusive para aqueles que a rejeitam,uma forma de democracia alternativa, que tem seu natural terreno deexpanso numa sociedade capitalista em que os sujeitos da aopoltica tornaram-se cada vez mais os grupos organizados, sendoportanto muito diferente daquela prevista pela doutrina democrtica,que no estava disposta a reconhecer qualquer ente intermedirio entreos indivduos singulares e a nao no seu todo. Se se pode falar decrise a propsito do avano da representao dos interesses e doconseqente fenmeno da multiplicao de decises tomadas atravsde acordos entre as partes, ela no diz respeito tanto democraciaquanto tradicional imagem do estado soberano colocado acima daspartes (ver captulo "Contrato e contratualismo no debate atual"). Porfim, mais que uma promessa no cumprida, o ausente crescimento daeducao para a cidadania, segundo a qual o cidado investido dopoder de eleger os prprios governantes acabaria por escolher os maissbios, os mais honestos e os mais esclarecidos dentre os seusconcidados, pode ser considerado como o efeito da iluso derivadade uma concepo excessivamente benvola do homem como animalpoltico: o homem persegue o prprio interesse tanto no mercadoeconmico como no poltico. Mas ningum pensa hoje em confutar ademocracia sustentando, como se vem fazendo h anos, que o voto uma mercadoria que se cede ao melhor ofertante.Naturalmente, todo este discurso apenas vale se nos atemos quelaque chamei de definio mnima de democracia, segundo a qual por 11. regime democrtico entende-se primariamente um conjunto de regrasde procedimento para a formao de decises coletivas, em que estprevista e facilitada a participao mais ampla possvel dosinteressados. Sei bem que tal definio procedimental,* ou formal, ou,em sentido pejorativo, formalstica, parece muito pobre para osmovimentos que se proclamam de esquerda. Porm, a verdade queno existe outra definio igualmente clara e esta a nica capaz denos oferecer um critrio infalvel para introduzir uma primeira grandedistino (independentemente de qualquer juzo de valor) entre doistipos ideais opostos de formas de governo. Por isto, bom desde logoacrescentar que, se se inclui no conceito geral de democracia aestratgia do compromisso entre as partes atravs do livre debate paraa formao de uma maioria, a definio aqui proposta reflete melhor arealidade da democracia representativa (pouco importando se se tratade representao poltica ou dos interesses) que a realidade dademocracia direta: o referendum, no podendo colocar os problemas ano ser sob a forma de excludncia, de escolha forada entre duasalternativas, obstaculiza o compromisso e favorece o choque, eexatamente por isto mais adequado para dirimir controvrsias sobreprincpios do que para resolver conflitos de interesse (ver captulo"Democracia representativa e democracia direta"). igualmenteoportuno precisar, especialmente para quem deposita a esperana deuma transformao no nascimento dos movimentos, que a democraciacomo mtodo est sim aberta a todos os possveis contedos, mas aomesmo tempo muito exigente ao solicitar o respeito s instituies,exatamente porque neste respeito esto apoiadas todas as vantagens domtodo e entre estas instituies esto os partidos polticos como osnicos sujeitos autorizados a funcionar como elos de ligao entre osindivduos e o governo (ver captulo "Os vnculos da democracia"). * Traduzirei sempre o termo italiano "procedurale" pelo neologismo "procedimental", nafalta de um melhor correspondente em portugus e para respeitar fielmente a nfase deBobbio sobre o tema dos procedimentos. Em italiano, o termo "procedura" est literalmentereferido ao conjunto das normas a serem seguidas no desenvolvimento de um processo, nosatos de um julgamento, nas prticas administrativas, nas organizaes, etc. (N. do T.) No excluo que esta insistncia sobre as regras, isto , sobreconsideraes mais formais que substanciais, derive da deformao 12. profissional de quem ensinou por dcadas numa faculdade jurdica.Mas o correto funcionamento de um regime democrtico apenas possvel no mbito daquele modo de governar que, segundo umatradio que parte dos antigos, costuma ser chamado de "governo dasleis" (ver captulo "Governo dos homens ou governo das leis?").Retomo a minha velha idia de que direito e poder so as duas facesde uma mesma moeda: s o poder pode criar direito e s o direitopode limitar o poder. O estado desptico o tipo ideal de estado dequem se coloca do ponto de vista do poder; no extremo opostoencontra-se o estado democrtico, que o tipo ideal de estado dequem se coloca do ponto de vista do direito. Quando exaltavam ogoverno das leis em contraposio ao governo dos homens, os antigostinham em mente leis derivadas da tradio ou forjadas pelos grandeslegisladores. Hoje, quando falamos de governo das leis pensamos emprimeiro lugar nas leis fundamentais, capazes de estabelecer no tantoaquilo que os governados devem fazer quanto como as leis devem serelaboradas, sendo normas que vinculam, antes ainda que os cidados,os prprios governantes: temos em mente um governo das leis numnvel superior, no qual os prprios legisladores esto submetidos anormas vinculatrias. Um ordenamento deste gnero apenas possvelse aqueles que exercem poderes em todos os nveis puderem sercontrolados em ltima instncia pelos possuidores originrios dopoder fundamental, os indivduos singulares.Jamais ser suficientemente advertido, contra toda tentaoorganicista recorrente (no estranha ao pensamento poltico deesquerda), que a doutrina democrtica repousa sobre uma concepoindividualista da sociedade. No que no difere do liberalismo, de resto(ver captulo "Liberalismo velho e novo"). Isto explica porque ademocracia moderna se desenvolveu e hoje exista apenas onde osdireitos de liberdade foram constitucionalmente reconhecidos. Como evidente, nenhuma concepo individualista da sociedade, seja a doindividualismo ontolgico seja a do individualismo metodolgico,prescinde do fato de que o homem um ser social e no pode viver,nem realmente vive, isolado. Mas as relaes do indivduo com asociedade so vistas pelo liberalismo e pela democracia de mododiverso: o primeiro separa o indivduo do corpo orgnico dacomunidade e o faz viver, ao menos durante a maior parte da sua vida,fora do ventre materno, colocando-o no mundo desconhecido e repletode perigos da luta pela sobrevivncia; a segunda o rene aos outros 13. homens singulares, semelhantes a ele, para que da unio artificialentre eles a sociedade venha recomposta no mais como um todoorgnico mas como uma associao de livres indivduos. Doindivduo, o primeiro pe em evidncia sobretudo a capacidade deautoformar-se; a segunda exalta sobretudo a capacidade de superar oisolamento com vrios expedientes que permitam a instituio de umpoder finalmente no tirnico. Trata-se no fundo de dois indivduospotencialmente diversos: como microcosmo ou totalidade em siperfeita, ou como partcula indivisvel mas componvel e re-componvel com outras partculas semelhantes numa unidade superior.Todos os textos aqui reunidos discutem problemas muito gerais eso (ou melhor, gostariam de ser) elementares. Foram escritos para opblico que se interessa pela poltica, no para os especialistas noassunto. So textos que em outros tempos seriam chamados defilosofia popular. Nortearam-se por uma preocupao essencial: fazerdescer a democracia do cu dos princpios para a terra onde se chocamcorposos interesses. Sempre pensei que este o nico modo para dar-se conta das contradies que atravessam uma sociedade democrticae das tortuosas vias que se deve seguir para delas escapar semconfundir-se, para reconhecer seus vcios congnitos semdesencorajar-se e sem perder toda a iluso nas possibilidades demelhor-la. Se imagino os interlocutores que gostaria, no exatamentede convencer, mas de tornar menos desconfiados, estes no so os quedesdenham e contrastam a democracia como o governo dos "mal-sucedidos", a direita reacionria perene, que ressurge continuamentesob as mais diversas vestes mas com o mesmo rancor de semprecontra os "princpios imortais". So, longe disso, os que esta nossademocracia, sempre frgil, sempre vulnervel, corruptvel efreqentemente corrupta, gostariam de destruir para torn-la perfeita,os que, para retomar a famosa imagem hobbesiana, comportam-secomo as filhas de Pelia que cortaram em pedaos o velho pai parafaz-lo renascer. Abrir o dilogo com os primeiros correr o risco deuma pura perda de tempo. Continu-lo com os segundos permite noperder as esperanas na fora das boas razes. NORBERTO BOBBIO Turim, outubro 1984. Os escritos reunidos nesta seleo foram assim publicados: "O futuro da 14. democracia" in Nuova civilt delle macchine, Il, estate, 1984, pp. 11-20;"Democracia representativa e democracia direta" in AA. W., Democrazia epartecipazione, Stampatori, Torino, 1978, pp. 19-46; "Os vnculos dademocracia" in La poltica possibile, Tullio Pironti, Napoli, 1983, pp. 39-61;"A democracia e o poder invisvel" in Rivista italiana di scienza poltica, X,1980, pp. 181-203; "Liberalismo velho e novo" in Mondoperaio, n." 11,1981, pp. 86-94; "Contrato e contratualismo no debate atual", ivi, n. 11,1982, pp. 84-92; "Governo dos homens ou governo das leis?" in NuovaAntologia, n. 2145, gennaio-marzo 1983, pp. 135-152. 15. O FUTURO DA DEMOCRACIA1. Premissa no solicitadaConvidado a apresentar uma comunicao sobre o futuro dademocracia tema sob todos os aspectos insidioso defendo-mecom duas citaes. Em suas lies sobre a filosofia da histria nauniversidade de Berlim, Hegel, respondendo a um estudante que delequeria saber se os Estados Unidos deveriam ser considerados como opas do futuro , assim se manifestou, visivelmente irritado: "Comopas do futuro, a Amrica no me diz respeito. O filsofo no se afinacom profecias (...) A filosofia ocupa-se daquilo que eternamente, oumelhor, da razo, e com isto j temos muito o que fazer" 1. Na suaclebre conferncia, proferida aos estudantes da universidade deMnaco no final da guerra, sobre a cincia como vocao, Max Weberassim respondeu aos seus ouvintes que lhe pediam insistentemente umparecer sobre o futuro da Alemanha: "A ctedra no existe nem paraos demagogos nem para os profetas"2. 1. G. W. Hegel, Vorlesungen uber die Philosophie der Geschichte, I: Die Vernunft in derGeschichte. Meiner, Leipzig, 1917, p. 200. 2. Max Weber, "La scienza come professione", in II lavoro intellettuale comeprofessione, Einaudi, Torino, 1948, p. 64. (Trad. bras. Poltica e cincia. Duas vocaes,Cultrix, So Paulo).Mesmo quem no esteja disposto a aceitar as razes alegadas porHegel e por Weber e as considere apenas um pretexto no pode deixarde reconhecer que o ofcio do profeta perigoso. A dificuldade deconhecer o futuro depende tambm do fato de que cada um de nsprojeta no futuro as prprias aspiraes e inquietaes, enquanto ahistria prossegue o seu curso indiferente s nossas preocupaes, um 16. curso alis formado por milhes e milhes de pequenos, minsculos,atos humanos que nenhuma mente, mesmo a mais potente, jamaisesteve em condies de apreender numa viso de conjunto que notenha sido excessivamente esquemtica e portanto pouco convincente. por isto que as previses feitas pelos grandes mestres do pensamentosobre o curso do mundo acabaram por se revelar, no final das contas,quase sempre erradas, a comear daquelas feitas por aquele que boaparte da humanidade considerou e ainda considera o fundador de umanova e infalvel cincia da sociedade, Karl Marx.Para dar-lhes brevemente a minha opinio, se me perguntassem sea democracia tem um porvir e qual ele, admitindo-se que exista,responderia tranqilamente que no o sei. Nesta comunicao, meupropsito pura e simplesmente o de fazer algumas observaes sobreo estado atual dos regimes democrticos, e com isto, para retomar omote de Hegel, creio que temos todos ns muito o que fazer. Se,depois, destas observaes for possvel extrapolar uma linha detendncia no desenvolvimento (ou involuo) destes regimes, e assimtentar um cuidadoso prognstico sobre o seu futuro, tanto melhor. 2. Uma definio mnima de democraciaAfirmo preliminarmente que o nico modo de se chegar a umacordo quando se fala de democracia, entendida como contraposta atodas as formas de governo autocrtico, o de consider-lacaracterizada por um conjunto de regras (primrias ou fundamentais)que estabelecem quem est autorizado a tomar as decises coletivas ecom quais procedimentos. Todo grupo social est obrigado a tomardecises vinculatrias para todos os seus membros com o objetivo deprover a prpria sobrevivncia, tanto interna como externamente.3Mas at mesmo as decises de grupo so tomadas por indivduos (ogrupo como tal no decide). Por isto, para que uma deciso tomadapor indivduos (um, poucos, muitos, todos) possa ser aceita comodeciso coletiva preciso que seja tomada com base em regras (noimporta se escritas ou consuetudinrias) que estabeleam quais so osindivduos autorizados a tomar as decises vinculatrias para todos osmembros do grupo, e base de quais procedimentos. No que dizrespeito aos sujeitos chamados a tomar (ou a colaborar para a tomadade) decises coletivas, um regime democrtico caracteriza-se por 17. atribuir este poder (que estando autorizado pela lei fundamental torna-se um direito) a um nmero muito elevado de membros do grupo.Percebo que "nmero muito elevado" uma expresso vaga. Noentanto, os discursos polticos inscrevem-se no universo do"aproximadamente" e do "na maior parte das vezes" e, alm disto, impossvel dizer "todos" porque mesmo no mais perfeito regimedemocrtico no votam os indivduos que no atingiram uma certaidade. 3. Sobre este ponto remeto ao meu ensaio "Decisioni individuali e collettive", inRicerche politiche due (Identit, interesse e scelte collettive), Il Saggiatore, Milano, 1983,pp. 9-30.A onicracia, como governo de todos, um ideal-limite. Estabelecero nmero dos que tm direito ao voto a partir do qual pode-se comeara falar de regime democrtico algo que no pode ser feito em linhade princpio, isto , sem a considerao das circunstncias histricas esem um juzo comparativo: pode-se dizer apenas que uma sociedadena qual os que tm direito ao voto so os cidados masculinos maioresde idade mais democrtica do que aquela na qual votam apenas osproprietrios e menos democrtica do que aquela em que tm direitoao voto tambm as mulheres. Quando se diz que no sculo passadoocorreu em alguns pases um contnuo processo de democratizaoquer-se dizer que o nmero dos indivduos com direito ao voto sofreuum progressivo alargamento.No que diz respeito s modalidades de deciso, a regrafundamental da democracia a regra da maioria, ou seja, a regra base da qual so consideradas decises coletivas e, portanto,vinculatrias para todo o grupo as decises aprovadas ao menospela maioria daqueles a quem compete tomar a deciso. Se vlidauma deciso adotada por maioria, com maior razo ainda vlida umadeciso adotada por unanimidade4. Mas a unanimidade possvelapenas num grupo restrito ou homogneo, e pode ser exigida em doiscasos extremos e contrapostos: ou no caso de decises muito gravesem que cada um dos participantes tem direito de veto, ou no caso dedecises de escassa importncia em que se declara consenciente quemno se ope expressamente ( o caso do consenso tcito).Naturalmente a unanimidade necessria quando os que decidem soapenas dois, o que distingue com clareza a deciso concordadadaquela adotada por lei (que habitualmente aprovada por maioria).4. Ocupei-me mais amplamente deste tema no artigo "La regola delia maggioranza: limiti 18. e aporie", in AA. VV., Democrazia, maggioranza e minoranza, Il Mulino, Bologna, 1981, pp.33-72; e em "La regola di maggioranza e i suoi limiti", in AA. VV., Soggetti e potere. Undibattito su societ civile e crisi delia poltica, Bibliopolis, Napoli, 1983, pp. 11-23.No entanto, mesmo para uma definio mnima de democracia,como a que aceito, no bastam nem a atribuio a um elevadonmero de cidados do direito de participar direta ou indiretamente datomada de decises coletivas, nem a existncia de regras deprocedimento como a da maioria (ou, no limite, da unanimidade). indispensvel uma terceira condio: preciso que aqueles que sochamados a decidir ou a eleger os que devero decidir sejamcolocados diante de alternativas reais e postos em condio de poderescolher entre uma e outra. Para que se realize esta condio necessrio que aos chamados a decidir sejam garantidos os assimdenominados direitos de liberdade, de opinio, de expresso dasprprias opinies, de reunio, de associao, etc. os direitos basedos quais nasceu o estado liberal e foi construda a doutrina do estadode direito em sentido forte, isto , do estado que no apenas exerce opoder sub lege, mas o exerce dentro de limites derivados doreconhecimento constitucional dos direitos "inviolveis" do indivduo.Seja qual for o fundamento filosfico destes direitos, eles so opressuposto necessrio para o correto funcionamento dos prpriosmecanismos predominantemente procedimentais que caracterizam umregime democrtico. As normas constitucionais que atribuem estesdireitos no so exatamente regras do jogo: so regras preliminaresque permitem o desenrolar do jogo.Disto segue que o estado liberal o pressuposto no s histricomas jurdico do estado democrtico. Estado liberal e estadodemocrtico so interdependentes em dois modos: na direo que vaido liberalismo democracia, no sentido de que so necessrias certasliberdades para o exerccio correto do poder democrtico, e na direooposta que vai da democracia ao liberalismo, no sentido de que necessrio o poder democrtico para garantir a existncia e apersistncia das liberdades fundamentais. Em outras palavras: poucoprovvel que um estado no liberal possa assegurar um corretofuncionamento da democracia, e de outra parte pouco provvel queum estado no democrtico seja capaz de garantir as liberdadesfundamentais. A prova histrica desta interdependncia est no fato deque estado liberal e estado democrtico, quando caem, caem juntos. 19. 3. Os ideais e a "matria bruta"Esta referncia aos princpios me permite entrar por inteiro noassunto, fazendo, como afirmei antes, algumas observaes sobre asituao atual da democracia. Trata-se de um tema que normalmente discutido sob o nome de "transformaes da democracia". Serecolhssemos tudo o que foi escrito sobre as transformaes dademocracia ou sobre a democracia em transformao teramosmaterial suficiente para lotar uma biblioteca. Mas a palavra"transformao" vaga o bastante para consentir as mais diversasavaliaes: direita (penso por exemplo no livro de Vilfredo Pareto,Transformazione delia democrazia, de 1920,5 verdadeiro carro-chefede uma longa e ininterrupta srie de lamentaes sobre a crise dacivilizao), a democracia transformou-se num regime semi-anrquicopredestinado a ter como conseqncia o "estilhaamento" do estado; esquerda (penso por exemplo num livro como o de Johannes Agnoli,Die Transformationen der Demokratie, de 1967, tpica expresso decrtica extraparlamentar), a democracia parlamentar est setransformando cada vez mais num regime autocrtico. Mais que sobrea transformao, parece-me mais til concentrar nossa reflexo sobreo contraste entre os ideais democrticos e a "democracia real"(expresso que uso no mesmo sentido em que se fala de "socialismoreal"). Algum tempo atrs, um meu ouvinte chamou minha atenopara as palavras conclusivas que Pasternak pe na boca de Gordon, oamigo do doutor Jivago: "Aconteceu mais vezes na histria. O que foiconcebido como nobre e elevado tornou-se matria bruta. Assim aGrcia tornou-se Roma, assim o iluminismo russo tornou-se arevoluo russa"6. Assim, acrescento eu, o pensamento liberal edemocrtico de um Locke, de um Rousseau, de um Tocqueville, de umBentham e de um John Stuart Mill tornou-se a ao de ... (coloquemvocs o nome que preferirem; tenho certeza de que no terodificuldade para encontrar mais de um). exatamente desta "matriabruta" e no do que foi concebido como "nobre e elevado" quedevemos falar; em outras palavras, devemos examinar o contrasteentre o que foi prometido e o que foi efetivamente realizado. Destaspromessas no cumpridas indicarei seis. 5. Vilfredo Pareto, Transformazione delia democrazia, Corbaccio, Milano, 1920, 20. reunio de artigos publicados na Rivista di Milano entre maio e julho de 1920. O livro deAgnoli, publicado em 1967, foi traduzido em italiano por Feltrinelli, Milano, 1969.6, Boris L. Pasternak, Il dottor Zivago, Feltrinelli, Milano, 1957, p. 673.4. O nascimento da sociedade pluralistaA democracia nasceu de uma concepo individualista dasociedade, isto , da concepo para a qual contrariamente concepo orgnica, dominante na idade antiga e na idade mdia,segundo a qual o todo precede as partes a sociedade, qualquerforma de sociedade, e especialmente a sociedade poltica, umproduto artificial da vontade dos indivduos. Para a formao daconcepo individualista da sociedade e do estado e para a dissoluoda concepo orgnica concorreram trs eventos que caracterizam afilosofia social da idade moderna: a) o contratualismo do Seiscentos edo Setecentos, que parte da hiptese de que antes da sociedade civilexiste o estado de natureza, no qual soberanos so os indivduossingulares livres e iguais, que entram em acordo entre si para dar vidaa um poder comum capaz de cumprir a funo de garantir-lhes a vidae a liberdade (bem como a propriedade); b) o nascimento da economiapoltica, vale dizer, de uma anlise da sociedade e das relaes sociaiscujo sujeito ainda uma vez o indivduo singular, o homooeconomicus e no o politikn zon da tradio, que no considerado em si mesmo mas apenas como membro de umacomunidade, o indivduo singular que, segundo Adam Smith,"perseguindo o prprio interesse, freqentemente promove aquele dasociedade de modo mais eficaz do que quando pretenda realmentepromov-lo" (de resto conhecida a recente interpretao deMacpherson segundo a qual o estado de natureza de Hobbes e deLocke uma prefigurao da sociedade de mercado) 7; c) a filosofiautilitarista de Bentham a Mill, para a qual o nico critrio capaz defundar uma tica objetivista, e por- tanto distinguir o bem do mal semrecorrer a conceitos vagos como "natureza" e outros, o de partir daconsiderao de estados essencialmente individuais, como o prazer e ador, e de resolver o problema tradicional do bem comum na soma dosbens individuais ou, segundo a frmula benthamiana, na felicidade domaior nmero.7. Refiro-me ao conhecido livro de C. B. Macpherson, The Political Theory of 21. Possessive Individualism, Clarendon Press, Oxford, 1962. (Trad. bras. A teoria poltica doliberalismo possessivo, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979).Partindo da hiptese do indivduo soberano que, entrando emacordo com outros indivduos igualmente soberanos, cria a sociedadepoltica, a doutrina democrtica tinha imaginado um estado semcorpos intermedirios, caractersticos da sociedade corporativa dascidades medievais e do estado de camadas ou de ordens anterior afirmao das monarquias absolutas, uma sociedade poltica na qualentre o povo soberano composto por tantos indivduos (uma cabea,um voto) e os seus representantes no existem as sociedadesparticulares desprezadas por Rousseau e canceladas pela lei LeChapelier (ab-rogada na Frana apenas em 1887). O que aconteceunos estados democrticos foi exatamente o oposto: sujeitospoliticamente relevantes tornaram-se sempre mais os grupos, grandesorganizaes, associaes da mais diversa natureza, sindicatos dasmais diversas profisses, partidos das mais diversas ideologias, esempre menos os indivduos. Os grupos e no os indivduos so osprotagonistas da vida poltica numa sociedade democrtica, na qualno existe mais um soberano, o povo ou a nao, composto porindivduos que adquiriram o direito de participar direta ouindiretamente do governo, na qual no existe mais o povo comounidade ideal (ou mstica), mas apenas o povo dividido de fato emgrupos contrapostos e concorrentes, com a sua relativa autonomiadiante do governo central (autonomia que os indivduos singularesperderam ou s tiveram num modelo ideal de governo democrticosempre desmentido pelos fatos).O modelo ideal da sociedade democrtica era aquele de umasociedade centrpeta. A realidade que temos diante dos olhos a deuma sociedade centrfuga, que no tem apenas um centro de poder (avontade geral de Rousseau) mas muitos, merecendo por isto o nome,sobre o qual concordam os estudiosos da poltica, de sociedadepolicntrica ou polirquica (ou ainda, com uma expresso mais fortemas no de tudo incorreta, policrtica). O modelo do estadodemocrtico fundado na soberania popular, idealizado imagem esemelhana da soberania do prncipe, era o modelo de uma sociedademonstica. A sociedade real, sotoposta aos governos democrticos, pluralista.5. Revanche dos interesses 22. Desta primeira transformao (primeira no sentido de que dizrespeito distribuio do poder) derivou a segunda, relativa representao. A democracia moderna, nascida como democraciarepresentativa em contraposio democracia dos antigos, deveria sercaracterizada pela representao poltica, isto , por uma forma derepresentao na qual o representante, sendo chamado a perseguir osinteresses da nao, no pode estar sujeito a um mandato vinculado. Oprincpio sobre o qual se funda a representao poltica a antteseexata do princpio sobre o qual se funda a representao dosinteresses, no qual o representante, devendo perseguir os interessesparticulares do representado, est sujeito a um mandato vinculado(tpico do contrato de direito privado que prev a revogao porexcesso de mandato). Um dos debates mais clebres e historicamentemais significativos que se desenrolaram na Assemblia Constituintefrancesa, da qual nasceu a constituio de 1791, foi o que viu triunfaraqueles que sustentaram que o deputado, uma vez eleito, tornava-se orepresentante da nao e deixava de ser o representante dos eleitores:como tal, no estava vinculado a nenhum mandato. O mandato livrefora uma prerrogativa do rei, que, convocando os Estados Gerais,pretendera que os delegados das ordens no fossem enviados Assemblia com pouvoirs restrictifs8. Expresso cabal da soberania, omandato livre foi transferido da soberania do rei para a soberania daAssemblia eleita pelo povo. Desde ento a proibio de mandatosimperativos tornou-se uma regra constante de todas as constituiesde democracia representativa e a defesa intransigente da representaopoltica encontrou sempre, nos fautores da democracia representativa,convictos defensores contra as tentativas de substitu-la ou decombin-la com a representao dos interesses.8. Para uma ampla documentao ver P. Violante, Lo spazio della rappresentanza, I:Francia 1788-1789, Mozzone, Palermo, 1981.Jamais uma norma constitucional foi mais violada que a daproibio de mandato imperativo. Jamais um princpio foi maisdesconsiderado que o da representao poltica. Mas numa sociedadecomposta de grupos relativamente autnomos que lutam pela suasupremacia, para fazer valer os prprios interesses contra outrosgrupos, uma tal norma, um tal princpio, podem de fato encontrarrealizao? Alm do fato de que cada grupo tende a identificar o 23. interesse nacional com o interesse do prprio grupo, ser que existealgum critrio geral capaz de permitir a distino entre o interessegeral e o interesse particular deste ou daquele grupo, ou entre ointeresse geral e a combinao de interesses particulares que seacordam entre si em detrimento de outros? Quem representa interessesparticulares tem sempre um mandato imperativo. E onde podemosencontrar um representante que no represente interesses particulares?Certamente no nos sindicatos, dos quais entre outras coisas dependea estipulao de acordos como os acordos nacionais sobre aorganizao e sobre o custo do trabalho que tm uma enormerelevncia poltica. No parlamento? Mas o que representa a disciplinapartidria se no uma aberta violao da proibio de mandatosimperativos? Aqueles que de vez em quando fogem disciplinapartidria aproveitando-se do voto secreto no so por acaso tachadosde "franco-atiradores", isto , tratados como rprobos a seremsubmetidos pblica reprovao? A proibio de mandato imperativo,alm do mais, uma regra sem sano. Ao contrrio: a nica sanotemida pelo deputado que depende do apoio do partido para sereeleger a derivada da transgresso da regra oposta, que o obriga aconsiderar-se vinculado ao mandato recebido do prprio partido.Uma confirmao da revanche (ousaria dizer definitiva) darepresentao dos interesses sobre a representao poltica o tipo derelao que se vem instaurando na maior parte dos estadosdemocrticos europeus entre os grandes grupos de interessescontrapostos (representantes respectivamente dos industriais e dosoperrios) e o parlamento, uma relao que deu lugar a um novo tipode sistema social que foi chamado, com ou sem razo, de neo-corporativo9. 9. Refiro-me em particular ao debate que se est desenvolvendo com crescenteintensidade, inclusive na Itlia, em torno das teses de Philippe Schmitter. Ver, a respeito,a antologia La societ neocorporativa, org. M. Maraffi, II Mulino, Bologna, 1981, e olivro escrito a duas mos por L. Bordogna e G. Provasi, Poltica, economia erappresentanza degli interessi, II Mulino, Bologna, 1984. Tal sistema caracterizado por uma relao triangular na qual ogoverno, idealmente representante dos interesses nacionais, intervmunicamente como mediador entre as partes sociais e, no mximo,como garante (geralmente impotente) do cumprimento do acordo.Aqueles que elaboraram, h cerca de dez anos, este modelo quehoje ocupa o centro do debate sobre as "transformaes" da 24. democracia definiram a sociedade neocorporativa como uma formade soluo dos conflitos sociais que se vale de um procedimento (o doacordo entre grandes organizaes) que nada tem a ver com arepresentao poltica e , ao contrrio, uma expresso tpica derepresentao dos interesses.6. Persistncia das oligarquiasConsidero como terceira promessa no cumprida a derrota dopoder oligrquico. No preciso insistir ainda sobre este ponto, pois setrata de um tema muito examinado e pouco controverso, ao menosdesde quando no fim do sculo passado Gaetano Mosca exps suateoria da classe poltica, chamada, por influncia de Pareto, de teoriadas elites. O princpio inspirador do pensamento democrtico semprefoi a liberdade entendida como autonomia, isto , como capacidade dedar leis a si prpria, conforme a famosa definio de Rousseau, quedeveria ter como conseqncia a perfeita identificao entre quem de quem recebe uma regra de conduta e, portanto, a eliminao datradicional distino entre governados e governantes sobre a qualfundou-se todo o pensamento poltico. A democracia representativa,que a nica forma de democracia existente e em funcionamento, jpor si mesma uma renncia ao princpio da liberdade comoautonomia. A hiptese de que a futura computadorcracia, como temsido chamada, permita o exerccio da democracia direta, isto , d acada cidado a possibilidade de transmitir o prprio voto a um crebroeletrnico, uma hiptese absolutamente pueril. A julgar pelas leispromulgadas a cada ano na Itlia, o bom cidado deveria serconvocado para exprimir seu prprio voto ao menos uma vez por dia.O excesso de participao, produto do fenmeno que Dahrendorfchamou depreciativamente de cidado total, pode ter como efeito asaciedade de poltica e o aumento da apatia eleitoral 10. O preo que sedeve pagar pelo empenho de poucos freqentemente a indiferena demuitos. Nada ameaa mais matar a democracia que o excesso dedemocracia.10. Refiro-me a Ralf Dahrendorf, Il cittadino totale. Centro di ricerca e didocumentazione Luigi Einaudi, Torino, 1977, pp. 35-59.Naturalmente, a presena de elites no poder no elimina adiferena entre regimes democrticos e regimes autocrticos. Sabiadisso inclusive Mosca, um conservador que se declarava liberal mas 25. no democrtico e que imaginou uma complexa tipologia das formasde governo com o objetivo de mostrar que, apesar de no eliminaremjamais as oligarquias no poder, as diversas formas de governodistinguem-se com base na sua diversa formao e organizao. Masdesde que parti de uma definio predominantemente procedimentalde democracia, no se pode esquecer que um dos fautores destainterpretao, Joseph Schumpeter, acertou em cheio quando sustentouque a caracterstica de um governo democrtico no a ausncia deelites mas a presena de muitas elites em concorrncia entre si para aconquista do voto popular. No recente livro de Macpherson, A vida eos tempos da democracia liberal11, so diferenciadas quatro fases nodesenvolvimento da democracia do sculo passado a hoje: a fase atual,definida como "democracia de equilbrio", corresponde definio deSchumpeter. Anos atrs, um elitista italiano, intrprete de Mosca ePareto, distinguiu de maneira sinttica e a meu ver incisiva aselites que se impem das elites que se propem12.11. C. B. Macpherson, The Life and Times of Liberal Democracy, Oxford UniversityPress, Oxford, 1977.12. Refiro-me ao livro de F. Burzio. Essenza e attualit del liberalismo, Utet, Torino,1945, p. 19.7. O espao limitadoSe a democracia no consegue derrotar por completo o poderoligrquico, ainda menos capaz de ocupar todos* os espaos nosquais se exerce um poder que toma decises vinculatrias para uminteiro grupo social. A este ponto, a distino que entra em jogo no mais aquela entre poder de poucos e de muitos mas aquela entre poderascendente e poder descendente. Por feto, dever-se-ia falar aqui maisde inconseqncia que de irrealizao, j que a democracia modernanasceu como mtodo de legitimao e de controle das decisespolticas em sentido estrito, ou do "governo" propriamente dito (sejaele nacional ou local), no qual o indivduo considerado em seu papelgeral de cidado e no na multiplicidade de seus papis especficos defiel de uma igreja, de trabalhador, de estudante, de soldado, deconsumidor, de doente, etc. Aps a conquista do sufrgio universal, seainda possvel falar de uma extenso do processo dedemocratizao, esta deveria revelar-se no tanto na passagem dademocracia representativa para a democracia direta, como 26. habitualmente se afirma, quanto na passagem da democracia polticapara a democracia social no tanto na resposta pergunta "Quemvota?", mas na resposta a esta outra pergunta: "Onde se vota?" Emoutros termos, quando se quer saber se houve um desenvolvimento dademocracia num dado pas o certo procurar perceber se aumentouno o nmero dos que tm o direito de participar nas decises que lhesdizem respeito, mas os espaos nos quais podem exercer este direito.At que os dois grandes blocos de poder situados nas instnciassuperiores das sociedades avanadas no sejam dissolvidos peloprocesso de democratizao deixando-se de lado a questo de saberse isto no s possvel mas sobretudo desejvel , o processo dedemocratizao no pode ser dado por concludo.No entanto, parece-me de certo interesse observar que em algunsdestes espaos no polticos (no sentido tradicional da palavra), porexemplo na fbrica, deu-se algumas vezes a proclamao de certosdireitos de liberdade no mbito do especfico sistema de poder,analogamente ao que ocorreu com as declaraes dos direitos docidado em relao ao sistema do poder poltico: refiro-me, porexemplo, ao Estatuto dos trabalhadores, promulgado na Itlia em1970, e s iniciativas hoje em curso para a proclamao de uma cartados direitos do doente. Inclusive no que diz respeito s prerrogativasdo cidado diante do estado, a concesso de direitos de liberdadeprecedeu a concesso de direitos polticos. Como j afirmei quandofalei da relao entre estado liberal e estado democrtico, a concessodos direitos polticos foi uma conseqncia natural da concesso dosdireitos de liberdade, pois a nica garantia de respeito aos direitos deliberdade est no direito de controlar o poder ao qual compete estagarantia.8. O poder invisvel A quinta promessa no cumprida pela democracia real emcontraste com a ideal a da eliminao do poder invisvel13. 13. Ocupei-me deste assunto alguns anos atrs num artigo intitulado "La democrazia e ilpotere invisibile", in Rivista italiana di scienza poltica, X (1980), pp. 181-203, texto agorareunido no presente livro.Diferentemente da relao entre democracia e poder oligrquico, a 27. respeito da qual a literatura riqussima, o tema do poder invisvel foiat agora muito pouco explorado (inclusive porque escapa dastcnicas de pesquisa adotadas habitualmente pelos socilogos, taiscomo entrevistas, levantamentos de opinio, etc.). Talvez eu estejaparticularmente influenciado por aquilo que acontece na Itlia, onde apresena do poder invisvel (mfia, camorra, lojas manicasanmalas, servios secretos incontrolveis e acoberta-dores dossubversivos que deveriam combater) , permitam-me o jogo depalavras, visibilssima. A verdade porm que o tratamento maisamplo do tema foi por mim encontrado, at agora, no livro de umestudioso americano, Alan Wolfe, Os limites da legitimidade14, quededica um bem documentado captulo ao que denomina de "duploestado", duplo no sentido de que ao lado de um estado visvel existiriasempre um estado invisvel. Como bem conhecido, a democracianasceu com a perspectiva de eliminar para sempre das sociedadeshumanas o poder invisvel e de dar vida a um governo cujas aesdeveriam ser desenvolvidas publicamente, "au grand jour" (para usara expresso de Maurice Joly15). Modelo da democracia moderna foi ademocracia dos antigos, de modo particular a da pequena cidade deAtenas, nos felizes momentos em que o povo se reunia na agora etomava livremente, luz do sol, suas prprias decises, aps terouvido os oradores que ilustravam os diversos pontos de vista. Paradenegri-la, Plato (que era um antidemocrtico) a havia chamado de"teatrocracia" (palavra que se encontra, no por acaso, tambm emNietzsche). Uma das razes da superioridade da democracia diantedos estados absolutos, que tinham revalorizado os arcana imperii * edefendiam com argumentos histricos e polticos a necessidade defazer com que as grandes decises polticas fossem tomadas nosgabinetes secretos, longe dos olhares indiscretos do pblico, funda-sesobre a convico de que o governo democrtico poderia finalmentedar vida transparncia do poder, ao "poder sem mscara".14. Alan Wolfe, The Limits of Legitimacy. Political Contradictions of ContemporaryCapitalism, The Free Press, New York, 1977.15. M. Joly, Dialogue aux enfers entre Machiavel et Montesquieu ou la politique deMachiavel au XIXe sicle par un contemporain, "chez tous les libraires", Bruxelles, 1868.* Em latim no original: autoridades ocultas, misteriosas. (N. do T.)No "Apndice" Paz Perptua, Kant enunciou e ilustrou oprincpio fundamental segundo o qual "todas as aes relativas aodireito de outros homens cuja mxima no suscetvel de se tornar 28. pblica so injustas"16, querendo com isto dizer que uma ao que souforcado a manter secreta certamente no apenas uma ao injusta,mas sobretudo uma ao que se fosse tornada pblica suscitaria umareao to grande que tornaria impossvel a sua execuo: que estado,para usar o exemplo dado pelo prprio Kant, poderia declararpublicamente, no momento exato em que firma um tratadointernacional, que no o cumprir? Que funcionrio pblico podeafirmar em pblico que usar o dinheiro pblico para interessesprivados? Desta impostao do problema resulta que a exigncia depublicidade dos atos de governo importante no apenas, como secostuma dizer, para permitir ao cidado conhecer os atos de quemdetm o poder e assim control-los, mas tambm porque a publicidade por si mesma uma forma de controle, um expediente que permitedistinguir o que lcito do que no . No por acaso, a poltica dosarcam imperii caminhou simultaneamente com as teorias da razo deestado, isto , com as teorias segundo as quais lcito ao estado o queno lcito aos cidados privados, ficando o estado portanto obrigadoa agir em segredo para no provocar escndalo. (Para dar uma idia doexcepcional poderio do tirano, Plato afirma que apenas ao tirano lcito praticar em pblico os atos escandalosos que os comuns mortaiss em sonho imaginam realizar)17.16. I. Kant, Zum ewigen Frieden, Apndice II, in Kleinere Schriften zurGeschichtsphilosophie, Ethik und Politik, Meinrer, Leipzig, 1913, p. 163.17. Plato, Repubblica, 571cd. Intil dizer que o controle pblico do poder ainda maisnecessrio numa poca como a nossa, na qual aumentaramenormemente e so praticamente ilimitados os instrumentos tcnicosde que dispem os detentores do poder para conhecer capilarmentetudo o que fazem os cidados. Se manifestei alguma dvida de que acomputadorcracia possa vir a beneficiar a democracia governada, notenho dvida nenhuma sobre os servios que pode prestar democracia governante. O ideal do poderoso sempre foi o de ver cadagesto e escutar cada palavra dos que esto a ele submetidos (sepossvel sem ser visto nem ouvido): hoje este ideal inalcanvel.Nenhum dspota da antigidade, nenhum monarca absoluto da idademoderna, apesar de cercado por mil espies, jamais conseguiu tersobre seus sditos todas as informaes que o mais democrtico dosgovernos atuais pode obter com o uso dos crebros eletrnicos. A 29. velha pergunta que percorre toda a histria do pensamento poltico "Quem custodia os custdios?" hoje pode ser repetida com estaoutra frmula: "Quem controla os controladores?" Se no conseguirencontrar uma resposta adequada para esta pergunta, a democracia,como advento do governo visvel, est perdida. Mais que de umapromessa no cumprida, estaramos aqui diretamente diante de umatendncia contrria s premissas: a tendncia no ao mximo controledo poder por parte dos cidados, mas ao mximo controle dos sditospor parte do poder. 9. O cidado no educadoA sexta promessa no cumprida diz respeito educao para acidadania. Nos dois ltimos sculos, nos discursos apologticos sobrea democracia, jamais esteve ausente o argumento segundo o qual onico modo de fazer com que um sdito transforme-se em cidado ode lhe atribuir aqueles direitos que os escritores de direito pblico dosculo passado tinham chamado de activae civitatis [Em latim nooriginal: cidadania ativa, direitos do cidado. (N. do T.)]; com isso,a educao para a democracia surgiria no prprio exerccio da prticademocrtica. Concomitantemente, no antes: no antes comoprescreve o modelo jacobino, segundo o qual primeiro vem a ditadurarevolucionria e apenas depois, num segundo tempo, o reino davirtude. No, para o bom democrata, o reino da virtude (que paraMontesquieu constitua o princpio da democracia contraposto aomedo, princpio do despotismo) a prpria democracia, que,entendendo a virtude como amor pela coisa pblica, dela no podeprivar-se e ao mesmo tempo a promove, a alimenta e refora. Um dostrechos mais exemplares a este respeito o que se encontra nocaptulo sobre a melhor forma de governo das Consideraes sobre ogoverno representativo de John Stuart Mill, na passagem em que eledivide os cidados em ativos e passivos e esclarece que, em geral, osgovernantes preferem os segundos (pois mais fcil dominar sditosdceis ou indiferentes), mas a democracia necessita dos primeiros. Sedevessem prevalecer os cidados passivos, ele conclui, os governantesacabariam prazerosamente por transformar seus sditos num bando deovelhas dedicadas to-somente a pastar o capim uma ao lado da outra(e a no reclamar, acrescento eu, nem mesmo quando o capim 30. escasso)18. Isto o levava a propor a extenso do sufrgio s classespopulares, com base no argumento de que um dos remdios contra atirania das maiorias encontra-se exatamente na promoo daparticipao eleitoral no s das classes acomodadas (que constituemsempre uma minoria e tendem naturalmente a assegurar os prpriosinteresses exclusivos), mas tambm das classes populares. Stuart Milldizia: a participao eleitoral tem um grande valor educativo; atravsda discusso poltica que o operrio, cujo trabalho repetitivo econcentrado no horizonte limitado da fbrica, consegue compreendera conexo existente entre eventos distantes e o seu interesse pessoal eestabelecer relaes com cidados diversos daqueles com os quaismantm relaes cotidianas, tornando-se assim membro consciente deuma comunidade19. A educao para a cidadania foi um dos temaspreferidos da cincia poltica americana nos anos cinqenta, um tematratado sob o rtulo da "cultura poltica" e sobre o qual foram gastosrios de tinta que rapidamente perdeu a cor: das tantas distines,recordo aquela estabelecida entre cultura para sditos, isto , orientadapara os output do sistema (para os benefcios que o eleitor esperaextrair do sistema poltico), e cultura participante, isto , orientadapara os input, prpria dos eleitores que se consideram potencialmenteempenhados na articulao das demandas e na formao das decises.18. J. S. Mill, Considerations on Representative Government, in CollectedPapers of John Stuart Mill, University of Toronto Press, Routledge and Kegan Paul,vol. XIX, London, 1977, p. 406. (Trad. bras. Braslia, Editora Universidade deBraslia, 1982.)19. Ibid, p. 470.Olhemos ao nosso redor. Nas democracias mais consolidadasassistimos impotentes ao fenmeno da apatia poltica, quefreqentemente chega a envolver cerca da metade dos que tm direitoao voto. Do ponto de vista da cultura poltica, estas so pessoas queno esto orientadas nem para os output nem para os input. Estosimplesmente desinteressadas daquilo que, como se diz na Itlia comuma feliz expresso, acontece no "palcio". Sei bem que tambmpodem ser dadas interpretaes benvolas da apatia poltica. Masinclusive as interpretaes mais benvolas no conseguem tirar-me damente que os grandes escritores democrticos recusar-se-iam areconhecer na renncia ao uso do prprio direito um benfico fruto daeducao para a cidadania. Nos regimes democrticos, como o 31. italiano, onde a porcentagem dos votantes ainda muito alta (emboradiminua a cada eleio), existem boas razes para se acreditar queesteja em diminuio o voto de opinio e em aumento o voto depermuta [voto di scambio], o voto, para usar a terminologia asspticados political scientists, orientado para os output, ou, para usar umaterminologia mais crua mas talvez menos mistificadora, o votoclientelar, fundado (freqentemente de maneira ilusria) sobre o do utdes (apoio poltico em troca de favores pessoais). Tambm para o votode permuta podem ser dadas interpretaes benvolas. Mas no possodeixar de pensar em Tocqueville que, num discurso Cmara dosDeputados (em 27 de janeiro de 1848), lamentando a degenerao doscostumes pblicos em decorrncia da qual "as opinies, ossentimentos, as idias comuns so cada vez mais substitudas pelosinteresses particulares", perguntava-se "se no havia aumentado onmero dos que votam por interesses pessoais e diminudo o voto dequem vota base de uma opinio poltica", denunciando estatendncia como expresso de uma "moral baixa e vulgar" segundo aqual "quem usufrui dos direitos polticos pensa em deles fazer um usopessoal em funo do prprio interesse"30.20. Alexis de Tocqueville, Discorso sulla rivoluzione sociale, in Scritti politici, a curadi N. Matteucci, vol. I, Utet, Torino, 1969, p. 271.10. O governo dos tcnicosPromessas no cumpridas. Mas eram elas promessas que poderiamser cumpridas? Diria que no. Embora prescindindo do contraste, pormim mencionado pginas atrs, entre o que fora concebido como"nobre e elevado" e a "matria bruta", o projeto poltico democrticofoi idealizado para uma sociedade muito menos complexa que a dehoje. As promessas no foram cumpridas por causa de obstculos queno estavam previstos ou que surgiram em decorrncia das"transformaes" da sociedade civil (neste caso creio que o termo"transformao" apropriado). Destes obstculos indico trs.Primeiro: na medida em que as sociedades passaram de umaeconomia familiar para uma economia de mercado, de uma economiade mercado para uma economia protegida, regulada, planificada,aumentaram os problemas polticos que requerem competnciastcnicas. Os problemas tcnicos exigem por sua vez expertos, 32. especialistas, uma multido cada vez mais ampla de pessoalespecializado. H mais de um sculo Saint-Simon havia percebido istoe defendido a substituio do governo dos legisladores pelo governodos cientistas. Com o progresso dos instrumentos de clculo, queSaint-Simon no podia nem mesmo de longe imaginar, a exigncia doassim chamado governo dos tcnicos aumentou de maneiradesmesurada.Tecnocracia e democracia so antitticas: se o protagonista dasociedade industrial o especialista, impossvel que venha a ser ocidado qualquer. A democracia sustenta-se sobre a hiptese de quetodos podem decidir a respeito de tudo. A tecnocracia, ao contrrio,pretende que sejam convocados para decidir apenas aqueles poucosque detm conhecimentos especficos. Na poca dos estadosabsolutos, como j afirmei, o vulgo devia ser mantido longe dosarcaria impem porque considerado ignorante demais. Hoje o vulgo certamente menos ignorante. Mas os problemas a resolver taiscomo a luta contra a inflao, o pleno emprego, uma mais justadistribuio da renda no se tornaram por acaso crescentementemais complicados? No so eles de tal envergadura que requeremconhecimentos cientficos e tcnicos em hiptese alguma menosmisteriosos para o homem mdio de hoje (que apesar de tudo maisinstrudo)? 11. O aumento do aparatoO segundo obstculo no previsto e que sobreveio de maneirainesperada foi o contnuo crescimento do aparato burocrtico, de umaparato de poder ordenado hierarquicamente do vrtice base, eportanto diametralmente oposto ao sistema de poder democrtico.Admitindo-se como pressuposto que uma sociedade apresenta semprediversos graus de poder e configurando-se um sistema poltico comouma pirmide, na sociedade democrtica o poder vai da base aovrtice e numa sociedade burocrtica, ao contrrio, vai do vrtice base.Estado democrtico e estado burocrtico esto historicamentemuito mais ligados um ao outro do que a sua contraposio pode fazerpensar. Todos os estados que se tornaram mais democrticostornaram-se ao mesmo tempo mais burocrticos, pois o processo de 33. burocratizao foi em boa parte uma conseqncia do processo dedemocratizao. Prova disso que hoje o desmantelamento do estadode servios estado este que exigiu um aparato burocrtico at agorajamais conhecido esconde o propsito, no digo de desmantelar,mas de reduzir a limites bem circunscritos o poder democrtico. Quedemocratizao e burocratizao caminharam no mesmo passo algoevidente, como de resto havia j observado Max Weber. Quando osproprietrios eram os nicos que tinham direito de voto, era naturalque pedissem ao poder pblico o exerccio de apenas uma funoprimria: a proteo da propriedade. Daqui nasceu a doutrina doestado limitado, do estado carabiniere ou, como se diz hoje, do estadomnimo, e configurou-se o estado como associao dos proprietriospara a defesa daquele direito natural supremo que era exatamente, paraLocke, o direito de propriedade. A partir do momento em que o votofoi estendido aos analfabetos tornou-se inevitvel que estes pedissemao estado a instituio de escolas gratuitas; com isto, o estado teve quearcar com um nus desconhecido pelo estado das oligarquiastradicionais e da primeira oligarquia burguesa. Quando o direito devoto foi estendido tambm aos no-proprietrios, aos que nadatinham, aos que tinham como propriedade to-somente a fora detrabalho, a conseqncia foi que se comeou a exigir do estado aproteo contra o desemprego e, pouco a pouco, seguros sociais contraas doenas e a velhice, providncias em favor da maternidade, casas apreos populares, etc. Assim aconteceu que o estado de servios, oestado social, foi, agrade ou no, a resposta a uma demanda vinda debaixo, a uma demanda democrtica no sentido pleno da palavra. 12. O baixo rendimentoO terceiro obstculo est estreitamente ligado ao tema dorendimento do sistema democrtico como um todo: estamos aquidiante de um problema que nos ltimos anos deu vida ao debate sobrea chamada "ingovernabilidade" da democracia. Do que se trata? Emsntese, do fato de que o estado liberal primeiro e o seu alargamentono estado democrtico depois contriburam para emancipar asociedade civil do sistema poltico. Tal processo de emancipao fezcom que sociedade civil se tornasse cada vez mais uma inesgotvel 34. fonte de demandas dirigidas ao governo, ficando este, para bemdesenvolver sua funo, obrigado a dar respostas sempre adequadas.Mas como pode o governo responder se as demandas que provm deuma sociedade livre e emancipada so sempre mais numerosas,sempre mais urgentes, sempre mais onerosas? Afirmei que aprecondio necessria de todo governo democrtico a proteo sliberdades civis: a liberdade de imprensa, a liberdade de reunio e deassociao, so vias atravs das quais o cidado pode dirigir-se aosgovernantes para solicitar vantagens, benefcios, facilidades, uma maisjusta distribuio dos recursos. A quantidade e a rapidez destasdemandas, no entanto, so de tal ordem que nenhum sistema poltico,por mais eficiente que seja, pode a elas responder adequadamente. Daderivam a assim chamada "sobrecarga" e a necessidade de o sistemapoltico fazer drsticas opes. Mas uma opo exclui a outra. E asopes no satisfatrias criam descontentamento.Alm do mais, diante da rapidez com que so dirigidas ao governoas demandas da parte dos cidados, torna-se contrastante a lentidoque os complexos procedimentos de um sistema poltico democrticoimpem classe poltica no momento de tomar as decises adequadas.Cria-se assim uma verdadeira defasagem entre o mecanismo daimisso e o mecanismo da emisso, o primeiro em ritmo sempre maisacelerado e o segundo em ritmo sempre mais lento. Ou seja,exatamente ao contrrio do que ocorre num sistema autocrtico, queest em condies de controlar a demanda por ter sufocado aautonomia da sociedade civil e efetivamente muito mais rpido naresposta por no ter que observar os complexos procedimentosdecisrios prprios de um sistema parlamentar. Sinteticamente: ademocracia tem a demanda fcil e a resposta difcil; a autocracia, aocontrrio, est em condies de tornar a demanda mais difcil e dispede maior facilidade para dar respostas. 13. Apesar distoAps o que afirmei at aqui, algum poderia esperar uma visocatastrfica do futuro da democracia. Nada disso. Em comparaocom os anos entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial chamados, no clebre livro de Elie Halvy, de A era das tiranias 35. (1938)21 , nos ltimos quarenta anos aumentou progressivamente oespao dos regimes democrticos. Um livro como o de Juan Linz, Aqueda dos regimes democrticos22, retira seu material principalmentedos anos que se seguiram Primeira Guerra Mundial, enquanto o deJulian Santamaria, A transio para a democracia na Europa do Sul ena Amrica Latina23, apia-se nos acontecimentos dos anosposteriores segunda. Terminada a Primeira Guerra Mundial foramsuficientes poucos anos na Itlia, e dez anos na Alemanha, para serabatido o estado parlamentar; aps a segunda, a democracia novoltou a ser abatida nos lugares em que foi restaurada e em outrospases foram derrubados governos autoritrios. Mesmo num pas dedemocracia no governante e mal governante como a Itlia, ademocracia no corre srio perigo, embora eu diga isto com um certotemor.21. E. Halvy, Lre des tyrannies. tudes sur le socialisme et la guerre, prefcio deCharles Bougl, Nrf, Paris, 1938.22. Trata-se de uma seleo de vrios textos, organizada por Juan Linz, publicadaprimeiro em ingls, The Breakdown of Democracy, The John Hopkins University Press,London, 1978, e depois em italiano, II Mulino, Bologna, 1981, na qual os trs temasfundamentais so o advento do fascismo na Itlia, na Alemanha e na Espanha.23. Publicado pelo Centro de Investigaciones Sociolgicas de Madrid, 1981.Entenda-se: falo dos perigos internos, dos perigos que podemderivar do extremismo de direita ou de esquerda. Na Europa oriental,onde regimes democrticos foram sufocados no nascedouro ou noconseguiram nascer, a causa foi e continua a ser externa. Em minhaanlise, ocupei-me das dificuldades internas das democracias e nodas externas, que dependem da posio dos diversos pases no sistemainternacional. Pois bem, a minha concluso que as promessas nocumpridas e os obstculos no previstos de que me ocupei no foramsuficientes para "transformar" os regimes democrticos em regimesautocrticos. A diferena substancial entre uns e outros permaneceu. Ocontedo mnimo do estado democrtico no encolheu: garantia dosprincipais direitos de liberdade, existncia de vrios partidos emconcorrncia entre si, eleies peridicas a sufrgio universal,decises coletivas ou concordadas (nas democracias consociativas ouno sistema neocorporativo) ou tomadas com base no princpio damaioria, e de qualquer modo sempre aps um livre debate entre aspartes ou entre os aliados de uma coalizo de governo. Existemdemocracias mais slidas e menos slidas, mais invulnerveis e mais 36. vulnerveis; existem diversos graus de aproximao com o modeloideal, mas mesmo a democracia mais distante do modelo no pode serde modo algum confundida com um estado autocrtico e menos aindacom um totalitrio.No falei dos perigos externos porque o tema a mim reservadodizia respeito ao futuro da democracia, no ao futuro da humanidade.E neste, devo confessar, no estou disposto a fazer qualquer aposta.Parodiando o ttulo do presente seminrio "O futuro j comeou", algum com queda para o humor negro poderia perguntar: "E se aoinvs disto o futuro j tivesse terminado?"No entanto, embora admitindo que possa estar correndo um certorisco, creio ser possvel fazer uma constatao final: nenhuma guerraexplodiu at agora entre estados dirigidos por regimes democrticos.O que no quer dizer que os estados democrticos no tenham feitoguerras, mas apenas que jamais as fizeram entre si24. A observao temerria, como j reconheci, mas prefiro faz-la e aguardar umdesmentido. Ser que estava certo Kant quando proclamou comoprimeiro artigo definitivo de um possvel acordo pela paz perptua que"a constituio de cada estado deve ser republicana"?25 Certo, oconceito de "repblica" ao qual se referia Kant no coincide com oconceito atual de "democracia", mas a idia de que a constituiointerna dos estados viesse a ser um obstculo guerra foi uma idiaforte, fecunda, inspiradora de muitos projetos pacifistas elaborados aolongo dos dois ltimos sculos (e importa pouco que eles tenhampermanecido, na prtica, letra morta). As objees feitas ao princpiode Kant derivaram sempre do fato de no se ter entendido que,tratando-se de um princpio universal, ele vlido somente se todos osestados e no apenas alguns poucos assumem a forma de governoexigida para o alcance da paz perptua.24. Esta tese foi recentemente sustentada, com argumentos doutrinais e histricos,por M. W. Doyle, "Kant, Liberal Legacies and Foreign Affairs", in Philosophy andPublic Affairs, XII, 1983, pp. 205-35 e 323-53.25. Kant, Zum ewigen Frieden, cit., p. 126.14. Apelo aos valores Para terminar, preciso dar uma resposta questo fundamental,aquela que ouo freqentemente repetida, sobretudo pelos jovens, tofceis s iluses quanto s desiluses. Se a democracia 37. predominantemente um conjunto de regras de procedimento, comopode pretender contar com "cidados ativos"? Para ter os cidadosativos ser que no so necessrios alguns ideais? evidente que sonecessrios os ideais. Mas como no dar-se conta das grandes lutas deidias que produziram aquelas regras? Tentemos enumer-las?Primeiro de tudo nos vem ao encontro, legado por sculos decruis guerras de religio, o ideal da tolerncia. Se hoje existe umaameaa paz mundial, esta vem ainda uma vez do fanatismo, ou seja,da crena cega na prpria verdade e na fora capaz de imp-la. Intildar exemplos: podemos encontr-los a cada dia diante dos olhos. Emsegundo lugar, temos o ideal da no-violncia: jamais esqueci oensinamento de Karl Popper segundo o qual o que distingueessencialmente um governo democrtico de um no-democrtico que apenas no primeiro os cidados podem livrar-se de seusgovernantes sem derramamento de sangue26 As to freqentementeridicularizadas regras formais da democracia introduziram pelaprimeira vez na histria as tcnicas de convivncia, destinadas aresolver os conflitos sociais sem o recurso violncia. Apenas ondeessas regras so respeitadas o adversrio no mais um inimigo (quedeve ser destrudo), mas um opositor que amanh poder ocupar onosso lugar. Terceiro: o ideal da renovao gradual da sociedadeatravs do livre debate das idias e da mudana das mentalidades e domodo de viver: apenas a democracia permite a formao e a expansodas revolues silenciosas, como foi por exemplo nestas ltimasdcadas a transformao das relaes entre os sexos que talvez sejaa maior revoluo dos nossos tempos. Por fim, o ideal da irmandade (afraternit da revoluo francesa). Grande parte da histria humana uma histria de lutas fratricidas. Na sua Filosofia da histria (e assimtermino com o autor que citei logo no incio) Hegel definiu a histriacomo um "imenso matadouro"27.26. Karl Popper, La societ aperta e i suoi nemici, Armando, Roma, 1973, P- 179.(Trad. bras. A sociedade aberta e os seus inimigos. So Paulo, Edusp.)27. Hegel, Vorlesungen, cit., vol. I, p. 58.Podemos desmenti-lo? Em nenhum pas do mundo o mtododemocrtico pode perdurar sem tornar-se um costume. Mas podetornar-se um costume sem o reconhecimento da irmandade que unetodos os homens num destino comum? Um reconhecimento aindamais necessrio hoje, quando nos tornamos a cada dia mais 38. conscientes deste destino comum e devemos procurar agir comcoerncia, atravs do pequeno lume de razo que ilumina nossocaminho. 39. DEMOCRACIA REPRESENTATIVA E DEMOCRACIA DIRETAParto de uma constatao sobre a qual podemos estar todos deacordo: a exigncia, to freqente nos ltimos anos, de maiordemocracia exprime-se como exigncia de que a democraciarepresentativa seja ladeada ou mesmo substituda pela democraciadireta. Tal exigncia no nova: j a havia feito, como se sabe, o paida democracia moderna, Jean-Jacques Rousseau, quando afirmou que"a soberania no pode ser representada" e, portanto, "o povo inglsacredita ser livre mas se engana redondamente; s o durante aeleio dos membros do parlamento; uma vez eleitos estes, ele volta aser escravo, no mais nada"1.Rousseau entretanto tambm estava convencido de que "umaverdadeira democracia jamais existiu nem existir", pois requer muitascondies difceis de serem reunidas. Em primeiro lugar um estadomuito pequeno, "no qual ao povo seja fcil reunir-se e cada cidadopossa facilmente conhecer todos os demais"; em segundo lugar, "umagrande simplicidade de costumes que impea a multiplicao dosproblemas e as discusses espinhosas"; alm do mais, "uma grandeigualdade de condies e fortunas"; por fim, "pouco ou nada de luxo"(donde se poderia deduzir que Rousseau, e no Marx, o inspiradorda poltica de "austeridade"). Lembremo-nos da concluso: "Seexistisse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Masum governo assim perfeito no feito para os homens"2. 1. Contratto sociale, III, 15. (Trad. bras. So Paulo, Abril, "Os Pensadores"). 2. Ibid, III, 4.Embora tenham transcorrido mais de dois sculos e quesculos!, nada mais nada menos que os sculos das revolues liberaise das socialistas, os sculos que pela primeira vez deram aos povos ailuso de estarem destinados a "magnficos xitos e progressos" , 40. em deuses no nos convertemos. Permanecemos homens. Os estadostornaram-se cada vez maiores e sempre mais populosos, e nelesnenhum cidado est em condies de conhecer todos os demais, oscostumes no se tornaram mais simples, tanto que os problemas semultiplicaram e as discusses so a cada dia mais espinhosas, asdesigualdades de fortunas ao invs de diminurem tornaram-se, nosestados que se proclamam democrticos (embora no no sentidorousseauniano da palavra), cada vez maiores e continuam a serinsultantes; alm disso, o luxo que segundo Rousseau "corrompe aomesmo tempo o rico e o pobre, o primeiro com a posse e o segundocom a cupidez"3, no desapareceu (tanto verdade que entre asreivindicaes intencionalmente provocantes mas no extravagantesde alguns grupos contestadores existe tambm a do direito ao luxo).Mas ento tudo isto quer dizer que a exigncia de um alargamentoda democracia representativa e da instituio da democracia direta insensata? Sustento que no. Mas para responder a esta pergunta preciso delinear com exatido os termos da questo. evidente que, se por democracia direta se entende literalmente aparticipao de todos os cidados em todas as decises a elespertinentes, a proposta insensata. Que todos decidam sobre tudo emsociedades sempre mais complexas como so as modernas sociedadesindustriais algo materialmente impossvel. E tambm no desejvelhumanamente, isto , do ponto de vista do desenvolvimento tico eintelectual da humanidade. Em seus escritos de juventude Marx haviaindicado o homem total como meta do desenvolvimento civil dahumanidade. Mas o indivduo rousseauniano conclamado a participarda manh noite para exercer os seus deveres de cidado no seria ohomem total mas o cidado total (como foi chamado com evidentesintenes polmicas por Dahrendorf)4. E, bem vistas as coisas, ocidado total nada mais que outra face igualmente ameaadora doestado total. No por acaso a democracia rousseauniana foifreqentemente interpretada como democracia totalitria em polmicacom a democracia liberal.3. Ibid.4. Ralf Dahrendorf, "Cittadini e partecipazione: ai di l delia democraziarappresentativa?", in II cittadino totale, Centro di ricerca e documentazione LuigiEinaudi, Torino, 1977, pp. 33-59: "As sociedades tornam-se ingovernveis se os setoresque as compem rejeitam o governo em nome dos direitos de participao, e isto por suavez no pode deixar de influir sobre a capacidade de sobrevivncia: eis o paradoxo docidado total" (p. 56). 41. O cidado total e o estado total so as duas faces da mesma moeda;consideradas uma vez do ponto de vista do povo e outra vez do pontode vista do prncipe, tm em comum o mesmo princpio: que tudo poltica, ou seja, a reduo de todos os interesses humanos aosinteresses da polis, a politizao integral do homem, a resoluo dohomem no cidado, a completa eliminao da esfera privada na esferapblica, e assim por diante.No creio existir algum que invocando a democracia diretapretenda fazer tal solicitao. No consta que Marx pensasse numademocracia direta deste gnero quando via no exerccio do poder porparte dos communards de Paris o germe de uma organizao estataldiversa daquela do estado representativo (e com ainda mais razo doestado bonapartista); e isto mesmo se se considerar que aparticularssima experincia da revoluo parisiense, limitada notempo e no espao, podia suscitar a iluso de que fosse possvel edesejvel em tempos normais a mobilizao contnua e intensa que possvel, e inclusive necessria, em tempos de transformaorevolucionria da sociedade. (Talvez o nico tipo humano ao qualconvenha o atributo de cidado total seja o revolucionrio; mas asrevolues no se fazem aplicando as regras do jogo democrtico.)Mas ento quando se anuncia a frmula "da democracia representativa democracia direta" o que que se pede realmente? As frmulaspolticas pretendem indicar uma direo em nvel mximo, e poucoimporta que sejam expressas com termos vagos e ambguos, maisindicados para suscitar certas emoes que para entrar em contato comcertas realidades. dever da crtica terica descobrir e denunciar as soluesmeramente verbais, transformar uma frmula de efeito numa propostaoperativa, distinguir a moo dos sentimentos do contedo real. Seno pretendo demais, deste gnero a tarefa que me proponho adesenvolver nas pginas seguintes.Comeo pela democracia representativa. O primeiro equvoco doqual devemos nos liberar o de que "democracia representativa"signifique a mesma coisa que "estado parlamentar". Proponhoimediatamente este tema de discusso porque muitos crem ter feito acrtica da democracia representativa quando fizeram a crtica doestado parlamentar. Disto me dei conta ao longo da discusso que se 42. seguiu (no s por escrito mas tambm oralmente) publicao demeus artigos sobre democracia e socialismo, em dezenas de mesas-redondas, pois percebi que quase sempre estava subentendido que sealgum fazia a crtica do estado parlamentar era como se criticassetambm a democracia representativa.A expresso "democracia representativa" significa genericamenteque as deliberaes coletivas, isto , as deliberaes que dizemrespeito coletividade inteira, so tomadas no diretamente poraqueles que dela fazem parte mas por pessoas eleitas para estafinalidade. Ponto e basta. O estado parlamentar uma aplicaoparticular, embora relevante do ponto de vista histrico, do princpioda representao, vale dizer, aquele estado no qual representativo orgo central (ou central ao menos em nvel de princpio, embora nemsempre de fato) ao qual chegam as reivindicaes e do qual partem asdecises coletivas fundamentais, sendo este rgo central oparlamento. Mas todos sabem que uma repblica presidencial como ados Estados Unidos, que no um estado parlamentar, tambm umestado representativo em sentido genrico.De resto, no existe hoje nenhum estado representativo em que oprincpio da representao concentre-se apenas no parlamento: osestados que hoje nos habituamos a chamar de representativos sorepresentativos porque o princpio da representao est estendidotambm a numerosas outras sedes onde se tomam deliberaescoletivas, como so as comunas, as provncias e na Itlia tambm asregies*. Em outras palavras, um estado representativo um estado noqual as principais deliberaes polticas so tomadas porrepresentantes eleitos, importando pouco se os rgos de deciso so oparlamento, o presidente da repblica, o parlamento mais os conselhosregionais, etc.* Referncia organizao administrativa da Itlia, uma repblica parlamentarsubdividida em regies administrativas, provncias e comunas. (N. do T.)Do mesmo modo que nem todo estado representativo um estadoparlamentar, o estado parlamentar pode muito bem no ser umademocracia representativa. Se por democracia entendemos, comodevemos, um regime no qual todos os cidados adultos tm direitospolticos onde existe, em poucas palavras, o sufrgio universal ,devemos considerar que historicamente os parlamentos vieram antes 43. da extenso do sufrgio e que, portanto, por muito tempo existiramestados parlamentares que eram representativos mas nodemocrticos. Chamo a ateno para o fato de que na expresso"democracia representativa" deve-se dar relevo tanto ao adjetivoquanto ao substantivo. verdade que nem toda forma de democracia representativa (da a insistncia sobre a democracia direta), mastambm verdade que nem todo estado representativo democrticopelo simples fato de ser representativo: da a insistncia sobre o fatode que a crtica ao estado parlamentar no implica a crtica democracia representativa, j que, se verdade que toda democracia representativa, igualmente verdade que nem todo estadorepresentativo em princpio e foi historicamente uma democracia.Dou um passo frente. Acabei de afirmar que a crtica ao estadoparlamentar no implica a crtica democracia representativa. Devoagora acrescentar que nem toda crtica democracia representativaleva diretamente democracia direta. Neste ponto o discurso fica umpouco mais complicado e sou obrigado a simplific-lo, mesmo sob orisco de torn-lo banal. A complicao deriva do fato de que quandodigo que entre duas pessoas ou entre uma pessoa e um grupo depessoas existe uma relao de representao, esta expresso pode serentendida das mais diversas maneiras. A literatura jurdica, sociolgicae politolgica sobre o conceito, ou melhor, sobre o termo"representao", to abundante que se eu quisesse dela dar contaapenas em linhas gerais seria obrigado a escrever toda umamonografia5. Para dar-lhes apenas uma plida idia da confuso emque se cai toda vez que se procura entender e fazer entender o que que est por trs da relao de representao entre A e B, bastalembrar que dizer que o papa o representante de Deus na terra no a mesma coisa que dizer que o senhor Reagan representa o povo dosEstados Unidos, assim como dizer que o senhor Rossi representa umlaboratrio farmacutico no a mesma coisa que dizer que o ilustredeputado Bianchi representa um partido no parlamento. 5. Para uma primeira e boa informao remeto ao verbete Rappresentanza poltica(redigido por M. Cotta) do Dizionario di poltica, Utet, Torino, 1983, pp. 954-959, e aosautores ali citados. Por sorte, interessa-nos agora apenas esta ltima acepo. Masmesmo ela est repleta de armadilhas. Basta dizer que o secular debate 44. sobre a representao poltica est dominado ao menos por dois temasque dividem os nimos e conduzem a propostas polticas conflitantesentre si. O primeiro tema diz respeito aos poderes do representante, osegundo ao contedo da representao. Com uma frmula cmoda,costuma-se dizer que o problema da representao pode ter soluesdiversas conforme as respostas que, uma vez acertado que A deverepresentar B, damos pergunta: "Como o representa?" e "Que coisarepresenta?" So conhecidas as respostas mais comuns a estas duasperguntas. primeira: A pode representar B ou como delegado oucomo fiducirio. Se delegado, A pura e simplesmente um porta-voz, um nncio, um legado, um embaixador, de seus representados, eportanto o seu mandato extremamente limitado e revogvel adnutum. Se ao invs disto um fiducirio, A tem o poder de agir comuma certa liberdade em nome e por conta dos representados, namedida em que, gozando da confiana deles, pode interpretar comdiscernimento prprio os seus interesses. Neste segundo caso diz-seque A representa B sem vnculo de mandato; na linguagemconstitucional hoje consolidada diz-se que entre A e B no existe ummandato imperativo. Tambm segunda pergunta (sobre "que coisa")podem ser dadas duas respostas: A pode representar B no que se refereaos seus interesses gerais de cidado ou no que se refere aos seusinteresses particulares, por exemplo, de operrio, de comerciante, deprofissional liberal, etc. A diferena a respeito do "que coisa"repercute tambm sobre a diferena a respeito do "quem".Se o representante chamado a representar os interesses gerais dorepresentado no necessrio que pertena sua mesma categoriaprofissional; ao contrrio, hoje um dado de fato comum maiorparte dos sistemas representativos a formao de uma categoriaprofissional especfica de representantes, que a categoria dospolticos de profisso. Quando ao invs disto o representante chamado a representar os interesses especficos de uma categoria,normalmente ele pertence mesma categoria profissional dosrepresentados, com o que apenas o operrio pode representareficazmente os operrios, o mdico os mdicos, o professor osprofessores, o estudante os estudantes, etc.Creio no ter passado despercebida a relao que existe, de umlado, entre a figura do representante como delegado e a darepresentao dos interesses particulares, e de outro lado entre a figurado representante como fiducirio e a representao dos interesses 45. gerais. De fato, habitualmente as duas coisas caminham juntas. Douum exemplo que familiar maioria de ns: a contestao estudantil.Foram os movimentos estudantis os primeiros a mandar pelos ares osseus organismos representativos pelo fato de que os representanteseram fiducirios e no delegados, e a impor atravs de suasassemblias o princpio do mandato imperativo. Imediatamente ficouclaro que se tratava de uma representao orgnica, isto , dosinteresses particulares, isto , daquela representao na qual orepresentante deve pertencer mesma categoria do representado.O oposto ocorre na representao poltica da maior parte dosestados que se governam base de um sistema representativo: o quecaracteriza uma democracia representativa , com respeito ao "quem",que o representante seja um fiducirio e no um delegado; e , comrespeito ao "que coisa", que o fiducirio represente os interesses geraise no os interesses particulares. (E exatamente porque sorepresentados os interesses gerais e no os interesses particulares doseleitores, nela vigora o princpio da proibio de mandato imperativo.)Com isto, creio ter-me colocado em condies de precisar em qualacepo do termo "representao" se diz que um sistema representativo e se fala habitualmente de democracia representativa:as democracias representativas que conhecemos so democracias nasquais por representante entende-se uma pessoa que tem duascaractersticas bem estabelecidas: a) na medida em que goza daconfiana do corpo eleitoral, uma vez eleito no mais responsvelperante os prprios eleitores e seu mandato, portanto, no revogvel;b) no responsvel diretamente perante os seus eleitores exatamenteporque convocado a tutelar os interesses gerais da sociedade civil eno os interesses particulares desta ou daquela categoria.Nas eleies polticas, nas quais funciona o sistema representativo,um operrio comunista no vota no operrio no-comunista mas votanum comunista mesmo se no operrio. O que quer dizer que asolidariedade de partido e portanto a viso dos interesses gerais maisforte que a solidariedade de categoria e portanto a considerao dosinteresses particulares. Uma conseqncia do sistema que, comoafirmei pouco atrs, os representantes na medida em que no sorepresentantes de categoria mas, por assim dizer, representantes dosinteresses gerais terminam por constituir uma categoria parte, ados polticos de profisso, isto , daqueles que, para me expressar coma eficientssima definio de Max Weber, no vivem apenas para a 46. poltica mas vivem da poltica.Insisti sobre estas duas caractersticas da representao numsistema representativo porque em geral exatamente sobre elas que seapia a crtica democracia representativa em nome de umademocracia mais larga, mais completa, em suma, mais democrtica.De fato, na polmica contra a democracia representativa possveldistinguir claramente dois files predominantes: a crtica proibiodo mandato imperativo e portanto representao concebida comorelao fiduciria, feita em nome de um vnculo mais estreito entrerepresentante e representado, anlogo ao que liga o mandante e omandatrio nas relaes do direito privado, e a crtica representaodos interesses gerais, feita em nome da representao orgnica oufuncional dos interesses particulares desta ou daquela categoria.Quem conhece um pouco a histria da disputa hoje secular pr econtra o sistema representativo sabe muito bem que freqentemente ostemas em discusso so sobretudo estes dois. Ambos so temas quepertencem tradio do pensamento socialista, ou melhor, concepo de democracia que veio sendo elaborada pelo pensamentosocialista em oposio democracia representativa considerada comoa ideologia prpria da burguesia mais avanada, como ideologia"burguesa" da democracia. Dos dois temas, o primeiro, isto , aexigncia de revogao do mandato por parte dos eleitores feita baseda crtica proibio do mandato imperativo, prpria do pensamentopoltico marxista: como todos sabem, o prprio Marx deu particularrelevo ao fato de que a Comuna de Paris "foi composta porconselheiros municipais eleitos por sufrgio universal nas diversascircunscries da cidade, responsveis e substituveis a qualquermomento"6.6. Karl Marx, La guerra civile in Francia, in Il partito e linternazionale, EdizioniRinascita, Roma, 1948, p. 178.O princpio foi retomado e reafirmado vrias vezes por Lnin, acomear no Estado e Revoluo, e subsistiu como princpio normativonas vrias constituies soviticas. O artigo 105 da constituio emvigor diz: "O deputado tem o dever de informar os eleitores sobre suaatividade e sobre a atividade dos Soviets. O deputado que no sedemonstrar digno da confiana dos eleitores pode ser privado domandato a qualquer momento por deciso da maioria dos eleitores e 47. segundo as modalidades previstas pela lei". Este princpio foitransmitido maior parte das constituies das democracias populares(ao contrrio do que ocorre na maior parte das constituies dasdemocracias ocidentais, como por exemplo a italiana, cujo artigo 67diz: "Cada membro do Parlamento representa a