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45 CAPÍTULO 2 O FORASTEIRO Das muitas dúvidas de Danny Kahneman, as mais interessantes eram as que ele tinha sobre a sua própria memória. Fizera semes- tres inteiros a dar palestras de cor, sem precisar de uma única nota. Os estudantes pensavam que ele tinha memorizado manuais intei- ros, e não se coibia de lhes pedir que fizessem o mesmo. E, contudo, quando lhe perguntavam sobre algum acontecimento no passado, ele dizia que não confiava na sua memória, e que os outros também não deviam confiar. Possivelmente, isto era uma simples extensão da estratégia de vida de Danny de não confiar em si próprio. “A emo- ção que o define é a dúvida”, disse um dos seus antigos alunos. “E é muito útil. Faz com que ele vá cada vez mais fundo.” Ou talvez ele só quisesse mais uma linha de defesa contra quem procurasse decifrá- -lo. Em todo o caso, mantinha uma grande distância relativamente às forças e aos eventos que o haviam moldado. Podia não confiar nas suas memórias, mas tinha bastantes. Por exemplo, recordava-se de, no final de 1941 ou no início de 1942 – em todo o caso, um ano ou mais após o início da ocupação alemã de Paris –, ter sido apanhado nas ruas depois do recolher obrigatório. As novas leis obrigavam-no a usar a estrela de David amarela na parte da frente da camisola. Este símbolo causava-lhe uma vergonha tão profunda que passou a ir para a escola meia hora mais cedo, para que as outras crianças não o vissem entrar no edifício com ela. Depois da escola, nas ruas, virava a camisola do avesso. A caminho de casa, numa certa noite, viu um soldado alemão a aproximar-se. “Tinha vestido o uniforme negro que me tinham dito ser mais temível do que os outros – os usados pelos soldados da SS escolhidos a dedo”, recordou num testemunho autobiográfico escrito a pedido do comité do prémio Nobel. “Ao aproximar-me dele, ten- tando andar depressa, reparei que estava a olhar diretamente para

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CAPÍTULO 2

O F O R A S T E I R O

Das muitas dúvidas de Danny Kahneman, as mais interessantes eram as que ele tinha sobre a sua própria memória. Fizera semes-tres inteiros a dar palestras de cor, sem precisar de uma única nota. Os estudantes pensavam que ele tinha memorizado manuais intei-ros, e não se coibia de lhes pedir que fizessem o mesmo. E, contudo, quando lhe perguntavam sobre algum acontecimento no passado, ele dizia que não confiava na sua memória, e que os outros também não deviam confiar. Possivelmente, isto era uma simples extensão da estratégia de vida de Danny de não confiar em si próprio. “A emo-ção que o define é a dúvida”, disse um dos seus antigos alunos. “E é muito útil. Faz com que ele vá cada vez mais fundo.” Ou talvez ele só quisesse mais uma linha de defesa contra quem procurasse decifrá--lo. Em todo o caso, mantinha uma grande distância relativamente às forças e aos eventos que o haviam moldado.

Podia não confiar nas suas memórias, mas tinha bastantes. Por exemplo, recordava -se de, no final de 1941 ou no início de 1942 – em todo o caso, um ano ou mais após o início da ocupação alemã de Paris –, ter sido apanhado nas ruas depois do recolher obrigatório. As novas leis obrigavam -no a usar a estrela de David amarela na parte da frente da camisola. Este símbolo causava -lhe uma vergonha tão profunda que passou a ir para a escola meia hora mais cedo, para que as outras crianças não o vissem entrar no edifício com ela. Depois da escola, nas ruas, virava a camisola do avesso.

A caminho de casa, numa certa noite, viu um soldado alemão a aproximar -se. “Tinha vestido o uniforme negro que me tinham dito ser mais temível do que os outros – os usados pelos soldados da SS escolhidos a dedo”, recordou num testemunho autobiográfico escrito a pedido do comité do prémio Nobel. “Ao aproximar -me dele, ten-tando andar depressa, reparei que estava a olhar diretamente para

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mim. Então, chamou -me, agarrou -me e deu -me um abraço. Eu estava aterrorizado, com medo de que ele reparasse na estrela dentro da minha camisola. Falava comigo com grande emoção, em alemão. Quando me largou, abriu a carteira, mostrou -me uma foto de um rapaz e deu -me dinheiro. Fui para casa com mais certeza do que nunca de que a minha mãe tinha razão: as pessoas são infinitamente complexas e interessantes.”

Também se recordava de ver o pai, que lhe tinha sido tirado numa grande rusga em novembro de 1941. Milhares de judeus foram captu-rados e enviados para campos. Danny tinha sentimentos complexos em relação à mãe. Em relação ao pai, eram mais simples: adorava -o. “O meu pai era radiante: tinha um encanto enorme.” Foi detido numa prisão improvisada em Drancy, às portas de Paris. Lá, prédios cama-rários construídos para albergar 700 residentes foram utilizados para aprisionar até sete mil judeus de cada vez. “Tenho uma memória de ir com a minha mãe ver esta prisão”, recordou Danny. “E lembro -me de ser mais ou menos cor -de -rosa alaranjado. Havia pessoas, mas não lhes conseguíamos ver as caras. Ouviam -se as mulheres e as crian-ças. E lembro -me do guarda da prisão. Ele disse: “Está difícil lá den-tro. Estão a comer cascas.” Para a maioria dos judeus, Drancy era só uma escala no caminho para um campo de concentração. À chegada, muitas das crianças eram separadas das mães e postas em comboios para serem gaseadas em Auschwitz.

O pai de Danny foi libertado ao fim de seis semanas, graças à sua ligação a Eugène Schueller. O pai de Danny trabalhava como químico no gigante francês dos cosméticos L’Oréal, cujo funda-dor e presidente era Schueller. Muito depois da guerra, Schueller foi declarado como um dos arquitetos de uma organização que aju-dou os nazis a encontrar e matar os judeus franceses. Mas, na sua mente, conseguiu abrir uma exceção especial para a sua vedeta da química; persuadiu os alemães de que o pai de Danny era “vital para o esforço de guerra”, e ele foi enviado de regresso a Paris. Danny recordava -se vivamente desse dia. “Sabíamos que ele estava de regresso, de maneira que fomos às compras. Quando voltámos, tocá-mos à campainha e ele abriu a porta. Tinha vestido o melhor fato. Pesava 45 quilos. Era pele e osso. E não tinha comido. Foi isso que me impressionou. Esperou por nós para comer.”

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Apercebendo -se de que nem Schueller os manteria em segurança em Paris, o pai de Danny levou a família e fugiu. Em 1942 as fron-teiras estavam fechadas e não havia nenhum caminho claro para a segurança. Danny, a irmã mais velha, Ruth, e os pais, Ephraim e Rachel, fugiram para sul, onde o regime de Vichy ainda estava teo-ricamente no poder. Pelo caminho houve peripécias e complicações. Esconderam -se em celeiros; Danny lembra -se deles, bem como dos cartões de identidade falsos que o pai tinha conseguido obter em Paris, e que tinham uma gralha. Danny, a irmã e a mãe tinham o nome Cadet, enquanto o documento do pai tinha o nome “Godet”. Para evitar serem descobertos, tinham dito a Danny que tratasse o pai por “tio”. Também tinham de falar pela mãe; a língua materna dela era o iídiche e falava francês com pronúncia. A mãe dele em silêncio era coisa rara. Tinha sempre muito que dizer. Culpava o marido pelas circunstâncias. Só haviam ficado em Paris porque ele se deixara ilu-dir pela sua memória da Grande Guerra. Na altura os alemães não tinham chegado a Paris, dissera ele; portanto, certamente não iriam agora chegar a Paris. Ela não concordara. “Lembro -me de a minha mãe antever os horrores que se precipitavam muito antes dele – ela era a pessimista preocupada, ele era o otimista alegre.” Danny pres-sentia já ser muito parecido com a mãe e nada com o pai. Tinha sen-timentos complicados em relação a si próprio.

Com o inverno de 1942 à porta, encontravam -se numa cidade cos-teira chamada Juan -les -Pins, num estado de pavor. Graças ao cola-boracionista nazi tinham agora casa própria, com um laboratório de química para que o pai de Danny pudesse continuar a trabalhar. Para se integrarem na sua nova sociedade, os pais mandaram Danny para a escola, avisando -o para ter o cuidado de não dizer muita coisa nem de parecer muito inteligente. “Tinham medo de que fosse identifi-cado como judeu.” Desde as suas memórias mais antigas que pen-sava em si próprio como precoce e dado à leitura. Ao corpo não sentia grande ligação. Era tão mau nos desportos que um dia seria tratado pelos colegas como O Cadáver Vivo. Um professor de ginástica impe-diu um dia que lhe dessem honras académicas com a justificação de que “tudo tem limites”. A mente dele, contudo, era ágil e musculada. Ao pensar no que poderia ser quando crescesse, limitou -se a presu-mir que seria um intelectual. Era a imagem que tinha de si próprio:

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um cérebro sem corpo. Agora tinha outra imagem: uma lebre numa caça à lebre. O objetivo era meramente sobreviver.

A 10 de novembro de 1942, os alemães avançaram para o sul de França. Soldados alemães em uniformes negros arrancavam homens de autocarros e despiam -nos para ver se eles eram circunci-dados. “Quem fosse apanhado, morria”, recordou Danny. O pai dele rejeitava firmemente a existência de Deus. A sua perda de fé tinha -o levado, na juventude, a abandonar a Lituânia e a ilustre linha de rabis de que descendera, para ir para Paris. Danny não estava pronto para abandonar a ideia de que o universo tinha alguma força oculta a zelar por ele. “Dormia sob o mesmo mosquiteiro que os meus pais”, disse. “Eles estavam numa cama grande. Eu numa pequena. Tinha nove anos. E rezava a Deus. E a oração era: sei que estás muito ocupado e que esta é má altura e isso tudo. Não peço muito, mas quero pedir mais um dia.”

Novamente, fugiram para salvar a vida, desta vez subindo a Côte d’Azur até Cagnes -sur -Mer, para uma propriedade de um coronel do antigo exército francês. Nos meses seguintes, Danny não pôde sair à rua. Passou o tempo com livros. Leu e releu “A Volta ao Mundo em 80 Dias” e apaixonou -se por tudo o que era inglês e, sobretudo, por Phileas Fogg. O coronel francês deixara para trás uma longa estante cheia de narrativas da guerra de trincheiras em Verdun, e Danny também as leu todas – tornou -se praticamente num perito no tema. O pai continuava a trabalhar na casa da costa, onde tinha o labora-tório químico, viajando de autocarro para ver a família aos fins de semana. Às sextas -feiras, Danny sentava -se com a mãe no jardim e observava -a a coser meias enquanto aguardavam pelo pai. “Vivíamos no monte e conseguíamos ver a paragem de autocarros. Nunca sabía-mos se ele viria. Desde então, odeio estar à espera.”

Com ajuda do governo de Vichy e de caçadores de recompensas pri-vados, os alemães tornaram -se mais eficientes na captura de judeus. O pai de Danny sofria de diabetes, mas era mais perigoso para ele tratar -se do que viver com a doença. Fugiram novamente. Primeiro para hotéis, depois para um galinheiro. O galinheiro ficava por detrás de um bar rural, numa pequena aldeia perto de Limoges. Ali não havia soldados alemães, só a Milice – a força paramilitar que colabo-rava com os alemães para os ajudar a arrebanhar judeus e exterminar

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a Resistência francesa. Como o pai dele encontrou o sítio, Danny não sabia, mas o fundador da L’Oréal deve ter estado envolvido, uma vez que a empresa continuava a mandar -lhes embalagens de comida. Montaram uma divisória a meio do galinheiro para que a irmã de Danny pudesse ter alguma privacidade, mas aquilo não era sítio onde viver. No inverno ficou tão frio que a porta congelou e deixou de abrir. A irmã tentou dormir sobre o fogão e acabou com marcas de queima-duras no roupão.

Para passarem por cristãs, a mãe e a irmã de Danny iam à missa aos domingos. Danny, então com dez anos, voltou à escola, seguindo a teo-ria de que daria menos nas vistas lá do que escondido num galinheiro. Os estudantes nesta nova escola de província eram ainda menos capa-zes do que os de Juan -les -Pins. O professor era simpático, mas pouco estimulante. A única lição de que Danny se recorda era sobre os factos da vida. Achou os pormenores tão rocambolescos que ficou com a certeza de que o professor se tinha enganado. “Disse: ‘Isto é absoluta-mente impossível!’ Perguntei à minha mãe. Ela disse que era mesmo assim.” Mas ele não acreditou realmente, até uma noite em que estava na cama, com a mãe a dormir ao lado. Acordou com vontade de ir à retrete, e trepou por cima dela. Ela acordou com o filho por cima. “E a minha mãe ficou aterrorizada. Pensei: ‘Deve ser verdade, afinal!’”

Mesmo na infância, teve sempre um interesse quase teórico nos outros – no porquê de pensarem como pensavam, no porquê de agi-rem como agiam. A sua experiência direta com eles era limitada. Ia à escola, mas evitava o contacto social com professores e colegas. Não tinha amigos. Até os conhecidos constituíam perigo de vida. Por outro lado, testemunhou, a uma certa distância, muitos comporta-mentos interessantes. Tanto o professor como os donos do bar local, acreditava ele, tinham de saber que ele era judeu. Por que outra razão haveria este precoce rapaz de dez anos, vindo da cidade, de vir aterrar numa sala de aula com saloios do campo? Por que outra razão haveria esta família, obviamente de posses, de se amontoar num galinheiro? E, contudo, não lhe deram sinais de saber alguma coisa. O professor deu -lhe boas notas e até convidou Danny a ir a casa dele, e Madame Andrieux, proprietária do bar, pedia -lhe ajuda, dava -lhe conselhos (que não lhe serviam para nada) e até tentou convencer a mãe dele a abrir um bordel a meias. Muitas outras pessoas eram evidentemente

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incapazes de os reconhecer pelo que eram. Danny lembrava -se, em particular, de um jovem nazi francês, membro da Milice, que fez a corte (sem sucesso) à sua irmã. Ela tinha agora 19 anos e parecia uma estrela de cinema. (Depois da guerra, teve imenso prazer em infor-mar o nazi de que ele se tinha apaixonado por uma judia.)

Na noite de 27 de abril de 1944 – dessa data Danny lembrava -se claramente – o pai levou -o para um passeio. Por essa altura tinha manchas negras dentro da boca. Aos 49 anos, parecia muito mais velho. “Disse -me que eu podia ter de me tornar responsável”, recor-dou Danny. “Disse -me para pensar em mim como o homem da famí-lia. Disse -me como deveria tentar manter as coisas controladas com a minha mãe – que eu era o menos maluco da família. Tinha um livro de poemas que havia escrito. Dei -lho. E ele morreu nessa noite.” Danny tem pouca memória da morte do pai, exceto que a mãe o obri-gou a passar essa noite em casa de Monsieur e Madame Andrieux. Havia outro judeu escondido na aldeia. A mãe tinha -o encontrado e ele ajudou a retirar o corpo do pai antes de Danny regressar. Ela fez um enterro judaico, mas não quis a presença de Danny, provavel-mente por ser tão perigoso. “Fiquei mesmo zangado por ele morrer”, disse Danny. “Ele era bom. Mas não era forte.”

Os Aliados invadiram a Normandia seis semanas mais tarde. Danny nunca viu soldados. Não houve tanques americanos a passar pela sua aldeia com soldados em cima a atirar rebuçados às crian-ças. Um dia acordou, havia uma sensação de alegria no ar e a Milice estava a ser escoltada a caminho do pelotão de fuzilamento ou da cadeia, e muitas mulheres andavam com cabeças rapadas – o cas-tigo por terem dormido com um alemão. Em dezembro, os alemães tinham sido expulsos de França, e Danny e a mãe tinham liberdade para viajar até Paris, com o intuito de verem o que restava da casa e dos móveis. Danny escrevia num bloco de notas, a que dera o título “O que eu escrevo sobre o que eu penso”. (“Devo ter sido um miúdo intolerável.”) Em Paris, num dos manuais escolares da irmã, leu um ensaio de Pascal que o inspirou a escrever no bloco de notas um ensaio seu. Os alemães estavam então a lançar o seu último contra--ataque para retomar a França, e Danny e a mãe viviam no medo de que tivessem sucesso: Danny escreveu um ensaio que tentava explicar a necessidade que o homem tem da religião. Começou por

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uma citação de Pascal – “Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração” – e acrescentou: “Como é verdade!” A isto seguia -se uma frase original de sua autoria: “Catedrais e órgãos são formas artificiais de gerar o mesmo sentimento.” Já não pensava em Deus como uma entidade a quem pudesse rezar. Posteriormente, ao refletir sobre a sua vida, recordou -se das suas pretensões de infância e sentiu -se simultanea-mente orgulhoso e embaraçado por elas. Os seus ensaios precoces, pensou, estavam “profundamente ligados à noção de que era judeu, que tinha apenas uma mente e não tinha um corpo útil, e que nunca me integraria com os outros rapazes.”

Em Paris, no seu antigo apartamento anterior à guerra, Danny e a mãe encontraram apenas duas velhas cadeiras verdes. Ainda assim, ficaram. Pela primeira vez em cinco anos, Danny foi à escola sem ter de disfarçar quem era. Ao longo de anos guardou uma memória feliz de uma amizade que fez com um par de aristocratas russos altos e bem -parecidos. A memória era talvez tão presente pelo facto de ele ter passado tanto tempo sem amigos. Muito mais tarde, tes-tou a memória até descobrir os irmãos aristocratas russos e enviou--lhes uma mensagem. Um dos irmãos tornara -se arquiteto, o outro médico. Os irmãos escreveram -lhe dizendo que se lembravam dele, e mandaram -lhe uma fotografia de todos juntos. Danny não estava na foto. Devem ter pensado que ele era outra pessoa. A sua única amizade era imaginada, não era real.

Os Kahnemans já não se sentiam bem -vindos na Europa e partiram em 1946. A família alargada do pai de Danny permanecera na Lituâ-nia e, juntamente com cerca de seis mil outros judeus na sua cidade, fora chacinada. O tio de Danny, um rabi, que calhara estar fora do país quando os alemães o invadiram, foi o único a salvar -se. Ele, tal como a família da mãe de Danny, vivia agora na Palestina – e assim mudaram -se também eles para a Palestina. A sua chegada foi um acontecimento tão significativo que alguém a filmou (o filme perdeu--se) mas tudo de que Danny se recordaria era de um copo de leite que o tio lhe trouxe. “Ainda me lembro de ele ser tão branco”, disse. “Foi o meu primeiro copo de leite em cinco anos.” Danny, a mãe e a irmã instalaram -se em casa da família da mãe em Jerusalém. Aí, 12 meses mais tarde, aos 13 anos, Danny tomou a sua decisão final relativamente a Deus. “Ainda me lembro de onde estava – na rua em

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Jerusalém. Lembro -me de pensar que podia conceber a existência de Deus, mas não de um Deus que se importava se eu me masturbava ou não. Cheguei à conclusão de que Deus não existia. Foi esse o fim da minha vida religiosa.”

E isto era praticamente tudo o que Danny Kahneman recordava, ou preferia recordar, da sua infância. Desde os sete anos que lhe tinham dito para não confiar em ninguém, e ele obedecera. A sua sobrevivência dependera de se afastar dos outros, e de evitar que o vissem como ele era. Estava destinado a tornar -se num dos psicólo-gos mais influentes do mundo, e num investigador espantosamente original do erro humano. O seu trabalho iria explorar, entre outras coisas, o papel da memória na avaliação humana. Como, por exem-plo, a memória da estratégia militar alemã na guerra anterior podia levar o exército francês a avaliar mal a estratégia da guerra seguinte. Ou como a memória do comportamento alemão numa guerra podia levar um homem a avaliar mal as intenções alemãs na seguinte. Ou como a memória de um rapazinho na Alemanha podia impedir que um membro da SS de Hitler, treinado para detetar judeus, reparasse que o rapazinho que tinha nos braços numa rua de Paris era judeu.

Às suas próprias memórias não atribuía grande relevância, con-tudo. Durante o resto da vida, insistiu que o seu passado tivera pouco efeito sobre a sua visão do mundo ou, em última análise, sobre a visão que o mundo tinha dele. “As pessoas dizem que a infância tem grande influência naquilo em que nos tornamos”, respondia ele, quando lhe falavam no assunto. “Não estou muito seguro de que isso seja verdade.” Mesmo para aqueles que veio a encarar como seus amigos, nunca mencionou a sua experiência no Holocausto. Aliás, foi só depois de ganhar o Prémio Nobel e de os jornalistas começa-rem a perguntar -lhe pelos detalhes da sua vida que começou a falar desses tempos. Os seus amigos mais antigos apenas souberam o que lhe aconteceu pelos jornais.

Os Kahnemans tinham chegado a Jerusalém mesmo a tempo de outra guerra. No outono de 1947, a questão da Palestina passou do Reino Unido para as Nações Unidas, que, a 29 de novembro,

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aprovaram uma resolução que dividia formalmente a terra em dois estados. O novo estado judaico seria aproximadamente da dimensão do Connecticut*, e o estado árabe seria um pouco mais pequeno. Jeru-salém e os seus monumentos sagrados não pertenceriam a nenhum deles. Quem vivesse em Jerusalém passaria a ser um “cidadão” de Jerusalém; na prática, havia uma Jerusalém árabe e uma judaica, e os residentes de cada lado continuavam afincadamente a tentar matar--se uns aos outros. O apartamento para onde Danny se mudou com a mãe ficava perto da fronteira oficiosa: chegou a passar uma bala pelo quarto de Danny. O líder do seu grupo de escuteiros foi morto.

E contudo, disse Danny, a vida não lhe parecia especialmente peri-gosa. “Era tão diferente! Porque estávamos a lutar. Por isso é que era melhor. Odiava o estatuto de um judeu na Europa. Não queria que me caçassem. Não queria ser uma lebre.” Uma dada noite, já tarde, em janeiro de 1948, viu com uma manifesta emoção os seus pri-meiros soldados judeus: 38 jovens guerreiros reunidos na cave do seu edifício. Os combatentes árabes haviam bloqueado um punhado de colonatos judaicos no sul do minúsculo país. Os 38 soldados judeus marcharam da cave de Danny para salvar os colonos. Pelo caminho, três voltaram para trás – um torcera o tornozelo, outros dois ajudaram -no a vir para casa – e o grupo ficaria para sempre conhecido como “os 35”. Tencionavam marchar a coberto da escuri-dão, mas o sol nascera e apanhara -os ainda em marcha. Encontraram um pastor árabe, e resolveram deixá -lo em paz – pelo menos, foi essa a história ouvida por Danny. O pastor informou os combatentes ára-bes, que montaram uma emboscada, mataram todos os 35 jovens, e depois mutilaram os seus cadáveres. Danny ficou a matutar na sua desastrosa decisão. “Sabem porque é que eles foram mortos?”, dizia. “Foram mortos por não serem capazes de dar um tiro a um pastor.”

Alguns meses mais tarde, uma caravana de médicos e enfermei-ros sob a bandeira da Cruz Vermelha passou pela estreita estrada que ligava a cidade judaica ao monte Scopus, sede da Universidade Hebraica e do respetivo hospital universitário. O monte Scopus ficava por detrás das linhas árabes, era uma ilha judaica num mar árabe.

* Cerca de um sexto do território de Portugal (N. do T.)

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O único acesso era através de uma estradinha, cuja segurança era assegurada pelos britânicos. Na maior parte das vezes a viagem fazia--se sem sobressaltos, mas naquele dia rebentou uma bomba, fazendo parar o veículo da frente, um camião Ford. Os autocarros e as ambu-lâncias que vinham atrás foram alvejados por fogo de metralhadoras dos árabes. Alguns dos carros da caravana conseguiram dar meia--volta e fugir, mas os autocarros, que levavam passageiros, ficaram encurralados. Quanto o tiroteio acabou, tinham morrido 78 pessoas, e os seus cadáveres estavam tão queimados que foram enterrados numa vala comum. Entre elas estava Enzo Bonaventura, um psicó-logo vindo de Itália, nove anos antes, para a Universidade Hebraica, com o objetivo de criar um departamento de psicologia. Os seus pla-nos para o departamento morreram com ele.

Se Danny sentia alguma ameaça à sua existência, recusava -se a admiti -la. “Parecia muito improvável – que conseguíssemos der-rotar cinco nações árabes – mas não estávamos preocupados. Não conseguia detetar nenhuma sensação de fatalismo. As pessoas mor-riam e por aí fora. Mas, para mim, depois da II Guerra Mundial, era um piquenique.” A mãe dele, obviamente, discordava, pois abando-nou Jerusalém para ir viver em Telavive e levou o filho de 14 anos consigo.

A 14 de maio de 1948, Israel proclamou -se um estado soberano, e os soldados britânicos foram -se embora no dia seguinte. Os exérci-tos da Jordânia, da Síria e do Egito atacaram, juntamente com alguns soldados do Iraque e do Líbano. Durante muitos meses, Jerusalém era uma cidade cercada e a vida em Telavive estava longe de ser nor-mal. O minarete na praia junto ao que agora é o Hotel Intercontinen-tal tornou -se num ninho de atiradores furtivos árabes: os atiradores podiam fazer pontaria, e atingiam mesmo crianças judias a caminho da escola. “Havia balas a voar por todo o lado”, recorda Shimon Sha-mir, que tinha 14 anos e vivia em Telavive quando a guerra rebentou, e que viria a ser a única pessoa a desempenhar o cargo de embaixa-dor israelita tanto no Egito como na Jordânia.

Shamir foi o primeiro amigo a sério de Danny. “Os outros miú-dos na turma sentiam uma certa distância em relação a ele”, recor-dou Shamir. “Ele não procurava integrar -se em grupos. Era muito seletivo. Não precisava de ter mais do que um amigo.” Danny não

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O FORASTEIRO

falava hebraico quando chegara a Israel, no ano interior, mas ao che-gar à escola em Telavive já era fluente, e falava inglês melhor do que todos os outros alunos da turma. “Era considerado brilhante”, disse Shamir. “Costumava picá -lo: ‘Vais ser famoso.’ E ele sentia -se muito incomodado pela ideia. Espero não estar a reinterpretar a história, mas acho que havia uma sensação de que ele iria longe.”

Era óbvio para todos que Danny não era como os outros rapazes. Não estava a tentar ser invulgar; era mesmo assim. “Era o único na nossa turma que tentou desenvolver um sotaque inglês autêntico”, disse Shamir. “Todos nós achávamos aquilo muito engraçado. Ele era diferente de muitas maneiras. Até certo ponto, era um forasteiro. E isso era por causa da sua personalidade, não era por ser um refu-giado.” Mesmo aos 14 anos, Danny não era bem um rapaz, era um intelectual aprisionado no corpo de um rapaz. “Estava sempre absorto num problema ou numa questão qualquer”, disse Shamir. “Recordo--me de um dia ele me ter mostrado um longo ensaio que escreveu por sua iniciativa – o que era estranho, porque escrever ensaios era um frete que só se fazia para a escola, sobre o tema que o professor nos desse. A ideia de escrever um ensaio muito longo sobre um tema que não tivesse nada a ver com o currículo, só porque o tema lhe interessava: isso impressionou -me muito. No ensaio ele comparava a personalidade de um gentleman inglês com a de um aristocrata grego no tempo de Héracles.” Shamir sentia que Danny vasculhava livros e a sua própria mente em busca de uma direção que, para a maioria das crianças, vinha das pessoas à sua volta. “Creio que ele procurava um ideal”, disse. “Um modelo.”

A guerra da independência durou dez meses. Um estado que era do tamanho do Connecticut, antes da guerra, acabou por ficar um pouco maior que Nova Jérsia.* Um por cento da população israelita morrera (o que seria o equivalente a 90 mil mortos em Nova Jér-sia). Dez mil árabes haviam morrido e três quartos de milhão de palestinianos estavam deslocados. Depois da guerra, a mãe de Danny regressou a Jerusalém. Foi aí que Danny fez o seu segundo amigo chegado, um rapaz de ascendência inglesa chamado Ariel Ginsberg.

* Cerca de um quarto do território de Portugal (N. do T.)

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Telavive era pobre, mas Jerusalém era ainda mais pobre. Na prá-tica, ninguém tinha máquina fotográfica, nem telefone, nem sequer campainha na porta. Quem quisesse encontrar um amigo tinha de ir a pé a casa dele e bater à porta ou assobiar. Danny caminhava até casa de Ariel, assobiava, Ariel descia, e ambos iam ao clube desportivo para nadar e jogar pingue -pongue sem dizer uma pala-vra. Para Danny, isso era perfeito: Ginsberg recordava -lhe Phileas Fogg. “Danny era diferente”, disse Ginsberg. “Sentia -se isolado e isolava -se ele próprio – até certo ponto. Eu era o único amigo que ele tinha.”

Nos poucos anos após a guerra da independência, a população judaica daquilo a que agora se chamava Israel duplicara, de 600 mil para 1,2 milhões. Não pode ter havido lugar nem altura no mundo em que fosse mais fácil e mais encorajado a um judeu recém--chegado a um país integrar -se na população local. E contudo, em espírito, Danny não se integrou. As pessoas de quem se aproximava eram todas israelitas nativas, não eram imigrantes como ele. Mas ele próprio não parecia israelita. Tal como muitos rapazes e raparigas israelitas, juntou -se aos escuteiros – depois saiu, quando ele e Ariel resolveram que o grupo não era para eles. Embora tivesse aprendido hebraico a uma velocidade incrível, ele e a mãe falavam francês em casa, muitas vezes com vozes iradas. “Não era um lar feliz”, diz Gins-berg. “A mãe era uma mulher amargurada. A irmã foi -se embora o mais depressa possível.” Danny não conseguia aceitar a identidade pré -fabricada que Israel lhe oferecia. Aceitou a oferta de um sítio onde criar a sua.

O que essa identidade havia de ser seria difícil de determinar. Ruth Ginsberg, que na altura namorava e em breve se casaria com o amigo chegado de Danny, disse: “O Danny decidiu muito cedo que não ia assumir responsabilidades. Tive a sensação de que dentro dele havia uma necessidade constante de racionalizar a sua falta de raízes – de ser uma pessoa que não precisava de ter raízes. Tinha uma visão da vida como uma série de coincidências – aconteceu assim, mas bem podia ter acontecido de outra maneira. Nestas condições, sem um deus, tenta -se fazer o melhor possível.”

Esta falta da necessidade em Danny de pertencer a um grupo ou a um lugar era especialmente gritante numa terra de gente ávida de

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um lugar e de um povo. “Cheguei em 1948 e quis ser como eles”, recorda -se Yeshu Kolodny, professor de Geologia na Universidade Hebraica, da mesma idade de Danny, e cuja família extensa fora também liquidada no Holocausto. “Ou seja, queria calçar sandálias e enrolar os calções para cima e aprender o nome de todos os wadis [vales] e montanhas – e, sobretudo, queria perder o meu sotaque russo. Tinha alguma vergonha da minha história. Vim para venerar os heróis do meu povo. O Danny não se sentia assim. Ele desdenhava este sítio.”

Danny era um refugiado de guerra da mesma forma que, por exemplo, Vladimir Nabokov era um refugiado. Era um refugiado que mantinha as suas distâncias. Um refugiado que se dava ares. E tinha um olho clínico para os nativos. Aos 15 anos fez um teste vocacional que o identificou como psicólogo. Isso não o surpreendeu.* Sempre pressentira que seria uma espécie de professor, e as perguntas que tinha sobre os seres humanos pareciam -lhe mais interessantes do que as outras. “O meu interesse na psicologia era uma forma de fazer filosofia”, disse. “Compreender o mundo através da compreensão de como as pessoas, sobretudo eu, o veem da maneira que veem. Por essa altura, a questão da existência de Deus não me interessava. Mas a questão de perceber os motivos pelo quais as pessoas acreditam que Deus existe, essa achava -a fascinante. Não estava muito interessado no que estava certo ou errado. Mas estava muito interessado na indig-nação. Ora, isso é que é um psicólogo!”

* Décadas mais tarde, quando Danny Kahneman tinha quarenta e tal anos, foi um dia a uma aula na Universidade da Califórnia em Berkeley dada pela psicóloga Eleanor Rosch. Nesse dia, Rosch submeteu um grupo de estudantes de primeiro ano a um exercício. Fez passar um chapéu repleto de papelinhos, e cada um deles tinha uma ocupação: funcionário do jardim zoológico, piloto de aviões, carpinteiro, ladrão. Os estudantes tinham de escolher uma ocupação e depois dizer alguma coisa que lhes viesse à cabeça que parecesse explicar o seu destino. Claro que acabei por trabalhar no jardim zoológico, quando era pequeno adorava meter o nosso gato na jaula. O exercício destinava -se a mostrar o poderoso instinto das pessoas para encontrar causas para qualquer efeito, e também para criar narrativas. “O grupo intei-ro abriu os papelinhos ao mesmo tempo”, recordou Rosch, “e ao fim de alguns segundos alguém come-çou a rir -se, e o riso generalizou -se. E, sim, para surpresa deles, todos tinham imaginado uma explicação qualquer.” A única exceção foi Danny. “‘Não’”, disse ele segundo Rosch. “‘Só podia ter sido duas coisas. Psicólogo ou rabi.’”

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A maioria dos israelitas, ao concluir o liceu, ia fazer a tropa. Reco-nhecido pelos seus dotes intelectuais, foi permitido a Danny avançar diretamente para a universidade para seguir um curso de psicologia. Como é que poderia fazê -lo não era evidente, pois o único campus universitário do país ficava por detrás das linhas árabes e os seus planos para um departamento de psicologia tinham morrido numa emboscada. E assim, numa manhã de outono de 1951, Danny Kah-neman, de 17 anos, sentava -se numa aula de matemática num mos-teiro em Jerusalém, que servia como um de vários lares temporários para a Universidade Hebraica. Mesmo aqui, Danny parecia deslo-cado. A maioria dos estudantes tinha acabado de cumprir três anos no exército, e muitos deles tinham estado em situações de combate. Danny era mais novo, vestia casaco e gravata, o que parecia descabido aos outros estudantes.

No três anos seguintes, Danny aprendeu sozinho extensas par-tes do campo que escolhera, aquelas que os professores não eram capazes de lhe ensinar. “Gostava da minha professora de estatística”, recordou Danny, “mas ela não sabia distinguir uma estatística de um feijão. Aprendi estatística sozinho a partir de um livro.” Os seus pro-fessores eram menos um conjunto de especialistas e mais uma cole-ção de aves raras, na sua maioria refugiados europeus, que por acaso estavam a viver em Israel. “Essencialmente estava tudo organizado à volta de professores carismáticos, de pessoas que tinham biogra-fias e não apenas currículos”, lembra Avishai Margalit, que depois da Universidade Hebraica viria a ser professor de filosofia em Stanford, entre outros sítios. “Tinham vivido grandes vidas.”

Não havia vida maior do que a de Yeshayahu Leibowitz – que Danny adorava. Leibowitz viera para a Palestina da Alemanha, atra-vés da Suíça, nos anos trinta, e tinha formação avançada em medi-cina, química, epistemologia e – dizia -se – outras áreas ainda. E, con-tudo, tentara tirar a carta de condução por sete vezes, sempre sem sucesso. “Víamos o homem a andar pela rua”, recordou uma antiga estudante de Leibowitz, Maya Bar -Hillel. “As calças chegavam -lhe ao pescoço, tinha uma corcunda e um queixo à Jay Leno. Falava sozinho e fazia uma série de gestos retóricos. Mas a sua mente atraía jovens

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de todo o país.” O que quer que calhasse ser o tema das aulas de Leibowitz – e não parecia haver disciplina que ele não pudesse ensi-nar –, dava sempre espetáculo. “O curso que fiz com ele chamava--se bioquímica, mas era essencialmente sobre a vida”, disse outro estudante. “Grande parte da aula era dedicada a explicar a estupidez de Ben -Gurion.” Estava a referir -se a David Ben -Gurion, o primeiro dos primeiros -ministros de Israel. Uma das histórias favoritas de Leibowitz era sobre um burro equidistante de dois fardos de palha. Na história, o burro não consegue decidir qual dos fardos está mais perto dele, e por isso morre de fome. “Leibowitz dizia então que não havia burro que agisse desta forma; um burro iria apenas escolher um dos fardos ao calhas, e comia. Só quando as decisões são tomadas por pessoas é que se tornam mais complexas. E então disse: ‘Podem ler todos os dias no jornal o que acontece a um país quando é o burro a tomar as decisões que deviam ser tomadas por pessoas.’ As aulas dele estavam sempre cheias.”

Aquilo que Danny recordava de Leibowitz era, como de costume, singular: não era tanto o que ele dissera, era mais o som do giz a bater no quadro quando ele queria vincar determinado ponto. Era como um tiro.

Mesmo naquela tenra idade e nestas circunstâncias, era possível detetar uma deriva na mente de Danny pelas correntes às quais resis-tia. Freud estava no ar, mas Danny não queria ter ninguém deitado no divã, e não queria de forma alguma deitar -se no divã de outra pes-soa. Resolvera não dar importância particular às experiências da sua infância, ou sequer às suas memórias: por que razão havia ele de se preocupar com as de outras pessoas? No início dos anos cinquenta, muitos psicólogos que insistiam que a disciplina devia ser submetida ao rigor científico haviam desistido da ambição de estudar o funcio-namento interno da mente humana. Se não é possível observar o que se passa na mente, como se pode sequer fingir estudá -la? O que era considerado digno da atenção científica – e o que podia ser estudado de forma científica – era o comportamento das criaturas vivas.

A escola de pensamento dominante era o behaviorismo. O seu rei, B. F. Skinner, começara a carreira durante a II Guerra Mundial, depois de a Força Aérea dos EUA o contratar para treinar pombos a guiar bombas. Skinner ensinou os pombos a picar o sítio correto

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num mapa aéreo do alvo, recompensando -os com comida de cada vez que o fizessem. (Faziam -no com menos entusiasmo quando havia fogo de baterias antiaéreas a explodir à sua volta, e por isso nunca foram usados em combate.) O êxito de Skinner com os pombos foi o início de uma carreira espetacularmente influente, que tinha subja-cente a ideia de que todos os comportamentos animais eram guiados, não por pensamentos ou sentimentos, mas sim por recompensas e castigos externos. Ele trancou ratos naquilo a que chamou “câma-ras de condicionamento operativo” (rapidamente ficaram conheci-das como “caixas de Skinner”) e ensinou -os a pressionar alavancas e botões. Ensinou pombos a dançar e a jogar pingue -pongue, e a tocar a música “Take Me Out to the Ball Game” num piano.

Os behavioristas presumiam que o que quer que tivessem des-coberto sobre ratos e pombos também se aplicava a pessoas – com quem, por vários motivos, era menos prático realizar experiências. “Para o leitor ansioso de avançar para a cobaia humana, justifica -se uma advertência de cautela”, escreveu Skinner num ensaio intitulado “Como Ensinar Animais”. “Devemos embarcar num programa em que por vezes aplicamos um reforço relevante e por vezes o sonega-mos. Ao fazê -lo, é muito provável que geremos [em seres humanos] efeitos emocionais. Infelizmente, a ciência do comportamento ainda não tem o mesmo sucesso no controlo da emoção que na definição de comportamentos.” A sedução do behaviorismo provinha de pare-cer uma ciência limpa: os estímulos eram observáveis, as respostas podiam ser gravadas. Parecia tudo “objetivo”. Não se baseava em ter alguém a contar a outra pessoa o que pensava ou o que sentia. As coisas importantes eram todas observáveis e mensuráveis. Havia uma anedota que captava o espírito antisséptico do behaviorismo, que o próprio Skinner gostava de contar. Um casal faz amor. Depois, um vira -se para o outro e pergunta: “Foi bom para ti. Como foi para mim?”

Os grandes arautos do behavorismo eram todos brancos e pro-testantes – um facto que não escapou aos jovens que entravam no campo da psicologia nos anos cinquenta. Olhando para trás, um observador desinteressado da área, nessa altura, teria de pensar se não devia haver duas disciplinas completamente separadas: “Psicolo-gia protestante” e “Psicologia judaica”. Os protestantes andavam de

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um lado para o outro vestidos com batas de laboratório e com blo-cos de notas na mão e inventavam novas formas de torturar ratos, evitando a grande trapalhada da experiência humana. Os judeus lançavam -se na trapalhada – até os judeus que desdenhavam dos métodos de Freud, que buscavam a “objetividade” e queriam encon-trar os tipos de verdade que podiam ser testadas de acordo com as regras da ciência.

Danny, por seu lado, buscava a objetividade. A escola de pensa-mento psicológico que mais o encantava era a psicologia da Gestalt.* Liderada por judeus alemães – as suas origens estavam na Berlim do início do século XX –, o seu objetivo era explorar cientificamente os mistérios da mente humana. Os psicólogos da Gestalt haviam feito carreira a descobrir fenómenos interessantes e a demonstrá -los com grande espetacularidade: uma luz parecia mais brilhante ao emergir da escuridão total; a cor cinzenta parecia verde se estivesse rodeada de roxo, mas amarela se estivesse rodeada de azul; se dissermos a uma pessoa “não escorregues nessa casta de banana!”, ela teria a certeza de ter ouvido “casca” e não “casta”. Os gestaltianos revela-ram que não há nenhuma relação óbvia entre um estímulo exterior e a sensação que este criava nas pessoas, pois a mente intervinha de muitas formas curiosas. Danny ficou particularmente impressio-nado pela forma como os psicólogos da Gestalt, nos seus escritos, faziam os leitores passar por uma experiência, de tal maneira que eles próprios podiam sentir o misterioso funcionamento das engre-nagens das suas mentes:

Se numa noite clara olharmos para o céu, algumas estrelas pare-cem imediatamente formar conjuntos, e destacam -se do seu ambiente. A constelação Cassiopeia é um exemplo, a Ursa Maior é outro. Há anos que as pessoas veem estes grupos como uni-dades, e atualmente as crianças não precisam de instruções para ver as mesmas unidades. Da mesma forma, na figura 1, o leitor tem perante si dois grupos de manchas:

* A palavra é alemã e significa “forma”, mas – e os psicólogos da Gestalt teriam gostado de o saber – o significado tende a variar de acordo com o contexto em que ela é usada.

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Figura 1. Adaptado de Gestalt Psychology, de Wolfgang Köhler (1947; nova edição, Liveright, Nova Iorque, 1992), p. 142

Porque não apenas seis manchas? Ou dois outros grupos? Ou três grupos de dois elementos cada um? Quando se olha casualmente para este padrão, toda a gente observa os dois gru-pos de três manchas cada um.

A questão central formulada pelos psicólogos gestaltianos era aquela que os behavioristas tinham decidido ignorar: como é que o cére-bro constrói o significado? Como é que transforma os fragmentos recolhidos pelos sentidos numa imagem coerente da realidade? Por-que é que essa imagem tantas vezes parece ser imposta pela mente sobre o mundo à sua volta, e não pelo mundo sobre a mente? Como é que uma pessoa transforma os cacos da memória numa história de vida coerente? Porque é que a compreensão do que vemos varia de acordo com o contexto em que o vemos? Por que motivo é que, quando um regime determinado a destruir os judeus ascende ao poder na Europa, alguns judeus o reconhecem e fogem, enquanto outros ficam e são chacinados? Estas questões, ou outras do género, tinham encaminhado Danny para a psicologia. Não eram perguntas a que mesmo o mais talentoso dos ratos pudesse dar resposta. As res-postas, se existissem, só podiam ser encontradas na mente humana.

Numa fase posterior da sua vida, Danny diria que para ele a ciên-cia era como uma conversa. Nesse caso, a psicologia seria um jan-tar barulhento no qual os convidados falavam sem se ouvir uns aos outros e mudavam de assunto com uma frequência assustadora. Os psicólogos da Gestalt, os behavioristas e os psicanalistas podiam todos ser enfiados num edifício com uma placa à porta a dizer “Departamento de Psicologia”, mas não despendiam muito tempo a ouvir o que os outros tinham para dizer. A psicologia não era como

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a física, nem mesmo como a economia. Faltava -lhe uma teoria única e persuasiva à volta da qual se pudesse organizar, ou mesmo um con-junto de regras previamente aceites para balizar a discussão. As suas principais figuras podiam dizer do trabalho dos outros psicólogos, e diziam mesmo, “essencialmente, aquilo que está a dizer e a fazer é um disparate pegado”, sem que isso tivesse alguma influência no compor-tamento desses psicólogos.

Parte do problema era a enorme diversidade dos aspirantes a psi-cólogos – um saco de gatos de personagens, cujos motivos varia-vam muito: um instinto para racionalizar a sua própria infelicidade; uma convicção de possuir um entendimento profundo da natureza humana, mas sem o talento para escrever um bom romance; a neces-sidade de um mercado para as suas capacidades matemáticas, depois de serem rejeitados pelo departamento de física; ou simplesmente um desejo de ajudar pessoas em sofrimento. A outra dificuldade era que o campo se assemelhava ao sótão da avó: a psicologia era o sítio para onde se atiravam todos os tipos de problemas aparentemente sem solução nem relação uns com os outros. “É possível encontrar dois psicólogos académicos altamente produtivos e competentes que, num almoço juntos, têm de conversar sobre as hipóteses de o Minneapolis Twins ganhar o título ou sobre a criatividade do assas-sino em série Ronald the Red Killer, porque têm muito pouco em comum nos seus conhecimentos ou interesses de psicologia”, escre-veu Paul Meehl, psicólogo da Universidade do Minnesota, num céle-bre ensaio de 1986 intitulado “Psicologia: O nosso tema heterogéneo tem alguma unidade?”: “Podemos questionar porque é que as coisas são assim, podemos questionar se pode fazer -se alguma coisa para melhorar a situação ou – e esta deve ser a primeira pergunta – se isto tem alguma relevância. Porque é que um geneticista behaviorista, que estuda a transmissão da esquizofrenia, deveria ser capaz de dia-logar com um perito nos processos eletroquímicos na retina do picão verde?”

Em testes vocacionais, Danny mostrou -se igualmente talentoso tanto para as humanidades como para a ciência, mas só a ciência é que lhe interessava. Queria também estudar pessoas. Para lá disso, rapidamente se tornou claro que ele não sabia o que queria fazer. No seu segundo ano na Universidade Hebraica, ouviu uma palestra

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de um neurocirurgião alemão convidado que afirmava que os danos cerebrais faziam com que as pessoas perdessem a capacidade de for-mular pensamentos abstratos. Esta afirmação veio a revelar -se falsa, mas Danny achou -a tão interessante que resolveu logo deitar fora a psicologia e seguir um curso de medicina – de forma a ter licença para mexer no cérebro humano e ver que outros efeitos seria capaz de gerar. Um professor acabou por convencê -lo da loucura que seria pas-sar pelas agruras de um curso de medicina sem querer ser médico. Mas esta história repetiu -se várias vezes: agarrava -se a uma ideia ou ambição com grande entusiasmo, só para a abandonar, desiludido. “Sempre me pareceu que as ideias se encontram à mão de semear”, disse ele. “Se tivermos uma que não funcione, não vale a pena fazer muito esforço para a preservar, mais vale ir à procura de outra.”

Numa sociedade normal, seria improvável que alguém tivesse des-coberto a fantástica utilidade prática de Danny Kahneman. Israel não era uma sociedade normal. Ao formar -se na Universidade Hebraica – a qual lá arranjou maneira de lhe conferir um diploma em psicologia –, Danny teve obrigatoriamente de cumprir serviço militar no exército israelita. Frágil, distante, desorganizado, avesso a conflitos e fisicamente inepto: ninguém imaginaria Danny como soldado. Só por duas vezes é que ele esteve perto de lutar, e ambas viriam a ser, para ele, profundamente memoráveis. A primeira ocor-reu quando o pelotão que ele e vários outros comandavam recebeu ordem de atacar uma aldeia árabe. O pelotão de Danny tinha por missão dar voltas à aldeia para fazer uma emboscada a quaisquer for-ças árabes que lá aparecessem. No ano anterior, depois de uma uni-dade do exército israelita ter massacrado mulheres e crianças árabes, Danny e o amigo Shimon Shamir haviam discutido o que fariam se lhes ordenassem que matassem civis árabes. Decidiram que se recu-sariam a cumprir a ordem. Esta foi a situação em que Danny esteve mais perto de receber essa ordem. “Não era suposto entrarmos na aldeia”, disse ele. “Os outros oficiais receberam as suas ordens. E eu ouvi – ninguém lhes disse para matarem civis. Mas também não lhes disseram para não matar civis. E eu não podia perguntar – por-que a missão não era minha.” Em todo o caso, a missão dele foi abortada, e a sua unidade retirou -se antes de estar perto de dar tiros a alguém – e só mais tarde é que ele veio a saber porquê. Os outros

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pelotões tinham sido apanhados numa emboscada. O exército jor-dano estivera à espera deles. Se a sua unidade não se tivesse retirado, “teríamos sido chacinados”.

A outra vez ocorreu numa noite em que o mandaram preparar postos de vigia contra o exército jordano. Havia três esquadrões no pelotão dele. Ele levou cada um dos dois primeiros esquadrões aos locais das suas vigílias e deixou subordinados em comando. O ter-ceiro, que foi para junto da fronteira com a Jordânia, era ele próprio que o comandava. Para encontrar a fronteira, disse -lhe o seu supe-rior (um poeta chamado Haim Gouri), teria de caminhar até che-gar a um sinal: Fronteira. Stop. Na escuridão, Danny não viu o sinal. Quando nasceu o sol, viu, em vez disso, um soldado inimigo, num monte, de costas para ele: Danny invadira a Jordânia. (“Quase dei início a uma guerra.”) A terra sob o monte à frente deles, apercebeu--se, era ideal para atiradores furtivos jordanos que quisessem alvejar soldados israelitas. Danny deu meia -volta para levar a sua patrulha de regresso a Israel, mas reparou então que um dos seus homens perdera a mochila. Imaginando a descompostura que ouviriam por deixar uma mochila na Jordânia, ele e os seus homens rastejaram junto às margens da zona de tiro. “Era incrivelmente perigoso. Sei como foi estúpido. Mas íamos lá ficar até encontrar a mochila. Por-que já conseguia ouvir a primeira pergunta: ‘Como é que lá deixaste a mochila?’ Foi o que retive: a estupidez daquilo tudo.” Encontraram a mochila, e foram -se embora. Ao regressar, foi admoestado pelos superiores, mas não devido à mochila. “Eles perguntaram: ‘Porque é que não disparou?’”

O exército obrigou -o a sair do seu papel habitual de observador isolado. O seu ano como comandante de pelotão, diria Danny mais tarde, “retirou os vestígios que restavam da sensação geral de vulne-rabilidade, fraqueza física e incompetência que tivera em França”. Mas ele não nascera para andar aos tiros a pessoas. Também não era adequado à vida militar, mas o exército obrigou -o a adequar -se. Deram -lhe um lugar na unidade psicológica. A principal caracterís-tica da unidade de psicologia do exército israelita em 1954 era não ter psicólogos. Ao juntar -se -lhe, Danny descobriu que o seu novo patrão – o chefe da investigação psicológica do exército israelita – era um químico. Portanto, Danny, refugiado europeu de 21 anos, que

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passara grande parte da sua vida em esconderijos, deu por si como o grande perito das Forças de Defesa de Israel em questões psicoló-gicas. “Ele era magro, feio e muito esperto”, recorda Tammy Viz, que esteve com Danny na unidade psicológica. “Eu tinha 19 anos e ele 21, e acho que ele flirtou comigo e eu era tão palerma que nem repa-rei. Ele não era um tipo como os outros. Mas as pessoas gostavam dele.” Também necessitavam dele – embora não soubessem imedia-tamente a que ponto.

A nova nação tinha um grave problema: como organizar um corpo militar a partir de uma população incrivelmente diversificada. Em 1948, David Ben -Gurion declarara Israel aberto a qualquer judeu que quisesse imigrar. Nos cinco anos seguintes, o estado judaico aceitou mais de 730 mil imigrantes de várias culturas, que falavam várias línguas. Muitos dos jovens que se inscreveram nas novas Forças de Defesa de Israel já tinham sofrido horrores impensáveis – por todo o lado se via gente com números tatuados nos braços. Nas ruas de cida-des israelitas havia mães que tropeçavam inesperadamente nos filhos, que julgavam terem sido assassinados pelos alemães. Ninguém era encorajado a falar do que lhe acontecera na guerra. “As pessoas com stress pós -traumático eram consideradas fracas”, nas palavras de um psicólogo israelita. Parte do trabalho de ser um judeu israelita era pelo menos fingir esquecer o inesquecível.

Israel era mais um fortim que uma nação e, contudo, o seu exército encontrava -se num estado de caos mal controlado. O líder da divisão de tanques nem sequer falava a mesma língua que a maioria dos seus homens. No início da década de cinquenta não havia guerra for-mal entre árabes e judeus, mas a violência regular e brutal expunha vulnerabilidades nas forças armadas israelitas. Os soldados tinham tendência para fugir ao primeiro sinal de sarilhos, por exemplo; e os oficiais tinham tendência para dar as suas ordens a partir da reta-guarda. A infantaria lançou uma série de investidas noturnas falha-das contra postos avançados árabes, nos quais os soldados israelitas se perdiam no escuro, sem nunca chegar aos alvos. Num caso, depois de uma unidade que tinha sido enviada para um ataque passar a noite perdida, a andar aos círculos, o comandante do pelotão pura e sim-plesmente matou -se. Quando conseguiam entrar em combate com o inimigo, os resultados eram muitas vezes desastrosos. Em outubro

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de 1953, uma unidade israelita que podia, ou não, ter ordens para evitar atingir civis, invadiu uma aldeia jordana e matou 69 pessoas, das quais metade eram mulheres e crianças.

Desde a I Guerra Mundial que o trabalho de avaliar e dividir jovens recrutas ficara para psicólogos, essencialmente porque alguns deles, ambiciosos, haviam convencido o exército dos EUA a confiar--lhes o cargo. Ainda assim, perante a missão de dividir dezenas de milhares de jovens rapidamente numa força de combate eficaz, não é imediatamente óbvia a necessidade de um psicólogo, menos ainda quando o único psicólogo por perto tem 21 anos, com um curso de dois anos e basicamente autodidata. O próprio Danny ficou surpreen-dido quando lhe pediram para fazer este serviço, e não se sentia à altura. E ele já vira como era difícil tentar perceber que pessoa é ade-quada para cada trabalho, quando os superiores lhe haviam pedido para avaliar candidatos à escola de oficiais.

Fora dada aos jovens candidatos a oficiais uma estranha tarefa: passar de um lado de uma parede para o outro, sem tocar nela, com recurso apenas a um tronco comprido que não poderia tocar nem na parede nem no chão. “Observávamos quem assumia a iniciativa, quem tentava liderar, quem era rejeitado, se um soldado estava a ser cooperante no seu contributo para o grupo”, escreveu Danny. “Vimos quem parecia ser teimoso, submisso, arrogante, paciente, irascível, persistente ou quem desistia facilmente. Víamos a competitividade negativa quando alguém cuja ideia fora rejeitada pelo grupo sabo-tava os seus esforços. E víamos as reações a crises... Na tensão do evento, pensávamos, a verdadeira natureza de cada homem revelava--se. A impressão com que ficávamos do caráter de cada candidato era tão direta e tão convincente como a cor do céu.”

Não lhe era difícil identificar que homens se tornariam bons ofi-ciais ou não. “Não tínhamos problemas em declarar ‘este não vai lá’, ‘este fulano é bastante medíocre’ ou ‘ele vai ser uma estrela’.” O problema veio ao testar as suas previsões, comparando -as com os resultados – com o desempenho real dos candidatos na escola de ofi-ciais. As suas previsões eram inúteis. E, contudo, porque era o exér-cito e ele tinha um trabalho para fazer, continuou a fazê -las; e como era Danny, notou que ainda tinha confiança nelas. A situação fê -lo lembrar -se da famosa ilusão ótica Müller -Lyer.

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Figura 2. Ilusão ótica Müller -Lyer.

Perante duas linhas do mesmo comprimento, o olho é enganado e levado a ver uma como sendo mais comprida do que a outra. Mesmo depois de se provar, com uma régua, que as linhas são idênti-cas, a ilusão persiste. As pessoas insistem que uma linha continua a parecer maior que a outra. Se a perceção tinha o poder de se sobrepor à realidade num caso tão simples, qual seria o seu poder numa situa-ção mais complexa?

Os superiores de Danny consideravam que cada ramo das Forças de Defesa de Israel tinha a sua própria personalidade. Havia um tipo de personalidade de “piloto de caças”, e um tipo de “blindados”, e um tipo de “infantaria” e por aí fora. Queriam que Danny determinasse para que ramo é que cada recruta era mais apropriado. Danny resol-veu criar um teste de personalidade que, na prática, dividisse a popu-lação de Israel pelos grupos apropriados. Começou por fazer uma lista das características que lhe pareciam ter uma correlação mais óbvia com a capacidade de um homem para o combate: orgulho mas-culino, pontualidade, sociabilidade, sentido do dever, capacidade de raciocínio independente. “A lista de características não era derivada de nada”, disse ele posteriormente. “Foi só uma coisa que eu ima-ginei. Um profissional levaria anos a lá chegar, com testes prévios, experiências com múltiplas versões, etc., mas eu não sabia que era algo difícil de fazer.”

O mais complicado, pensou Danny, era conseguir medir correta-mente qualquer dessas características a partir de uma entrevista de emprego normal. As dificuldades subtis que surgiam quando umas pessoas avaliam outras haviam sido descritas por um psicólogo americano chamado Edward Thorndike em 1915. Thorndike pediu

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a oficiais do exército americano que avaliassem os seus homens de acordo com alguma característica física (“musculatura”, por exem-plo), e para depois os avaliarem segundo uma característica menos tangível (“inteligência”, “liderança” e por aí fora). Concluiu que a sen-sação criada pela primeira avaliação contaminava a segunda. Se uma pessoa era inicialmente avaliada como fisicamente impressionante, seria considerada impressionante em outras áreas. Mudando a ordem da avaliação o problema mantinha -se: se o indivíduo era ini-cialmente considerado capaz, seria depois considerado mais forte do que na verdade era. “Obviamente, um halo de mérito geral influencia a avaliação de uma característica particular ou vice -versa”, concluiu Thorndike; ele viria a dizer que ficara “convencido de que mesmo um capataz, um patrão, um professor ou um chefe de um departa-mento muito competentes são incapazes de ver indivíduos como um conjunto de qualidades separadas, e de avaliar cada qualificação de forma independente em relação às outras.” Assim nasceu aquilo a que ainda hoje se chama o “efeito de halo”.

Danny já tinha ouvido falar do efeito de halo. E conseguia ver como os entrevistadores do exército israelita tinham sido vítimas dele. Pas-savam 20 minutos com cada novo recruta e, a partir daí, formavam uma impressão geral do seu caráter. As impressões gerais tinham--se revelado enganadoras, e por isso Danny queria fugir -lhes. Aliás, ele queria evitar ter de se basear no julgamento humano. Não sabia bem qual era o motivo exato pelo qual ele desconfiava da avaliação humana. Olhando para trás, desconfiava que devia ter lido um livro recente de Paul Meehl – o mesmo Meehl que se interrogara sobre se havia alguma coisa que unificasse o campo da psicologia. O livro de Meehl, chamado Clinical versus Statistical Prediction (“A previsão clí-nica versus a estatística”) demonstrara que os psicanalistas que ten-tavam prever o que aconteceria aos seus pacientes neuróticos tinham maus resultados comparados com simples algoritmos. Publicado em 1954 – um ano apenas antes de Danny reformular o processo pelo qual o exército israelita avaliava a juventude do seu país –, o livro irritara os psicanalistas, que consideravam que as suas avaliações e previsões clínicas tinham grande valor. A obra também levantava uma questão mais geral: se estes presumíveis peritos podiam estar iludidos quanto ao valor das suas previsões, não aconteceria o mesmo

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a toda a gente? “Só sei que devo ter lido Meehl, tendo em conta o que fiz”, disse Danny.

O que fez foi instruir os entrevistadores do exército – na sua maio-ria, mulheres jovens – para que fizessem uma lista de perguntas a cada recruta, de forma a minimizar o efeito de halo. Disse -lhes para fazerem perguntas muito específicas, destinadas a determinar não a forma como uma pessoa pensava sobre si própria, mas o comporta-mento real dessa pessoa. As perguntas não se limitavam a procurar factos, eram concebidas para disfarçar de que factos é que o entre-vistador estava à procura. E, ao fim de cada secção, antes de passar à seguinte, o entrevistador teria de dar uma nota de 1 a 5 que correspon-desse a escolhas desde “nunca exibe este comportamento” a “exibe sempre este comportamento”. Por exemplo, ao avaliar a sociabilidade de um recruta, o entrevistador daria 5 a uma pessoa que “forma relações sociais próximas e identifica -se completamente com todo o grupo”, e um 1 a “uma pessoa completamente isolada”. Até Danny se apercebia de que os seus métodos tinham inúmeros problemas, mas não tinha tempo para se preocupar muito com eles. Por exemplo, pas-sou um breve período a debater -se com grandes dúvidas sobre como definir um 3 – seria alguém que era muito sociável de vez em quando, ou alguém que era sempre moderadamente sociável? Ambos, foi essencialmente a conclusão a que chegou. O essencial era que o ava-liador mantivesse para si próprio as suas opiniões. A pergunta não era “Que penso eu dele?”, era “Que fez ele?”. A avaliação de quem ia para quais ramos do exército israelita teria de ser tomada pelo algoritmo de Danny. “Os entrevistadores odiaram a ideia”, lembrou -se. “Houve um motim. Lembro -me de um deles dizer: ‘Está a transformar -nos em robôs.’ Eles consideravam -se capazes de saber logo [como era o caráter de uma pessoa]. E eu queria roubar -lhes isso. Eles não gosta-ram mesmo nada.”

Danny foi então de carro com um motorista pelo país, pedir aos ofi-ciais do exército que atribuíssem características de personalidade aos seus soldados – que ele poderia assim comparar com o seu desem-penho. O raciocínio dele ia no sentido de descobrir as características das pessoas que são boas num determinado ramo militar, podendo usá -las para identificar outras que partilhassem essas características, e que poderiam então ser enviadas para esse ramo. (A sua memória

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desta viagem era tipicamente invulgar: preservara um detalhe curioso e não o retrato geral. Não se lembrava de grande coisa relativamente aos seus encontros com os oficiais de combate, mas recordava -se viva-mente do que o motorista lhe dissera quando Danny tomou o volante do jipe. Danny nunca conduzira antes. Depois de travar antes de uma lomba na estrada, o motorista elogiou -o. “Disse: ‘É exatamente com essa delicadeza que se conduz.”) Dos oficiais de combate, Danny ficou a saber que o tinham mandado numa caça aos gambozinos. Os estereótipos militares eram falsos. Não havia diferenças signi-ficativas entre as personalidades das pessoas de sucesso nos vários ramos. A personalidade de sucesso na infantaria era mais ou menos a mesma da que tinha sucesso junto a uma peça de artilharia ou dentro de um tanque.

Os resultados nos testes de personalidade de Danny conseguiam prever alguma coisa, contudo. Previam a probabilidade de um recruta ter sucesso em algum trabalho – um qualquer. Estes resul-tados davam ao exército israelita uma ideia melhor do que anterior-mente: de quem teria sucesso, ou não, como oficial ou membro de algum serviço de elite (piloto de caça, paraquedista). (Também con-seguiram prever quem acabaria na cadeia.) O mais surpreendente era talvez que os resultados tinham apenas uma correlação fraca com inteligência e educação – ou seja, continham informação que essas medidas simples não tinham. O efeito do que se tornou infor-malmente conhecido por “resultado Kahneman” foi dar melhor uso militar a toda uma nação e, em particular, reduzir a importância da inteligência pura na seleção dos seus líderes militares, aumentando a importância das qualidades na lista de Danny.

O processo criado por Danny revelara -se tão bem -sucedido que o exército israelita continua a usá -lo ainda hoje, fazendo -lhe apenas pequenos ajustes. (Quando as mulheres foram admitidas em uni-dades de combate, por exemplo, o “orgulho masculino” passou a ser “orgulho”.) “Eles tentaram mudá -lo a sério uma vez”, disse Reu-ven Gal, autor de A Portrait of the Israeli Soldier (“Retrato do soldado israelita”). “Pioraram -no, de maneira que voltaram atrás.” Gal foi, durante cinco anos, o psicólogo -chefe das Forças de Defesa Israelitas. Ao abandonar o exército, em 1983, Gal foi para Washington, com uma bolsa de investigação da Academia Nacional das Ciências dos

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EUA. Aí, um dia, recebeu um telefonema de um general importante no Pentágono. “Ele diz -me: ‘Importava -se de vir falar connosco?’” Gal foi ao Pentágono para ser interrogado por uma sala cheia de generais. Fizeram -lhe a pergunta de muitas maneiras diferentes, mas, disse Gal, “era sempre a mesma pergunta: ‘Diga -nos por favor como é possível vocês usarem as mesmas espingardas, os mesmos tanques, os mesmos aviões que nós, e ganharem todas as batalhas, e nós não? Sabemos que não é das armas. Deve ser da psicologia. Como é que escolhem os soldados para combater?’ Nas cinco horas seguintes falaram comigo sobre uma única coisa: o nosso processo de seleção.”

Mais tarde, quando era professor universitário, Danny contaria aos estudantes: “Quando alguém diz alguma coisa, não perguntem se é verdade ou não. Perguntem que verdade é que ela pode revelar.” Este era o seu instinto intelectual, o seu primeiro passo natural para o cesto de basquetebol mental: pegar no que alguém lhe tinha dito e não o tentar destruir, mas sim compreender. A pergunta que o exér-cito israelita lhe colocara – que personalidades são mais apropriadas para que papéis militares? – não fazia afinal sentido. E por isso Danny avançara para responder a uma outra pergunta, que seria mais frutí-fera: como é que evitamos que a intuição dos entrevistadores estrague as nossas avaliações dos recrutas do exército? Fora -lhe pedido que adivinhasse o caráter da juventude da nação. Em vez disso, descobriu uma coisa sobre as pessoas que tentam adivinhar o caráter de outras: eliminando os seus instintos, as avaliações melhoravam. Haviam -lhe dado um problema restrito, e ele descobrira uma verdade generali-zada. “A diferença entre Danny e os outros 999.999 psicólogos é a sua capacidade de descobrir um fenómeno e de o explicar de uma maneira que se aplique a outras situações”, disse Dale Griffin, psicó-logo da Universidade da Colúmbia Britânica. “Parece sorte, mas ele está sempre a consegui -lo.”

Um homem diferente, mais normal, teria saído desta experiência cheio de confiança. De uma só vez, Danny Kahneman, aos 21 anos, exercera mais influência sobre o exército israelita – a instituição de que dependia a sociedade para a sua sobrevivência – do que qualquer psicólogo, antes ou depois dele. O passo seguinte lógico para ele seria partir, doutorar -se e tornar -se no maior perito israelita na avaliação

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de personalidade e nos processos de seleção. Em Harvard residiam algumas das principais figuras deste campo, mas Danny resolveu, sem falar com ninguém, que não era suficientemente esperto para ir para lá – e nem se deu ao trabalho de se candidatar. Em vez disso, foi para Berkeley.

Ao regressar à Universidade Hebraica como jovem professor assis-tente em 1961, após quatro anos no estrangeiro, tinha uma inspiração renovada pelos estudos de personalidade feitos pelo psicólogo Walter Mischel. No final dos anos sessenta, Mischel viria a criar testes mara-vilhosamente simples para crianças, que revelavam imenso sobre elas. Naquilo que veio a ser conhecido como a “experiência do marsh--mallow”, Mischel pôs crianças de três, quatro e cinco anos numa sala, sozinhas com o seu doce favorito (um pretzel, um marshmallow), e disse -lhes que, se aguentassem alguns minutos sem o comer, pode-riam receber outro. A capacidade de esperar de uma criança estava correlacionada com o seu QI, com as suas circunstâncias familiares e ainda com outras coisas. Seguindo os miúdos ao longo da sua vida, Mischel apurou posteriormente que, quanto melhor uma criança de cinco anos resistisse à tentação, mais altos seriam os seus resultados futuros nas provas de acesso à universidade, maior seria a sua autoes-tima, menor seria o seu índice de massa corporal e a probabilidade de sofrer de alguma dependência.

Possuído por um novo entusiasmo, Danny concebeu uma série de testes do tipo marshmallow. Até inventou uma expressão para descrever o que fazia: a psicologia das questões singulares. Organizou viagens de campismo para miúdos israelitas – este era apenas um exemplo – a quem dava a escolha de dormir numa tenda individual, ou numa para duas ou para oito pessoas. Talvez as suas respostas, pensou Danny, dissessem alguma coisa sobre a sua tendência para se juntarem a um grupo. A ideia não surtiu resultados, ou os resultados conseguidos não poderiam ser reproduzidos em experiências poste-riores. Por isso, desistiu. “Queria ser cientista”, disse ele. “E pensei, ‘não posso ser cientista, a menos que possa reproduzir os meus resul-tados. Não podia.” Novamente duvidando de si próprio, abandonou o estudo da personalidade, convencido de que não tinha talento para tal.

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