o forasteiro

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"Tinha aberto aporta, mas se mantinha parado do lado de fora, espreitando; de tãograúdo, fazia o bar inteiro parecer uma casinha de brinquedo."

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  • ICom a sua volumosa juba de algodo e todas as suas incontveis

    rugas, ali estava o bom e velho Egris, em p atrs do balco, avaliando

    atentamente e sem nenhuma pressa o seu leque de cartas. No sabia

    qual delas descartar, e o tempo que j tinha gasto tentando se decidir

    no era pequeno. Drsio, o seu oponente no jogo, acabou

    impacientando-se:

    Ora, Egris, vamos l!

    Mas o velhinho no se abalou. Pacincia uma grande virtude,

    Drsio, meu caro limitou-se a comentar, erguendo as sobrancelhas

    brancas e bagunadas com ar de quem sabe das coisas.

    Drsio suspirou, enfastiado. O meu finado pai, que as deusas o

    tenham, costumava dizer o mesmo. Mas eu francamente acho que no

    devo ter herdado esse atributo.

    por isso que eu gostava mais de jogar cartas com o seu pai, se

    quer mesmo saber.

    O palco do jogo era o Ginete Manco, o bar de Egris. Ficava l nos

    confins da cidade de Lebab, precisamente onde as casas comeavam a

    rarear e as ruas tomavam ares de estrada. Era a nica atrao noturna

    daquelas bandas e estava sempre cheio de gente; na fria e chuvosa

    noite de hoje, por exemplo, alm de Drsio e Egris jogando cartas ao

    balco, havia mais umas quatro dzias de pessoas espalhadas pelo

    amplo estabelecimento. Os candeeiros a leo que iluminavam o lugar

    eram poucos e estavam mal distribudos; em alguns cantos, as mesas e

    os clientes sentados a elas pareciam se diluir nas sombras.

  • Ah, voc preferia jogar cartas com o meu pai, hein? sorriu

    Drsio. Mas claro, ele no era bom jogador, e voc, ento, se

    aproveitava!

    Sem dvida alguma Drsio era o cliente mais fiel do Ginete Manco,

    e a sua figura j havia at se tornado parte intrnseca do

    estabelecimento. V-lo ali, bebendo e jogando cartas com o bom e

    velho Egris, era to natural e esperado como encontrar as deusas no

    cu e os diabos no inferno. Ia consumindo mansamente uma caneca de

    sangue-azul; empinava-a de tempos em tempos, sempre fazendo uma

    careta aps sorver o contedo, como se estivesse a tragar chumbo

    derretido. Homem de meia idade, tinha farto bigode negro e olhos

    miudinhos, sendo ademais um tanto rechonchudo; estava sentado num

    dos banquinhos de ferro fixados ao balco, e as suas ndegas

    sobravam bastante para fora do assento redondo. No possua

    pescoo, razo pela qual Egris s vezes o chamava de Boneco de

    Neve.

    De fato o seu finado pai era mau jogador, Boneco de Neve, mas

    no se iluda, pois a bem da verdade voc no chega a ser adversrio

    melhor. Tenha em mente, meu valioso amigo, que a fruta nunca cai

    muito longe do p. Assim brincando, o dono do bar finalmente

    descartou um rei de paus.

    IINo mesmo instante, bateram na porta fechada do Ginete Manco.

    Entre! convidou Egris.

  • A porta se abriu lentamente, produzindo um rangido prolongado e

    desagradvel. Drsio e Egris olharam para ver quem era, e eis que

    tomaram um susto de morte! Ambos arregalaram os olhos e

    escancararam a boca, sem emitir nenhum som, como se estivessem

    sofrendo um silencioso ataque cardaco; um frio desconfortvel, que

    nada tinha a ver com a temperatura, forrou-lhes as entranhas.

    que havia uma figura deveras medonha e agourenta entrada do

    bar: um homem sem tamanho, todo vestido de preto. Tinha aberto a

    porta, mas se mantinha parado do lado de fora, espreitando; de to

    grado, fazia o bar inteiro parecer uma casinha de brinquedo. Usava

    capuz, o que somado parca iluminao do lugar impossibilitava

    completamente a viso do seu rosto; trazia uma grande espada

    cintura, metida numa bainha surrada.

    Bebida disse de repente, a voz assombrosamente grave,

    estranha, horripilante! Bebida para esquentar um forasteiro

    cansado

    Um silncio opressor foi se espalhando pelo bar. As conversaes

    s mesas se interromperam uma a uma, sob efeito domin, at que s

    restou o som da lenha crepitando na lareira. Logo todos os olhos

    estavam cravados no recm-chegado, que mantinha-se estacado

    porta aberta, do lado de fora, a sua enorme silhueta confundindo-se

    com a escurido, sendo fustigada pela chuva fininha que o vento forte

    agitava em todas as direes.

    Egris achou melhor dizer alguma coisa. Ora, q-q-queira entrar,

    cavalheiro gaguejou, tentando sorrir. Vamos, entre, por favor

  • O forasteiro teve que se espremer para conseguir passar pela

    entrada. Estava completamente encharcado, e a gua que lhe vertia

    das roupas espalhava-se profusa pelo cho. Egris esperava que ele se

    aproximasse do balco, mas isso no aconteceu; j dentro do Ginete

    Manco, o gigante apenas fechou a porta atrs de si, sem arredar p de

    onde estava. Entretanto movia a cabea encapuzada vagarosamente

    de um lado ao outro, encarando um a um os rostos voltados para ele,

    como se esperasse encontrar algum conhecido. Aps uns bons

    segundos de silncio, Egris abriu os braos e perguntou:

    Bem, o que deseja beber?

    Quero a bebida mais barata da casa foi a resposta seca.

    Certo, ahn, escolha uma mesa qualquer, cavalheiro Em

    um minuto lhe sirvo

    Sem a menor pressa, o forasteiro carregou toda a sua corpulncia

    para longe dos olhares espantados que o perseguiam, dirigindo-se para

    o canto mais escuro e solitrio do bar, onde havia mesas vazias. Parou

    junto a uma das tvolas e contemplou por um momento as cadeiras que

    a circundavam, certamente duvidando que qualquer uma delas pudesse

    aguentar todo o seu peso. Ento, observado atentamente por todos

    como se fosse um mgico prestes a realizar um truque incrvel, ele

    afastou as cadeiras e empurrou a mesa para junto da parede; sentou-

    se, por fim, em cima da tvola, usando a parede como encosto, e

    acomodou-se com visvel prazer, soltando um suspiro possante.

    III

  • Egris logo surgiu diante do homenzarro, trazendo uma caneca de

    meio litro. Era difcil imaginar que meio litro de qualquer coisa pudesse

    proporcionar uma mnima satisfao quele gigante; ele certamente

    podia secar aquela caneca com um nico gole, se assim desejasse.

    Eis a bebida mais barata da casa, cavalheiro anunciou Egris.

    So apenas trs moedas de bronze

    Depois de receber as trs devidas moedas de bronze da enorme

    mo enluvada, o velhinho voltou para trs do balco para retomar o

    carteado com Drsio.

    A essa altura os clientes j tinham voltado a conversar, produzindo

    um tmido burburinho. E no podia ser mais evidente que todos falavam

    do recm-chegado, para o total incmodo de Egris. Por alguma razo,

    muitas ideias macabras comearam a brotar na mente do velhinho, e

    uma delas era justamente a de que o forasteiro podia se cansar de

    tantos olhares e cochichos, sacar a espada e esquartejar todo o mundo.

    Simplesmente incapaz de imaginar qualquer boa inteno naquela

    criatura, o dono do bar sentia-se ameaado por um perigo insondvel, e

    tudo o que queria era que o sujeito terminasse logo de beber e fosse

    embora.

    Sabe, meu velho comentou um Drsio todo sorridente e

    aliviado , quando esse grandalho apareceu, eu podia jurar que ele

    iria saquear o bar! Felizmente, eu estava enganado

    A possibilidade de que o forasteiro talvez fosse um saqueador ou

    coisa que o valha tambm tinha ocorrido a Egris; ao contrrio de Drsio,

    porm, ele ainda no conseguia descartar essa desagradvel ideia.

  • Ora, e por que razo pensa diferente agora? perguntou o

    velhinho. Quero dizer, o que o faz pensar que o sujeito no deseja

    realmente saquear o bar? Seu tom no era de desafio; ele estava

    sinceramente desejoso de entender o amigo, esperanoso de tambm

    poder sentir-se aliviado.

    Bem, no sei comeou Drsio. Acho que se ele quisesse

    saquear o bar, j o estaria fazendo agora mesmo, no lhe parece? Em

    vez disso, no entanto, pediu uma bebida e acomodou-se num canto.

    Creio que seja apenas um homem querendo beber. Um homem

    assustadoramente grande, bem verdade, mas nada alm disso.

    Egris achou difcil concordar, mas preferiu no dizer nada. Apenas

    olhou para o canto mais escuro do bar, onde estava aboletado o

    forasteiro, e depois tentou se concentrar no seu leque de cartas. Era a

    sua vez de jogar.

    IV Ah, bati de novo! comemorou Drsio, colocando as suas

    cartas sobre o balco para que Egris pudesse ver. O que est

    acontecendo com voc hoje, meu velho? Hein? Eu j estou meio

    bbado, e nem mesmo assim voc consegue me vencer!

    Egris suspirou longamente. Depois de conferir o jogo apresentado

    por Drsio, juntou as cartas todas e se ps a embaralh-las com

    habilidade. Enquanto as mos trabalhavam, olhou como quem no quer

    nada para o canto mais escuro do bar E l estava o forasteiro, um

    grande vulto quase indistinguvel nas sombras, sentado em cima da

    mesa, recostado confortavelmente na parede, as mos entrelaadas

  • sobre a barriga. J fazia cerca de uma hora que o gigante chegara, e

    Egris, que durante todo esse tempo estivera com um olho nas cartas e

    o outro no sujeito, no lembrava-se de t-lo visto tocar em sua bebida.

    Na verdade, no lembrava-se de t-lo visto sequer mover-se

    minimamente.

    Ser que ele est dormindo? resolveu perguntar a Drsio,

    indicando o forasteiro com um gesto de cabea.

    Drsio, que estava de costas para o gigante, olhou para trs, por

    cima do ombro. No sei respondeu com indiferena. No d

    para ver o rosto dele.

    No tocou na bebida murmurou Egris, em tom reflexivo.

    Acho que nem mesmo se mexeu, desde que ali acomodou-se.

    Bem, ento deve estar mesmo dormindo.

    Pode ser Mas eu gostaria de ter certeza

    Drsio ficou intrigado. Por que est preocupado com isso?

    O velhinho deu de ombros. No sei. Me ocorreu que ele talvez

    no esteja dormindo, mas sim esperando alguns clientes irem embora,

    para ento saquear o meu bar Haveria menos testemunhas

    Ah, voc ainda est com essa ideia na cabea! Esquea isso,

    meu velho. J disse: apenas um homem querendo beber.

    Bem, e por que no bebe, ento?

    Ora, como que eu vou saber? Vamos, esquea isso e

    concentre-se no jogo. Se no, daqui a pouco vai dizer que est

  • perdendo porque est preocupado com o grandalho.

    Se o dissesse, no estaria mentindo.

    Ah, eu sabia!

    Pois estou falando srio! Como posso jogar direito com aquela

    enorme criatura bem ali, talvez dormindo, talvez tramando as piores

    coisas?

    E por que no vai l ver se ele est dormindo ou no, ento?

    Ele poderia irritar-se por eu lhe dar tanta ateno, voc no

    acha?

    Nesse caso, deixe que eu vou l ver e j volto aqui para lhe

    contar

    Com um largo sorriso, Drsio fez meno de pr-se de p, mas

    deteve-se quando Egris, inclinando-se por cima do balco, lhe ps a

    mo no ombro e disse sobressaltadamente:

    No, seu maluco, fique sentado bem a!

    A preocupao do velhinho com o forasteiro era genuna, mas o

    gordo bigodudo fazia pouco caso dela. Na verdade, Drsio estava at

    achando o comportamento do amigo um tanto esquisito. Claro, ele

    prprio se assustara com o forasteiro ao v-lo chegar, afinal tratava-se

    de uma figura realmente espantosa, porm no via motivo nenhum para

    ficar permanentemente incomodado com a presena do gigante, como

    se o sujeito fosse uma besta-fera selvagem.

    Meu velho, por que a presena desse homem o perturba tanto?

  • Para ser franco, eu no sei disse Egris gravemente. O fato

    que estou com um mau pressentimento desde que esse sujeito ps os

    ps aqui dentro Talvez seja uma bobagem admitiu por fim,

    inclinando a cabea.

    VPassados instantes, em nova demora de Egris para descartar,

    Drsio olhou ao redor. Muitos dos seus clientes esto sentados no

    escuro, mal se enxerga alguns deles comentou. E uma

    grande indelicadeza da sua parte permitir que a sua clientela fique

    sentada no escuro, j lhe falei isso uma poro de vezes. Infelizmente,

    parece que tudo quanto digo lhe entra pelos ouvidos e sai pelas

    narinas, no assim?

    Pois eu tambm j lhe disse uma poro de vezes, Drsio, que

    leo custa dinheiro. No em favor do meu belo sorriso nem em

    respeito ao meu cabelo branco que o mercador o fornece a mim. Eu

    no posso me dar ao luxo de pr um candeeiro aceso em cada mesa,

    homem!

    Mas ser que no pode acender mais um candeeiro? Apenas

    mais um? Aposto que isso no o levaria falncia.

    Onde quer chegar, afinal?

    Drsio ajeitou o traseiro de elefante no banquinho e inclinou-se um

    pouco para a frente. O que acha de pr um candeeiro l no canto

    onde est o forasteiro? perguntou, apontando para trs com o

    polegar. Ora, faa-lhe essa gentileza, meu velho. Encare como um

  • esforo para fidelizar o cliente. Ento, perto do sujeito e luz do

    candeeiro, certamente conseguir ver se ele est dormindo ou no.

    Egris sorriu largamente. Sim, essa uma bela ideia! Largou

    as cartas em cima do balco. Espere um momento, eu j volto

    disse, todo empolgado, fazendo meia-volta e saindo com pressa.

    Cruzou a passagem que comunicava o bar propriamente dito ao

    compartimento contguo, o qual era uma mistura de cozinha e estoque,

    e achou-se imediatamente imerso em profunda escurido. Ali a luz era

    bem mais escassa: havia to-somente uma vela ardendo solitria em

    cima de uma mesinha, e a sua luz tnue e bruxuleante expunha aos

    olhos pouqussima coisa. Via-se garrafas de formas, cores e tamanhos

    diversos, sendo que algumas estavam ainda bastante cheias e outras,

    j praticamente vazias. Tambm dava para ver a pia entulhada de

    canecas sujas e alguns utenslios pendurados na parede, mas era

    impossvel enxergar as caixas de madeira, os armrios e os barris que

    disputavam espao l no fundo do compartimento, onde a luz da vela

    no alcanava.

    Guiado muito mais pelo tato do que pela viso, Egris foi at os

    armrios invisveis, catou rapidamente uma caixa de palitos de fsforo e

    um candeeiro e voltou para o bar. Ao contornar o balco para ir at o

    forasteiro, piscou para Drsio e repetiu: Eu j volto.

    VIO enorme capuz que cobria a cabea do forasteiro, mais parecendo

    uma caverna, dava toda a impresso de abrigar apenas sombras e

    nada mais. E Egris fantasiou, no interior daquele capuz, um par de

  • olhos diablicos vendo-o se aproximar Estava na metade do caminho

    quando pensou em fazer meia-volta e retornar para a segurana detrs

    do balco. Mas foi justamente a percepo da prpria

    sugestionabilidade que f-lo engolir o medo e seguir em diante. Afinal,

    pensou, tinha medo do qu? De um par de olhos pintados pela sua

    prpria imaginao? Drsio devia ter razo: o forasteiro devia ser

    mesmo apenas um homem querendo beber, e talvez tivesse pego no

    sono por estar muito cansado Alis Bebida para esquentar um

    forasteiro cansado, no fora exatamente isso o que ele dissera ao

    chegar? Talvez o coitado fosse daquelas criaturas acostumadas a

    percorrer grandes distncias a p e estivesse encarando uma longa

    jornada; se assim fosse, somente as deusas podiam saber o quanto

    tinha caminhado antes de encontrar o Ginete Manco e poder, enfim,

    parar para descansar um pouco.

    Uma vez junto ao forasteiro, naquele canto particularmente escuro

    do bar, a primeira coisa que Egris fez foi lanar os olhos na caneca de

    meio litro que servira ao sujeito. Conforme j suspeitava, a caneca

    ainda estava completamente cheia; o gigante realmente no havia

    tocado na bebida. Sorrindo e balanando a cabea, Egris j no via

    nenhuma periculosidade na enorme criatura que estava bem sua

    frente, sentada em cima da mesa, recostada confortavelmente na

    parede e com as mos entrelaadas sobre a barriga. Ele at sentia

    nascer dentro de si uma pontinha de vergonha pelo mau

    pressentimento aparentemente infundado que o forasteiro lhe inspirara.

    Porm, quando foi acender o candeeiro que trouxera consigo, acabou

    deixando a caixa de palitos de fsforo cair, e os palitos espalharam-se

    todos pelo cho. Diabos me levem! resmungou, e ao mesmo

  • tempo teve a ntida e desagradvel impresso de que o forasteiro

    deixou escapar um risinho debochado. Prontamente olhou para o

    gigante, sentindo subir-lhe de volta pela garganta todo o medo que

    tinha acabado de engolir. Assustado, decidiu chamar: Cavalheiro?

    Cavalheiro, por acaso est acordado?

    Cavalheiro?

    O corao de Egris batia cada vez mais violento, parecendo querer

    arrombar o peito e saltar para fora. O velhinho olhava fixamente para o

    ponto onde devia estar a cabea do forasteiro, mas nada via, apesar de

    estar to perto Realmente parecia no haver nada alm de escurido

    no interior daquele enorme capuz.

    Apressado e desajeitado, o dono do bar girou nos calcanhares e

    voltou para trs do balco, prometendo a si mesmo que jamais chegaria

    to perto daquele gigante novamente enquanto vivesse.

    VII O que aconteceu, Egris? Voc est bem? perguntou Drsio,

    ao perceber que o dono do bar estava plido e trmulo.

    O velhinho explicou o que tinha acontecido, e o gordo bigodudo

    acabou achando graa.

  • Ora, mas o que isso, meu velho? disse rindo. Voc nunca

    foi de se assustar facilmente! J chega dessa histria. De uma vez por

    todas, esquea esse forasteiro. s um pobre-diabo que est podre de

    cansado e acabou pegando no sono. Vamos continuar o nosso jogo,

    certo? Antes, porm, pode me servir outra caneca de sangue-azul?

    E assim o carteado ao balco prosseguiu, com um Drsio cada vez

    mais bbado e um Egris cada vez mais preocupado. O velhinho a essa

    altura j pensava numa forma de estar preparado para o que o

    forasteiro viesse a fazer de ruim, fosse l o que fosse; o seu mau

    pressentimento inicial, momentaneamente afastado do esprito por fora

    de vontade consciente, tinha sido resgatado pelo medo e fortalecido

    pela imaginao, transformado-se na certeza absoluta de que aquela

    noite no terminaria bem. No entanto ele achava que seria intil

    compartilhar os seus pensamentos com Drsio, de modo que seguia

    jogando em silncio, um olho nas cartas, o outro no gigante.

    Dali a pouco, um som repetitivo, vindo da rua, comeou a se fazer

    ouvir, inicialmente bem baixinho, mas parecia estar em aproximao e

    tornava-se cada vez mais audvel.

    Tchac-tchac, tchac-tchac

    Era um rudo metlico, como se um pote cheio de moedas

    estivesse sendo chacoalhado a intervalos regulares. Cessou porta, e

    ento batidas soaram.

    Entre! convidou Egris.

    A porta se abriu, e um homem pingando gua passou para dentro.

    Usava um uniforme vermelho e, por cima, uma imponente armadura

  • prateada, cujas peas se entrechocavam a cada passo que ele dava,

    produzindo repetitivamente aquele rudo metlico.

    A armadura no era menos do que belssima. O elmo tinha um par

    de chifres altos e retorcidos e uma abertura em arco na frente, dividida

    ao meio pela haste obtusa que protegia o nariz. Os espaldares eram

    grandes e bojudos, e as manoplas, cobertas de pequenos espinhos,

    continham cotoveleiras articuladas; o peitoral e o dorsal eram

    compostos de placas curtas, dispostas em camadas, uma surgindo por

    baixo da outra. O coxote protegia apenas as ndegas e o flanco das

    coxas, sem cobrir a regio pubiana; por baixo dele, contudo, havia uma

    saia de cota de malha. E assim como as manoplas possuam

    cotoveleiras articuladas, as grevas tambm possuam joelheiras com

    articulao; os escarpes, contudo, eram peas independentes.

    De um lado da cintura do homem havia duas bolsas de couro

    pequenas; do outro, um punhal e uma espada, metidos em bainhas

    ornamentadas. No centro do grosso cinturo havia um medalho

    prateado com um par de lees representados em alto-relevo, um de

    costas para o outro, e uma inscrio arqueada os encimava: Polcia de

    Lebab.

    O soldado sorria largamente. E, alm dos dentes impecavelmente

    brancos, ostentava tambm um cavanhaque bem aparado. Brrrr, que

    frio que est l fora! disse, tirando o elmo e revelando uma farta

    cabeleira castanha e uma horrvel cicatriz de queimadura na face

    esquerda. Pelo amor das deusas, preciso de uma caneca de

    catamnio-de-sereia urgentemente!

    para j, cavalheiro sorriu Egris, fazendo uma mesura

  • respeitosa. Queira sentar-se, por favor; escolha uma mesa do seu

    agrado. Eu lhe sirvo em um minuto.

    O soldado j procurava visualmente uma mesa, e ficou feliz ao

    perceber que havia uma vaga perto da lareira. Eu vou me sentar l

    informou, indicando o lugar com um gesto de cabea.

    Bem, enquanto voc serve a bebida do policial disse Drsio,

    levantando-se , eu vou ao banheiro.

    VIIIEgris foi at a escurido do seu estoque-cozinha; um minuto depois

    voltou, trazendo uma caneca de meio litro de catamnio-de-sereia. Era

    uma bebida espessa e vermelha, e cheirava a um misto de ma e

    cereja. Ele contornou o balco e serpenteou rapidamente por entre as

    mesas, dirigindo-se para onde o policial esperava sentado, junto

    lareira. O dono do bar movia-se com surpreendente agilidade para um

    homem da sua idade, e deduzia-se facilmente que no devia ser ele

    prprio o cavaleiro perneta que inspirara o gozado nome do

    estabelecimento.

    Eis o seu catamnio-de-sereia, cavalheiro anunciou o

    velhinho.

    Ah, uma dose de alegria! suspirou o soldado, esfregando os

    olhos com a palma das mos num gesto de cansao.

    Noite difcil? arriscou Egris, puxando assunto.

    Acho que longa talvez seja um termo mais apropriado

  • respondeu o soldado, bebericando em seguida o catamnio-de-sereia.

    Esse primeiro golinho pareceu causar-lhe enorme prazer, como se a

    bebida fosse uma espcie de tnico revitalizante de efeito instantneo.

    Ah, que maravilha! suspirou ele, espalhando-se todo na cadeira,

    relaxando o corpo. Tinha deixado o elmo em cima da mesa, e estendeu

    a mo para ficar brincando com ele.

    Devo dizer que j nem me lembro mais da ltima vez em que um

    policial apareceu em meu humilde bar comentou Egris,

    simpatizado com o policial. O subrbio e a farda no combinam

    muito, eu acho

    Com todo o respeito s suas redondezas, meu senhor, eu duvido

    que qualquer coisa combine minimamente com este fim de mundo. A

    bem da verdade, preferia no estar aqui.

    Sim, compreendo, compreendo Contudo me pergunto o que

    ter lhe tirado a oportunidade de apresentar-se alhures

    O policial deu de ombros. Boatos, e nada alm disso, na minha

    opinio.

    Egris ergueu ligeiramente as sobrancelhas. Boatos?

    Sim. A histria a seguinte: alguns meses atrs, numa cidade

    mais de cem quilmetros a oeste daqui, um homem foi assassinado.

    Houve testemunhas, que descreveram o assassino, mas a polcia do

    lugar nunca conseguiu captur-lo. Algumas semanas depois, em outra

    cidade, mas essa apenas vinte quilmetros a oeste daqui, aconteceu

    outro assassinato. Novamente houve testemunhas, que tambm

    descreveram o assassino, e a descrio mostrou-se idntica que j

  • havia sido feita pelas testemunhas do crime anterior, na outra cidade

    Um indicativo de que o mesmo homem era responsvel por ambos os

    assassinatos, sabe. Nessa segunda localidade, porm, trs policiais

    conseguiram encontrar o meliante...

    Poxa, ainda bem! interrompeu Egris com um sorriso.

    O senhor acha? indagou sombriamente o policial, erguendo

    uma sobrancelha. Pois saiba que o trio acabou morto tambm

    informou, ao que o dono do bar prontamente guardou os dentes. O

    que mais me impressiona prosseguiu o soldado que, segundo

    as testemunhas desse terceiro incidente, houve combate, e no

    obstante os trs policiais terem lutado simultaneamente contra o sujeito,

    foram facilmente derrotados. Fez uma pausa para bebericar o

    catamnio-de-sereia. Depois continuou: Essa histria toda foi trazida

    para c pelos comerciantes que vem do oeste comprar carvo em

    Lebab. E logo comeou a aparecer gente dizendo que viu um homem

    com a descrio do assassino por estas bandas... Boatos, conforme eu

    disse. Mas, enfim, o que posso fazer, no mesmo? Apenas obedeo

    ordens, e as minhas ordens so para perambular por estas redondezas

    at amanhecer, ento estou aqui. Alm de mim, h mais uns cinquenta

    soldados na regio; tudo est sob vigilncia, desde a carvoaria at as

    montanhas. O tenente quer que tenhamos ateno especial com os

    bares, mas parece no existirem muitos por aqui, no mesmo?

    Por que essa ateno especial com os bares?

    Ah, sim, eu esqueci de mencionar esse fato. Tirando os policiais

    que tentaram capturar o sujeito e acabaram mortos, os outros dois

    homens que ele assassinou eram proprietrios de bar. Inclusive, foram

  • mortos em seus respectivos estabelecimentos. Decapitados. Mas no

    se preocupe, no se preocupe apressou-se a acrescentar o policial,

    percebendo o susto que tinha dado no velhinho. Eu realmente no

    acredito que o meliante esteja por aqui. Insisto em dizer que, para mim,

    so meros boatos.

    Bem, confesso que isso me deixa um tanto aliviado...

    Na verdade, eu acho pouco provvel que esse sujeito sequer

    exista, se o senhor quer mesmo saber.

    Agora Egris ficou confuso. Como assim? Os assassinatos no

    aconteceram, ento?

    Ora, no me entenda mal. Os assassinatos foram reais, e

    algum com certeza os praticou. Mas acontece que eu pessoalmente

    considero a descrio que insistem em fazer do assassino um tanto

    fantasiosa... Na minha opinio, criou-se um mito, pelo fato de ele ter

    conseguido escapar. O povo gosta dessas coisas, o senhor sabe. E

    isso me faz pensar que talvez ningum o tenha visto por aqui

    realmente. Entenda: em qualquer lugar que se conte essa histria, vai

    surgir gente querendo ateno, dizendo que j viu a fantstica figura

    descrita pelas testemunhas. Pois no h, entre os marinheiros, aqueles

    que afirmam j terem sido seduzidos por serias?

    Como dizem que o assassino?

    Ah, pintam-no um grandalho disse o policial, em desvelado

    menoscabo. Na verdade, gigantesco foi a palavra usada nas

    descries. Sempre vestido todo de preto. Falam tambm que ele tem

    uma voz grave e estranha, uma voz que no parece humana. E dizem

  • ainda, acredite, que ele no tem cabea; parece que costuma usar um

    capuz, mas as pessoas que afirmam t-lo visto luz do dia garantem

    que no interior desse capuz h apenas sombras e nada mais... Ei! O

    senhor est bem?

    que toda a cor tinha fugido do rosto de Egris enquanto o policial

    falava, e por fim as pernas do velhinho vacilaram, ao que ele tivera de

    se amparar na mesa do soldado para no desabar no cho.

    Deusas do cu, ele est aqui! sussurrou o dono do bar, o ar

    lhe faltando, os olhos cheios de pavor.

    IX Hein?! espantou-se o policial. Quem que est aqui?

    O assassino!

    O soldado deu uma olhada ao redor. Onde?

    Mas Egris, que estava bem de frente para o interlocutor, no

    ousava virar-se para orient-lo desveladamente. Limitou-se a explicar

    entredentes: Atrs de mim, homem, do outro lado do bar, l no canto

    escuro Est sentado em cima da mesa

    O policial espremeu os olhos e observou o canto mais escuro do

    bar por um instante. Mas l no h ningum!

    Egris girou nos calcanhares, e viu que de fato a mesa antes

    ocupada pelo forasteiro agora estava vazia. Alm disso, reparou

    tambm que a porta do bar estava aberta. Ele ele fugiu!

  • O soldado se ps de p, recolocou o elmo e sacou a espada da

    bainha. Eu vou atrs dele. O senhor sabe me dizer se est armado?

    Sim, ele tem uma espada.

    Os dois, Egris e o policial, j deslocavam-se apressadamente por

    entre as tvolas, chamando a ateno dos clientes sentados a elas.

    Tem certeza de que trata-se do meliante?

    Sim. Sujeito gigantesco, todo vestido de preto, voz grave e

    estranha. Est de capuz, mas

    O soldado estacou e olhou severamente para o dono do bar.

    Ora, no venha me dizer que o homem no tem cabea!

    Bem, na realidade foi justamente essa a impresso que tive,

    policial. Mas, veja, est escuro, e eu achei que devia ser apenas

    impresso minha

    Eles se encararam em silncio por um momento, e depois

    continuaram caminhando. porta aberta, Egris parou e viu o outro sair

    para a rua. E, debaixo da chuva fininha que o vento forte agitava em

    todas as direes, o policial foi se afastando, olhando em toda a volta,

    at desaparecer na escurido da noite. Egris, ento, fechou a porta e foi

    para trs do balco. Sentia as pernas tremendo incontrolavelmente.

    Um encorpado burburinho tomara conta do estabelecimento. Os

    clientes tinham se levantado de suas mesas, e agora adiantavam-se em

    direo ao balco.

    O que aconteceu, Egris? perguntou um homem.

  • Que correria foi essa? quis saber um outro.

    Por que o policial sacou a espada e saiu para a rua? indagou

    uma mulher.

    Gente, vamos manter a calma, por favor disse Egris, e o

    burburinho reduziu-se, mas no chegou a silenciar por completo.

    Escutem, o policial foi atrs do homem que estava sentado ali

    O grandalho? precipitou-se a perguntar um jovem.

    Ah, eu sabia que ele no era flor que se cheirasse! comentou

    algum.

    Com licena, com licena Era Drsio, voltando do banheiro,

    ainda fechando a braguilha. Vinha espremendo-se por entre os outros

    clientes. O que aconteceu, Egris? perguntou preocupado,

    reassumindo o seu lugar ao balco.

    Percebendo que o burburinho tomava corpo novamente, Egris

    mostrou a palma da mo a Drsio, para que esperasse, e ento dirigiu-

    se aos outros: Pessoal, no h motivo para preocupao. Segundo o

    policial que acabou de sair, h outros soldados vigiando a regio esta

    noite; eles esto atrs daquele forasteiro, e certamente iro captur-lo.

    Peo encarecidamente que voltem aos seus lugares e continuem

    aproveitando a noite como se nada houvesse acontecido, est bem?

    Por favor. Obrigado, obrigado

    Os clientes foram voltando ruidosamente aos seus respectivos

    lugares, todos falando ao mesmo tempo e gesticulando.

  • XEgris contou toda a histria a Drsio, enquanto retomavam o

    carteado.

    Deusas do cu! assombrou-se o gordo com a narrativa,

    usando o polegar e o indicador para alisar o bigode, como se isso lhe

    permitisse uma melhor compreenso dos fatos. Ento, o grandalho

    j matou cinco pessoas, hein?

    Isso mesmo, meu caro confirmou Egris. E entre essas

    cinco pessoas, trs eram policiais treinados que o combateram

    simultaneamente! E os outros dois eram donos de bar, como eu

    No d para acreditar! Quero dizer, ele estava sentado bem ali;

    se o policial tivesse olhado para aquele lado quando entrou no bar

    Sim, provavelmente uma tragdia teria acontecido aqui dentro;

    no quero nem imaginar!

    Sabe, no final das contas, voc teve muita sorte. No posso

    saber o que aquela criatura tem contra proprietrios de bar, mas agora

    no acredito que fosse uma coincidncia ele estar aqui. Se o policial

    no tivesse aparecido

    verdade

    E eles seguiram conversando. Naturalmente, aquele haveria de ser

    o nico assunto pelo resto da noite.

    Em determinado momento da prosa, uma ideia assustadora ocorreu

    a Egris subitamente.

  • Acha que o forasteiro pode voltar aqui?

    No sei Mas, pensando bem, acho que no. Ele demonstrou

    medo ao fugir, no verdade? Preferiu evitar o combate contra o

    policial, talvez pela quantidade de gente que testemunharia a confuso,

    sei l O certo que por algum motivo achou melhor dar no p, e seja

    l qual tenha sido esse motivo, acredito que no vai querer voltar aqui.

    A essa altura j deve estar longe, e a ltima coisa que deve passar-lhe

    pela cabea retornar ao lugar de onde teve que escapulir s pressas.

    Sim, pode ser

    Drsio empinou a sua caneca de sangue-azul, secando-a com um

    grande gole e fazendo a careta de sempre ao sorver o contedo. Ah!

    Pode me servir mais uma, meu velho? pediu.

    Egris foi at o seu estoque-cozinha. E l acabou esbarrando num

    obstculo inesperado. Foi como se a escurido do aposento tivesse se

    solidificado, formando um largo pilar negro bem no meio do caminho,

    mas era o forasteiro, que ali estava plantado.

    Antes que o dono do bar pudesse fazer qualquer coisa, a enorme

    mo enluvada, num movimento incrivelmente gil, agarrou-o pelo

    maxilar com violncia, cobrindo-lhe a boca. E o diablico gigante

    curvou-se lentamente, para poder falar ao p do ouvido do velhinho.

    Quero que saiba que eu lamento sussurrou venenosamente

    com a sua voz medonha. Mas o senhor vai morrer bem agora