o fim do império virtual a África oriental portuguesa e as...

25
1 Paulo Jorge Fernandes O fim do Império Virtual A África Oriental portuguesa e as representações do domínio colonial na metrópole (1878-1898) Introdução Em 2004, Bernard Porter, um dos mais importantes historiadores britânicos na área dos “Imperial Studies”, publicou um livro controverso com significativo impacto neste domínio da investigação historiográfica 1 . A sua abordagem deu origem a uma enorme discussão, tanto na Grã-Bretanha como no estrangeiro, em livros e revistas especializadas como, por exemplo, no Journal of Imperial and Commonwealth History, entre outras publicações do meio académico de língua inglesa. Bernard Porter veio discutir pela primeira vez, de forma sistemática e consistente, alguns mitos historiográficos lançados nas décadas anteriores por autores consagrados como John MacKenzie ou Edward Said, este último um dos nomes mais importantes e um dos pais fundadores da moderna corrente dos chamados estudos pós-coloniais 2 . Resumindo argumentos e de forma muito esquemática, podemos dizer que, de acordo com a interpretação avançada por estes intelectuais e que ditou a ortodoxia sobre o tema, a sociedade britânica passou a estar auto-centrada na sua vocação imperial, sobretudo, a partir da década de 1880. Esta circunstância esteve na base da criação de uma visão do “Outro”, o “Oriental” ou o não-europeu, por oposição ao “Nós”, o “Ocidental”. Esta perspectiva seria difundida pela opinião pública através da imprensa e da escola, ficando bem patente nos cânones literários da época (em Rudyard Kipling ou Joseph Conrad), sendo detectada também em escritores mais antigos (como Jane Austen, Charlotte Brontё ou Charles Dickens). Genericamente, os britânicos tornaram-se imperialistas pela própria circunstância de serem a principal potência mundial, sobrepondo-se este factor a qualquer outro tipo de ideologia ou discurso na consciência popular. Bernard Porter, através da sua leitura revisionista de muitas dezenas de periódicos, memórias, textos escolares, livros e artigos da época, veio relativizar esta ideia, mostrando como a mesma foi assente em representações exageradas da realidade histórica. Desconstruindo o ângulo de abordagem proposto por Bernard Porter, o presente texto pretende chamar a atenção para o peso cada vez mais significativo da opinião 1 PORTER 2004. 2 MACKENZIE 1984 e SAID 1993.

Upload: lyhanh

Post on 19-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

1

Paulo Jorge Fernandes

O fim do Império Virtual A África Oriental portuguesa e as representações do domínio colonial na metrópole

(1878-1898)

Introdução

Em 2004, Bernard Porter, um dos mais importantes historiadores britânicos na

área dos “Imperial Studies”, publicou um livro controverso com significativo impacto

neste domínio da investigação historiográfica1. A sua abordagem deu origem a uma

enorme discussão, tanto na Grã-Bretanha como no estrangeiro, em livros e revistas

especializadas como, por exemplo, no Journal of Imperial and Commonwealth History,

entre outras publicações do meio académico de língua inglesa. Bernard Porter veio

discutir pela primeira vez, de forma sistemática e consistente, alguns mitos

historiográficos lançados nas décadas anteriores por autores consagrados como John

MacKenzie ou Edward Said, este último um dos nomes mais importantes e um dos pais

fundadores da moderna corrente dos chamados estudos pós-coloniais2. Resumindo

argumentos e de forma muito esquemática, podemos dizer que, de acordo com a

interpretação avançada por estes intelectuais e que ditou a ortodoxia sobre o tema, a

sociedade britânica passou a estar auto-centrada na sua vocação imperial, sobretudo, a

partir da década de 1880. Esta circunstância esteve na base da criação de uma visão do

“Outro”, o “Oriental” ou o não-europeu, por oposição ao “Nós”, o “Ocidental”. Esta

perspectiva seria difundida pela opinião pública através da imprensa e da escola,

ficando bem patente nos cânones literários da época (em Rudyard Kipling ou Joseph

Conrad), sendo detectada também em escritores mais antigos (como Jane Austen,

Charlotte Brontё ou Charles Dickens). Genericamente, os britânicos tornaram-se

imperialistas pela própria circunstância de serem a principal potência mundial,

sobrepondo-se este factor a qualquer outro tipo de ideologia ou discurso na consciência

popular. Bernard Porter, através da sua leitura revisionista de muitas dezenas de

periódicos, memórias, textos escolares, livros e artigos da época, veio relativizar esta

ideia, mostrando como a mesma foi assente em representações exageradas da realidade

histórica.

Desconstruindo o ângulo de abordagem proposto por Bernard Porter, o presente

texto pretende chamar a atenção para o peso cada vez mais significativo da opinião

1 PORTER 2004.

2 MACKENZIE 1984 e SAID 1993.

2

pública portuguesa metropolitana na definição do que veio a ser a política ultramarina

em finais do século XIX e demonstrar como esta mesma opinião pública despertou para

as questões africanas de forma generalizada depois do aparecimento na sociedade

portuguesa de uma ideologia nacionalista e radical de cariz colonial nos finais da década

de 1870. Pretende-se defender a ideia de que, para além das pressões externas

decorrentes da abertura da “scramble for Africa”, a estruturação do moderno Império

português se ficou a dever ao impacto “positivo”, do ponto de vista metropolitano, dos

sucessos militares alcançados em Moçambique pela chamada “geração de 1895”. Por

fim, procura-se ainda sustentar que o lançamento das modernas formas de dominação

colonial por parte dos portugueses em África a partir dos anos finais do século XIX

ficou a dever muito às representações que foram elaboradas, sobretudo pelos jornais e

pelo discurso político, sobre os feitos militares na altura em que os mesmos foram

produzidos, deixando-se em lugar subalterno o papel das resistências locais à construção

deste normativo colonial. O desejo de afirmação do Exército e, em menor escala, da

Armada, em África, a ânsia por vitórias no terreno e a forma como as notícias de tais

triunfos chegaram ao público, criaram as condições para que se instalasse uma pressão

geradora de sentimentos nacionalistas, libertando uma certa consciência imperial

reprimida pela humilhação do Ultimato britânico de 1890.

A partir destes anos, os governantes e a opinião pública do Portugal

metropolitano passaram a olhar para as províncias de além-mar com outra atenção,

apesar de as elites dos dois principais partidos políticos protagonizarem visões

diferentes sobre o assunto. Neste novo contexto de exaltação colonial, África tornou-se

uma prioridade nacional, acabando por condicionar nos tempos que se lhe seguiram

toda a concepção da estratégia ultramarina. Assistiu-se, desde então, a um esforço de

projecção do poder da metrópole pela via militar através das erradamente designadas

“Campanhas de Pacificação”, que, na prática, se revelariam autênticas campanhas de

construção de uma nova ordem soberana que levantaram enormes resistências locais,

nomeadamente no caso de Moçambique. O envolvimento dos oficiais que participaram

em todo este processo na defesa e na administração do Império, iria também conferir à

tropa uma base de legitimação da sua actuação na frente doméstica. Os protagonistas

maiores das aventuras coloniais de 1894-1897 seriam condecorados e promovidos nas

suas carreiras. Quase todos passariam a exercer os mais elevados cargos na hierarquia

política metropolitana como governadores coloniais, deputados e ministros nos anos

finais da Monarquia, assumindo também um evidente protagonismo durante a Primeira

3

República. Um deles chegou mesmo a ocupar o mais alto lugar na chefia do Estado em

1926.

As principais figuras militares de então, com principal destaque para Mouzinho

de Albuquerque, seriam escolhidas para conferir legitimidade a uma retórica patriótica e

belicista, em relação ao ultramar, que atravessou os vários tipos de regimes políticos em

Portugal até ao terceiro quartel do século XX, sem que alguma vez se questionasse

oficialmente a matriz colonial do país. Foi, justamente, em proveito da defesa

intransigente do Império pluricontinental que o Estado mobilizou e desviou os recursos

que escasseavam para a sua modernização interna, travando, a partir de 1894, aquela

que seria a sua primeira guerra ultramarina dos tempos modernos, em várias frentes de

combate, repartidas por África, Índia e Timor.

A alteração do paradigma ultramarino e o início do ciclo africano do

Império

A chamada de atenção de forma insistente e com consequências para a questão

africana e para a necessidade de reconstrução do Império colonial nos finais do século

XIX ficou a dever-se à conjugação de uma multiplicidade de factores. Ainda antes das

causas externas assumirem um papel fundamental na aceleração do processo histórico, o

país assistiu ao aparecimento de um novo tipo de ideologia, que rapidamente angariou o

consenso generalizado das elites políticas e da sociedade de uma forma geral, ao ponto

de se transformar no primeiro fenómeno ideológico de massas do Portugal

contemporâneo. Um nacionalismo extremista de ascendência colonial começou a ser

notado em meetings cada vez mais concorridos nas ruas dos principais centros urbanos

do reino depois de, em finais de 1878, o executivo do Partido Regenerador ter decidido

entregar a exploração e administração dos recursos mineiros, agrícolas e florestais numa

zona com cerca de 100.000 hectares, em Moçambique, a uma empresa privada liderada

por Paiva de Andrade, um capitão do Exército. Para a oposição, essencialmente

centrada no Partido Progressista, mas também, em menor escala, no emergente Partido

Republicano, a dita concessão representava um escândalo sem nome, adensado pela

suspeita de envolvimento no negócio de capitais britânicos. De acordo com o ponto de

vista destes sectores políticos, oferecia-se de presente a estrangeiros uma fatia

importante do “Império” e desacreditava-se o país aos olhos da Europa, confessando-se

a incapacidade nacional para administrar os assuntos coloniais. Por outro lado, para os

4

mais próximos da sensibilidade governamental apenas se retomava a ideia de entregar

parte do aproveitamento do território moçambicano a entidades não públicas, mas com

recursos suficientes para rentabilizar uma possessão cujas ligações à metrópole eram

praticamente inexistentes3. Em última análise, o que estava em causa era a alienação de

uma imaginada soberania lusitana em África, em terras potencialmente ricas ou de valor

estratégico acrescentado. Esta circunstância afigurava-se completamente inaceitável

para o patriotismo exacerbado exibido pela facção mais radical do Partido Progressista,

que elegeu o tema como arma de arremesso político e forma de protesto pela sua falta

de acesso ao poder, bloqueado pelo Partido Regenerador e pelo rei D. Luís4.

O assunto pela sua importância viria a ser discutido em ambas as câmaras do

parlamento português, acabando por ser sancionado por decreto do governo em finais de

Dezembro de 1878, apesar da intensa pressão política exercida pela oposição e pela

mobilização de sentido contrário da opinião pública angariada em comícios que

sobressaltaram o reino nas semanas seguintes. Naturalmente, adiante-se, quando os

progressistas substituíram os regeneradores à frente do executivo, no ano seguinte,

prometeram logo que a polémica concessão seria revogada para não haver dúvidas sobre

a sua posição. Na realidade, contudo, a sociedade liderada por Paiva de Andrade, que

acabou por congregar capitais franceses, ainda chegou a montar várias expedições na

região de Tete, no vale do Zambeze, mas as exigências criadas pelo novo governo

progressista de 1879-1881, acabaram por conduzir à sua liquidação, já em 1883, sem se

ter alcançado o cumprimento dos objectivos iniciais.

Todavia, e ainda antes deste cenário se tornar uma realidade, o Partido

Regenerador nos meses seguintes em que se manteve no poder, muito por força da

orientação do ministro Andrade Corvo, viera reforçar uma aproximação diplomática à

Grã-Bretanha por via da assinatura do Tratado de Lourenço Marques (1879), pelo qual

se pactuou a construção de uma linha de comboio entre Lourenço Marques e o

Transvaal, isentando de direitos alfandegários as mercadorias em trânsito naquele porto

moçambicano e concedendo facilidades aos britânicos para desembarcarem tropas e

munições em tais paragens. Mais uma vez, colocava-se em causa o domínio nacional

3 Sobre o escasso domínio soberano efectivo dos portugueses em Moçambique em finais do século XIX,

ALBUQUERQUE 1893:7 e 22. 4 Com a excepção de alguns meses, em 1877-1878, o Partido Regenerador encontrava-se no poder desde

1871. O Partido Progressista, fundado em finais de 1876, procurava aparecer como alternativa credível

aos regeneradores que ameaçavam eternizar-se à frente do executivo com o apoio do rei.

5

sobre uma das principais “cidades” de Moçambique5, cuja soberania era discutida com

os ingleses, tendo a mesma sido diplomaticamente confirmada, ao cabo de grandes

trabalhos, em 1875, pela arbitragem internacional francesa do presidente Mac-Mahon.

Como o referido Tratado de Lourenço Marques foi assinado em segredo no último dia

em que o governo se encontrava em funções a sua legitimidade seria logo contestada.

Quando chegou a sua vez de formarem um governo e deparando-se perante este

compromisso diplomático, os progressistas nem sequer atenderam ao argumento de que

a construção desta infra-estrutura ferroviária era essencial para o progresso do sul da

província ultramarina da costa do Índico. Para além disso, o mesmo executivo

regenerador havia rubricado, ainda em finais de 1878, o então designado Tratado da

Índia, que implicava a cedência do monopólio sobre o sal à Grã-Bretanha em tais

paragens mediante uma indemnização anual calculada em cerca de 160 contos6. Previa-

se ainda a construção de um caminho-de-ferro que ligaria o porto de Mormugão, no

território de Goa, até à fronteira da Índia inglesa, obra que seria das mais importantes

para o desenvolvimento da Ásia portuguesa. Os progressistas, contudo, viam este

acordo como uma entrega pura e simples da possessão à Grã-Bretanha. Sobretudo, a sua

facção mais extremista, onde pontificavam alguns membros do extinto Partido

Reformista, tudo fez para a denunciar entre a opinião pública, nos bancos do

parlamento, nas páginas dos jornais e nos palanques dos meetings que arregimentaram

nos grandes centros urbanos do reino.

Nos anos seguintes, esta retórica anti-britânica criada e sistematicamente

alimentada pela facção mais “avançada” do regime monárquico acentuou-se a propósito

do domínio sobre o baixo Congo. No plano externo, Portugal evocava os direitos

históricos de descoberta e conquista sobre a região da foz do rio Zaire, embora estivesse

longe de poder assegurar qualquer tipo de ocupação efectiva na zona. Depois de

negociações que duraram praticamente dois anos, a 26 de Fevereiro de 1884, ambos os

países assinaram o chamado Tratado do Zaire, internacionalmente conhecido como o

Tratado do Congo. Pelo acordo, os ingleses reconheciam a soberania portuguesa nos

territórios das duas margens do rio Zaire até às fronteiras daquele que viria a ser o

5 Lourenço Marques de cidade pouco mais tinha do que o nome, apenas atingindo oficialmente essa

designação administrativa em Novembro de 1887. A categoria de vila somente lhe tinha sido atribuída em

Dezembro de 1876. Na realidade, a sua expansão urbana só então tinha arrancado. Se em 1857 apenas

albergava 914 habitantes – dos quais menos de uma centena de europeus –, em 1895 chegaria aos 2.799

habitantes, dos quis 1.343 brancos. Cerca de dois anos mais tarde, em Dezembro de 1897, viveriam na

localidade 4.902 pessoas. ROCHA 2006:64-68. 6 Este montante representava 2,3% do défice das contas públicas em 1878-1879.

6

futuro Estado Livre do Congo, em troca de facilidades no comércio e navegação. O

Estado português, por este arranjo e como contrapartida, mostrava-se disposto a alienar

direitos de soberania no norte da Zambézia, em Moçambique, sob o pretexto de dar

combate ao tráfico de escravos com maior eficácia. Todavia, para a oposição

progressista e republicana, o Tratado do Zaire – ou do Congo –, mais uma vez assinado

por um governo afecto ao Partido Regenerador, seria mais prejudicial para os interesses

nacionais do que o anterior tratado de Lourenço Marques porque concedia

incomparáveis vantagens mercantis à Bélgica, à Grã-Bretanha e à França, enquanto a

dominação lusitana na região era reduzida a uma expressão pouco mais do que nominal.

Em Março de 1884, o acordo seria apresentado publicamente nos parlamentos de

Londres e Lisboa. Foram mais as vozes a contestar esta combinação do que aquelas que

a aprovaram. Para além da discordância dos governos de Paris, de Berlim e de Leopoldo

II da Bélgica, excluídos do negócio, na Grã-Bretanha, as associações comerciais e anti-

esclavagistas opuseram-se ao eventual estabelecimento de Portugal na região da foz do

Zaire7. Neste contexto de falta de aprovação interna motivada pela pressão da opinião

pública doméstica, o executivo britânico não chegou a submeter o tratado a ratificação

parlamentar e o mesmo seria abandonado.

Em Portugal, pelo seu lado, as reacções de oposição à “concessão Paiva de

Andrade” e aos Tratados da Índia, de Lourenço Marques e do Zaire sustentaram, por

razões de puro oportunismo político, uma retórica nacionalista incentivada tanto pelos

liberais progressistas como pelos republicanos e colocaram as questões ultramarinas no

centro do debate da governação, constituindo um factor de divisão entre os principais

partidos do sistema.

Quando foram conhecidos os resultados negativos para os interesses nacionais

da participação da delegação portuguesa da Conferência de Berlim (1884-1885), a

mesma facção progressista, de novo empurrada para os bancos da oposição, reutilizou

na frente interna os argumentos avançados anteriormente, aumentando a entoação da

oratória nacionalista, sempre com o apoio da causa republicana. Na acta final da

conferência ficara definido o princípio da livre navegação e comércio nas bacias dos

rios Níger e Congo, passando-se, simultaneamente, a exigir a posse efectiva dos

territórios e já não apenas a evocação vaga de um direito de precedência, como forma de

prover à ocupação territorial apenas no litoral, mas não no interior como, raramente é

7 FERNANDES 2010a:173-177.

7

referido8. Em Portugal, estes resultados foram recebidos com natural desencanto, mas

tiveram o condão de reavivar a atenção das elites governantes e da opinião pública para

o estado de abandono a que estavam votadas as colónias. No quadro da corrida em torno

da posse efectiva dos territórios em causa e já conhecedores do interesse manifestado

pelas potências europeias, tornava-se urgente para os líderes políticos portugueses

proceder à ocupação dos vastos espaços situados no interior de Angola e Moçambique.

Para além disso, tomava-se consciência de que tinha terminado de vez a era da

hegemonia singular no campo colonial, até então assegurada pela Grã-Bretanha,

passando-se neste domínio para um mundo multipolar com a entrada em palco de novas

potências ultramarinas como a Alemanha. Esta inversão da cena internacional iria

obrigar Portugal a redesenhar os seus acordos diplomáticos, questionando a tradicional

dependência exclusiva em relação a Londres, que, aliás, tinha abandonado a

representação lusitana à sua sorte em Berlim.

A declaração do Ultimato britânico (1890) veio, naturalmente, ampliar a pressão

exercida por intermédio dos principais países europeus sobre a capacidade nacional em

possuir e administrar vastos territórios longe da metrópole, deixando as principais

cidades do país ao rubro devido ao fervor patriótico anti-britânico latente9. As

manifestações ocorridas na Baixa de Lisboa nos inícios de 1890 e as humilhações

posteriores, impostas por dois tratados luso-britânicos (1890-1891) tidos à data como

ultrajantes, apenas serviram para legitimar o caminho que se veio a escolher para

reconstruir a dimensão imperial do Estado português.

Neste contexto, o insulto do Ultimato não poderia ter tido outra resposta. A saída

negociada tentada pelos dirigentes nacionais era a única possível. O exemplo espanhol

demonstrou esta tese com uma simplicidade evidente. A reacção do governo de Madrid

à afronta americana por causa da questão de Cuba levou a uma guerra colonial, em

1898, em resultado da qual o vizinho ibérico acabou por se ver amputado dos ramos

mais significativos do seu império colonial. Num exercício contrafactual legítimo

8 ALEXANDRE 2008:156.

9 A 11 de Janeiro de 1890, o governo de Londres, sob a forma de Ultimato, intimou as forças lusitanas a

retirarem-se de uma zona disputada entre os dois países localizada justamente entre Angola e

Moçambique, ameaçando com o corte das relações diplomáticas, ao mesmo tempo que a marinha

britânica iniciava manobras em Gibraltar sugerindo a eminência de um ataque a Lisboa. O governo

progressista cedeu e dois dias depois, demitiu-se perante a indignação nacional, potenciada, sobretudo,

por sectores republicanos que passaram a acusar o rei e os responsáveis dos dois grandes partidos

monárquicos pela situação criada. Era o fim do chamado “Mapa Cor-de-Rosa” e das pretensões lusas de

reunir os ditos territórios entre Angola e Moçambique numa vasta província sob o controlo português.

ROTBERG 1988:308 e TEIXEIRA 1990.

8

poderia pensar-se que se o governo português (independentemente da sua coloração

partidária, incluindo os republicanos) se tivesse oposto à ofensa britânica de 1890, tal

reacção implicaria a perda da pretensão nacional em ocupar os territórios remanescentes

em Angola e Moçambique e alienaria as possessões nacionais na Índia. Toda a história

do século XX português seria bem diferente.

O início do ciclo africano do império português iria ter Moçambique como pano

de fundo, a partir da década de 1870. As atenções do Portugal metropolitano viraram-se

para a província das margens do Índico por esta ser, então, considerada como a que

apresentava maior futuro em termos de aproveitamento económico, assim como pelo

interesse estratégico que começou a despertar junto dos grandes países europeus

interessados em marcar uma posição na “scramble for Africa”. Moçambique passou a

ser encarada como a terra da redenção, onde se encontraria, simultaneamente, a solução

para a crónica debilidade das contas públicas nacionais e onde Portugal poderia afirmar-

se no plano externo como potência colonial de alguma grandeza, ignorando-se as

resistências que tal projecto iria provocar localmente.

O triunfo da solução militar

O Império, no sul do continente africano, poderia ter sido erguido por via da

integração económica com os territórios ingleses, como chegou a ser pensado, mas

dados os antecedentes a proposta apresentava custos políticos demasiado elevados que

ninguém quis assumir10

. Em 1892, adoptou-se uma política pautal proteccionista, que

acabaria por inviabilizar qualquer tentativa de desenvolvimento económico na África

Oriental portuguesa, isto porque as limitações do mercado nacional, exíguo e pobre,

seriam, naturalmente, transpostas para a região. Passou-se, então, para o caminho mais

fácil, mais barato e até mais demagógico, o da via das armas.

10

Já depois do Ultimato, no segundo semestre de 1890, o ex-ministro da Fazenda progressista, Mariano

de Carvalho, foi enviado a Moçambique, onde permaneceu durante quase seis meses para proceder ao

levantamento das riquezas da região. Nunca nos tempos modernos, um antigo governante nacional com a

importância simbólica de Mariano de Carvalho tinha passado tanto tempo nas colónias. Quando regressou

à metrópole Mariano de Carvalho apresentou um vasto e completo plano de reordenamento

administrativo, económico e financeiro de Moçambique que na época não motivou grandes adesões por

parte dos responsáveis políticos. Quando, pouco depois, Mariano de Carvalho regressou ao executivo, em

1891-1892, o mesmo programa chegou a ser discutido em Conselho de Ministros, mas a oposição de

alguns dos seus colegas de gabinete, nomeadamente de Júlio de Vilhena, e a situação política interna,

agravada com o escalar da crise financeira, inviabilizou novamente a adopção do tal roteiro de

desenvolvimento de Moçambique, talvez o mais consistente alguma vez pensado para qualquer das

colónias. PINA 1893:45-59 e 157-165.

9

Quando, nos finais de 1894, Lourenço Marques se viu cercada por milhares de

nativos de origem Vátua, era impensável ao governo de Lisboa pedir ajuda a Lord

Salisbury ou mesmo a Cecil Rhodes. As autoridades na metrópole reagiram mandando

soldados para tentar controlar a situação, mas havia uma diferença relativamente ao

passado recente. O investimento em recursos humanos assumia agora proporções nunca

vistas antes. Entre Outubro de 1894 e Abril de 1895 seriam enviadas três expedições

militares e um total de 2.886 homens. Desde o século XVI que Portugal não embarcava

tanta tropa com destino a África. Para além desta componente táctica, o governo

nomeou um antigo ministro da Marinha e Ultramar, o conhecido jornalista e dramaturgo

António Enes, como comissário régio para governar Moçambique com poderes

executivos quase ilimitados.

O aumento dos efectivo militares e a reconfiguração da forma de administração

do território entregue a um civil, acompanhada da modernização tecnológica ao nível do

armamento empregue nos combates com os africanos, traduziu-se numa inversão dos

resultados operacionais. Do continente africano a opinião pública portuguesa apenas

estava habituada a receber notícias de derrotas e humilhações que, normalmente,

custavam as vidas dos poucos soldados que tinham a má fortuna de serem enviados para

essas latitudes. Agora, pela primeira vez de forma sistemática, ouvia falar de vitórias e

feitos extraordinários. As notícias dos sucessos obtidos nas campanhas de 1895-1896

animaram o executivo para prosseguir o seu esforço militar em Moçambique. Ao

mesmo tempo, desapareciam da circulação as notícias referentes às resistências que a

tropa branca, com o auxílio, poucas vezes comentado, de auxiliares recrutados entre os

locais, ia enfrentando.

As batalhas de Marracuene, Magul, Coolela e Manjacaze – em 1895 – e as

incursões na zona de Maputo e em Gaza – já em 1896 – todas registadas no centro-sul,

materializaram-se em vitórias para o Exército dos brancos, embora sempre com o apoio

não negligenciável de auxiliares nativos, assunto a que nos propomos voltar em breve.

A mais importante destas acções registou-se a 28 de Dezembro de 1895, quando um

obscuro capitão do Exército, Mouzinho de Albuquerque, aprisionou Gungunhana, o rei

dos Vátuas, em Chaimite. Para além de ser um aliado dos britânicos na zona, o líder

africano vinha criando problemas aos portugueses havia muito tempo. A sua captura

tinha sido muito reclamada e tentada, mas nunca conseguida. Até então.

O feito, da perspectiva da opinião pública portuguesa, alcançado nos fins de

Moçambique pouco depois do Natal de 1895, causou uma enorme sensação na

10

metrópole. A proeza era enorme. Com esta prisão colocava-se um ponto final, esperava-

se, ao predomínio do “último dos três povos guerreiros e poderosos, independentes de

facto, que existiam na África Austral: Zulus, Matabeles e Vátuas”11

. Quando soube da

notícia, o próprio rei D. Carlos escreveu a Hintze Ribeiro, líder do governo regenerador

da época, felicitando-o vivamente “como português e como chefe do exército” pelo

magnífico desempenho dos militares.

Em Lisboa, a façanha ganhou proporções nunca alcançadas, tornando-se na

coroa de glória de Mouzinho de Albuquerque, logo apresentado como um ousado

militar. O pequeno contingente – 51 soldados – protagonista do episódio de Chaimite

entrou quase imediatamente no domínio do mito. A desproporção de forças – cerca de

seis dezenas de africanos para cada europeu – ajudou à formação e à fixação de uma

imagem lendária. O feito foi elevado à categoria de obra-prima do génio militar lusitano

e o seu artífice considerado o novo herói nacional.

Aos olhos do português comum, a participação deste capitão em campanhas

militares decisivas para o restabelecimento de uma ordem portuguesa numa parcela de

África, o seu papel enquanto organizador e líder dessas mesmas campanhas e a sua

actividade à frente da administração colonial em Moçambique seriam ultrapassados pela

ampliação do eco deste episódio descrito como transcendente.

Mouzinho de Albuquerque, que se transformou numa espécie de “mito útil” do

colonialismo português, seria abundantemente recompensado. Para começar foi

designado, nos inícios de 1896, como governador-geral de Moçambique. O próprio

decreto da sua nomeação transpirava já um tom hiperbólico, pois “tendo entrado na

Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar o relatório do capitão de

cavalaria Joaquim Augusto Mouzinho de Albuquerque, pelo qual se reconheceu

oficialmente haver esse capitão praticado o heróico feito de aprisionar, no meio de

milhares de vátuas, o régulo Gungunhana, pondo assim brilhantíssimo termo à guerra

empreendida em defesa da honra nacional nas longínquas regiões de África, onde a

bandeira portuguesa foi de todas as nações europeias a primeira a tremular; e querendo

eu dar a esse valente oficial um público testemunho de alto apreço e de subida

consideração em que tenho o arrojo e o denodo com que se distinguiu entre todos os

seus camaradas do exército e da armada, que por muitos actos de incontestável bravura

as assinalaram em tão rude campanha”. Não haveria muitos militares com hipóteses de

11

ALBUQUERQUE 1896:21.

11

receber publicamente tamanha manifestação de apreço por parte do governo da época.

Depois seria promovido a major, acabando por ser nomeado como novo comissário

régio, em Moçambique, em substituição de António Enes, com quem, aliás, acabou

incompatibilizado pessoalmente, ainda em finais de 1896. Mouzinho de Albuquerque

viria a pedir a demissão do cargo de comissário régio, em Julho de 1898, desavindo com

a tutela política metropolitana, depois de ter obtido outros sucessos, mas também

importantes derrotas (como no caso da Campanha dos Namarrais), noutros pontos do

território moçambicano.

Seja como for, para além dos resultados militares dos quais chegavam à

metrópole apenas notícias, ainda que sensacionais, a presença portuguesa em paragens

moçambicanas materializou-se, então, numa representação visível, uma vez que o

prisioneiro africano Gungunhana seria recambiado para a Europa e exibido nas ruas de

Lisboa como um troféu perante multidões pasmadas e curiosas, assunto a que, pelo

impacto produzido junto da opinião pública, voltaremos mais à frente12

. Este tipo de

actuação parecia legitimar a acção tida por pacificadora e civilizadora dos europeus no

continente. Não estranhamente, o êxito elevou um simples oficial do Exército aos

píncaros da fama e tornou o seu nome conhecido em todos os cantos do país.

Praticamente, não se elevaram vozes críticas ao que tinha sucedido.

Por esta via, o mesmo Mouzinho de Albuquerque teve direito à sua corte de

admiradores13

, recrutados entre a elite política, intelectual e cortesã do reino14

. Os

poucos que se manifestaram em desacordo com os seus procedimentos seriam

rapidamente submersos pela onda geral de adesão ao feito “glorioso” de Chaimite. As

fraquezas do rei Vátua e o papel de outros militares, que prepararam o terreno e

facilitaram a acção de Mouzinho de Albuquerque, foram menosprezados15

. As

características da sua personalidade e a necessidade de o país encontrar um “salvador da

pátria” compuseram o resto do quadro, numa altura em que o aparecimento de uma

espécie de figura providencial, capaz de resgatar a honra nacional perdida, era bem

necessária. O seu modo de ser tornou-o conhecido. Era um homem com uma apetência

natural pelo risco, violento, intempestivo, brusco, com um certo gosto pela acção

espectacular medindo os seus actos em função do impacto que provocava nos outros16

.

12

BRETES 1989. 13

CARVALHO 1985:76-77. 14

COUTINHO 1938:64. 15

CARVALHO 1985:76-77. 16

CARVALHO 1985:76-77.

12

Mouzinho de Albuquerque não foi sequer o oficial mais valoroso do ponto de

vista operacional, em Moçambique. Outros se destacariam. Para além disso, todas as

campanhas em que esteve envolvido levantaram enorme polémica. O próprio golpe de

Chaimite, um feito temerário, sem dúvida, e que lhe valeu a glória e a imortalidade,

apenas por mera casualidade não terminou em tragédia. Todo o episódio da captura de

Gungunhana resultou mais de um golpe de sorte do que de génio militar, embora não

tenha sido essa a leitura a que se passou a ter acesso nos meios metropolitanos. Um

grupo composto por cerca de meia centena de soldados europeus por muito bem

equipado que estivesse, e não era o caso, dificilmente poderia escapar ileso numa

situação de confronto aberto caso se tivesse deparado com resistência organizada. A

ousadia dos brancos valeu pelo efeito de surpresa que provocou nos homens de

Gungunhana, que não souberam ou puderam reagir atempadamente.

Seja como for, com o sucesso nasceu uma estirpe de “africanistas” sem par. Este

grupo de “centuriões” iria tornar-se a curto prazo numa espécie de “Ínclita Geração” do

final do século XIX17

. O lugar cimeiro da lista seria mesmo ocupado por Mouzinho de

Albuquerque, elevado à condição de “santo padroeiro” dos seus camaradas de armas,

contribuindo de forma decisiva para o renascimento moderno do mito da “herança

sagrada” que os lusitanos tinham o dever de preservar em outros continentes, missão

que iria conferir aos militares uma legitimidade acrescida para influenciar a política a

nível doméstico.

Devido às proezas nunca alcançadas nos anos recentes, o conjunto de oficiais

envolvidos nas operações de 1894-1898 teve o condão de despertar o país para a

realidade colonial e de promover a afirmação de Portugal perante o exterior numa altura

em que o prestígio nacional em África já tinha conhecido melhores dias. Os inimigos

não eram apenas as azagaias e as espingardas dos Vátuas, mas também os apetites que a

debilidade da presença portuguesa despertava nas potências europeias, nomeadamente

na Grã-Bretanha e na rival Alemanha. Agora tudo tinha mudado. Ao entrar no século

XX, a elite política nacional tinha já interiorizado a importância que os feitos militares

assumiram como única garantia da afirmação da soberania nas províncias de além-mar.

Apesar dos movimentos armados de oposição encontrados em Moçambique à

construção desta “nova ordem colonial”, mais activos a partir de finais de 1894 e

notados nesta fase até 1897, do “ataque” a Lourenço Marques à chamada “Campanha

17

TELO 1994:186 e PELISSIER 2006:203-312.

13

dos Namarrais”, a superioridade militar europeia ficou a dever-se ao investimento em

recursos humanos europeus como não havia sido realizado no passado recente, aos

meios tecnológicos modernos empregues no combate a essa resistência e ao emprego

indiscriminado e raramente valorizado de tropas africanas coercivamente convocadas.

O efeito das representações

A maior parte dos militares envolvidos nas vitórias conseguidas durante o ano de

1895, em Moçambique, regressou à Europa uma semana antes do episódio de Chaimite.

Com a tropa seguia António Enes, que se preparava para encerrar a sua missão.

Mouzinho de Albuquerque pediu para ficar, desejo que o comissário régio lhe

concederia18

. Em Angola, primeiro, e em Cabo Verde a seguir, todos seriam recebidos

como autênticos heróis, sendo calorosamente ovacionados por populações locais.

A chegada dos expedicionários a Lisboa deu-se a 19 de Janeiro de 1896. Quando

se produziu tal acontecimento já se sabia na capital do aprisionamento do rei

Gungunhana, pelo que o desembarque do comissário e dos militares deixou a população

de Lisboa quase em êxtase, tal o clima de efervescência africanista que se viveu por

aqueles dias no reino. Toda a imprensa noticiou o acontecimento rendida aos

regressados. Algumas revistas publicaram várias gravuras alusivas à parada militar

ocorrida em plena Baixa da cidade perante a aclamação da população deslumbrada,

contribuindo este tipo de representações para aumentar os ecos dos feitos alcançados na

província da África Oriental19

. Nunca “em nenhum tempo talvez se receberam os

valentes soldados deste país com júbilo maior, nem com mais carinhoso entusiasmo”,

escreveu-se na época20

.

Se era necessária uma consagração da política nacional em Moçambique, os

resultados obtidos durante 1895 serviram de motivo para exteriorizar os sentimentos de

adesão nacionalista aos feitos da tropa. Como era de prever, o desfile dos guerreiros

pela cidade seria muito concorrido. Toda a família real e os membros do executivo

dignaram-se a assistir à passagem do cortejo. Por entre flores e vivas, “a veemência

18

NUNES 1955:12-13. 19

O Ocidente, de 25 de Janeiro de 1896. 20

JÚNIOR 1896:321.

14

atingiu o seu mais elevado grau”21

. Da janela do ministério da Justiça, D. Amélia – a

rainha – e D. Maria Pia – a rainha-mãe – presenciaram tudo.

Os militares tiveram, então, de enfrentar uma nova campanha, a do

reconhecimento popular pelos seus valorosos feitos, assim considerados pela opinião

pública mobilizada pela imprensa. Toda a gente queria ouvir as narrativas dos

vencedores do sertão de Moçambique. O coronel Eduardo Galhardo, o comandante da

tropa, mal colocou o pé em terra foi logo convidado para proferir uma palestra sobre as

suas acções no Teatro de São Carlos, o mais importante de Lisboa. O próprio rei D.

Carlos dignou-se a assistir à função, abraçando os oficiais regressados à metrópole na

tribuna real. Num instante de exaltação, o monarca deixou-se arrebatar pela emoção do

momento. De acordo com as suas palavras, estava-se num tempo novo, aquele em que

se reacendeu “a crença e a esperança como quando os nossos galeões iam para as

descobertas do mundo”, terá afirmado, para logo de seguida completar com entusiasmo,

que “é esta a lição dos valentes que voltaram de África. Eu próprio, na hora do perigo,

direi a meus filhos: ide, parti. Segui o exemplo desses heróis”22

.

Durante semanas sucederam-se as festas, as homenagens, as iluminações em

edifícios oficiais, os banquetes, as paradas, as recepções. A fachada da Câmara

Municipal de Lisboa e as janelas das secretarias de Estado no Terreiro do Paço seriam

decoradas a preceito. A 20 de Janeiro, a igreja de Santa Maria de Belém seria palco de

um Te Deum, ao qual se dignou assistir mais uma vez o rei, para homenagear os

conquistadores africanos.

Individualmente, os principais triunfadores não foram esquecidos. O coronel

Eduardo Galhardo, o rosto militar visível da vitória seria abundantemente

recompensado, assim como o civil António Enes. Receberam medalhas, condecorações

e cargos na hierarquia do Estado, factos sempre muito referenciados pela imprensa.

Os vencidos também seriam alvo das atenções da opinião pública. Após a

captura, Gungunhana e o seu grupo passaram quase dois meses em Lourenço Marques.

Depois seria embarcado, juntamente com os restantes prisioneiros de Chaimite, para

Lisboa. A chegada à metrópole aconteceu a 13 de Março de 1896. Assim que

desembarcaram, os guerreiros africanos foram metidos em carros e, com uma escolta da

Guarda Municipal, foram passeados pela Baixa da cidade e mostrados como troféus

perante a estupefacção do muito povo curioso que observou tão inédita cena. Não se

21

NORONHA 1935:28. 22

MARTINS 1930:335.

15

registaram desacatos nem se notaram movimentações hostis contra os prisioneiros. Por

se encontrar ainda em Moçambique, Mouzinho de Albuquerque, pelo seu, lado, como se

compreendia, foi vitoriado e aclamado pela imprensa como o grande vencedor ausente.

Também António Enes seria recordado em tão augusta hora. Os expedicionários foram,

igualmente, retratados nas páginas dos jornais com o clima africano a marcar-lhes o

rosto. Apareceram como um conjunto de “bons rapazes”, superiormente comandados,

inocentes, quase sem consciência da sua bravura23

. O régulo, por sua vez, seria descrito

como um homem derrotado, pachorrento e resignado à sua sorte, como convinha à

retórica dos vencedores.

O rei africano ainda foi colocado em prisão domiciliária no forte de Monsanto,

nos arredores de Lisboa, onde seria bem tratado e muito visitado, para depois ser

enviado para Angra do Heroísmo, onde chegou a 27 de Junho de 1896. Ainda antes de

ser mandado para os Açores, centenas de pessoas acorreram à serra do Monsanto, para o

observar numa autêntica romaria popular. Depois de vencido, Gungunhana inspirou

alguma comiseração. Transformou-se num “objecto” pacífico, que poderia ser visto

pelas famílias. A sua figura e memória passariam a fazer parte do imaginário nacional

daqueles anos, servindo até como tema de fados e viras24

.

O captor regressaria mais tarde, chegando à capital do império apenas a 15 de

Dezembro de 1897. Seria um novo dia de festa para Lisboa. A imprensa exultou com a

volta do filho pródigo. O Diário Ilustrado, um dos jornais de referência da época, quase

esgotou os 60.000 exemplares do número especial de 8 páginas, acompanhado de

retratos e gravuras, dedicado a tão comentado tema por toda a imprensa. Num país onde

à data quase 80% da população não sabia ler, este número não pode deixar de

impressionar, mesmo que o analfabetismo urbano fosse consideravelmente inferior.

O rei D. Carlos foi esperá-lo em pessoa, acompanhado do príncipe herdeiro, D.

Luís Filipe. O facto inusitado não era de estranhar, uma vez que o soberano e o militar

mantinham uma relação pessoal de amizade, facto também destacado pelos jornais.

Todos queriam cumprimentar a figura do momento. Ouviam-se vivas à pátria e a

Mouzinho de Albuquerque pelas ruas próximas do lugar do desembarque. Era difícil dar

um passo. No ar, estalaram foguetes vincando o ambiente festivo que se vivia25

. Todo o

acto parecia encenado para enaltecer a glória do chefe militar regressado em triunfo. A

23

Diário Popular, de 14 de Março de 1896, p. 1. 24

BRETES 1989:76-95. 25

NORONHA 1906:410.

16

rainha D. Amélia também ficou vivamente impressionada com a cena. Contou mais

tarde, que “quando este herói regressou a Portugal, em 1897, nós o esperávamos no

Arsenal, Carlos, as crianças e eu. Desembarcou da galeota real como um personagem

lendário, toda aureolado da sua glória, exactamente como os cavaleiros que eu via nos

livros de imagens quando era criança”.

No próprio dia, o governo encheu-lhe o peito de condecorações26

. Mouzinho de

Albuquerque não podia escapar à beatificação que se preparava em torno do seu nome.

Como apareceu na imprensa, “depois de uma vida cheia de acidentes e de perigos, mas

esmaltada por um verdadeiro brilho”, o major vinha à metrópole para ser coroado de

glória. A pátria ficava-lhe a dever “incontestáveis e relevantíssimos” serviços. Em

África, pela sua “coragem, pela sua valentia, mudou em um momento toda a nossa

situação colonial, levantando o prestígio de todo o país. A acção heróica de Mouzinho,

aprisionando o Gungunhana, foi por assim dizer, um raio de sol que veio de repente

iluminar-nos, dar-nos vigor e esperança, quando bem desalentados estávamos”,

escreveu-se.

Para além do tom entusiasmado dos jornais, Lisboa não foi ingrata para com o

herói. Os vereadores da Câmara Municipal tencionavam abrir uma praça na capital com

o nome do vencedor de Chaimite27

. No percurso até casa, uma multidão vitoriou-o de

forma espontânea, sincera e agradecida. Se era necessária uma ovação pública para

justificar os actos do major no sertão africano, a manifestação de boas vindas em plena

capital do Império servia de exercício de legitimação das suas correrias. Todavia, outra

homenagem o aguardava. À porta da sua residência encontrava-se José Luciano de

Castro, o presidente do Conselho de Ministros em funções. Não tinha sido este chefe

progressista a enviá-lo para África, mas seria dele que dependia agora o seu futuro, mas

para já o tempo era de festejo.

A agenda da aclamação de Mouzinho de Albuquerque encontrava-se

sobrecarregada. Nessa mesma noite, o major seria alvo de mais uma reverência. A

lotação do Coliseu dos Recreios, uma das mais concorridas casas de espectáculos de

Lisboa, esgotou-se para assistir à festa preparada pela Tuna Académica28

. Cerca de

5.000 pessoas no recinto bateram palmas durante 10 minutos. O rei convidou-o para um

banquete na sua residência no palácio da Ajuda, onde estiveram 200 convidados. No dia

26

Correio da Noite, de 15 de Dezembro de 1897, p. 2 e Boletim Militar do Ultramar, nº 12, de 4 de

Dezembro de 1897, p. 255. 27

Correio da Noite, de 11 e 14 de Dezembro de 1897, p. 1. 28

MARTINS 1965:151.

17

seguinte, a Associação Mocidade Católica promoveu um Te-Deum na Sé em acção de

graças pelo regresso do filho pródigo, a que se dignou assistir a Rainha D. Maria Pia.

As comemorações prolongaram-se durante dias. A 18 de Dezembro, foi a vez de

uma multidão estimada em cerca de 4.000 pessoas vitoriar o comissário régio, em

sessão desta vez realizada na muito apropriada Sociedade de Geografia de Lisboa. A

função contaria com um espectador especial, o rei, a quem coube fazer a oração de

exaltação das grandes vitórias coloniais e dos oficiais que as tinham conseguido. Em

determinada passagem da sua intervenção, D. Carlos afirmou, que “já vão passados dois

anos que um frémito de alegria percorreu Portugal, de norte a sul: foi quando chegou a

notícia das nossas primeiras vitórias alcançadas em África por um punhado de valentes.

Esse frémito, porém, cresceu e transformou-se num verdadeiro entusiasmo com o feito

de Chaimite e aprisionamento do Gungunhana. Foi esse heróico feito praticado por

Mouzinho de Albuquerque, o qual tendo partido para África como simples capitão de

cavalaria, apenas conhecido pelos que, como eu, se honravam com a sua amizade,

voltou dali um herói coberto de aplausos por todos, merecedor do espanto geral pelas

qualidades de soldado, que o tornaram digno de condecoração que traz ao peito: Valor,

Lealdade e Mérito. Pátria e Rei: a família Mouzinho sempre teve por divisa: a Pátria e o

Rei. Foi pela Pátria e pelo Rei que Mouzinho de Albuquerque trabalhou e venceu; e por

isso, e por bem servir tenho o infinito prazer de lhe entregar as medalhas que

gloriosamente ganhou”29

.

A multidão aplaudiu as palavras do monarca de pé. Se dúvidas restassem, a

sessão, onde abundou o fervor nacionalista de cariz colonial, revelava como o país

estava rendido a Mouzinho de Albuquerque, elevado à categoria do novo herói nacional.

O soberano não se cansou de lhe distribuir elogios e na véspera de Natal nomeou-o

como seu ajudante de campo. Todos estes louvores seriam, como era de esperar,

relatados nas páginas dos jornais.

A agenda de solenidades não se ficou pelos eventos realizados na capital. O

comissário régio, como era comum nestas alturas, passou a ser convidado com alguma

frequência para se apresentar em público, onde era celebrado pelas gentes dos mais

variados lugares ou para falar sobre a sua experiência africana perante plateias

facilmente maravilhadas pela narrativa do militar. Uma das manifestações de apreço

mais significativas desta marcha triunfal realizou-se no Porto, já em Janeiro de 1898.

29

Correio da Noite, de 20 de Dezembro de 1897, p. 1.

18

O périplo triunfal de Mouzinho de Albuquerque ainda o levaria ao Minho. A sua

estada em Braga, de acordo com a opinião nada imparcial do seu amigo Luís de

Magalhães, “foi uma loucura”. O que ressaltava, todavia, destas romarias, era o seu

carácter popular, quase instintivo. As entidades oficiais raramente marcaram presença

nos festejos e os membros do governo, ou quem os representava, praticamente se

abstiveram de sair à rua. Mouzinho de Albuquerque transformou-se, assim, num

símbolo do povo, patriota e orgulhoso dos seus feitos em África. Um fenómeno

semelhante seria impensável poucos anos antes.

Ainda seguindo as palavras de Luís de Magalhães, do Porto para Braga, “todas

as ingénuas e tradicionais manifestações da alma popular se sucediam nesse percurso de

doze léguas, ininterruptas e ferventes. E o encanto dessa festa era a sua completa

espontaneidade, a sua absoluta sinceridade. Não a encomendara nem a organizara o

elemento oficial; não eram arrebanhadas pelos influentes, pelos administradores, pelos

regedores, que essas turbas se aglomeravam ali, como quando se juntavam para vitoriar

um personagem político, dispensador de graças e benesses”.

Em Vila Nova de Famalicão, por exemplo, saiu-lhe ao caminho um dos

companheiros que com Mouzinho de Albuquerque passara a noite de consoada de 1895

nas margens do rio Limpopo, antes de seguirem para Chaimite. O acontecimento

proporcionou “uma aclamação formidável, colossal, uníssona, um brado rompendo de

milhares de peitos, saudou no capitão ilustre e no humilde soldado, o velho heroísmo

português que ressurgia, épico e triunfal”, de acordo com o relato dos presentes.

A extrema popularidade de Mouzinho de Albuquerque poderia ser uma arma ao

serviço de uma qualquer causa. Como notou o mesmo Luís de Magalhães, “se, nesse

momento, Mouzinho levantasse a espada e proferisse uma palavra, todos, todos os que

ali estavam sem distinção de classe ou de idade, segui-lo-iam cegamente, dominados,

hipnotizados pelo seu prestígio, para a mais quimérica e absurda empresa que ele

pudesse sonhar”30

. Depressa as instâncias do poder político perceberam como esta

figura se poderia tornar perigosa. A sua história, que alimentaria um final trágico, ainda

teria algo para contar31

. Diga-se que, para alguns autores, mormente africanos, o

colonialismo moderno é, justamente, encarado como uma ilusão ou um verniz que,

entrementes estalado, não deixará quaisquer marcas nos territórios sujeitos a tal sistema.

Independentemente do viés ideológico de uma tal perspectiva, sem dúvida que, até pelo

30

MARTINS 1965:154-155. 31

FERNANDES 2010b.

19

fosso entre a realidade social em África e os devaneios sentidos na Europa, os intentos

coloniais daquela época continham, também de uma perspectiva ideológica, algo de

fictício e mesmo de absurdo.

Mouzinho de Albuquerque foi, como vimos, referenciado como um herói. Neste

caso, o mito seria criado em função das representações que foram elaboradas sobre a

realidade dos seus feitos na altura em que os mesmos aconteceram, como procuramos

demonstrar. O militar entrou logo no domínio da lenda. Esta nunca mais parou de

crescer. A Mouzinho de Albuquerque ficara o país a dever Moçambique e a gesta de

Chaimite passou a corresponder a um novo 1640, dizia-se. A sua obra “deixara rasto”,

sendo nomeado como o Joseph Gallieni de Portugal32

. De Mouzinho de Albuquerque

para a posteridade, graças ao poder das representações elaboradas sobre a sua figura e

sobre os seus feitos, sobrava a imagem do “soldado insubmisso”, do “chefe modelo”, do

“herói singular”, do carácter impoluto” e do “espírito desassombrado”. Era o exemplo a

seguir.

O nosso ponto é que este tipo de construção mítica não teria sido possível sem a

ajuda mobilizadora da imprensa. O comportamento dos políticos e a actuação da

sociedade civil, não se reproduzindo somente através desta chave explicativa, também

se compreendem em função da representação da realidade tal qual era transmitida pelos

jornais. Para além do noticiário constante e actualizado sobre os acontecimentos

ocorridos em África, a população do reino passou a ser confrontada de forma

sistemática com a publicação de imagens, gravuras, desenhos e pinturas que retratavam

e davam a conhecer as feições dos mais recentes protagonistas da história pátria fixando

o momento para a posteridade. A própria fotografia, produzida em contexto militar

colonial, fez o seu aparecimento por esta altura, embora com um grau de circulação

menor33

. Repita-se também que, num país que contava 78% de analfabetos, em 1900,

este factor assumiu contornos decisivos para a divulgação das ocorrências coloniais.

Consequências políticas do “colonial turn” e a construção da moderna

identidade imperial portuguesa

32

Herói militar francês que se evidenciou nas campanhas militares em Madagáscar na mesma altura em

que Mouzinho de Albuquerque se destacou em Moçambique. Mais tarde seria um dos heróis gauleses da I

Guerra Mundial. GOMES 1941:8-11 e MICHEL 1989. 33

RAMIRES e LEMOS 2009.

20

As representações criadas em torno das vitórias do Exército, em Moçambique, as

primeiras em muitos anos, ajudaram o poder político a legitimar o investimento nas

tropas e mergulharam o reino num estado de excitação a propósito do domínio

ultramarino, estando na origem de uma (imaginada) linhagem de heróis guerreiros como

já não havia memória.

A opinião pública valorizou estes sucessos e os mesmos seriam aproveitados

pelas autoridades a nível político. Não espanta, por isso, que desde então todos os

governos tenham prosseguido a sua aposta no envolvimento militar em Moçambique,

acabando por a estender a outros pontos do Império. Foi também para responder à

pressão da opinião pública em estado de exaltação colonial que se enviaram cerca de

10.000 soldados brancos somente para esta província, entre 1890 e 1901, o que

equivalia a quase um terço do contingente levantado em tempos de paz, de acordo com

a reforma do Exército de 7 de Setembro de 1899. Alguns dos mais influentes ministros

da época confessaram-no abertamente34

. Em 1876, a quantidade de tropas espalhadas

por todo o Império português ascendia apenas a 7.261 homens, mas em 1886 passou

para os 9.985 homens, dos quais somente 1.193 eram europeus (12%)35

. Na década

seguinte estes números iriam duplicar. Tratou-se de um compromisso assinalável e, até,

surpreendente tendo em conta a realidade militar colonial anterior, conquanto não deixe

de ser insignificante a nível internacional quando comparado com o que aconteceu em

Cuba, por exemplo. Entre 1868 e 1878, a Espanha enviou 181.040 soldados para as

Caraíbas36

.

Ainda em 1895, procedeu-se a uma importante reforma do Exército que servia

para todo o ultramar, unificando-se procedimentos e criando um quadro próprio para os

oficiais. O aprofundamento da solução militar como garante da construção e afirmação

da soberania iria ter continuidade em outras campanhas desenvolvidas na Índia (1895),

em Moçambique (1896), em Angola (1897), na Guiné (1897) e em Timor (1900), num

esforço que se prolongou até à I Guerra Mundial. Mais do que a “pacificação” dos

territórios, como durante muito tempo se afirmou, tratou-se, efectivamente, de uma

guerra colonial pela conquista e ocupação efectiva destes espaços geográficos.

34

António Enes, o ministro da Marinha e Ultramar, por exemplo teve ocasião de explicar a Mariano de

Carvalho que o envio de um contingente militar para Moçambique, ainda em 1891, no contexto pós-

Ultimato, servia mais para acalmar o estado da opinião pública nacional do que para colocar os ingleses

ou os nativos em sentido. 35

BULHÕES 1878:33-34 e TELO 1994:177. 36

VILLA 1996:252.

21

Quando se iniciou o século XX, a sociedade portuguesa olhava já para o

ultramar de forma diferente. O processo de redescoberta de África e a entronização dos

novos heróis coloniais nos anos derradeiros de Oitocentos seria pautado por algumas

ideias fundamentais. Por um lado, a manutenção das províncias ultramarinas era

absolutamente determinante para a regeneração da pátria, tornando-se o projecto

colonial na pedra angular do nacionalismo lusitano. Para além disso, o Império era uma

realidade indivisível, transformando-se num factor de unidade nacional numa época de

crise generalizada em termos económicos, financeiros e políticos. Por fim, a

instabilidade governativa vivida na metrópole constituía a mais séria ameaça à

integridade do Império.

A tal linhagem que se tornou conhecida ao lado de Mouzinho de Albuquerque

nos sertões de Moçambique ganhou força e importância à medida que o século XIX se

aproximava do final, a ponto de, no início de Novecentos, se posicionar como um dos

mais importantes grupos de pressão no país. Ao lado do rei D. Carlos mostravam-se

dispostos a segurar e a reformar o regime em nome da ordem e do engrandecimento do

reino37

. O papel dos militares na construção e defesa do Império conferiu legitimidade

ao Exército e à Armada para a actuarem na frente interna. Todavia, ninguém deu

qualquer passo nesse sentido nos anos seguintes, embora praticamente todos os oficiais

que colaboraram e serviram com Mouzinho de Albuquerque viessem a ter,

posteriormente, a tentação do poder, protagonizando carreiras políticas importantes

ligadas à administração do Império ou ao governo do país. O facto não pode ser

encarado como uma simples coincidência.

É verdade que se achavam, e havia quem os achasse, como os verdadeiros

representantes da nação, mais legítimos do que os próprios ministros, deputados e pares

do reino, mas estes “africanistas” de caserna representavam uma minoria dentro da

cadeia hierárquica. Na prática, podiam alterar tudo, mas não se mexeram38

. Optaram por

se isolar num grupo à parte dentro da corporação e esperaram que o poder político

reconhecesse o seu génio. Acomodaram-se apesar de se acharem diferentes dos outros

camaradas de armas. Julgando-se mais capazes e imbuídos de um espírito que não

encontravam em mais nenhum lado, pensavam que estariam destinados a grandes feitos.

Alguns acabariam por o conseguir, mas apenas mais tarde. No imediato, passaram a

alimentar uma nostalgia pelos tempos passados nas matas e nos sertões africanos.

37

TELO 2003:356. 38

VALENTE 2006:43-51.

22

Quando a Monarquia caiu, em Outubro de 1910, ninguém se dispôs a lutar pelo regime.

Só alguns anos depois o fariam, embora sem sucesso.

Em jeito de síntese, a glorificação da chamada “geração de 1895” através das

promoções, condecorações, recepções, nomeações, tours no país e no estrangeiro deu

lugar à construção de uma verdadeira liturgia secular que embalou o reino de forma

decisiva no processo de Empire-building. Toda esta dinâmica viria a acarretar

consequências para sociedades e territórios que se tornariam colónias e, mais

recentemente, países dotados de uma consciência nacional própria.

Quando terminou a Conferência de Berlim, em Fevereiro de 1885, o Estado

português exercia a sua soberania sobre um “Império” espalhado por três continentes.

Tratava-se, todavia, de um domínio mais virtual do que real. Em África, onde as elites

nacionais depositavam as maiores esperança na construção de uma realidade política e

económica que, finalmente, substituísse a perda do Brasil ocorrida em 1822-1825, as

autoridades europeias controlavam postos dispersos ao longo dos rios da Guiné, alguns

centros “urbanos” em Angola, de que Luanda e Benguela constituíam raros exemplos, a

costa sul de Moçambique nos arredores de Lourenço Marques e pequenos troços do rio

Zambeze. Os referidos territórios tinham um valor simbólico, mas reduzido peso

económico e político no contexto nacional.

Mal soou o tiro de partida da chamada “corrida a África”, à entrada do último

quartel do século XIX, estas regiões, especialmente Moçambique, começaram a

despertar o interesse das grandes potências coloniais. A pressão internacional para

ocupar, povoar e desenvolver as províncias ultramarinas sob administração portuguesa,

exercida, sobretudo, pelos governos britânico e alemão, mas, igualmente, por agentes

individuais ou empresariais como Cecil Rhodes e a sua Bristish South African

Company, apenas seria parcialmente responsável pelo envolvimento português num

processo de construção da identidade imperial, que se veio a aprofundar durante o

século XX. Como resultado da alteração do paradigma ultramarino, em apenas quinze

anos Portugal, tal como outros países europeus, viu as suas fronteiras africanas serem

estabelecidas e reconhecidas internacionalmente, lançando-se o país num esforço de

ocupação militar efectiva de regiões, onde até então o reconhecimento da sua soberania

era pouco mais do que nominal ou inexistente.

Não obstante esta influência do factor externo, a viragem portuguesa para o

“continente negro”, iniciada nos finais da década de 1870, surgiu também como uma

resposta a causas domésticas, onde as representações jogaram um papel decisivo. Para

23

além das razões ideológicas, centradas na “invenção” de um nacionalismo radical de

cariz colonial desenvolvido desde os finais dos anos de 1870, que seria responsável por

boa parte da agitação que o país viveu nos anos seguintes, foi o tom mobilizador do

discurso político, a intervenção entusiasmada da imprensa e a resposta participativa da

sociedade civil em relação aos sucessos militares obtidos em Moçambique entre 1895 e

1898, os primeiros obtidos no contexto colonial em muitos anos, que centraram a

atenção do público em geral sobre as questões africanas.

As representações criadas e ampliadas em torno das vitórias, sobretudo do

Exército, ajudaram o poder político a legitimar o investimento nas tropas e

mergulharam o reino num estado de entusiasmo a propósito do domínio ultramarino,

estando na origem da fabricação de uma geração de heróis guerreiros como não havia

memória na história recente do país.

As campanhas da África Oriental tornaram-se, assim, no ponto de partida de um

esforço de conquista alargado à Índia, Angola, Guiné e a Timor nos anos seguintes. As

possessões de Além-Mar perdiam o seu carácter virtual para se transformarem numa

realidade concreta. Os resultados operacionais desta primeira guerra colonial dos

tempos modernos viriam a estar na base da criação do império português que

sobreviveu até 1974-1975. Como resultado desta alteração de paradigma, o ultramar iria

tornar-se a chave da política nacional nos três primeiros quartéis do século XX.

Bibliografia

ALBUQUERQUE, Joaquim Mouzinho de, 1893, O Exército nas Colónias

Orientais, Lisboa, Minerva Comercial

ALBUQUERQUE, Joaquim Mouzinho de, 1896, Relatório sobre a Prisão do

Gungunhana, Lourenço Marques, Typographia Nacional de Sampaio & Carvalho

ALEXANDRE, Valentim, 2008, A Questão Colonial no Parlamento (1821-

1910), Lisboa, Assembleia da República e Publicações Dom Quixote

BRETES, Maria da Graça, 1989, “Arqueologia de um mito: a derrota de

Gungunhana e a sua chegada a Lisboa” in Penélope. Fazer e Desfazer História nº2,

Lisboa, Quetzal Editores

BULHÕES, Miguel Eduardo Lobo de, 1878, Les colonies portugaises. Court

exposé de leur situation actuelle, Lisboa

24

CARVALHO, Alberto Martins, 1985, “Albuquerque, Joaquim Mouzinho de” in

Joel SERRÃO (dir.), Dicionário de História de Portugal, Vol. I, Porto, Livraria

Figueirinhas

COUTINHO, João de Azevedo, 1938, “De novo em Moçambique, nos

Namarrais” in O Mundo Português, Revista de Cultura e Propaganda, de Arte e

Literatura Coloniais nº49, Lisboa, Agência Geral das Colónias

FERNANDES, Paulo Jorge, 2010a, Mariano Cirilo de Carvalho: «O Poder

Oculto» do liberalismo progressista (1876-1892), Lisboa, Assembleia da República e

Texto Editores

FERNANDES, Paulo Jorge, 2010b, Mouzinho de Albuquerque: um soldado ao

serviço do Império, Lisboa, A Esfera dos Livros

GOMES, A. Emílio, 1941, Mouzinho Herói de África, Lisboa, Sociedade

Industrial de Tipografia

JÚNIOR, António de Campos, 1896, Victórias d’África. A defeza de Lourenço

Marques e as campanhas do valle do Incomati e do paiz de Gaza, 1894-1895, Lisboa,

Typographia da Rua do Norte

MACKENZIE, John, 1984, Propaganda and Empire. The Manipulation of

British Public Opinion, Manchester, Manchester University Press

MARTINS, Francisco da Rocha, 1930, D. Carlos. História do seu Reinado,

edição do autor, 1930

MARTINS, Ferreira, 1965, 2ª ed., Mouzinho, Lisboa, Edições Excelsior

MICHEL, Marc, 1989, Gallieni, Paris, Fayard

NORONHA, Eduardo, 1906, O Herói de Chaimite, Porto, Empresa do Primeiro

de Janeiro

_____ 1935, General Eduardo Galhardo, Lisboa, Agência Geral das Colónias

NUNES, J. Lúcio, 1955, Mouzinho de Albuquerque Herói de África (achegas

para uma biografia completa), Lisboa, Edição de Álvaro Pinto

PELISSIER, René, 2006, As Campanhas Coloniais de Portugal, 1844-1941,

Lisboa, Editorial Estampa

PINA, Mariano, 1893, Questões de hoje, Os Planos Financeiros do sr. Mariano

de Carvalho, Typographia da Companhia Nacional Editora

PORTER, Bernard, 2004, The Absent-Minded Imperialists. Empire, Society, and

Culture in Britain, Oxford, Oxford University Press

25

RAMIRES, Alexandre e LEMOS, Mário Matos e, 2009, O Primeiro Fotógrafo

de Guerra Português: José Henriques de Mello, Coimbra, Imprensa da Universidade de

Coimbra

ROCHA, Aurélio, 2006, Associativismo e Nativismo em Moçambique,

Contribuição para o Estudo das Origens do Nacionalismo Moçambicano, Maputo,

Texto Editores

ROTBERG, Robert I., 1988, The Founder. Cecil Rhodes and the Pursuit of

Power, Oxford, Oxford University Press

SAID, Edward, 1993, Culture and Imperialism, London, Chetto & Windus

TEIXEIRA, Nuno Severiano, 1990, O Ultimatum Inglês. Política externa e

política interna no Portugal de 1890, Lisboa, Publicações Alfa

TELO, António José, 1994, Economia e Império no Portugal Contemporâneo,

Lisboa, Edições Cosmos

_____ 2003, “Os começos do século” in BARATA, Manuel Themudo e

TEIXEIRA, Nuno Severiano (dir.), Nova História Militar de Portugal, Lisboa, Círculo

de Leitores

VALENTE, Vasco Pulido, 2006, Um Herói Português, Henrique Paiva

Couceiro (1861-1944), Biografia, Lisboa, Aletheia Editores

VILLA, Fernando Puell de la, 1996, El soldado desconocido. De la leva a la

“mili” (1700-1912), Madrid, Biblioteca Nueva