o federalismo orçamental e a descentralização política

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No processo de construção europeia, a ideia de federalismo foi sempre recusada pelos sucessivos dirigentes políticos. No entanto, a crise que a Europa vive desde 2008 e a incapacidade dos atores políticos e das instituições europeias em lidarem com a mesma, está a colocar em causa a sobrevivência da moeda única e, consequentemente, do projeto europeu tal como o conhecemos até hoje.Perante este cenário, algumas vozes têm alertado para a necessidade dum governo económico europeu. Será que os líderes europeus estarão dispostos a adotar o federalismo orçamental como uma possível solução para esta crise? Será esse o primeiro passo para uma integração europeia mais profunda? Estarão os Estados-membros da União Europeia dispostos a abdicar das suas soberanias?Estando o federalismo orçamental associado à descentralização política e ao desenvolvimento económico, será esse o caminho a seguir por Portugal para ultrapassar a crise em que se encontra?

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INSTITUTO POLITCNICO DE SANTARMESCOLA SUPERIOR DE GESTO E TECNOLOGIA DE SANTARM

O FEDERALISMO ORAMENTAL E A DESCENTRALIZAO POLTICA NUM CONTEXTO DE SUSTENTABILIDADE DAS FINANAS PBLICASProjeto Aplicado da Licenciatura em Administrao Pblica

Humberto Carlos da Costa das Neves Orientador Professor Adjunto Convidado Pedro Oliveira

Santarm 2012

Memria do meu Pai! minha me, que tem sido um pilar essencial desde sempre! A todos aqueles que partilharam comigo, ao longo de trs anos, alegrias e tristezas, risos e lgrimas, euforias e decees!

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AgradecimentosEm primeiro lugar, agradeo aos meus amigos que me incentivaram a prosseguir os estudos e que, desde 2008, me deram a fora necessria e me ajudaram a levar por diante este desafio. Agradeo ao corpo docente da Escola Superior de Gesto e Tecnologia do Instituto Politcnico de Santarm com quem eu tive o privilgio de contactar ao longo destes trs ltimos anos, o facto de me ter proporcionado a aquisio de conhecimentos, no s ao nvel das matrias lecionadas nas diferentes unidades curriculares mas, tambm pelo convvio e pelas conversas menos formais que se estabeleceram. Em particular, ao Dr. Pedro Oliveira, a disponibilidade imediata para ser o orientador do presente trabalho, tendo a sua forma de lecionar, de abordar e expor os assuntos influenciado na escolha do tema para o presente trabalho. Parte deste trabalho no teria sido possvel sem a preciosa colaborao de duas individualidades de convices fortes quando toca a defender os seus pontos de vista. O meu muito obrigado ao Dr. Miguel Relvas e ao Dr. Silvino Sequeira por se terem mostrado disponveis a dar o seu contributo e, dessa forma, a enriquecerem o presente relatrio. Last, but not the least, um agradecimento especial a todos os colegas que, depois de trs anos de convvio quase dirio, se tornaram grandes amigos e que, nos momentos mais conturbados, me ajudaram a no perder a fora e a levar este barco a bom porto.

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ResumoNo processo de construo europeia, a ideia de federalismo foi sempre recusada pelos sucessivos dirigentes polticos. No entanto, a crise que a Europa vive desde 2008 e a incapacidade dos atores polticos e das instituies europeias em lidarem com a mesma, est a colocar em causa a sobrevivncia da moeda nica e, consequentemente, do projeto europeu tal como o conhecemos at hoje. Perante este cenrio, algumas vozes tm alertado para a necessidade dum governo econmico europeu. Ser que os lderes europeus estaro dispostos a adotar o federalismo oramental como uma possvel soluo para esta crise? Ser esse o primeiro passo para uma integrao europeia mais profunda? Estaro os Estados-membros da Unio Europeia dispostos a abdicar das suas soberanias? Estando o federalismo oramental associado descentralizao poltica e ao desenvolvimento econmico, ser esse o caminho a seguir por Portugal para ultrapassar a crise em que se encontra?

Palavras-chave: Finanas Pblicas; Federalismo Oramental; Descentralizao Poltica

AbstractIn the European construction process, the idea of federalism has always been rejected by successive political leaders. However, the crisis that Europe has been living since 2008 and the inability of political actors and EU institutions in dealing with it, is putting into question the euro survival and, consequently, the european project as we know it today. Given this scenario, some voices have pointed out the need for a european economic government. Are European leaders willing to adopt the fiscal federalism as a possible solution to this crisis? Will this be the first step to a deeper european integration? Are the member states of the EU willing to give up their sovereignty? Being the fiscal federalism associated to the decentralization policy and economic development, will this option be the best way for Portugal to overcome the crisis in which is in? Key words: Public Finance; Fiscal Federalism; Political Decentralization

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ndiceAgradecimentos ....................................................................................................................................... 3 Resumo .................................................................................................................................................... 4 Abstract ................................................................................................................................................... 4 ndice ....................................................................................................................................................... 5 ndice de Quadros.................................................................................................................................... 6 ndice de Figuras ..................................................................................................................................... 6 ndice de Apndices ................................................................................................................................ 6 ndice de Anexos ..................................................................................................................................... 6 Lista de abreviaturas................................................................................................................................ 7 1. 2. Introduo ....................................................................................................................................... 8 Funes, Modelos de Estado e Teorias de Finanas Pblicas ...................................................... 10 2.1. 2.2. 2.3. Anlise Normativa e Anlise Positiva ................................................................................... 11 As funes do sector pblico................................................................................................. 13 Os modelos de Estado ........................................................................................................... 15 O Estado Mnimo .......................................................................................................... 16 O Estado Providncia .................................................................................................... 18 O Estado Imperfeito ...................................................................................................... 20 Finanas Clssicas ......................................................................................................... 22 Finanas Intervencionistas............................................................................................. 22 Constitucionalismo Financeiro ...................................................................................... 23

2.3.1. 2.3.2. 2.3.3. 2.4. 2.4.1. 2.4.2. 2.4.3. 3. 3.1. 3.2. 4. 4.1. 4.2. 4.3. 5.

Teorias das finanas pblicas ................................................................................................ 22

A globalizao e as finanas pblicas portuguesas ...................................................................... 25 A evoluo da economia e das finanas pblicas portuguesas .............................................. 25 A globalizao e os seus efeitos na economia portuguesa .................................................... 34 A construo europeia e a inexistncia de federalismo ......................................................... 40 Federalismo oramental: prximo passo na integrao europeia? ........................................ 44 E em Portugal, que descentralizao poltica? ...................................................................... 48

O Federalismo Oramental e a Descentralizao Poltica ............................................................ 40

Concluso ..................................................................................................................................... 59

Referncias Bibliogrficas .................................................................................................................... 61 Apndices .............................................................................................................................................. 65 Anexos................................................................................................................................................... 76

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ndice de QuadrosQuadro 1 - Enquadramento das Anlises Positiva e Normativa nas funes do Estado ....................... 12

ndice de FigurasFigura I - PIB per capita a preos constantes (base=2006) Variao anual (1961-1973) ..................... 27 Figura II - Receitas e Despesas das Administraes Pblicas entre 1947-1973 (milhes de euros)..... 27 Figura III - Receitas e Despesas das Administraes Pblicas entre 1974 e 1985 (milhes de euros) . 28 Figura IV - PIB per capita a preos constantes (base=2006) (Variao anual 1974-1985) .................. 29 Figura V - PIB per capita a preos constantes (base=2006) (Variao anual 1986-2010) .................... 33 Figura VI - Receitas e Despesas das Administraes Pblicas entre 1986 e 2010 (milhes de euros). 34 Figura VII - Variao dos custos unitrios de trabalho em Portugal e na UE (1996-2010) .................. 37 Figura VIII - Produtividade por trabalhador (UE 27=100) (2008)........................................................ 37 Figura IX - Formao Bruta de Capital Fixo na UE em % do PIB (2005 e 2009) ................................ 38 Figura X - Peso das despesas pblicas dos governos sub-nacionais na despesa das administraes pblicas.................................................................................................................................................. 47 Figura XI - Nveis de Governo .............................................................................................................. 49 Figura XII - As "Regies Plano" de 1967 (esquerda) e as atuais CCDR's (direita) .............................. 54

ndice de ApndicesApndice 1 - Instituies da UE (composio, funcionamento e funes) ........................................... 66 Apndice 2 - Entrevista ao Dr. Miguel Relvas ...................................................................................... 67 Apndice 3 - Entrevista ao Dr. Silvino Sequeira ................................................................................... 71

ndice de AnexosAnexo I - Gastos Sociais: dados agregados (a preos constantes, moeda nacional, em milhes)......... 77 Anexo II - Finanas clssicas, finanas intervencionistas e constitucionalismo financeiro .................. 78 Anexo III - Classificao econmica das despesas ............................................................................... 79 Anexo IV - Classificao econmica das receitas ................................................................................. 80 Anexo V - Desemprego em Portugal: taxas e variao anual (1960-2011) .......................................... 81 Anexo VI - Taxa de Inflao (Taxa de Variao - ndice de Preos no Consumidor) (1960-2010) ..... 82 Anexo VII - Balana Comercial (1960-2010) (Mdia das taxas de crescimento nacionais ponderadas com valores atuais) ................................................................................................................................ 83 Anexo VIII - Variao Anual do ndice de Preos no Consumidor (2001-2010) ................................. 84 Anexo IX - Taxas de Juro Mensais do BCE (2007-2009)..................................................................... 85 Anexo X - Variao Anual do PIB per capita a preos correntes (2003-2010) .................................... 86 Anexo XI - Vantagens e desvantagens da regionalizao ..................................................................... 87

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Lista de abreviaturasAMECO BCE CCDR CE CECA CEE CP CRP EFTA ENDS FCM FEF FGM FMI FSM IDE IMI IMT IMV INE IRC IRS IVA ME OCDE OE PEC PIB PIENDS REFER SEE SME UE UEM Annual Macro-Economic Database of the European Comission Banco Central Europeu Comisso de Coordenao de Desenvolvimento Regional Comisso Europeia Comunidade Europeia do Carvo e do Ao Comunidade Econmica Europeia Comboios de Portugal Constituio da Repblica Portuguesa European Free Trade Association Estratgia Nacional de Desenvolvimento Sustentvel Fundo de Coeso Municipal Fundo de Equilbrio Financeiro Fundo de Gesto Municipal Fundo Monetrio Internacional Fundo Social Municipal Investimento Direto Estrangeiro Imposto Municipal sobre Imveis Imposto Municipal sobre as Transmisses Onerosas de Imveis Imposto Municipal sobre Veculos Instituto Nacional de Estatstica Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares Imposto sobre o Valor Acrescentado Memorando de Entendimento Organizao de Cooperao e Desenvolvimento Econmico Oramento de Estado Pacto de Estabilidade e Crescimento Produto Interno Bruto Plano de Implementao da Estratgia Nacional de Desenvolvimento Sustentvel Rede Ferroviria Nacional Sector Empresarial do Estado Sistema Monetrio Europeu Unio Europeia Unio Econmica e Monetria

EUROATOM Comunidade Europeia da Energia Atmica

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1. IntroduoO facto de estar se a redigir este relatrio significa que chegou ao final uma etapa de trs anos. Foram seis semestres letivos nos quais se procurou assimilar e entender, da melhor forma possvel, os assuntos lecionados nas diferentes unidades curriculares. H aquelas que captam mais ateno dos alunos. Ou porque se gosta dos temas abordados, ou porque o docente conseguiu cativar pela sua forma de expor e de abordar as matrias ou, ento, porque as duas razes anteriores se conjugaram. A escolha do tema para o presente relatrio deriva, fundamentalmente, desta ltima. O discurso proferido por Winston Churchill, em 1946, na Universidade de Zurique, dirigido juventude acadmica apelava, de forma bem clara, para a unio dos pases europeus e visto como o propulsor para a construo europeia que se iria iniciar poucos anos depois: Devemos criar uma espcie de Estados Unidos da Europa.1. Com estas palavras, Churchill invocava algo bem diferente do que foi a construo europeia at aos nossos dias: a existncia de uma federao de Estados. Esta ideia de criar, na Europa, um Estado Federal, no foi levada a cabo. O processo de construo europeia acabou por assentar, basicamente, em ideais econmicos marcadamente liberais, como a abolio de taxas aduaneiras, o comrcio livre, a liberdade de circulao de pessoas, de bens e de capitais. A criao dos Estados Unidos da Europa pressupunha, para alm desses ideais, a comunho de outros, nomeadamente, de cariz poltico, como a subordinao a uma nica Constituio o que, se tivermos em linha de conta o processo anterior assinatura do Tratado de Lisboa (2007), uma tarefa verdadeiramente herclea. No entanto, a crise financeira de 2008 e as repercusses que, passados trs anos, ainda se fazem sentir, colocaram a Europa numa encruzilhada quanto ao seu futuro. O projeto da unio econmica e monetria foi abalado e a problemtica das dvidas soberanas e dos excessivos dfices oramentais dos pases perifricos levam a que responsveis europeus defendam a existncia de um federalismo oramental. Foi o prprio presidente do BCE, JeanClaude Trichet que, em Julho de 2011 alertou a Unio Europeia para a necessidade de responder crise com uma federao flexvel na qual haveria lugar para um novo cargo de governao, um ministro federal das Finanas na zona euro (Pblico, 2011). perante este contexto de incerteza poltica, econmica e financeira que se ir desenvolver o presente trabalho, tendo como objetivo principal procurar responder a uma1

In Europa - A histria da Unio Europeia, acedido a 9 de Julho de 2011 em http://europa.eu/about-eu/euhistory/1945-1959/foundingfathers/churchill/index_pt.htm

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questo principal: num contexto de crise, em que se torna necessrio proceder a restries oramentais com vista a promover a sustentabilidade das finanas pblicas, ser possvel a existncia de federalismo oramental? Dado que esta teoria pressupe a descentralizao poltica, qual o caminho a seguir em Portugal? Criar regies administrativas ou reforar as competncias e atribuies dos municpios e promover a associao entre si? Para tal, adotou-se uma metodologia qualitativa recorrendo leitura e anlise de bibliografia relacionada com os temas em debate (finanas pblicas, federalismo oramental e descentralizao administrativa) e tcnica da entrevista indireta e estruturada. Complementarmente procedeu-se recolha e anlise de dados estatsticos junto de diversas entidades, nacionais e internacionais. Relativamente redao, o presente relatrio est escrito segundo as normas do novo Acordo Ortogrfico. Excetuam-se as citaes de textos escritos anteriormente entrada em vigor do mesmo que, por uma questo de autenticidade, sero transcritas na verso original. No que se refere estrutura do presente relatrio, ele est dividido em cinco captulos. O primeiro consiste na presente introduo, onde so formulados os objetivos a atingir e os mtodos utilizados para tal. No segundo, explanar-se-o as diferentes teorias de finanas pblicas, modelos de Estado e como aquelas se articulam com as diversas funes deste. No captulo trs, depois de um breve enquadramento histrico, ser analisada a evoluo das contas pblicas portuguesas, com especial incidncia no perodo ps-25 de Abril de 1974, bem como o processo de globalizao e seus reflexos na economia e nas finanas pblicas. O quarto captulo conta com a opinio de duas individualidades polticas da regio de Santarm, reconhecidas a nvel nacional pelas suas posies enquanto defensores da regionalizao e do supramunicipalismo, respetivamente, o Dr. Silvino Sequeira2 e o Dr. Miguel Relvas3. Com as suas opinies procura-se clarificar a discusso em torno da melhor opo em termos de descentralizao administrativa. A terminar, apresentam-se as concluses com base nas questes levantadas e nas respostas obtidas.

Foi Presidente da Cmara Municipal de Rio Maior entre 1986 e 2009, tendo exercido, entre 1995 e 1996, as funes de Governador Civil de Santarm. Entre 2007 e 2008, foi Gestor da Comisso Diretiva do Programa Operacional do Alentejo (QREN). Foi, ainda, deputado entre 1983 e 1985 e em 1995. licenciado em Histria pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. 3 Presentemente Ministro-adjunto e dos Assuntos Parlamentares do XIX Governo Constitucional. Presidente da Assembleia Municipal de Tomar, cargo que exerce desde 1997. Foi Secretrio de Estado da Administrao Local do XV Governo Constitucional (2002-2004). Foi deputado nas legislaturas compreendidas entre 1985 e 2009. licenciado em Cincia Poltica e Relaes Internacionais pela Universidade Lusfona.

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2. Funes, Modelos de Estado e Teorias de Finanas PblicasDesde h quase dez anos a esta parte que as finanas pblicas nacionais tm sido tema para discusses calorosas e controversas. Entre o clebre discurso da tanga4 e o desabafo do desvio colossal5 passou-se quase uma dcada, durante a qual Portugal conheceu cinco Governos com polticas pblicas dspares entre si, visando colocar as finanas pblicas nacionais em ordem, numa rota de sustentabilidade. No sendo a sustentabilidade das finanas pblicas assunto para dissertar neste captulo serve, todavia, de ponto de partida para a abordagem que aqui se pretende realizar. Em funo da delicadeza das matrias que envolvem, as finanas pblicas regem-se por uma lgica no apenas de teoria econmica mas, tambm, de cincia poltica. Com a teoria econmica, nomeadamente ao nvel do papel do sector pblico, ponderam-se trs questes essenciais: o que produzir? Como produzir? E para quem produzir? Em matria de cincia poltica, releva o facto das respostas a estas questes serem tomadas atravs do funcionamento de um processo poltico (Pereira, Afonso, Arcanjo, & Santos, 2009, p. 4), e serem vistas como um meio ao dispor do Estado para satisfazer as necessidades coletivas sempre que o livre funcionamento dos mercados () seja incapaz de, por si prprio, as promover adequadamente (Fernandes, 2008, p. 17). Para se proceder ao estudo das finanas pblicas recorre-se, segundo os autores consultados, a dois tipos de anlise: a normativa e a positiva. Este estudo no mais do que considerar atender a quatro questes que Pereira et al. (2009, pp. 4-5) elenca desta forma: 1. Quais os efeitos da manipulao de certas variveis instrumentais (poltica oramental) na prossecuo de objectivos? 2. Quais os efeitos de alteraes em variveis estruturais (regras e instituies) na implementao das polticas pblicas? 3. Qual deve ser a interveno do Estado na economia, nomeadamente na sua vertente financeira (receitas e despesas pblicas)? 4. Quais devem ser as regras e instituies a operar no sector pblico de forma a implementar as polticas pblicas?

Expresso usada em 16 de Abril de 2002 pelo ento Primeiro-Ministro de Portugal, Duro Barroso, aquando da discusso, na Assembleia da Repblica, de um programa de emergncia, referindo-se ao anterior governo do Partido Socialista: Os senhores [do PS] deixaram Portugal de tanga (Pblico, 2002). 5 Afirmao atribuda ao Presidente do PSD e Primeiro-Ministro de Portugal, Pedro Passos Coelho, durante uma reunio do Conselho Nacional do PSD realizada a 12 de Julho de 2011, referindo-se diferena existente entre as metas estabelecidas pelo anterior Governo e o que realmente tinha sido efetuado (Dirio de Notcias, 2011).

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A anlise positiva procura responder s duas primeiras questes e a anlise normativa s duas ltimas. Desenvolveremos esta distino no prximo subcaptulo.

2.1. Anlise Normativa e Anlise PositivaConvm, assim, diferenciar estes dois tipos de anlise. Ao efetuar-se uma anlise positiva, isto , uma anlise tcnica, quantificada e objetiva, o que est em causa , como refere Pereira et al. (2009, p. 5), medir e avaliar as consequncias, em certas variveis objectivo, de alteraes em uma ou mais variveis instrumentais ou estruturais. Por seu lado, a anlise normativa, baseada em critrios de eficincia e de equidade, uma anlise subjectiva, pois tem como principal fim produzir juzos de valor, nomeadamente sobre as polticas pblicas adoptadas ou a adoptar e a valorar as suas consequncias previsveis (Pereira et al., 2009, p. 5). Para melhor enquadrarmos estes dois tipos de anlise recorremos a uma notcia publicada no jornal Pblico, de 26 de Junho de 2011, que nos d conta da inteno do anterior governo em avanar com o encerramento de 800 quilmetros de via-frrea, ficando esta restringida basicamente ao eixo Braga-Faro, Beira Alta e Beira Baixa, sendo que as restantes linhas seriam amputadas ou desapareceriam, nomeadamente em regies do interior como so o caso de Trs-os-Montes e do Alentejo. A notcia avana, ainda, que este documento foi entregue Troika6 BCE/CE/FMI, como uma medida eficaz de reduo da despesa pblica, j que a mesma teria um forte impacto nas contas de duas empresas do Sector Empresarial do Estado (REFER e CP)7. luz das anlises positiva e normativa e relacionando estas com as funes do Estado (afetao, redistribuio e estabilizao), que abordaremos a seguir, possvel identificar os fundamentos da interveno pblica no caso concreto. O Quadro 1 pretende resumir esses mesmos fundamentos.

Troika uma palavra de origem russa usada, normalmente, para designar algo que composto por trs individualidades ou entidades. 7 No decurso da elaborao deste trabalho, o atual Governo portugus aprovou em reunio do Conselho de Ministros, o Plano Estratgico dos Transportes (Resoluo do Conselho de Ministros n. 45/2011), que concretiza um conjunto de reformas estruturais a implementar no sector dos transportes e das infraestruturas, enquadradas pelo princpio basilar de que os recursos pblicos disponibilizados pelos contribuintes portugueses so limitados

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Quadro 1 - Enquadramento das Anlises Positiva e Normativa nas funes do Estado

Funo/Anlise Afetao

Positiva Reduzir prejuzos de explorao no SEE Reduo do cabaz de bens ou servios pblicos ao dispor dos cidados das regies afetadas. Conteno da despesa pblica, em ordem a respeitar os critrios de consolidao oramental

Normativa Eficincia Deciso eficiente falta de alternativa, no eficiente. Equidade Deciso neutra.

Redistribuio

No uma deciso equitativa.

Estabilizao

Deciso eficiente.

Deciso equitativa.

Fonte: Adaptado de Oliveira (2009).

Constata-se, assim, que a inteno do anterior Governo (e do atual) , neste caso concreto, reduzir os prejuzos operacionais no SEE, atravs de uma afetao eficiente dos recursos econmicos. Do ponto vista normativo admite-se que esta deciso seja eficiente em termos da afetao na medida em que favorea a utilizao racional de recursos escassos com fins ou usos alternativos, sendo neutra em termos de equidade no cenrio de ser assegurada uma alternativa eficaz s populaes afetadas, em termos de acessibilidade a servios localizados nos principais aglomerados urbanos; caso contrrio, seria injusta. No que se refere redistribuio, e se no existir uma alternativa, ela no ser eficiente, dado que os utentes afetados pela medida pagam os mesmos impostos ao Estado, salvaguardando situaes especficas (por falta de discriminao positiva de natureza territorial) mas ficariam privados das respetivas contrapartidas por ao coerciva daquele, no sendo, tambm, equitativa, porque geraria discriminao negativa em termos sociais e regionais, no acesso a bens pblicos. Esta medida contribuiria, em termos de estabilizao econmica, para uma maior conteno da despesa pblica, pelo que seria eficiente ao poupar recursos com vista a reforar a capacidade financeira do Estado em responder a problemas socioeconmicos, sobretudo num contexto de recesso econmica. E seria equitativa, porque pretenderia assegurar uma situao oramental prxima do equilbrio, de modo a implementar uma poltica oramental anti cclica, visando acautelar s futuras geraes o mesmo nvel de qualidade e quantidade de bens pblicos.

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Mas, do que se trata quando falamos em eficincia e em equidade? Falamos de eficincia quando se pretende afectar os recursos econmicos de forma ptima (Pereira et al., 2009, p. 8). No entanto, deve-se ter em conta que, ao melhorar o bemestar de um determinado agente econmico tal pode provocar a diminuio desse mesmo bem-estar noutro agente econmico. Tal possibilidade remete a nossa ateno para os princpios fundamentais da economia do bem-estar social, nomeadamente para o Princpio de Pareto8, sendo que a no existncia de eficincia se pode ficar a dever a quatro condies: existncia de externalidades positivas ou negativas; estarmos na presena de bens pblicos; existir informao assismtrica ou monoplios naturais; e existir uma insuficiente proviso privada de infraestruturas colectivas. J a equidade remete-nos para uma abordagem relacionada com a determinao dos efeitos da distribuio da carga fiscal e dos benefcios da despesa pblica no bem-estar social (Pereira et al., 2009, p. 7). Isto , no se trata s de equidade na cobrana de impostos mas, tambm, na forma como estes so redistribudos em prol do bem-estar social. Como nos diz Sanches (2010, p. 15), a justia na tributao e a justia na distribuio tm a mesma importncia. Importa, agora, abordar com maior profundidade, as funes do sector pblico. isso que faremos de seguida.

2.2. As funes do sector pblico comummente aceite, na atualidade, a categorizao das funes do sector pblico (ou funes econmicas do Estado) referidas anteriormente (afetao, distribuio9 e estabilizao), realizada por Musgrave (Pereira et al., 2009). Uma vez que os recursos econmicos so, por definio, escassos, compete ao Estado afect-los de forma eficiente. A funo afetao desempenhada pelo Estado quando o mercado (leia-se, os agentes econmicos privados) no o consegue realizar eficientemente. Ora, a no existncia de eficincia, como atrs se pode verificar, deriva de falhas de mercado. Assim, o Estado intervem atravs da proviso de bens e servios de interesse colectivo, no sujeitos excluso do mercado. Isto , coloca ao dispor da populao bens e servios que, muito dificilmente, o sector privado disponibilizaria. Actua, ainda, atravs da atribuio deO Princpio de Pareto define que uma economia eficiente na utilizao dos seus recursos sempre que seja impossvel, atravs de reafectaes no consumo entre indivduos, ou de fatores de produo entre indstrias, aumentar o nvel de bem-estar de algum sem diminuir o bem-estar de outrem (Fernandes, 2008, p. 55) 9 Alguns autores referem-se a esta funo denominando-a de redistribuio ou redistributiva, pelo que ao longo do presente relatrio aparecero as vrias denominaes utilizadas.8

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subsdios ou da aplicao de impostos s actividades privadas, consoante queira incentivar ou desincentivar as mesmas criando, conforme o caso, externalidades positivas ou negativas, e regulando de determinados mercados, nomeadamente aqueles onde susceptvel ocorrerem situaes de oligoplio ou de monoplio, levando a que o Estado intervenha com o intuito de corrigir as limitaes concorrncia. A funo distribuio dirige-se forma como os bens pblicos produzidos so distribudos pelos membros de uma sociedade, relacionando-se de forma directa com conceitos como a equidade e, tambm, com os trade-offs10 existentes entre equidade e eficincia. Como refere Fernandes (2008, p. 22), a eficincia econmica uma condio necessria mas no suficiente para a maximizao do bem-estar social. Ao actuar neste domnio, segundo uma concepo moderna norteada pelo princpio do Estado Providncia (seco 2.3.2), o Estado visa, sobretudo, distribuir de forma justa e equitativa, o rendimento e a riqueza criados que, de outra forma, no seria possvel. Mas, tambm pretende colocar disposio de todos, bens e servios que concorram para uma maior igualdade de oportunidades (Pereira et al., 2009, p. 13). Tal concepo prende-se, fundamentalmente, com o facto de existirem bens de mrito11 que, sendo predominantemente de natureza privada, devem estar ao alcance de todos. Caso se demitisse formalmente dessa responsabilidade, o Estado estaria a contribuir para o aumento de situaes de injustia social e de desigualdade de oportunidades. Inserem-se neste tipo de bens de mrito, entre outros, as vacinas. Existindo um Plano de Nacional de Vacinao, que obrigatrio, o Estado suporta integralmente o custo das vacinas promovendo, desta forma, a toda a populao, igualdade de acesso a este cuidado de sade. No havendo interveno do Estado, as vacinas, que so dispendiosas, ficariam inacessveis a uma franja da populao que no possui recursos para atender a esse cuidado. Dado que as economias nacionais tm de enfrentar ciclos, passando de situaes de expanso econmica para situaes de recesso de forma bastante rpida (Fernandes, 2008), os Estados utilizam a funo estabilizao de modo a garantir um crescimento sustentado da economia, atingir a situao de pleno emprego dos factores de produo, nomeadamente do factor trabalho e, simultaneamente, a estabilidade de preos. Isso ser conseguido se, face aExiste um trade-off quando se reduz ou se abre mo de um ou mais resultados desejveis em troca de aumento ou a obteno de outros resultados desejveis, a fim de maximizar o retorno total ou eficcia em determinadas circunstncias. 11 Bens de mrito so, essencialmente, bens de natureza privada mas que o Estado coloca disposio de todos e que no seriam consumidos por livre iniciativa do consumidor, e de cujo ato de consumir beneficiar no apenas o prprio, mas tambm outros indivduos que com ele se relacionem, seno mesmo a sociedade como um todo (Matias, 1995, p. 10)10

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elevados nveis de despesa pblica, os Estados aumentarem a carga fiscal. Caso contrrio, o recurso ao endividamento conduzir ao acrscimo das taxas nominais de juro12 e, consequentemente, a um aumento da dvida soberana, pelo que a funo estabilizao est intimamente relacionada com a poltica oramental. Fernandes (2008, p. 24) alude aos instumentos que os Estados tm sua disposio para estabilizar os ciclos econmicos. Os discricionrios, que surgem quando as medidas adoptadas para corrigir os desiquilbrios macroeconmicos resultam de deliberaes expressas, e os automticos, que correspondem ao funcionamento dos estabilizadores automticos incorporados no tecido econmico, e que actuam sem necessidade de uma deliberao nesse sentido. Como veremos no subcaptulo seguinte, a cada modelo de Estado cabe, predominantemente, uma funo econmica. Apesar destas funes permanecerem actuais, a viso compartimentada que Musgrave13 tinha das mesmas no faz sentido nos dias de hoje, uma vez que todas elas se entrelaam entre si nas polticas desenvolvidas pelos diversos governos (Stiglitz, 2000).

2.3. Os modelos de EstadoPara que possamos abordar os modelos de Estado e as teorias de finanas pblicas convm, em primeiro lugar, caracterizar sumariamente os diferentes sistemas econmicos, pois o papel que o Estado exerce em cada um deles completamente distinto. Podemos, assim considerar os seguintes sistemas econmicos fundamentais: (i) o sistema socialista, onde existe uma planificao da economia e no qual o Estado o detentor da quase totalidade dos meios de produo; (ii) o sistema capitalista, em que os fatores de produo esto na posse dos privados, no havendo qualquer interveno estatal; (iii) o modelo de economia mista, onde no h planificao, os meios de produo so privados mas o Estado intervm nos mercados por razes de eficincia econmica e tica social. Sendo este ltimo, o modelo econmico existente em Portugal e nos restantes pases da Unio Europeia, nele que a anlise dos temas deste captulo assentar. O estudo dos modelos ou teorias de Estado est, como veremos ao longo deste subcaptulo, intimamente relacionado com as teorias de finanas e, ao longo dos tempos tem procurado responder a trs questes que Pereira et al. (2009) enuncia: (i) Qual a razo para a existncia de um Estado? (ii) Qual a dimenso que o sector pblico deve ter? (iii) Como seAs taxas nominais de juro so as praticadas vista, no mercado, independentemente da taxa de inflao. Richard Abel Musgrave foi um clebre economista e um dos principais autores da teoria contempornea das finanas pblicas. Das obras por si publicadas, destaca-se The Theory Of Public Finance (1959).13 12

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deve compor a despesa pblica? As respostas a estas questes podero direcionar-nos para trs modelos distintos: o Estado mnimo ou liberal, o Estado Providncia ou Estado Social e o Estado Imperfeito.

2.3.1. O Estado MnimoEm contraponto teoria mercantilista14 que vigorou entre os sculos XVI e XVII surge, no sculo seguinte, a ideia de que os Estados no deveriam intervir nas economias e que o seu papel se deveria limitar a criar condies para que os mercados funcionassem naturalmente, prover a existncia de um conjunto de bens e servios pblicos e colocar, ao dispor dos privados, um conjunto de infraestruturas necessrias ao desenvolvimento da economia (Pereira et al., 2009). O precursor desta corrente foi o economista e filsofo escocs Adam Smith que, atravs da obra A Riqueza das Naes (1776), se esforou por demonstrar como a concorrncia e a prossecuo do lucro conduziriam os indivduos, ainda que involuntariamente a servir o interesse pblico (Stiglitz, 2000). Expoente mximo desta ideia a afirmao no da benevolncia do talhante, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos o nosso jantar, mas da sua preocupao pelo seu prprio interesse (Adam Smith citado por Bento, 2011, p. 16). A defesa deste modelo de Estado Mnimo (tambm conhecido como Estado liberal) ocorreu em duas pocas distintas. A primeira, nos sculos XVIII e XIX, atravs de Adam Smith, David Ricardo e John Stuart Mill, sendo considerado um modelo bastante vanguardista para a poca, j que o sistema tributrio dos Estados assentava, essencialmente, nos impostos alfandegrios, no havendo impostos sobre o rendimento (Pereira et al., 2009). Ao apelar no interveno do Estado na economia, tal corrente implicaria uma reduo substancial daqueles impostos. Ora, se os impostos visam satisfazer as necessidades financeiras do Estado, quanto menor for o peso do Estado na sociedade, menos impostos sero cobrados. , neste mbito que outro economista liberal, Jean Baptiste Say, citado por David Ricardo (1978, [1871], p. 278), afirmaria que o melhor de todos os planos financeiros consiste em gastar

O mercantilismo uma teoria econmica posta em prtica na Europa, entre os sculos XVI e XVII. Assentava na ideia de que a riqueza dos pases dependia da quantidade de metais preciosos que estes conseguiam acumular. Uma vez que, poca, os pagamentos efetuados eram atravs de ouro e prata, essa acumulao de metais preciosos significava, tambm, um saldo favorvel na Balana Comercial. Esta teoria econmica atingiu o seu mximo em Frana, no reinado de Lus XIV, atravs do seu Ministro JeanBaptiste Colbert, com a criao de medidas restritivas s importaes, nomeadamente, elevadas taxas alfandegrias, assistindo, em simultneo, a uma interveno do Estado na economia, quer atravs da criao de indstrias (manufaturas), quer atravs de incentivos aos particulares.

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pouco e o melhor de todos os impostos o que proporciona menores receitas (David Ricardo citado por Pereira et al., 2009, p. 21). A segunda poca de defesa deste modelo foi j no sculo XX, tendo como principal defensor Robert Nozick, um filsofo poltico norte-americano que, com a sua obra Anarchy, State and Utopia (1974), atribui uma grande importncia liberdade individual. Para Nozick, o Estado deve-se limitar s funes restritas de proteco contra a fora, roubo, a fraude, de fiscalizao do cumprimentos de contratos, sendo que uma maior interveno do Estado violar os direitos individuais das pessoas a serem foradas a fazer certas coisas (Nozick, 1974, p. 9). Assim, o Estado no poder usar instrumentos compulsivos com o propsito de obrigar os cidados a ajudarem outros, ou de no permitir determinadas actividades aos cidados para o prprio bem ou sua proteco. A defesa do Estado Liberal protagonizado por Nozick pode assentar, segundo Pereira et al. (2009, p. 23), em trs razes: (i) a ideia da existncia de direitos inviolveis dos indivduos; (ii) uma teoria sobre a criao de desigualdades; e (iii) a noo de Estado como associao voluntria de indivduos. A primeira razo decorre dos primrdios do liberalismo, principalmente de John Locke e de Stuart Mill, pois cada um dono de si prprio e no pertena de outrem. A segunda relaciona-se com o facto de os indivduos no serem iguais e poderem, a partir das mesmas condies objectivas e subjectivas (Pereira et al., 2009, p. 23) fazerem uso distinto dos seus rendimentos. Por exemplo, um indviduo pode ter uma propenso para gastar todo o seu rendimento enquanto que outro prefere poupar. Esta poupana ir originar uma possibilidade de investimento e, assim, de aumentar os seus rendimentos. Enquanto um (o consumista) ir manter sempre o mesmo rendimento, o outro (o aforrador) ir aumentar o seu. Daqui poder concluir-se que as desigualdades foram criadas pelas escolhas individuais, voluntariamente realizadas, pelo que o Estado no dever tratar estes indivduos de forma distinta. A terceira e ltima razo deriva do facto de Nozick imaginar que os indivduos comeam por se organizar em associaes protectoras com o intuito de assegurar a sua prpria segurana, concorrendo essas associaes para a existncia do Estado Mnimo. As ideias preconizadas por Nozick esto na base de que o Estado se deve restringir, apenas e s, sua funo de afectao e como prestador e fornecedor de servios pblicos, abstraindo-se de promover a redistribuio do rendimento (funo redistributiva), pelo que o peso do sector pblico nesta concepo de estado no deve ir alm dos 15% do produto interno bruto (Pereira et al., 2009). 17

2.3.2. O Estado ProvidnciaAo contrrio dos defensores do Estado Mnimo, os apologistas do Estado Providncia (tambm denominado de Estado Protetor, Estado de Bem-Estar ou, na verso anglo-saxnica, Welfare State), defendem que o Estado deve promover a redistribuio do rendimento pois, s assim, possvel alcanar os objectivos de uma sociedade justa rejeitando que o sector pblico tenha meramente um carcter residual (Pereira et al., 2009, p. 24). Neste sentido, os oramentos de um Estado Providncia devero dedicar entre 40% a 60% a despesas de investimento e a despesas sociais (idem, p. 38). Por outro lado, e apesar de acreditarem que os mercados so importantes por promoverem uma afectao eficiente dos recursos disponveis, consideram que os mesmos no so justos nem conduzem a uma afectao socialmente desejvel dos recursos (ibidem, p. 24). Podemos encontrar uma definio bastante completa do que o Estado Providncia na obra de Asa Briggs, The Welfare State in Historical Perspective (1961) e que, dada a sua importncia, se optou por transcrever na verso original: A welfare state is a state in which organized power is deliberately used (through politics and administration) in an effort to modify the play of market forces in at least three directions first, by guaranteeing individuals and families a minimum income irrespective of the market value of their work or their property; second, by narrowing the extent of insecurity by enabling individuals and families to meet certain social contingencies (for example, sickness, old age and unemployment) which lead otherwise to individual and families crises; and third, by ensuring that all citizens without distinction of status or class are offered the best standarts available in relation to a certain agreed range of social services (Briggs, 2006) Depreende-se destas linhas que o Estado Providncia deve atuar em trs perspetivas distintas: (i) garantindo um rendimento mnimo aos indivduos e s famlias, independente do valor de mercado do seu trabalho ou da sua propriedade; (ii) reduzindo os riscos em certas contingncias sociais como a doena, a reforma por velhice e o desemprego; (iii) oferecendo a todos os cidados, independentemente da sua classe social, um leque de servios sociais aos melhores nveis.

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Constata-se, assim, que a funo de redistribuio do rendimento desempenha um grande papel no Estado de Bem-Estar e que se relaciona com a teoria do utilitarismo15. Como refere Pereira et al. (2009, p. 25), a ttulo de exemplo, se a utilidade de um euro adicional para um indivduo pobre muito superior desutilidade de um euro a menos para um indivduo rico, transferir um euro do segundo para o primeiro far aumentar o bem-estar social. Uma vez que os mercados, apesar de poderem funcionar de forma eficiente, no so capazes de promover a redistribuio do rendimento, ter que ser o Estado a desempenhar esse papel, quer atravs da cobrana de impostos, quer pela atribuio de prestaes sociais, respondendo, assim, aos dois primeiros pressupostos de Briggs. A oferta de servios (ou bens) sociais a todos os cidados, nomeadamente aos mais desfavorecidos, uma tarefa do Estado pois estes no dispem de possibilidades de poder usufruir dos mesmos sem a interveno do Estado. Apesar do Estado Providncia ter tido o seu apogeu a partir da Grande Depresso e, sobretudo, aps a II Guerra Mundial, no nos podemos esquecer do papel desempenhado pelo chanceler alemo Bismarck (1815-1898). Se atentarmos aos trs princpios enunciados por Briggs e ao que o estadista alemo realizou enquanto esteve no poder conclumos ter sido um dos precursores do Estado Social, j que foi da sua responsabilidade a criao de vrias prestaes sociais que, s mais tarde, viriam a ser implementadas noutros pases: o subsdio de doena (1883), a lei de acidentes de trabalho (1884) e as penses de reforma (1889). Contudo, a Grande Depresso causada pelo crash da bolsa em Wall Street que consciencializa os Estados para a importncia da proteo aos mais desfavorecidos e que teve em Keynes (1883-1946) um acrrimo defensor do papel intervencionista do Estado numa economia caracterizada pela adoo de medidas de ndole fiscal e monetria, originando o enfraquecimento dos efeitos desfavorveis dos ciclos econmicos. Este modelo de estado expandiu-se aps a II Guerra Mundial e acompanhou o crescimento econmico que se lhe seguiu, durante quase trs dcadas. a partir da crise econmica decorrente dos choques petrolferos da dcada de 1970 que alguns governantes comeam a questionar a manuteno do Estado Social, principalmente a Primeira-Ministra britnica, Margaret Tatcher, que implementou uma poltica restritiva dos benefcios sociais, uma vez que o Estado tinha deixado de ter condies econmicas para sustentar o modelo Estado Providncia.O utilitarismo uma doutrina filosfica que avalia, de forma moral, as aes pelo seu carcter vantajoso (ou no) das suas consequncias (Cabral R. , s.d.). Na atualidade, pode-se afirmar que o utilitarismo uma teoria que permite avaliar o efeito de certas aces no bem-estar social a partir da soma das variaes de bem-estar (benefcios menos custos) em todos os indivduos resultantes dessas aces (Pereira et al., 2009, p. 25).15

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No entanto, e apesar de poder parecer um contrassenso, certo que a generalidade dos pases da OCDE tem vindo a aumentar os gastos com polticas sociais, no s em percentagem do PIB mas, tambm, em valores absolutos (Anexo I). No caso particular de Portugal, a implementao do Estado Providncia s ocorreu, efetivamente, aps a Revoluo do 25 de Abril de 1974. Apesar de antes de 1974 j existirem prestaes sociais, como o subsdio por doena e as penses de reforma, os mesmos no estavam acessveis generalidade da populao. Por outro lado, o subsdio de desemprego s foi criado em 1975 e o acesso da populao aos cuidados de sade, atravs do Servio Nacional de Sade, s foi possvel a partir de 1979.

2.3.3. O Estado ImperfeitoO que conhecemos de Estado Mnimo e de Estado Providncia baseia-se em concees tericas criadas ao longo dos tempos e que foram postas em prtica, com maiores ou menores adaptaes. Por isso, como refere Pereira et al. (2009, p. 28), tratam-se de abordagens normativas que, por vezes, no correspondem realidade dos factos. A questo que se coloca, aqui, saber se os Estados visam sempre o interesse pblico ou se, com o poder coercivo que detm (principalmente na cobrana de impostos), se podem transformar em monstros que necessitam cada vez mais de recursos financeiros para se satisfazerem a si prprios. Um dos exemplos de Estado Imperfeito o Estado Leviat16, preconizado pelo filsofo ingls Thomas Hobbes na obra Leviat ou Matria, Forma e Poder de um Estado Eclesistico e Civil, publicada em 1651, e que considerada como precursora do contrato social abordado, mais tarde, por John Locke e por Jean-Jacques Rosseau. Hobbes parte do princpio de que, sendo o egosmo uma caracterstica humana e que todos os homens competem entre si, necessrio a existncia de um contrato social que assegure a existncia de paz e que deve ser uma pessoa ou um grupo de pessoas a zelarem para que o mesmo seja cumprido, punindo quem no o faa, exercendo, assim, uma funo de soberania. No entanto, a anlise que Hobbes faz do papel do soberano (ou do Estado) leva-o a concluir que essa personagem ter a tendncia para possuir cada vez mais poderes, tornandose num monstro que cresce sem parar, s custas dos impostos pagos pelos cidados. Esta viso preconizada por Hobbes, ainda que levada ao extremo, assemelha-se em muito ao que16

Leviat era uma criatura descrita no Antigo Testamento (Livro de Job) que habitava os mares e que permaneceu no imaginrio dos marinheiros europeus da Idade Moderna.

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se tem vindo a assistir nos ltimos tempos. Alis, j desde os anos 70 do sculo XX que alguns economistas preconizaram uma verso mais moderada da teoria de Hobbes. Entre estes, destacam-se James Buchanan que, com Gordon Tullock, desenvolveu a teoria da Escolha Pblica, o que lhe valeu o Prmio Nobel da Economia em 1986. A teoria da Escolha Pblica deriva da forma como o processo poltico funciona, partindo do princpio que os indivduos nele envolvidos procuram satisfazer os seus prprios interesses, ocorrendo, assim, falhas de governo. Na abordagem que faz desta temtica, Pereira et al (2009, p. 32) enuncia quatro dessas falhas: (i) a atribuio de benefcios fiscais a determinados agentes econmicos ir provocar que outros agentes econmicos procurem usufruir desses benefcios (rent seeking ou teoria da procura de rendas); (ii) os executores polticos no deterem toda a informao sobre como os dinheiros pblicos devem ser gastos eficazmente pela administrao pblica (teoria da burocracia); (iii) as decises polticas estarem dependentes de ciclos eleitorais, o que originar uma gesto da economia em funo desses mesmos ciclos e no da funo estabilizao; e (iv) a participao em eleies dos adultos de agora implicarem escolhas pblicas que redundem em dfices que sero pagos pelas geraes vindouras e que no tiveram participao eleitoral. A teoria da Escolha Pblica, enquanto corrente de pensamento, encontra-se nos antpodas da economia do bem-estar, traduzida pelo modelo de Estado Providncia. Enquanto que esta ltima defende a interveno do Estado na economia como forma de colmatar as falhas de mercado, a primeira veio clarificar os fracassos de governo e os limites da interveno desse mesmo Estado (Pereira, s.d., p. 3). O chamado Estado Imperfeito deriva do facto dos Estados deterem o monoplio com poderes exclusivos de tributao, de emisso de licenas, de regulao da competio (Pereira et al., 2009, p. 31) existindo, ainda, a possibilidade das maiorias eleitas democraticamente nem sempre zelarem pelo interesse comum. Isto ir levar a que os Estados usem do poder tributrio que detm para cobrarem cada vez mais impostos. Perante estas evidncias, economistas como Brennan e Buchanan, entre outros, defendem a instituio de restries de natureza constitucional que limitem, tanto a dvida pblica como o dfice oramental, evitando a tomada de deciso discricionria pelos poderes pblicos (Pereira et al., 2009, p. 31). Como veremos frente, esta posio assenta que nem uma luva na teoria do Constitucionalismo Financeiro e que, ultimamente, tem sido defendida por alguns polticos europeus como forma de colocar um travo deteriorao oramental que afecta os pases a Zona Euro. Estes autores recuperam, ainda, a ideia de Hobbes de um

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contrato social a celebrar entre os cidados e os Estados, em que haveriam cedncias de parte a parte.

2.4. Teorias das finanas pblicasA par das funes e dos modelos de Estado, este captulo dedica, tambm, ateno s teorias sobre as finanas pblicas: as finanas clssicas, as finanas intervencionistas e o constitucionalismo financeiro.

2.4.1. Finanas ClssicasA teoria das Finanas Clssicas est associada ao Estado Mnimo, cujas origens remontam aos finais do sculo XVIII/incios do sculo XIX e caracteriza-se pela existncia de um sector pblico com um peso bastante reduzido, sem qualquer atividade empresarial, cingindo-se a interveno do Estado construo de infraestruturas e quilo que conhecemos hoje como funes de soberania: defesa nacional, segurana, criao de legislao e administrao da justia. Ao disponibilizar populao estes bens e servios que os privados muito dificilmente disponibilizariam, o Estado d uma grande nfase funo afetao. Face fraca interveno do sector pblico na economia, os seus oramentos so reduzidos ou neutros do ponto de vista da proteo social s populaes carenciadas, no ultrapassando, como atrs j foi referido, os 10/15 por cento do PIB, privilegiando como fonte de receitas, a cobrana de impostos e nunca o recurso dvida pblica. Por isso, so equilibrados e os saldos oramentais no apresentam dfices.

2.4.2. Finanas IntervencionistasAo contrrio do postulado na teoria das Finanas Clssicas, a teoria das Finanas Intervencionistas sugere, tal como o prprio nome indica, uma maior interveno do Estado na economia, surgindo associada ao modelo de Estado Providncia, e que teve em John Maynard Keynes, atravs da sua obra de referncia Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda (1936), o seu principal impulsionador. O objetivo era regular a economia privada, uma vez que considerava no existir autorregulao nos mercados, o que era gerador de desigualdades sociais e de repartio dos rendimentos. Para promover o esbatimento destas desigualdades, o Estado devia dar particular importncia funo redistribuio, bem como de estabilizao. 22

Face maior interveno na economia, os seus oramentos so bastante mais amplos, entre 40 a 60 por cento do PIB, com uma grande componente de despesas sociais: educao, sade, segurana social e, tambm, de despesas de investimento, no importando que os mesmos se apresentem desequilibrados, isto , que apresentem dfices, sendo que o financiamento do Estado efetuado, no s atravs de impostos mas, tambm, atravs do endividamento pblico e da emisso de moeda. Keynes defende mesmo que a interveno do Estado necessria para relanar a procura efectiva, mesmo que isso implique despesa pblica improdutiva (Pereira et al., 2009, p. 34), desde que se cumpra a regra de ouro das finanas pblicas17. Alis, Keynes defende a existncia de uma poltica econmica anti cclica: em perodos de crescimento econmico, os saldos oramentais devero ser superavitrios (ou de dfices reduzidos) para que, em perodos de recesso, possam ocorrer dfices a partir de polticas oramentais expansionistas com vista a impulsionarem a retoma do crescimento.

2.4.3. Constitucionalismo FinanceiroSe as Finanas Clssicas e as Finanas Intervencionistas decorrem, respetivamente, dos modelos de Estado Mnimo e de Estado Social, o Constitucionalismo Financeiro relaciona-se com o modelo de Estado Imperfeito. Os defensores desta teoria constataram que, para alm do peso do sector pblico nas economias ser excessivo (Pereira et al., 2009, refere a ttulo de exemplo que, em determinados pases do Norte da Europa, esse peso ultrapassa dos 60% do PIB), tambm a dvida pblica e os seus juros assumiam, cada vez mais, uma maior importncia na componente da despesa constituindo, assim, um fracasso dos governos. Como tal, isso originou que esta teoria se focasse em restringir as actividades dos governos democrticos, quer de natureza constitucional, quer no que toca s regras e procedimentos das decises polticas democrticas (Pereira et al., 2009, p. 35) pois, sem essas regras, os Estados tenderiam a apresentar saldos oramentais altamente deficitrios. Com a crise que a Zona do Euro tem vindo a viver, sobretudo devido s dvidas soberanas e aos excessivos dfices oramentais dos pases perifricos, muito se tem falado, ultimamente, da incluso de limites oramentais nas constituies de cada Estado-Membro.Segundo Pereira et al. (2009, p. 463), a regra de ouro das finanas pblicas define que o valor do dfice oramental no dever ser superior ao valor das despesas de investimento (essencialmente as despesas de capital). Esta definio tem em linha de conta o facto destas despesas serem necessrias para criar infraestruturas e potenciar o desenvolvimento e crescimento econmico.17

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Alis, esta proposta no recente e at j se encontra plasmada no Tratado da Unio Europeia, atravs do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que exige aos Estados-membros da Zona do Euro o cumprimento de dois requisitos: (i) dfice oramental inferior a 3% do PIB e (ii) dvida pblica inferior a 60% do PIB. A teoria do Constitucionalismo Financeiro atribui principal importncia funo afetao, sendo os recursos afetados de modo eficiente. Relativamente aos seus oramentos, so relativamente reduzidos, situando-se entre os 20% e os 30% do PIB, nomeadamente atravs de despesas de investimento e sociais gerais. O financiamento realizado atravs de impostos, no excluindo a possibilidade de recurso ao endividamento, desde que este seja controlado atravs de restries. O Anexo II resume, de uma forma simples e sinttica, as relaes entre os diferentes modelos de Estado e as teorias de finanas pblicas aqui referidos.

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3. A globalizao e as finanas pblicas portuguesasA globalizao um tema que tem vindo a despertar fortes polmicas em todo o mundo, podendo ser vista como um dos marcos definidores da sociedade atual, envolvendo um conjunto de relaes (polticas, econmicas, sociais ou culturais) e que vem agitar, de forma mais ou menos rigorosa, os aspetos sociais e mentais dos indivduos e das sociedades. Uma das reas onde a globalizao mais se faz sentir na economia e, por via desta, nas finanas pblicas18 de cada Estado. o que veremos ao longo deste captulo, no qual procederemos a uma anlise da evoluo das finanas pblicas nacionais desde meados do sculo XX at aos nossos dias e, posteriormente, refletiremos de que forma a globalizao influencia, ainda que indiretamente, as finanas pblicas nacionais. Apesar de as despesas poderem ser classificadas atravs de trs critrios diferentes (orgnico19, funcional20 e econmico21), as receitas s o podem ser apenas segundo o critrio econmico. Assim, adotaremos este critrio para proceder anlise, ao longo do presente trabalho, das finanas pblicas nacionais. Os anexos III e IV contm a identificao e a sntese de cada uma das rbricas de despesa e de receita sob a perspetiva econmica.

3.1. A evoluo da economia e das finanas pblicas portuguesasComo vimos no incio do captulo 2, as finanas pblicas esto intimamente relacionadas com a economia. Se esta tiver um desempenho positivo, com todos os indicadores macroeconmicos (consumo privado, investimento, emprego) positivos, as finanas pblicas tendero a seguir um caminho para a sustentabilidade. Se a economia estiver em estagnao ou em recesso, tende haver uma deteriorao dos mesmos o que originar um maior esforo do Estado, quer para tentar alavancar a retoma econmica atravs de um maior investimento pblico, quer para acudir, em termos sociais, queles que se viram

Conjunto das receitas arrecadadas pelo Estado e das despesas efetuadas pelo mesmo com vista satisfao das necessidades coletivas, sendo concretizada, no caso de Portugal, atravs da elaborao de um Oramento de Estado, que um documento apresentado sob a forma de lei, que comporta uma descrio detalhada de todas as receitas e de todas as despesas do Estado, proposta pelo Governo e autorizadas pela Assembleia da Repblica, e antecipadamente previstas para um horizonte temporal de um ano (Pereira et al., 2009, p. 405). 19 A despesa pblica classificada por departamentos da administrao pblica, normalmente, por Ministrios (Pereira et al., 2009, p. 421) 20 A despesa pblica desagregada pelos diferentes domnios de interveno do Estado as designadas funes e subfunes, a que correspondem finalidades especficas (Pereira et al., 2009, p. 421). Desde 1995 que vigora em Portugal o esquema proposto pelo Fundo Monetrio Internacional (FMI): 1. Funes gerais de soberania; 2. Funes Sociais; 3. Funes Econmicas; 4. Outras Funes. 21 Este tipo de classificao permite, para alm da separao em despesas correntes e despesas de capital, uma diviso em doze agrupamentos econmicos (Pereira et al., 2009, p. 422)

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em situao de desemprego. com base nesta relao que prosseguiremos o presente trabalho. Se atendermos histria das nossas finanas pblicas e s diversas crises financeiras em que Portugal esteve emerso, talvez acabaremos por concordar com a afirmao proferida por Armindo Monteiro22 em 1921 e citada por Pereira (2011, p. 75): A histria do dfice a histria das finanas portuguesas. Tanto o final da Monarquia, como a I Repblica, so perodos marcados pela instabilidade poltica e por sucessivas crises financeiras. Com o golpe militar de 28 de Maio de 1926, h uma tentativa de por cobro a esta situao, mas s com a chegada de Oliveira Salazar ao poder (primeiro como Ministro das Finanas e, depois, como Presidente do Conselho), que as contas pblicas portuguesas encontram o caminho da sustentabilidade apesar de, nos anos da II Guerra Mundial (1939-1945), as mesmas terem apresentado dfices. A partir da dcada de 1950 e at 1973 viveu-se o perodo de mais forte crescimento econmico registado em toda Histria de Portugal (Amaral, 2010, p. 23), originando um equilbrio sustentado das nossas contas pblicas (Figura I). A este crescimento econmico no alheia a forte industrializao que ocorreu a partir de ento. Em vinte e trs anos (1950-1973), e ainda segundo o mesmo autor, houve um decrscimo em cerca de 50% da populao activa no sector primrio que transitou para os sectores secundrio e tercirio, sectores estes que viram, tambm, aumentar o seu peso na criao de riqueza (indstria, de 34% para 41% do PIB; servios, de 38% para 47% do PIB). Constatamos, assim, que a sustentabilidade das finanas pblicas durante o Estado Novo est, em parte, relacionada com o crescimento econmico proporcionado pela industrializao ocorrida a partir de meados do sculo XX (Figura II) e s em dois anos deste perodo se registaram necessidades de financiamento23 (1949 e 1963). Para alm disso, a capacidade de financiamento ocorrida nos restantes anos foi largamente superior s necessidades registadas naqueles dois anos. E, como veremos a seguir, foi algo que nunca mais aconteceu na nossa histria.

Armindo Monteiro foi um professor universitrio com especializao em Finanas Pblicas, empresrio, diplomata e poltico, que desempenhou importantes funes durante o regime do Estado Novo. 23 Encontramos uma definio de necessidades de financiamento em Pereira et. al (2009, p. 509) como sendo o resultado da soma do dfice oramental e das amortizaes da dvida pblica, subtrada das receitas de privatizaes e das vendas de patrimnio, e so, na prtica, o montante total de novas emisses de dvida pblica a que o Estado tem que recorrer no ano em causa.

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Figura I - PIB per capita a preos constantes (base=2006) Variao anual (1961-1973)12,000% 10,000% 8,000% 6,000% 4,000% 2,000% ,000% 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973

Fonte: Pordata

A partir de 1974, o cenrio inverteu-se e Portugal tem apresentado, desde ento, necessidades de financiamento sucessivas, no se vislumbrando qualquer reao para inverter a situao de uma forma sustentada. Alis, a tendncia precisamente em sentido contrrio (Figura III).Figura II - Receitas e Despesas das Administraes Pblicas entre 1947-1973 (milhes de euros)400 350 300 250 200 150 100 50 0 -50 1947 1948 1949 1950 1951 1952 1953 1954 1955 1956 1957 1958 1959 1960 1961 1962 1963 1964 1965 1966 1967 1968 1969 1970 1971 1972 1973 Receita total Despesa total Capacidade (+) Necessidade (-) de financiamento

Fonte: Banco de Portugal, Sries Longas para a Economia Portuguesa Ps II Guerra Mundial

O que leva um pas, depois de um perodo de crescimento econmico, em que as contas pblicas se apresentaram controladas e sustentveis para uma situao de descontrole oramental? Devemos ter em ateno que, se por um lado houve um forte crescimento econmico neste quase quarto de sculo, reduzindo o atraso da nossa economia face s economias europeias, por outro registou-se uma divergncia no que toca ao modelo de Estado 27

implementado. Ao passo que a Europa ocidental do ps-II Guerra Mundial adotou o modelo do Estado Providncia, em Portugal no houve grandes preocupaes com os problemas sociais. Como nos diz Amaral, democracia e preocupaes sociais so indissociveis, uma vez que o sufrgio universal constitui o grande motor do crescimento das polticas sociais (idem, p. 25).Figura III - Receitas e Despesas das Administraes Pblicas entre 1974 e 1985 (milhes de euros)10.000 8.000 6.000 4.000 2.000 0.000 -2.000 -4.000 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 Receita total Despesa total Capacidade (+) Necessidade (-) de financiamento

Fontes: Banco de Portugal, Sries Longas para a Economia Portuguesa Ps II Guerra Mundial e Pordata

Com o fim do Estado Novo, h uma inverso, tanto na tendncia da economia (que regride), como no modelo de Estado com a implementao de medidas de carcter social que, em conjunto com as polticas levadas a cabo no perodo ps-revoluo, tero uma influncia negativa nas finanas pblicas. A queda do PIB per capita registada em 1974 acentua-se, de forma bastante pronunciada, em 1975 (-8,64%) e 1976 (-0,52%) (Figura IV) e que, segundo o autor que temos vindo a referir, se ficou a dever conjugao de variados fatores. Desde logo, o choque petrolfero iniciado em 1973 e que originou uma crise nas economias desenvolvidas, bastante dependentes desta matria-prima. Na economia portuguesa, isso refletiu-se na deteriorao dos termos de troca24, em que os preos das exportaes relativamente aos das importaes caram acentuadamente, o que colocou uma forte presso sobre a balana de pagamentos (ibidem, p. 28).

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Termos de troca uma expresso usada em economia que relaciona o valor das importaes e das exportaes.

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Figura IV - PIB per capita a preos constantes (base=2006) (Variao anual 1974-1985)8,000% 6,000% 4,000% 2,000% ,000% -2,000% -4,000% -6,000% -8,000% -10,000% 1974 1975 1976 1977 1978 1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985

Fonte: Pordata

Depois, a instabilidade poltica, econmica e social que se viveu aps o 25 de Abril de 1974. Passou-se duma poca onde imperava a restrio s liberdades individuais para uma em que as manifestaes, as greves e a reivindicaes, quer por melhores salrios, quer por menos horas de trabalho, passaram a ser uma constante. Tendo em linha de conta a conjuntura econmica que se vivia data, em que os custos das matrias-primas e da energia sofriam aumentos significativos devido subida do preo do petrleo, faria todo o sentido que, para tornar a economia nacional mais competitiva, o custo do fator trabalho sofresse uma reduo. No entanto, s em 1975, os salrios registaram um aumento prximo de 30% (ibidem, p. 28). Para agravar ainda mais a situao econmica nacional, Portugal teve que acolher, em virtude do conturbado processo de descolonizao, um nmero significativo25 de retornados26. A conjugao de todos estes eventos levaram a que a economia portuguesa entrasse num processo de contrao, afetando o investimento e a produtividade e levando a que muitas empresas se tornassem inviveis e outras perdessem competitividade no mercado

Jos Medeiros Ferreira, responsvel pelo VIII volume da Histria de Portugal cita os dados do INE resultantes dos Censos de 1981, para afirmar que o nmero de retornados foi de 505.078 (vide A descolonizao: seu processo e consequncias, 1994, p. 86). 26 Termo utilizado para definir os portugueses que, estando fixados nas ex-colnias africanas, se viram forados a regressar a Portugal aps o processo de descolonizao. Em rigor, para muitos no se tratou de um regresso mas, sim, de conhecer a Metrpole pela primeira vez nas suas vidas. Falamos da segunda gerao de portugueses nascidos nas ex-colnias, habituados a respirar liberdade.

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externo. Em face disto, os nveis de desemprego aumentaram27 de 1,5% em 1973 para 5% em 1975 (ibidem, p. 28). A par do agravamento das condies econmicas para as empresas, h que referir, ainda, o processo de nacionalizaes28 ocorrido em 1975, que levou estatizao de sectores vitais da economia nacional: banca, seguros, siderurgia, construo e reparao naval, cimentos, celulose, produtos qumicos e petroqumicos, originando o desmantelamento dos grandes grupos econmicos criados no regime anterior assistindo-se, em simultneo, ao movimento da ocupao de terras nomeadamente no Ribatejo, Alentejo e Algarve, naquilo que viria a ser conhecido como o processo da Reforma Agrria29. Ao nvel laboral e, para alm do extraordinrio aumento dos salrios reais atrs referido, este perodo tambm foi frtil em outras mudanas, com a introduo duma remunerao mnima mensal30, o direito greve31, o alargamento do perodo de frias, a reduo das horas de trabalho, bem como, a implementao dos dcimo terceiro e dcimo quarto meses nas remuneraes dos trabalhadores. De salientar, ainda, a promulgao da Constituio da Repblica Portuguesa que assumiu uma tendncia marcadamente ideolgica, dando cobertura legal a muito do que atrs foi descrito: as nacionalizaes e a restrio iniciativa privada dos sectores nacionalizados, a reforma agrria, as leis laborais e, sobretudo, a institucionalizao do Estado Providncia, consagrado nos artigos 63. (Segurana Social) e 64. (Sade). Aps sete revises constitucionais (a ltima ocorreu em 2005) e de alteraes registadas na redao deste articulado, os princpios gerais do Estado Providncia mantm-se inalterados. Com a normalizao da situao poltica, Portugal entra no caminho da democracia consolidada. No entanto, isso no significou uma estabilizao da economia. Nos anos que se seguiram, esta ressentiu-se das mudanas ocorridas no perodo ps-revoluo, oscilando entre acentuados ciclos contrrios de expanso e contraco (Amaral, 2010, p. 30). Na opinio deste autor, isso ficou-se a dever quilo que Pereira et al. (2009) refere como umaSegundo Amaral (2010, p. 28), o desemprego em Portugal passou de 1,5% em 1973 para 5% em 1975. No entanto, os dados estatsticos disponibilizados pela AMECO mostram taxas de desemprego diferentes: 2,6% (1973), 1,7% (1974) e 4,4% (1975). 28 Termo utilizado para definir a criao de um monoplio estatal sobre a explorao de determinado recurso natural ou aquisio, eventualmente obrigatria, pelo Estado, de empresas privadas ou da totalidade de sectores da economia, anteriormente controlados por privados, de modo que passem a ser propriedade pblica. 29 Movimento de transformao das estruturas agrrias concretizado, sobretudo, atravs da distribuio de terras pelos trabalhadores, margem de uma negociao voluntria com os proprietrios, a quem so confiscadas as respetivas terras por motivos ideolgicos. 30 O salrio mnimo nacional foi introduzido em Portugal atravs do Decreto-Lei n. 217/74, de 27 de Maio (Ministrio do Trabalho e da Solidariedade Social). 31 O direito greve est consagrado na Constituio da Repblica Portuguesa (art. 57.) e foi regulamentado, inicialmente, pela Lei n. 65/77, de 26 de Agosto.27

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falha de governo: as decises polticas estarem dependentes de ciclos eleitorais, originando uma gesto da economia em funo desses mesmos ciclos e no da estabilizao macroeconmica. Foi o que aconteceu quando os governos usaram a banca nacionalizada e as empresas pblicas para expandirem a economia ou conterem o desemprego, nomeadamente nos perodos 1976-1978 e 1980-1983, sucedendo-lhes perodos de contrao econmica (1978-1980 e 1983-1985) (Amaral, 2010, p. 31). Curiosamente (ou no), foi nestes dois perodos de contrao econmica que Portugal se viu obrigado a recorrer a assistncia financeira. A economia portuguesa registava, por esta altura, grandes debilidades. O desemprego aumentava significativamente32, a inflao atingia taxas recorde33, o dfice da balana comercial era cada vez maior, tendo aumentado, entre 1975 e 1977, 41 por cento34. E nem as subidas das taxas de juro35 nem a desvalorizao monetria do escudo36 permitiu inverter esta tendncia. A primeira interveno do FMI, datada de 1978, tinha como objetivo principal reduzir os dfices e a acentuada subida do desemprego e dos preos da energia, associados a uma forte presso dos preos (FMI, 2011). Para isso, deveria existir, a par dos estmulos dados poltica econmica, uma poltica oramental rigorosa, que fosse disciplinadora dos gastos pblicos. Apesar da disciplina oramental exigida no ter sido total, o certo que Portugal conseguiu reduzir o dfice na balana comercial. No incio da dcada de 1980, o dfice oramental volta a aumentar devido existncia de um calendrio eleitoral. Segundo Amaral (2010, p. 33), isto ficou-se a dever ao facto do governo ter adoptado uma poltica oramental expansionista, combinada com uma subida generalizada dos salrios e uma revalorizao da moeda. Apesar desta poltica ter melhorado as condies de vida dos portugueses, a mesma teve um impacto negativo ao nvel da competitividade das exportaes, aumentando o volume e o custo das importaes, a que se acresce o impacto negativo do novo choque petrolfero ocorrido em 1979, que provocou o encarecimento das matrias-primas, resultando num agravamento do dfice comercial.Informao disponvel no Anexo V. Informao disponvel no Anexo VI. 34 Informao disponvel no Anexo VII. 35 A subida das taxas de juro, tornando o crdito mais caro, implica que haja uma retrao na obteno do mesmo, levando a uma diminuio no consumo. Uma vez que o saldo da balana comercial de Portugal era bastante deficitrio, esta medida tinha como intuito final, reduzir as importaes e, deste modo, atenuar o dfice da balana comercial. Isso est patente no Anexo VI, nos anos de 1978 e 1979, em que se regista, de facto, uma diminuio das importaes. 36 Em termos de polticas econmicas, Portugal possua, at sua adeso ao Euro, a faculdade de usar trs tipos de polticas: a monetria, a cambial e a oramental, recorrendo assiduamente poltica cambial (desvalorizando o escudo) para tornar as suas exportaes mais competitivas e, dessa forma, procurar atenuar o saldo deficitrio da balana comercial. A partir de 1977 e at 1990, os sucessivos governos adotam o mecanismo do crawling peg, passando a desvalorizao monetria a ser constante (3% ao ano) e definida nos Oramentos de Estado.33 32

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Face a esta nova deteriorao econmica, a que se juntaram taxas de juro da dvida cada vez elevadas, a economia nacional entrou em recesso e Portugal v-se na eminncia de uma bancarrota, sendo obrigado a solicitar, de novo, assistncia financeira internacional. Em contrapartida, foram exigidas medidas de austeridade bem mais violentas que as de 1978: aumento dos preos dos bens, aumento das taxas de juro e uma forte restrio ao crdito bancrio, uma grande desvalorizao da moeda e o aumento da carga fiscal. Como seria de esperar, estas medidas de austeridade tiveram um impacto negativo no desempenho da economia, com o PIB a registar um crescimento negativo em 1984, o desemprego a aumentar, bem como a inflao que atinge em 1984 o valor mais alto de que h memria: 29,3%. E, se por um lado se conseguiu reduzir, uma vez mais, o dfice da balana comercial, o problema oramental continuou a subsistir, com o dfice oramental a atingir, tambm, o valor mais elevado at ento, prximo dos 10 por cento (Amaral, 2010, pp. 33-34). Em 1985, Portugal adere CEE. Tal ir permitir o desenvolvimento do pas, atravs da vinda dos fundos comunitrios que possibilitaro a recuperao econmica. A partir de 1986, a economia nacional comea a recuperar da austeridade ocorrida nos anos anteriores e entra numa era de prosperidade e de desenvolvimento que h muito no se via. No entanto, Portugal viu-se obrigado a abandonar as polticas protecionistas que existiam data, permitindo a livre circulao de bens e servios e, mais tarde, de capitais e pessoas. Esta era de prosperidade e de desenvolvimento no ser muito longa e durar at 1992. Apesar disso, a riqueza nacional registou crescimentos entre os 5% e os 8% (entre 1986 e 1990) e na ordem dos 3% (1991 e 1992) (Figura V). Para este crescimento contriburam a queda no preo do petrleo em cerca de 50% entre 1984 e 1986 e o fim do ajustamento oramental a que Portugal esteve obrigado aps a interveno do FMI, a integrao de Portugal na CEE que abriu s exportaes do pas as portas e enorme e prspero mercado europeu e, tambm, o aumento do IDE para valores prximos dos 4% do PIB. uma poca em que, atravs dos fundos comunitrios, se investe em infra-estruturas e na requalificao da mo-de-obra (idem, p. 36). Em termos polticos, esta poca caracterizada pela estabilidade decorrente da existncia de governos com apoio parlamentar maioritrio, o que permitiu a concretizao de reformas estruturantes, nomeadamente ao nvel do trabalho, e da abertura de sectores at ento vedados iniciativa privada. De referir, ainda, a reviso constitucional de 1989 que veio permitir a reprivatizao de empresas que se encontravam na esfera pblica, nomeadamente no sector da banca e dos seguros.

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O abrandamento no crescimento do PIB per capita registando no incio da dcada de 1990 culmina, em 1993, num crescimento negativo, fruto da crise internacional iniciada em 1992 e que se prolongar at 1994. Para alm da crise, h que ter em linha de conta que, a partir de 1992, Portugal passa a fazer parte do SME. Esta adeso ir conduzir implementao das medidas necessrias para abolir o escudo, tornando Portugal um dos fundadores da UEM (Amaral, 2010, pp. 39-40), que passaram pela reduo das taxas de inflao e de juros, nivelando-as com as existentes nos pases parceiros de Portugal no SME e, tambm, pela estabilidade cambial do escudo atravs duma poltica monetria restritiva (idem, p. 40). A adopo estas medidas contribuiram para o fraco desempenho da economia portuguesa nesse incio de dcada.Figura V - PIB per capita a preos constantes (base=2006) (Variao anual 1986-2010)10,000% 8,000% 6,000% 4,000% 2,000% ,000% -2,000% -4,000% 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Fonte: Pordata

O crescimento econmico volta a ser retomado em 1994 e prolongar-se- at ao virar do sculo. Facilitada pela reduo nas taxas de juro, a recuperao econmica fez-se, no atravs do contributo das exportaes, mas pela procura interna (consumo privado e investimento pblico), com principal impacto no sector no-transacionvel (ibidem, p. 41). Com a entrada de Portugal na UEM (1999), a economia portuguesa ir deteriorar-se. A primeira dcada deste sculo foi caracterizada por fracos crescimentos do produto e, inclusive, por decrscimos do mesmo (Figura V). Podemos apontar como principais causas desta realidade a adeso moeda nica e a impossibilidade de fazer uso da poltica monetria, com a consequente perda de competitividade das nossas exportaes, e um reduzido crescimento da produtividade. A isto, acresce-se um aumento do endividamento, quer por parte das famlias e das empresas, quer do sector pblico (Estado e o seu sector empresarial).

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O fraco desempenho da economia nesta dcada, associado a um maior endividamento pblico e a um maior esforo do Estado para fazer face aos seus compromissos sociais, ir levar a que as necessidades de financiamento (bem como os dfices oramentais) sejam cada vez maiores (Figura VI) violando, inclusive, o limite imposto pelo PEC.Figura VI - Receitas e Despesas das Administraes Pblicas entre 1986 e 2010 (milhes de euros)100.000 80.000 60.000 40.000 20.000 0.000 -20.000 -40.000 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010

Receita total Despesa total Capacidade (+) Necessidade (-) de financiamento

Fontes: Banco de Portugal, Sries Longas para a Economia Portuguesa Ps II Guerra Mundial e Pordata

A deteriorao da economia e das finanas pblicas portuguesas registadas nos ltimos anos levaram a que os juros cobrados pela emisso de dvida pblica fossem cada vez mais elevados, at um ponto que se tornaram insuportveis, razo pela qual o Governo se viu obrigado a recorrer a um programa de assistncia financeira.

3.2. A globalizao e os seus efeitos na economia portuguesaComo referimos no incio deste captulo, a globalizao um processo que envolve um conjunto de relaes polticas, econmicas, sociais ou culturais, entre outras, e que teve em Portugal a primeira nao globalisadora, no sculo XV, com os Descobrimentos (Pereira, 2007, p. 1), contemporizando a globalizao econmica e financeira em trs etapas, que ele chama trs vagas da globalizao (idem, p. 4), distintas entre si, mas que tm na inovao tecnolgica, o seu denominador comum. Segundo o autor, encontramo-nos na terceira vaga, que comeou com o final da II Guerra Mundial e que se acentuou a partir dos anos setenta com o abandono do padro ouro37 em 1973, o que facilitou a eliminao dosO padro ouro foi um sistema monetrio criado no sculo XIX e que consistia na adoo por parte das instituies financeiras de um preo fixo da sua moeda em relao ao ouro. Em 1944, foi definido um outro padro, o padro ouro-dlar que ficou conhecido como o Sistema de Bretton Woods e ao qual os Estados Unidos da Amrica viriam a renunciar em 1973.37

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controlos dos fluxos de capital. Esta fase caracteriza-se por trs ocorrncias que aparecem ligadas entre si: liberalizao do comrcio, com uma maior abertura dos mercados; a liberalizao das trocas comerciais e financeiras, cada vez menos reguladas; e importncia das tecnologias da informao e da comunicao. A adeso de Portugal CEE trouxe, para alm da possibilidade de acesso aos fundos comunitrios necessrios ao desenvolvimento do pas, a livre circulao de mercadorias. Se por um lado, Portugal deixou de poder impor restries s importaes, por outro passou a dispor de um enorme mercado para as suas exportaes. medida que a UE foi crescendo com os sucessivos alargamentos, o mercado para as exportaes portuguesas foi-se tornando maior mas, simultaneamente, mais competitivo. Perante esta situao, tornou-se imperioso que as empresas portuguesas aumentassem os seus nveis de produtividade e de competitividade, atravs da alterao ao modelo econmico desenvolvido ao longo das ltimas dcadas assente, sobretudo, na utilizao de mo-de-obra barata e pouco qualificada. Para que pudesse haver um aumento dos nveis de produtividade e de competitividade, o modelo econmico ter que se basear na criao de valor acrescentado atravs da inovao, da tecnologia, da investigao e desenvolvimento, da logstica, da comercializao, da promoo e da intermediao (Pereira, 2007, pp. 10-11), o que s poder vir a acontecer se, em conjunto com um crescimento mais rpido da produtividade, existir uma forte aposta nos sectores de bens transaccionveis38, com vista criao de emprego (idem, p. 11). Alis, um dos objectivos da ENDS 2015 o de assegurar crescimento mais rpido da economia portuguesa () assente num crescimento mais significativo da produtividade associado a um forte investimento nos sectores de bens e servios (2007, p. 5). Fazendo uma retrospectiva histrica do desenvolvimento econmico de Portugal, este assentou principalmente, nas dcadas de 1950 e de 1960, na acumulao de capital fsico39 (Pereira, 2007, p. 14). Ainda assim, a economia portuguesa cresceu a um bom ritmo, levando a que houvesse uma forte convergncia com os pases europeus mais desenvolvidos (idem, p. 11). No entanto, este modelo de crescimento foi atingindo a saturao, resultando num fraco crescimento da produtividade total dos factores (ibidem, p. 14). Apesar disso, noBens e servios passveis de serem vendidos nos mercados internacionais. As suas exportaes possibilitam a obteno de riqueza, permitindo dimensionar as suas indstrias para um mercado mais vasto, com consequentes ganhos de eficincia derivados de economias de escalas. Para alm disto, permite a criao de emprego sendo, tambm, uma fonte de cobrana de impostos. 39 Lus Brites Pereira (2007, p. 11) refere os factores de crescimento da economia so decompostos em trabalho, capital fsico, capital humano e produtividade total dos factores. Ao capital fsico corresponde o investimento em infra-estruturas, maquinaria e equipamento. Isto , so activos no humanos utilizados na produo.38

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houve qualquer inteno de alterar o mesmo e, como consequncia registou-se uma diminuio no ritmo de crescimento do sector secundrio, principalmente das indstrias transformadoras (ibidem, p. 14). Ultimamente, o crescimento econmico portugus tem-se baseado, essencialmente, em indstrias de trabalho intensivo, com baixo grau de sofisticao e pouco competitivas, assentando em baixo custos de mo-de-obra, dando-se pouco relevncia ao capital humano40. Em contra-ponto com o que acontece na maioria dos pases desenvolvidos. A OCDE d um grande nfase quilo que denomina como economia baseada no conhecimento (ou knowledge-based economy). No relatrio Knowledge-Based Economy, de 1996, esta organizao refere que o termo utilizado resulta de um maior reconhecimento do papel do conhecimento e da tecnologia no crescimento econmico (p. 9), pois o conhecimento hoje reconhecido como o fio condutor da produtividade e do crescimento econmico, levando a um novo enfoque sobre o papel da tecnologia da informao e da aprendizagem no desempenho econmico (idem, p. 3). No entanto, em Portugal, importantes camadas da populao de empresas persistem em no alterar o modelo econmico assente nos baixos custos salariais. O grosso das nossas exportaes derivam de indstrias que se caracterizam por baixa evoluo tecnolgica e pouco valor acrescentado (Pereira, 2007, p. 14), o que as torna pouco competitivas. A escassa utilizao de tecnologia no processo produtivo implica, por um lado, custos unitrios de trabalho41 mais elevados e, por outro, ndices de produtividade no trabalho42 mais baixos. At meados desta dcada, os aumentos salariais dos trabalhadores portugueses tm sido superiores aos aumentos de produtividade verificados. De 2006 at ao presente, registase uma tendncia de diminuio deste indicador, ainda que em 2008 Portugal apresente uma variao superior UE27 (Figura VII).

Para Lus Brites Pereira (2007, p. 11) o capital humano mede a qualidade da fora de trabalho, determinada pela educao, qualificao profissional, sade e motivao para o trabalho A OCDE (Keeley, 2007, p. 29) define capital como os conhecimentos, habilidades, competncias e atributos incorporados em indivduos que facilitam a criao de bem-estar pessoal, social e econmico. 41 Os custos unitrio do trabalho relacionam a remunerao por empregado com o PIB por emprego total e permite avaliarmos o grau de associao entre a remunerao dos empregados e a produtividade do trabalho, isto , da relao entre o que se paga em mdia a cada trabalhador e a produo mdia por trabalhador. (INE) 42 A produtividade no trabalho rcio entre o PIB expresso em unidades do poder de compra e o nmero de pessoas empregadas ou nmero de horas efetivamente trabalhadas. (INE)

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Figura VII - Variao dos custos unitrios de trabalho em Portugal e na UE (1996-2010)2 Portugal 1,5 1 0,5 0 -0,5 -1 -1,5 -2 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 UE27

Fonte: INE

Relativamente produtividade por trabalhador, verificamos que Portugal foi ultrapassado, para alm doutros, por pases oriundos do leste europeu, cuja adeso Unio Europeia data de 2004 (Chipre, Repblica Checa, Hungria, Malta, Eslovnia e Eslovquia), tendo sido um dos pases que apresentou, em 2008, um dos mais baixos ndices de produtividade por trabalhador (Figura VIII).Figura VIII - Produtividade por trabalhador (UE 27=100) (2008)200 180 160 140 120 100 80 60 40 20 0 Bulgria Romnia Letnia Estnia Litunia Polnia Portugal Repblica Checa Hungria Eslovquia Chipre Eslovnia Malta Dinamarca Espanha Alemanha Grcia Itlia Reino Unido Finlndia Holanda Sucia ustria Frana Blgica Irlanda Luxemburgo

Fonte: INE

Como no tem havido uma aposta clara no sector dos bens transacionveis, o crescimento da economia portuguesa tem sido efetuado, nos ltimos anos, com base no consumo, com especial incidncia no consumo pblico (de 1985 at 2010, o consumo pblico em percentagem do PIB aumentou cerca de 52%43). O crescente consumo, pblico e privado,

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Segundo dados estatsticos disponibilizados em www.pordata.pt.

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tem originado um problema de endividamento do Estado e dos agentes econmicos. Este consumo deveria ter sido acomodado pelo aumento da produtividade dos fatores (trabalho, capital fsico, capital humano e produtividade total dos fatores), o que no veio a acontecer, apesar de, como nos diz Pereira (2007, p. 16), Portugal ser um dos pases que mais investe. O problema tem residido, no na inexistncia de investimento mas, sim, na qualidade e destino do mesmo, j que este tem sido feito em capital fsico (sobretudo, no sector da construo) e no em sectores que impliquem a utilizao de tecnologia (maquinaria, equipamento, software). Portugal tem, no entanto, realizado alguns progressos no que toca ao seu posicionamento perante os parceiros da Unio Europeia em matria de investimento. Apesar de ainda se encontrar acima da mdia dos 27 pases, nota-se que foi feito um esforo, nos ltimos anos, para alterar a tipologia de investimentos (Figura IX).Figura IX - Formao Bruta de Capital Fixo na UE em % do PIB (2005 e 2009)35 30 25 20 15 10 5 Reino Unido Alemanha Sucia Polnia Holanda Frana Chipre Dinamarca UE 27 Finlndia Luxemburgo Blgica Grcia Itlia Malta ustria Hungria Litunia Portugal Romnia Eslovnia Bulgria Repblica Eslovquia Irlanda Espanha Letnia 0 2005 2009

Fonte: EUROSTAT

Portugal tem assistido, por outro lado, ao fenmeno da terciarizao da economia. Isto , a uma cada vez maior importncia do sector dos servios na nossa economia em detrimento dos outros sectores. Isso tanto pode ser verificado atravs da quota de cada sector no valor acrescentado bruto44, como na populao empregada45.

O valor acrescentado bruto o valor bruto da produo deduzido do custo das matrias-primas e de outros consumos no processo produtivo (Instituto Nacional de Estatstica) 45 Segundo o documento Os Servios Transaccionveis na Economia Portuguesa, o peso relativo do VAB do sector tercirio no total da economia ter aumentado [entre 1995 e 2006] cerca de 7 pontos percentuais situandose, em 2006, perto dos 73%, ao passo que no emprego o aumento ter sido prximo dos 6,4 p.p. representando, em 2006, cerca de 60%. O sector secundrio foi o que registou, neste perodo, a maior diminuio no VAB e no emprego: cerca de 4,2 p.p e 4,8 p.p., respectivamente (Catarino & Claro, 2009, p. 8).

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Para Pereira (2007, p. 16), Portugal est a enfrentar um processo de desindustrializao parecido com o que aconteceu em outros pases mas com a agravante de o mesmo ser acompanhado de nveis de PIB per capita relativamente reduzidos e sem a existncia de uma indstria slida e sustentvel a longo prazo, prejudicando gravemente a produo de bens transacionveis e originando um maior endividamento da nossa economia e deteriorao da nossa balana comercial. Apesar das exportaes terem crescido mais que as importaes, isso no foi suficiente para atenuar o dfice da balana comercial que, entre 1996 e 2010, se agravou cerca de 72% (Pordata, 2011). O maior crescimento das exportaes deve-se e